Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CRIME DO ESCARAVELHO / S. S. Van Dine
O CRIME DO ESCARAVELHO / S. S. Van Dine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

O brutal e fantástico assassinato do velho mecenas e filantropo Benjamim H. Kyle ficou desde logo conhecido como o Crime do Escaravelho, em razão de girarem os seus episódios em torno de um escaravelho azul encontrado junto ao corpo mutilado da vítima.
O sinete, esculpido com o nome de um primitivo faraó, foi a base do sólido tecido de provas coligidas pela perspicácia de Vance. Segundo a polícia, aquele era um indício meramente incidental, que comprometia evidentemente o dono do objeto, mas a Vance não atraía essa explicação singela e plausível.

 

 

 

 

 

 

I

Crime!


(Sexta-feira, 13 de julho — 11:00 horas)


Philo Vance foi atraído ao caso do Crime do Escaravelho por mera coincidência, conquanto quase não haja dúvida de que John F.-X, Markham, procurador distrital de Nova York, teria, mais cedo ou mais tarde, convocado os seus serviços. De qualquer forma, é problemático que mesmo Vance, com seu excelente cérebro analítico e seu notável faro para as sutilezas da psicologia humana, pudesse ter resolvido esse surpreendente e bizarro assassínio, se não fosse o primeiro a acorrer à cena do crime. Afinal de contas, ele somente conseguiu pôr o dedo no culpado devido aos confusos indícios que o seu olho pôde captar em uma inspeção inicial.

Esses indícios — altamente enganadores do ponto de vista material — deram-lhe finalmente a chave para a mentalidade do assassino, capacitando-o, assim, a elucidar um dos problemas criminais mais incríveis e complicados da moderna história policial.

O assassinato brutal e fantástico do velho filantropo e patrono das artes, Benjamin H. Kyle, quase imediatamente veio a ficar conhecido como o Crime do Escaravelho, como resultante do fato de ter sido cometido em um famoso museu particular de egiptologia e ter-se centrado em torno de um raro escaravelho azul, encontrado ao lado do corpo mutilado da vítima.

Esse antigo e valioso selo, que tinha inscrito o nome de um dos primeiros faraós — cuja múmia, incidentalmente, não tinha ainda sido descoberta naquela época — constituiu a base sobre a qual Vance apoiou sua surpreendente estrutura de provas. O escaravelho, do ponto de vista policial, era, meramente, uma prova acidental de acusação, que apontava, de maneira um tanto óbvia, para o seu proprietário. No entanto, esta explicação fácil e específica não satisfez a Vance.

— Assassinos — observou ele ao sargento Ernest Heath — ordinariamente não inserem seus cartões de visita nas fraldas da camisa de suas vítimas. Assim, conquanto a descoberta do besouro de lápis-lazúli seja do máximo interesse, do ponto de vista psicológico e do ponto de vista evidenciai, não nos devemos sentir demasiadamente otimistas e pular para as conclusões. O ponto mais importante neste crime pseudomístico é por que e como o criminoso deixou esse espécime arqueológico ao lado do cadáver. Desde que encontremos a razão dessa estranha ação teremos atingido o próprio segredo do crime.

O vigoroso sargento tinha desdenhado a sugestão de Vance e ridicularizado o seu cepticismo. No entanto, antes que se passasse um outro dia, veio a admitir, generosamente, que Vance estava certo e que o crime não tinha sido assim tão simples como parecera a princípio.

Como já disse, foi uma coincidência que atraiu Vance a este caso, antes que a polícia fosse notificada. Um conhecido seu deparou-se com o corpo do velho Sr. Kyle e, imediatamente, correu até ele com as sombrias notícias.

Isso aconteceu na manhã de sexta-feira, 13 de julho. Vance havia acabado de tomar um tardio desjejum no terraço de seu apartamento, na Rua 38, e voltara à biblioteca, a fim de continuar a translação de fragmentos de Menandro, encontrados em papiros egípcios nos primeiros anos do corrente século, quando Currie — seu camareiro e mordomo — apareceu à porta e anunciou com um ar de discreta desculpa: — O Sr. Donald Scarlett acaba de chegar, senhor, em estado de dolorosa excitação, e pede-lhe que se apresse a recebê-lo.

Vance levantou os olhos de seu trabalho com uma expressão de aborrecimento.

— Scarlett, ahn? Que amolação... Por que me vem visitar se está excitado? Prefiro, imensamente, pessoas calmas... Você lhe ofereceu conhaque com soda ou algum calmante triplo?

— Tomei a liberdade de colocar a sua frente um serviço de Curvoisier — explicou Currie. — Sei que o Sr. Scarlett aprecia muito o conhaque de Napoleão.

— Ah, sim... é verdade. Muito bem, Currie. — Vance, calmamente, acendeu um de seus cigarros Régie e permaneceu fumando durante alguns momentos, em silêncio. — Suponhamos que você o faça entrar, quando o julgar com os nervos suficientemente calmos.

Currie inclinou-se e saiu.

— Sujeito interessante este Scarlett — comentou Vance para mim. (Eu tinha estado com Vance a manhã toda, ordenando e classificando suas anotações). — Você se lembra dele, não, Van?

Eu estivera com Scarlett duas vezes, mas devo admitir que havia um mês ou mais que não pensava nele. Sua imagem, porém, voltou a mim naquele momento, com considerável clareza. Ele fora, eu sabia, colega de Vance em Oxford, e Vance esbarrara nele dois anos antes, durante sua estada no Egito.

Scarlett era um estudioso de egiptologia e de arqueologia, assuntos sobre os quais se especializara em Oxford, sob a direção do professor F. L. Griffith. Posteriormente, estudara química e fotografia, a fim de que pudesse juntar-se a alguma expedição egiptóloga, na qualidade de técnico. Era abastado cidadão britânico, amador e diletante, que fizera da egiptologia uma espécie de excentricidade.

Na ocasião em que Vance fora a Alexandria, Scarlett trabalhava no laboratório do Museu do Cairo. Os dois tornaram a encontrar-se e renovaram seu antigo conhecimento. Recentemente Scarlett viera aos Estados Unidos como membro da equipe do Dr. Mindrum W. C. Bliss, egiptólogo famoso, que mantinha um museu particular de antiguidades egípcias, num velho prédio da Rua 20, Leste, em frente ao Gramercy Park. Havia visitado Vance inúmeras vezes desde que chegara, e fora no apartamento de Vance que eu o conhecera. No entanto, nunca viera sem convite e me custava compreender seu inesperado aparecimento naquela manhã, já que ele possuía toda a meticulosidade de um inglês bem-educado, com relação aos assuntos sociais.

Vance, também, estava um pouco surpreso, apesar de sua atitude de afetada indiferença.

— Scarlett é um rapaz inteligente — resmungou Vance, pensativamente. — E muito correto. Por que terá vindo procurar-me a esta hora imprópria? E por que estará excitado? Espero que nenhuma desgraça se tenha abatido sobre o seu erudito empregador... Bliss é um homem surpreendente, Van, um dos maiores egiptólogos do mundo.'

 

 

(1) O Dr. Mindrum W. C. Bliss, possuidor de inúmeras condecorações e títulos, foi o autor de The Stele of Intefoe at Koptos, de uma History of Egypt during the Hyksos Invasion, de The Seventeenth Dynasty, e de uma monografia sobre os colossos de Amen-hotpe III.

 

 

Lembro-me de que, durante o inverno que passara no Egito, Vance tinha ficado grandemente interessado nos trabalhos do Dr. Bliss, que se esforçava em localizar a tumba do Faraó Intef V, que reinara no Egito Superior e em Tebas, durante a invasão dos hyksos. De fato, Vance acompanhou Bliss em uma expedição ao Vale dos Reis. Naquela ocasião ele havia sido atraído pelos fragmentos de Menandro e se encontrava no meio de uma translação desses fragmentos quando o caso do Crime do Bispo Preto interrompeu o seu trabalho.

Vance também se interessava nas variações de cronologia entre o Antigo e o Médio Reino do Egito, não do ponto de vista histórico, mas sim do ângulo de evolução da arte egípcia. Suas pesquisas o haviam levado para o lado da cronologia Bliss-Weigall — ou cronologia curta2 —, em contraposição à cronologia longa de Hall e de Petrie, de acordo com a qual eram recuadas a décima segunda dinastia e toda a História precedente de um ciclo sótico completo, ou 1460 anos. Após examinar os objetos de arte das eras pré e pró hyksos, Vance mostrou-se inclinado a postular por um intervalo de não mais de 300 anos entre a décima segunda e a décima oitava dinastias, conforme com a cronologia mais curta.

 

 

(2) De acordo com a cronologia de Bliss-Weigall, o período entre a morte de Sebk-nefru-Re e a queda dos Reis Pastores, em Mênfis, estendeu-se de 1898 a 1577 a.C, isto é, 321 anos, enquanto os seguidores de cronologia mais longa alegam 1800 anos. Esta cronologia curta é ainda mais reduzida de acordo com Breasted e* a escola alemã. Breasted e Meyer datam o mesmo período como sendo de 1788 a 1580 a.C. Vance, no entanto, considerava esses 208 anos como muito curtos para as modificações culturais observáveis.

 

 

Comparando certas estátuas feitas durante o reinado de Amen-em-hêt III com outras da época de Thut-mose I — deste modo cobrindo a invasão dos hyksos, com sua influência barbárica asiática e seu aniquilamento da cultura egípcia nativa — Vance chegara à conclusão de que a manutenção dos princípios estéticos da décima segunda dinastia não poderia ter sido possível com uma lacuna maior do que 300 anos. Em resumo, ele concluíra que, se o interregno tivesse sido mais longo, os indícios da decadência da décima oitava dinastia teriam sido ainda mais pronunciados.

Essas pesquisas de Vance passaram pela minha cabeça naquela abafada manhã de julho, enquanto aguardávamos que Currie introduzisse o visitante. A comunicação da visita de Scarlett trouxera de volta a lembrança das cansativas semanas despendidas para organizar e passar a máquina as anotações de Vance sobre o assunto. Talvez eu tenha pressentido — o que denominamos vagamente de premonição — que a visita de surpresa de Scarlett estivesse de algum modo relacionada com as pesquisas estético-egiptólogas de Vance. Talvez, mesmo então, eu estivesse ordenando em meu cérebro, inconscientemente, os fatos daquele inverno de dois anos antes, de modo a que eu pudesse entender melhor o objetivo da visita de Scarlett.

No entanto, com toda a certeza, eu não fazia a mínima idéia nem suspeitava do que realmente iria desabar sobre nós. Era algo demasiado estarrecedor e estranho para a imaginação casual. Era algo que nos iria tirar da rotina ordinária da experiência do dia-a-dia e nos mergulhar em uma atmosfera embolorada e miasmática de coisas ao mesmo tempo incríveis e aterradoras — coisas férteis na aparentemente sobrenatural magia negra de um sabá de bruxas. A diferença é que, neste caso, era o caráter místico e fantástico do velho Egito — com sua confusa mitologia e sua grotesca galeria de deuses com cabeças de animais — que fornecia o fundo de quadro.

Scarlett transpôs quase desabaladamente os umbrais da biblioteca quando Currie afastou a porta de correr para que ele entrasse. Ou o Curvoisier havia aumentado sua excitação ou Currie, deploravelmente, subestimara o estado de nervos do homem.

— Kyle foi assassinado — deixou escapar o recém-chegado, encostando-se à mesa da biblioteca e encarando Vance com olhos arregalados.

— Que coisa! Que maçada! — Vance puxou a cigarreira. — Fume um de meus Régies... Essa cadeira a seu lado é muito confortável. Da época do Rei Charles; encontrei-a em Londres... Que estupidez pessoas serem assassinadas, não? De qualquer modo é algo que não podemos evitar. A raça humana é diabolicamente sedenta de sangue.

Sua indiferença exerceu efeito salutar em Scarlett que se deixou cair na cadeira e se pôs a acender o cigarro com mãos trêmulas.

Vance aguardou um momento antes de perguntar: — Casualmente, como você soube que Kyle foi assassinado?

Scarlett teve um sobressalto.

— Eu o vi caído lá, a cabeça esmigalhada. Uma visão aterradora, sem sombra de dúvida.

Vance recostou-se languidamente em sua cadeira e fez com as longas mãos afiladas uma pirâmide.

— Esmigalhado com quê? E caído lá onde? E como veio você a descobrir o corpo?... Controle-se, Scarlett, e faça um esforço para ser coerente.

Scarlett franziu o sobrecenho e puxou profundas baforadas do cigarro. Era um homem de cerca de quarenta anos, alto e esguio, com a cabeça mais alpina do que nórdica — um tipo dinárico. Tinha a testa ligeiramente saliente e o queixo redondo e recessivo. Seu aspecto era o de uma pessoa estudiosa, embora não fosse o de um sedentário devorador de livros, pois havia força e rudeza em seu corpo; o rosto era profundamente bronzeado, como o de um homem que tivesse vivido muitos anos ao sol e ao ar livre. Havia em seus olhos intensos um traço de fanatismo — expressão de certo modo acentuada por uma cabeça quase completamente calva. Ainda assim, dava-me a impressão de honestidade e franqueza — no que, pelo menos, seu institucionalismo britânico mostrava-se fortemente evidente.

— Você está certo, Vance — disse, após uma breve pausa, com um esforço mais ou menos bem sucedido de acalmar-se. — Como você sabe, cheguei com o Dr. Bliss a Nova York em maio, como membro de sua equipe, e venho fazendo para ele todos os serviços técnicos. Tenho os meus pertences ali ao dobrar a esquina do museu, em Irving Place. Esta manhã eu precisava classificar um monte de fotografias e cheguei ao museu pouco depois das dez e meia...

— Sua hora usual? — quis saber Vance, negligentemente.

— Oh, não. Esta manhã eu estava um pouco atrasado. Estivéramos trabalhando a noite passada em um relatório financeiro da última expedição.

— E então?

— Que coisa engraçada — continuou Scarlett. — A porta da frente estava ligeiramente aberta — normalmente tenho que tocar a campainha. No entanto, não vi nenhuma razão para perturbar Brush...

— Brush?

— O mordomo de Bliss... Assim, limitei-me a abrir a porta e entrar para o saguão. A porta de aço de acesso ao museu, que fica à direita do saguão, raramente está trancada, e eu a abri. Assim que comecei a descer as escadas para o museu vi que alguém se encontrava caído no lado oposto da sala. Pensei, inicialmente, que se tratasse de uma das caixas de múmias que havíamos desempacotado ontem — a luz não era muito boa — mas logo que os meus olhos se adaptaram percebi que era Kyle. Estava encolhido, com os braços estendidos sobre a cabeça... Mesmo então ainda pensei que estivesse desfalecido; pus-me a descer os degraus em sua direção.

Scarlett fez uma pausa e passou o lenço — que tirou do punho da camisa — na cabeça brilhante.

— Por Jó, Vance! Que visão pavorosa... Kyle foi atingido na cabeça por uma das novas estátuas que colocamos no museu ontem e seu crânio estava esmigalhado como uma casca de ovo. A estátua ainda permanecia atravessada em sua cabeça.

— Você tocou em alguma coisa?

— Bom Deus, não! — disse Scarlett, com a ênfase do horror. — Estava-me sentindo muito mal — a coisa era aterradora. E não era preciso abrir mais de um olho para ver que o pobre sujeito estava morto.

Vance estudou o homem atentamente.

— Qual foi a primeira coisa que você fez?

— Chamei o Dr. Bliss, cujo escritório fica no alto das escadas em espiral, na parte de trás do museu...

— E não obteve resposta?

— Não, não houve resposta... Então, admito... fiquei apavorado. Não me agradava a idéia de ser encontrado com um homem assassinado e disparei de volta para a porta de entrada. Pensei em cair fora e não dizer que estivera lá...

— Ah! — Vance inclinou-se para a frente e escolheu outro cigarro cuidadosamente. — E então, quando você se achou na rua novamente, sentiu-se preocupado.

— Foi isso, precisamente! Não parecia honesto deixar o pobre diabo lá... mas, mesmo assim, não me queria ver envolvido... Já estava, então, chegando à Quarta Avenida, carregando a coisa comigo e esbarrando nas pessoas, sem as ver. Foi quando pensei em você. Sabia que você conhecia o Dr. Bliss e o empreendimento e poderia dar-me um bom conselho. Um outro ponto é que eu me sentia um pouco estranho em um país novo e não tinha certeza de a quem relatar o assunto... Assim, me apressei a vir até aqui. — Scarlett interrompeu-se de súbito e observou Vance ansiosamente. — Qual é o procedimento?

Vance esticou as longas pernas à sua frente e preguiçosamente contemplou a ponta de seu cigarro.

— Deixe os procedimentos comigo — respondeu finalmente. — Não é assim tão complicado e varia de acordo com as circunstâncias. Podemos chamar a Delegacia de Polícia ou. pôr a cabeça para fora da janela e berrar, ou confiar em um guarda de tráfego, ou simplesmente ignorar o cadáver e esperar que outro tropece nele. No final tudo vem a dar na mesma coisa, pois o criminoso, quase certamente, pode cair fora em segurança... No entanto, no presente caso, vou variar um pouco de sistema e chamar o edifício da Corte Criminal por telefone.

Vance se voltou para o telefone francês, de madrepérola, colocado a seu lado em cima de uma mesinha veneziana, e pediu um número. Poucos momentos mais tarde estava falando com o procurador distrital.

— Minhas saudações, Markham, velho amigo. Que tempo abominável, não? — Sua voz era demasiadamente indolente para que fosse convincente. — Casualmente, Benjamin H. Kyle foi em busca de seu Criador por meios repugnantes. No momento ele jaz no soalho do Museu Bliss com o crânio completamente fraturado... Oh, sim, bem morto, pelo que sei. Você, por acaso, está interessado? Pensei que seria inamistoso mas estou-lhe comunicando... Triste, muito triste... Estou em vias de fazer algumas observações in situ criminis... Psiu, psiu! Esta não é hora de recriminações. Não fique tão infernalmente sério... Realmente, creio que será melhor que venha também... Está bem! Espero você aqui.

Recolocou o receptor em seu suporte e tornou a recostar-se na cadeira.

— O procurador distrital não tardará a estar aqui — anunciou ele — e provavelmente teremos tempo para algumas observações antes de a polícia chegar.

Os olhos de Vance voltaram-se sonhadoramente para Scarlett.

— Sim, como diz você, conheço o empreendimento de Bliss. As possibilidades, no caso, são fascinantes: poderão vir a mostrar-se muito divertidas... (Eu sabia pela sua expressão que o seu cérebro antegozava — não sem um certo grau de antecipado interesse — um novo problema criminal). — Então a porta da frente estava aberta, hem? E quando você chamou ninguém respondeu?

Scarlett fez um gesto afirmativo, mas nenhuma resposta audível foi emitida. Obviamente ele estava intrigado com a recepção casual de Vance relativamente a sua apavorante descrição.

— Onde estavam os criados? Não poderiam ter ouvido a sua chamada?

— Provavelmente não. Eles se encontram do outro lado da casa, lá embaixo. A única pessoa que poderia ter-me ouvido era o Dr. Bliss, desde que estivesse em seu escritório.

— Você poderia ter tocado a campainha da frente ou ter chamado alguém do saguão principal — sugeriu Vance.

— É verdade — admitiu Scarlett. — Mas não se esqueça, meu velho... eu estava em pânico...

— Sim, sim... claro. Mais do que natural. Indícios de prima-facie e tudo o mais. Muito suspeito, não? Ainda assim, você não tinha nenhuma razão para desejar ver o velho excêntrico fora do caminho, não?

— Oh, meu Deus, não! — Scarlett ficou pálido. — Ele entrava com o dinheiro. Sem o seu apoio as escavações de Bliss e o próprio museu irão por água abaixo.

Vance concordou com a cabeça.

— Bliss falou-me sobre a situação quando eu estive no Egito... Não é Kyle o dono da propriedade onde está situado o museu?

— Sim, ambas as casas. Você sabe, são duas casas. Bliss, sua família e o jovem Salveter — sobrinho de Kyle — vivem numa delas e o museu ocupa a outra. Foram abertas duas portas e a entrada da casa que abriga o museu foi fechada com tijolos. Assim, praticamente, é um único prédio.

— E onde morava Kyle?

— Na casa de pedra calcária castanho-avermelhada junto ao museu. Ele era o proprietário de um bloco de seis ou sete casas vizinhas naquela mesma rua.

Vance se pôs de pé e caminhou meditativamente até à janela.

— Você sabe como Kyle veio a interessar-se em egiptologia? É um assunto bem fora de sua especialidade. Seu fraco era por hospitais e por aqueles incríveis retratos ingleses da escola Gainsborough. Ele foi um dos licitantes do Blue Boy. Felizmente para ele não o arrematou.

— Foi o jovem Salveter que levou seu tio a financiar Bliss. O rapaz era aluno de Bliss quando este era professor de egiptologia em Harvard. Quando se formou estava sem emprego e o velho Kyle financiou a expedição para que o rapaz tivesse alguma coisa para fazer. O velho Kyle gostava muito do sobrinho.

— E Salveter tem estado com Bliss desde essa época?

— Sim. Até o ponto de viver na própria casa de Bliss. Não saiu de seu lado desde a primeira visita que fizeram ao Egito, três anos atrás. Bliss o fez Curador-Assistente do Museu. Ele de fato merecia a função. Um rapaz brilhante que vive e come egiptologia.

Vance tornou a se aproximar da mesa e tocou a campainha chamando Currie.

— A situação tem suas possibilidades — observou ele em seu modo pachorrento habitual. — Casualmente, que outros membros do pessoal da casa de Bliss se encontravam lá?

— A Sra. Bliss — a quem você conheceu no Cairo — uma moça estranha, meio egípcia, muito mais jovem do que o marido. Hani, um egípcio, que Bliss trouxe, ou melhor, que a Sra. Bliss trouxe com ela. Hani foi um velho dependente do pai de Meryt...

— Meryt?

Scarlett piscou e pareceu embaraçado.

— A Sra. Bliss, quero dizer — explicou. — Seu nome próprio é Meryt-Amen. No Egito, como você sabe, é normal referir-se a uma senhora pelo seu primeiro nome.

— Oh, sim. — Um sorriso ligeiro perpassou pelo canto da boca de Vance. — E que posição esse Hani ocupa entre a criadagem?

Scarlett franziu os lábios.

— Uma posição um tanto anômala, se me pergunta. Um fellahin, uma espécie de cristão copta. Ele acompanhava o velho Abercrombie — o pai de Meryt — em suas várias viagens de exploração. Quando Abercrombie morreu, ele passou a ser como que o pai adotivo de Meryt. Nesta primavera ele acompanhou a expedição de Bliss, desempenhando alguma função de menor categoria como representante do governo egípcio. É como que um faz-tudo de alta classe com relação ao museu. Também conhece um bocado de egiptologia.

— No momento ele mantém alguma função oficial do governo egípcio?

— Isso não sei... embora não me surpreendesse se ele estivesse fazendo um pouco de espionagem patriótica. Nunca se sabe nada a respeito desses indivíduos.

— Que outras pessoas completam a criadagem?

— Há dois criados americanos: Brush, o mordomo, e Dingle, a cozinheira.

Nesse momento Currie entrou na biblioteca.

— Oh, sim, Currie — dirigiu-se Vance a ele — um eminente cavalheiro acaba de ser assassinado aqui nas vizinhanças e vou dar uma espiada no corpo. Prepare um terno cinzento e meu Bangkok. Uma gravata sóbria, é lógico... Mas Currie, em primeiro lugar o Amontillado.

— Sim, senhor.

Currie recebeu a notícia como se assassinatos fossem acontecimentos rotineiros em sua vida e retirou-se.

— Você sabe de alguma razão, Scarlett, — perguntou Vance — pela qual Kyle deveria ser afastado do caminho?

O outro hesitou, quase imperceptivelmente.

— Não posso imaginar — respondeu, contraindo as sobrancelhas. — Era um velho bom e generoso; pomposo e um tanto vazio, mas eminentemente amável. No entanto, não conheço sua vida particular. Talvez tenha tido inimigos...

— Mesmo assim — sugeriu Vance — não é exatamente provável que um inimigo o tenha seguido até o museu e descarregado sua vingança sobre ele em um lugar estranho, em que qualquer pessoa poderia ter entrado.

Scarlett retesou-se abruptamente.

— Mas você não está insinuando que alguma pessoa da casa...

— Meu querido amigo!

Nesse momento Currie entrou com o sherry e Vance serviu-o em três copos. Depois de ter bebido, pediu licença e foi-se vestir. Scarlett ficou caminhando de um lado para outro, inquietamente, durante o quarto de hora em que Vance esteve ausente. Havia jogado fora o seu cigarro e acendera um velho cachimbo, de cheiro quase atroz.

Quase no mesmo instante em que Vance retornava à biblioteca uma buzina de automóvel soou roucamente do lado de fora. Markham se encontrava lá embaixo, a nossa espera.

Quando nos encaminhávamos para a porta Vance perguntou a Scarlett: — Era normal que Kyle estivesse no museu a essa hora* da manhã?

— Não, bastante inusual. No entanto, o Dr. Bliss marcara um encontro com ele para esta manhã, a fim de discutirem as despesas da última expedição e as possibilidades de continuarem as escavações na próxima temporada.

— Você sabia desse encontro? — indagou Vance, indiferentemente.

— Oh, sim. O Dr. Bliss o chamou por telefone a noite passada, durante a conferência, quando estávamos organizando o relatório.

— Bem, bem. — Vance passou para o saguão. — Então, havia também outras pessoas que sabiam que Kyle estaria no museu esta manhã.

Scarlett parou e pareceu surpreender-se.

— Realmente, você não está insinuando... — começou ele.

— Quem ouviu o encontro ser marcado? — Vance já estava descendo as escadas.

Scarlett o seguiu intrigado, de olhos baixos.

— Bem, deixe-me ver... Salveter, Hani e...

— Por favor, continue.

— E a Sra. Bliss.

— Todos da casa, enfim, com exceção de Brush e Dingle?

— Sim... Mas olhe aqui, Vance; o encontro era para as onze horas e o pobre velho excêntrico já estava morto antes das dez e meia.

— Está tudo muito embrulhado — resmungou Vance.

 

 


II

 

A vingança de Sakhmet

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 11:30 horas)

 

 

Markham recebeu Vance com um olhar de fria reprovação.

— O que quer dizer isso? — perguntou ele, asperamente. — Eu estava no meio de uma importante reunião do Comitê...

— O significado está ainda por ser descoberto — interrompeu Vance despreocupadamente, entrando no carro. — A causa de sua desagradável presença, no entanto, é um crime o mais fascinante.

Markham fuzilou-o com um olhar astuto e determinou ao motorista que conduzisse o automóvel, com toda a pressa possível, até o Museu Bliss. Ele reconhecera os sintomas da perturbação de Vance: uma aparência exterior frívola, da parte de Vance, era sempre indicativa de um interior sério. 4

Markham e ele eram amigos havia mais de quinze anos e Vance o tinha ajudado em inúmeras de suas investigações. Na verdade, ele passara a depender da assistência de Vance nos mais complicados casos criminais ocorridos sob sua jurisdição (1) (1) Como conselheiro para os assuntos legais, administrador de bens e companhia constante de Philo Vance, mantive um registro completo dos principais casos criminais de que Vance participou e da incumbência de Markham. Quatro desses casos eu já registrei sob a forma de livros: O Caso Benson, O Crime da Canária, A Série Sangrenta e Bispo Preto.

 

Seria difícil encontrar-se dois homens tão diametralmente opostos, sob o ponto de vista temperamental. Markham era austero, agressivo, franco, grave e um tanto solene. Vance era jovial, caprichoso e superficialmente cínico: um amador de artes com um interesse apenas impessoal em sérios problemas sociais e morais. No entanto, era essa verdadeira disparidade em suas naturezas que parecia uni-los.

No caminho para o museu, situado uns poucos blocos adiante, Scarlett contou novamente para o procurador distrital os detalhes de sua macabra descoberta.

Markham ouviu atentamente. Em seguida voltou-se para Vance.

— É claro que pode tratar-se apenas de um assalto comum. Alguém, da rua...

— Oh, por minha tia! — Vance suspirou e sacudiu a cabeça lugubremente. — Realmente, como você sabe, assaltantes não penetram em conspícuas residências particulares, à luz do dia, e esfacelam a cabeça das pessoas com uma estátua. Eles, pelo menos, trazem suas próprias armas e escolhem cenários onde possam dispor de algum grau de segurança.

— Bem, de qualquer modo — resmungou Markham — já notifiquei ao sargento Heath.1 Ele não demorará a chegar.

 

 

(1) Sargento Ernest Heath, do Departamento de Homicídios, que trabalhou com Markham na maior parte de seus casos importantes. Era policial honesto e capaz, mas sem inspiração, que, após os casos Benson e da Canária, passara a ter Vance em alta conta. Vance também admirava o sargento e os dois — a despeito de suas diferenças fundamentais em aspecto e em educação — colaboravam um com o outro com admirável afabilidade.

 

 

Na esquina da Rua Vinte com a Quarta Avenida o carro parou. Um patrulheiro uniformizado, que se encontrava em frente a uma cabina telefônica, reconhecendo o procurador distrital, perfilou-se e fez continência.

— Pule para o banco da frente, patrulheiro — determinou Markham. — Pode ser que precisemos de você.

Ao chegarmos ao museu, Markham postou o patrulheiro ao pé da escada que conduzia à dupla porta da frente. Imediatamente subimos até o vestíbulo.

Anotei mentalmente as duas casas, das quais Scarlett já nos tinha feito uma breve descrição. Cada uma delas tinha uma fachada de oito metros e ambas eram construídas com lajes grandes de calcário castanho-avermelhado. A casa da direita não tinha porta de entrada, a qual, obviamente, tinha sido fechada com tijolos. Também não havia janelas na passagem entre os dois prédios. A casa da esquerda, no entanto, não havia sido alterada. Era uma casa de três andares; um lance largo de degrau de pedra com corrimão também de pedra conduzia ao primeiro andar. O "porão", como é comum em tais estruturas, ficava um pouco abaixo do nível da rua. Em outras épocas as duas casas tinham sido exatamente iguais, mas agora, com as alterações feitas na entrada comum, davam a impressão de um prédio único.

Quando entramos no vestíbulo pouco profundo — uma característica de todas as velhas mansões de lajes castanho-avermelhadas daquela rua — notei que a pesada porta de entrada, de carvalho, que Scarlett havia dito encontrar-se aberta naquela manhã, mais cedo, estava agora fechada. Vance, por sua vez, observou o fato, pois logo se voltou para Scarlett e perguntou: — Você fechou a porta quando saiu da casa?

Scarlett fixou seriamente os painéis maciços, como se estivesse procurando relembrar suas ações.

— Realmente, meu velho, não consigo lembrar-me — respondeu ele. — Eu estava infernalmente transtornado. Talvez tenha fechado a porta...

Vance mexeu na maçaneta e a porta abriu.

— Bem, bem. De qualquer modo o ferrolho foi corrido. Muito descuidado da parte de alguém... É isso normal?

Scarlett olhou atônito.

— Nunca soube que estivesse destrancada.

Vance ergueu a mão, indicando que permanecêssemos no vestíbulo e se encaminhou calmamente para a porta de aço da direita, que levava ao museu. Pudemos vê-lo abri-la cautelosamente, mas não distinguimos o que se encontrava além dela. Vance desapareceu por um momento.

— Oh, Kyle está bem morto — anunciou ele sombriamente ao voltar. — Aparentemente ninguém o descobriu até agora. — Cuidadosamente tornou a fechar a porta. — Não devemos tirar partido de o trinco não ter sido passado — acrescentou. — Vamos nos manter dentro das regras e ver quem nos atende. — Em seguida pressionou o botão da campainha.

Poucos momentos depois a porta foi aberta por um homem cadavérico e clorotico, em uniforme de mordomo. O homem inclinou-se indiferentemente para Scarlett e inspecionou friamente a nós outros.

— Brush, creio eu — Foi Vance quem falou.

O homem inclinou-se ligeiramente, sem afastar os olhos de nós.

— O Dr. Bliss está? — perguntou Vance.

Brush interrogou Scarlett com os olhos. Tendo recebido um sinal confirmatório abriu um pouco mais a porta.

— Sim, senhor — respondeu. — Está em seu escritório. A quem devo anunciar?

— Não é necessário perturbá-lo, Brush — Vance passou para o saguão de entrada e nós o seguimos. — O doutor permaneceu em seu escritório toda a manhã?

O mordomo empertigou-se e tentou reprovar Vance com um olhar de insolente indignação. Vance sorriu, amistosamente.

— Sua atitude é muito correta, Brush. Mas não estamos desejando lições de etiqueta. Aqui o Sr. Markham, procurador distrital de Nova York. Estamos aqui para obter informações. Você não gostaria de prestá-las voluntariamente?

O homem havia percebido a presença do patrulheiro uniformizado ao pé das escadas de pedra e empalidecera.

— Você estará prestando um favor ao doutor com suas respostas — opinou Scarlett.

— O Dr. Bliss está em seu escritório desde as nove horas da manhã — respondeu o mordomo, em tom de injuriada dignidade.

— Como pode ter certeza disso? — quis saber Vance.

— Levei lá o seu café e tenho estado aqui neste andar desde então.

— O escritório do Dr. Bliss — interpôs Scarlett — fica depois deste saguão. — Apontou para uma porta guarnecida por cortina, no fim do extenso corredor.

— Ele deve estar-nos ouvindo agora — observou Markham.

— Não, a porta é forrada — explicou Scarlett. — O escritório é o seu sanctum sanctorum; nenhum som da casa chega-lhe ao ouvido.

O mordomo, com os olhos brilhando, começara a movimentar-se.

— Só um momento, Brush. — A voz de Vance o fez parar. — Quem mais se encontra em casa agora?

O homem se voltou e, quando respondeu, pareceu-me que sua voz tremia ligeiramente.

— O Sr. Hani está lá em cima. Ele tem andado indisposto...

— Oh, sim? — Vance puxou a cigarreira. — E que outras pessoas da casa?

— A Sra. Bliss saiu por volta das nove horas — para fazer algumas compras, foi o que a entendi dizer. O Sr. Salveter saiu de casa pouco depois.

— E Dingle?

— Está lá embaixo na cozinha, senhor. Vance estudou o mordomo avaliativamente.

— Você está precisando de um tônico, Brush. Uma combinação de ferro, arsênico e estriquinina levantaria suas forças.

— Sim, senhor. Estou pensando em consultar um médico... É falta de ar livre, senhor.

— É isso mesmo — Vance havia escolhido um de seus bem-amados Régies e o estava acendendo com meticuloso cuidado. — Casualmente, Brush, onde está o Sr. Kyle? Ele apareceu aqui esta manhã, creio eu.

— Ele está lá no museu... Tinha-me esquecido, senhor. O Dr. Bliss talvez esteja com ele.

— É mesmo. A que horas chegou o Sr. Kyle?

— Por volta das dez horas.

— Foi você quem o recebeu?

— Sim, senhor.

— Você avisou o Dr. Bliss de sua chegada?

— Não, senhor. O Sr. Kyle me disse que não havia necessidade de perturbar o doutor. Ele explicou que era muito cedo para o encontro que haviam marcado e que desejava examinar algumas curiosidades do museu, durante cerca de uma hora. Disse que mais tarde bateria à porta do escritório do doutor.

— O Sr. Kyle foi diretamente para o museu?

-— Sim, senhor. Na verdade fui eu quem abriu a porta para ele.

Vance fumou prazerosamente durante alguns momentos.

— Uma coisa mais, Brush. Notei que o trinco da porta da frente estava corrido, de modo que qualquer pessoa de fora poderia entrar na casa sem tocar a campainha...

O homem ia dizer alguma coisa, mas, dirigindo-se rapidamente até à porta, inclinou-se e examinou o trinco.

— De fato, senhor... Muito estranho. Vance o observava atentamente.

— Por que estranho?

— Bem, senhor, o trinco não estava corrido quando o Sr. Kyle chegou às dez horas. Verifiquei-o especialmente quando o fiz entrar. Ele disse que desejava ficar sozinho no museu e como membros da casa deixam às vezes a porta destrancada quando saem por pouco tempo, procurei certificar-me de que ninguém o havia feito esta manhã. De outro modo, poderiam entrar e perturbar o Sr. Kyle sem que eu os pudesse avisar.

— Mas, Brush, —- interpôs Scarlett excitadamente — quando cheguei aqui às dez e meia a porta estava aberta...

Vance fez um gesto admonitório.

— Está bem, Scarlett. — Em seguida voltou-se para o mordomo. — Para onde você foi depois de ter feito o Sr. Kyle entrar?

— Até a sala de visitas — O homem apontou para uma porta de correr, à esquerda, a meio caminho da parede do saguão, ao pé das escadas.

— E até que horas permaneceu lá?

— Até dez minutos atrás.

— Você ouviu o Sr. Scarlett entrar e sair pela porta da frente?

— Não, senhor... Mas, então, eu estava usando o aspirador de pó. O barulho do motor...

— Muito bem. Mas se o motor estava funcionando, como você sabe que o Dr. Bliss não saiu de seu escritório?

— A porta da sala de visitas estava aberta, senhor. Se ele saísse eu teria visto.

— Ele, porém, poderia ter passado pelo museu e saído da casa pela porta da frente sem que você o ouvisse. Como você sabe, não ouviu o Sr. Scarlett entrar.

— Isso está fora de questão, senhor. O Dr. Bliss estava vestido apenas com um roupão leve sobre o pijama. Todas as suas roupas estão lá em cima.

— Muito bem, Brush... Agora mais uma pergunta. A campainha da porta da frente tocou alguma vez depois da chegada do Sr. Kyle?

— Não, senhor.

— Talvez tenha tocado e Dingle tenha atendido... O ruído do motor, sabe...

— Ela teria subido e me avisado, senhor. Ela nunca atende à porta na parte da manhã. Ela se encontra mesmo em trajes apresentáveis até depois do meio-dia.

— O que é caracteristicamente feminino — resmungou Vance... Por enquanto é tudo, Brush. Pode descer e esperar que o chamemos. O Sr. Kyle sofreu um acidente e vamos dar uma espiada. Não comente coisa alguma, compreendeu? A voz de Vance, de repente, tornara-se dura e agourenta.

Brush respirou profundamente e se recompôs; parecia positivamente doente e cheguei a esperar que desfalecesse. Seu rosto estava branco como giz.

----Certamente, senhor... eu compreendo. — Suas palavras pareciam articuladas com grande esforço. Em seguida afastou-se nervosamente e desapareceu pelas escadas de trás, à esquerda da porta do escritório do Dr. Bliss.

Vance falou em voz baixa com Markham, que imediatamente chamou com um gesto o patrulheiro que se encontrava na rua, lá embaixo.

— Você fica aqui no vestíbulo — determinou. — Quando o sargento Heath e os seus homens chegarem, traga-os até nós imediatamente. Estaremos aqui — Indicou a larga porta de aço que permitia o acesso ao museu. — Se alguém aparecer, detenha e nos avise. Não deixe ninguém tocar a campainha.

O patrulheiro fez continência é assumiu seu posto. Nós, com Vance à frente, passamos através da porta de aço e entramos no museu.

Um lance de escadas atapetadas, com um metro de largura, descia ao longo da parede até atingir a enorme sala abaixo, ao nível da rua. O soalho do primeiro andar — ao mesmo nível do saguão da casa, que acabávamos de deixar — fora removido, de modo que a sala do museu tinha uma altura de dois andares. Duas imensas colunas, com vigas de aço e travessas em diagonal, tinham sido levantadas como apoio. Além disso, as paredes que delimitavam as peças anteriores haviam sido demolidas. O resultado era que a peça na qual acabávamos de entrar ocupava toda a largura e todo o comprimento da casa — cerca de oito por vinte metros — e tinham um teto de quase seis metros de alto.

Na frente havia uma série de janelas altas e envidraçadas, correndo ao longo de toda a largura do prédio; atrás, por cima de uma série de armários de carvalho, um correr de janelas similares tinha sido aberto. As cortinas das janelas da frente encontravam-se cerradas, mas as de trás estavam abertas. O sol ainda não conseguira penetrar na sala, e a luz era muito fraca.

Enquanto nos detínhamos por alguns instantes no topo das escadas, notei uma escada de ferro, circular, à retaguarda, que levava a uma pequena porta de aço ao mesmo nível da porta através da qual havíamos entrado.

A disposição do museu com relação à casa em que se acomodavam os Bliss viria a demonstrar-se de capital importância na solução do assassinato de Benjamin Kyle encontrada por Vance e, para melhor compreensão, estou incluindo neste registro uma planta das duas casas. O soalho do museu, como já disse, ficava ao nível da rua — fora, anteriormente, o soalho do "porão". Deve-se ter em mente que as peças indicadas na planta, em sua metade esquerda, ficavam um andar acima do soalho do museu e a meio caminho entre este mesmo soalho e o teto.

Meus olhos buscaram logo o canto oposto da sala, procurando o homem assassinado. Essa parte do museu, no entanto, estava na sombra, e tudo que pude perceber foi uma massa escura, como um corpo humano deitado, em frente do armário que se encontrava na extremidade mais afastada do aposento.

Vance e Markham haviam descido as escadas, enquanto Scarlett e eu aguardávamos no patamar superior. Vance se encaminhou diretamente para a parte da frente do museu e puxou os cordões das cortinas. A luz invadiu a semi-escuridão. Pela primeira vez pude perceber os surpreendentes e maravilhosos conteúdos daquela grande sala.

No centro da parede oposta elevava-se um obelisco de Heliópolis, de três metros de altura, comemorativo de uma expedição da Rainha Hatshepsut, da décima oitava dinastia, e ostentando o seu símbolo. À direita e à esquerda do obelisco estátuas de gesso — uma da Rainha Teti-shiret, da décima sétima dinastia, e a outra uma réplica da famosa estátua de Turim de Ramsés II, considerada uma das melhores peças esculpidas da antigüidade.

Acima e ao lado delas encontravam-se pendurados diversos papiros, emoldurados e cobertos por vidros, seu desbotado fundo cor de laranja queimada — entremeado por pontos vermelhos, amarelados, esverdeados e brancos — constituindo-se em manchas de coloração atraente contra o esmaecido emboco acinzentado da parede. Quatro enormes baixo-relevos de calcário, retirados de uma tumba da décima nona dinastia, em Mênfis, e contendo passagens do Livro dos Mortos, alinhavam-se acima dos papiros.

Sob as janelas da frente via-se um sarcófago de granito da vigésima segunda dinastia, de cerca de três metros de comprimento, cuja frente e as laterais se achavam recobertas por inscrições hieroglíficas. O sarcófago estava coberto por uma tampa em formato de múmia, onde se destacava o pássaro do espírito, ou Ba, em forma de falcão, mas com a cabeça de um homem. Este sarcófago era um dos mais raros existentes na América, para onde tinha sido trazido pelo Dr. Bliss, da antiga necrópole de Tebas. No canto, mais além, uma estátua em cedro de um asiático, encontrada na Palestina — uma relíquia das conquistas de Thut-mose III.

Próximo à parte de baixo das escadas erguia-se a majestosa estátua de Kha-ef-Re, da quarta dinastia. Era feita com gesso cinzento de Paris, envernizada e polida, imitando a diorita original. Tinha cerca de 2,5 metros de altura e sua dignidade, sua força e sua calma magistral pareciam dominar todo o museu. (1) (1) Kha-ef-Rê foi o originador da grande Esfinge e também de uma das três grandes pirâmides de Gizeh — Wer Kha-ef-Rê (Kha-ef-Rê é poderoso), hoje conhecida como a Segunda Pirâmide.

À direita da estátua e estendendo-se até a escada em espiral à retaguarda, encontrava-se uma fileira de caixas de múmia antropóides, ostentosamente decoradas a ouro e a cores brilhantes. Acima delas, duas enormes ampliações coloridas — uma mostrando os Colossos de Amen-hopte III,2 e a outra o Grande Templo de Amûn, em Karnak.

 

 

(2) Popular e incorretamente conhecidos como os Colossos de Mem-non.

 

 

Em torno das duas colunas de apoio no centro do museu, prateleiras profundas haviam sido feitas, nelas estando disposta uma fascinante coleção de shawabtis — figuras de madeira magnificamente esculpidas e pintadas em cores alegres.

Estendendo-se entre as duas colunas, uma mesa longa e baixa, coberta de veludo, com uns quatro metros de comprimento, onde se expunha uma linda coleção de frascos canopos e de perfumaria, vasos azuis em forma de lótus, potes kohl de obsídio polido e diversos recipientes cilíndricos esculpidos, para cosméticos, de alabastro opaco e semitranslúcido. Ao fundo da sala havia uma arca larga e baixa com incrustações de faiança azul vitrificada, marfim branco e vermelho, e ébano negro, ao lado da arca via-se um assento real, decorado com gesso e ouro e ostentando desenho de flores e de botões de lótus.

Ao longo da parte fronteira da sala uma caixa-vitrina, coberta de vidro, contendo colares esmaltados, amuletos em majólica, conjuntos de conchas, guirlandas de caurim, contas rômbicas de carnalita e feldspato, braceletes, argolas de tornozelo e anéis, leques de ébano e ouro e uma coleção de escaravelhos, em sua maior parte dos tempos faraônicos até os ptolemaicos.

Em volta das paredes, logo abaixo do teto, corria uma frisa de uns dois metros — uma cópia parcial da famosa Rapsódia de Penta-Weret, comemorando a vitória de Ramsés II sobre os hititas, em Kadesh, na Síria.

Tão depressa Vance abriu as pesadas cortinas das janelas da frente, ele e Markham se dirigiram para a parte de trás do museu. Scarlett e eu descemos as escadas e os seguimos. Kyle estava deitado sobre o rosto, as pernas ligeiramente curvadas sob ele e os braços esticados e circundando os pés de uma estátua de tamanho natural, no ângulo da sala. Eu já vira inúmeras vezes reproduções dessa estátua, mas não sabia o seu nome.

Foi Vance quem me esclareceu. Ele permanecia observando o corpo encolhido do homem morto e, lentamente, seus olhos se voltaram para a serena escultura — um trabalho em pedra calcária de coloração castanha, mostrando um homem com cabeça de chacal e empunhando um cetro.

— Anúbis — murmurou Vance, o rosto tornando-se tenso. — O Deus egípcios do submundo. Você sabe, Markham, Anúbis era o Deus que vagava entre os túmulos dos mortos. Ele é que guiava a morte no interior de Amentet — a sombria morada de Osíris. Este deus representa papel importante no Livro dos Mortos, onde simboliza o sepulcro; era ele quem avaliava os espíritos dos homens e destinava cada um à sua morada. Sem o auxílio de Anúbis o espírito jamais encontraria o Reino das Sombras. Era o único amigo dos agonizantes e dos mortos... E eis aqui Kyle, em atitude de final de piedosa súplica à sua frente.

Durante um momento os olhos de Vance se detiveram nas benevolentes linhas de Anúbis. Depois o seu olhar se deslocou sonhadoramente para o homem prostrado, que, não fora o horrível ferimento na cabeça, poderia encontrar-se em humilde adoração ao deus do submundo.

Vance apontou para a estátua menor que havia causado a morte de Kyle. Essa estátua tinha uns 60 cm de comprimento, era escura e brilhante. Permanecia ainda atravessada diagonalmente na parte de trás do crânio do homem assassinado; parecia ter-se encaixado e mantido ali na concavidade produzida pelo golpe. Uma poça irregular de sangue negro havia-se formado ao lado da cabeça e notei — sem prestar ao fato maior importância — que em um dos pontos da sua periferia a poça parecia ter-se alongado para fora, no assoalho de madeira polida.

— Não gosto disso — estava dizendo Vance em voz baixa para Markham. — Não estou gostando nada... Aquela estátua de diorita que atingiu Kyle é Sakhmet, a deusa egípcia da vingança — o elemento destruidor. Era ela a deusa que protegia os bons e aniquilava os maus... a deusa que destruía. Os egípcios acreditavam em seu violento poder e são muitas as lendas relativas a seus obscuros e terríveis atos de vingança...


III

 

Scarabae us sacer


(Sexta-feira, 13 de julho — meio-dia)

 

 

Vance franziu levemente o cenho e estudou durante um momento a pequena estátua escura.

— Talvez não queira dizer nada — certamente nada sobrenatural — mas o fato de que essa particular estátua tenha sido escolhida para o crime faz-me imaginar que possa haver algo diabólico, sinistro e supersticioso neste caso.

— Espere aí, Vance — falou Markham, com forçada casualidade. — Estamos na moderna Nova York e não no legendário Egito.

— Sim... oh, sim. Superstição, no entanto, é ainda um fator dominante na denominada natureza humana. Além disso, nesta sala há muitas outras armas mais convenientes — armas completamente letais e mais facilmente empunháveis. Por que uma desajeitada e pesada estátua de Sakhmet teria sido escolhida para o crime?... De qualquer modo é necessário um homem vigoroso para utilizá-la com tanta força.

Vance olhou para Scarlett, cujos olhos não se desprendiam do homem morto, completamente fascinado.

— Onde é mantida essa estátua? Scarlett piscou os olhos.

— Bem... deixe-me ver... — Ele estava, obviamente, procurando pôr em ordem suas idéias. — Ah, sim. Em cima daquele armário. — Scarlett indicou nervosamente a série de prateleiras à frente do corpo de Kyle. — Era uma das novas peças que desempacotamos ontem. Hani colocou-a ali. Como vê, usávamos este último armário temporariamente para o novo item, até que pudéssemos arrumá-lo e catalogá-lo apropriadamente.

Havia dez seções na série de armários que se alinhavam ao longo da parte de trás do museu, cada um deles com cerca de um metro de largura e pouco mais de 2,5m de altura. Estes armários — que na realidade não eram outra coisa senão prateleiras abertas — encontravam-se cheios de toda a espécie de raridades: dúzias de exemplares de frascos e vasos de madeira, frascos de perfume, arcos e flechas, instrumentos agrícolas, espadas, adagas, espelhos de bronze e de cobre, tabuleiros de marfim para jogos, caixas de perfumes, chicotes, sandálias de folhas de palmeiras, pentes de madeira, paletas, encostos para a cabeça, cestas de junco, colheres esculpidas, ferramentas de modelagem, facas de sacrifício em pedra, máscaras funerárias, estatuetas, colares e coisas semelhantes.

Cada armário dispunha de uma cortina própria de um tecido parecido com rep de seda, suspenso por anéis de latão em uma pequena haste de metal. As cortinas de todos os armários se encontravam abertas, com exceção do que ficava à frente do local onde jazia o corpo de Kyle, numa das extremidades. A cortina desse armário estava apenas parcialmente aberta.

Vance havia-se voltado.

— E a respeito deste Anúbis, Scarlett? — perguntou ele. — Foi também uma aquisição recente?

— Sim, também veio ontem. Foi colocado naquele canto, para conservar toda a carga junta.

Vance concordou com a cabeça e se encaminhou para o armário cuja cortina estava parcialmente aberta. Durante alguns instantes permaneceu examinando o interior das prateleiras.

— Muito interessante — murmurou, como se estivesse falando consigo mesmo. — Vejo que vocês têm uma esfinge barbada, pós-hyksos, muito rara... E o vaso de vidro azul é encantador... embora não tanto como aquela cabeça de leão, acolá, de massa azul... Ah! Vejo também inúmeros indícios da natureza belicosa de Intef... como aquela acha de combate, por exemplo... Ah!... Meu Deus... Há várias cimitarras e adagas que positivamente parecem asiáticas. E... — Vance olhou ainda mais atentamente a prateleira de cima —... uma coleção a mais fascinante de maças de cerimônia.

— Coisas que o Dr. Bliss recolheu em sua recente expedição — explicou Scarlett. — Aquelas maças de pedra e de porfírio vêm da antecâmara da tumba de Intef...

Nesse momento a grande porta de aço do museu chiou em seus gonzos e o sargento Heath e três detetives apareceram no topo das escadas. O sargento desceu imediatamente para o museu, deixando seus homens no pequeno patamar de cima.

Cumprimentou Markham com o usual aperto de mãos ritualista.

— Como está, senhor? — resmungou. — Vim o mais rápido possível. Trouxe três rapazes do Departamento e mandei avisar o capitão Dubois e o Dr. Doremus' para que viessem também.

 

 

(1) O capitão Dubois era, então, o especialista em impressões digitais do Departamento de Polícia do Estado de Nova York e o Dr. Doremus, o médico legista.

 


— Parece que vamos nos ver metidos em outro escândalo desagradável, sargento. — O tom de voz de Markham era pessimista. — Aquele ali é Benjamin H. Kyle.

Heath olhou agressivamente para o homem morto e soltou um grunhido.

— Um serviço sórdido — comentou entredentes. — Que diabo de coisa é aquela com que foi atingido?

Vance, que permanecera examinando as prateleiras, de costas para nós, voltou-se então de frente com um sorriso cordial.

— Aquele, sargento, é Sakhmet, uma deusa antiga dos primitivos egípcios. Mas ela não está no inferno, por assim dizer. Este cavalheiro, no entanto — tocou a estátua de Anúbis, maior — é das regiões mais profundas.

— Eu devia saber que estava aqui, Sr. Vance. — Heath sorriu com genuína amistosidade e esticou a mão. — O senhor já está arrolado em minha lista de suspeitos. Todas as vezes em que ocorre um homicídio estranho, quem encontro no local do crime senão o Sr. Philo Vance!... Prazer em vê-lo, Sr. Vance. Espero que o senhor ponha em ação os seus processos psicológicos de trabalho e desvende rapidamente este mistério.

— Temo que seja necessário mais do que psicologia para resolver este caso. — Vance tomara a mão do sargento cordialmente — Uns rudimentos de egiptologia poderão ajudar, sabe?

— Deixarei essas lindas coisas para o senhor. O que mais desejo e em primeiro lugar são impressões digitais naquilo... naquilo... — Inclinou-se sobre a pequena estátua de Sakhmet. — O cara que esculpiu esta estátua era meio maluco. Ela tem cabeça de leão com um grande prato em cima.

— Sargento, a cabeça de leão de Sakhmet é indubitavelmente totêmica — explicou Vance, bem-humorado. — E o prato é uma representação do disco solar. O réptil saindo pela testa é uma cobra — ou uraeus — e era o signo da realeza.

— Seja lá como o senhor quiser. — O sargento demonstrava impaciência. — O que eu quero são as impressões digitais.

Heath voltou-se e se encaminhou na direção da porta do museu.

— Hei, Snitkin! — chamou beligerantemente, dirigindo-se a um dos homens que ficaram no patamar da escada. — Substitua aquele patrulheiro lá fora e o mande de volta para sua ronda. Traga o Dubois aqui assim que ele chegar. — Voltou-se em seguida para Markham. — Quem vai-me contar essas misérias, senhor?

Markham apresentou-o a Scarlett.

— Este cavalheiro aqui — disse ele — encontrou o Sr. Kyle. Ele poderá dizer-lhe tudo o que sabemos do caso até agora.

Scarlett e Heath conversaram cerca de uns cinco minutos, o sargento, durante toda a conversação, mantendo uma atitude de indisfarçável suspeita. Para ele era um princípio básico que todas as pessoas eram culpadas até que sua inocência tivesse sido completa e irrefutavelmente estabelecida.

Vance, nesse meio tempo, estivera debruçado sobre o corpo de Kyle com uma atenção que me deixava intrigado.

Logo em seguida os seus olhos se apertaram e ele se apoiou em um dos joelhos, espichando a cabeça para a frente a uma distância de 30 cm do assoalho. Depois tirou o monóculo, poliu-o cuidadosamente e o ajustou. Ambos, Markham e eu, o observávamos em silêncio. Após uns momentos Vance se pôs de pé.

— Bem, Scarlett, existe por aí alguma lente de aumento?

Scarlett, que estava acabando de falar com o sargento Heath, dirigiu-se imediatamente até à vitrina que continha os escaravelhos e abriu uma das gavetas.

— Que espécie de museu seria este sem uma lente de aumento? — indagou ele em uma fraca tentativa de jocosidade, esticando a mão com uma lente Coddington.

Vance pegou-a e voltou-se para Heath.

— Pode-me emprestar sua lanterna, sargento?

— Claro — Heath passou a Vance uma lanterna acionada por botão.

Vance tornou a ajoelhar-se e, com a lanterna em uma das mãos e a lente de aumento na outra, pôs-se a examinar um pequenino objeto oblongo que estava a cerca de 25 cm do corpo de Kyle.

 

 

 

 


— Nisut Biti... Intef... Si Rê... Nub-Kheper-Rê. — Sua voz era baixa e ressonante.

O sargento colocou as mãos nos bolsos e fungou.

— Que linguagem é esta, Sr. Vance? — perguntou ele.

— É uma transliteração de uns poucos hieróglifos do antigo Egito. Estou lendo neste escaravelho...

O sargento tinha ficado interessado. Adiantou-se e se inclinou sobre o objeto que Vance estava examinando.

— Um escaravelho, hem?

— Sim, sargento, algumas vezes de scarabee, scarabaeid ou scarabaeus — isto é, besouro... Esta pequenina peça de lápis-lazúli era um símbolo sagrado para os antigos egípcios... Este aqui, particularmente, é, por acaso, um dos mais fascinantes. É o selo real de Intef V — um faraó da décima sétima dinastia. Por volta de 1650 AC — ou seja, há 3.500 anos — Intef usou este objeto, que ostenta seu título e seu nome real de Intef-o, ou Intef. O nome de coroação desse faraó era Nefer-Kheperu, se me estou lembrando corretamente. Ele foi um dos nativos governadores egípcios em Tebas, durante o reinado dos hyksos no delta.1 O túmulo desse cavalheiro é um daqueles que o Dr. Bliss vem escavando há vários anos... Observe, Sargento, que o escaravelho está montado em um moderno alfinete de gravata...

 

(1) Nefra, a filha desse faraó, é, incidentalmente, a heroína de H. Rider Haggard no romance Queen of the Dawn. Haggard, seguindo a cronologia de H. R. Hall, colocou Intef na décima quarta dinastia ao invés de fazê-lo na décima sétima, dessa forma tornando-o contemporâneo do grande faraó hyksos, Apopi, cujo filho Khyan — o herói do livro — casa-se com Nefra. As pesquisas de Bliss e de Weigall parecem ter demonstrado ser esse relacionamento um anacronismo.

 

 


Heath grunhiu de satisfação. Aí havia, pelo menos, uma peça de tangível evidência.

— Um besouro, não? E num alfinete de gravata!... Bem, Sr. Vance, eu gostaria de botar as mãos no pássaro que usava esse porcaria azul na gravata.

— Posso esclarecê-lo sobre esse ponto, sargento. — Vance levantou-se e espiou na direção da porta de metal no topo da escada circular. — Esse alfinete de gravata é de propriedade do Dr. Bliss.


IV

 

Rastos no sangue

 


(Sexta-feira, 13 de julho — 12:15 horas)

 

 

 

Scarlett estivera observando Vance atentamente com um olhar de aterrorizada surpresa em seu rosto redondo e bronzeado.

— Temo que você esteja certo, Vance — comentou ele, sacudindo a cabeça afirmativamente, com relutância. — O Dr. Bliss encontrou o escaravelho no local da escavação do túmulo de Intef, há dois anos atrás. Não mencionou o fato às autoridades egípcias e, quando voltou aos Estados Unidos, mandou fazer esse alfinete de gravata. Mas com certeza a presença desse objeto aqui pode não ter significação...

— Bem, realmente! — Vance encarou Scarlett fixamente. — Lembro-me perfeitamente do episódio em Abu'n-Nega. Do modo qual se passou fui particeps criminis. Mas, como havia outros escaravelhos de Intef bem como o selo cilíndrico nó Museu Britânico, fechei os olhos... Esta é a primeira vez que vejo este escaravelho mais de perto...

Heath estava-se encaminhando para as escadas da frente.

— Ei, você... Emery! — rosnou ele, dirigindo-se a um dos homens que haviam ficado lá em cima. — Pegue esse tal de Bliss e traga-o até aqui...

— Oh, espere aí, sargento! — Vance apressou-se a ir atrás de Heath e colocou mão em seu braço, restritivamente.

— Por que tão precipitado? Vamos manter a calma... Este não é o momento correto de trazer Bliss até aqui. Mesmo porque, quando precisarmos dele, não teremos senão que bater àquela portinha — sem dúvida ele está em seu escritório e não pode cair fora. Além disso, há ainda uns exames preliminares a serem feitos inicialmente.

Heath hesitou e fez uma careta. Em seguida falou: — Deixe para lá, Emery. Mas vigie os fundos para que ninguém tente cair fora por lá... E você, Hennessey — Heath estava-se dirigindo ao outro homem — fique no saguão da frente. Se alguém tentar sair da casa, agarre-o e traga-o até aqui, entendeu?

Os dois detetives desapareceram com uma furtividade que me pareceu altamente ridícula.

— Está escondendo alguma coisa na manga, senhor? — quis saber Heath, olhando esperançosamente para Vance. — Este homicídio, porém, não me está parecendo muito complicado. Kyle foi atingido por um golpe na cabeça e ao lado dele encontramos um alfinete de gravata pertencente ao Dr. Bliss... Tudo muito simples, não é mesmo?

— Simples demais, sargento — retrucou Vance, calmamente, contemplando o homem morto. — Aí é que está todo o problema...

De repente, Vance se moveu na direção da estátua de Anúbis e, inclinando-se sobre ela, ergueu um pedaço de papel dobrado que ficara quase escondido por baixo de uma das mãos esticadas de Kyle. Desdobrando o papel cuidadosamente, Vance o manteve na direção da luz. Era uma folha de papel de tamanho ofício, coberta por figuras.

— Este documento — observou Vance deveria encontrar-se na posse de Kyle quando saiu deste mundo... Sabe alguma coisa a respeito, Scarlett?

Scarlett adiantou-se ansiosamente e tomou o papel com mão nervosa.

— Meu Deus do céu! — exclamou ele. — É o relatório de despesas que preparamos à noite passada. O Dr. Bliss estava trabalhando nessas contas...

— Ahn, ahn! — Heath sorriu com malévola satisfação.

— Então é assim! Nosso amigo morto deve ter visto Bliss esta manhã... do contrário como poderia ter obtido este papel?

Scarlett franziu o cenho.

— Devo concordar que aparentemente foi assim mesmo — concedeu ele. — Este relatório ainda não estava pronto quando saímos daqui à noite passada. O Dr. Bliss disse que iria prepará-lo antes que o Sr. Kyle chegasse aqui hoje pela manhã. — Scarlett parecia completamente confuso quando devolveu o papel a Vance. — Mas tem alguma coisa errada em algum lugar... Você sabe, Vance, não é razoável...

— Não seja frívolo, Scarlett. — A admonição de Vance interrompeu Scarlett. — Se o Dr. Bliss tivesse empunhado a estátua de Sakhmet, por que iria ele deixar este relatório aqui, para incriminá-lo?... Como você mesmo diz, alguma coisa, em algum lugar, está errada.

— Errada! — zombou Heath. — Lá está aquele besouro e agora encontramos este relatório. O que mais quer, Sr. Vance?

— Muita coisa mais — Vance falou suavemente. — Normalmente um homem não comete um crime e deixa para trás indícios tão óbvios de provas espalhados por toda a parte... É infantil.

Heath fungou.

— Pânico... é isso. — Assustou-se e caiu fora às pressas...

Os olhos de Vance se demoraram na portinha de metal do escritório do Dr. Bliss.

— Casualmente, Scarlett, — perguntou ele — quando você viu pela última vez aquele alfinete de gravata?

— À noite passada. — O homem tinha começado a caminhar nervosamente para um lado e para outro. — Estava terrivelmente quente no escritório e o Dr. Bliss tirou a gravata e o colarinho, colocando-os sobre a mesa. O alfinete estava preso à gravata.

— Ah! — O olhar de Vance não se despregou da pontinha. — O alfinete ficou em cima da mesa durante a reunião, hem... E, como você me disse, Hani, a Srta. Bliss, Salveter e você mesmo estavam lá.

— Certo.

— Então qualquer um poderia ter visto e apanhado o objeto?

— Bem... sim. Creio que sim. Vance meditou por uns momentos.

— Ainda assim... este relatório... muito curioso!... Eu gostaria de saber como isso foi parar nas mãos de Kyle. Você diz que este relatório não estava pronto quando a reunião foi interrompida?

— Oh, não — Scarlett parecia hesitar ao responder. — Todos nós entregamos os nossos dados e o Dr. Bliss disse que ia fazer as contas e apresentá-las hoje ao Sr. Kyle. Em seguida, ele telefonou para Kyle — em nossa presença — e marcou um encontro com ele para hoje de manhã às onze horas.

— Isso foi tudo o que ele disse a Kyle pelo telefone?

— Praticamente... embora me lembre de que ele tenha mencionado o novo carregamento que chegou ontem...

— Realmente? Muito interessante... E o que foi que o Dr. Bliss falou a respeito do carregamento?

— Do que me lembro — não prestei muita atenção, de fato — ele disse a Kyle que as caixas tinham sido desfeitas e acrescentou que desejava que Kyle examinasse o que continham... Como sabe, havia alguma dúvida de que Kyle financiasse uma outra expedição. O governo egípcio vinha-se mostrando um tanto relutante e havia retido os itens mais significativos para o Museu do Cairo. Kyle não gostou disso e como já havia despejado rios de dinheiro no empreendimento, estava inclinado a retirar o seu apoio. Nada de kudos para ele, compreende?... De fato, a atitude de Kyle foi o motivo da reunião. O Dr. Bliss desejava mostrar-lhe o custo, exato das escavações anteriores e procurar induzi-lo a financiar a continuação do trabalho...

— E o velho se recusou — complementou Heath. — Então o doutor ficou excitado e arrebentou-lhe o crânio com aquela estátua preta.

— O senhor continua a insistir em que a vida seja uma coisa simples, sargento — suspirou Vance.

— Não há dúvida de que me recuso a aceitar que ela seja tão complicada quanto o senhor a faz, Sr. Vance. — A resposta de Heath tocou as raias de uma expressão de dignificado sarcasmo.

As palavras mal acabavam de ser pronunciadas pelo sargento quando a porta principal se abriu suavemente e um homem de meia-idade e tez escura, vestindo traje nativo egípcio, apareceu no topo das escadas da frente. Examinou-nos com uma calma inquisitiva e, vagarosamente e com grande determinação de movimentos, desceu para o museu.

— Bom dia, Sr. Scarlett — cumprimentou ele, com um sorriso sardônico. Olhou para o homem assassinado. — Vejo que a tragédia visitou esta casa.

— Sim, Hani, — Scarlett falou com uma certa condescendência. — O Sr. Kyle foi assassinado. Esses cavalheiros — fez um gesto ligeiro em nossa direção — estão investigando o crime.

Hani inclinou-se gravemente. Era de peso médio, algo esguio, e dava a impressão de desdenhoso alheamento. Havia um distinto traço de animosidade em seus olhos apertados. O rosto era relativamente curto — marcadamente dolicocéfalo — e o nariz reto tinha a ponta arredondada, típica do verdadeiro copta. Os olhos eram castanhos — da cor de sua pele — e as sobrancelhas espessas. Usava barba curta, semigrisalha, e tinha os lábios cheios e sensuais. Sua cabeça se encontrava coberta por um tarbush negro suave, do qual pendia uma borla azul-celeste; os ombros estavam envolvidos por um kaftan de algodão longo, em listas vermelhas e brancas, que ia até os seus tornozelos e mal deixava entrever suas sandálias de um amarelo cor de ouro.

Permaneceu durante alguns momentos olhando para o corpo de Kyle, sem qualquer vestígio de repulsa ou mesmo de lástima. Em seguida ergueu os olhos e contemplou a estátua de Anúbis. Uma curiosa expressão de devoção surgiu em seu rosto; dentro em pouco os seus lábios se moviam em um leve sorriso sardônico. Depois de um instante fez com a mão esquerda um gesto largo e, voltando-se lentamente, nos encarou. Seus olhos, porém, não pousaram em nós — estavam fixados em algum ponto distante, muito além das janelas da frente.

— Não há necessidade de investigação, senhores — disse ele em tom sepulcral. — É o julgamento de Sakhmet. Durante muitos anos as tumbas sagradas de nossos ancestrais têm sido violadas por ocidentais caçadores de tesouros. No entanto, os deuses do antigo Egito são deuses poderosos e protegem seus filhos. Eles têm sido pacientes. Mas os violadores foram longe demais. Era a hora de ser desfechada sua ira vingativa. E assim foi feito. O túmulo de Intef-o foi salvo dos vândalos. Sakhmet deu a conhecer seu julgamento, do mesmo modo que agiu quando matou os rebeldes em Henen-ensu1 para proteger seu pai, Rê, contra sua traição.

 

 

(1) Nome de Heracleopis, no antigo Egito.

 


Fez uma pausa e tomou uma respiração profunda.

— Mas Anúbis jamais guiaria um violador sacrílego às Mansões de Osíris — não importa o quão reverentemente o implore...

Não só as maneiras como as palavras de Hani eram impressionantes. Enquanto ele falava eu me lembrava, com um sentimento desagradável, a recente tragédia de Lord Carnavon e as estranhas lendas de magia antiga que se tinham espalhado como responsáveis por sua morte por motivos sobrenaturais.

— Muito anticientífico, sabe? — A voz de Vance, cínica e arrastada, trouxe-me de volta ao mundo da realidade. — Tenho sérias dúvidas de que aquele pedaço de ígnea rocha negra cometa algum crime, a não ser que tenha sido empunhada por mãos humanas ordinárias... E se você quer dizer besteiras, Hani, muito lhe agradeceríamos se o fizesse na intimidade de seu quarto. É muito cacete.

O egípcio lançou-lhe um olhar de ódio.

— O Ocidente tem muito o que aprender com o Oriente em coisas do espírito — pronunciou Hani, oracularmente.

— Concordo. — Vance sorriu suavemente. — Mas agora não é o espírito que está em discussão. O Ocidente, que você despreza, está inclinado para as coisas práticas. Seria melhor que você, por ora, se esquecesse da metempsicose e respondesse a umas perguntas que o procurador distrital deseja fazer.

Hani inclinou-se em sinal de aquiescência. Markham, tirando o charuto da boca, fixou nele um olhar severo. , — Onde esteve você toda esta manhã? — perguntou.

— Em meu quarto... lá em cima. Não me sentia bem.

— Você não ouviu ruído algum aqui no museu?

— Teria sido impossível para mim ouvir qualquer ruído aqui nesta sala.

— E não viu ninguém entrar ou sair do prédio?

— Não. Meu quarto fica lá nos fundos e não saí dele até' uns momentos atrás.

Vance fez a pergunta seguinte.

— Por que então saiu do seu quarto?

— Eu tinha o que fazer aqui no museu — respondeu o homem de mau humor.

— Pelo que sei, no entanto, você ouviu o Dr. Bliss marcar um encontro com o Sr. Kyle para as onze horas da manhã de hoje. — Vance observava Hani atentamente. — Você pretendia interromper a conferência?

— Eu não me lembrava do encontro. — A resposta não veio espontaneamente. — Se tivesse encontrado o Dr. Bliss e o Sr. Kyle em conferência, eu teria voltado para o meu quarto.

— Claro. — O tom de Vance revelava algum sarcasmo. — Escute, Hani, como é todo o seu nome?

O egípcio hesitou apenas um segundo. Em seguida disse: — Anupu Hani1

 

 

 

(*) Este nome fora do comum, como vim a saber mais tarde, resultará do interesse de seu pai pela mitologia egípcia, quando a serviço de Maspero.

 

 

 

Vance crispou as sobrancelhas e havia ironia no ligeiro sorriso que aflorou nos cantos de sua boca.

— Anûpu — repetiu ele. — Muito atraente. Anûpu, creio, era a forma egípcia de Anúbis, não? Ao que parece você se identificaria com aquele cavalheiro de aparência desagradável lá no canto, com a cabeça de chacal.

Hani comprimiu os lábios grossos e não respondeu.

— Isso realmente não tem importância, sabe? — observou Vance casualmente. — Por falar nisso, não foi você quem colocou a estátua em cima do armário acolá?

— Sim. Foi desempacotada ontem.

— E foi você quem puxou a cortina sobre o armário lá do fim?

— Sim. A pedido do Dr. Bliss. Os objetos que se encontravam em seu interior estavam muito desarrumados. Ainda não tínhamos tido tempo de arrumá-los.

Vance voltou-se pensativamente para Scarlett.

— Exatamente o que foi dito pelo Dr. Bliss ao Sr. Kyle à noite passada, pelo telefone?

— Creio que já lhe disse tudo, meu velho. — Scarlett parecia ao mesmo tempo intrigado e surpreendido à persistente curiosidade de Vance sobre este ponto. — Ele simplesmente marcou o encontro para às onze horas, dizendo que teria o relatório financeiro pronto por essa hora.

— E o que foi que ele disse a respeito do novo carregamento?

— Nada, a não ser que estava desejoso de que o Sr. Kyle visse os itens chegados.

— O Dr. Bliss mencionou onde estavam esses itens?

— Sim, lembro-me de ele ter dito que tinham sido colocados no último armário — aquele que está com as cortinas cerradas.

Vance concordou com a cabeça, com uma satisfação que não entendi.

— Isso possivelmente responde pelo fato de o Sr. Kyle ter vindo mais cedo para inspecionar — como direi? — o saque.

Tornou a olhar para Hani com um sorriso de animação.

— Não é também verdadeiro que você e os demais que se encontravam na reunião à noite passada escutaram o chamado telefônico?

— Sim. Todos nós ouvimos. — O egípcio tinha-se tornado taciturno. Notei, porém, que estudava Vance sub-repticiamente, com o canto do olho.

— E, pelo que entendo — murmurou Vance —qualquer um que conhecesse Kyle poderia ter deduzido que ele chegaria cedo para examinar os itens naquele último armário... Não, Scarlett?

Scarlett mexeu-se inquietamente e olhou para a estátua grande da serena Kha-ef-Rê.

— Bem... se você põe as coisas nesse pé, sim... A verdade é, Vance, que o Dr. Bliss sugeriu que o Sr. Kyle viesse mais cedo e desse uma olhada nos tesouros.

Essas divagações começaram a irritar o sargento Heath.

— Perdoe-me, Sr. Vance, — explodiu ele, com mal velado aborrecimento — mas será que o senhor é o advogado de defesa desse Dr. Bliss? Se o senhor não está dando duro para estabelecer um álibi para ele, então eu sou a Rainha de Sabá.

— O senhor certamente não é Salomão, sargento — retorquiu Vance. — O senhor não quer avaliar todas as possibilidades?

— Avaliar o diabo! — Heath estava perdendo a calma.

— Quero uma conversa cara a cara com esse tipo que usava o alfinete de besouro e escreveu aquele relatório. Percebo quando me defronto com uma prova insofismável.

— Nem por um momento duvidei disso — falou Vance com brandura. — Mas mesmo provas insofismáveis podem ter várias interpretações...

A essa altura Snitkin abriu a porta barulhentamente e o Dr. Doremus, médico legista, desceu apressado as escadas. Era um homem magro e nervoso com o rosto prematuramente envelhecido, o que lhe dava uma aparência ao mesmo tempo rabugenta e jocosa.

— Bom dia, cavalheiros — cumprimentou-nos ele em voz mal audível. Apertou as mãos perfunctoriamente de Markham e de Heath e, endireitando-se, desfechou sobre Vance um olhar exageradamente desapontado.

— Ora, ora! — exclamou ele, inclinando seu chapéu de palha para um ângulo ainda mais acentuado. — Onde quer que se cometa um crime, aí está o senhor. — Olhou para o relógio de pulso. — Por São Jorge, está na hora do almoço!

— Seu olhar brilhante correu o museu e se deteve em um dos caixões de múmias. — Este lugar não parece muito saudável... Onde está o corpo, sargento?

Heath tinha permanecido de pé à frente do corpo prostrado de Kyle. Afastou-se para um lado e apontou para o cadáver.

— Está aqui, doutor.

Doremus adiantou-se e olhou indiferentemente para o corpo, — Bem, ele está morto — manifestou-se, piscando o olho para Heath.

— Está mesmo? — O sargento mostrava-se sarcástico e bem-humorado.

— É o que me parece... muito embora desde as experiências de Carrel nunca se possa afirmar... De qualquer modo, mantenho minha decisão. — Riu-se e, pondo-se de joelhos, tocou uma das mãos de Kyle. Em seguida afastou para o lado uma das pernas do homem. — E está morto há cerca de duas horas — não mais do que isso, talvez um pouco menos.

Heath puxou um lenço grande e, com grande cuidado, tirou da cabeça de Kyle a estátua negra de Sakhmet.

— Estou poupando as impressões digitais... Algum sinal de luta, doutor?

Doremus voltou o corpo ao contrário e fez uma cuidadosa inspeção do rosto, das mãos e das roupas.

— Não vejo nenhum — respondeu laconicamente. — Foi atingido pela retaguarda, eu diria. Caiu para a frente com os braços esticados. Não se mexeu depois de ter chegado ao chão.

— Alguma chance, doutor, de que já estivesse morto quando a estátua o atingiu? — quis saber Vance.

— Nenhuma. — Doremus levantou-se e começou a balançar-se na ponta dos pés. Sangue demais para que fosse assim.

— Um simples caso de ataque, então?

— Parece que sim... Mas não sou adivinho. — O doutor se mostrava irritado. — A autópsia esclarecerá esse ponto.

— Podemos receber o relatório post-mortem imediatamente? — pediu Markham.

— Tão depressa quanto o sargento consiga pôr o corpo no necrotério.

— Estará lá quando o senhor acabar de almoçar, doutor — assegurou Heath. — Pedi o carro mortuário antes de sair do Departamento.

— Assim sendo, vou andando. — Novamente Doremus apertou as mãos de Markham e de Heath e dirigindo uma amistosa saudação a Vance saiu apressadamente da sala.

Eu havia notado que desde que Heath tinha colocado a estátua de Sakhmet para o lado estava olhando impacientemente para a pequena poça de sangue. Tão logo Doremus se afastou, Heath se ajoelhou e se tornou obstinadamente interessado por alguma coisa no assoalho. Pegou sua lanterna, que Vance lhe havia devolvido, e focou-a sobre a borda da poça de sangue, no ponto em que eu já tinha notado a mancha esticando-se para fora. Em seguida, após um momento, afastou-se um pouco, e tornou a focar sua lanterna sobre um borrão esmaecido que manchava o amarelado assoalho de madeira. Uma vez mais trocou de posição — desta vez na direção das escadinhas em espiral. Emitiu agora um grunhido de satisfação e, levantando-se, caminhou num círculo amplo até às próprias escadas. Aí tornou a ajoelhar-se e correu o foco de sua lanterna sobre os degraus mais de baixo. No terceiro degrau o foco de luz se deteve repentinamente e o sargento esticou a cara para a frente em uma atitude de intensa concentração.

Vagarosamente um sorriso apareceu-lhe no rosto largo e, pondo-se de pé, lançou um olhar de triunfo na direção de Vance.

— Estou com o caso amarrado dentro do saco, senhor — anunciou ele.

— Quero crer — respondeu Vance — que tenha encontrado o rasto do criminoso.

— É o que estou dizendo! — Heath acenou a cabeça com a ênfase deliberada da determinação. — É exatamente como estou dizendo...

— Não tenha tanta certeza, sargento. — O rosto de Vance tornara-se sombrio. — Muitas vezes a explicação óbvia é a explicação errada.

— Sim? — Heath voltou-se para Scarlett. — Escute, Sr. Scarlett, tenho uma pergunta a fazer-lhe e desejo uma resposta clara. — Scarlett irritou-se, mas o sargento não deu atenção ao seu ressentimento. — Que tipo de sapatos o Dr. Bliss geralmente usa quando está em casa?

Scarlett hesitou e olhou apelativamente para Vance.

— Diga ao sargento tudo o que você sabe — aconselhou Vance. — Esta não é a hora de reticências. Você pode confiar em mim. Não se trata agora de uma questão de deslealdade. Tudo o que importa é a verdade.

Scarlett pigarreou nervosamente.

—Sapatos de tênis, de borracha — disse ele, em voz baixa. — Desde sua primeira expedição ao Egito que tem os pés fracos — o que o incomoda abominavelmente. Sente-se aliviado usando sapatos de tênis de lona, com solado de borracha.

— Claro que o alivia. — Heath tornou a encaminhar-se na direção do corpo de Kyle. — Chegue aqui um momento, Sr. Vance. Quero mostrar-lhe algo.

Vance adiantou-se e o acompanhou.

— Dê uma espiada naquela pegada — continuou o sargento, fazendo um gesto indicador na direção da mancha na borda da poça de sangue onde tinha estado a cabeça de Kyle. — Ela não aparece muito até que se chegue perto... mas, uma vez que a tenhamos percebido notaremos que tem marcas do solado de borracha de um sapato, com linhas se cruzando como num tabuleiro de xadrez na sola e marcas redondas no salto.

Vance inclinou-se e examinou a pegada no sangue.

— É isso mesmo, sargento. — Vance ficara muito grave e sério.

— Agora olhe aqui — prosseguiu Heath apontando para duas outras manchas no assoalho, a meio caminho das escadas de ferro.

Vance debruçou-se sobre as manchas e concordou com a cabeça.

— Sim — admitiu ele — essas marcas foram feitas, provavelmente, pelo assassino...

— E mais uma vez, senhor. — Heath dirigiu-se até à escada e focou com sua lanterna o terceiro degrau.

Vance ajustou o monóculo e foi olhar de perto. Em seguida pôs-se de pé e permaneceu parado durante um momento, o queixo apoiado na palma da mão.

— O que diz disso, Sr. Vance? É esta prova suficiente pata o senhor?

Markham foi até o pé da escada circular e colocou a mão no ombro de Vance.

— Por que essa obstinação, velho amigo? — perguntou com voz bondosa. — Começa a parecer um caso esclarecido.

Vance levantou os olhos.

— Um caso esclarecido... sim! Mas um caso esclarecido como?... Isso não faz sentido. Será que um homem com a mentalidade de Bliss assassina barbaramente outro homem, com quem sabidamente ele teria um encontro, e então deixa um alfinete de gravata e um relatório, que nenhuma outra pessoa poderia ter produzido, na cena do crime para incriminar-se a si mesmo? Além disso, temeroso de que as provas não fossem suficientes, iria ele deixar pegadas, com um desenho distinto e pessoal, encaminhando-se do corpo até o seu escritório?... É isso razoável?

— Talvez não seja razoável — concedeu Markham. — No entanto, tudo isso são fatos. E não há nada que possa ser feito a não ser confrontar o Dr. Bliss com esses indícios.

— Creio que você tem razão. — Os olhos de Vance tornaram a se voltar na direção da portinha de metal no topo da escada em espiral. — Sim, chegou a hora de colocar Bliss no palco... Mas não estou gostando disso, Markham. Há alguma coisa errada... Talvez o próprio doutor nos possa esclarecer. Deixe-me trazê-lo aqui, já o conheço há alguns anos.

Vance voltou-se e subiu a escada, tomando cuidado para não pisar na pegada comprometedora que o sargento havia descoberto.


V

 

Meryt-Amen

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 12:45 horas)

 

 


Vance bateu à porta estreita e meteu a mão no bolso para pegar a cigarreira. Nós, no andar de baixo, observávamos o painel de metal em silente expectativa. Por alguma razão desconhecida, assaltou-me um sentimento de apreensão e meus músculos ficaram tensos. Até hoje não consigo explicar a causa de meu medo, mas, naquele momento, meu coração ficou gelado. Todas as provas até então reveladas apontavam inquestionavelmente no sentido do grande egiptólogo no quartinho além da porta.

Vance era o único que parecia despreocupado. Acendeu seu cigarro naturalmente e, quando tinha recolocado o isqueiro no bolso, tornou a bater à porta — desta vez mais alto. Ainda não houve resposta.

— Muito curioso — ouvi-o resmungar.

Em seguida ergueu o braço e bateu no metal com uma força tal que emitiu ecos reverberantes através de toda a grande sala do museu.

Finalmente, após alguns momentos de odioso silêncio, ouviu-se o som de uma maçaneta girando e a pesada porta abriu-se lentamente para o lado de dentro.

Na abertura encontrava-se de pé a figura alta e esguia de um homem quarentão. Usava roupão de seda azul estampada que lhe chegava até os tornozelos e seus escassos cabelos amarelados achavam-se revoltos, como se ele acabasse de sair da cama. Na realidade toda a sua aparência era a de um homem que tivesse sido, repentinamente, arrancado de um sono profundo. Tinha os olhos enevoados e as pálpebras enlanguescidas e buscava apoio segurando-se à maçaneta interna da porta. Na verdade o homem oscilava um pouco enquanto olhava estüpidamente para Vance.

Contudo era uma figura notável. Tinha o rosto longo e afilado, rústico e profundamente bronzeado. A testa era alta e estreita — a testa de um estudioso; no entanto era o nariz, curvo como um bico de águia, a linha mais preponderante. A boca reta encimava um queixo tão quadrado que chegava a ser cúbico. As maçãs do rosto eram encovadas e fiquei com a impressão distinta de um homem fisicamente doente, mas que se sobrepunha às devastações da moléstia por mera vitalidade nervosa.

Por um momento permaneceu olhando para Vance sem compreender. Em seguida — como alguém emergindo de uma anestesia — piscou várias vezes e tomou uma inalação profunda.

— Ahn! — A voz era arrastada e um pouco irritante. — Sr. Vance!... Há quanto tempo que não o vejo... — Seus olhos vaguearam pelo museu e vieram a deter-se no pequeno grupo formado no pé da escada. — Não estou compreendendo muito bem... — Passou as mãos no alto da cabeça e correu os dedos pelos cabelos desalinhados. — Minha cabeça está tão pesada... por favor, desculpe-me... Devo ter estado... ter estado dormindo... Quem são aqueles cavalheiros lá embaixo?... Reconheço Scarlett e Hani... Está infernalmente quente em meu escritório.

— Ocorreu um sério acidente, Dr. Bliss — informou Vance em voz baixa. — O senhor se incomoda de descer até o museu?... Necessitamos de seu auxílio.

— Um acidente? — Bliss se recompôs e pela primeira vez desde que aparecera na porta seus olhos se abriram completamente. — Algum acidente sério? O que foi que aconteceu?... Não foram ladrões, espero. Sempre me preocupei...

— Não, não foram ladrões, doutor. — Vance o apoiava enquanto ele descia nervosamente os degraus da escada circular.

Quando Bliss tocou o assoalho do museu, todos os olhares, tenho a certeza, estavam voltados para seus pés. Por certo que o meu próprio instinto inicial foi examiná-los; notei que Heath, que permanecia a meu lado, concentrou seu olhar no que calçava o doutor. Mas, se algum de nós esperava encontrar Bliss com sapatos de tênis de solado de borracha, ficou desapontado. O homem usava um par de chinelas de dormir, de cor azul, para combinar com seu roupão, e adornadas com debruns cor de laranja.

Notei, entretanto, que o seu pijama cinzento de seda, que aparecia através da abertura em V do roupão, tinha uma gola ampla e dobrada, na qual estava amarrado frouxamente um lenço de pescoço cor de malva.

Seus olhos varreram o pequeno grupo à sua frente e voltaram a Vance.

— O senhor diz que não houve ladrões? — A voz era ainda vaga e arrastada. — Qual foi então o acidente, Sr. Vance?

— Um acidente muito mais sério do que ladrões, doutor — replicou Vance, que ainda não havia tirado a mão do braço do outro. — O Sr. Kyle está morto.

— Kyle morto? — O queixo de Bliss caiu enquanto um ar de desesperançado espanto assomava-lhe aos olhos. — Mas... mas... eu falei com ele ontem à noite. Ele deveria vir até aqui esta manhã... com relação à nova expedição... Morto? Todo o meu trabalho... o trabalho de toda a minha vida... chegou ao fim! — Bliss deixou-se cair em uma das pequenas cadeiras de madeira dobráveis, das quais havia talvez uma vintena espalhada por todo o museu. Um ar de trágica resignação tomou-lhe conta do rosto. — Que notícia terrível.

— Lamento muito, doutor — murmurou Vance consoladoramente. — Compreendo muito bem o seu desapontamento...

Bliss se pôs de pé. Sua letargia o havia deixado e seu aspecto se tornou firme e resoluto. Olhou Vance frontalmente.

— Morto? — Sua voz era ameaçadora. — Morto como?

— Assassinado. — Vance apontou para o corpo de Kyle à frente do qual nos encontrávamos Markham, Heath e eu.

Bliss se encaminhou na direção da figura prostrada de Kyle. Durante um minuto permaneceu parado, olhando para o corpo; em seguida seu olhar se voltou para a pequena estátua de Sakhmet e, logo depois, para as linhas lupinas de Anúbis.

Repentinamente fez meia-volta e encarou Hani. O egípcio deu um passo para trás, como se temesse alguma violência por parte do doutor.

— O que sabe você a este respeito?... Você, chacal!

— Bliss atirou-lhe a pergunta maldosamente, com um ódio apaixonado na voz. — Você tem-me espionado durante anos. Você recebe meu dinheiro e embolsa subornos de seu estúpido e ávido governo. Você envenenou minha esposa contra mim. Você tem-se postado no caminho de tudo o que eu me esforço para realizar. Você tentou matar o velho nativo que me mostrou os dois obeliscos em frente à pirâmide de Intef. Você tem-se prejudicado, por todas as formas. Somente o conservo porque minha esposa acredita em você e o ama. E agora, quando descobri o local do túmulo de Intef, até já entrei na sua antecâmara e estou prestes a oferecer os frutos de minhas pesquisas ao mundo, o único homem que poderia assegurar o êxito do trabalho de toda a minha vida é encontrado morto.

— Os olhos de Bliss pareciam duas brasas. — O que sabe você a este respeito, Anûpu Hani? Fale... desprezível cão de um camponês!

Hani recuara alguns passos. A cáustica tirada de Bliss o havia acovardado desprezivelmente. Mas não se rebaixou; tornou-se sombrio e taciturno; sua voz era um rosnado quando respondeu.

— Nada sei sobre o crime. Foi vingança de Sakhmet! Ela matou aquele que pagou pela violação do túmulo de Intef...

— Sakhmet! — O escárnio de Bliss era devastador. — Um pedaço de pedra pertencente a uma mitologia híbrida! Você não se encontra neste momento entre feiticeiros iliteratos... você está diante de seres humanos civilizados que desejam a verdade... Quem matou Kyle?

— Se não foi Sakhmet não sei quem foi, Excelência. — A despeito da atitude de subserviência do egípcio havia um assinalável desprezo em suas maneiras e na entonação de sua voz. — Estive em seu quarto toda a manhã... O senhor, hadretak, — acrescentou ele com sarcasmo, — estava muito perto de seu rico patrono quando ele partiu desse mundo para a Terra das Sombras.

Duas manchas vermelhas de raiva apareceram no rosto bronzeado de Bliss. Seus olhos brilharam anormalmente enquanto suas mãos se contraíam espasmodicamente nas dobras do roupão. Temi que ele saltasse na garganta do egípcio.

Vance, também, deve ter tido uma tal apreensão, pois se deslocou para o lado do doutor e tocou-lhe no braço confortadoramente.

— Compreendo perfeitamente como se sente, senhor — disse Vance em voz calma. — Explosões de temperamento, no entanto, não nos ajudarão a chegar ao âmago deste caso.

Bliss afundou-se em sua cadeira sem uma palavra e Scarlett, que se limitara a assistir à cena com confusa surpresa, aproximou-se rapidamente de Vance.

— Há algo aqui terrivelmente errado. O doutor não está em seu estado normal — disse ele.

— Foi o que notei — Vance falou secamente, mas havia uma ruga inquisitiva em seu rosto. Estudou Bliss por um momento. — Escute, doutor, a que horas o senhor começou a dormir em seu, escritório, esta manhã?

Bliss olhou letàrgicamente. O ódio parecia tê-lo abandonado e os olhos pareciam novamente pesados.

— A que horas? — repetiu ele, como um homem tentando concentrar seus pensamentos. — Deixe-me ver... Brush trouxe meu desjejum por volta das nove horas e, poucos minutos, tomei o café... pelo menos um pouco de café... — Seu olhar vagueou pelo espaço. — É tudo de que me lembro até que... até que bateram à porta... Que horas são, Sr. Vance?

— Já passa bastante do meio-dia — informou Vance. — O senhor naturalmente se pôs a dormir logo que tomou o café. Muito natural, creio. Scarlett me disse que o senhor trabalhou até tarde à noite passada.

Bliss concordou com a cabeça, pesadamente.

— Sim, até às três desta madrugada. Eu queria ter o relatório em ordem para Kyle quando ele chegasse... E agora

— Bliss olhou desanimadamente na direção do corpo estendido de seu benfeitor — encontro-o morto... assassinado... não posso compreender.

— Nem nós... por enquanto — retrucou Vance. — Mas o Dr. Markham — procurador distrital — e o sargento Heath, do Departamento de Homicídios, aqui estão com a finalidade de esclarecer os fatos. Pode ficar tranqüilo, senhor, que a justiça será feita. No momento o senhor poderá ajudar-nos materialmente, respondendo a umas poucas perguntas. Sente-se capaz disso?

— Claro que me sinto capaz — respondeu Bliss, com uma ligeira demonstração de nervosa vitalidade. — Mas — acrescentou, passando a língua nos lábios ressequidos — estou com uma sede tremenda. Um gole dágua...

— Ah! Creio que o senhor gostaria de beber um pouco dágua... O que acha, sargento?

Heath já estava a caminho das escadas da frente. Desapareceu pela porta e pude ouvir sua voz dando ordens em stacaccato a alguém que se encontrava lá fora. Um minuto ou dois depois tornava a entrar no museu com um copo com água.

O Dr. Bliss bebeu como um homem que estivesse morto de sede e, depois que baixou o copo, Vance lhe perguntou: — Quando o senhor terminou o relatório financeiro para o Sr. Kyle?

— Esta manhã, pouco antes de Brush trazer meu café. — A voz de Bliss estava mais forte, havia mesmo uma certa animação no tom com que falou. — Eu o havia praticamente completado antes de ir-me deitar à noite passada — não levei mais do que uma hora de trabalho. Assim, desci para o escritório esta manhã às oito horas.

— Onde está agora o relatório?

— Em minha mesa, lá no escritório. Pretendia verificar as contas depois do café, antes que Kyle chegasse... Vou buscá-lo.

Começou a levantar-se, mas Vance o deteve.

— Isso não será necessário, senhor. Tenho-o aqui... Estava na mão do Sr. Kyle.

Bliss olhou para o papel que Vance lhe mostrava, com olhos estupidificados.

— Na mão de Kyle? — gaguejou ele. — Mas... mas...

— Não se preocupe com isso. — A voz de Vance era casual. — Esse fato virá a ser explicado quando conhecermos melhor a situação. Sem dúvida o relatório foi retirado do seu quarto quando o senhor estava dormindo...

— Talvez o próprio Kyle...

— É possível, mas pouco provável. — Era óbvio que Vance examinava a idéia de ter Kyle, pessoalmente, retirado o relatório. — Casualmente, é normal que o senhor deixe destrancada a porta que leva de seu escritório ao museu?

— Sim. Jamais eu a tranco. Não há necessidade. Na verdade nem mesmo lhe poderia dizer, de repente, onde se encontra a chave.

— Assim sendo — observou Vance — qualquer pessoa no museu poderia ter entrado no escritório e retirado o relatório depois das nove horas, quando o senhor adormeceu.

— Mas quem, em nome dos céus, Sr. Vance... ?

— Não sabemos. Estamos ainda na fase conjetural de nossa investigação. Se o senhor não se incomoda, doutor, permita-me que eu faça as perguntas... Por acaso o senhor sabe onde o Sr. Salveter se encontra?

Bliss voltou a cabeça na direção de Vance, com um gesto de ressentimento.

— Certamente sei onde ele se encontra — respondeu cerrando os maxilares firmemente. (Fiquei com a impressão de que queria proteger de qualquer suspeita o sobrinho de Kyle). — Mandei-o ao Museu Metropolitano...

— O senhor o mandou? Quando?

— À noite passada pedi-lhe que fosse lá, como primeira coisa a fazer esta manhã, a fim de indagar a respeito de um jogo duplicata de reprodução do mobiliário existente na recentemente descoberta tumba de Hotpeheres, mãe de Kheuf da quarta dinastia...

— Hotpeheres? Kheuf?... O senhor está-se referindo a Hetep-hir-es e a Khufu?

— Certamente. — O tom de voz do doutor era mordaz. — Eu emprego a transliteração de Weigall. Na sua História dos Faraós...

— Está bem, está bem. Perdoe-me, doutor. Lembro-me agora de que Weigall modificou muitas das aceitas transliterações do egípcio... — No entanto, se minha memória está correta, a expedição que descobriu a tumba de Hetep-hir-es — ou Hotpeheres — foi patrocinada pela Universidade de Harvard e pelo Museu de Belas Artes de Boston.

— É verdade, mas eu sabia que o meu velho amigo, Albert Lithgoe, Curador do Departamento de Egiptologia do Museu Metropolitano, poderia fornecer-me a informação que eu desejava.

— Compreendo. — Vance fez uma pausa. — O senhor falou com o Sr. Salveter esta manhã?

— Não. — Bliss pareceu indignado. — Eu estava em meu escritório das oito horas em diante e o rapaz não iria pensar em me perturbar. Ele provavelmente saiu de casa aí pelas nove e meia... o Museu Metropolitano abre às dez horas.

Vance concordou com a cabeça.

— Sim. Brush disse que ele saiu por volta dessa hora. Mas já não deveria estar de volta?

Bliss deu de ombros.

— Talvez — respondeu, como se o assunto não tivesse a menor importância. — É possível porém, que o rapaz tenha tido que esperar pelo Curador. De qualquer modo, estará de volta tão logo tenha cumprido sua missão. É um rapaz muito consciencioso; ambos, minha mulher e eu, gostamos muito dele. Foi ele quem, intercedendo junto ao seu tio, tornou possível as escavações do túmulo de Intef.

— Foi o que me disse Scarlett. — Vance falou com a casualidade de um completo desinteresse e puxando uma cadeira de madeira dobrável deixou-se cair nela preguiçosamente. Markham olhou para Vance com um olhar de reprovação — um olhar que disse tão claramente quanto o teriam feito palavras: "Deixe-me conduzir a conversação." Vance reclinou-se para trás e colocou as mãos cruzadas na nuca.

— Escute, doutor, — prosseguiu ele, com um ligeiro bocejo — por falar do velho Intef, como sabe eu estava presente quando o senhor se apropriou daquele fascinante escaravelho de lápis-lazúli...

Bliss levou a mão ao lenço de pescoço e olhou culpada-mente na direção de Hani, que se havia deslocado para a frente da estátua de Teti-shiret e se encontrava agora de costas para nós, em uma atitude de alheamento e de absorta adoração. Vance fingiu não ter percebido os movimentos do doutor e continuou, olhando sonhadoramente para fora das janelas de trás: — Um escaravelho muito interessante... estranhamente marcado. Scarlett me disse que o senhor o havia transformado em um alfinete de gravata... Ele está aí com o senhor? Eu gostaria de vê-lo.

— Realmente, Sr. Vance, — novamente a mão de Bliss dirigiu-se a sua gravata — ele deve estar lá em cima. Se o senhor chamar Brush...

Scarlett adiantou-se e se colocou ao lado de Bliss.

— Estava em seu escritório à noite passada, doutor, — disse ele — em cima da mesa...

— É isso mesmo! — Bliss, agora, estava perfeitamente controlado. — Vocês o encontrarão em cima de minha mesa,, preso à gravata que eu estava usando ontem.

Vance levantou-se e premiou Scarlett com um olhar glacial.

— Muito agradecido — disse, friamente. — Quando eu precisar de seu auxílio chamá-lo-ei. — Em seguida voltou-se para Bliss. — A verdade é, doutor, que eu estava procurando certificar-me se o senhor se recordava de ter usado o seu alfinete de escaravelho... Não está no seu escritório, sabe? Estava ao lado do corpo do Sr. Kyle quando aqui chegamos.

— Meu escaravelho de Intef aqui! — Bliss pôs-sé de pé num salto e ficou olhando, com olhos esgazeados pelo pânico„ para o homem assassinado. — Impossível!

Vance foi até o corpo de Kyle e apanhou o escaravelho..

— Impossível não é, senhor, — disse Vance ostentando o alfinete — mas é bastante mistificador... Provavelmente foi retirado de seu escritório ao mesmo tempo que o relatório..

— Está fora de meu alcance — observou Bliss lentamente, em rouco sussurro.

— Talvez tenha caído de sua gravata — sugeriu Heath antagonicamente, espichando o queixo para a frente.

— O que é que o senhor quer dizer? — O tom de voz do doutor parecia áspero e assustado. — Eu não o tinha nesta gravata. Deixei-o no escritório...

— Sargento! — Vance olhou para Heath com ácida reprovação. — Vamos levar as coisas calmamente e com discrição.

— Sr. Vance, — a agressividade de Heath não diminuiu — aqui estou para descobrir quem assassinou Kyle. A pessoa que teve todas as oportunidades de cometer o crime foi o Dr. Bliss. Além disso, encontramos um relatório financeiro e um alfinete de gravata que o fisgam para junto do morto. Há, ainda, aquelas pegadas...

— Tudo o que o senhor está dizendo é verdade, sargento, — interrompeu Vance — mas agarrar o doutor não nos dará explicação sobre esta extraordinária situação.

Bliss se afundara em sua cadeira.

— Oh, meu Deus! — lamentou-se. — Estou vendo aonde o senhor quer chegar. O senhor pensa que eu o matei!

— Buscou Vance com os olhos em desesperado apelo. — Digo-lhes que estava adormecido desde às nove horas. Nem mesmo sabia que Kyle estava aqui. É horrível... horrível... Certamente, Sr. Vance, não acredita...

Ouviram-se vozes zangadas à porta principal do museu e todos nós olhamos naquela direção. No patamar de cima aparecia Hennessey, de braços abertos, protestando energicamente. No portal via-se uma jovem mulher.

— Esta é minha casa — dizia ela em voz zangada e aguda. — Como ousa o senhor impedir que eu entre nela?

Scarlett imediatamente subiu correndo as escadas.

— Meryt!

— É minha esposa — informou-nos Bliss. — Por que ela não pode entrar, Sr. Vance?

Antes que Vance respondesse Heath já estava berrando: — Está bem, Hennessey. Deixe a senhora entrar.

A Sra. Bliss desceu rapidamente as escadas e quase correu para o marido.

— Oh, o que é isso Mindrum? O que aconteceu? — A moça ajoelhou-se e pôs os braços em torno dos ombros do doutor. Naquele momento percebeu o corpo de Kyle e, suspirando e estremecendo, afastou os olhos.

Era uma mulher impressionante, cuja idade, segundo avaliei, estava em volta dos vinte e seis ou vinte e sete anos. Tinha grandes olhos ^negros e pestanas longas e a pele da tonalidade azeitona profunda. Seu sangue egípcio aparecia mais marcado nos lábios cheios e sensuais e nas proeminentes maçãs do rosto, o que lhe emprestava uma aparência decididamente oriental. Havia nela algo que me fazia lembrar o lindo quadro da Rainha Nefertiti pintado por Winifred Brunton1 em uma reconstituição. Usava chapéu de tom azul leve, não diferente da própria touca usada por Nefret-íti; o vestido de crepe georgete castanho caía solto em seu corpo elegante e ondulado, modelando e ressaltando suas curvas sensuais. Havia vigor e beleza em sua delicada figura que seguia as linhas do ideal do antigo Oriente, tal como o assinalamos no Banho Turco de Ingres.

Apesar de sua juventude, a Sra. Bliss possuía um ar distinto de maturidade e equilíbrio, características profundas, inegáveis em sua natureza. Eu podia facilmente imaginar, observando-a ajoelhada ao lado do marido, que ela seria capaz de poderosas emoções e igualmente poderosas ações.2

 

 

(1) Esse retrato colorido (com o nome da Rainha grafado como Nefertiti) aparece em Reis e Rainhas do Antigo Egito (Charles Scribner's Sons).


(2) Vim a saber posteriormente, através de Scarlett, que a mãe da Sra. Bliss era uma dama copta de descendência nobre que traçava sua linhagem desde os faraós Salte e que, apesar da fé cristã, mantivera sua tradicional veneração pelos deuses nativos de seu país. Sua única filha, Meryt-Amen (A Bem Amada de Amûn), recebera esse nome em homenagem do grande Ramsés II, cujo título completo como Filho do Deus Sol era Ramose su Mery-Amun. No inglês mais correto o nome da Sra. Bliss deveria ser grafado como Meryet-Amun, mas a forma escolhida foi, sem dúvida, baseada nas transliterações de Flinders Petrie, Maspero e Abercrombie. Meryet-Amun não era nome incomum entre as rainhas e princesas do antigo Egito. Já foram assinaladas três rainhas com esse nome: uma (da família de Ah-mose I) cuja múmia se encontra no Museu do Cairo; outra (da família de Ramsés II) cuja tumba e cujo sarcófago se encontram no Vale das Rainhas; e uma terceira cuja câmara de sepultamento e cuja múmia foram recentemente encontradas pela Expedição ao Egito do Museu Metropolitano de Arte, em elevações nas proximidades do templo de Deir el Bahri, em Tebas. Esta última Rainha Meryet-Amun era filha de Thut-mose III e de Meryet-Rê, e esposa de Amen-hotpe II. A história relativa ao encontro de sua tumba se acha registrada na II Seção do Boletim do Museu Metropolitano de Arte, de novembro de 1929.

 

 

 

Bliss afagou a espádua da mulher de maneira afetuosamente paternal. Seus olhos, porém, continuavam abstratos.

— Kyle está morto, querida — disse-lhe com voz desanimada. — Foi assassinado... e esses cavalheiros estão-me acusando de tê-lo morto.

— Você? — A Sra. Bliss se pôs de pé imediatamente. Por um momento seus olhos se fixaram no marido, incompreensivelmente; em seguida voltou-os para nós com uma raiva coruscante. Antes que a moça pudesse falar, entretanto, Vance se aproximou dela.

— O doutor não está sendo preciso, Sra. Bliss — disse ele em voz baixa e uniforme. — Nós não o acusamos. Estamos, meramente, procedendo a uma investigação sobre este trágico acontecimento. Acontece que o alfinete de escaravelho do doutor foi achado ao lado do corpo do Sr. Kyle.

— E daí? — A Sra. Bliss se tornara estranhamente calma. — Qualquer pessoa poderia tê-lo posto lá.

— Exatamente, senhora — replicou Vance, com amistoso conforto. — Nosso principal objetivo nesta investigação é nos certificarmos de quem foi essa pessoa.

Os olhos da mulher estavam semicerrados e ela permanecia rígida, como se transfixada por um súbito e devastador pensamento.

— Sim... sim — murmurou ela. — Alguém colocou o escaravelho aí... alguém... — A voz de Sra. Bliss desapareceu, e uma nuvem, como de dor, desceu-lhe sobre o rosto. Rapidamente, porém, ela se recompôs e, tomando uma inalação profunda, olhou Vance nos olhos, resolutamente.

— Quem quer que seja que cometeu essa coisa horrível, desejo que os senhores o encontrem. — Seu rosto tornou-se duro. — E eu os ajudarei. Compreendem? Eu os ajudarei.

Vance estudou-a brevemente, antes de responder.

— Acredito no que está dizendo, Sra. Bliss. E chamá-la-ei para esse auxílio. — Vance se inclinou ligeiramente. — Mas neste momento não há nada que a senhora possa fazer. Algumas coisas rotineiras têm que ser feitas preliminarmente. Nesse meio tempo muito apreciaria se a senhora aguardasse por nós na sala de visitas — há umas perguntas que desejo fazer-lhe dentro em pouco... Hani pode acompanhá-la.

Eu estivera observando o egípcio com um canto de olho durante essa rápida cena. Quando a Sra. Bliss entrara no museu, Hani mal se voltara em sua direção, mas quando começou a falar com Vance ele se encaminhara para junto dos dois silenciosamente. Encontrava-se agora de braços cruzados imediatamente por trás da arca incrustada, com os olhos fixos na mulher, em uma atitude de protetora devoção.

— Venha, Meryt-Amun — chamou ele. — Permanecerei junto a você até que estes cavalheiros desejem consultá-la. Não há nada a temer. Sakhmet desfechou sua justa vingança e ela está a coberto do poder humano da lei ocidental.

A mulher hesitou por um momento. Em seguida, indo até Bliss, beijou-o de leve na testa e se encaminhou para as escadas da frente, servilmente acompanhada por Hani.

 


VI

 

Uma incumbência de quatro horas

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 13:15 horas)

 

 

Os olhos de Scarlett acompanharam a Sra. Bliss com uma expressão de pena e preocupação.

— Pobre moça! — comentou ele com um suspiro. — Como sabe, Vance, ela era muito devotada a Kyle — seu pai e Kyle eram grandes camaradas. Quando o velho Abercrombie morreu, Kyle cuidou dela como se fosse uma filha... Este caso é um golpe terrível" para ela.

— Qualquer um pode compreender isso — comentou Vance, superficialmente. — Mas a Sra. Bliss tem Hani para consolá-la... Casualmente, doutor, o seu criado egípcio parece estar muito en rapport com a Sra. Bliss.

— O quê? O quê? — Bliss levantou a cabeça e fez um esforço em se concentrar. — Ah, sim... Hani. Um cão fiel — no que diz respeito a minha mulher. Praticamente foi quem a criou depois da morte do pai. Nunca me perdoou por me ter casado com ela. — Sorriu tristemente e emergiu em um estado de pensativo desespero.

O charuto de Heath se apagara, mas ele continuava a mastigá-lo raivosamente.

Heath estava ao lado do corpo de Kyle, com as mãos nos bolsos e as pernas abertas, encarando o doutor com frustrada animosidade.

— De qualquer modo, para que todo esse palavrório? — indagou grosseiramente. Olhou para Markham. — Escute aqui, Chefe. O senhor já conseguiu provas suficientes para uma acusação?

Markham estava extremamente preocupado. Por instinto deveria determinar a prisão de Bliss, mas sua fé em Vance o impedia. Percebia que Vance não estava satisfeito com a situação e sem dúvida sentia, como resultado da atitude de Vance, que haviam certas coisas relacionadas com o assassinato de Kyle que não haviam subido à superfície. Além disso, talvez houvesse em sua própria mente alguma incerteza quanto à autenticidade dos indícios que apontavam na direção do egiptólogo.

Estava prestes a responder a Heath quando Hennessey enfiou a cabeça pela porta e chamou: — Ei, sargento! O rabecão acaba de chegar.

— Bem, já era tempo. — Heath estava mal-humorado. Voltou-se para Markham. — Há alguma razão, senhor, pela qual o corpo não deva ser removido?

Markham olhou na direção de Vance que concordou com a cabeça.

— Não, sargento — respondeu. — Quanto mais depressa ele chegue ao necrotério, mais rapidamente teremos o relatório post mortem.

— Certo! — Heath levou à boca a mão em concha e berrou para Hennessey: — Mande entrar.

. Um momento mais tarde, dois homens — um deles o motorista do rabecão e o outro um sujeito desleixado — desceram as escadas conduzindo uma cesta grande de vime, modelada no formato de um caixão de defunto. Sem uma palavra os dois homens, insensivelmente, colocaram o corpo de Kyle dentro da cesta e se encaminharam na direção da porta da frente com sua repulsiva carga, o sujeito desleixado na parte de trás, ensaiando uns passos de dança enquanto se deslocavam.

— Que rapazinho simpático — comentou Vance com um sorriso.

Com a remoção do corpo parecia que uma mortalha havia sido retirada do museu. Mas havia ainda a estátua caída de Sakhmet e a poça de sangue para contarem a terrível história da tragédia.

Heath permaneceu olhando a figura desanimada e silenciosa de Bliss.

— Aonde vamos daqui? — Sua pergunta continha ao mesmo tempo desgosto e resignação.

A inquietação de Markham crescia e, chamando Vance a um lado, conversou com ele em voz baixa. Não pude ouvir o que disseram, mas Vance falou seriamente com o procurador distrital durante alguns minutos. Markham ouviu atentamente e em seguida deu de ombros.

— Muito bem — estava dizendo Markham quando os dois tornaram a aproximar-se — mas a não ser que você chegue a uma conclusão rápida teremos breve que entrar em ação...

— Ação! Oh, minha tia! — Vance suspirou profunda* mente. Sempre ação — sempre fogos de artifício. O ideal rotariano! Ocupe-se... faça as coisas andarem. Eficiência!... Por que as forças da justiça têm que emular o caprichoso derviche? O cérebro humano, afinal de contas, tem certas funções.

Pôs-se a caminhar para cá e para lá à frente dos armários. Os olhos fitos no chão, enquanto todos os demais o observavam. Até mesmo o Dr. Bliss se levantou e o encarava com expressão de curiosidade e ^esperança.

— Nenhum desses indícios soa como verdadeiro, Markham — disse Vance. — Há alguma coisa aqui que está fora do lugar. É como um enigma que diz uma coisa e significa outra. Asseguro-lhe que a explicação óbvia é a explicação errada... Em algum lugar se encontra uma chave para a solução desse caso. E deve estar-nos olhando na cara, ainda que não a vejamos.

Vance parecia profundamente perplexo e insatisfeito e caminhava de um lado para outro com aquele calmo e dissimulado sentimento de alerta que desde muito tempo eu me acostumara a reconhecer.

De repente se deteve junto à poça de sangue à frente do último armário e se inclinou. Estudou-a durante um momento e em seguida seus olhos se dirigiram para o armário. Lentamente o seu olhar desceu a cortina parcialmente cerrada até parar na saliência trabalhada acima da haste da cortina. Depois de.alguns instantes seus olhos voltaram para a poça de sangue; fiquei com a impressão de que Vance estava avaliando as distâncias e procurando determinar as relações exatas entre o sangue, o armário, a cortina e a moldura ao longo da borda das prateleiras.

Endireitou-se dentro de pouco tempo e permaneceu junto à cortina, de costas para nós.

— Sim, muito interessante... — murmurou ele. — Creio...

Voltou-se e, puxando uma das cadeiras de madeira dobráveis colocou-a diretamente em frente ao armário, no ponto ·exato em que estivera a cabeça de Kyle. Em seguida subiu na cadeira e durante um tempo considerável permaneceu inspecionando a parte de cima do armário.

— Meu Deus! É extraordinário! — Sua voz era quase inaudível.

Puxando o monóculo colocou-o no olho. Depois estendeu a mão até à borda da prateleira e pegou algo muito próximo de onde, de acordo com Hani, tinha sido colocada a estátua de Sakhmet. Exatamente o que era nenhum de nós conseguiu ver, mas Vance não tardou a guardar o que fosse no bolso do casaco. Um pouco mais tarde desceu da cadeira e encarou Markham com um olhar de satisfação.

— Este crime tem assombrosas possibilidades — observou ele.

Antes que Vance pudesse explicar sua enigmática observação Hennessey tornou a aparecer no topo das escadas e a chamar Heath.

— Está aqui um cara chamado Salveter que diz querer falar com o Dr. Bliss.

— Ah! Bon! — Vance, por alguma razão, parecia altamente satisfeito. — Faça-o entrar, sargento!.

— Oh, claro! — Heath fez uma careta de aborrecimento. — OK, Hennessey, faça o cavalheiro entrar. Quanto mais gente mais divertido... O que é isso, afinal? — resmungou ele. — Uma convenção?

O jovem Salveter desceu as escadas e se aproximou de nós com ar inquisitivo e surpreso. Dirigiu a Scarlett um cumprimento ligeiro com a cabeça; logo em seguida viu Vance.

— Como está o senhor? — cumprimentou ele, obviamente surpreendido com a presença de Vance. — Já se passou um bocado de tempo desde que o vi... no Egito... Por que toda esta excitação? Fomos invadidos pelo Exército? — Seu humor não parecia verdadeiro.

Salveter era um homem de aparência agressiva e franca, de uns trinta anos, com cabelos cor de areia, grandes olhos cinzentos, nariz pequeno e lábios retos e finos. Tinha altura mediana e era bem feito de corpo, dando a impressão de que deveria ter sido um atleta nos tempos de estudante. Estava vestido de maneira simples, em um terno de tweed que não lhe caía bem e a gravata borboleta em seu colarinho mole estava de lado. Tenho minhas dúvidas quanto a seus sapatos jamais terem sido engraxados. Meu primeiro instinto era de gostar dele. O rapaz dava a impressão de uma franqueza de adolescente; entretanto, havia uma característica em seu todo — que não pude avaliar à época — que avisava às pessoas de que tomassem cuidado e não procurassem forçá-lo em coisa nenhuma contra sua obstinação.

Enquanto falava com Vance seus olhos percorriam a sala com intensa curiosidade, como se estivesse observando alguma coisa errada.

Vance, que o estivera olhando apreciativamente, respondeu após uma ligeira pausa em um tom que me pareceu desnecessariamente despido de simpatia.

— Não, não foi o Exército, Sr. Salveter. É a polícia. O fato é que o seu tio está morto. Foi assassinado.

— Tio Ben! — Salveter parecia chocado com a notícia; não tardou, porém, a que uma carranca vincasse sua testa. — Então é isso! — Voltou-se e encarou belicosamente o Dr. Bliss.

— Ele tinha um encontro marcado com o senhor hoje de manhã, doutor... Quando e como isso ocorreu?

Foi Vance, entretanto, quem respondeu.

— Seu tio, Sr. Salveter, foi atingido na cabeça com aquela estátua de Sakhmet, por volta das dez horas. O Sr. Scarlett se deparou com o corpo aqui, aos pés de Anúbis e me avisou. Eu, por minha vez, avisei ao procurador distrital... Por falar nisso, este é o Sr. Markham... e aqui o sargento Heath, do Departamento de Homicídios.

Salveter mal olhou na direção dos dois.

— Uma odiosa afronta — resmungou, contraindo os possantes maxilares.

— Uma afronta... sem dúvida! — Bliss levantou a cabeça e seus olhos, lamentavelmente desanimados, enfrentaram os de Salveter. — Isto significa o fim de todas as nossas escavações, meu rapaz...

— Escavações! — Salveter continuava a estudar o homem mais idoso. — Que importância têm? O que quero é botar as mãos no cão que fez isso. — Voltou-se agressivamente e encarou Markham. — O que posso fazer para ajudá-lo, senhor?

— Seus olhos eram meros traços — parecia um animal selvagem preparando-se para atacar.

— Poupe suas energias, Sr. Salveter — aconselhou Vance com voz arrastada, deixando-se cair indolentemente na cadeira.

— Poupe suas energias. Posso compreender exatamente como o senhor se sente. A agressividade no entanto — embora seja uma virtude em determinadas circunstâncias — é realmente inútil na presente situação... Acredite, por que não dá umas voltas em torno do quarteirão, vigorosamente, e volta até aqui? Estamos ansiosos por conversar polidamente com o senhor, mas calma e autocontrole são desejáveis ao máximo.

Salveter encarou Vance com ferocidade, mas Vance suportou-lhe o olhar com lânguida frieza. Durante uns trinta segundos travou-se um verdadeiro choque de olhares entre os dois, sem que nenhum deles piscasse. Já vi outros homens tentarem encarar Vance para confundi-lo, sem o mínimo êxito. Sua força calma e o vigor de seu caráter eram colossais e eu gostaria que ninguém ousasse enfrentar o seu olhar.

Finalmente Salveter deu de ombros. Um leve sorriso de concordância perpassou em sua boca.

— Abro mão do passeio — disse ele com surpreendente submissão. — Abra os fogos.

Vance deu uma tragada profunda no cigarro e deixou que seus olhos vagassem ao longo da grande frisa da Rapsódia de Pen-ta-Weret.

— A que horas saiu de casa esta manhã, Sr. Salveter?

— Cerca das nove e meia. — Salveter se encontrava agora de pé, em atitude de relaxamento, as mãos nos bolsos do casaco. Toda sua agressividade desaparecera e, ainda que observasse Vance atentamente, não havia animosidade nem tensão em sua atitude.

— E, por acaso, o senhor deixou a porta da frente destrancada ou aberta?

— Não!... Por que iria fazê-lo?

— Na verdade não sei. — Vance concedeu-lhe um sorriso de encorajamento. — Entretanto é uma pergunta mais ou menos vital. O Sr. Scarlett, sabe, encontrou a porta aberta quando chegou, entre dez e dez e meia.

— Bem, não deixei a porta aberta... Qual é a pergunta seguinte?

— Ao que sei o senhor foi ao Museu Metropolitano de Arte.

— Sim. Fui tomar algumas informações a respeito de umas reproduções do mobiliário da tumba de Hotpeheres.

— E conseguiu as informações que desejava?

— Sim.

Vance consultou o relógio.

— Uma e vinte e cinco — anunciou ele. — Isto significa que o senhor esteve ausente cerca de quatro horas. O senhor, por acaso, foi e voltou a pé até à Rua Oitenta e Dois?

Salveter cerrou os dentes durante um momento e olhou antagonicamente para Vance, que permanecia indiferente.

— Não fui a pé em qualquer dos sentidos, obrigado. — (Não pude determinar se ele estava meramente exercendo intenso autocontrole ou se de fato se assustara). — Fui de ônibus até à Avenida e voltei de táxi.

— Uma hora de ida e de volta, digamos. Isso lhe permitiu três horas para conseguir as informações, não?

— Matematicamente correto. — Novamente Salveter sorriu selvagemente. — Acontece, porém, que entrei nas salas à direita da entrada, a fim de dar uma espiada na Tumba de Per-nêb. Ouvi dizer que, recentemente, haviam acrescentado alguns objetos à coleção dos conteúdos da câmara de sepultamento... Per-nêb, como sabe, era da quinta dinastia...

— Sim, sim... E como Khufu, filho de Hetep-hir-es, pertenceu à dinastia precedente, o senhor estava esteticamente interessado no conteúdo da câmara de sepultamento. Muito natural... Durante quanto tempo o senhor percorreu e confraternizou com os fragmentos de Per-nêb?

— Olhe aqui, Sr. Vance, — Salveter estava ficando mais apreensivo — não estou percebendo aonde o senhor quer chegar, mas se é para auxiliar sua investigação sobre a morte de Tio Benjamim, aturo suas bobagens... Permaneci em torno dos armários das salas egípcias durante cerca de uma hora. Interessei-me e não me apressei — sabia que o Tio Benjamim tinha um encontro com o Dr. Bliss esta manhã e achei que, se chegasse aqui à hora do almoço, estaria bem.

— Mas o senhor não voltou à hora do almoço — observou Vance.

— E daí? Tive que ficar esfriando meus pés durante quase uma hora no escritório externo do Curador depois que fui lá para cima — o Sr. Lythgoe estava conversando com Lindsley Hall sobre uns desenhos. Depois tive que esperar mais ou menos meia hora enquanto ele telefonava para o Dr. Reisner, no Museu de Belas Artes de Boston. Estou com sorte de já estar de volta.

— Muita sorte... Sei como são essas coisas. Muito cacetes.

Aparentemente Vance aceitara a história sem dúvida. Levantou-se preguiçosamente e tirou do bolso uma caderneta de apontamentos, enquanto tateava no colete como se estivesse procurando alguma coisa com que escrever.

— Desculpe-me por tudo isso, Sr. Salveter, mas será que tem um lápis que me empreste? Parece que o meu sumiu.

(Imediatamente me tornei interessado, pois sabia que Vance nunca levava um lápis no bolso e sim uma pequena caneta-tinteiro que sempre trazia presa à corrente do relógio.) — Com prazer. — Salveter tirou do bolso e estendeu para Vance um lápis grande amarelo, de feitio hexagonal.

Vance pegou-o e fez com ele diversas anotações em sua caderneta. Em seguida, quando já ia entregá-lo, fez uma pausa e olhou para a marca nele impressa.

— Ah, um Mongol n? 1, hem? — observou. — Populares, esses lápis Fabers-482... O senhor os usa sempre?

— Nunca usei outros...

— Muito obrigado. — Vance restituiu o lápis e enfiou a caderneta no bolso. — Agora, Sr. Salveter, muito apreciaria se fosse para a sala de visitas e nos aguardasse lá. Nós queremos interrogá-lo de novo... Casualmente, a Sra. Bliss se encontra lá — acrescentou Vance naturalmente.

As pálpebras de Salveter se cerraram perceptivelmente e olhou de lado para Vance.

— Oh, sim? Obrigado... Esperarei na sala de visitas.

— Aproximou-se de Bliss. — Sinto muito, senhor, — disse.

— Sei o que isso significa para seu trabalho... — Ia acrescentar alguma coisa, mas parou. Em seguida se encaminhou decididamente para a porta da frente.

Salveter se encontrava a meio caminho nas escadas quando Vance, agora contemplando a estátua de Sakhmet meditativamente, voltou-se de súbito e o chamou.

— Oh, Sr. Salveter. Diga a Hani que gostaríamos de vê-lo. É um bom sujeito.

Salveter fez um gesto de assentimento e passou pela porta grande de aço sem olhar para trás.

 


VII

 

As impressões digitais

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 13:30 horas)

 

 

Pouco depois Hani se juntava a nós.

— Às suas ordens, cavalheiros — anunciou ele, olhando de um para outro de nós arrogantemente.

Vance já havia puxado uma segunda cadeira para junto da primeira em que ele subira para a inspeção no alto do armário. Fez, então, um gesto de chamada para o egípcio.

— Nós apreciamos o seu ardente espírito de cooperação, Hani — disse Vance. — Será que você podia ser tão amável ao ponto de subir nesta cadeira e nos indicar exatamente o local em que colocou ontem a estátua de Sakhmet?

Eu estava observando Hani com atenção e sou capaz de jurar que suas sobrancelhas se contraíram levemente. Mas quase não houve hesitação de sua parte em cumprir a solicitação de Vance. Fazendo uma reverência lenta e profunda aproximou-se do armário.

— Não coloque as mãos sobre a madeira — advertiu Vance. — E não toque na cortina.

Desajeitadamente, devido ao seu longo e esvoaçante kaftan, Hani subiu em uma das cadeiras. Vance subiu na outra.

O egípcio permaneceu durante alguns momentos olhando para a parte de cima do armário e, em seguida, apontou com um dedo ossudo para um ponto próximo da borda, exatamente a meio caminho da abertura de 75 cm.

— Exatamente aqui, effendi, — disse ele. — Se o senhor olhar de perto poderá ver onde a base de Sakhmet marcou a poeira.,..

— Oh, sim. — Vance, apesar de sua atitude de concentração, estava, não obstante, estudando o rosto de Hani. — Mas se olharmos com bastante atenção podemos perceber outros pontos em que a poeira foi atingida.

— Talvez o vento daquela janela acolá... Vance riu.

— Blasen ist nicht flõten, ihr miisst die Finger bewegen — para citar Goethe figurativamente... Sua explicação, Hani, é um pouco poética em demasia. — Vance indicou um ponto à moldura da borda do armário. — Duvido que mesmo o seu simum — ou samum, como vocês preferem chamá-lo1 — pudesse ter feito esse arranhão na base da estátua, não acha?... Ou quem sabe se você colocou a estátua com violência indevida.

 

 

 

(1) Não tenho certeza da razão pela qual Vance acrescentou essa frase intercalada, a não ser que se deva ao fato de que a palavra simum vem do árabe samma (que significa ser envenenado) e Vance julgasse que Hani reconhecesse melhor a palavra em sua correta forma etimológica.

 

 

— Claro que é possível, embora pouco provável.

— Não, de fato não é provável, considerando sua supersticiosa reverência para com a leonina dama. — Vance desceu de seu poleiro. — No entanto, parece que Sakhmet andou-se equilibrando na borda do armário, diretamente no centro, quando o Sr. Kyle chegou esta manhã para examinar os novos tesouros.

Todos nós o estivéramos observando com curiosidade. Heath e Markham pareciam especialmente interessados, e Scarlett — de cara fechada e imóvel — não tirara os olhos de cima de Vance. Até Bliss, que tinha parecido completamente chocado pela tragédia e em um estado de completo desânimo, tinha seguido o episódio com atenção. Era evidente que Vance havia descoberto algo de importância. Conhecia-o muito bem para subestimar sua persistência e esperei, com uma espécie de excitação íntima, que chegasse a hora em que ele compartilharia conosco sua nova descoberta.

Markham, no entanto, expressou sua impaciência.

— O que você tem em mente, Vance? — indagou irritadamente. Esta não é a hora de manter segredos e de ser dramático.

— Estou meramente sondando as possibilidades mais sutis deste sedutor caso — replicou ele de maneira casual. — Sou uma alma complexa, velho Markham. E não possuo, alas!, uma natureza simples e direta. Sou inimigo jurado do óbvio e do trivial... Você se lembra do que o coração do jovem disse para o salmista?... "As coisas não são coma parecem"...

Markham, de longa data, havia passado a compreender essa espécie de gárrula evasiva de parte de Vance, e nenhuma outra pergunta foi enunciada. Além disso, nesse momento houve uma interrupção, que emprestaria a todo o caso um aspecto ainda mais complicado e sinistro.

A porta da frente foi aberta por Hennessey e o capitão Dubois e o detetive Bellamy, peritos em impressões digitais, desceram as escadas rapidamente.

— Desculpe-me por fazê-lo esperar, sargento, — disse Dubois apertando a mão de Heath — mas eu estava às voltas com um arrombamento de cofre na Rua Fulton. — Dubois olhou em volta. — Como está, Sr. Markham? — Estendeu a mão para o procurador distrital... — Como está, Sr. Vance? — Dubois falou com civilidade, mas sem entusiasmo; acredito que o seu arrufo com Vance durante o caso da Canária ainda o amargurava.

— Não há muito serviço para o senhor aqui, capitão — interrompeu Heath impacientemente, — Só o que desejo é que o senhor examine aquela estátua pequena que está caída ali.

Imediatamente Dubois se tornou seriamente profissional.

— Isso não levará muito tempo — resmungou ele, inclinando-se sobre a estátua de diorita representando Sakhmet.

— O que pode ser isso, sargento?... Um desses trabalhos futuristas de arte que não significam coisa alguma?

— Para mim não significa nada — rosnou o sargento — a não ser que o senhor descubra nela algumas lindas e identificáveis impressões digitais.

Dubois grunhiu e estalou os dedos na direção de seu auxiliar. Bellamy, que permanecera imperturbável no fundo do quadro durante a troca de cumprimentos, avançou vigorosamente e abriu uma maleta de mão negra que trouxera com ele. Dubois, usando um lenço grande e as palmas das mãos, ergueu cuidadosamente a estátua e colocou-a de pé sobre o assento da cadeira. Em seguida remexeu na maleta e tirou de dentro um insuflador ou fole manual de pequeno porte e espalhou sobre toda a figura um pó cor de açafrão pálido. Em seguida a essa operação, delicadamente soprou todo o pó em excesso e fixou no olho uma lente de joalheiro, antes de se ajoelhar e examinar atentamente cada uma das partes da estátua.

Hani observara o espetáculo com o mais agudo interesse. Vagarosamente se deslocara para junto dos homens das impressões digitais, até ficar a uma distância de cerca de dois metros de onde se encontravam. Seus olhos se concentravam no que faziam enquanto suas mãos, caídas ao longo do corpo, se mantinham tensamente arqueadas.

— Os senhores não encontrarão impressões digitais minhas em Sakhmet, cavalheiros — proclamou ele em voz baixa e tensa. — Eu as esfreguei... Nem haverá nela quaisquer impressões para orientá-los. A Deusa da Vingança atacou por sua própria vontade e sua própria força e não são necessárias mãos humanas para ajudá-la em seus atos de justiça.

Heath fuzilou o egípcio com um olhar de crítico desprezo. Vance, porém, se voltou em sua direção com uma considerável ·demonstração de interesse.

— Como você sabe, Hani — perguntou ele — que as impressões de seus dedos não aparecerão na estátua? Foi você quem a colocou ontem em cima do armário.

— Sim, effendi, — respondeu o homem sem tirar os olhos de Dubois. — Eu a coloquei ali, mas com respeito. Eu ·a esfreguei e poli de cima até em baixo quando foi desempacotada. Somente depois eu a peguei em minhas mãos e a coloquei em cima do armário, como effendi Bliss havia determinado. Quando já estava no lugar pude ver onde minhas mãos haviam deixado marcas sobre a superfície polida. Tornei a esfregá-la com um pedaço de camurça, de modo que se encontrasse pura e intocada quando o espírito de Sakhmet baixasse seus olhos pesarosamente sobre os tesouros roubados existentes nesta sala... Não havia marcas ou impressões quando a deixei aí em cima.

— Bem, meu amigo, agora há nela impressões digitais — declarou Dubois sem qualquer emoção. Ele se munira de uma poderosa lente de aumento e estava focando seus olhos nos grossos tornozelos da estátua. — E são impressões tremendamente claras, também... Parece-me que foram feitas por alguém que tenha erguido a estátua... Ambas as mãos aparecem em volta dos tornozelos... Passe-me a máquina fotográfica, Bellamy.

Bliss tinha dado pouca atenção à entrada dos homens das impressões digitais, mas, quando Hani começara a falar, saíra de sua desanimada letargia e concentrara seu interesse no egípcio. Depois, quando Dubois anunciara a presença de impressões digitais, ficara olhando atentamente para a estátua. Uma surpreendente mudança ocorrera nele. Parecia um homem nas garras de um medo consumidor; antes que Dubois terminasse de falar Bliss se pôs de pé num salto e permaneceu em uma atitude de completo pavor.

— Deus que me ajude! — exclamou ele, o som de sua voz me produzindo um calafrio. — São minhas impressões digitais as que estão na estátua!

O efeito dessa admissão foi de aturdimento. Mesmo Vance pareceu momentaneamente arrancado de sua calma habitual" e, dirigindo-se a um cinzeiro padrão, do tipo pequeno, nele esmagou abstratamente o cigarro, ainda que não tivesse fumado mais do que sua metade.

Heath foi o primeiro a quebrar o elétrico silêncio que se seguiu ao grito de angústia de Bliss. Tirou o charuto apagado da boca e empinou o queixo.

— Claro que são suas impressões digitais! — explodiu o sargento desagradavelmente. — De quem mais poderiam ser?

— Um momento, sargento! — Vance havia-se recuperado inteiramente e sua voz era casual. — Impressões digitais, como sabe, podem ser muito enganadoras. E umas poucas assinaturas papilares em uma arma letal não significam que, necessariamente, seu autor seja um assassino. O que é mais importante, como sabe, é ter a certeza de quando e em que circunstâncias foram feitas as assinaturas.

Vance se aproximou de Bliss, que permanecia fitando a estátua de Sakhmet como um homem aturdido.

— Diga-me uma coisa, doutor, — Vance tinha assumido um ar natural e espontâneo — como sabe que as impressões digitais são suas?

— Como eu sei? — Bliss repetiu a pergunta em tom descolorido e resignado. Parecia ter envelhecido à frente mesmo de nossos olhos. Seu rosto pálido e encovado fazia com que sua cabeça parecesse a de um homem morto. — Porque... Oh, meu Deus!... Porque eu peguei a estátua!... Foi na noite passada... ou melhor, hoje pela manhã, antes de eu voltar lá para cima. Segurei a estátua pelos tornozelos, exatamente como aquele cavalheiro diz que aparecem as marcas de duas mãos.

— Como aconteceu que fizesse isso, doutor? — perguntou Vance calmamente.

— Fiz sem pensar. Já tinha mesmo esquecido de que o fizera, até que as impressões digitais foram mencionadas. — Bliss falou com uma franqueza febril: parecia mesmo supor que sua própria vida estivesse dependendo de que acreditassem no que dizia. — Quando terminei de arrumar todos os números do relatório, hoje pela madrugada, por volta das três horas, desci até aqui ao museu. Tinha falado com Kyle a respeito do novo carregamento e desejava ter certeza de que tudo estivesse em ordem para seu exame... Como sabe, Sr. Vance, muita coisa dependeria da impressão que os tesouros produzissem nele... Verifiquei os itens que se encontravam no armário lá do fim e tornei a cerrar a cortina. Quando já me ia retirar, notei que a estátua de Sakhmet não tinha sido colocada corretamente sobre a parte de cima do armário — não estava exatamente no centro e sim meio de lado. Por isso ergui as mãos e a coloquei na posição correta, empunhando-a pelos tornozelos...

— Perdoe minha intromissão, Vance, — Scarlett, com o olhar atônito, havia avançado uns passos — mas posso assegurar que uma tal atitude é perfeitamente natural com o Dr. Bliss. Ele é apegado à ordem... o que é motivo de brincadeiras de nossa parte. Nunca ousamos deixar coisa alguma fora do lugar: ele está constantemente nos criticando e tornando a arrumar as coisas depois que o fazemos. Vance fez que sim com a cabeça.

— Então, se bem o compreendo, Scarlett, caso uma estátua fosse deixada um pouco deslocada, seria praticamente inevitável que o Dr. Bliss, ao vê-la, corrigisse sua posição.

— Sim, creio que é uma conclusão razoável.

— Muito obrigado. — Vance tornou a se voltar para Bliss. — Sua explicação é de que o senhor ajustou a posição da estátua de Sakhmet empunhando-a por ambos os tornozelos, indo em seguida para a cama?

— Essa é a verdade, que Deus me ajude! — O homem procurou os olhos de Vance com ansiedade. — Apaguei as luzes e subi. Não tornei a pôr os pés no museu até à hora em que o senhor bateu na porta de meu escritório.

Heath, obviamente, não estava satisfeito com esta história. Parecia claro que ele não tinha a intenção de abandonar sua crença na culpabilidade de Bliss.

— O problema com esse álibi — retorquiu ele obstinadamente — é que o senhor não tem nenhuma testemunha. E é o tipo de álibi ao qual qualquer pessoa pode recorrer quando imprensada.

Markham interveio com diplomacia. Ele próprio, patentemente, não estava convencido nem de uma forma nem de.outra.

— Creio, sargento, — disse ele — que seria aconselhável que o capitão Dubois verificasse a identidade dessas impressões digitais. Ficaremos então sabendo definitivamente, pelo menos, se foram ou não deixadas pelo Dr. Bliss... Pode fazer isso agora, capitão?

— Claro.

Dubois remexeu na maleta e dela retirou um diminuto rolo embebido em tinta, uma pequena lâmina de vidro e um bloco também pequeno de papel.

— Creio que os polegares bastam — disse ele. — Há apenas um conjunto de mãos na estátua.

Dubois passa o rolo de tinta sobre a lâmina de vidro e, indo até Bliss, pediu-lhe que esticasse as mãos.

— Pressione seus polegares na tinta e em seguida aplique-os contra este papel — determinou Dubois.

Bliss obedeceu sem uma palavra. Colhidas as impressões, Dubois tornou a ajustar a lente de joalheiro em seus olhos e inspecionou as marcas.

— Parece com as outras — comentou. — Linhas Ulnar... idênticas às da estátua... De qualquer modo vou confrontá-las.

Ajoelhou-se junto da estátua e manteve o bloco de papel próximo aos seus tornozelos. Durante cerca de um minuto ficou estudando os dois conjuntos de impressões.

— São iguais — anunciou finalmente. — Fora de qualquer dúvida... e não há qualquer outra marca visível na estátua. Este cavalheiro — fez um gesto de desprezo na direção de Bliss — é a única pessoa que botou as mãos na estátua, tanto quanto eu possa ver.

— Isto me alegra — sorriu Heath. — Deixe-me ver as ampliações assim que estiverem prontas — tenho um pressentimento de que vou precisar delas. — Pegou outro charuto e arrancou-lhe a ponta com os dentes com maligna satisfação.

— Creio que será tudo, capitão. Muito obrigado... Agora o senhor poderá ir alimentar-se.

— E deixe-me dizer-lhe que bem que estou precisando.

— Dubois entregou a máquina fotográfica e o restante do aparelhamento a Bellamy, que acondicionou tudo com enfadonha precisão. Barulhentamente os dois homens se retiraram do museu.

Heath finalmente acendeu seu charuto e, por alguns momentos, ficou a puxar a fumaça voluptuosamente, com um olho fechado na direção de Vance.

— Isto como que liquida as coisas, não é, senhor? — perguntou ele. — Ou será que o senhor engoliu o álibi do doutor? — Passou a se dirigir a Markham. — Deixo isso a seu critério, senhor. Há somente um conjunto de impressões digitais naquela estátua, se essas impressões foram fixadas à noite passada, eu gostaria que alguém me dissesse que fim levaram as impressões digitais do pássaro que atingiu Kyle na cabeça. Ele foi abatido com a parte de cima da estátua e quem quer que o tenha feito deve tê-la empunhado pelas pernas... Agora, Sr. Markham, eu pergunto: iria alguém apagar as próprias impressões e deixar apenas as do doutor? Mesmo que o quisesse não seria possível fazê-lo.

Vance falou antes que Markham pudesse responder.

— Como o senhor sabe, sargento, se a pessoa que matou o Sr. Kyle empunhou ou não a estátua?

Heath olhou surpreso para Vance.

— Espere aí! O senhor não pensa seriamente que aquela dama de cabeça de leão cometeu o crime por si mesma — como diz esse iogue, não é? — Apontou Hani com o polegar, sem sequer virar a cabeça.

— Não, sargento. — Vance sacudiu a cabeça. — Ainda não acredito no sobrenatural. Nem acredito, tampouco, que o assassino tenha apagado as próprias impressões e deixado as do Dr. Bliss. Mas penso, sabe, que há alguma explicação que satisfaça todos os aspectos contraditórios deste caso espantoso.

— Talvez sim. — Heath sentiu que poderia ser tolerante e magnânimo. — Entretanto, minha opinião a respeito das impressões digitais está baseada em provas tangíveis.

— Um procedimento muito perigoso, sargento — advertiu Vance, com desusada seriedade. — Duvido que o senhor possa jamais conseguir uma condenação do Dr. Bliss com as provas que possui. Tudo é demasiado óbvio — demasiado imbecil. Estamos atolados em um embarras de richesse — o que quer dizer que nenhum homem de posse de suas faculdades mentais iria cometer um crime e deixar para trás tantos indícios tolos de condenadora evidência... E creio que o Sr. Markham concorda comigo.

— Não tenho tanta certeza — protestou Markham, dubiamente. — Há algo no que você diz, Vance, mas, por outro lado...

— Desculpem-me, cavalheiros! — Heath, de súbito, se animara. — Tenho que falar com Hennessey. Voltarei em um minuto! — O sargento se encaminhou com vigorosa determinação até à porta da frente e desapareceu.

Bliss, por toda a sua aparência, não se interessara absolutamente por essa discussão a respeito de sua possível culpabilidade. Afundara em sua cadeira, permanecendo com os olhos fitos no chão, resignadamente — uma figura trágica e alquebrada. Depois que o sargento saiu, Bliss moveu a cabeça lentamente na direção de Vance.

— Seu detetive está plenamente justificado em sua opinião — observou ele. — Percebo seu ponto de vista. Tudo está contra mim... Tudo! — Seu tom de voz, ainda que monótono e descolorido, era ácido. — Se ao menos não tivesse adormecido hoje pela manhã eu poderia saber o significado de tudo isso... Meu alfinete de gravata... aquele relatório... as impressões digitais... — Sacudiu a cabeça como um homem que estivesse aturdido. — É horrível... É horrível! — Levou ao rosto as mãos trêmulas e colocou os cotovelos nos joelhos, inclinando-se para a frente em uma atitude de completo desespero.

— Tudo é demasiado horrível, doutor — replicou Vance animadoramente. — Aí está nossa esperança de uma solução.

Novamente se encaminhou até o armário e permaneceu durante um momento em distrait contemplação. Hani voltara a sua ascética adoração de Teti-shiret e Scarlett, de cenho franzido e se sentindo infeliz, caminhava nervosamente para cá e para lá entre o delicado assento real e as prateleiras que continham os shawabtis. Markham continuava perdido em reflexões, as mãos cruzadas nas costas, olhando o raio de sol que atravessava diagonalmente as janelas de trás.

Percebi que Hennessey entrara silenciosamente pela porta principal e tomara posição no patamar da escada, com uma das mãos agourentamente metida em um dos bolsos do casaco.

Em seguida abriu-se a porta pequena de metal no topo das escadas de ferro em espiral e Heath apareceu na entrada do escritório do Dr. Bliss. Tinha uma das mãos atrás das costas, fora das vistas, enquanto descia para o museu. Encaminhou-se diretamente até Bliss e permaneceu durante um momento olhando lamentosamente para o homem em cuja culpa ele acreditava. Repentinamente levou a mão à frente — com ela empunhava um sapato de tênis branco.

— Isto é seu, doutor? — berrou ele.

Bliss olhou para o sapato com atônita surpresa.

— Sim... é. Certamente é meu...

— O senhor aposta sua vida como é seu! — O sargento foi até onde estava Markham e manteve a sola do sapato virada para cima para que fosse examinada. Eu estava de pé ao lado do procurador distrital, e notei que a sola do sapato era cortada por pequenas cristas e que havia no salto um desenho de pequenos buracos circulares. Mas o que me fez sentir um calafrio de horror foi o fato de que toda a sola se achava vermelha de sangue já seca.

— Encontrei esse sapato no escritório — informou Heath. — Estava enrolado em um jornal, no fundo da cesta de papéis, coberto por toda a sorte de porcarias... escondido!

Passaram-se alguns momentos antes que Markham conseguisse falar. Seus olhos iam de Bliss para o sapato e deste para aquele; finalmente se detiveram em Vance.

— Creio que isso encerra o assunto. — Sua voz demonstrava resolução. — Não tenho outra alternativa senão...

Bliss se pôs de pé e correu na direção do sargento; o olhar hipnotizado não se despregava do sapato.

— O que é isso? — exclamou. — O que tem esse sapato a ver com a morte de Kyle? — Percebeu o sangue. — Oh, Deus do céu! — murmurou.

Vance pôs a mão no ombro do homem.

— O sargento Heath encontrou pegadas aqui, doutor. Foram produzidas por um de seus sapatos de tênis...

— Como é possível? — Os olhos fascinados de Bliss continuavam fixados na sola ensangüentada. — Deixei esses sapatos em meu quarto, lá em cima, à noite passada, e desci esta manhã com chinelos... Há algo diabólico acontecendo nesta casa.

— Sim, algo diabólico!... Algo incrivelmente diabólico... Pode ficar tranqüilo, Dr. Bliss, que vou verificar o que é...

— Desculpe-me, Vance, — a voz séria de Markham soou agourentamente — sei que você não acredita que o Dr. Bliss seja o culpado. Mas tenho uma obrigação a cumprir. Se não tomar qualquer providência em face das provas estarei traindo o povo que me elegeu. Além do mais, você poderá estar errado. (Markham pronunciou estas palavras com a generosidade de um velho amigo). De qualquer modo o meu dever é claro.

Acenou afirmativamente para Heath.

— Sargento, prenda o Dr. Bliss e acuse-o pelo assassinato de Benjamin H. Kyle.


VIII

 

No escritório

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 14:00 horas)

 

 

Eu já vira Vance em crucial desacordo com as opiniões de Markham, mas, quaisquer que tenham sido os seus sentimentos, sempre assumira uma atitude crítica e indiferente. Agora, porém, nem leviandade nem galhofa marcavam suas maneiras. Estava compenetrado e sério: uma ruga profunda surgira em sua testa e um ar de perplexa exasperação se instalara em seus frios olhos cinzentos. Comprimiu os lábios fortemente e enfiou as mãos profundamente nos bolsos do casaco. Esperei que ele protestasse vigorosamente contra a ação de Markham, mas Vance permaneceu em silêncio, tendo eu me apercebido de que se defrontava naquele momento com um dos problemas mais difíceis e estranhos de sua carreira.

Seus olhos se afastaram de Bliss para as costas imóveis de Hani, onde ficaram. Mas eram olhos que não viam — olhos que se voltavam para dentro, como se à procura de algum meio de contrabater a medida drástica em vias de ser tomada contra o grande egiptólogo.

Heath, ao contrário, parecia deliciado. Um sorriso de satisfação se alargara em seu rosto duro à ordem de Markham e, sem sair da frente de Bliss, chamou estridentemente pela agourenta figura do detetive no patamar da escada.

— Ei, Hennessey! Diga a Snitkin que telefone para a 8ª Delegacia para que mandem um tintureiro... Depois vá ao encontro de Emery e traga-o até aqui.

Hennessey desapareceu, enquanto Heath, permanecia fixando Bliss como um gato, como se esperasse que o doutor tentasse uma investida pela liberdade. Se a situação não fosse tão trágica a atitude do sargento teria parecido humorística.

— Não há necessidade de identificar e tomar as impressões digitais do doutor na delegacia — avisou Markham. — Mande-o diretamente para a estação central. Eu assumo a responsabilidade.

— Para mim está ótimo, senhor. — O sargento parecia grandemente satisfeito. — Mais tarde eu gostarei de conversar pessoalmente com este menino.

Bliss, passada a surpresa, se recompusera. Estava sentado ereto, a cabeça ligeiramente lançada para trás, olhando desafiadoramente através das janelas traseiras. Não havia covardia ou temor em sua atitude. Confrontado com o inevitável o doutor tinha, aparentemente, decidido aceitar sua sorte com estóica intrepidez. Eu não podia deixar de admirar a fortaleza do homem em uma situação extrema.

Scarlett permanecia como um homem paralisado, a boca pendendo parcialmente aberta, os olhos fixos em seu empregador com uma espécie de inacreditável horror. De todas as pessoas que se encontravam na sala, Hani era o menos perturbado; nem mesmo se voltara de sua elevada contemplação de Teti-shiret.

Vance, após alguns momentos, deixou cair o queixo sobre o peito e sua ruga de perplexidade se aprofundou. Em seguida,, como se acionado por súbito impulso, voltou-se e se dirigiu até o armário da extremidade. Permaneceu absorto, reclinado sobre a estátua de Anúbis. Não tardou, porém, que sua cabeça se deslocasse para cima e para baixo, para um lado e para outro, enquanto examinava várias partes do armário e sua cortina parcialmente aberta.

Dentro em breve voltava até Heath.

— Sargento, deixe-me olhar novamente aquele sapato. — Sua voz era baixa e demonstrava esforço.

Heath, sem descuidar de sua vigilância, meteu a mão no bolso, dele retirando o sapato. Vance pegou-o e, novamente ajustando o monóculo, examinou-lhe a sola. Em seguida devolveu o sapato para o sargento.

— Casualmente — disse ele — o doutor tem mais do que um pé... Onde está o outro sapato?

— Não o procurei — explodiu Heath. — Este era o bastante para mim. É o pé direito... o mesmo que produziu as pegadas.

— É verdade. — A maneira arrastada de Vance me fez saber que o seu cérebro estava mais à vontade. — Ainda assim eu gostaria de saber onde está o outro sapato.

— Eu o encontrarei... não se preocupe, senhor — Heath falou com desprezo e certeza. — Tenho uma pequena investigação a fazer tão logo tenha o doutor seguramente registrado na estação central.

— Procedimento policial típico — murmurou Vance. — Registre o homem primeiro e investigue depois. Muito boa prática.

Markham agitou-se com este comentário.

— Parece-me, Vance, — observou ele com a dignidade ferida — que a investigação já conduziu a algo razoavelmente definitivo. O que mais viermos a achar será apenas sob a forma de provas suplementares.

— Oh, e essa agora? Que engraçada! — Vance sorriu sarcasticamente. — Noto que você está se entregando à previsão dos fatos. Por acaso você consulta uma bola de cristal nas horas vagas?... Eu não sou aquilo a que chamam de clarividente, mas, velho Markham, posso ler o futuro melhor do que você. Asseguro-lhe que quando esta investigação for continuada não haverá provas suplementares contra o Dr. Bliss. Na verdade você ficará surpreso com o que vai ser revelado.

Vance chegou mais para perto do procurador distrital e deixou de lado o seu tom de escárnio.

— Você não percebe, Markham, que está fazendo o jogo do assassino? A pessoa que matou Kyle planejou tudo para que você agisse exatamente da forma como está agindo... Além disso, como já disse, jamais será conseguida uma condenação com as ilógicas provas de que vocês dispõem.

— Pode ser que eu chegue muito perto disso — retorquiu Markham. — De qualquer modo, meu dever é claro.

Tenho que correr um risco na busca da condenação... Mas Vance, por uma vez, creio que você permitiu que suas teorias negligenciassem um fato simples e óbvio.

Antes que Vance pudesse responder Hennessey e Emery entraram na sala.

— Aqui, rapazes — comandou o sargento. — Levem este pássaro lá em cima para que ponha alguma roupa e tragam-no de novo cá para baixo. Andem ligeiro.

Bliss saiu entre os dois detetives. Markham voltou-se para Scarlett.

— É melhor que o senhor espere na sala de visitas. Desejo interrogar a todos e creio que o senhor nos poderá dar algumas das informações que desejamos... Leve Hani junto.

— Estou pronto a fazer o que puder. — A voz de Scarlett demonstrava medo. — Mas o senhor está cometendo um engano terrível...

— Aí está um ponto que esclarecerei por mim mesmo — interrompeu Markham com frieza. — Agora tenha a bondade de aguardar na sala de visitas.

Scarlett e Hani atravessaram o museu lentamente e transpuseram a grande porta de aço.

Vance se dirigira até à frente da escada em espiral e se pôs a caminhar para cá e para lá com controlada ansiedade. Uma atmosfera tensa se estabelecera sobre o museu. Ninguém falava. Heath examinava a estátua de Sakhmet, com forçada curiosidade. Markham caíra em um estado de solene abstração.

Poucos minutos mais tarde Hennessey e Emery voltaram com o Dr. Bliss envergando roupa de sair. Mal tinham atingido a parte de trás do museu quando Snitkin enfiou a cabeça pela porta da frente e avisou: — O tintureiro está aí, sargento.

Bliss se voltou imediatamente e os dois detetives, atentos, acompanharam-lhe o gesto. Os três homens mal haviam dado alguns passos quando a voz de Vance estalou como um chicote.

— Parem! — Vance estava olhando para Markham. — Você não pode fazer isso! A coisa é uma farsa. Você está fazendo um asno de si mesmo.

Nunca eu vira Vance tão exaltado — ele estava completamente diferente de sua usual frieza — e Markham, notada-mente, sentiu-se abalado.

— Dêem-me dez minutos — apressou-se a continuar Vance. — Há algo que desejo saber — uma experiência que quero fazer. Então, se vocês não ficarem satisfeitos, podem levar a cabo essa prisão imbecil.

O rosto de Heath ficou vermelho de cólera.

— Olhe aqui, Sr. Markham — protestou ele. — Temos as provas...

— Um minuto, sargento. — Markham levantou a mão. obviamente ficara impressionado pela seriedade fora do comum de Vance. — Dez minutos não vão fazer qualquer diferença material. E se o Sr. Vance dispõe de alguma prova que nós desconhecemos, poderemos muito bem vir a conhecê-la agora. — Voltou-se bruscamente para Vance. — O que você tem em mente? Estou disposto a lhe conceder os dez minutos... Sua solicitação tem alguma coisa que ver com o que você encontrou em cima do armário e guardou no bolso?

— Oh, muito. — Vance, novamente, assumira seu ar fanfarrão. — E muito obrigado pela consideração... Sugiro, entretanto, que esses dois marmanjos conduzam o doutor pela porta da frente e o mantenham lá, à espera de instruções posteriores.

Markham, após uma breve hesitação, fez sinal com a cabeça para Heath, que deu a Hennessey e Emery a necessária ordem.

Quando ficamos sós, Vance se voltou para a escada em espiral.

— In primis — disse ele, quase alegremente — desejo de todo o coração fazer um exame superficial do escritório do doutor. Tenho o pressentimento de que lá encontraremos algo do mais fascinante interesse.

Vance já se encontrava a meio caminho nas escadas, com Markham, Heath e eu em seus calcanhares.

O escritório era uma peça espaçosa, com cerca de sete metros quadrados. Tinha na parte de trás duas janelas grandes e, no lado leste, uma menor, que dava para um pátio pequeno. Em torno das paredes viam-se algumas estantes fechadas e maciças; arrumadas nos cantos, pilhas de panfletos e de pastas de cartolina. Ao longo da parede onde se encontrava a porta que conduzia ao saguão, estendia-se um longo diva. Entre as duas janelas da parte de trás uma mesa grande, de mogno, com a parte superior plana, e, em frente a esta, uma cadeira giratória almofadada. Havia outras cadeiras em torno da mesa — testemunhas da conferência que ali se realizara na noite anterior.

Era uma peça arrumada, onde se destacava a notável limpeza em tudo o que continha. Mesmo os papéis e os livros em cima da mesa estavam cuidadosamente arrumados, atestando a natureza meticulosa de Bliss. A única coisa desarranjada no escritório era o lugar onde Heath havia despejado o conteúdo da cesta de papéis, na busca do sapato de tênis. As cortinas das janelas traseiras estavam levantadas e o sol da tarde inundava a peça.

Vance parou por algum tempo logo que transpôs a porta, olhando vagarosamente a sua volta. Seus olhos se detiveram por um momento na disposição das cadeiras, mas mais especialmente, em minha opinião, na cadeira giratória do doutor, que permanecia afastada da mesa alguns pés. Vance observou os painéis almofadados da porta e deixou que os seus olhos se detivessem na cortina descida da janela lateral. Após algum tempo foi até à janela e levantou a cortina. A janela estava fechada.

— Bastante estranho — comentou ele. — Um dia tórrido como este e a janela fechada. Tenha isso em mente, Markham... Observe que é claro, há uma janela oposta na casa vizinha.

— Que possível significação pode ter este fato? — perguntou Markham, de mau humor.

— Não tenho a mais remota idéia... A não ser — acrescentou Vance de maneira caprichosa — que algo se tenha passado aqui que o ocupante — ou ocupantes — deste escritório não queria que os vizinhos presenciassem. As árvores do quintal impedem completamente qualquer olhar indiscreto através das janelas de trás.

— Oba! Isto parece que marca um ponto a nosso favor — rejubilou-se Heath. — O doutor fecha a janela e baixa a cortina lateral a fim de que ninguém o veja entrar e sair do museu ou esconder o sapato.

Vance concordou com a cabeça.

— Seu raciocínio, sargento, vai muito bem até aqui. Mas vamos levar a equação até mais uma casa decimal. Por que, por exemplo, o seu culpado doutor não abre a janela e levanta as cortinas depois de realizado o sangrento feito? Por que deverá ele deixar mais um indício óbvio indicando sua culpa?

— Sujeitos que cometem crimes, Sr. Vance, — argumentou o sargento obstinadamente — não pensam em tudo.

— O que há com este crime — retrucou Vance calmamente — é que o criminoso pensou demasiadamente nos detalhes. Ele pecou pela prodigalidade, por assim dizer.

Vance se aproximou da mesa. Em uma das extremidades do móvel via-se um colarinho duplo, engomado, com uma gravata azul-marinho.

— Prestem atenção — advertiu Vance. — Aqui estão o colarinho e a gravata que o Dr. Bliss removeu ontem à noite durante a conferência. Qualquer pessoa poderia tê-los apanhado, não?

— Você já fez esta mesma observação anteriormente. — O tom de voz de Markham traía um toque de aborrecido sarcasmo. — Você nos trouxe até aqui para nos mostrar essa gravata? Scarlett já nos havia dito que ela se encontrava aqui. Desculpe-me, Vance, se eu confessar que sua descoberta não me impressionou.

— Não, não os trouxe até aqui para exibir a gravata do doutor. — Vance falou com calma segurança. — Apenas citei a gravata en passant.

Espalhou os papéis despejados da cesta, para cá e para lá, com o pé.

— Estou bastante ansioso por saber onde está o outro tênis do doutor. Tenho um pressentimento de que o local onde se encontra nos poderá revelar algo.

— Bem, na cesta não estava — declarou Heath. — Se estivesse eu o teria encontrado.

— Ah! Mas, sargento, por que não estava na cesta? Eis aí um ponto digno de consideração, sabe?

— Talvez não existisse sangue nele. Se assim fosse não haveria razão em escondê-lo.

— Mas, meu Deus! Parece-me que o inocente pé esquerdo está ainda mais bem escondido do que o incriminatório pé direito. (Durante a discussão Vance tinha realizado uma busca razoavelmente completa de todo o escritório, à procura do sapato de tênis desaparecido). — Por certo não se encontra aqui.

Markham, pela primeira vez desde que deixáramos o museu, revelou sinais de interesse.

— Percebo o seu ponto, Vance — concedeu ele relutantemente. — O sapato revelador estava escondido aqui no escritório enquanto o outro desapareceu... Admito ser um fato bastante estranho. Qual é a sua explicação?

— Oh, espere um momento! Vamos primeiro localizar o sapato antes de nos entregarmos a especulações... — Vance em seguida se dirigiu a Heath. — Sargento, se o senhor pedisse a Brush que o acompanhasse até o quarto do Dr. Bliss, estou bastante inclinado a acreditar que o senhor encontraria lá o sapato que está faltando. Lembre-se de que o doutor disse que estava usando seus tênis ontem à noite e que desceu esta manhã com suas chinelas.

— Ahn! — Heath não apreciou a sugestão. Pôs-se a encarar Vance com um olhar intenso e calculado. Logo em seguida mudou de idéias. Dando de ombros em capitulação saiu do saguão rapidamente e pudemos ouvi-lo chamar pelo mordomo pelas escadas dos fundos.

— Se p sargento encontrar o sapato lá em cima — observou Vance para Markham — será isso uma prova razoavelmente conclusiva de que o doutor não usou sapatos de tênis hoje pela manhã, pois sabemos que ele não voltou para o quarto depois de descer para seu escritório antes do café.

Markham parecia perplexo.

— Então quem teria trazido o outro pé do sapato hoje pela manhã? E como foi ele parar na cesta de papéis? E como veio a ficar manchado de sangue?... Certamente o criminoso usou o sapato que Heath encontrou aqui...

— Oh, sim. Quanto a isso não pode haver dúvida. — Vance balançou a cabeça gravemente. — A minha teoria é que o criminoso usou apenas um dos sapatos, tendo deixado o outro lá em cima.

Markham estalou a língua aborrecido.

— Esta teoria não faz sentido.

— Desculpe-me, Markham, se discordo de você — tornou Vance suavemente. — Mas creio que ela faz muito mais sentido do que os indícios com que vocês tão confiantemente contam para condenar o doutor.

Heath entrou na sala atabalhoadamente, com o tênis do pé esquerdo na mão. Tinha um ar apalermado, mas seus olhos brilhavam de excitação.

— Ele estava lá, sim — anunciou. — Ao pé da cama... Mas como teria ido parar lá?

— Talvez — sugeriu suavemente Vance — o doutor o tenha usado lá em cima à noite passada, como ele nos disse.

— Então como, diabo, o outro sapato veio bater aqui?

— O sargento neste momento empunhava os dois pés de tênis, um em cada mão, olhando-os com odiosa surpresa.

— Se soubermos quem trouxe o outro tênis para baixo hoje pela manhã — tornou Vance — saberemos quem matou Kyle. — Em seguida acrescentou: — Não que isso nos traga alguma vantagem particular no presente momento.

Markham mantinha-se olhando para o chão carrancudo e fumando furiosamente. O episódio do sapato o havia desconcertado. Nesse momento olhou para cima e fez um gesto de impaciência.

— Você está transformando esse caso em uma montanha, Vance — disse ele agressivamente. — Numerosas explicações simples se apresentam espontaneamente. A mais plausível dentre elas parece ser a que o Dr. Bliss, quando desceu hoje pela manhã, apanhou seus sapatos de tênis para tê-los a mão em seu escritório e, em seu nervosismo — ou apenas acidentalmente — esqueceu-se de um, ou mesmo deixou de apanhar ambos, fato de que não se apercebeu até chegar aqui...

— E então — continuou Vance com um sorriso amarelo — tirou um dos pés de chinelo, calçou o sapato de tênis, assassinou Kyle, tornou a trocar o sapato voltando a usar a chinela de que já se desfizera, e escondeu o sapato de tênis na cesta de papéis.

— É possível.

Vance suspirou audivelmente.

— Sim, possível é. Suponho que qualquer coisa seja possível neste mundo ilógico. Mas, realmente, Markham, não posso participar entusiasticamente de sua tocante teoria de haver o doutor apanhado apenas um sapato ao invés de dois e não se ter apercebido da diferença. Ele é por demais ordenado e metódico... consciente em demasia dos detalhes.

— Vamos então supor — insistiu Markham — que o doutor realmente estivesse com um pé de tênis e o outro de chinelos quando veio para o escritório hoje pela manhã. Scarlett nos disse que os seus pés o incomodavam um bocado.

— Se essa hipótese for correta — contrabateu Vance — como o outro pé de chinelos veio ter aqui embaixo? Seria muito difícil que o doutor o tivesse posto no bolso e saísse com ele por aí.

— Brush, talvez...

Heath havia acompanhado a discussão atentamente e entrou em ação nesse momento.

— Podemos verificar esse ponto imediatamente, Sr. Vance — disse ele, já se encaminhando rapidamente para a porta e chamando o mordomo.

No entanto nenhum auxílio veio da parte de Brush, que declarou que nem ele nem qualquer outro membro da casa se havia aproximado do escritório depois que Bliss lá entrara às oito horas, com a exceção do momento em que ele levara o café do doutor. Quando lhe indagaram que sapatos o Dr. Bliss estava usando, Brush respondeu que não prestara atenção.

Depois que Brush saiu Vance deu de ombros.

— Não vamos ficar excitados sobre o mistério da separação dos sapatos de tênis. Minha principal razão para atrair vocês até o escritório foi examinar os resíduos do café do doutor.

Markham perceptivelmente ia falar e seus olhos se estreitaram.

— Bons Céus! Você não acredita...? Confesso que também pensei nisso. Mas com todas aquelas provas...

— Pensou em que, senhor? — Heath estava visivelmente exasperado e havia irritação em sua voz.

— Ambos, o Sr. Markham e eu, — explicou Vance, aplacadoramente — notamos que o Dr. Bliss parecia estonteado quando apareceu esta manhã em resposta a minhas continuadas batidas à porta.

— Ele estava dormindo. Não foi o que nos disse?

— Certo. E aí está por que estou tão grandemente interessado em seu café matinal.

Vance encaminhou-se para a extremidade da mesa sobre a qual se via uma pequena bandeja de prata contendo um prato com torradas, uma xícara e uma molheira. A torrada não havia sido tocada, mas a xícara estava praticamente vazia. Somente alguns detritos endurecidos do que fora evidentemente café remanesciam no fundo. Vance se inclinou e olhou para dentro da xícara. Em seguida levou-a ao nariz.

— Nota-se aqui um odor ligeiramente ácido — observou ele.

Vance tocou com a ponta do dedo no interior da xícara e levou-o à língua.

— Sim!... Exatamente o que pensei — concluiu ele, baixando a xícara. — Ópio. Ópio em pó... do tipo comumente usado no Egito. As outras formas e derivados de ópio — tais como o láudano, a morfina, a heroína, a tebaína e a codeína — não são fáceis de serem obtidas aqui.

Heath havia-se aproximado e permanecia olhando belicosamente para dentro da xícara.

— Bem, suponhamos que houvesse ópio dentro do café — resmungou ele. — O que significa?

— Ah, quem sabe? — Vance estava acendendo um de seus cigarros, o olhar perdido no espaço. — Isto poderia, é claro, responder pela longa sesta do doutor hoje pela manhã e por sua situação confusa quando atendeu a minha batida. Poderá também significar que alguém narcotizou o café com alguma finalidade. O fato é, sargento, que o ópio no café do doutor pode significar várias coisas. No presente momento não posso expressar qualquer opinião. Estou unicamente chamando a atenção do Sr. Markham para a droga... Posso dizer, no entanto, que tão logo vi o doutor hoje pela manhã e observei a maneira pela qual agia, desconfiei que deveria haver indícios de um opiato no escritório. Além disso, sendo eu bastante familiarizado com as condições do Egito, concluí que deveria tratar-se de ópio em pó — opii pulvis. O ópio provoca muita sede; aí está por que não me surpreendi absolutamente quando o doutor pediu um copo com água. — Olhou para Markham. — Esta descoberta de ópio afeta a situação legal do doutor?

— Sem dúvida é um ponto forte a seu favor — opinou Markham após alguns instantes.

Era mais do que aparente que Markham estava profundamente perplexo. No entanto, relutava em afastar-se de sua crença na culpabilidade de Bliss; assim, quando tornou a falar, evidenciou que estava lutando desesperadamente contra a nova descoberta de Vance.

— Percebo que a presença do ópio deve ser explicada antes que uma condenação possa ser obtida. Por outro lado, porém, não sabemos qual a quantidade de ópio que o doutor ingeriu, nem quando o fez. Ele poderá ter tomado o café depois do crime — temos apenas sua palavra de que o café foi tomado às nove horas... Não, certamente que isso não afeta a questão fundamental — embora levante um ponto muito importante. Entretanto, a evidência contra o Dr. Bliss é demasiado forte para ser contrabalançada por este único ponto a seu favor. Certamente, Vance, é preciso que você aceite que a mera presença de ópio naquela xícara não é uma prova conclusiva de que ele tenha estado dormindo desde as nove horas até o momento em que você bateu à porta do escritório.

— O promotor público perfeito — suspirou Vance. — Um hábil advogado de defesa, no entanto, poderá plantar muitas sementes de dúvida fecundas na denominada consciência dos jurados, não?

— Certo. — A admissão veio após uns momentos de reflexão. — Entretanto, não podemos desprezar o fato de que Bliss foi, praticamente, a única pessoa que teve condições de matar Kyle. Com a exceção de Hani, todas as demais pessoas da casa se encontravam ausentes. Hani, para mim, não passa de um inofensivo fanático que acredita nos poderes sobrenaturais das divindades egípcias. Tanto quanto eu saiba Bliss era a única pessoa que se encontrava realmente a mão quando Kyle foi assassinado.

Vance permaneceu estudando Markham durante alguns segundos. Em seguida disse: — Suponhamos que não tenha sido necessário para o assassino estar em algum lugar próximo do museu quando Kyle foi morto com a estátua Sakhmet.

Markham tirou o charuto vagarosamente da boca.

— O que você quer dizer? Como poderia a estátua ter sido empunhada por alguma pessoa ausente? Parece-me que o que você está dizendo não faz sentido.

— Talvez faça. — Vance parecia misterioso e sério. — Além disso, Markham, encontrei algo em cima daquele armário lá do fim que me faz pensar que o crime foi planejado com diabólica habilidade... Como eu lhe disse, desejo fazer uma experiência. Depois de fazê-la, a linha de ação a ser seguida repousará inteiramente em suas próprias convicções. Há alguma coisa de sutil e de terrível neste crime. Todas suas aparências exteriores são enganadoras — e o são deliberadamente.

— Quanto tempo demorará essa experiência? — Markham estava patentemente impressionado pelo tom de voz de Vance.

— Somente alguns minutos...

Heath apanhara na cesta de papéis uma folha de jornal, na qual estava enrolando cuidadosamente a xícara.

— Isto aqui vai para o nosso laboratorista — explicou ele mal-humorado. — Não duvido de sua conclusão, Sr. Vance, mas quero a análise de um especialista.

— O senhor está certo, sargento.

Naquele momento o olhar de Vance se apercebeu de uma pequena bandeja de bronze sobre a mesa, contendo alguns lápis amarelos e uma caneta tinteiro. Inclinando-se naturalmente, Vance apanhou os lápis, examinou-os e tornou a colocá-los onde estavam. Markham, apesar de ter notado a ação de Vance, se absteve de fazer qualquer pergunta.

— A experiência terá que ser feita no museu — anunciou Vance — e para ela será necessário um par de almofadas do sofá.

Encaminhou-se até o diva e de lá voltou com duas almofadas grandes debaixo do braço. Em seguida foi até à porta de aço e a manteve aberta.

Markham, Heath e eu passamos e descemos as escadas em espiral. Vance seguiu-nos.

 


IX

 

Vance faz uma experiência

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 14:15 horas)

 

 

Vance caminhou diretamente até o último armário, ante o qual tinha sido achado o cadáver de Kyle, e colocou no chão as duas almofadas. Em seguida olhou mais uma vez especulativamente para a borda superior do armário.

— Creio... — murmurou ele. — Com a breca! Estou quase com medo de prosseguir. Se eu estiver errado tudo isso desabará por inteiro em cima da minha cabeça...

— Vamos, vamos! — Markham estava ficando impaciente. — Os solilóquios estão fora de moda, Vance. Se você tem alguma coisa a nos mostrar, vamos adiante.

— Você tem razão.

Vance foi até o cinzeiro e resolutamente apagou nele a cigarro. Voltando até o armário fez sinal para Markham e para Heath.

— À guisa de prelúdio — começou ele — desejo chamar-lhes a atenção para esta cortina. Observem que o anel metálico de sua extremidade saiu da haste e se encontra pendurado.

Percebi, pela primeira vez, que o pequeno anel da extremidade da cortina não se achava preso na haste e que a borda esquerda da cortina se soltara correspondentemente.

— Observem também — continuou Vance — que a cortina deste armário se encontra apenas parcialmente cerrada. É como se alguém tivesse começado a descerrá-la e, por alguma razão, tivesse parado. Quando, esta manhã, notei a cortina parcialmente aberta o fato me pareceu um pouco estranho, pois, obviamente, a cortina deveria encontrar-se ou completamente fechada ou completamente aberta. Podemos presumir que a cortina se encontrava fechada quando Kyle chegou — temos a palavra de Hani de que ele havia fechado a cortina deste particular armário, devido à desarrumação de seu conteúdo; também o Dr. Bliss, pelo telefone, mencionou a Kyle que os novos tesouros se encontravam no armário dá extremidade — o armário com a cortina fechada... Ora, para abrir a cortina não há necessidade de fazer-se mais do que um simples movimento com o braço — isto é, pegar a borda esquerda da cortina e puxá-la para a direita: o anel de latão deveria correr suavemente sobre a haste de metal... Mas, o que foi que encontramos? Encontramos a cortina aberta pela metade! Inquestionavelmente, Kyle não teria aberto a cortina pelo meio para examinar as peças dentro do armário. Assim, concluí que alguma coisa deveria ter interrompido o curso do anel a meio caminho e que Kyle morreu antes que pudesse ter aberto completamente a cortina. É o que penso, Markham; concorda comigo?

— Prossiga — Markham ficara interessado. Heath, também, observava Vance com extrema atenção.

— Então prestem atenção. Kyle foi encontrado morto diretamente à frente deste armário. Ele foi morto como resultado de ter sido atingido na cabeça pela pesada estátua de diorita de Sakhmet. Esta estátua, como sabemos, foi colocada em cima do armário por Hani. Quando observei que a cortina do armário havia sido apenas parcialmente aberta e, em seguida, descobri que o primeiro anel de latão da cortina — o anel da extremidade esquerda — não estava na haste, comecei a especular... especialmente por estar familiarizado com os hábitos metódicos do Dr. Bliss. Se aquele anel estivesse fora da haste ontem à noite, quando o Dr. Bliss esteve no museu, podemos estar certos de que ele o teria visto...

— Você está sugerindo, Vance, — perguntou Markham que o anel foi deliberadamente retirado da haste hoje pela manhã — e com uma finalidade?

— Sim! Em algum momento entre o telefonema do Dr. Bliss para Kyle ontem à noite e a chegada deste último esta manhã, creio que alguém removeu aquele anel da haste — e, como você disse, com uma finalidade!

— Que finalidade? — quis saber Heath. Seu tom de voz era agressivo e antagônico.

— Isso ainda tem que ser apurado, sargento. — A voz de Vance não mudou de modulação. — Eu admito que tenha uma teoria muito definida a esse respeito. Na verdade, tenho esta teoria desde o momento em que vi a posição em que se encontrava caído o corpo de Kyle e soube que Hani havia colocado a estátua no topo do armário. A cortina parcialmente aberta e o anel de latão desenfiado dão base a esta teoria.

— Creio compreender o que você tem em mente, Vance.

— Markham balançou a cabeça afirmativamente e devagar.

— Foi por isso que você examinou a parte de cima do armário e pediu a Hani que mostrasse exatamente onde ele havia colocado a estátua?

— Precisamente. E não apenas encontrei o que estava procurando, mas Hani confirmou minhas suspeitas quando apontou para o local onde havia colocado a estátua. O ponto se encontrava alguns centímetros para dentro da borda do armário. No entanto, havia também um arranhão profundo na" própria borda e um segundo contorno da base da estátua na poeira, mostrando que esta havia sido posta para a frente depois que Hani a colocara no lugar.

— Bem, o próprio Dr. Bliss admitiu que ele a movera na noite passada, antes de retirar-se — sugeriu Markham.

— Ele disse apenas que havia endireitado a estátua — replicou Vance. — Além disso, as duas impressões produzidas na poeira pela base da estátua são exatamente paralelas, de modo que o ajustamento a que o Dr. Bliss se referiu não pode ter sido o deslocamento da estátua 15 centímetros para a frente.

— Percebo o que quer dizer... Sua teoria considera que alguém deslocou a estátua para a própria borda do armário após o Dr. Bliss ter mexido nela. Não é uma hipótese descabida.

Heath que estivera ouvindo irritadamente, com os olhos semicerrados, subiu de repente a uma das cadeiras em frente ao armário e examinou a moldura da borda.

— Quero ver isto de perto — resmungou ele. Não tardou a descer e sacudir a cabeça vigorosamente para Markham. — Está certo, é como o Sr. Vance diz... Mas o que todo este palavrório tem a ver com o caso?

— É exatamente o que estou procurando certificar-me, sargento. — Vance sorriu. — Pode ser que não tenha nada com isso. Mas, por outro lado...

Vance se inclinou e, com considerável esforço ergueu a estátua de Sakhmet. (Como já disse, a estátua tinha cerca de 60 cm. de altura. Era solidamente esculpida e se apoiava em uma base pesada e grossa. Eu mesmo levantei-a mais tarde para sentir-lhe o peso, o qual, creio, devia ser de uns quinze quilos.) Vance, subindo em uma das cadeiras, colocou a estátua com toda a precisão em cima do armário, bem sobre a moldura da borda. Tendo cuidadosamente recolocado sua base sobre o desenho produzido na poeira, fechou a cortina. Em seguida pegou com a mão esquerda o anel que se encontrava solto, levou a borda da cortina para trás até que o anel atingisse a margem esquerda da estátua, inclinou esta para a direita e colocou o anel exatamente por baixo da borda exterior da sua base.

Em seguida Vance mexeu em um dos bolsos do casaco e de lá retirou o objeto que encontrara em cima do armário. Mostrou-nos o que era.

— O que descobri, Markham, — explicou ele — foi um pedaço de lápis, com três polegadas, cuidadosamente cortado e aparado; presumo ter desempenhado as vezes da haste vertical de alçapão feito em casa, como nos apresenta a figura 4 do manual de alçapões... Vamos ver se funciona.

Inclinou a estátua para a frente e colocou o pedaço de lápis sob a borda traseira de sua base. Retirou as mãos e a estátua permaneceu inclinada em nossa direção, perigosamente equilibrada. Durante um momento parecia prestes a cair espontaneamente, mas o lápis preparado era, aparentemente, do exato tamanho necessário para inclinar a estátua para a frente sem desequilibrá-la. v — Até aqui minha teoria funciona. — Vance desceu da cadeira. — Agora prossigamos com a experiência.

Deslocou a cadeira para um lado e acomodou as duas almofadas no local exato onde estivera a cabeça de Kyle, aos pés de Anúbis. Em seguida se pôs novamente de pé e encarou o procurador distrital.

— Markham, — disse, sombriamente — estou-lhe apresentando uma possibilidade. Observe a posição daquela cortina; considere a posição do anel de latão solto — sob a borda da estátua; observe a atitude inclinada de Nossa Senhora da Vingança; imagine agora a chegada de Kyle esta manhã. Ele havia sido informado de que os novos tesouros se encontravam no armário da extremidade, com a cortina cerrada. Ele avisou Brush que não incomodasse o Dr. Bliss porque iria até o museu para examinar o que continha o recente carregamento.

Vance fez uma pausa e, deliberadamente, acendeu um cigarro. Pelos seus movimentos lentos e preguiçosos percebi que os seus nervos estavam tensos.

— Não estou sugerindo — continuou ele — que Kyle tenha encontrado seu fim como resultado de uma armadilha mortal. De fato nem mesmo sei se a armadilha que reconstituí irá dar certo. No entanto, estou aventando a teoria como uma possibilidade, pois se o advogado de defesa puder provar que Kyle poderia ter sido assassinado por alguma outra pessoa que não o Dr. Bliss — isto é, por uma pessoa ausente —, então a acusação de vocês terá sofrido um decidido contratempo...

Vance se aproximou da estátua de Anúbis. Erguendo o canto mais baixo da parte esquerda da cortina colocou-se junto da parede oeste do museu.

— Vamos admitir que Kyle, após tomar posição à frente deste armário tivesse erguido a mão e puxado a cortina. Bem, o que teria acontecido — desde que a armadilha mortal tivesse sido realmente preparada?

Deu na cortina um puxão decidido para a esquerda. A cortina correu na haste até esbarrar e ficar presa a meio caminho do anel de latão que havia sido inserido sob a base de Sakhmet. O puxão deslocou a estátua de sua posição de perigoso equilíbrio. Ela se inclinou para a frente e caiu com um terrível estrondo sobre as almofadas do sofá, no ponto exato onde estivera a cabeça de Kyle.

Houve um silêncio que durou alguns momentos. Markham continuava fumando, com os olhos fixos na estátua caída. Estava carrancudo e pensativo. Heath, no entanto, ficara francamente atônito. Aparentemente não havia considerado a possibilidade de uma armadilha mortal e a experiência de Vance prejudicara, em grande parte, toda sua teoria. Olhava para a estátua de Sakhmet com uma surpresa perplexa, o charuto fortemente preso nos dentes.

Vance foi o primeiro a falar.

— Como vêem, parece que a experiência deu certo. Realmente, creio haver demonstrado a possibilidade de que Kyle tenha sido morto enquanto se encontrava sozinho no museu... Kyle era de estatura bastante baixa e havia distância suficiente entre a parte de cima do armário e sua cabeça para que a estátua pudesse ter adquirido o momentum fatal. A profundidade do armário é de 60 cm. apenas, de modo que seria inevitável que a estátua atingisse Kyle na cabeça, desde que estivesse parado à sua frente. Obviamente, ele deveria estar parado à frente do armário quando puxou a cortina. O peso da estátua é suficiente para ter causado aquela terrível fratura de crânio e sua posição, atravessada na parte de trás da cabeça de Kyle, é perfeitamente coerente com a idéia de ter ele sido morto por uma armadilha cuidadosamente preparada.

Vance fez um ligeiro gesto de ênfase.

— Você deve admitir, Markham, que a demonstração que acabo de fazer torna plausível a culpa de qualquer pessoa que se encontrasse ausente e, conseqüentemente, remove um de seus mais fortes pontos contra o Dr. Bliss, isto é, proximidade e oportunidade... Além disso, este fato, tomado em conexão com a existência de ópio no café, dá-lhe um álibi convincente, ainda que não absoluto.

— Sim... — Markham falou com lentidão deliberada e meditativa. — Os indícios negativos que você descobriu tendem a contrabalançar os indícios diretos do escaravelho, do relatório financeiro e das pegadas de sangue. Não há dúvida a respeito de o doutor poder apresentar uma defesa forte...

— Haverá pelo menos uma dúvida razoável, como estão as coisas... não? — Vance sorriu. — Uma bela frase — sem significação, é claro, mas tipicamente legal. Como se a mente humana jamais fosse capaz de ser razoável!... E, Markham, não despreze o fato de que, se o doutor pretendesse unicamente eliminar Kyle com a estátua de Sakmet, os indícios da armadilha mortal não teriam sido presentes. Se o objetivo fosse somente liquidar Kyle, por que razão o lápis com a ponta aparada — no formato de uma haste de arapuca — estaria em cima do armário?

— Você está perfeitamente certo — admitiu Markham.

— Um hábil advogado de defesa pode transformar em ruínas a minha acusação contra o doutor.

— Considere ainda sua evidência direta por um momento. — Vance sentou-se e cruzou as pernas. — O alfinete com o escaravelho, que foi encontrado ao lado do corpo, pode ter sido levado por qualquer pessoa presente à conferência na noite passada e deliberadamente colocado ao lado do cadáver. Ou, se o doutor tivesse sido posto a dormir pelo ópio adicionado ao seu café, teria sido uma questão fácil para o assassino retirar o alfinete de cima da mesa hoje pela manhã — como sabem, a porta para o escritório nunca está fechada. E, o que seria mais simples do que pegar o relatório financeiro a essa mesma hora e colocá-lo na mão do morto?... Quanto às pegadas de sangue, qualquer pessoa da casa poderia ter apanhado o sapato de tênis no quarto do doutor, forjado as impressões no sangue e escondido o sapato na cesta de papéis, enquanto Bliss dormia sob a influência do opiato... Ainda mais: a janela fechada para o pátio; não indicará a janela fechada e com a cortina baixada que alguém no escritório não desejava que os vizinhos mais próximos vissem algo que estava ocorrendo?

Vance deu uma tragada vagarosa em seu cigarro, soltando uma longa espiral de fumaça.

— Não sou Demóstenes, Markham, mas defenderia o caso do Dr. Bliss em qualquer tribunal e garantir-lhe-ia uma absolvição.

Markham pusera-se a andar para lá e para cá, com as mãos nas costas.

— A presença dessa armadilha mortal e do ópio no café — concedeu ele afinal — lança no caso uma luz inteiramente plausível, a culpabilidade de qualquer outra pessoa. — Markham recomeçou a andar e olhou atentamente para Heath. — Qual é sua opinião, sargento?

Heath, obviamente, se encontrava em um dilema.

— Estou ficando maluco — confessou Heath após uma pausa. — Pensava que já tivéssemos o diabo do caso ensacado hermèticamente, e agora o Sr. Vance apresenta todas essas sutilezas e arranja uma saída para o doutor. — Olhou para Vance com ar beligerante. — Juro por Deus, Sr. Vance, deveria ser advogado. — Seu desprezo era devastador.

Markham não pôde evitar um sorriso, mas Vance sacudiu a cabeça tristemente e encarou o sargento com um ar exageradamente injuriado.

— Oh, sargento, há necessidade de insultos? — protestou Vance estranhamente. — Estou apenas procurando evitar que o Sr. Markham e o senhor façam papel de tolos. E o que recebo em troca? Dizem-me que deveria ser advogado! Que pena, ai de mim!

— Vamos pôr o cinismo de lado. — Markham estava demasiadamente preocupado para aderir à frívola atitude de Vance. — Você marcou o seu ponto e, ao fazê-lo, brindou-me com um problema sério e ponderável.

— Mesmo assim e apesar de tudo — insistiu Heath — há inúmeros indícios contra Bliss.

— É verdade, sargento. — Vance voltara a ficar pensativo. — Temo, porém, que esses indícios não sejam mantidos a um exame mais cerrado.

— Você acha e eu aceito — observou Markham — que os indícios foram plantados propositadamente; — que o verdadeiro criminoso planejou-os maliciosamente, de modo a apontarem para o Dr. Bliss.

— É uma tal técnica tão fora do comum? — indagou Vance. — Quantos criminosos têm tentado lançar suspeitas em alguma outra pessoa? A história criminal está cheia de casos de homens inocentes sendo condenados à base de indícios circunstanciais, não está? E, não será inteiramente possível que indícios enganadores, em tais casos, fossem deliberadamente plantados pelo verdadeiro criminoso?

— Mesmo assim — replicou Markham — não posso permitir, a este ponto do jogo, que sejam ignorados inteiramente os indícios que apontam na direção do Dr. Bliss. Devo ser capaz de provar um complot contra ele antes que possa inocentá-lo completamente.

— E a ordem de prisão?

Markham hesitava. Ele percebera, creio, a desesperança de sua acusação, agora que Vance desenterrara tantos elementos indiciais contraditórios.

— Claro que é impossível — concluiu ele — determinar neste momento a prisão do doutor, à vista dos fatores atenuantes que você trouxe à luz... Mas — acrescentou sombriamente — por certo que não vou ignorar por completo todos os indícios contra ele.

— E o que faz alguém em circunstâncias legalmente tão complicadas?

Markham permaneceu fumando durante um momento em preocupado silêncio.

— Vou manter Bliss sob cerrada observação — decidiu finalmente. Em seguida voltou-se para Heath. — Sargento, pode dizer a seus homens que soltem o Dr. Bliss. Tome, porém, as providências que se fizerem necessárias para que ele seja seguido de dia e de noite.

— Para mim está bem, senhor. — Heath começou a caminhar na direção das escadas da frente.

— Sargento, — chamou Markham — diga ao Dr. Bliss que não saia de casa até que eu tenha falado com ele.

Heath desapareceu para cumprir a missão.


X

 

O lápis amarelo

 

 


(Sexta-feira, 13 de julho — 14:30 horas)

 

 

Markham, vagarosamente, acendeu outro charuto, deixando-se cair sentado, pesadamente, em uma das cadeiras dobráveis próxima à arca incrustada e encarando Vance.

— A situação está começando a parecer séria e complexa —- comentou ele, com um suspiro de cansaço.

— Mais séria do que você pensa — retrucou Vance — e muito mais complexa... — Asseguro-lhe, Markham, que este crime é uma das tramas criminais mais surpreendentes e sutis com que você jamais se defrontou. Superficialmente parece simples e claro — a intenção foi mesmo que assim parecesse — e a sua primeira interpretação dos indícios foi exatamente aquilo com que o criminoso contava.

Markham observava Vance intensamente.

— Você tem alguma idéia de que trama foi essa? — Suas palavras eram mais uma assertiva do que uma pergunta.

— Ah, sim... sim. — Vance quase no mesmo instante tinha ficado alheado. — Uma idéia?... Sem dúvida. Mas não é o que você denominaria de um fulgor deslumbrante. Imediatamente suspeitei de uma trama e tudo o que foi encontrado posteriormente confirmou minha teoria. Mas, tenho apenas uma nebulosa idéia a respeito, e o objetivo preciso da trama está ainda completamente obscuro. No entanto, como sei que as indicações de superfície são deliberadamente enganadoras, há uma chance de chegarmos à verdade. Markham sentou-se agressivamente.

— O que tem você em mente?

— Oh, meu caro! Você me corteja de forma abominável.

— Vance sorriu com brandura. — Minha mente está nublada e obscurecida. Está envolta em neblina e garoa, névoa e vapor; está cirrosa e nublada, coberta por cúmulos e estratos; está cheia de novelos de lã, rabos de cavalos, rabos de gatos, fumo congelado e pingos de chuva. "Os elementos da natureza de fato se abatem sobre o obscurecido panorama"... Meu cérebro, realmente, está toldado...

— Poupe-me de seu vocabulário meteorológico. Lembre-se de que não passo de um ignorante procurador distrital. — O sarcasmo de Markham era proporcional à sua exasperação.

— Talvez, no entanto, você possa sugerir nosso próximo passo. Admito francamente que, a não ser o interrogatório dos membros da casa de Bliss, não vejo outro meio de resolver este problema. Assim é que, se Bliss não é o culpado, o crime foi obviamente cometido por alguém que não somente conhecia Intimamente a situação doméstica daqui como também tinha acesso à casa.

— Creio — sugeriu Vance — que devemos inicialmente nos familiarizar com as condições e as relações aqui existentes. Com isso teríamos algum equipamento, não? Por outro lado, isso poderia também indicar alguma linha fértil de inquirição.

— Vance se inclinou para a frente na cadeira. — Markham, a solução deste problema depende quase exclusivamente de que encontremos o motivo. Há sinistras ramificações até esse motivo. O assassinato de Kyle não foi um crime ordinário. Foi planejado com uma fineza e uma habilidade que tocam às raias do gênio. Somente um tremendo incentivo poderia tê-lo produzido. Há fanatismo por trás desse crime — uma poderosa e devastadora idée fixe, cruel e incrivelmente implacável. O crime ocorrido foi meramente uma preliminar para algo ainda mais diabólico — foi um meio para atingir um fim. O objetivo final era infinitamente mais terrível e mesquinho do que a súbita morte de Kyle... Um crime limpo e apaixonado pode por vezes ser justificado ou, pelo menos, atenuado. Neste caso, porém, o criminoso não se deteve com o assassinato: usou-o como meio para esmagar e arruinar alguma pessoa inocente...

— Admitindo que o que está dizendo seja verdadeiro — Markham se pôs de pé inquieto e se encostou nas prateleiras que continham os shawabtis — como poderemos conhecer as inter-relações do pessoal da casa sem que os interroguemos?

— Inquirindo o único homem que fica de fora com relação ao pessoal da casa.

— Scarlett?

Vance fez que sim com a cabeça.

— Sem dúvida ele sabe muito mais do que nos disse. Esteve com a expedição de Bliss durante dois anos, viveu no Egito e conhece a história da família... Por que não o ter aqui para uma breve causerie antes de interrogar os membros da casa? Há alguns pontos que eu gostaria de saber antes que a investigação prossiga.

Markham observava Vance atentamente. Não tardou a sacudir a cabeça para baixo e para cima, lentamente.

— Você tem algo em mente, Vance, e não se trata de nimbos, cúmulos, estratos ou cirros... Muito bem. Chamarei Scarlett e vamos interrogá-lo.

Nesse momento Heath tornou a entrar no museu.

— O Dr. Bliss foi para seu quarto, com ordens de ficar por lá — informou. — Todos os demais estão na sala de visitas, com Hennessey e Emery de olho nas coisas. Também já mandei o tintureiro embora e Snitkin está de guarda na porta da frente. — Raramente eu vira Heath tão desanimado.

— Como procedeu o Dr. Bliss quando o senhor determinou que fosse solto? — quis saber Vance.

— Parece que não estava ligando nem a uma coisa nem a outra — respondeu o sargento com uma entonação de desgosto. — Nem disse nada. Limitou-se a subir, de cabeça baixa, como atordoado... Pássaro curioso, se me perguntam...

— Os egiptólogos são pássaros curiosos em sua maior parte, sargento — observou Vance consoladoramente.

Markham começava novamente a impacientar-se. Logo se dirigiu a Heath.

— O Sr. Vance e eu decidimos ouvir o que o Sr. Scarlett nos tenha a dizer antes de prosseguir com a investigação. Quer pedir-lhe que venha até aqui?

O sargento abriu os braços e deixou-os cair em um gesto amplo de resignação. Em seguida retirou-se do museu, para voltar pouco depois com Scarlett a reboque.

Vance puxou várias cadeiras. Por sua maneira séria e deliberada percebi que encarava a reunião com Scarlett como de alta importância. Na ocasião eu não sabia do que lhe ia na cabeça, nem entendi por que escolhera Scarlett como sua principal fonte de informações. Antes que o dia terminasse, porém, tudo estava demasiado claro para mim. Com sutil sabedoria e precisão Vance tinha escolhido o único homem que poderia fornecer as informações necessárias para o esclarecimento da morte de Kyle. As coisas que Vance veio a saber através de Scarlett, naquela tarde, vieram a demonstrar-se fatores determinantes na solução que deu ao caso.

Sem qualquer preliminar, Vance informou Scarlett sobre a mudança de situação do Dr. Bliss.

— O Sr. Markham decidiu adiar a prisão do doutor. No momento os indícios são por demais conflitantes. Descobrimos várias coisas que, do ponto de vista legal, lançam séria dúvida sobre sua culpabilidade. O favo é, Scarlett, que chegamos à conclusão de que precisamos ir além nessa investigação antes que possamos fazer algum movimento definitivo.

Scarlett pareceu grandemente aliviado.

— Por Jó, Vance! Estou terrivelmente satisfeito com isso — exclamou ele com completa convicção. — A culpa do Dr. Bliss é inaceitável. Qual, possivelmente, poderia ter sido o motivo do homem? Kyle era seu benfeitor...

— Você tem alguma idéia sobre o assunto? — interrompeu Vance.

Scarlett abanou a cabeça enfaticamente.

— Não faço a mínima idéia. A coisa me atordoou. Não posso imaginar como pode ter acontecido.

— Sim... muito misterioso — murmurou Vance. — Temos que chegar ao assunto descobrindo o motivo... Aí está por que estamos apelando para você. Desejamos saber exatamente como são as coisas no interior da casa de Bliss. Você, sendo mais ou menos um estranho, poderá conduzir-nos até à verdade... Por exemplo, você mencionou uma relação íntima entre Kyle e o pai da Sra. Bliss. Conte-nos toda a história.

— É um tanto romântica, mas muito simples. — Scarlett interrompeu-se e sacou o cachimbo. Após acendê-lo, continuou: — Você conhece a história do velho Abercrombie, pai de Meryt. Ele foi para o Egito em 1885 e, no ano seguinte, tornou-se assistente de Grébault, quando Sir Gaston Maspero voltou ao território francês para reassumir sua cadeira no Colégio de França. Maspero manteve sua posição como chefe do Serviço de Antiguidades Egípcias no Cairo, até ser exonerado em 1914, quando foi eleito secretário permanente da Academia de Inscrições e Belas Letras em Paris. Abercrombie, então, substituiu Maspero como Diretor de Antiguidades no Museu do Cairo. Em 1898, entretanto, Abercrombie apaixonou-se por uma dama copta, com quem se casou. Meryt nasceu dois anos mais tarde, em 1900.

Scarlett parecia estar enfrentando alguma dificuldade com seu cachimbo e usou dois fósforos para tornar a acendê-lo.

— Kyle entrou no quadro quatro anos antes do nascimento de Meryt — prosseguiu ele. — Foi para o Egito em 1896, como representante de um grupo de banqueiros de Nova York, que se haviam interessado financeiramente pelo sistema previsto de irrigação do Nilo.1 Kyle conheceu Abercrombie — então assistente de Grébault — e o conhecimento se desenvolveu em sólida amizade. Kyle voltou ao Egito quase todos os anos durante o processo de construção da represa — isto é, até 1902. Naturalmente veio a conhecer a dama copta com quem posteriormente Abercrombie contraiu casamento e, tenho razões para acreditar, era muito apaixonado por ela. Sendo, amigo de Abercrombie e um cavalheiro, absteve-se de qualquer manifestação. Entretanto, quando a dama morreu, ao nascer Meryt, abertamente transferiu sua afeição da mãe para a filha. Tornou-se padrinho de Meryt e, de uma forma generosa, tomou conta dela como se fosse sua própria filha... Kyle não era um mau sujeito...

 

 

 

(1) A irrigação a que Scarlett se referia era o sistema que teve como resultado as represas de Asan e de Asyût e a barragem Esneh.

 


— E Bliss?

— Bliss foi pela primeira vez ao Egito em 1913. Encontrou Abercrombie nessa ocasião e se tornaram amigos. Também conheceu Meryt que na época tinha apenas treze anos de idade. Sete anos mais tarde — em 1920 — o jovem Salveter apresentou Bliss a Kyle e a primeira expedição ao Egito foi realizada no inverno 1921/22. Abercrombie morreu no Egito no verão de 1922 e Meryt foi adotada, de uma certa forma, por Hani, há muito tempo mantido pela família. A segunda expedição de Bliss teve lugar em 1922/23 e, novamente, Bliss veio a encontrar-se com Meryt. À época Meryt tinha vinte e três anos e, na primavera seguinte, Bliss a desposou... Você conheceu Meryt, Vance, quando da terceira expedição de Bliss, em 1924... Bliss trouxe Meryt com ele para a América depois de sua segunda expedição e, no ano passado, acrescentou Hani a sua equipe pessoal. Desde então Hani tem trabalhado como um subinspetor para o governo egípcio... Aí está um resumo das relações entre Bliss, Kyle, Abercrombie e Meryt. Era isso o que você desejava?

— Exatamente. — Vance olhou meditativamente para a ponta de seu cigarro. — Em suma, então, Kyle interessou-se pela Sra. Bliss devido ao seu amor pela mãe dela e sua amizade por seu pai; além disso, não há dúvida de que tinha um outro interesse em financiar as posteriores expedições de Bliss, devido ao fato de ter este último desposado a filha de seu perdido amor.

— Sim. A hipótese é perfeitamente razoável.

— Assim sendo, Kyle provavelmente não se esqueceu da Sra. Bliss em seu testamento. Será que você sabe, Scarlett, se Kyle incluiu alguma cláusula para ela?

— Pelo que sei — explicou Scarlett — Kyle deixou para Meryt uma considerável fortuna. Soube através de Hani, que me mencionou uma vez, haver Kyle legado a ela uma vultosa soma. Hani se mostrava deliciado com o fato, pois não há dúvida de que sente por Meryt uma afeição canina, muito profunda.

— E quanto a Salveter?

— Presumo que Kyle tenha-se lembrado dele com grande generosidade. Kyle não era casado — não sei dizer se sua lealdade à mãe de Meryt é ou não a responsável por ser solteirão, e Salveter o seu único herdeiro. Além disso ele gostava imensamente do rapaz. Estou inclinado a pensar que, quando for lido o testamento, será verificado que foram deixadas somas iguais para Salveter e para Meryt.

Vance voltou-se para Markham.

— Será possível a você determinar a um de seus hábeis coadjutores que verifique confidencialmente o que consta do testamento de Kyle? Tenho a impressão de que essa informação nos poderá ajudar em muito materialmente.

— Isso pode ser feito — concordou Markham. — No momento em que esta coisa estourar nos jornais os advogados de Kyle aparecerão. Usarei um pouco de pressão.

Vance tornou a dirigir-se a Scarlett.

— Creio que você me disse que Kyle, recentemente, havia reclamado quanto às despesas das expedições de Bliss. Será que você conhece alguma razão para essa reclamação, outra que não a falta imediata de resultados?

— Não. — Scarlett pensou durante alguns momentos. — Como sabe, expedições semelhantes às que o Dr. Bliss tem planejado são tremendamente caras e luxuosas, e os resultados, é claro, altamente problemáticos. Além do mais, por mais bem sucedidas que sejam, levam algum tempo para que sejam produzidas evidências tangíveis quanto a seu valor. Kyle estava começando a ficar impaciente; ele não era um egiptólogo e pouco conhecia de tais assuntos; pode ter-lhe parecido que o Dr. Bliss estava empenhado em uma aventura extravagante, às suas custas. De fato, no ano passado, ele ameaçou que, a não ser que resultados definitivos fossem obtidos nas novas escavações, não continuaria a jogar dinheiro fora. Era essa a razão pela qual o doutor estava tão ansioso, ontem à noite, em apresentar o relatório financeiro e fazer com que Kyle visse os novos tesouros que chegaram ontem.

— Não havia nada de pessoal na atitude de Kyle?

— Ao contrário. Todas as relações eram muito amistosas. Kyle gostava de Bliss como pessoa e o admirava imensamente. Bliss, por sua vez, só tinha palavras de louvor e de gratidão para com Kyle... Não, Vance, você não encontrará coisa alguma atacando o problema desse ângulo.

— Como se sentia o doutor à noite passada com relação ao possível resultado de sua entrevista com Kyle?... Estava preocupado ou otimista?

Scarlett contraiu o cenho e puxou uma baforada de seu cachimbo.

„ " Diria que nem uma coisa nem outra — respondeu afinal. Seu estado de espírito era o que podemos denominar de filosófico. Bliss estava inclinado a receber bem as coisas — aceitar o que viesse — e ele possui também autocontrole em dose rara. O estudante sério de todas as épocas, se é que você me compreende.

— Compreendo, sim... — Vance jogou fora o cigarro e cruzou as mãos atrás da cabeça. — Mas, em sua opinião, qual teria sido a reação do Dr. Bliss se Kyle se recusasse a financiar futuras expedições?

— Isso é difícil de dizer... Provavelmente teria ido buscar capital em algum outro lugar. Não se esqueça de que seu trabalho fez grandes progressos, a despeito do fato de que ele, verdadeiramente, não tivesse ainda entrado na tumba de Intef.

— E qual foi a atitude do jovem Salveter em face de uma possível cessação das escavações?

— Ele estava mais aborrecido com isso do que o doutor. Salveter tem um entusiasmo incrível e fez vários apelos ao tio para que continuasse a financiar o trabalho. Caso Kyle insistisse em sua recusa isso por certo iria fazer com que o rapaz chegasse muito perto do desespero. Pelo que sei, Salveter chegou mesmo ao ponto de se oferecer para abrir mão de sua herança se Kyle continuasse a financiar a expedição até o fim.

— Não há dúvidas quanto à sinceridade de Salveter — acedeu Vance. Seguiu-se um silêncio que durou um tempo considerável. Finalmente, Vance puxou a cigarreira. No entanto, não a abriu e permaneceu tamborilando nela com os dedos. — Há uma outra pergunta que quero fazer-lhe, Scarlett — disse ele em breve. — Como a Sra. Bliss encara o trabalho de seu marido?

Era uma pergunta vaga — propositalmente, presumo. Scarlett ficou um pouco perturbado, mas após um momento respondeu: — Oh, Meryt é uma esposa muito dedicada. Durante os primeiros tempos de casada estava muitíssimo interessada em tudo o que o doutor fazia — de fato ela o acompanhou, como você sabe, na expedição de 1924. Viveu em uma tenda e toda essa espécie de coisas e parecia perfeitamente feliz. Mas — para lhe dizer a verdade, Vance, — ultimamente o seu interesse vem diminuindo. Creio ser uma reação racial. Nela o sangue egípcio é uma influência poderosa. Sua mãe era quase fanática com respeito ao assunto da santidade egípcia e muito orgulhosa. Ressentia-se com o que denominava de violação das tumbas de seus ancestrais pelos bárbaros do Ocidente — expressão que usava para todos os cientistas ocidentais. Meryt, entretanto, nunca emitiu a sua opinião e estou meramente supondo que o antagonismo existente em sua mãe tenha, recentemente, se manifestado nela. Por favor, compreenda não se tratar de nada sério. Meryt sempre foi leal a Bliss e ao trabalho de sua escolha.

— Talvez Hani tenha alguma coisa a ver com seu estado de espírito — observou Vance.

Scarlett lançou-lhe um olhar interrogativo.

— Talvez seja possível — admitiu relutantemente, recolhendo-se, depois, ao silêncio.

Vance obstinadamente perseguiu seu objetivo.

— Mais do que provável, eu diria. E vou ainda mais longe. Tenho suspeitas de que o próprio Dr. Bliss reconheceu a influência de Hani em sua esposa e se ressentiu com o fato, amargamente. Lembre-se de sua tirada contra Hani quando chegou aqui ao museu esta manhã. Abertamente o Dr. Bliss acusou Hani de estar envenenando a mente de sua mulher.

Scarlett se remexeu na cadeira, inquieto, e mordeu o bocal do cachimbo.

— Nunca houve qualquer afeição entre o doutor e Hani — comentou evasivamente. — Bliss somente o trouxe para a América porque Meryt insistiu nesse ponto. Creio que ele tem a impressão de que Hani o espiona a favor do governo do Egito.

— E isso é completamente improvável? — Vance lançou a pergunta repentinamente.

— Realmente, Vance, não sei responder. — Scarlett, de súbito, inclinou-se para a frente, e suas linhas se tornaram tensas. — Mas vou-lhe dizer uma coisa: Meryt é incapaz de qualquer deslealdade fundamental para com seu marido. Mesmo que ela admitisse ter sido um erro seu casamento com o Dr. Bliss — que é muito mais velho do que ela e completamente absorvido em seu trabalho — ela manteria o seu negócio, como uma pessoa bem educada.

— Ah... é isso mesmo. — Vance concordou ligeiramente com a cabeça e escolheu um cigarro na cigarreira. — Isso me leva a uma questão mais delicada... Você acha que a Sra. Bliss tem, como devo dizer? qualquer outro interesse fora de seu marido? Isto é, será possível que além do interesse no trabalho do marido suas emoções mais íntimas estejam envolvidas em qualquer outra coisa?

Scarlett se pôs de pé e começou a falar incoerentemente.

— Oh, Vance, realmente... Acabe com isso!... Você não tem o direito de me fazer uma tal pergunta... Não sou bisbilhoteiro... Não se deve comentar tais assuntos... Isto não é correto... realmente, meu velho... Você me põe em uma posição embaraçosa... (A maneira de falar de Scarlett despertou minha simpatia.) — Os crimes acontecem também nos melhores círculos — retornou Vance sem se alterar. — Estamos às voltas com uma situação a mais fora do comum. Alguém transferiu Kyle deste mundo para o outro de um modo muito desagradável... Mas, como sua sensibilidade está tão tremendamente afetada, retiro a pergunta. — Vance sorriu para desarmar Scarlett. — Você mesmo não é inteiramente impermeável aos encantos da dama... não, Scarlett?

O homem se voltou e encarou Vance com ferocidade. Antes que respondesse, Vance se pôs de pé e o olhou fixamente nos olhos.

— Um homem foi assassinado — disse calmamente — e uma trama diabólica foi introduzida no crime. Uma outra vida humana está em jogo. Estou aqui para descobrir quem engendrou esse odioso esquema e salvar da cadeira elétrica uma pessoa inocente. Assim, não vou permitir que delicados tabus convencionais se atravessem em meu caminho. — A voz de Vance se abrandou um pouco. — Compreendo suas reticências. Em circunstâncias ordinárias seriam admiráveis. Neste momento, porém, são uma tolice.

Scarlett suportou frontalmente o olhar de Vance, mas após uns momentos tornou a sentar-se.

— Tem razão, meu velho — concordou, em voz baixa. — Direi tudo o que quiser saber.

Vance concordou com a cabeça indiferentemente, e ficou fumando por uns instantes.

— Creio que você já me disse tudo — falou finalmente. — Mas talvez o chamemos mais tarde... A hora do almoço já vai longe. Suponho que queira ir para casa.

Scarlett soltou um profundo suspiro de alívio e se pôs de pé.

— Muito obrigado — disse e sem qualquer outra palavra se retirou.

Heath seguiu-o e pude perceber que dava instruções a Snitkin para que deixasse Scarlett sair.

— Bem — disse Markham, dirigindo-se a Vance, quando o sargento voltou — como a informação de Scarlett lhe pôde ser útil? Não posso perceber que luz deslumbrante tenha lançado sobre o nosso problema.

— Meu Deus! — Vance sacudiu a cabeça com incrédula comiseração. — Scarlett nos deixou muito bem informados. Suas declarações foram infinitamente reveladoras. Temos, agora, uma base definitiva em que nos apoiar na caçada aos membros da casa.

— Estou satisfeito em que você esteja assim tão confiante. — Markham levantou-se e encarou Vance seriamente. — Você de fato não pode acreditar... ? — Interrompeu-se, como se não ousasse emitir seu pensamento.

.

 


XI

 

O coador de café


(Sexta-feira, 13 de julho — 14:45 horas)

 

 

Markham tornou a sentar-se. Estava por demais desanimado para se ressentir com a bem-humorada ironia de Vance. O assassinato de Kyle, cuja solução, inicialmente, parecia tão simples e clara, estava-se tornando mais e mais complicado. Forças ocultas, sutis e terríveis, estavam-se fazendo sentir. Já agora era claro para qualquer um que o crime, ao invés de ser um mero e brutal esfacelar de cabeça, era um fator sinistro em uma trama profunda e cheia de ramificações. Até mesmo Heath começava a se dar conta das significações ocultas dos indícios claros aos quais emprestara suas primeiras esperanças de uma rápida solução.

— Sim — admitiu ele com o charuto balançando para cima e para baixo nos lábios finos — aquele lápis não tem qualquer significado particular... Este caso — como o Sr. Vance diria — está ficando denso. Ninguém que tenha miolos vai estragar todo o seu trabalho semeando indícios que apontem para si mesmo, caso seja o culpado. — Franziu o cenho na direção de Markham.— E o ópio no café, Chefe?

Markham apertou os lábios.

— Era no que estava pensando. Talvez seja aconselhável procurar descobrir logo quem poderia ter adicionado a droga... Qual a sua opinião, Vance?

— Uma brilhante idéia. — Vance fumava pensativamente. — É da máxima importância saber quem poderia ter posto o pó soporífero no café do doutor, pois não há dúvida de que quem fez isso foi a mesma pessoa que enviou Kyle para sua longa peregrinação. De fato, a chave de toda a trama está na questão de quem teria tido a oportunidade de lidar com aquela xícara de café.

Markham sentou-se decididamente.

— Sargento, chame o mordomo. Traga-o pelo escritório, pois assim as pessoas que se encontram na sala de visitas não o verão.

Heath levantou-se alegremente e subiu as escadas em espiral de três em três degraus. Um minuto ou dois mais tarde reapareceu à porta do escritório, empurrando Brush sem-cerimoniosamente a sua frente.

O homem se encontrava visivelmente em estado de terror. O rosto estava pálido e tinha as mãos crispadas fortemente. Aproximou-se de nós inquieto, mas inclinou-se com instintiva correção e permaneceu ereto, como um empregado bem treinado aguardando as ordens.

— Sente-se e descontraia-se, Brush. — Vance se ocupava em acender mais um cigarro. — Não posso culpá-lo por se sentir excitado. É uma situação muito difícil. Se você procurar acalmar-se poderá ajudar-nos... Acalme-se!...

— Sim, senhor. — O homem sentou-se na borda de uma cadeira e pôs as mãos tensamente nos joelhos. ;— Muito bem, senhor. Mas estou muito aborrecido. Tenho trabalhado em casas de cavalheiro há mais de quinze anos e nunca, antes...

— Oh, está bem... Estou de acordo com suas palavras. — Vance sorriu agradavelmente. — No entanto as emergências aparecem. Esta talvez seja sua grande oportunidade para ampliar o seu campo de atividades. O fato é, Brush, que você nos poderá conduzir à verdade relativa a esse infortunado caso.

— Espero que sim, senhor. — O mordomo, perceptivelmente, havia-se acalmado com a atitude natural de Vance.

Fale-nos, então, a respeito dos arranjos nesta casa com relação ao café da manhã. — Vance, com o assentimento tácito de Markham, assumira o papel de interrogador. — Onde toma a família o seu café matinal?

— Na saleta de refeições, lá embaixo. — Brush estava conseguindo controlar-se admiravelmente. — Há uma saleta na frente da casa, no porão, que a Sra. Bliss decorou em estilo egípcio. Somente o almoço propriamente dito e o jantar são servidos na sala de jantar, lá em cima..

— Ah! E a família toma junta o café da manhã?

— Geralmente sim, senhor. Chamo todos às oito horas e às oito e meia o café é servido.

— E quem, exatamente, aparece a essa despropositada hora?

— O doutor e a Sra. Bliss e o Sr. Salveter... e o Sr. Hani.

As sobrancelhas de Vance se ergueram ligeiramente.

— Hani faz as refeições com a família?

— Oh, não, senhor. — Brush parecia perplexo. — Não compreendo exatamente qual a situação do Sr. Hani — se entende o que quero dizer, senhor. É tratado pelo Dr. Bliss como um empregado, mas, mesmo assim, chama a senhora pelo primeiro nome... Ele faz suas refeições em uma alcova próxima à cozinha — não comeria comigo e com Dingle. — Notava-se em sua voz um certo ressentimento.

Vance procurou consolá-lo.

— Você deve compreender que Hani é um velho servidor da família da Sra. Bliss — além de ser funcionário do governo do Egito...

— Oh, o arranjo satisfaz perfeitamente a Dingle e a mim, senhor — foi a resposta evasiva.

Vance não insistiu no assunto, mas perguntou: — O Sr. Scarlett costuma tomar o café com os Blisses?

— Com bastante freqüência, senhor — especialmente quando há serviço a ser realizado no museu.

— Ele esteve aqui hoje pela manhã?

— Não, senhor.

— Então, se Hani estava em seu quarto toda a manhã e o Dr. Bliss no escritório, a Sra. Bliss e o Sr. Salveter devem ter tomado o café juntos, não?

— Correto, senhor. A Sra. Bliss desceu um pouco antes das oito e meia e o Sr. Salveter logo em seguida. Q doutor me tinha dito às oito horas, quando passou para o escritório, que tinha o que fazer e que os outros não deveriam esperar por ele.

— Quem lhe falou sobre a indisposição de Hani, Brush?

— O Sr. Salveter, senhor. Disse-me que Hani lhe pedira para me informar que não iria descer para o café... Seus quartos ficam um na frente do outro, no terceiro andar, e já observei que Hani deixa sempre a porta de seu quarto aberta.

Vance acenou com a cabeça aprovativamente.

— Você está sendo muito claro, Brush... Então, se compreendi bem, às oito e meia da manhã de hoje a situação dos membros da casa era a seguinte: a Sra. Bliss e o Sr. Salveter encontravam-se na sala de refeições de baixo; Hani estava em seu quarto e o Dr. Bliss no escritório. Presumivelmente o Sr. Scarlett estava em casa. E você e Dingle?

— Dingle estava na cozinha e eu entre a cozinha e a sala de refeições, servindo.

— E, de seu conhecimento, não havia mais ninguém na casa?

O mordomo pareceu surpreender-se ligeiramente.

— Oh, não, senhor. Não poderia haver mais ninguém na casa.

— Mas se você estava lá embaixo — insistiu Vance — como pode afirmar que ninguém chegou pela porta da frente?

— Ela estava fechada.

— Tem certeza?

— Absoluta, senhor. Uma de minhas obrigações é verificar todas as noites, antes de ir dormir, se a porta está trancada; e ninguém tocou a campainha ou usou aquela porta hoje de manhã, antes das nove horas.

— Muito bem. — Vance ficou fumando meditativamente, por algum tempo. Em seguida recostou-se preguiçosamente na cadeira e fechou os olhos. — Casualmente, Brush, onde e como foi preparado o café esta manhã?

— O café? — O homem começou a mostrar-se surpreendido, mas logo se recompôs. — O café é uma das manias do doutor... se me entende, senhor. Ele o encomenda de uma firma egípcia na Nona Avenida. É negro e úmido e um pouco queimado durante a torração. Tem o sabor de café francês, se é que o senhor conhece o gosto do café francês.

— Infelizmente, sim. — Vance suspirou e fez uma careta. — Uma bebida execrável. Não é de admirar-se que os franceses o encham de leite... Você também toma esse café, Brush?

O mordomo pareceu um pouco desconcertado.

— Não, senhor. Não que eu me incomode com o seu gosto, mas a Srta. Bliss, bondosamente, deu permissão a mim e a Dingle de que preparássemos nosso próprio café à moda antiga.

— Oh! — Vance semicerrou os olhos. — Então o café do Dr. Bliss não é preparado à moda antiga. f

— Bem, senhor, talvez eu tenha usado a palavra errada, mas, certamente, não é preparado da forma costumeira.

— Fale-nos a esse respeito. — Vance tornara a se descontrair. — Fala-se tanto neste mundo sobre a forma de preparar café corretamente. Há pessoas que positivamente se fanatizam sobre o assunto. Não me surpreenderia se um dia estourasse uma guerra civil entre os que são contra e os que são a favor de ferver-se a água ou, talvez, entre as chaleiras e as cafeteiras. Bobagens... como se o café tivesse alguma importância. O chá, por outro lado... Mas prossiga e nos apresente as idéias do doutor sobre o assunto.

Markham começara a marcar com os pés um irritável ritmo e Heath abanava a cabeça com laboriosa impaciência. Vance, porém, com sua irrelevante loquacidade, havia obtido exatamente o efeito que desejava. Tinha conseguido acalmar os nervos de Brush e afastar-lhe o cérebro do objetivo direto do interrogatório.

— Bem, senhor, — explicou o homem — o café é preparado em uma espécie de cafeteira semelhante a um samovar grande...

— Onde fica localizada essa bizarra máquina?

— Está sempre na extremidade da mesa do café... Tem por baixo uma lamparina de álcool para conservar o café quente depois de ter sido... ter sido...

— Coado, é provavelmente a palavra.

— Coado, senhor. A cafeteira é dividida em duas partes — uma se encaixa na outra como uma cafeteira francesa.

Vance saiu de sua aparente letargia e apagou o cigarro.

— Então a sala de refeições esteve vazia uns cinco minutos entre a hora em que a Sra. Bliss e o Sr. Salveter subiram e a hora em que você veio passar o café do Dr. Bliss?

— Cerca de cinco minutos, sim, senhor.

— Bem, procure agora focar sua mente naqueles cinco minutos, Brush. Você ouviu algum ruído vindo da sala de refeições durante esse tempo?

O mordomo encarou Vance criticamente e fez uma tentativa de concentração.

— Não estava prestando muita atenção, senhor — respondeu por fim. — Estive a maior parte do tempo ao telefone. Mas não me lembro de ter ouvido ruído nenhum. Na verdade ninguém poderia ter estado na sala de refeições durante esses ·cinco minutos.

— A Sra. Bliss ou o Sr. Salveter poderiam ter voltado por algum motivo — sugeriu Vance.

— É possível, senhor — admitiu Brush em dúvida.

— Além disso, não poderia Hani ter descido nesse ínterim?

— Mas ele não estava bem, senhor. Levei-lhe o café...

— Você já nos disse isso... Escute aqui, Brush, Hani ·estava na cama, quando você foi levar-lhe esse abominável café?

— Estava deitado, no sofá.

— Vestido?

— Estava com aquele roupão listrado com que geralmente anda pela casa.

Vance permaneceu em silêncio durante alguns momentos. Em seguida voltou-se para Markham.

— Não é o que alguém denominaria de uma situação cristalina — comentou. — O samovar contendo o café parece ter estado em um estado quase indecente de exposição esta manhã. Observe que a Sra. Bliss e Salveter estiveram sozinhos com esse samovar durante a primeira refeição e que qualquer um deles poderia ter ficado um pouco para trás no terminar o café, ou mesmo retornado. Hani, também, poderia ter descido para a saleta de refeições tão logo a Sra. Bliss e Salveter subiram. De fato, qualquer pessoa da casa teve oportunidade de mexer no samovar antes que Brush levasse o café do Dr. Bliss.

— Acho que sim. — Markham pareceu refletir profundamente sobre o assunto por um momento. Em seguida dirigiu-se ao mordomo. — Você notou alguma coisa fora do comum com relação ao café que coou para o Dr. Bliss?

— Não, senhor. — Brush tentou, sem êxito, esconder sua surpresa ante a pergunta. — Tudo parecia perfeitamente bem, senhor.

— A cor e a consistência normais?

— Não percebi nada de errado no café, senhor. — A apreensão do homem crescia e, mais uma vez, uma palidez doentia se espalhou em suas emaciadas feições. — Talvez tenha ficado um pouco forte — acrescentou nervosamente. — Mas o Dr. Bliss prefere o café bem forte.

Vance levantou-se e bocejou.

— Gostaria de dar uma olhadela nessa saleta de refeições e em seu estranho coador de café. Um pouco de observação talvez nos ajude.

Markham acedeu prontamente.

— Seria melhor que fôssemos através do escritório do doutor — sugeriu Vance — a fim de não despertarmos a curiosidade dos ocupantes da sala de visitas...

Brush foi na frente silenciosamente. Parecia um fantasma e enquanto subia as escadas em espiral, à nossa frente, notei que se apoiava fortemente ao corrimão de ferro. Por vezes dava a impressão de estar inteiramente dissociado dos trágicos eventos da parte da manhã; de outras, porém, parecia-me que algum torturante segredo ou suspeita solapava seu equilíbrio.

A saleta de refeições se estendia, com exceção de uma pequena entrada, ao longo de toda a frente da casa; não tinha, porém, mais de 1,80m de profundidade. As janelas da frente, que davam para a passagem da rua, eram guarnecidas de vidro opaco e cobertas por pesadas cortinas. A dependência se achava ornamentada de forma exótica e decorada com desenhos egípcios. A mesa do café tinha, pelo menos, uns dois metros de comprimento, apesar de muito estreita, incrustada e pintada no decadente estilo rococó do Novo Império — não diferente do mobiliário barroco encontrado na tumba de Tut-ankh-Amun.

Na extremidade da mesa via-se o samavor para café. Era de cobre polido, com cerca de 60 cm de alto, apoiado em três pés abertos. Sob ele uma lamparina de álcool.

Vance, após uma ligeira olhadela, passou a não dar qualquer atenção à peça, para minha perplexidade. Vance parecia mais interessado na disposição dos quartos de baixo. Enfiou a cabeça na despensa do mordomo, entre a cozinha e a saleta de refeições, e permaneceu no portal durante alguns momentos examinando atentamente a estreita passagem que levava das escadas de trás até à frente da casa.

— Uma questão simples para qualquer pessoa chegar até à saleta de refeições sem ser visto — observou ele. — Vejo que a porta da cozinha está situada atrás da escada.

— Sim, senhor... é isso mesmo. — A anuência de Brush foi quase ansiosa.

Vance pareceu não notar essa atitude.

— Você disse que levou o café para o Dr. Bliss cinco minutos depois que a Sra. Bliss e o Sr. Salveter tinham subido... O que fez depois disso, Brush?

— Fui arrumar a sala de visitas, senhor.

— Ah, sim. Você já nos disse isso. — Vance estava passando o dedo nas incrustações de uma das cadeiras. — Acredito que você tenha dito que a Sra. Bliss saiu de casa pouco depois das nove horas. Você a viu sair?

— Oh, sim, senhor. Ela parou na porta da sala de visitas quando ia saindo e disse que estava indo às compras, o que eu deveria informar ao Dr. Bliss, se ele perguntasse.

— Tem certeza de que ela saiu?

Os olhos de Brush se arregalaram; a pergunta parecia assombrá-lo.

— Plena certeza, senhor — replicou ele com ênfase. — Abri a porta da frente para ela... A Sra. Bliss se encaminhou na direção da Quarta Avenida.

— E o Sr. Salveter?

— Desceu quinze ou vinte minutos mais tarde e saiu.

— Disse alguma coisa para você?

— Somente: "Estarei de volta para o almoço". Vance suspirou profundamente e consultou o relógio.

— Almoço!... Meu Deus! Estou positivamente faminto. — Dirigiu a Markham um olhar compungido. — São quase três horas... e ainda não comi nada hoje, a não ser chá com bolinhos às dez horas... Será que alguém deve morrer de fome somente porque um crime idiota foi cometido?

— Posso servi-los, senhores... — começou Brush, mas foi interrompido por Vance.

— Idéia excelente. Chá com torradas nos manteriam de pé. Vamos, porém, falar primeiro com Dingle.

Brush inclinou-se e foi para a cozinha. Pouco depois reapareceu com uma mulher corpulenta e plácida, de seus cinqüenta anos.

— Esta é Dingle, senhor — anunciou ele. — Tomei a liberdade de informá-la a respeito da morte do Sr. Kyle.

Dingle ficou-nos olhando estolidamente e esperou, imperturbável, com as mãos nos generosos quadris.

— Boa tarde, Dingle. — Vance sentou-se na borda da mesa. — Como Brush já lhe disse ocorreu um sério acidente aqui nesta casa...

— Um acidente, então? — A mulher sacudiu a cabeça prudentemente. — Talvez. De qualquer modo o senhor não me poderia derrubar com uma pena. O que me surpreende é que não tenha acontecido algo há mais tempo — com este jovem Sr. Salveter morando na casa, o Sr. Scarlett sempre por aí e o Dr. Bliss permanentemente às voltas com suas múmias, dia e noite. Mas, certamente, nunca esperei que alguma coisa acontecesse ao Sr. Kyle — ele era um cavalheiro muito bom e muito liberal.

— A quem você esperava que acontecesse alguma coisa,. Dingle?

A mulher compôs o rosto determinadamente.

— Não estou dizendo... não tenho nada com isso. Mas as coisas por aqui não estavam de acordo com a natureza... — Tornou a abanar a cabeça astutamente. — Vejamos, tenho uma bonita sobrinha, jovem, que deseja casar-se com um homem de cinqüenta anos e digo para ela...

— Tenho certeza de que você lhe deu um conselho excelente, Dingle, — interrompeu Vance — mas preferimos ouvir sua opinião sobre o pessoal da casa de Bliss.

— O senhor já os ouviu. — Os maxilares da mulher se cerraram com um clique e tornou-se óbvio que nem ameaças nem lisonjas poderiam obter mais coisa alguma dela sobre o assunto.

— Oh, está tudo muito bem. — Vance procurou tratar sua recusa como coisa sem importância. — Mas há um outro assunto sobre o qual gostaríamos de saber algo. Você não ficará absolutamente comprometida se nos disser. Você ouviu alguém aqui nesta saleta, depois que a Sra. Bliss e o Sr. Salveter subiram esta manhã — isto é, durante o tempo em que você esteve preparando as torradas para o café do doutor?

— Então é isso? — Dingle olhou de soslaio e permaneceu em silêncio durante alguns momentos. — Talvez sim, talvez não — disse por fim. — Não estava prestando a mínima atenção. Quem poderia ter sido?

— Não faço a menor idéia. — Vance sorriu convidativamente. — É o que estamos procurando apurar.

— É isso agora? — Os olhos da mulher se voltaram para a cafeteira. — Já que o senhor está-me perguntando — replicou ela, com uma malevolência que, na ocasião, não pude compreender — direi que creio ter ouvido alguém passando uma xícara de café.

— Quem supõe que fosse?

— Pensei que fosse Brush. Naquele exato momento, porém, ele se aproximou vindo da entrada de trás e me perguntou se as torradas estavam ficando prontas. Assim fiquei sabendo que não era Brush.

— E o que pensou, então?

— Não pensei coisa alguma.

Vance concordou abruptamente e se voltou para Brush.

— Talvez pudéssemos agora tomar o chá com torradas.

— Certamente, senhor. — Brush encaminhou-se para a cozinha fazendo sinal para que a mulher fosse à sua frente; Markham os fez parar.

— Traga-me um recipiente qualquer, Brush — ordenou ele. — Quero levar o resto do café existente na cafeteira.

— Já não tem mais café na cafeteira — informou Dingle, agressivamente. — Já limpei e poli aquela porcaria às dez horas da manhã de hoje.

— Graças a Deus que assim seja — suspirou Vance. — Sabe, Markham, se você tivesse um pouco daquele café para analisar, você estaria mais longe do que nunca da verdade.

Com esta enigmática observação Vance acendeu um cigarro lentamente e começou a examinar uma das figuras desenhadas na parede.


XII

 

A lata de ópio

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 15:15 horas)

 

 

Poucos minutos mais tarde Brush nos serviu chá com torradas.

— É chá oolong, senhor, de Taiwan — explicou Brush orgulhosamente a Vance. — Não passei manteiga nas torradas.

— Você tem uma intuição rara, Brush — falou Vance elogiosamente. — E a Sra. Bliss e o Sr. Salveter? Eles ainda não almoçaram.

— Levei-lhes chá há uns momentos. Eles não queriam mais nada.

— E o Dr. Bliss?

— Ele não tocou a campainha me chamando, senhor. Além disso, muitas vezes o doutor nem almoça.

Dez minutos mais tarde Vance chamou Brush.

— Suponhamos que você chame Hani. O mordomo piscou os olhos.

— Sim, senhor. — Inclinou-se respeitosamente e saiu.

— Há um ou dois pontos — explicou Vance a Markham — que devemos esclarecer imediatamente e Hani talvez possa fazê-lo... A morte em si do Sr. Kyle é o que há de menos diabólico nesta trama. Estou plenamente confiante no que ficaremos sabendo através de Salveter e da Sra. Bliss, razão pela qual, como vêem, desejo acumular antecipadamente o máximo de munição possível.

— Seja como for — interveio Heath — um sujeito foi assassinado e se eu puder pôr a mão no pássaro que fez isso não passarei noites sem dormir preocupado com tramas.

— O senhor é tão tremendamente primitivo, sargento. — Vance tomava seu chá sombriamente. — Encontrar o criminoso é simples. Mas, ainda que o senhor o tivesse algemado isso não lhe traria nenhum bem. Dentro de vinte e quatro horas o senhor teria que lhe apresentar desculpas.

— Ao diabo com desculpas! — explodiu Heath. — Entreguem-me o pássaro que assassinou Kyle e eu lhes mostrarei algumas coisas íntimas que não vão para os jornais.

— Se o senhor prendesse o criminoso neste momento — tornou Vance calmamente — iriam ambos para os jornais... e todos os artigos seriam contra o senhor. Estou tentando poupá-lo à própria impetuosidade.

Heath deu de ombros, mas Markham encarou Vance com seriedade.

— Estou começando a concordar com seus pontos de vista — opinou Markham. — Os elementos deste caso são infernalmente confusos.

Nesse momento passos suaves e ritmados soaram no saguão e Hani apareceu à porta. Estava calmo e alheado como de costume e o seu rosto imóvel não registrou a mínima surpresa por nos encontrar de posse da saleta de refeições.

— Venha até aqui e sente-se. — O convite de Vance era quase exageradamente agradável.

O egípcio avançou lentamente até onde estávamos, mas não se sentou.

— Prefiro ficar de pé, effendi.

— Claro que é mais confortador permanecer de pé em momentos, de tensão — comentou Vance.

Hani inclinou a cabeça levemente, mas não respondeu. Sua atitude, tipicamente oriental, era formidável.

— O Sr. Scarlett nos disse — começou Vance, sem levantar os olhos — que a Sra. Bliss se encontra bem aquinhoada no testamento do Sr. Kyle. Esta informação, de acordo com o Sr. Scarlett, partiu de você.

— Não é natural — perguntou Hani com voz calma — que o Sr. Kyle aquinhoasse sua afilhada?

— O Sr. Kyle lhe disse que o havia feito?

— Sim. Ele sempre confiou em mim, pois sabia que eu amava Meryt-Amen como um pai.

— Quando o Sr. Kyle lhe confidenciou este assunto?

— Há anos atrás, no Egito.

— Quem mais, Hani, sabia dessa provisão?

— Creio que todo o mundo sabia. O Sr. Kyle me falou na presença do Dr. Bliss e, naturalmente, eu disse a Meryt-Amen.

— O Sr. Salveter sabia disso?

— Eu mesmo lhe disse. — Havia uma nota curiosa no tom de voz de Hani, que na ocasião não pude interpretar.

— E você falou também ao Sr. Scarlett. — Vance ergueu os olhos e estudou o egípcio impessoalmente. — Você não é o que poderíamos chamar de um bom repositório para segredos.

— Não considerei o assunto como segredo — replicou Hani.

— Obviamente não era. — Vance ergueu-se e se encaminhou vagarosamente até o samovar.

— Será que você sabe se o Sr. Salveter foi também objeto dos benefícios do Sr. Kyle?

— Não poderia dizê-lo com certeza. — Os olhos de Hani permaneciam voltados sonhadoramente para a parede oposta. — No entanto, de certas observações que ouvi do Sr. Kyle, concluí que o Sr. Salveter também se encontrava bem aquinhoado no testamento.

— Você gosta do Sr. Salveter, não, Hani? — Vance levantou a tampa do samovar e espiou para o seu interior.

— Ele é, tenho razões para supor, um jovem admirável.

— Oh, muito. — Vance sorriu levemente e tornou a colocar a tampa no samovar. — E está muito mais perto da idade da Sra. Bliss do que o doutor.

Hani pestanejou e pareceu-me que ia dizer alguma coisa. Foi, no entanto, uma reação momentânea. Lentamente cruzou os braços e permaneceu como uma esfinge, silencioso e ' alheado.

— A Sra. Bliss e o Sr. Salveter serão, ambos, ricos, agora que o Sr. Kyle está morto. — Vance falou com casualidade, sem olhar na direção do egípcio. Após uma pausa, perguntou: — Mas, e as escavações do Dr. Bliss?

— Provavelmente terminaram, effendi. — A despeito do tom monótono de Hani havia em suas palavras uma nota discernível de satisfação. — Por que devem os sagrados locais de repouso de nossos ancestrais serem violados?

— Pode estar certo de que não sei — respondeu Vance com brandura. — A arte que é desenterrada raramente é digna de consideração. A única arte verdadeira da antigüidade é a arte chinesa e toda a beleza estética moderna emana dos gregos... Mas esta não é a ocasião apropriada para discutir o instinto criador... Voltando às pesquisas do Dr. Bliss, não será possível que sua esposa continue a financiá-lo?

Uma nuvem negra baixou sobre o rosto de Hani.

— É possível. Meryt-Amen é uma esposa dedicada... E ninguém poderá adivinhar o que fará uma mulher.

— Já me disseram isso... Os não versados em psicologia feminina. — A atitude de Vance era irônica e quase petulante. — Além disso, mesmo que a Sra. Bliss decline de continuar financiando o trabalho do marido, o Sr. Salveter — com o seu fanático entusiasmo em egiptologia — poderá ser persuadido a agir como o anjo financeiro do doutor.

— Não, se isso ofendesse Meryt-Amen... — começou Hani, mas logo parou abruptamente.

Vance pareceu não notar a interrupção súbita da resposta de Hani.

— Eu suponho — observou Vance — que você procuraria influenciar a Sra. Bliss para que não auxiliasse o marido a completar as escavações.

— Oh, não, effendi. — Hani sacudiu a cabeça. — Eu não ousaria dar-lhe conselhos. Ela sabe o que faz... e sua lealdade ao Dr. Bliss ditaria sua decisão, qualquer que esta fosse.

— Ah!... Diga-me uma coisa, Hani. Em sua opinião, quem é o maior beneficiado com a morte do Sr. Kyle?

— O ka de Intef.'

 

 

(1) Sir E. A. Wallis Budge define ka (ou, mais corretamente, ku) como "o espírito do homem" e, ainda, como "o espírito de uma divindade". Breated, explicando a mesma palavra, diz que representava "a força vital" que supostamente anima o corpo humano e, também, que o acompanha ao mundo seguinte. G. Elliott se refere a ka como sendo "um dos espíritos gêmeos da morte". (O outro espírito, ha, veio a ser endeusado em identificação com Osíris). Ka era o espírito de um mortal, que permanecia na tumba após a morte e, se a tumba fosse violada ou destruída, não disporia mais de um local para repouso. A própria palavra em inglês — soul — não é uma tradução precisa de ka, mas talvez esteja tão perto quanto possível em inglês. A palavra alemã doppel gänger, no entanto, é uma tradução quase exata.

 

 

 

Vance ergueu os olhos e deu um sorriso de desânimo.

— Ah, sim... muito esclarecedor — murmurou.

— Por essa razão — continuou Hani com uma expressão visionária em seu rosto — o espírito de Sakhmet veio ao museu esta manhã e abateu o violador...

— E — interferiu Vance — pôs o relatório financeiro na mão do violador, colocou o alfinete de gravata do Dr. Bliss ao lado do corpo e forjou pegadas de sangue levando até o escritório... Sua dama da vingança não é muito equilibrada — na verdade é uma criatura de maus instintos, procurando culpar uma outra pessoa por sua pequena incursão no mundo do crime. — Vance estudou atentamente o egípcio através de olhos apertados. Em seguida inclinou-se para a frente sobre a extremidade da mesa. Quando tornou a falar sua voz mostrava-se severa e retumbante. — Você está procurando acobertar alguém, Hani... Quem é?

O egípcio tomou uma respiração profunda e as pupilas de seus olhos se dilataram.

— Já lhe disse tudo o que sei, effendi. — Sua voz era mal audível. — Acredito que Sakhmet...

— Besteira! — Vance cortou-lhe a frase. Em seguida deu de ombros e sorriu. — Jawâb ul ahmaq sakut.2

 

 

(2) Provérbio árabe significando: "O silêncio é a resposta apropriada a um tolo."

 

 

Um brilho astuto aflorou aos olhos de Hani e creio ter percebido um sorriso de mofa em sua boca.

Vance, no entanto, não se achava absolutamente desconcertado. De algum modo percebi que, a despeito da evasiva do egípcio, ele conseguira saber o que queria. Após uma breve pausa Vance tapou o samovar.

— Deixando a mitologia de lado — disse ele afavelmente — a Sra. Bliss, pelo que sei, mandou Brush levar-lhe, esta manhã, uma xícara de café.

Hani limitou-se a concordar com a cabeça.

— Por falar nisso, qual a natureza de sua doença?

— Desde que vim para este país — replicou o homem — venho sofrendo de má digestão. Esta manhã, quando acordei...

— Lamento muito — murmurou Vance com simpatia.

— E você achava que uma xícara de café era suficiente para o que precisava?

Hani, obviamente, ressentiu-se com a pergunta, mas em sua resposta não houve qualquer indício do que estava 'sentindo.

— Sim, effendi. Eu estava sem fome... Vance pareceu levemente surpreendido.

— Realmente! Não sei por que eu estava com a impressão de que você havia descido para coar uma segunda xícara de café nessa cafeteira.

Mais uma vez uma expressão de cautela desceu sobre o rosto de Hani, e ele hesitou perceptivelmente antes de responder.

— Uma segunda xícara? — repetiu. — Aqui na saleta de refeições?... Não me dei conta disso.

— Isso não tem qualquer importância — retrucou Vance. — Alguém esteve sozinho com a cafeteira hoje pela manhã. E quem quer que tenha sido — isto é, quem quer possa ter estado sozinho com ela — estava envolvido na trama da morte do Sr. Kyle.

— Como poderia ter sido isso, effendi? — Hani, pela primeira vez, parecia vitalmente preocupado.

Vance não lhe respondeu à pergunta. Estava debruçado > sobre a mesa, olhando criticamente as incrustações.

— Dingle falou que ela acha que ouviu alguém por aqui depois que a Sra. Bliss e o Sr. Salveter subiram, após o café, e me pareceu que poderia ter sido você... — Vance olhou para cima de repente. — É possível, é claro, que a Sra. Bliss tenha voltado para tomar mais uma xícara de café... ou mesmo o Sr. Salveter...

— Fui eu que estive aqui! — Hani falou lentamente e com impressionante ênfase. — Desci quase imediatamente depois que Meryt-Amen voltou para o seu quarto. Coei mais uma xícara de café e voltei lá para cima em seguida. Foi a mim que Dingle ouviu... Menti ao senhor um momento atrás porque eu já lhe tinha dito, no museu, que eu tinha ficado em meu quarto toda a manhã — minha ida à saleta de refeições tinha desaparecido de minha cabeça. Não julguei que o assunto tivesse qualquer importância.

— Bem, bem! Isso explica tudo. — Vance sorriu meditativamente. — Agora, já que você se recordou de sua peregrinação em busca de café, poderia informar-nos quem, nesta casa, possui ópio em pó?

Eu estava observando Hani e esperava que ele demonstrasse algum sinal de medo à pergunta de Vance. No entanto, apenas uma expressão de surpresa pude observar em seu impassível rosto. Passou-se seguramente meio minuto antes que ele respondesse.

— Finalmente compreendo por que o senhor me inquiriu com relação ao café — disse ele. — O senhor, porém, está disfarçando inteligentemente.

— Deixe isso para lá. — Vance abriu a boca em um bocejo.

— Effendi Bliss não foi posto a dormir esta manhã — continuou o egípcio e, a despeito do tom oracular de sua voz, havia uma subcorrente de ódio por baixo de suas palavras.

— Esta agora!... E quem disse que ele havia sido posto a dormir, Hani?

— Seu interesse pelo café... sua pergunta com relação ao ópio... — Sua voz desapareceu.

— Bem?

— Nada mais tenho a dizer.

— Ópio — informou Vance — foi encontrado no fundo da xícara do doutor.

Hani pareceu genuinamente surpreendido com esta notícia.

— Tem certeza, effendi? Não posso compreender.

— Por que você deveria compreender? — Vance aproximou-se do homem e permaneceu a encará-lo, inquirindo-o com o olhar fixo. Quanto sabe você a respeito deste crime, Hani?

O véu do alheamento tornou a cair sobre o egípcio.

— Não sei coisa alguma — respondeu de mau humor. Vance fez um gesto de impaciente resignação.

— Você, pelo menos, sabe quem possuía ópio em pó por aqui.

— Sim, isso eu sei. Ópio em pó fazia parte do equipamento médico em nossas excursões de exploração no Egito. Effendi Bliss se encarregava disso.

Vance esperou.

— Há um armário grande lá em cima no saguão — continuou Hani. — Todos os suprimentos médicos são conservados nesse armário.

— A porta é mantida fechada?

— Não. Creio que não.

— Você poderia ter a bondade de ir até lá em cima para ver se o ópio ainda se encontra no armário?

Hani inclinou-se e partiu sem uma palavra.

— Olhe aqui, Vance. — Markham levantara-se e caminhava para cá e para lá. — O que lucraremos em saber se o resto do ópio se encontra ainda no armário?... Além disso, não confio, em Hani.

— Hani tem-nos revelado muita coisa — replicou Vance. — Deixe-me lidar com ele a minha moda durante algum tempo. Hani tem idéias que são muito interessantes... Quanto ao ópio, tenho a distinta impressão de que a lata contendo o pó de cor marrom, da canastra médica, deve ter desaparecido.

— Mas, por que — interrompeu Markham — deveria a pessoa que usou parte do ópio remover todo ele de dentro do armário? Essa pessoa não deixaria a lata em cima de sua mesa de cabeceira com a finalidade de nos levar diretamente até ela.

— Não exatamente. — O tom de voz de Vance era grave. — Mas essa pessoa poderia estar tentando lançar a suspeita sobre outra... Isso, porém, é mera teoria. De qualquer modo, ficarei terrivelmente desapontado se Hani encontrar a lata no armário.

Heath estava fuzilante.

— Parece-me, senhor, — reclamou ele — que algum de nós deveria procurar aquele ópio. Não se pode acreditar em coisa alguma que Swami diz.

— Ah, mas o senhor pode confiar em suas reações, sargento — respondeu Vance. — Além disso eu tinha um objetivo definido ao mandar Hani lá em cima sozinho.

Novamente ouviu-se os sons dos passos de Hani no saguão do lado de fora. Vance encaminhou-se para a janela. Sob as pálpebras cerradas observava a porta ansiosamente.

O egípcio entrou na sala com um ar de resignação, como um mártir. Em uma das mãos trazia uma lata pequena e circular ostentando um rótulo branco de papel. Colocou a lata solenemente sobre a mesa e levantou para Vance olhos pesados.

— Encontrei o ópio, effendi.

— Onde? — Vance pronunciou a palavra suavemente. Hani hesitou e baixou os olhos.

— Não estava no armário — informou. — O lugar da prateleira onde é geralmente guardado estava vazio... Então eu me lembrei...

— Muito conveniente! — Havia escárnio na voz de Vance. — Você se lembrou de que você mesmo havia tomado o ópio há algum tempo, não?... Não conseguia dormir ou qualquer coisa assim.

— O effendi compreende muitas coisas. — A voz de Hani era igual e inexpressiva. — Umas semanas atrás estava deitado sem conseguir dormir — não vinha dormindo bem havia muitas noites — quando fui até ao armário e levei o ópio para o meu quarto. Coloquei a lata na gaveta do meu próprio armário...

— E esqueceu de recolocá-lo no lugar — concluiu Vance. — Espero que tenha conseguido curar sua insônia. — Sorriu ironicamente. — Você é um revoltante mentiroso, Hani. Mas não o culpo absolutamente por isso...

— Disse-lhe a verdade.

— Si non è vero, è molto bene trovato. — Vance sentou-se franzindo o cenho.

— Não falo italiano...

— Uma citação de Bruno. — Vance inspecionou o egípcio especulativamente. — Traduzindo em voz corrente significa que, conquanto você não tivesse falado a verdade, inventou muito bem sua mentira.

— Obrigado, effendi.

Vance deu um suspiro e abanou a cabeça, simulando cansaço. Em seguida disse: — Você não demorou muito para ter feito uma busca extensa pelo ópio. Deve tê-lo encontrado, provavelmente, no primeiro lugar que olhou... você tinha uma idéia bastante definida sobre onde o encontraria...

— Como já disse...

— Acabe com isso! Não seja tão insistente. Você está-se tornando maçante... — Vance levantou-se ameaçadora-mente e se encaminhou na direção do egípcio. Tinha os olhos frios e o corpo tenso. — Onde encontrou você a lata de ópio?

Hani afastou-se e seus braços caíram ao longo do corpo.

— Onde encontrou o ópio? — repetiu Vance a pergunta.

— Já expliquei, effendi. — Apesar da obstinação da atitude de Hani o tom de sua voz não era convincente.

— Sim! Você já explicou... mas não falou a verdade. O ópio não estava em seu quarto — ainda que você tivesse uma razão para nos fazer crer que assim fosse... Uma razão! Qual é ela?.... Talvez eu possa adivinhar qual seja. Você mentiu porque encontrou o ópio...

— Effendi! Não continue... O senhor está sendo enganado...

— Não estou sendo enganado por você, Hani. (Raramente eu vira Vance tão sincero.) Você, asno idiota! Será que não compreende que eu sabia onde você encontraria o ópio? Você acredita que eu o teria mandado procurá-lo se não tivesse a mais absoluta certeza de onde o ópio se encontrava? E você me informou... em sua sinuosa maneira egípcia você me informou lucidamente. — Vance descontraiu-se e sorriu. — Entretanto, minha verdadeira razão para mandar você procurar o pó soporífero foi a de me certificar até que ponto você estava envolvido na trama.

— E conseguiu verificar, effendi? — Havia horror e resignação na pergunta de Hani.

— Sim... Oh, sim. — Vance olhava para o outro casualmente. — Você não é absolutamente sutil, Hani. Você está apenas envolvido — você tem características comuns com a avestruz, de quem erroneamente se diz que enterra a cabeça na areia quando se vê em perigo. Você meramente enterrou a cabeça em uma lata de ópio.

— Effendi Vance é por demais erudito para minha compreensão inferior.

— Você está extraordinariamente cansativo, Hani. — Vance virou a cabeça e caminhou para a outra extremidade da sala. — Vá embora, por favor. Vá embora.

Nessa ocasião algo perturbou a paz do saguão, lá fora. Podíamos ouvir vozes zangadas no fim do corredor. As vozes tornaram-se mais altas e não tardou a que Snitkin aparecesse à porta da saleta de refeições mantendo o Dr. Bliss firmemente pelo braço. O doutor, completamente vestido e de chapéu na cabeça, protestava inutilmente. Estava pálido e o olhar tinha uma expressão de caça assustada.

— O que significa isso? — indagou sem que estivesse falando com ninguém em particular. — Quero ir lá fora tomar um pouco de ar e esse sujeito me arrastou cá para baixo...

Snitkin olhava na direção de Markham.

— O sargento Heath me disse que não deixasse ninguém sair de casa e este cara estava tentando cair fora. Cheio da gaita, também... O que devo fazer com ele?

— Não vejo nenhuma razão pela qual o doutor não tome um pouco de ar — disse Vance, dirigindo-se a Markham. — Não teremos nenhuma conferência com ele a não ser mais tarde.

— Para mim está bem — concordou Heath. — Há pessoas demais dentro desta casa.

Markham acenou com a cabeça para Snitkin.

— Pode deixar o doutor ir dar uma volta, patrulheiro. —Voltou o olhar na direção de Bliss. — Por favor, volte, senhor, dentro de uma meia hora. Queremos fazer-lhe perguntas.

— Estarei de volta antes disso — somente quero ir dar uma volta no parque. — Bliss parecia nervoso e preocupado. — Sinto-me estranhamente pesado e sufocado. Meus ouvidos estão zunindo assustadoramente.

— E, segundo creio — acrescentou Vance — o senhor está com uma sede fora do comum.

O doutor olhou-o com alguma surpresa.

— Eu já consumi cerca de quatro litros de água desde que fui para o meu quarto. Espero que não esteja às portas de um ataque de malária...

— Espero que não, senhor. Creio que se sentirá per-^ feitamente bem mais tarde.

Bliss hesitou ao transpor o portal.

— Algo de novo? — quis saber ele.

— Oh, muita coisa. — Vance falou sem entusiasmo. — Mas trataremos disso mais tarde.

Bliss franziu o cenho e esteve por fazer outra pergunta. No entanto, mudou de idéia e, inclinando-se, saiu, com Snitkini, acompanhando-o mal-humorado.

 


XIII

 

Uma tentativa de fuga

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 15:45 horas)

 

 

Foi Hani quem quebrou o silêncio após a partida de Bliss.

— Quer que eu vá embora, effendi? — perguntou a Vance, com um respeito que me pareceu exagerado.

— Sim, sim. — Vance se pusera distrait e introspectivo. Eu sabia que estava remoendo alguma coisa em sua cabeça. Permanecia próximo da mesa, com as mãos nos bolsos, olhando atentamente para o samovar. — Vá lá para cima, Hani. Tome algum bicarbonato de sódio — e pense um pouco. Curve-se divinamente, por assim dizer; entregue-se a um pouco de "exercício sagrado" como diz Shakespeare em seu... é no Richard III?

— Sim, effendi — no Ato III. Catesby usa essa frase para o Duque de Buckhingham.

— Surpreendente! — Vance estudou o egípcio criticamente. — Eu não fazia idéia de que os fellahin fossem tão versados nos clássicos.

— Eu costumava ler quatro horas de cada vez para Meryt-Amen quando ela era mais jovem...

— Ah, sim. — Vance abandonou o assunto. — Mandaremos chamá-lo quando precisarmos de você. Nesse meio tempo espere no seu quarto.

Hani inclinou-se e se dirigiu para o saguão.

— Não se iluda com as aparências, effendi — disse ele solenemente, voltando-se ao chegar à porta. — Eu não estou compreendendo inteiramente as coisas que aconteceram nesta casa hoje, mas não se esqueça...

— Muito obrigado. — Vance fez um gesto com a mão, dispensando Hani. — Pelo menos não me esquecerei de que o seu nome é Anûpu.

Com um olhar de raiva o homem desapareceu. Markham estava ficando cada vez mais impaciente.

— Tudo nesse caso parece vão — queixou-se ele. — Qualquer pessoa da casa poderia ter posto ópio no café — o que nos leva exatamente ao mesmo ponto em que estávamos ao vir para a saleta de refeições... Por falar nisso, onde acha você que Hani encontrou a lata de ópio?

— Oh, isso? No quarto de Salveter, claro... Por demais óbvio, sabe?

— Quero ir para o inferno se vejo algo de óbvio a esse respeito. Por que teria Salveter deixado a lata lá?

— Mas Salveter não a deixou lá, meu caro... Meu Deus! Você não percebe que alguém nesta casa tinha idéias? Há um deus ex machina no nosso meio e que se está preocupando horrivelmente com a situação. A trama foi por demais inteligente é há um gênio tutelar procurando simplificar as coisas para nós.

Heath pigarreou em violento desgosto.

— Bem, em minha opinião, esse anjo está fazendo um trabalho infernal.

Vance sorriu com simpatia.

— Um trabalho diabólico, digamos, sargento. Markham olhou-o com inquisitivo olhar de desagrado.

— Você acredita, Vance, que Hani tenha estado nesta saleta depois que a Sra. Bliss e Salveter subiram?

— E possível. De fato parece mais provável que tenha sido Hani do que a Sra. Bliss ou Salveter.

— Se a porta da frente estivesse destrancada — sugeriu Markham — poderia concebivelmente ter sido alguém de fora.

— Seu assaltante hipotético? — perguntou Vance secamente. — Passou por aqui, talvez, para um pouco de estimulante cafeínico antes de atacar sua vítima no museu. — Vance não deu a Markham tempo para uma resposta, e se dirigiu para a porta. — Vamos interrogar os ocupantes da sala de visitas. Precisamos de algumas outras informações... oh, muito mais informações.

Vance liderou o caminho até em cima. Enquanto caminhávamos no saguão de cima pesadamente atapetado, na direção da sala de visitas, chegou até nós uma voz aguda e zangada. A Sra. Bliss estava falando e percebi as últimas palavras de uma frase.

—... deveria ter esperado.

Salveter respondeu em tom rude e tenso.

— Meryt! Você está maluca...

Vance pigarreou e fez-se silêncio.

Antes, porém, que entrássemos na sala, Hennessey chamou misteriosamente Heath da frente do saguão. O sargento passou além da porta da sala de visitas e nós, pressentindo alguma revelação, seguimos seus passos.

— Sabe, aquele pássaro, Scarlett, que o senhor me disse para deixar sair — informou Hennessey em um sussurro — bem, exatamente quando ia saindo voltou-se repentinamente e correu escadas acima. Ia atrás dele, mas como o senhor lhe tinha dado o OK, achei que estava bem. Alguns minutos depois ele desceu e saiu sem uma palavra. Fiquei pensando se não teria sido melhor se eu o tivesse seguido lá em cima...

— Você agiu corretamente, Hennessey. — Vance falou antes que o sargento pudesse responder. — Não havia qualquer razão para que ele não fosse até lá em cima — provavelmente foi falar com o Dr. Bliss.

Hennessey pareceu aliviado e olhou esperançosamente na direção de Heath, que se limitou a grunhir seu desdém.

— E por falar nisso, Hennessey, — continuou Vance — quando o egípcio veio aqui em cima a primeira vez, foi diretamente para o andar de cima ou, en route, passou pela sala de visitas?

— Ele entrou e falou com a senhora...

— Você ouviu alguma coisa do que ele disse?

— Não. Pareceu-me que estavam conversando em uma dessas línguas estrangeiras.

Vance voltou-se para Markham e disse em voz baixa: — Foi por isso que mandei "Hani subir sozinho. Eu imaginava que ele se aproveitaria da oportunidade para se comunicar com a Sra. Bliss. — Tornou a falar com Hennessey. — Quanto tempo permaneceu Hani na sala de visitas?

— Um minuto ou dois, talvez. Não mais do que isso. — O detetive estava ficando apreensivo. — Eu deveria ter impedido que ele fosse lá?

— Oh, não... O que aconteceu depois?

— O sujeito saiu da sala, parecendo preocupado e foi lá para cima. Desceu logo em seguida, com uma lata na mão. "O que tem você aí, Abdullah?", perguntei. "Algo que o Sr. Vance me mandou buscar. Tem alguma objeção?", indagou ele. "Não, se você está falando a verdade; mas não estou gostando de sua cara", respondi. O homem me deu as costas e desceu.

— Perfeito, Hennessey — concordou Vance, encorajadoramente. Em seguida, tomando Markham pelo braço, voltou até à sala de visitas. — Creio que o melhor será interrogar a Sra. Bliss.

Quando entramos a mulher levantou-se para nos cumprimentar. Estava sentada junto à janela da frente e Salveter permanecia encostado na porta de dobrar que conduzia à sala de jantar. Obviamente deviam ter assumido essas posições quando nos ouviram no saguão, pois, enquanto subíamos, estavam conversando bem perto um do outro.

— Lamentamos ter que perturbá-la, Sra. Bliss, — começou Vance cortesmente — mas é necessário que a interroguemos agora.

Ela aguardou sem o menor movimento ou sem mudança de expressão e fiquei com a impressão nítida de que a Sra. Bliss ressentiu-se com a nossa intrusão.

— E Sr. Salveter, — prosseguiu Vance, voltando seu olhar para o homem — por favor vá para o seu quarto. Iremos vê-lo mais tarde.

Salveter pareceu desconcertado e preocupado.

— Não poderei estar presente...? — começou ele.

— Não — cortou Vance, com desusada severidade. Percebi que até mesmo Markham ficara algo surpreendido com sua maneira. — Hennessey! — chamou Vance na direção da porta, e o detetive apareceu quase imediatamente. — Escolte este cavalheiro até seu quarto e veja que não se comunique com ninguém até que o convoquemos.

Salveter, lançando um olhar de apelo para a Sra. Bliss, saiu da sala, com o detetive ao lado.

— Sente-se, por favor, madame. — Vance aproximou-se da mulher e, depois que ela se sentou, puxou uma cadeira a sua frente. — Vamos fazer-lhe algumas perguntas íntimas e se a senhora realmente deseja que o assassino do Sr. Kyle seja levado à justiça, não se ressinta com as perguntas e responda-as francamente.

— O assassino do Sr. Kyle é uma criatura desprezível e desumana — respondeu ela em voz tensa e dura — e farei tudo o que puder para ajudá-los. — A mulher não olhou para Vance, concentrando seu olhar em um enorme camafeu cor-de-mel que usava no indicador da mão direita.

As sobrancelhas de Vance se ergueram ligeiramente.

— A senhora acha, então, que fizemos bem em liberar seu marido?

Não pude perceber o propósito da pergunta de Vance e a resposta da mulher confundiu-me ainda mais. Ela ergueu a cabeça vagarosamente e olhou um de nós de cada vez. Finalmente disse: — O Dr. Bliss é um homem muito paciente. Muitas pessoas julgam-no erradamente. Não tenho certeza sequer, se Hani lhe é absolutamente leal. Mas meu marido não é nenhum tolo, ainda que não seja muito esperto às vezes. Não ponho o crime além de suas possibilidades ou das possibilidades de qualquer um. O crime, muitas vezes, pode significar a mais alta forma de coragem. No entanto, se o meu marido houvesse assassinado o Sr. Kyle, não teria sido tão estúpido a esse respeito — certamente não teria deixado indícios apontando em sua direção... — A Sra. Bliss tornou a olhar para as mãos cruzadas. — Mas, se ele estivesse pensando em um crime, o Sr. Kyle não seria o objeto de sua ação. Há outras pessoas de quem ele teria mais razões para desejar fora do caminho.

— Hani, por exemplo?

— Talvez.

— Ou o Sr. Salveter?

— Quase que qualquer pessoa com exceção do Sr. Kyle — tornou a mulher, sem nenhuma modulação perceptível da voz.

— A irritação poderia ter ditado o crime. — Vance falou como se estivesse apenas discutindo um ponto meramente acadêmico. — Se o Sr. Kyle se tivesse recusado a continuar financiando as escavações...

— O senhor não conhece meu marido. Tem o temperamento mais equilibrado que já vi. Paixão é algo desconhecido em sua natureza. Não dá qualquer passo sem uma longa deliberação.

— A mente de um sábio — murmurou Vance. — Sim, sempre tive dele essa impressão. — Tirou a cigarreira. — Incomoda-se se eu fumar?

— O senhor se incomoda se eu o fizer? Vance pôs-se de pé e lhe estendeu a cigarreira.

— Ah, Régies! — A mulher escolheu um cigarro. — Tem muita sorte, Sr. Vance. Não havia nenhum disponível na Turquia quando fiz uma encomenda.

— Tenho sorte dupla, pois posso oferecer-lhe um. — Vance acendeu o cigarro da Sra. Bliss e retomou sua cadeira. — Em sua opinião, Sra. Bliss, quem se beneficiaria mais com a morte do Sr. Kyle? — Vance fez a pergunta descuidadamente, mas pude perceber que observava a mulher atentamente.

— Não sei dizer. — Era claro que a mulher estava em guarda.

— Mas, por certo — insistiu Vance — alguém seria beneficiado por sua morte. Do contrário ele não teria sido assassinado.

— Este é um ponto que cabe à polícia esclarecer. Não posso dar-lhe qualquer ajuda em torno dessa linha.

— Talvez a polícia já se tenha dado por satisfeita a esse respeito e eu esteja meramente lhe fazendo a pergunta para fins de corroboração. — Vance, conquanto se mantivesse cortes, falava com alguma significação definida. — Olhando o problema friamente, a polícia pode argumentar que a morte súbita do Sr. Kyle removeria um espinho do flanco de Hani e acabaria com aquilo que ele chama de violação dos túmulos de seus ancestrais. Além disso a polícia poderia agarrar-se ao fato de que a morte do Sr. Kyle enriqueceria não só a senhora como o Sr. Salveter.

Esperei que a mulher se ressentisse com essa observação de Vance, mas ela se limitou a levantar os olhos e esboçar um frígido sorriso e a dizer em tom desapaixonado: — Sim, acredito que haja um testamento indicando o Sr. Salveter e eu mesma como os principais beneficiários.

— O Sr. Scarlett já nos falou a esse respeito — retrucou Vance. — É muito compreensível... E, por falar nisso, a senhora está pretendendo usar sua herança para perpetuar os trabalhos do Dr. Bliss no Egito?

— Certamente — tornou ela com indisfarçável ênfase. — Se ele me pedir para ajudá-lo, o dinheiro estará a sua disposição para fazer o que desejar... Especialmente agora — acrescentou ela.

A expressão facial de Vance se tornara fria e séria e após um rápido levantar dos olhos tornou a baixá-los e ficou contemplando o próprio cigarro.

Nesse momento Markham levantou-se.

— Quem, Sra. Bliss, — perguntou ele, com o que interpretei como desnecessária agressividade — teria um objetivo para tentar responsabilizar o Dr. Bliss por este crime?

O olhar da mulher se modificou, mas apenas por um instante.

— Tenho certeza de que não sei — retrucou ela. — Alguém, de fato, tentou fazer uma coisa dessas?

— A senhora mesma o sugeriu, madame, quando foi chamada sua atenção para o alfinete de escaravelho. A senhora disse, positivamente, que alguém o teria posto ao lado do corpo do Sr. Kyle.

— E daí? — Ela se tornara, de súbito, desafiante. — Meu instinto inicial era, naturalmente, defender o meu marido.

— Contra quem?

— Contra o senhor e contra a polícia.

— A senhora lamenta esse "instinto inicial"? — Markham fez a pergunta bruscamente.

— Certamente não! — A mulher retesou-se em sua cadeira e olhou sub-repticiamente na direção da porta.

Vance percebeu-lhe a ação e disse: — É apenas um dos detetives lá no saguão. O Sr. Salveter está aguardando em seu boudoir... nada poderá escutar.

Rapidamente ela cobriu o rosto com as mãos e um estremecimento percorreu-lhe o corpo..

— O senhor está-me torturando — protestou ela.

— E a senhora está-me olhando por entre os dedos — observou Vance com um sorriso suave.

A Sra. Bliss se pôs de pé e olhou ferozmente para Vance.

— Por favor não diga "Como ousa o senhor?" — falou Vance. — É uma frase tão comum. E sente-se, novamente... Hani informou a senhora, acredito — em sua linguagem nativa — que se supunha que tenham posto ópio no café do Dr. Bliss hoje pela manhã. O que mais lhe disse ele?

— Isso foi tudo o que disse. — A mulher tornou a sentar-se; parecia exausta.

— A senhora sabia que o ópio era guardado no armário lá de cima?

— Eu não sabia disso — replicou ela desatentamente — ainda que não me surpreenda.

— O Sr. Salveter sabia disso?

— Oh, sem dúvida... se é que estava mesmo lá. Ele e o Sr. Scarlett são os encarregados dos suprimentos médicos.

Vance encarou-a rapidamente.

— Ainda que Hani não o tivesse admitido — disse ele — tenho a certeza de que a lata de ópio foi encontrada no quarto do Sr. Salveter.

— Sim? (Não pude deixar de sentir que a Sra. Bliss estava esperando essa notícia. De qualquer modo, não foi surpresa para ela.) — Por outro lado — continuou Vance — o ópio pode ter sido encontrado por Hani em seu quarto.

— Impossível! Em meu quarto não poderia estar! — explodiu a Sra. Bliss, que se acalmou, porém, ao defrontar-se com o olhar fixo de Vance. — Isto é, não sei como teria sido possível — rematou fracamente.

— Provavelmente estou enganado — murmurou Vance.

— Mas, diga-me, Sra. Bliss, voltou à saleta de refeições hoje pela manhã para uma outra xícara de café, depois que a senhora e o Sr. Salveter haviam subido?

— Eu... eu... — a mulher tomou uma respiração profunda. — Sim!... Há algum crime nisso?

— Encontrou-se com Hani na saleta?

Após uma breve hesitação ela respondeu: — Não. Ele estava em seu quarto, doente... mandei seu café lá.

Heath rosnou, desgostosamente.

— Estamos descobrindo umas quantas coisas — resmungou ele.

— É mesmo, sargento — concordou Vance prazerosamente. — Uma quantidade surpreendente. O auxílio da Sra. Bliss é imenso. — Voltou-se novamente para a mulher. — A senhora sabe, é claro, quem matou o Sr. Kyle? — perguntou ele brandamente.

— Sim... sei! — As palavras foram pronunciadas com impulsivo rancor.

— E sabe também por que foi ele assassinado?

— Sei disso, também. — Uma mudança súbita se apossou dela, que parecia simultaneamente com medo e excitada; a trágica aridez de sua atitude assombrou-me.

Heath emitiu uma estranha e indistinta exclamação.

— Diga-nos quem foi — explodiu ele irascivelmente, agitando o charuto junto ao rosto da mulher — ou mandarei prendê-la como testemunha acessória ou material...

— Calma, calma, sargento! — Vance levantou-se e colocou a mão apaziguadoramente no ombro de Heath. — Por que precipitar-se? Não lhe traria absolutamente qualquer benefício encarcerar a Sra. Bliss neste momento... E, além disso, ela pode estar completamente errada em sua diagnose do caso.

Markham entrou em cena.

— Tem razões definidas para sua opinião, Sra. Bliss? — perguntou ele. — A senhora dispõe de alguma prova contra o assassino?

— Evidência legal, não — respondeu ela calmamente. — Mas... mas... — Faltou-lhe a voz e sua cabeça tombou para a frente.

— Creio que a senhora saiu de casa às nove horas da manhã de hoje. — A voz calma de Vance pareceu refazê-la.

— Sim. Pouco depois do café.

— Compras?

— Peguei um táxi até à Quarta Avenida, para ir ao Altman. Não vi lá o que queria e fui a pé até o metrô. Dirigi-me ao Wanamaker e, mais tarde, ao Lord e ao Taylor. Depois fui até o Saks, e finalmente entrei em uma lojinha da Avenida Madison...

— A rotina usual — suspirou Vance. — E a senhora, é claro, não comprou coisa alguma?

— Encomendei um chapéu na Avenida Madison...

— Notável! — Vance sentiu que Markham o estava olhando e acenou com a cabeça significativamente. — Creio que isto é tudo pelo momento, Sra. Bliss — disse Vance. — Por favor vá para o seu quarto e aguarde lá.

A mulher levou um lencinho aos olhos e nos deixou sem dizer palavra.

Vance foi até à janela e olhou para a rua. Ele estava, segundo eu percebia, profundamente perturbado com o resultado da entrevista. Abriu a janela e os sonolentos ruídos de verão chegaram da rua até nós. Vance permaneceu em silêncio durante alguns momentos e nem Markham nem Heath interromperam sua meditação. Por fim, Vance voltou-se e, sem olhar para nós, disse, em tom calmo e introspectivo: — Há demasiadas correntes cruzadas nesta casa — demasiados motivos, demasiados objetivos a serem colimados, demasiadas complicações emocionais. Um caso plausível poderia ser levantado quase que contra qualquer um...

— Mas quem poderia lucrar com o envolvimento de Bliss no crime? — quis saber Markham.

— Oh, meu Deus! — Vance inclinou-se contra a mesa do centro e olhou um retrato a óleo, grande, do doutor, pendurado na parede leste. — Aparentemente qualquer um. Hani não gosta de seu empregador e se debate em agonia psíquica a cada cesta de areia que é retirada da tumba de Intef. Salveter está apaixonado pela Sra. Bliss e, naturalmente, o marido é um obstáculo a seus desejos. Quanto à dama propriamente, não a quero julgar mal, mas estou inclinado a acreditar que ela retribui a afeição do jovem cavalheiro. Se é assim, a eliminação de Bliss não a levaria ao suicídio.

O rosto de Markham sombreou-se.

— Também fiquei com a impressão de que o próprio Scarlett não é impermeável aos encantos da dama e de que existe uma certa frieza entre ele e Salveter.

Certo. Ça crève les yeux. — Vance acenou com a cabeça abstratamente. — A Sra. Bliss é inegavelmente fascinante... digo eu. Se ao menos eu pudesse encontrar a pista que estou procurando! Sabe, Markham, estou com a impressão de que algo novo irá acontecer dentro em breve. A trama, até agora, vem saindo errada. Fomos conduzidos pelo criminoso a um labirinto mouro, mas a chave não foi ainda colocada em nossas mãos. Quando tal acontecer, saberei para que porta ela serve — e não será a porta que o criminoso pretende que nós usemos. Nossa dificuldade no momento é que temos pistas em demasia e nenhuma delas é a pista real. Aí está por que não podemos fazer prisões. Devemos esperar que a trama se desenvolva.

— Este desenvolvimento, como o senhor o chama, é muito rápido para mim — retorquiu Heath impacientemente. — E não me importo em admitir que, em meu modo de pensar, estamos sendo desviados. Após tudo o que foi dito e o que foi feito, não foram as impressões digitais de Bliss, e de ninguém mais, que foram encontradas na estátua? Não foi o seu alfinete de gravata encontrado ao lado do corpo? E não teve ele todas as oportunidades para liquidar Kyle?...

— Sargento, — falou Vance pacientemente — iria um homem inteligente e de treinamento científico profundo cometer um assassinato e não apenas negligenciar suas impressões digitais na arma, mas também ser tão descuidado ao ponto de deixar cair seu alfinete de gravata na cena do crime e em seguida esperar calmamente em seu quarto que a polícia venha prendê-lo, depois de ter produzido pegadas de sangue para guiá-la?

— E ainda há o ópio, sargento — aduziu Markham. — A mim parece muito claro que o doutor estava drogado.

— Faça como quiser, senhor. — O tom de Heath beirava a impolidez. — Mas para mim não estamos indo a parte alguma.

Enquanto ele falava Emery assomou à porta.

— Telefone para o senhor, sargento — anunciou. — Lá embaixo.

Heath saiu apressadamente e desapareceu no saguão. Voltou três ou quatro minutos depois. Tinha o rosto aberto em sorrisos e gingava enquanto se encaminhava para Vance.

— Ahn! — Enfiou os polegares nas Cavas do colete. — Seu bom amigo Bliss acaba de tentar a fuga. Um de meus homens, Guilfoyle,1 a quem telefonei para que seguisse o doutor, passou a acompanhá-lo assim que ele saiu desta casa para o passeio no parque. Mas ele não foi para o parque, Sr. Vance. Foi pela Quarta Avenida até o Corn Exchange Bank, na Rua Vinte e Nove. Estava fora do expediente, mas ele conhecia o gerente e não teve dificuldades em conseguir o seu dinheiro...

 

 

 

(1) Guilfoyle, lembrei-me, era o detetive do Departamento de Homicídios que foi destacado para vigiar Tony Skeel, no caso da Canária e que informou a respeito da luz acesa toda a noite na casa de Drukker, no caso do Bispo.

 

 

— Dinheiro?

— Claro! Sacou tudo o que tinha no banco — em notas de vinte, de cinqüenta e de cem — e em seguida tomou um táxi. Guilfoyle saltou para outro táxi e seguiu-o até a cidade. Ele desceu na Grande Estação Central e se dirigiu apressadamente ao guichê. "Quando parte o próximo trem para Montreal?" perguntou ele. "Quatro e quarenta e cinco", informou o bilheteiro. "Quero uma ida", disse o doutor... Eram então quatro horas e o doutor foi até o portão e lá ficou, esperando. Guilfoyle se aproximou dele e perguntou: "Vai dar um passeio no Canadá?" O doutor se pôs arrogante e não quis responder. "De qualquer modo", disse Guilfoyle, "não creio que o senhor saia hoje do país", e pegando o doutor pelo braço levou-o até à cabina telefônica... Guilfoyle está vindo para cá com o seu inocente amigo. — O sargento se balançou para cá e para lá na ponta dos pés. — O que diz a isso, senhor?

Vance olhou-o lugubremente.

— E isso é tido como um outro sinal de culpa do Dr. Bliss? — Sacudiu a cabeça desanimadamente. — Será possível que o senhor encare uma tentativa tão infantil de fuga como incriminante?... Diga-me, sargento, não poderia essa idéia surgir na cabeça de um cientista inexperiente, próximo do pânico?

— Claro que sim. — Heath riu-se desagradavelmente. — Todos os patifes e assassinos se assustam e tentam cair fora. Mas isso não prova sua inocência.

— Ainda assim, sargento, — a voz de Vance era desanimadora — um criminoso que acidentalmente deixa pistas por todos os lados apontando diretamente para sua pessoa e, em seguida, se permite essa tolice de tentar cair fora estüpidamente, não é por certo brilhante. E posso assegurar-lhe que o Dr. Bliss nem é imbecil nem lunático.

— Tudo isso não passa de palavras, Sr. Vance — declarou o sargento obstinadamente. — Este pássaro cometeu um bocado de erros e, vendo que ia ser apanhado, procurou sair do país. E aqui estou para dizer-lhes que a coisa está fazendo sentido.

— Oh, minha tia... minha querida e trêmula tia! — Vance deixou-se afundar e que sua cabeça caísse para trás cansadamente, contra o forro rendado.


CONTINUA

O brutal e fantástico assassinato do velho mecenas e filantropo Benjamim H. Kyle ficou desde logo conhecido como o Crime do Escaravelho, em razão de girarem os seus episódios em torno de um escaravelho azul encontrado junto ao corpo mutilado da vítima.
O sinete, esculpido com o nome de um primitivo faraó, foi a base do sólido tecido de provas coligidas pela perspicácia de Vance. Segundo a polícia, aquele era um indício meramente incidental, que comprometia evidentemente o dono do objeto, mas a Vance não atraía essa explicação singela e plausível.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/5_O_CRIME_DO_ESCARAVELHO.webp

 

I

Crime!


(Sexta-feira, 13 de julho — 11:00 horas)


Philo Vance foi atraído ao caso do Crime do Escaravelho por mera coincidência, conquanto quase não haja dúvida de que John F.-X, Markham, procurador distrital de Nova York, teria, mais cedo ou mais tarde, convocado os seus serviços. De qualquer forma, é problemático que mesmo Vance, com seu excelente cérebro analítico e seu notável faro para as sutilezas da psicologia humana, pudesse ter resolvido esse surpreendente e bizarro assassínio, se não fosse o primeiro a acorrer à cena do crime. Afinal de contas, ele somente conseguiu pôr o dedo no culpado devido aos confusos indícios que o seu olho pôde captar em uma inspeção inicial.

Esses indícios — altamente enganadores do ponto de vista material — deram-lhe finalmente a chave para a mentalidade do assassino, capacitando-o, assim, a elucidar um dos problemas criminais mais incríveis e complicados da moderna história policial.

O assassinato brutal e fantástico do velho filantropo e patrono das artes, Benjamin H. Kyle, quase imediatamente veio a ficar conhecido como o Crime do Escaravelho, como resultante do fato de ter sido cometido em um famoso museu particular de egiptologia e ter-se centrado em torno de um raro escaravelho azul, encontrado ao lado do corpo mutilado da vítima.

Esse antigo e valioso selo, que tinha inscrito o nome de um dos primeiros faraós — cuja múmia, incidentalmente, não tinha ainda sido descoberta naquela época — constituiu a base sobre a qual Vance apoiou sua surpreendente estrutura de provas. O escaravelho, do ponto de vista policial, era, meramente, uma prova acidental de acusação, que apontava, de maneira um tanto óbvia, para o seu proprietário. No entanto, esta explicação fácil e específica não satisfez a Vance.

— Assassinos — observou ele ao sargento Ernest Heath — ordinariamente não inserem seus cartões de visita nas fraldas da camisa de suas vítimas. Assim, conquanto a descoberta do besouro de lápis-lazúli seja do máximo interesse, do ponto de vista psicológico e do ponto de vista evidenciai, não nos devemos sentir demasiadamente otimistas e pular para as conclusões. O ponto mais importante neste crime pseudomístico é por que e como o criminoso deixou esse espécime arqueológico ao lado do cadáver. Desde que encontremos a razão dessa estranha ação teremos atingido o próprio segredo do crime.

O vigoroso sargento tinha desdenhado a sugestão de Vance e ridicularizado o seu cepticismo. No entanto, antes que se passasse um outro dia, veio a admitir, generosamente, que Vance estava certo e que o crime não tinha sido assim tão simples como parecera a princípio.

Como já disse, foi uma coincidência que atraiu Vance a este caso, antes que a polícia fosse notificada. Um conhecido seu deparou-se com o corpo do velho Sr. Kyle e, imediatamente, correu até ele com as sombrias notícias.

Isso aconteceu na manhã de sexta-feira, 13 de julho. Vance havia acabado de tomar um tardio desjejum no terraço de seu apartamento, na Rua 38, e voltara à biblioteca, a fim de continuar a translação de fragmentos de Menandro, encontrados em papiros egípcios nos primeiros anos do corrente século, quando Currie — seu camareiro e mordomo — apareceu à porta e anunciou com um ar de discreta desculpa: — O Sr. Donald Scarlett acaba de chegar, senhor, em estado de dolorosa excitação, e pede-lhe que se apresse a recebê-lo.

Vance levantou os olhos de seu trabalho com uma expressão de aborrecimento.

— Scarlett, ahn? Que amolação... Por que me vem visitar se está excitado? Prefiro, imensamente, pessoas calmas... Você lhe ofereceu conhaque com soda ou algum calmante triplo?

— Tomei a liberdade de colocar a sua frente um serviço de Curvoisier — explicou Currie. — Sei que o Sr. Scarlett aprecia muito o conhaque de Napoleão.

— Ah, sim... é verdade. Muito bem, Currie. — Vance, calmamente, acendeu um de seus cigarros Régie e permaneceu fumando durante alguns momentos, em silêncio. — Suponhamos que você o faça entrar, quando o julgar com os nervos suficientemente calmos.

Currie inclinou-se e saiu.

— Sujeito interessante este Scarlett — comentou Vance para mim. (Eu tinha estado com Vance a manhã toda, ordenando e classificando suas anotações). — Você se lembra dele, não, Van?

Eu estivera com Scarlett duas vezes, mas devo admitir que havia um mês ou mais que não pensava nele. Sua imagem, porém, voltou a mim naquele momento, com considerável clareza. Ele fora, eu sabia, colega de Vance em Oxford, e Vance esbarrara nele dois anos antes, durante sua estada no Egito.

Scarlett era um estudioso de egiptologia e de arqueologia, assuntos sobre os quais se especializara em Oxford, sob a direção do professor F. L. Griffith. Posteriormente, estudara química e fotografia, a fim de que pudesse juntar-se a alguma expedição egiptóloga, na qualidade de técnico. Era abastado cidadão britânico, amador e diletante, que fizera da egiptologia uma espécie de excentricidade.

Na ocasião em que Vance fora a Alexandria, Scarlett trabalhava no laboratório do Museu do Cairo. Os dois tornaram a encontrar-se e renovaram seu antigo conhecimento. Recentemente Scarlett viera aos Estados Unidos como membro da equipe do Dr. Mindrum W. C. Bliss, egiptólogo famoso, que mantinha um museu particular de antiguidades egípcias, num velho prédio da Rua 20, Leste, em frente ao Gramercy Park. Havia visitado Vance inúmeras vezes desde que chegara, e fora no apartamento de Vance que eu o conhecera. No entanto, nunca viera sem convite e me custava compreender seu inesperado aparecimento naquela manhã, já que ele possuía toda a meticulosidade de um inglês bem-educado, com relação aos assuntos sociais.

Vance, também, estava um pouco surpreso, apesar de sua atitude de afetada indiferença.

— Scarlett é um rapaz inteligente — resmungou Vance, pensativamente. — E muito correto. Por que terá vindo procurar-me a esta hora imprópria? E por que estará excitado? Espero que nenhuma desgraça se tenha abatido sobre o seu erudito empregador... Bliss é um homem surpreendente, Van, um dos maiores egiptólogos do mundo.'

 

 

(1) O Dr. Mindrum W. C. Bliss, possuidor de inúmeras condecorações e títulos, foi o autor de The Stele of Intefoe at Koptos, de uma History of Egypt during the Hyksos Invasion, de The Seventeenth Dynasty, e de uma monografia sobre os colossos de Amen-hotpe III.

 

 

Lembro-me de que, durante o inverno que passara no Egito, Vance tinha ficado grandemente interessado nos trabalhos do Dr. Bliss, que se esforçava em localizar a tumba do Faraó Intef V, que reinara no Egito Superior e em Tebas, durante a invasão dos hyksos. De fato, Vance acompanhou Bliss em uma expedição ao Vale dos Reis. Naquela ocasião ele havia sido atraído pelos fragmentos de Menandro e se encontrava no meio de uma translação desses fragmentos quando o caso do Crime do Bispo Preto interrompeu o seu trabalho.

Vance também se interessava nas variações de cronologia entre o Antigo e o Médio Reino do Egito, não do ponto de vista histórico, mas sim do ângulo de evolução da arte egípcia. Suas pesquisas o haviam levado para o lado da cronologia Bliss-Weigall — ou cronologia curta2 —, em contraposição à cronologia longa de Hall e de Petrie, de acordo com a qual eram recuadas a décima segunda dinastia e toda a História precedente de um ciclo sótico completo, ou 1460 anos. Após examinar os objetos de arte das eras pré e pró hyksos, Vance mostrou-se inclinado a postular por um intervalo de não mais de 300 anos entre a décima segunda e a décima oitava dinastias, conforme com a cronologia mais curta.

 

 

(2) De acordo com a cronologia de Bliss-Weigall, o período entre a morte de Sebk-nefru-Re e a queda dos Reis Pastores, em Mênfis, estendeu-se de 1898 a 1577 a.C, isto é, 321 anos, enquanto os seguidores de cronologia mais longa alegam 1800 anos. Esta cronologia curta é ainda mais reduzida de acordo com Breasted e* a escola alemã. Breasted e Meyer datam o mesmo período como sendo de 1788 a 1580 a.C. Vance, no entanto, considerava esses 208 anos como muito curtos para as modificações culturais observáveis.

 

 

Comparando certas estátuas feitas durante o reinado de Amen-em-hêt III com outras da época de Thut-mose I — deste modo cobrindo a invasão dos hyksos, com sua influência barbárica asiática e seu aniquilamento da cultura egípcia nativa — Vance chegara à conclusão de que a manutenção dos princípios estéticos da décima segunda dinastia não poderia ter sido possível com uma lacuna maior do que 300 anos. Em resumo, ele concluíra que, se o interregno tivesse sido mais longo, os indícios da decadência da décima oitava dinastia teriam sido ainda mais pronunciados.

Essas pesquisas de Vance passaram pela minha cabeça naquela abafada manhã de julho, enquanto aguardávamos que Currie introduzisse o visitante. A comunicação da visita de Scarlett trouxera de volta a lembrança das cansativas semanas despendidas para organizar e passar a máquina as anotações de Vance sobre o assunto. Talvez eu tenha pressentido — o que denominamos vagamente de premonição — que a visita de surpresa de Scarlett estivesse de algum modo relacionada com as pesquisas estético-egiptólogas de Vance. Talvez, mesmo então, eu estivesse ordenando em meu cérebro, inconscientemente, os fatos daquele inverno de dois anos antes, de modo a que eu pudesse entender melhor o objetivo da visita de Scarlett.

No entanto, com toda a certeza, eu não fazia a mínima idéia nem suspeitava do que realmente iria desabar sobre nós. Era algo demasiado estarrecedor e estranho para a imaginação casual. Era algo que nos iria tirar da rotina ordinária da experiência do dia-a-dia e nos mergulhar em uma atmosfera embolorada e miasmática de coisas ao mesmo tempo incríveis e aterradoras — coisas férteis na aparentemente sobrenatural magia negra de um sabá de bruxas. A diferença é que, neste caso, era o caráter místico e fantástico do velho Egito — com sua confusa mitologia e sua grotesca galeria de deuses com cabeças de animais — que fornecia o fundo de quadro.

Scarlett transpôs quase desabaladamente os umbrais da biblioteca quando Currie afastou a porta de correr para que ele entrasse. Ou o Curvoisier havia aumentado sua excitação ou Currie, deploravelmente, subestimara o estado de nervos do homem.

— Kyle foi assassinado — deixou escapar o recém-chegado, encostando-se à mesa da biblioteca e encarando Vance com olhos arregalados.

— Que coisa! Que maçada! — Vance puxou a cigarreira. — Fume um de meus Régies... Essa cadeira a seu lado é muito confortável. Da época do Rei Charles; encontrei-a em Londres... Que estupidez pessoas serem assassinadas, não? De qualquer modo é algo que não podemos evitar. A raça humana é diabolicamente sedenta de sangue.

Sua indiferença exerceu efeito salutar em Scarlett que se deixou cair na cadeira e se pôs a acender o cigarro com mãos trêmulas.

Vance aguardou um momento antes de perguntar: — Casualmente, como você soube que Kyle foi assassinado?

Scarlett teve um sobressalto.

— Eu o vi caído lá, a cabeça esmigalhada. Uma visão aterradora, sem sombra de dúvida.

Vance recostou-se languidamente em sua cadeira e fez com as longas mãos afiladas uma pirâmide.

— Esmigalhado com quê? E caído lá onde? E como veio você a descobrir o corpo?... Controle-se, Scarlett, e faça um esforço para ser coerente.

Scarlett franziu o sobrecenho e puxou profundas baforadas do cigarro. Era um homem de cerca de quarenta anos, alto e esguio, com a cabeça mais alpina do que nórdica — um tipo dinárico. Tinha a testa ligeiramente saliente e o queixo redondo e recessivo. Seu aspecto era o de uma pessoa estudiosa, embora não fosse o de um sedentário devorador de livros, pois havia força e rudeza em seu corpo; o rosto era profundamente bronzeado, como o de um homem que tivesse vivido muitos anos ao sol e ao ar livre. Havia em seus olhos intensos um traço de fanatismo — expressão de certo modo acentuada por uma cabeça quase completamente calva. Ainda assim, dava-me a impressão de honestidade e franqueza — no que, pelo menos, seu institucionalismo britânico mostrava-se fortemente evidente.

— Você está certo, Vance — disse, após uma breve pausa, com um esforço mais ou menos bem sucedido de acalmar-se. — Como você sabe, cheguei com o Dr. Bliss a Nova York em maio, como membro de sua equipe, e venho fazendo para ele todos os serviços técnicos. Tenho os meus pertences ali ao dobrar a esquina do museu, em Irving Place. Esta manhã eu precisava classificar um monte de fotografias e cheguei ao museu pouco depois das dez e meia...

— Sua hora usual? — quis saber Vance, negligentemente.

— Oh, não. Esta manhã eu estava um pouco atrasado. Estivéramos trabalhando a noite passada em um relatório financeiro da última expedição.

— E então?

— Que coisa engraçada — continuou Scarlett. — A porta da frente estava ligeiramente aberta — normalmente tenho que tocar a campainha. No entanto, não vi nenhuma razão para perturbar Brush...

— Brush?

— O mordomo de Bliss... Assim, limitei-me a abrir a porta e entrar para o saguão. A porta de aço de acesso ao museu, que fica à direita do saguão, raramente está trancada, e eu a abri. Assim que comecei a descer as escadas para o museu vi que alguém se encontrava caído no lado oposto da sala. Pensei, inicialmente, que se tratasse de uma das caixas de múmias que havíamos desempacotado ontem — a luz não era muito boa — mas logo que os meus olhos se adaptaram percebi que era Kyle. Estava encolhido, com os braços estendidos sobre a cabeça... Mesmo então ainda pensei que estivesse desfalecido; pus-me a descer os degraus em sua direção.

Scarlett fez uma pausa e passou o lenço — que tirou do punho da camisa — na cabeça brilhante.

— Por Jó, Vance! Que visão pavorosa... Kyle foi atingido na cabeça por uma das novas estátuas que colocamos no museu ontem e seu crânio estava esmigalhado como uma casca de ovo. A estátua ainda permanecia atravessada em sua cabeça.

— Você tocou em alguma coisa?

— Bom Deus, não! — disse Scarlett, com a ênfase do horror. — Estava-me sentindo muito mal — a coisa era aterradora. E não era preciso abrir mais de um olho para ver que o pobre sujeito estava morto.

Vance estudou o homem atentamente.

— Qual foi a primeira coisa que você fez?

— Chamei o Dr. Bliss, cujo escritório fica no alto das escadas em espiral, na parte de trás do museu...

— E não obteve resposta?

— Não, não houve resposta... Então, admito... fiquei apavorado. Não me agradava a idéia de ser encontrado com um homem assassinado e disparei de volta para a porta de entrada. Pensei em cair fora e não dizer que estivera lá...

— Ah! — Vance inclinou-se para a frente e escolheu outro cigarro cuidadosamente. — E então, quando você se achou na rua novamente, sentiu-se preocupado.

— Foi isso, precisamente! Não parecia honesto deixar o pobre diabo lá... mas, mesmo assim, não me queria ver envolvido... Já estava, então, chegando à Quarta Avenida, carregando a coisa comigo e esbarrando nas pessoas, sem as ver. Foi quando pensei em você. Sabia que você conhecia o Dr. Bliss e o empreendimento e poderia dar-me um bom conselho. Um outro ponto é que eu me sentia um pouco estranho em um país novo e não tinha certeza de a quem relatar o assunto... Assim, me apressei a vir até aqui. — Scarlett interrompeu-se de súbito e observou Vance ansiosamente. — Qual é o procedimento?

Vance esticou as longas pernas à sua frente e preguiçosamente contemplou a ponta de seu cigarro.

— Deixe os procedimentos comigo — respondeu finalmente. — Não é assim tão complicado e varia de acordo com as circunstâncias. Podemos chamar a Delegacia de Polícia ou. pôr a cabeça para fora da janela e berrar, ou confiar em um guarda de tráfego, ou simplesmente ignorar o cadáver e esperar que outro tropece nele. No final tudo vem a dar na mesma coisa, pois o criminoso, quase certamente, pode cair fora em segurança... No entanto, no presente caso, vou variar um pouco de sistema e chamar o edifício da Corte Criminal por telefone.

Vance se voltou para o telefone francês, de madrepérola, colocado a seu lado em cima de uma mesinha veneziana, e pediu um número. Poucos momentos mais tarde estava falando com o procurador distrital.

— Minhas saudações, Markham, velho amigo. Que tempo abominável, não? — Sua voz era demasiadamente indolente para que fosse convincente. — Casualmente, Benjamin H. Kyle foi em busca de seu Criador por meios repugnantes. No momento ele jaz no soalho do Museu Bliss com o crânio completamente fraturado... Oh, sim, bem morto, pelo que sei. Você, por acaso, está interessado? Pensei que seria inamistoso mas estou-lhe comunicando... Triste, muito triste... Estou em vias de fazer algumas observações in situ criminis... Psiu, psiu! Esta não é hora de recriminações. Não fique tão infernalmente sério... Realmente, creio que será melhor que venha também... Está bem! Espero você aqui.

Recolocou o receptor em seu suporte e tornou a recostar-se na cadeira.

— O procurador distrital não tardará a estar aqui — anunciou ele — e provavelmente teremos tempo para algumas observações antes de a polícia chegar.

Os olhos de Vance voltaram-se sonhadoramente para Scarlett.

— Sim, como diz você, conheço o empreendimento de Bliss. As possibilidades, no caso, são fascinantes: poderão vir a mostrar-se muito divertidas... (Eu sabia pela sua expressão que o seu cérebro antegozava — não sem um certo grau de antecipado interesse — um novo problema criminal). — Então a porta da frente estava aberta, hem? E quando você chamou ninguém respondeu?

Scarlett fez um gesto afirmativo, mas nenhuma resposta audível foi emitida. Obviamente ele estava intrigado com a recepção casual de Vance relativamente a sua apavorante descrição.

— Onde estavam os criados? Não poderiam ter ouvido a sua chamada?

— Provavelmente não. Eles se encontram do outro lado da casa, lá embaixo. A única pessoa que poderia ter-me ouvido era o Dr. Bliss, desde que estivesse em seu escritório.

— Você poderia ter tocado a campainha da frente ou ter chamado alguém do saguão principal — sugeriu Vance.

— É verdade — admitiu Scarlett. — Mas não se esqueça, meu velho... eu estava em pânico...

— Sim, sim... claro. Mais do que natural. Indícios de prima-facie e tudo o mais. Muito suspeito, não? Ainda assim, você não tinha nenhuma razão para desejar ver o velho excêntrico fora do caminho, não?

— Oh, meu Deus, não! — Scarlett ficou pálido. — Ele entrava com o dinheiro. Sem o seu apoio as escavações de Bliss e o próprio museu irão por água abaixo.

Vance concordou com a cabeça.

— Bliss falou-me sobre a situação quando eu estive no Egito... Não é Kyle o dono da propriedade onde está situado o museu?

— Sim, ambas as casas. Você sabe, são duas casas. Bliss, sua família e o jovem Salveter — sobrinho de Kyle — vivem numa delas e o museu ocupa a outra. Foram abertas duas portas e a entrada da casa que abriga o museu foi fechada com tijolos. Assim, praticamente, é um único prédio.

— E onde morava Kyle?

— Na casa de pedra calcária castanho-avermelhada junto ao museu. Ele era o proprietário de um bloco de seis ou sete casas vizinhas naquela mesma rua.

Vance se pôs de pé e caminhou meditativamente até à janela.

— Você sabe como Kyle veio a interessar-se em egiptologia? É um assunto bem fora de sua especialidade. Seu fraco era por hospitais e por aqueles incríveis retratos ingleses da escola Gainsborough. Ele foi um dos licitantes do Blue Boy. Felizmente para ele não o arrematou.

— Foi o jovem Salveter que levou seu tio a financiar Bliss. O rapaz era aluno de Bliss quando este era professor de egiptologia em Harvard. Quando se formou estava sem emprego e o velho Kyle financiou a expedição para que o rapaz tivesse alguma coisa para fazer. O velho Kyle gostava muito do sobrinho.

— E Salveter tem estado com Bliss desde essa época?

— Sim. Até o ponto de viver na própria casa de Bliss. Não saiu de seu lado desde a primeira visita que fizeram ao Egito, três anos atrás. Bliss o fez Curador-Assistente do Museu. Ele de fato merecia a função. Um rapaz brilhante que vive e come egiptologia.

Vance tornou a se aproximar da mesa e tocou a campainha chamando Currie.

— A situação tem suas possibilidades — observou ele em seu modo pachorrento habitual. — Casualmente, que outros membros do pessoal da casa de Bliss se encontravam lá?

— A Sra. Bliss — a quem você conheceu no Cairo — uma moça estranha, meio egípcia, muito mais jovem do que o marido. Hani, um egípcio, que Bliss trouxe, ou melhor, que a Sra. Bliss trouxe com ela. Hani foi um velho dependente do pai de Meryt...

— Meryt?

Scarlett piscou e pareceu embaraçado.

— A Sra. Bliss, quero dizer — explicou. — Seu nome próprio é Meryt-Amen. No Egito, como você sabe, é normal referir-se a uma senhora pelo seu primeiro nome.

— Oh, sim. — Um sorriso ligeiro perpassou pelo canto da boca de Vance. — E que posição esse Hani ocupa entre a criadagem?

Scarlett franziu os lábios.

— Uma posição um tanto anômala, se me pergunta. Um fellahin, uma espécie de cristão copta. Ele acompanhava o velho Abercrombie — o pai de Meryt — em suas várias viagens de exploração. Quando Abercrombie morreu, ele passou a ser como que o pai adotivo de Meryt. Nesta primavera ele acompanhou a expedição de Bliss, desempenhando alguma função de menor categoria como representante do governo egípcio. É como que um faz-tudo de alta classe com relação ao museu. Também conhece um bocado de egiptologia.

— No momento ele mantém alguma função oficial do governo egípcio?

— Isso não sei... embora não me surpreendesse se ele estivesse fazendo um pouco de espionagem patriótica. Nunca se sabe nada a respeito desses indivíduos.

— Que outras pessoas completam a criadagem?

— Há dois criados americanos: Brush, o mordomo, e Dingle, a cozinheira.

Nesse momento Currie entrou na biblioteca.

— Oh, sim, Currie — dirigiu-se Vance a ele — um eminente cavalheiro acaba de ser assassinado aqui nas vizinhanças e vou dar uma espiada no corpo. Prepare um terno cinzento e meu Bangkok. Uma gravata sóbria, é lógico... Mas Currie, em primeiro lugar o Amontillado.

— Sim, senhor.

Currie recebeu a notícia como se assassinatos fossem acontecimentos rotineiros em sua vida e retirou-se.

— Você sabe de alguma razão, Scarlett, — perguntou Vance — pela qual Kyle deveria ser afastado do caminho?

O outro hesitou, quase imperceptivelmente.

— Não posso imaginar — respondeu, contraindo as sobrancelhas. — Era um velho bom e generoso; pomposo e um tanto vazio, mas eminentemente amável. No entanto, não conheço sua vida particular. Talvez tenha tido inimigos...

— Mesmo assim — sugeriu Vance — não é exatamente provável que um inimigo o tenha seguido até o museu e descarregado sua vingança sobre ele em um lugar estranho, em que qualquer pessoa poderia ter entrado.

Scarlett retesou-se abruptamente.

— Mas você não está insinuando que alguma pessoa da casa...

— Meu querido amigo!

Nesse momento Currie entrou com o sherry e Vance serviu-o em três copos. Depois de ter bebido, pediu licença e foi-se vestir. Scarlett ficou caminhando de um lado para outro, inquietamente, durante o quarto de hora em que Vance esteve ausente. Havia jogado fora o seu cigarro e acendera um velho cachimbo, de cheiro quase atroz.

Quase no mesmo instante em que Vance retornava à biblioteca uma buzina de automóvel soou roucamente do lado de fora. Markham se encontrava lá embaixo, a nossa espera.

Quando nos encaminhávamos para a porta Vance perguntou a Scarlett: — Era normal que Kyle estivesse no museu a essa hora* da manhã?

— Não, bastante inusual. No entanto, o Dr. Bliss marcara um encontro com ele para esta manhã, a fim de discutirem as despesas da última expedição e as possibilidades de continuarem as escavações na próxima temporada.

— Você sabia desse encontro? — indagou Vance, indiferentemente.

— Oh, sim. O Dr. Bliss o chamou por telefone a noite passada, durante a conferência, quando estávamos organizando o relatório.

— Bem, bem. — Vance passou para o saguão. — Então, havia também outras pessoas que sabiam que Kyle estaria no museu esta manhã.

Scarlett parou e pareceu surpreender-se.

— Realmente, você não está insinuando... — começou ele.

— Quem ouviu o encontro ser marcado? — Vance já estava descendo as escadas.

Scarlett o seguiu intrigado, de olhos baixos.

— Bem, deixe-me ver... Salveter, Hani e...

— Por favor, continue.

— E a Sra. Bliss.

— Todos da casa, enfim, com exceção de Brush e Dingle?

— Sim... Mas olhe aqui, Vance; o encontro era para as onze horas e o pobre velho excêntrico já estava morto antes das dez e meia.

— Está tudo muito embrulhado — resmungou Vance.

 

 


II

 

A vingança de Sakhmet

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 11:30 horas)

 

 

Markham recebeu Vance com um olhar de fria reprovação.

— O que quer dizer isso? — perguntou ele, asperamente. — Eu estava no meio de uma importante reunião do Comitê...

— O significado está ainda por ser descoberto — interrompeu Vance despreocupadamente, entrando no carro. — A causa de sua desagradável presença, no entanto, é um crime o mais fascinante.

Markham fuzilou-o com um olhar astuto e determinou ao motorista que conduzisse o automóvel, com toda a pressa possível, até o Museu Bliss. Ele reconhecera os sintomas da perturbação de Vance: uma aparência exterior frívola, da parte de Vance, era sempre indicativa de um interior sério. 4

Markham e ele eram amigos havia mais de quinze anos e Vance o tinha ajudado em inúmeras de suas investigações. Na verdade, ele passara a depender da assistência de Vance nos mais complicados casos criminais ocorridos sob sua jurisdição (1) (1) Como conselheiro para os assuntos legais, administrador de bens e companhia constante de Philo Vance, mantive um registro completo dos principais casos criminais de que Vance participou e da incumbência de Markham. Quatro desses casos eu já registrei sob a forma de livros: O Caso Benson, O Crime da Canária, A Série Sangrenta e Bispo Preto.

 

Seria difícil encontrar-se dois homens tão diametralmente opostos, sob o ponto de vista temperamental. Markham era austero, agressivo, franco, grave e um tanto solene. Vance era jovial, caprichoso e superficialmente cínico: um amador de artes com um interesse apenas impessoal em sérios problemas sociais e morais. No entanto, era essa verdadeira disparidade em suas naturezas que parecia uni-los.

No caminho para o museu, situado uns poucos blocos adiante, Scarlett contou novamente para o procurador distrital os detalhes de sua macabra descoberta.

Markham ouviu atentamente. Em seguida voltou-se para Vance.

— É claro que pode tratar-se apenas de um assalto comum. Alguém, da rua...

— Oh, por minha tia! — Vance suspirou e sacudiu a cabeça lugubremente. — Realmente, como você sabe, assaltantes não penetram em conspícuas residências particulares, à luz do dia, e esfacelam a cabeça das pessoas com uma estátua. Eles, pelo menos, trazem suas próprias armas e escolhem cenários onde possam dispor de algum grau de segurança.

— Bem, de qualquer modo — resmungou Markham — já notifiquei ao sargento Heath.1 Ele não demorará a chegar.

 

 

(1) Sargento Ernest Heath, do Departamento de Homicídios, que trabalhou com Markham na maior parte de seus casos importantes. Era policial honesto e capaz, mas sem inspiração, que, após os casos Benson e da Canária, passara a ter Vance em alta conta. Vance também admirava o sargento e os dois — a despeito de suas diferenças fundamentais em aspecto e em educação — colaboravam um com o outro com admirável afabilidade.

 

 

Na esquina da Rua Vinte com a Quarta Avenida o carro parou. Um patrulheiro uniformizado, que se encontrava em frente a uma cabina telefônica, reconhecendo o procurador distrital, perfilou-se e fez continência.

— Pule para o banco da frente, patrulheiro — determinou Markham. — Pode ser que precisemos de você.

Ao chegarmos ao museu, Markham postou o patrulheiro ao pé da escada que conduzia à dupla porta da frente. Imediatamente subimos até o vestíbulo.

Anotei mentalmente as duas casas, das quais Scarlett já nos tinha feito uma breve descrição. Cada uma delas tinha uma fachada de oito metros e ambas eram construídas com lajes grandes de calcário castanho-avermelhado. A casa da direita não tinha porta de entrada, a qual, obviamente, tinha sido fechada com tijolos. Também não havia janelas na passagem entre os dois prédios. A casa da esquerda, no entanto, não havia sido alterada. Era uma casa de três andares; um lance largo de degrau de pedra com corrimão também de pedra conduzia ao primeiro andar. O "porão", como é comum em tais estruturas, ficava um pouco abaixo do nível da rua. Em outras épocas as duas casas tinham sido exatamente iguais, mas agora, com as alterações feitas na entrada comum, davam a impressão de um prédio único.

Quando entramos no vestíbulo pouco profundo — uma característica de todas as velhas mansões de lajes castanho-avermelhadas daquela rua — notei que a pesada porta de entrada, de carvalho, que Scarlett havia dito encontrar-se aberta naquela manhã, mais cedo, estava agora fechada. Vance, por sua vez, observou o fato, pois logo se voltou para Scarlett e perguntou: — Você fechou a porta quando saiu da casa?

Scarlett fixou seriamente os painéis maciços, como se estivesse procurando relembrar suas ações.

— Realmente, meu velho, não consigo lembrar-me — respondeu ele. — Eu estava infernalmente transtornado. Talvez tenha fechado a porta...

Vance mexeu na maçaneta e a porta abriu.

— Bem, bem. De qualquer modo o ferrolho foi corrido. Muito descuidado da parte de alguém... É isso normal?

Scarlett olhou atônito.

— Nunca soube que estivesse destrancada.

Vance ergueu a mão, indicando que permanecêssemos no vestíbulo e se encaminhou calmamente para a porta de aço da direita, que levava ao museu. Pudemos vê-lo abri-la cautelosamente, mas não distinguimos o que se encontrava além dela. Vance desapareceu por um momento.

— Oh, Kyle está bem morto — anunciou ele sombriamente ao voltar. — Aparentemente ninguém o descobriu até agora. — Cuidadosamente tornou a fechar a porta. — Não devemos tirar partido de o trinco não ter sido passado — acrescentou. — Vamos nos manter dentro das regras e ver quem nos atende. — Em seguida pressionou o botão da campainha.

Poucos momentos depois a porta foi aberta por um homem cadavérico e clorotico, em uniforme de mordomo. O homem inclinou-se indiferentemente para Scarlett e inspecionou friamente a nós outros.

— Brush, creio eu — Foi Vance quem falou.

O homem inclinou-se ligeiramente, sem afastar os olhos de nós.

— O Dr. Bliss está? — perguntou Vance.

Brush interrogou Scarlett com os olhos. Tendo recebido um sinal confirmatório abriu um pouco mais a porta.

— Sim, senhor — respondeu. — Está em seu escritório. A quem devo anunciar?

— Não é necessário perturbá-lo, Brush — Vance passou para o saguão de entrada e nós o seguimos. — O doutor permaneceu em seu escritório toda a manhã?

O mordomo empertigou-se e tentou reprovar Vance com um olhar de insolente indignação. Vance sorriu, amistosamente.

— Sua atitude é muito correta, Brush. Mas não estamos desejando lições de etiqueta. Aqui o Sr. Markham, procurador distrital de Nova York. Estamos aqui para obter informações. Você não gostaria de prestá-las voluntariamente?

O homem havia percebido a presença do patrulheiro uniformizado ao pé das escadas de pedra e empalidecera.

— Você estará prestando um favor ao doutor com suas respostas — opinou Scarlett.

— O Dr. Bliss está em seu escritório desde as nove horas da manhã — respondeu o mordomo, em tom de injuriada dignidade.

— Como pode ter certeza disso? — quis saber Vance.

— Levei lá o seu café e tenho estado aqui neste andar desde então.

— O escritório do Dr. Bliss — interpôs Scarlett — fica depois deste saguão. — Apontou para uma porta guarnecida por cortina, no fim do extenso corredor.

— Ele deve estar-nos ouvindo agora — observou Markham.

— Não, a porta é forrada — explicou Scarlett. — O escritório é o seu sanctum sanctorum; nenhum som da casa chega-lhe ao ouvido.

O mordomo, com os olhos brilhando, começara a movimentar-se.

— Só um momento, Brush. — A voz de Vance o fez parar. — Quem mais se encontra em casa agora?

O homem se voltou e, quando respondeu, pareceu-me que sua voz tremia ligeiramente.

— O Sr. Hani está lá em cima. Ele tem andado indisposto...

— Oh, sim? — Vance puxou a cigarreira. — E que outras pessoas da casa?

— A Sra. Bliss saiu por volta das nove horas — para fazer algumas compras, foi o que a entendi dizer. O Sr. Salveter saiu de casa pouco depois.

— E Dingle?

— Está lá embaixo na cozinha, senhor. Vance estudou o mordomo avaliativamente.

— Você está precisando de um tônico, Brush. Uma combinação de ferro, arsênico e estriquinina levantaria suas forças.

— Sim, senhor. Estou pensando em consultar um médico... É falta de ar livre, senhor.

— É isso mesmo — Vance havia escolhido um de seus bem-amados Régies e o estava acendendo com meticuloso cuidado. — Casualmente, Brush, onde está o Sr. Kyle? Ele apareceu aqui esta manhã, creio eu.

— Ele está lá no museu... Tinha-me esquecido, senhor. O Dr. Bliss talvez esteja com ele.

— É mesmo. A que horas chegou o Sr. Kyle?

— Por volta das dez horas.

— Foi você quem o recebeu?

— Sim, senhor.

— Você avisou o Dr. Bliss de sua chegada?

— Não, senhor. O Sr. Kyle me disse que não havia necessidade de perturbar o doutor. Ele explicou que era muito cedo para o encontro que haviam marcado e que desejava examinar algumas curiosidades do museu, durante cerca de uma hora. Disse que mais tarde bateria à porta do escritório do doutor.

— O Sr. Kyle foi diretamente para o museu?

-— Sim, senhor. Na verdade fui eu quem abriu a porta para ele.

Vance fumou prazerosamente durante alguns momentos.

— Uma coisa mais, Brush. Notei que o trinco da porta da frente estava corrido, de modo que qualquer pessoa de fora poderia entrar na casa sem tocar a campainha...

O homem ia dizer alguma coisa, mas, dirigindo-se rapidamente até à porta, inclinou-se e examinou o trinco.

— De fato, senhor... Muito estranho. Vance o observava atentamente.

— Por que estranho?

— Bem, senhor, o trinco não estava corrido quando o Sr. Kyle chegou às dez horas. Verifiquei-o especialmente quando o fiz entrar. Ele disse que desejava ficar sozinho no museu e como membros da casa deixam às vezes a porta destrancada quando saem por pouco tempo, procurei certificar-me de que ninguém o havia feito esta manhã. De outro modo, poderiam entrar e perturbar o Sr. Kyle sem que eu os pudesse avisar.

— Mas, Brush, —- interpôs Scarlett excitadamente — quando cheguei aqui às dez e meia a porta estava aberta...

Vance fez um gesto admonitório.

— Está bem, Scarlett. — Em seguida voltou-se para o mordomo. — Para onde você foi depois de ter feito o Sr. Kyle entrar?

— Até a sala de visitas — O homem apontou para uma porta de correr, à esquerda, a meio caminho da parede do saguão, ao pé das escadas.

— E até que horas permaneceu lá?

— Até dez minutos atrás.

— Você ouviu o Sr. Scarlett entrar e sair pela porta da frente?

— Não, senhor... Mas, então, eu estava usando o aspirador de pó. O barulho do motor...

— Muito bem. Mas se o motor estava funcionando, como você sabe que o Dr. Bliss não saiu de seu escritório?

— A porta da sala de visitas estava aberta, senhor. Se ele saísse eu teria visto.

— Ele, porém, poderia ter passado pelo museu e saído da casa pela porta da frente sem que você o ouvisse. Como você sabe, não ouviu o Sr. Scarlett entrar.

— Isso está fora de questão, senhor. O Dr. Bliss estava vestido apenas com um roupão leve sobre o pijama. Todas as suas roupas estão lá em cima.

— Muito bem, Brush... Agora mais uma pergunta. A campainha da porta da frente tocou alguma vez depois da chegada do Sr. Kyle?

— Não, senhor.

— Talvez tenha tocado e Dingle tenha atendido... O ruído do motor, sabe...

— Ela teria subido e me avisado, senhor. Ela nunca atende à porta na parte da manhã. Ela se encontra mesmo em trajes apresentáveis até depois do meio-dia.

— O que é caracteristicamente feminino — resmungou Vance... Por enquanto é tudo, Brush. Pode descer e esperar que o chamemos. O Sr. Kyle sofreu um acidente e vamos dar uma espiada. Não comente coisa alguma, compreendeu? A voz de Vance, de repente, tornara-se dura e agourenta.

Brush respirou profundamente e se recompôs; parecia positivamente doente e cheguei a esperar que desfalecesse. Seu rosto estava branco como giz.

----Certamente, senhor... eu compreendo. — Suas palavras pareciam articuladas com grande esforço. Em seguida afastou-se nervosamente e desapareceu pelas escadas de trás, à esquerda da porta do escritório do Dr. Bliss.

Vance falou em voz baixa com Markham, que imediatamente chamou com um gesto o patrulheiro que se encontrava na rua, lá embaixo.

— Você fica aqui no vestíbulo — determinou. — Quando o sargento Heath e os seus homens chegarem, traga-os até nós imediatamente. Estaremos aqui — Indicou a larga porta de aço que permitia o acesso ao museu. — Se alguém aparecer, detenha e nos avise. Não deixe ninguém tocar a campainha.

O patrulheiro fez continência é assumiu seu posto. Nós, com Vance à frente, passamos através da porta de aço e entramos no museu.

Um lance de escadas atapetadas, com um metro de largura, descia ao longo da parede até atingir a enorme sala abaixo, ao nível da rua. O soalho do primeiro andar — ao mesmo nível do saguão da casa, que acabávamos de deixar — fora removido, de modo que a sala do museu tinha uma altura de dois andares. Duas imensas colunas, com vigas de aço e travessas em diagonal, tinham sido levantadas como apoio. Além disso, as paredes que delimitavam as peças anteriores haviam sido demolidas. O resultado era que a peça na qual acabávamos de entrar ocupava toda a largura e todo o comprimento da casa — cerca de oito por vinte metros — e tinham um teto de quase seis metros de alto.

Na frente havia uma série de janelas altas e envidraçadas, correndo ao longo de toda a largura do prédio; atrás, por cima de uma série de armários de carvalho, um correr de janelas similares tinha sido aberto. As cortinas das janelas da frente encontravam-se cerradas, mas as de trás estavam abertas. O sol ainda não conseguira penetrar na sala, e a luz era muito fraca.

Enquanto nos detínhamos por alguns instantes no topo das escadas, notei uma escada de ferro, circular, à retaguarda, que levava a uma pequena porta de aço ao mesmo nível da porta através da qual havíamos entrado.

A disposição do museu com relação à casa em que se acomodavam os Bliss viria a demonstrar-se de capital importância na solução do assassinato de Benjamin Kyle encontrada por Vance e, para melhor compreensão, estou incluindo neste registro uma planta das duas casas. O soalho do museu, como já disse, ficava ao nível da rua — fora, anteriormente, o soalho do "porão". Deve-se ter em mente que as peças indicadas na planta, em sua metade esquerda, ficavam um andar acima do soalho do museu e a meio caminho entre este mesmo soalho e o teto.

Meus olhos buscaram logo o canto oposto da sala, procurando o homem assassinado. Essa parte do museu, no entanto, estava na sombra, e tudo que pude perceber foi uma massa escura, como um corpo humano deitado, em frente do armário que se encontrava na extremidade mais afastada do aposento.

Vance e Markham haviam descido as escadas, enquanto Scarlett e eu aguardávamos no patamar superior. Vance se encaminhou diretamente para a parte da frente do museu e puxou os cordões das cortinas. A luz invadiu a semi-escuridão. Pela primeira vez pude perceber os surpreendentes e maravilhosos conteúdos daquela grande sala.

No centro da parede oposta elevava-se um obelisco de Heliópolis, de três metros de altura, comemorativo de uma expedição da Rainha Hatshepsut, da décima oitava dinastia, e ostentando o seu símbolo. À direita e à esquerda do obelisco estátuas de gesso — uma da Rainha Teti-shiret, da décima sétima dinastia, e a outra uma réplica da famosa estátua de Turim de Ramsés II, considerada uma das melhores peças esculpidas da antigüidade.

Acima e ao lado delas encontravam-se pendurados diversos papiros, emoldurados e cobertos por vidros, seu desbotado fundo cor de laranja queimada — entremeado por pontos vermelhos, amarelados, esverdeados e brancos — constituindo-se em manchas de coloração atraente contra o esmaecido emboco acinzentado da parede. Quatro enormes baixo-relevos de calcário, retirados de uma tumba da décima nona dinastia, em Mênfis, e contendo passagens do Livro dos Mortos, alinhavam-se acima dos papiros.

Sob as janelas da frente via-se um sarcófago de granito da vigésima segunda dinastia, de cerca de três metros de comprimento, cuja frente e as laterais se achavam recobertas por inscrições hieroglíficas. O sarcófago estava coberto por uma tampa em formato de múmia, onde se destacava o pássaro do espírito, ou Ba, em forma de falcão, mas com a cabeça de um homem. Este sarcófago era um dos mais raros existentes na América, para onde tinha sido trazido pelo Dr. Bliss, da antiga necrópole de Tebas. No canto, mais além, uma estátua em cedro de um asiático, encontrada na Palestina — uma relíquia das conquistas de Thut-mose III.

Próximo à parte de baixo das escadas erguia-se a majestosa estátua de Kha-ef-Re, da quarta dinastia. Era feita com gesso cinzento de Paris, envernizada e polida, imitando a diorita original. Tinha cerca de 2,5 metros de altura e sua dignidade, sua força e sua calma magistral pareciam dominar todo o museu. (1) (1) Kha-ef-Rê foi o originador da grande Esfinge e também de uma das três grandes pirâmides de Gizeh — Wer Kha-ef-Rê (Kha-ef-Rê é poderoso), hoje conhecida como a Segunda Pirâmide.

À direita da estátua e estendendo-se até a escada em espiral à retaguarda, encontrava-se uma fileira de caixas de múmia antropóides, ostentosamente decoradas a ouro e a cores brilhantes. Acima delas, duas enormes ampliações coloridas — uma mostrando os Colossos de Amen-hopte III,2 e a outra o Grande Templo de Amûn, em Karnak.

 

 

(2) Popular e incorretamente conhecidos como os Colossos de Mem-non.

 

 

Em torno das duas colunas de apoio no centro do museu, prateleiras profundas haviam sido feitas, nelas estando disposta uma fascinante coleção de shawabtis — figuras de madeira magnificamente esculpidas e pintadas em cores alegres.

Estendendo-se entre as duas colunas, uma mesa longa e baixa, coberta de veludo, com uns quatro metros de comprimento, onde se expunha uma linda coleção de frascos canopos e de perfumaria, vasos azuis em forma de lótus, potes kohl de obsídio polido e diversos recipientes cilíndricos esculpidos, para cosméticos, de alabastro opaco e semitranslúcido. Ao fundo da sala havia uma arca larga e baixa com incrustações de faiança azul vitrificada, marfim branco e vermelho, e ébano negro, ao lado da arca via-se um assento real, decorado com gesso e ouro e ostentando desenho de flores e de botões de lótus.

Ao longo da parte fronteira da sala uma caixa-vitrina, coberta de vidro, contendo colares esmaltados, amuletos em majólica, conjuntos de conchas, guirlandas de caurim, contas rômbicas de carnalita e feldspato, braceletes, argolas de tornozelo e anéis, leques de ébano e ouro e uma coleção de escaravelhos, em sua maior parte dos tempos faraônicos até os ptolemaicos.

Em volta das paredes, logo abaixo do teto, corria uma frisa de uns dois metros — uma cópia parcial da famosa Rapsódia de Penta-Weret, comemorando a vitória de Ramsés II sobre os hititas, em Kadesh, na Síria.

Tão depressa Vance abriu as pesadas cortinas das janelas da frente, ele e Markham se dirigiram para a parte de trás do museu. Scarlett e eu descemos as escadas e os seguimos. Kyle estava deitado sobre o rosto, as pernas ligeiramente curvadas sob ele e os braços esticados e circundando os pés de uma estátua de tamanho natural, no ângulo da sala. Eu já vira inúmeras vezes reproduções dessa estátua, mas não sabia o seu nome.

Foi Vance quem me esclareceu. Ele permanecia observando o corpo encolhido do homem morto e, lentamente, seus olhos se voltaram para a serena escultura — um trabalho em pedra calcária de coloração castanha, mostrando um homem com cabeça de chacal e empunhando um cetro.

— Anúbis — murmurou Vance, o rosto tornando-se tenso. — O Deus egípcios do submundo. Você sabe, Markham, Anúbis era o Deus que vagava entre os túmulos dos mortos. Ele é que guiava a morte no interior de Amentet — a sombria morada de Osíris. Este deus representa papel importante no Livro dos Mortos, onde simboliza o sepulcro; era ele quem avaliava os espíritos dos homens e destinava cada um à sua morada. Sem o auxílio de Anúbis o espírito jamais encontraria o Reino das Sombras. Era o único amigo dos agonizantes e dos mortos... E eis aqui Kyle, em atitude de final de piedosa súplica à sua frente.

Durante um momento os olhos de Vance se detiveram nas benevolentes linhas de Anúbis. Depois o seu olhar se deslocou sonhadoramente para o homem prostrado, que, não fora o horrível ferimento na cabeça, poderia encontrar-se em humilde adoração ao deus do submundo.

Vance apontou para a estátua menor que havia causado a morte de Kyle. Essa estátua tinha uns 60 cm de comprimento, era escura e brilhante. Permanecia ainda atravessada diagonalmente na parte de trás do crânio do homem assassinado; parecia ter-se encaixado e mantido ali na concavidade produzida pelo golpe. Uma poça irregular de sangue negro havia-se formado ao lado da cabeça e notei — sem prestar ao fato maior importância — que em um dos pontos da sua periferia a poça parecia ter-se alongado para fora, no assoalho de madeira polida.

— Não gosto disso — estava dizendo Vance em voz baixa para Markham. — Não estou gostando nada... Aquela estátua de diorita que atingiu Kyle é Sakhmet, a deusa egípcia da vingança — o elemento destruidor. Era ela a deusa que protegia os bons e aniquilava os maus... a deusa que destruía. Os egípcios acreditavam em seu violento poder e são muitas as lendas relativas a seus obscuros e terríveis atos de vingança...


III

 

Scarabae us sacer


(Sexta-feira, 13 de julho — meio-dia)

 

 

Vance franziu levemente o cenho e estudou durante um momento a pequena estátua escura.

— Talvez não queira dizer nada — certamente nada sobrenatural — mas o fato de que essa particular estátua tenha sido escolhida para o crime faz-me imaginar que possa haver algo diabólico, sinistro e supersticioso neste caso.

— Espere aí, Vance — falou Markham, com forçada casualidade. — Estamos na moderna Nova York e não no legendário Egito.

— Sim... oh, sim. Superstição, no entanto, é ainda um fator dominante na denominada natureza humana. Além disso, nesta sala há muitas outras armas mais convenientes — armas completamente letais e mais facilmente empunháveis. Por que uma desajeitada e pesada estátua de Sakhmet teria sido escolhida para o crime?... De qualquer modo é necessário um homem vigoroso para utilizá-la com tanta força.

Vance olhou para Scarlett, cujos olhos não se desprendiam do homem morto, completamente fascinado.

— Onde é mantida essa estátua? Scarlett piscou os olhos.

— Bem... deixe-me ver... — Ele estava, obviamente, procurando pôr em ordem suas idéias. — Ah, sim. Em cima daquele armário. — Scarlett indicou nervosamente a série de prateleiras à frente do corpo de Kyle. — Era uma das novas peças que desempacotamos ontem. Hani colocou-a ali. Como vê, usávamos este último armário temporariamente para o novo item, até que pudéssemos arrumá-lo e catalogá-lo apropriadamente.

Havia dez seções na série de armários que se alinhavam ao longo da parte de trás do museu, cada um deles com cerca de um metro de largura e pouco mais de 2,5m de altura. Estes armários — que na realidade não eram outra coisa senão prateleiras abertas — encontravam-se cheios de toda a espécie de raridades: dúzias de exemplares de frascos e vasos de madeira, frascos de perfume, arcos e flechas, instrumentos agrícolas, espadas, adagas, espelhos de bronze e de cobre, tabuleiros de marfim para jogos, caixas de perfumes, chicotes, sandálias de folhas de palmeiras, pentes de madeira, paletas, encostos para a cabeça, cestas de junco, colheres esculpidas, ferramentas de modelagem, facas de sacrifício em pedra, máscaras funerárias, estatuetas, colares e coisas semelhantes.

Cada armário dispunha de uma cortina própria de um tecido parecido com rep de seda, suspenso por anéis de latão em uma pequena haste de metal. As cortinas de todos os armários se encontravam abertas, com exceção do que ficava à frente do local onde jazia o corpo de Kyle, numa das extremidades. A cortina desse armário estava apenas parcialmente aberta.

Vance havia-se voltado.

— E a respeito deste Anúbis, Scarlett? — perguntou ele. — Foi também uma aquisição recente?

— Sim, também veio ontem. Foi colocado naquele canto, para conservar toda a carga junta.

Vance concordou com a cabeça e se encaminhou para o armário cuja cortina estava parcialmente aberta. Durante alguns instantes permaneceu examinando o interior das prateleiras.

— Muito interessante — murmurou, como se estivesse falando consigo mesmo. — Vejo que vocês têm uma esfinge barbada, pós-hyksos, muito rara... E o vaso de vidro azul é encantador... embora não tanto como aquela cabeça de leão, acolá, de massa azul... Ah! Vejo também inúmeros indícios da natureza belicosa de Intef... como aquela acha de combate, por exemplo... Ah!... Meu Deus... Há várias cimitarras e adagas que positivamente parecem asiáticas. E... — Vance olhou ainda mais atentamente a prateleira de cima —... uma coleção a mais fascinante de maças de cerimônia.

— Coisas que o Dr. Bliss recolheu em sua recente expedição — explicou Scarlett. — Aquelas maças de pedra e de porfírio vêm da antecâmara da tumba de Intef...

Nesse momento a grande porta de aço do museu chiou em seus gonzos e o sargento Heath e três detetives apareceram no topo das escadas. O sargento desceu imediatamente para o museu, deixando seus homens no pequeno patamar de cima.

Cumprimentou Markham com o usual aperto de mãos ritualista.

— Como está, senhor? — resmungou. — Vim o mais rápido possível. Trouxe três rapazes do Departamento e mandei avisar o capitão Dubois e o Dr. Doremus' para que viessem também.

 

 

(1) O capitão Dubois era, então, o especialista em impressões digitais do Departamento de Polícia do Estado de Nova York e o Dr. Doremus, o médico legista.

 


— Parece que vamos nos ver metidos em outro escândalo desagradável, sargento. — O tom de voz de Markham era pessimista. — Aquele ali é Benjamin H. Kyle.

Heath olhou agressivamente para o homem morto e soltou um grunhido.

— Um serviço sórdido — comentou entredentes. — Que diabo de coisa é aquela com que foi atingido?

Vance, que permanecera examinando as prateleiras, de costas para nós, voltou-se então de frente com um sorriso cordial.

— Aquele, sargento, é Sakhmet, uma deusa antiga dos primitivos egípcios. Mas ela não está no inferno, por assim dizer. Este cavalheiro, no entanto — tocou a estátua de Anúbis, maior — é das regiões mais profundas.

— Eu devia saber que estava aqui, Sr. Vance. — Heath sorriu com genuína amistosidade e esticou a mão. — O senhor já está arrolado em minha lista de suspeitos. Todas as vezes em que ocorre um homicídio estranho, quem encontro no local do crime senão o Sr. Philo Vance!... Prazer em vê-lo, Sr. Vance. Espero que o senhor ponha em ação os seus processos psicológicos de trabalho e desvende rapidamente este mistério.

— Temo que seja necessário mais do que psicologia para resolver este caso. — Vance tomara a mão do sargento cordialmente — Uns rudimentos de egiptologia poderão ajudar, sabe?

— Deixarei essas lindas coisas para o senhor. O que mais desejo e em primeiro lugar são impressões digitais naquilo... naquilo... — Inclinou-se sobre a pequena estátua de Sakhmet. — O cara que esculpiu esta estátua era meio maluco. Ela tem cabeça de leão com um grande prato em cima.

— Sargento, a cabeça de leão de Sakhmet é indubitavelmente totêmica — explicou Vance, bem-humorado. — E o prato é uma representação do disco solar. O réptil saindo pela testa é uma cobra — ou uraeus — e era o signo da realeza.

— Seja lá como o senhor quiser. — O sargento demonstrava impaciência. — O que eu quero são as impressões digitais.

Heath voltou-se e se encaminhou na direção da porta do museu.

— Hei, Snitkin! — chamou beligerantemente, dirigindo-se a um dos homens que ficaram no patamar da escada. — Substitua aquele patrulheiro lá fora e o mande de volta para sua ronda. Traga o Dubois aqui assim que ele chegar. — Voltou-se em seguida para Markham. — Quem vai-me contar essas misérias, senhor?

Markham apresentou-o a Scarlett.

— Este cavalheiro aqui — disse ele — encontrou o Sr. Kyle. Ele poderá dizer-lhe tudo o que sabemos do caso até agora.

Scarlett e Heath conversaram cerca de uns cinco minutos, o sargento, durante toda a conversação, mantendo uma atitude de indisfarçável suspeita. Para ele era um princípio básico que todas as pessoas eram culpadas até que sua inocência tivesse sido completa e irrefutavelmente estabelecida.

Vance, nesse meio tempo, estivera debruçado sobre o corpo de Kyle com uma atenção que me deixava intrigado.

Logo em seguida os seus olhos se apertaram e ele se apoiou em um dos joelhos, espichando a cabeça para a frente a uma distância de 30 cm do assoalho. Depois tirou o monóculo, poliu-o cuidadosamente e o ajustou. Ambos, Markham e eu, o observávamos em silêncio. Após uns momentos Vance se pôs de pé.

— Bem, Scarlett, existe por aí alguma lente de aumento?

Scarlett, que estava acabando de falar com o sargento Heath, dirigiu-se imediatamente até à vitrina que continha os escaravelhos e abriu uma das gavetas.

— Que espécie de museu seria este sem uma lente de aumento? — indagou ele em uma fraca tentativa de jocosidade, esticando a mão com uma lente Coddington.

Vance pegou-a e voltou-se para Heath.

— Pode-me emprestar sua lanterna, sargento?

— Claro — Heath passou a Vance uma lanterna acionada por botão.

Vance tornou a ajoelhar-se e, com a lanterna em uma das mãos e a lente de aumento na outra, pôs-se a examinar um pequenino objeto oblongo que estava a cerca de 25 cm do corpo de Kyle.

 

 

 

 


— Nisut Biti... Intef... Si Rê... Nub-Kheper-Rê. — Sua voz era baixa e ressonante.

O sargento colocou as mãos nos bolsos e fungou.

— Que linguagem é esta, Sr. Vance? — perguntou ele.

— É uma transliteração de uns poucos hieróglifos do antigo Egito. Estou lendo neste escaravelho...

O sargento tinha ficado interessado. Adiantou-se e se inclinou sobre o objeto que Vance estava examinando.

— Um escaravelho, hem?

— Sim, sargento, algumas vezes de scarabee, scarabaeid ou scarabaeus — isto é, besouro... Esta pequenina peça de lápis-lazúli era um símbolo sagrado para os antigos egípcios... Este aqui, particularmente, é, por acaso, um dos mais fascinantes. É o selo real de Intef V — um faraó da décima sétima dinastia. Por volta de 1650 AC — ou seja, há 3.500 anos — Intef usou este objeto, que ostenta seu título e seu nome real de Intef-o, ou Intef. O nome de coroação desse faraó era Nefer-Kheperu, se me estou lembrando corretamente. Ele foi um dos nativos governadores egípcios em Tebas, durante o reinado dos hyksos no delta.1 O túmulo desse cavalheiro é um daqueles que o Dr. Bliss vem escavando há vários anos... Observe, Sargento, que o escaravelho está montado em um moderno alfinete de gravata...

 

(1) Nefra, a filha desse faraó, é, incidentalmente, a heroína de H. Rider Haggard no romance Queen of the Dawn. Haggard, seguindo a cronologia de H. R. Hall, colocou Intef na décima quarta dinastia ao invés de fazê-lo na décima sétima, dessa forma tornando-o contemporâneo do grande faraó hyksos, Apopi, cujo filho Khyan — o herói do livro — casa-se com Nefra. As pesquisas de Bliss e de Weigall parecem ter demonstrado ser esse relacionamento um anacronismo.

 

 


Heath grunhiu de satisfação. Aí havia, pelo menos, uma peça de tangível evidência.

— Um besouro, não? E num alfinete de gravata!... Bem, Sr. Vance, eu gostaria de botar as mãos no pássaro que usava esse porcaria azul na gravata.

— Posso esclarecê-lo sobre esse ponto, sargento. — Vance levantou-se e espiou na direção da porta de metal no topo da escada circular. — Esse alfinete de gravata é de propriedade do Dr. Bliss.


IV

 

Rastos no sangue

 


(Sexta-feira, 13 de julho — 12:15 horas)

 

 

 

Scarlett estivera observando Vance atentamente com um olhar de aterrorizada surpresa em seu rosto redondo e bronzeado.

— Temo que você esteja certo, Vance — comentou ele, sacudindo a cabeça afirmativamente, com relutância. — O Dr. Bliss encontrou o escaravelho no local da escavação do túmulo de Intef, há dois anos atrás. Não mencionou o fato às autoridades egípcias e, quando voltou aos Estados Unidos, mandou fazer esse alfinete de gravata. Mas com certeza a presença desse objeto aqui pode não ter significação...

— Bem, realmente! — Vance encarou Scarlett fixamente. — Lembro-me perfeitamente do episódio em Abu'n-Nega. Do modo qual se passou fui particeps criminis. Mas, como havia outros escaravelhos de Intef bem como o selo cilíndrico nó Museu Britânico, fechei os olhos... Esta é a primeira vez que vejo este escaravelho mais de perto...

Heath estava-se encaminhando para as escadas da frente.

— Ei, você... Emery! — rosnou ele, dirigindo-se a um dos homens que haviam ficado lá em cima. — Pegue esse tal de Bliss e traga-o até aqui...

— Oh, espere aí, sargento! — Vance apressou-se a ir atrás de Heath e colocou mão em seu braço, restritivamente.

— Por que tão precipitado? Vamos manter a calma... Este não é o momento correto de trazer Bliss até aqui. Mesmo porque, quando precisarmos dele, não teremos senão que bater àquela portinha — sem dúvida ele está em seu escritório e não pode cair fora. Além disso, há ainda uns exames preliminares a serem feitos inicialmente.

Heath hesitou e fez uma careta. Em seguida falou: — Deixe para lá, Emery. Mas vigie os fundos para que ninguém tente cair fora por lá... E você, Hennessey — Heath estava-se dirigindo ao outro homem — fique no saguão da frente. Se alguém tentar sair da casa, agarre-o e traga-o até aqui, entendeu?

Os dois detetives desapareceram com uma furtividade que me pareceu altamente ridícula.

— Está escondendo alguma coisa na manga, senhor? — quis saber Heath, olhando esperançosamente para Vance. — Este homicídio, porém, não me está parecendo muito complicado. Kyle foi atingido por um golpe na cabeça e ao lado dele encontramos um alfinete de gravata pertencente ao Dr. Bliss... Tudo muito simples, não é mesmo?

— Simples demais, sargento — retrucou Vance, calmamente, contemplando o homem morto. — Aí é que está todo o problema...

De repente, Vance se moveu na direção da estátua de Anúbis e, inclinando-se sobre ela, ergueu um pedaço de papel dobrado que ficara quase escondido por baixo de uma das mãos esticadas de Kyle. Desdobrando o papel cuidadosamente, Vance o manteve na direção da luz. Era uma folha de papel de tamanho ofício, coberta por figuras.

— Este documento — observou Vance deveria encontrar-se na posse de Kyle quando saiu deste mundo... Sabe alguma coisa a respeito, Scarlett?

Scarlett adiantou-se ansiosamente e tomou o papel com mão nervosa.

— Meu Deus do céu! — exclamou ele. — É o relatório de despesas que preparamos à noite passada. O Dr. Bliss estava trabalhando nessas contas...

— Ahn, ahn! — Heath sorriu com malévola satisfação.

— Então é assim! Nosso amigo morto deve ter visto Bliss esta manhã... do contrário como poderia ter obtido este papel?

Scarlett franziu o cenho.

— Devo concordar que aparentemente foi assim mesmo — concedeu ele. — Este relatório ainda não estava pronto quando saímos daqui à noite passada. O Dr. Bliss disse que iria prepará-lo antes que o Sr. Kyle chegasse aqui hoje pela manhã. — Scarlett parecia completamente confuso quando devolveu o papel a Vance. — Mas tem alguma coisa errada em algum lugar... Você sabe, Vance, não é razoável...

— Não seja frívolo, Scarlett. — A admonição de Vance interrompeu Scarlett. — Se o Dr. Bliss tivesse empunhado a estátua de Sakhmet, por que iria ele deixar este relatório aqui, para incriminá-lo?... Como você mesmo diz, alguma coisa, em algum lugar, está errada.

— Errada! — zombou Heath. — Lá está aquele besouro e agora encontramos este relatório. O que mais quer, Sr. Vance?

— Muita coisa mais — Vance falou suavemente. — Normalmente um homem não comete um crime e deixa para trás indícios tão óbvios de provas espalhados por toda a parte... É infantil.

Heath fungou.

— Pânico... é isso. — Assustou-se e caiu fora às pressas...

Os olhos de Vance se demoraram na portinha de metal do escritório do Dr. Bliss.

— Casualmente, Scarlett, — perguntou ele — quando você viu pela última vez aquele alfinete de gravata?

— À noite passada. — O homem tinha começado a caminhar nervosamente para um lado e para outro. — Estava terrivelmente quente no escritório e o Dr. Bliss tirou a gravata e o colarinho, colocando-os sobre a mesa. O alfinete estava preso à gravata.

— Ah! — O olhar de Vance não se despregou da pontinha. — O alfinete ficou em cima da mesa durante a reunião, hem... E, como você me disse, Hani, a Srta. Bliss, Salveter e você mesmo estavam lá.

— Certo.

— Então qualquer um poderia ter visto e apanhado o objeto?

— Bem... sim. Creio que sim. Vance meditou por uns momentos.

— Ainda assim... este relatório... muito curioso!... Eu gostaria de saber como isso foi parar nas mãos de Kyle. Você diz que este relatório não estava pronto quando a reunião foi interrompida?

— Oh, não — Scarlett parecia hesitar ao responder. — Todos nós entregamos os nossos dados e o Dr. Bliss disse que ia fazer as contas e apresentá-las hoje ao Sr. Kyle. Em seguida, ele telefonou para Kyle — em nossa presença — e marcou um encontro com ele para hoje de manhã às onze horas.

— Isso foi tudo o que ele disse a Kyle pelo telefone?

— Praticamente... embora me lembre de que ele tenha mencionado o novo carregamento que chegou ontem...

— Realmente? Muito interessante... E o que foi que o Dr. Bliss falou a respeito do carregamento?

— Do que me lembro — não prestei muita atenção, de fato — ele disse a Kyle que as caixas tinham sido desfeitas e acrescentou que desejava que Kyle examinasse o que continham... Como sabe, havia alguma dúvida de que Kyle financiasse uma outra expedição. O governo egípcio vinha-se mostrando um tanto relutante e havia retido os itens mais significativos para o Museu do Cairo. Kyle não gostou disso e como já havia despejado rios de dinheiro no empreendimento, estava inclinado a retirar o seu apoio. Nada de kudos para ele, compreende?... De fato, a atitude de Kyle foi o motivo da reunião. O Dr. Bliss desejava mostrar-lhe o custo, exato das escavações anteriores e procurar induzi-lo a financiar a continuação do trabalho...

— E o velho se recusou — complementou Heath. — Então o doutor ficou excitado e arrebentou-lhe o crânio com aquela estátua preta.

— O senhor continua a insistir em que a vida seja uma coisa simples, sargento — suspirou Vance.

— Não há dúvida de que me recuso a aceitar que ela seja tão complicada quanto o senhor a faz, Sr. Vance. — A resposta de Heath tocou as raias de uma expressão de dignificado sarcasmo.

As palavras mal acabavam de ser pronunciadas pelo sargento quando a porta principal se abriu suavemente e um homem de meia-idade e tez escura, vestindo traje nativo egípcio, apareceu no topo das escadas da frente. Examinou-nos com uma calma inquisitiva e, vagarosamente e com grande determinação de movimentos, desceu para o museu.

— Bom dia, Sr. Scarlett — cumprimentou ele, com um sorriso sardônico. Olhou para o homem assassinado. — Vejo que a tragédia visitou esta casa.

— Sim, Hani, — Scarlett falou com uma certa condescendência. — O Sr. Kyle foi assassinado. Esses cavalheiros — fez um gesto ligeiro em nossa direção — estão investigando o crime.

Hani inclinou-se gravemente. Era de peso médio, algo esguio, e dava a impressão de desdenhoso alheamento. Havia um distinto traço de animosidade em seus olhos apertados. O rosto era relativamente curto — marcadamente dolicocéfalo — e o nariz reto tinha a ponta arredondada, típica do verdadeiro copta. Os olhos eram castanhos — da cor de sua pele — e as sobrancelhas espessas. Usava barba curta, semigrisalha, e tinha os lábios cheios e sensuais. Sua cabeça se encontrava coberta por um tarbush negro suave, do qual pendia uma borla azul-celeste; os ombros estavam envolvidos por um kaftan de algodão longo, em listas vermelhas e brancas, que ia até os seus tornozelos e mal deixava entrever suas sandálias de um amarelo cor de ouro.

Permaneceu durante alguns momentos olhando para o corpo de Kyle, sem qualquer vestígio de repulsa ou mesmo de lástima. Em seguida ergueu os olhos e contemplou a estátua de Anúbis. Uma curiosa expressão de devoção surgiu em seu rosto; dentro em pouco os seus lábios se moviam em um leve sorriso sardônico. Depois de um instante fez com a mão esquerda um gesto largo e, voltando-se lentamente, nos encarou. Seus olhos, porém, não pousaram em nós — estavam fixados em algum ponto distante, muito além das janelas da frente.

— Não há necessidade de investigação, senhores — disse ele em tom sepulcral. — É o julgamento de Sakhmet. Durante muitos anos as tumbas sagradas de nossos ancestrais têm sido violadas por ocidentais caçadores de tesouros. No entanto, os deuses do antigo Egito são deuses poderosos e protegem seus filhos. Eles têm sido pacientes. Mas os violadores foram longe demais. Era a hora de ser desfechada sua ira vingativa. E assim foi feito. O túmulo de Intef-o foi salvo dos vândalos. Sakhmet deu a conhecer seu julgamento, do mesmo modo que agiu quando matou os rebeldes em Henen-ensu1 para proteger seu pai, Rê, contra sua traição.

 

 

(1) Nome de Heracleopis, no antigo Egito.

 


Fez uma pausa e tomou uma respiração profunda.

— Mas Anúbis jamais guiaria um violador sacrílego às Mansões de Osíris — não importa o quão reverentemente o implore...

Não só as maneiras como as palavras de Hani eram impressionantes. Enquanto ele falava eu me lembrava, com um sentimento desagradável, a recente tragédia de Lord Carnavon e as estranhas lendas de magia antiga que se tinham espalhado como responsáveis por sua morte por motivos sobrenaturais.

— Muito anticientífico, sabe? — A voz de Vance, cínica e arrastada, trouxe-me de volta ao mundo da realidade. — Tenho sérias dúvidas de que aquele pedaço de ígnea rocha negra cometa algum crime, a não ser que tenha sido empunhada por mãos humanas ordinárias... E se você quer dizer besteiras, Hani, muito lhe agradeceríamos se o fizesse na intimidade de seu quarto. É muito cacete.

O egípcio lançou-lhe um olhar de ódio.

— O Ocidente tem muito o que aprender com o Oriente em coisas do espírito — pronunciou Hani, oracularmente.

— Concordo. — Vance sorriu suavemente. — Mas agora não é o espírito que está em discussão. O Ocidente, que você despreza, está inclinado para as coisas práticas. Seria melhor que você, por ora, se esquecesse da metempsicose e respondesse a umas perguntas que o procurador distrital deseja fazer.

Hani inclinou-se em sinal de aquiescência. Markham, tirando o charuto da boca, fixou nele um olhar severo. , — Onde esteve você toda esta manhã? — perguntou.

— Em meu quarto... lá em cima. Não me sentia bem.

— Você não ouviu ruído algum aqui no museu?

— Teria sido impossível para mim ouvir qualquer ruído aqui nesta sala.

— E não viu ninguém entrar ou sair do prédio?

— Não. Meu quarto fica lá nos fundos e não saí dele até' uns momentos atrás.

Vance fez a pergunta seguinte.

— Por que então saiu do seu quarto?

— Eu tinha o que fazer aqui no museu — respondeu o homem de mau humor.

— Pelo que sei, no entanto, você ouviu o Dr. Bliss marcar um encontro com o Sr. Kyle para as onze horas da manhã de hoje. — Vance observava Hani atentamente. — Você pretendia interromper a conferência?

— Eu não me lembrava do encontro. — A resposta não veio espontaneamente. — Se tivesse encontrado o Dr. Bliss e o Sr. Kyle em conferência, eu teria voltado para o meu quarto.

— Claro. — O tom de Vance revelava algum sarcasmo. — Escute, Hani, como é todo o seu nome?

O egípcio hesitou apenas um segundo. Em seguida disse: — Anupu Hani1

 

 

 

(*) Este nome fora do comum, como vim a saber mais tarde, resultará do interesse de seu pai pela mitologia egípcia, quando a serviço de Maspero.

 

 

 

Vance crispou as sobrancelhas e havia ironia no ligeiro sorriso que aflorou nos cantos de sua boca.

— Anûpu — repetiu ele. — Muito atraente. Anûpu, creio, era a forma egípcia de Anúbis, não? Ao que parece você se identificaria com aquele cavalheiro de aparência desagradável lá no canto, com a cabeça de chacal.

Hani comprimiu os lábios grossos e não respondeu.

— Isso realmente não tem importância, sabe? — observou Vance casualmente. — Por falar nisso, não foi você quem colocou a estátua em cima do armário acolá?

— Sim. Foi desempacotada ontem.

— E foi você quem puxou a cortina sobre o armário lá do fim?

— Sim. A pedido do Dr. Bliss. Os objetos que se encontravam em seu interior estavam muito desarrumados. Ainda não tínhamos tido tempo de arrumá-los.

Vance voltou-se pensativamente para Scarlett.

— Exatamente o que foi dito pelo Dr. Bliss ao Sr. Kyle à noite passada, pelo telefone?

— Creio que já lhe disse tudo, meu velho. — Scarlett parecia ao mesmo tempo intrigado e surpreendido à persistente curiosidade de Vance sobre este ponto. — Ele simplesmente marcou o encontro para às onze horas, dizendo que teria o relatório financeiro pronto por essa hora.

— E o que foi que ele disse a respeito do novo carregamento?

— Nada, a não ser que estava desejoso de que o Sr. Kyle visse os itens chegados.

— O Dr. Bliss mencionou onde estavam esses itens?

— Sim, lembro-me de ele ter dito que tinham sido colocados no último armário — aquele que está com as cortinas cerradas.

Vance concordou com a cabeça, com uma satisfação que não entendi.

— Isso possivelmente responde pelo fato de o Sr. Kyle ter vindo mais cedo para inspecionar — como direi? — o saque.

Tornou a olhar para Hani com um sorriso de animação.

— Não é também verdadeiro que você e os demais que se encontravam na reunião à noite passada escutaram o chamado telefônico?

— Sim. Todos nós ouvimos. — O egípcio tinha-se tornado taciturno. Notei, porém, que estudava Vance sub-repticiamente, com o canto do olho.

— E, pelo que entendo — murmurou Vance —qualquer um que conhecesse Kyle poderia ter deduzido que ele chegaria cedo para examinar os itens naquele último armário... Não, Scarlett?

Scarlett mexeu-se inquietamente e olhou para a estátua grande da serena Kha-ef-Rê.

— Bem... se você põe as coisas nesse pé, sim... A verdade é, Vance, que o Dr. Bliss sugeriu que o Sr. Kyle viesse mais cedo e desse uma olhada nos tesouros.

Essas divagações começaram a irritar o sargento Heath.

— Perdoe-me, Sr. Vance, — explodiu ele, com mal velado aborrecimento — mas será que o senhor é o advogado de defesa desse Dr. Bliss? Se o senhor não está dando duro para estabelecer um álibi para ele, então eu sou a Rainha de Sabá.

— O senhor certamente não é Salomão, sargento — retorquiu Vance. — O senhor não quer avaliar todas as possibilidades?

— Avaliar o diabo! — Heath estava perdendo a calma.

— Quero uma conversa cara a cara com esse tipo que usava o alfinete de besouro e escreveu aquele relatório. Percebo quando me defronto com uma prova insofismável.

— Nem por um momento duvidei disso — falou Vance com brandura. — Mas mesmo provas insofismáveis podem ter várias interpretações...

A essa altura Snitkin abriu a porta barulhentamente e o Dr. Doremus, médico legista, desceu apressado as escadas. Era um homem magro e nervoso com o rosto prematuramente envelhecido, o que lhe dava uma aparência ao mesmo tempo rabugenta e jocosa.

— Bom dia, cavalheiros — cumprimentou-nos ele em voz mal audível. Apertou as mãos perfunctoriamente de Markham e de Heath e, endireitando-se, desfechou sobre Vance um olhar exageradamente desapontado.

— Ora, ora! — exclamou ele, inclinando seu chapéu de palha para um ângulo ainda mais acentuado. — Onde quer que se cometa um crime, aí está o senhor. — Olhou para o relógio de pulso. — Por São Jorge, está na hora do almoço!

— Seu olhar brilhante correu o museu e se deteve em um dos caixões de múmias. — Este lugar não parece muito saudável... Onde está o corpo, sargento?

Heath tinha permanecido de pé à frente do corpo prostrado de Kyle. Afastou-se para um lado e apontou para o cadáver.

— Está aqui, doutor.

Doremus adiantou-se e olhou indiferentemente para o corpo, — Bem, ele está morto — manifestou-se, piscando o olho para Heath.

— Está mesmo? — O sargento mostrava-se sarcástico e bem-humorado.

— É o que me parece... muito embora desde as experiências de Carrel nunca se possa afirmar... De qualquer modo, mantenho minha decisão. — Riu-se e, pondo-se de joelhos, tocou uma das mãos de Kyle. Em seguida afastou para o lado uma das pernas do homem. — E está morto há cerca de duas horas — não mais do que isso, talvez um pouco menos.

Heath puxou um lenço grande e, com grande cuidado, tirou da cabeça de Kyle a estátua negra de Sakhmet.

— Estou poupando as impressões digitais... Algum sinal de luta, doutor?

Doremus voltou o corpo ao contrário e fez uma cuidadosa inspeção do rosto, das mãos e das roupas.

— Não vejo nenhum — respondeu laconicamente. — Foi atingido pela retaguarda, eu diria. Caiu para a frente com os braços esticados. Não se mexeu depois de ter chegado ao chão.

— Alguma chance, doutor, de que já estivesse morto quando a estátua o atingiu? — quis saber Vance.

— Nenhuma. — Doremus levantou-se e começou a balançar-se na ponta dos pés. Sangue demais para que fosse assim.

— Um simples caso de ataque, então?

— Parece que sim... Mas não sou adivinho. — O doutor se mostrava irritado. — A autópsia esclarecerá esse ponto.

— Podemos receber o relatório post-mortem imediatamente? — pediu Markham.

— Tão depressa quanto o sargento consiga pôr o corpo no necrotério.

— Estará lá quando o senhor acabar de almoçar, doutor — assegurou Heath. — Pedi o carro mortuário antes de sair do Departamento.

— Assim sendo, vou andando. — Novamente Doremus apertou as mãos de Markham e de Heath e dirigindo uma amistosa saudação a Vance saiu apressadamente da sala.

Eu havia notado que desde que Heath tinha colocado a estátua de Sakhmet para o lado estava olhando impacientemente para a pequena poça de sangue. Tão logo Doremus se afastou, Heath se ajoelhou e se tornou obstinadamente interessado por alguma coisa no assoalho. Pegou sua lanterna, que Vance lhe havia devolvido, e focou-a sobre a borda da poça de sangue, no ponto em que eu já tinha notado a mancha esticando-se para fora. Em seguida, após um momento, afastou-se um pouco, e tornou a focar sua lanterna sobre um borrão esmaecido que manchava o amarelado assoalho de madeira. Uma vez mais trocou de posição — desta vez na direção das escadinhas em espiral. Emitiu agora um grunhido de satisfação e, levantando-se, caminhou num círculo amplo até às próprias escadas. Aí tornou a ajoelhar-se e correu o foco de sua lanterna sobre os degraus mais de baixo. No terceiro degrau o foco de luz se deteve repentinamente e o sargento esticou a cara para a frente em uma atitude de intensa concentração.

Vagarosamente um sorriso apareceu-lhe no rosto largo e, pondo-se de pé, lançou um olhar de triunfo na direção de Vance.

— Estou com o caso amarrado dentro do saco, senhor — anunciou ele.

— Quero crer — respondeu Vance — que tenha encontrado o rasto do criminoso.

— É o que estou dizendo! — Heath acenou a cabeça com a ênfase deliberada da determinação. — É exatamente como estou dizendo...

— Não tenha tanta certeza, sargento. — O rosto de Vance tornara-se sombrio. — Muitas vezes a explicação óbvia é a explicação errada.

— Sim? — Heath voltou-se para Scarlett. — Escute, Sr. Scarlett, tenho uma pergunta a fazer-lhe e desejo uma resposta clara. — Scarlett irritou-se, mas o sargento não deu atenção ao seu ressentimento. — Que tipo de sapatos o Dr. Bliss geralmente usa quando está em casa?

Scarlett hesitou e olhou apelativamente para Vance.

— Diga ao sargento tudo o que você sabe — aconselhou Vance. — Esta não é a hora de reticências. Você pode confiar em mim. Não se trata agora de uma questão de deslealdade. Tudo o que importa é a verdade.

Scarlett pigarreou nervosamente.

—Sapatos de tênis, de borracha — disse ele, em voz baixa. — Desde sua primeira expedição ao Egito que tem os pés fracos — o que o incomoda abominavelmente. Sente-se aliviado usando sapatos de tênis de lona, com solado de borracha.

— Claro que o alivia. — Heath tornou a encaminhar-se na direção do corpo de Kyle. — Chegue aqui um momento, Sr. Vance. Quero mostrar-lhe algo.

Vance adiantou-se e o acompanhou.

— Dê uma espiada naquela pegada — continuou o sargento, fazendo um gesto indicador na direção da mancha na borda da poça de sangue onde tinha estado a cabeça de Kyle. — Ela não aparece muito até que se chegue perto... mas, uma vez que a tenhamos percebido notaremos que tem marcas do solado de borracha de um sapato, com linhas se cruzando como num tabuleiro de xadrez na sola e marcas redondas no salto.

Vance inclinou-se e examinou a pegada no sangue.

— É isso mesmo, sargento. — Vance ficara muito grave e sério.

— Agora olhe aqui — prosseguiu Heath apontando para duas outras manchas no assoalho, a meio caminho das escadas de ferro.

Vance debruçou-se sobre as manchas e concordou com a cabeça.

— Sim — admitiu ele — essas marcas foram feitas, provavelmente, pelo assassino...

— E mais uma vez, senhor. — Heath dirigiu-se até à escada e focou com sua lanterna o terceiro degrau.

Vance ajustou o monóculo e foi olhar de perto. Em seguida pôs-se de pé e permaneceu parado durante um momento, o queixo apoiado na palma da mão.

— O que diz disso, Sr. Vance? É esta prova suficiente pata o senhor?

Markham foi até o pé da escada circular e colocou a mão no ombro de Vance.

— Por que essa obstinação, velho amigo? — perguntou com voz bondosa. — Começa a parecer um caso esclarecido.

Vance levantou os olhos.

— Um caso esclarecido... sim! Mas um caso esclarecido como?... Isso não faz sentido. Será que um homem com a mentalidade de Bliss assassina barbaramente outro homem, com quem sabidamente ele teria um encontro, e então deixa um alfinete de gravata e um relatório, que nenhuma outra pessoa poderia ter produzido, na cena do crime para incriminar-se a si mesmo? Além disso, temeroso de que as provas não fossem suficientes, iria ele deixar pegadas, com um desenho distinto e pessoal, encaminhando-se do corpo até o seu escritório?... É isso razoável?

— Talvez não seja razoável — concedeu Markham. — No entanto, tudo isso são fatos. E não há nada que possa ser feito a não ser confrontar o Dr. Bliss com esses indícios.

— Creio que você tem razão. — Os olhos de Vance tornaram a se voltar na direção da portinha de metal no topo da escada em espiral. — Sim, chegou a hora de colocar Bliss no palco... Mas não estou gostando disso, Markham. Há alguma coisa errada... Talvez o próprio doutor nos possa esclarecer. Deixe-me trazê-lo aqui, já o conheço há alguns anos.

Vance voltou-se e subiu a escada, tomando cuidado para não pisar na pegada comprometedora que o sargento havia descoberto.


V

 

Meryt-Amen

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 12:45 horas)

 

 


Vance bateu à porta estreita e meteu a mão no bolso para pegar a cigarreira. Nós, no andar de baixo, observávamos o painel de metal em silente expectativa. Por alguma razão desconhecida, assaltou-me um sentimento de apreensão e meus músculos ficaram tensos. Até hoje não consigo explicar a causa de meu medo, mas, naquele momento, meu coração ficou gelado. Todas as provas até então reveladas apontavam inquestionavelmente no sentido do grande egiptólogo no quartinho além da porta.

Vance era o único que parecia despreocupado. Acendeu seu cigarro naturalmente e, quando tinha recolocado o isqueiro no bolso, tornou a bater à porta — desta vez mais alto. Ainda não houve resposta.

— Muito curioso — ouvi-o resmungar.

Em seguida ergueu o braço e bateu no metal com uma força tal que emitiu ecos reverberantes através de toda a grande sala do museu.

Finalmente, após alguns momentos de odioso silêncio, ouviu-se o som de uma maçaneta girando e a pesada porta abriu-se lentamente para o lado de dentro.

Na abertura encontrava-se de pé a figura alta e esguia de um homem quarentão. Usava roupão de seda azul estampada que lhe chegava até os tornozelos e seus escassos cabelos amarelados achavam-se revoltos, como se ele acabasse de sair da cama. Na realidade toda a sua aparência era a de um homem que tivesse sido, repentinamente, arrancado de um sono profundo. Tinha os olhos enevoados e as pálpebras enlanguescidas e buscava apoio segurando-se à maçaneta interna da porta. Na verdade o homem oscilava um pouco enquanto olhava estüpidamente para Vance.

Contudo era uma figura notável. Tinha o rosto longo e afilado, rústico e profundamente bronzeado. A testa era alta e estreita — a testa de um estudioso; no entanto era o nariz, curvo como um bico de águia, a linha mais preponderante. A boca reta encimava um queixo tão quadrado que chegava a ser cúbico. As maçãs do rosto eram encovadas e fiquei com a impressão distinta de um homem fisicamente doente, mas que se sobrepunha às devastações da moléstia por mera vitalidade nervosa.

Por um momento permaneceu olhando para Vance sem compreender. Em seguida — como alguém emergindo de uma anestesia — piscou várias vezes e tomou uma inalação profunda.

— Ahn! — A voz era arrastada e um pouco irritante. — Sr. Vance!... Há quanto tempo que não o vejo... — Seus olhos vaguearam pelo museu e vieram a deter-se no pequeno grupo formado no pé da escada. — Não estou compreendendo muito bem... — Passou as mãos no alto da cabeça e correu os dedos pelos cabelos desalinhados. — Minha cabeça está tão pesada... por favor, desculpe-me... Devo ter estado... ter estado dormindo... Quem são aqueles cavalheiros lá embaixo?... Reconheço Scarlett e Hani... Está infernalmente quente em meu escritório.

— Ocorreu um sério acidente, Dr. Bliss — informou Vance em voz baixa. — O senhor se incomoda de descer até o museu?... Necessitamos de seu auxílio.

— Um acidente? — Bliss se recompôs e pela primeira vez desde que aparecera na porta seus olhos se abriram completamente. — Algum acidente sério? O que foi que aconteceu?... Não foram ladrões, espero. Sempre me preocupei...

— Não, não foram ladrões, doutor. — Vance o apoiava enquanto ele descia nervosamente os degraus da escada circular.

Quando Bliss tocou o assoalho do museu, todos os olhares, tenho a certeza, estavam voltados para seus pés. Por certo que o meu próprio instinto inicial foi examiná-los; notei que Heath, que permanecia a meu lado, concentrou seu olhar no que calçava o doutor. Mas, se algum de nós esperava encontrar Bliss com sapatos de tênis de solado de borracha, ficou desapontado. O homem usava um par de chinelas de dormir, de cor azul, para combinar com seu roupão, e adornadas com debruns cor de laranja.

Notei, entretanto, que o seu pijama cinzento de seda, que aparecia através da abertura em V do roupão, tinha uma gola ampla e dobrada, na qual estava amarrado frouxamente um lenço de pescoço cor de malva.

Seus olhos varreram o pequeno grupo à sua frente e voltaram a Vance.

— O senhor diz que não houve ladrões? — A voz era ainda vaga e arrastada. — Qual foi então o acidente, Sr. Vance?

— Um acidente muito mais sério do que ladrões, doutor — replicou Vance, que ainda não havia tirado a mão do braço do outro. — O Sr. Kyle está morto.

— Kyle morto? — O queixo de Bliss caiu enquanto um ar de desesperançado espanto assomava-lhe aos olhos. — Mas... mas... eu falei com ele ontem à noite. Ele deveria vir até aqui esta manhã... com relação à nova expedição... Morto? Todo o meu trabalho... o trabalho de toda a minha vida... chegou ao fim! — Bliss deixou-se cair em uma das pequenas cadeiras de madeira dobráveis, das quais havia talvez uma vintena espalhada por todo o museu. Um ar de trágica resignação tomou-lhe conta do rosto. — Que notícia terrível.

— Lamento muito, doutor — murmurou Vance consoladoramente. — Compreendo muito bem o seu desapontamento...

Bliss se pôs de pé. Sua letargia o havia deixado e seu aspecto se tornou firme e resoluto. Olhou Vance frontalmente.

— Morto? — Sua voz era ameaçadora. — Morto como?

— Assassinado. — Vance apontou para o corpo de Kyle à frente do qual nos encontrávamos Markham, Heath e eu.

Bliss se encaminhou na direção da figura prostrada de Kyle. Durante um minuto permaneceu parado, olhando para o corpo; em seguida seu olhar se voltou para a pequena estátua de Sakhmet e, logo depois, para as linhas lupinas de Anúbis.

Repentinamente fez meia-volta e encarou Hani. O egípcio deu um passo para trás, como se temesse alguma violência por parte do doutor.

— O que sabe você a este respeito?... Você, chacal!

— Bliss atirou-lhe a pergunta maldosamente, com um ódio apaixonado na voz. — Você tem-me espionado durante anos. Você recebe meu dinheiro e embolsa subornos de seu estúpido e ávido governo. Você envenenou minha esposa contra mim. Você tem-se postado no caminho de tudo o que eu me esforço para realizar. Você tentou matar o velho nativo que me mostrou os dois obeliscos em frente à pirâmide de Intef. Você tem-se prejudicado, por todas as formas. Somente o conservo porque minha esposa acredita em você e o ama. E agora, quando descobri o local do túmulo de Intef, até já entrei na sua antecâmara e estou prestes a oferecer os frutos de minhas pesquisas ao mundo, o único homem que poderia assegurar o êxito do trabalho de toda a minha vida é encontrado morto.

— Os olhos de Bliss pareciam duas brasas. — O que sabe você a este respeito, Anûpu Hani? Fale... desprezível cão de um camponês!

Hani recuara alguns passos. A cáustica tirada de Bliss o havia acovardado desprezivelmente. Mas não se rebaixou; tornou-se sombrio e taciturno; sua voz era um rosnado quando respondeu.

— Nada sei sobre o crime. Foi vingança de Sakhmet! Ela matou aquele que pagou pela violação do túmulo de Intef...

— Sakhmet! — O escárnio de Bliss era devastador. — Um pedaço de pedra pertencente a uma mitologia híbrida! Você não se encontra neste momento entre feiticeiros iliteratos... você está diante de seres humanos civilizados que desejam a verdade... Quem matou Kyle?

— Se não foi Sakhmet não sei quem foi, Excelência. — A despeito da atitude de subserviência do egípcio havia um assinalável desprezo em suas maneiras e na entonação de sua voz. — Estive em seu quarto toda a manhã... O senhor, hadretak, — acrescentou ele com sarcasmo, — estava muito perto de seu rico patrono quando ele partiu desse mundo para a Terra das Sombras.

Duas manchas vermelhas de raiva apareceram no rosto bronzeado de Bliss. Seus olhos brilharam anormalmente enquanto suas mãos se contraíam espasmodicamente nas dobras do roupão. Temi que ele saltasse na garganta do egípcio.

Vance, também, deve ter tido uma tal apreensão, pois se deslocou para o lado do doutor e tocou-lhe no braço confortadoramente.

— Compreendo perfeitamente como se sente, senhor — disse Vance em voz calma. — Explosões de temperamento, no entanto, não nos ajudarão a chegar ao âmago deste caso.

Bliss afundou-se em sua cadeira sem uma palavra e Scarlett, que se limitara a assistir à cena com confusa surpresa, aproximou-se rapidamente de Vance.

— Há algo aqui terrivelmente errado. O doutor não está em seu estado normal — disse ele.

— Foi o que notei — Vance falou secamente, mas havia uma ruga inquisitiva em seu rosto. Estudou Bliss por um momento. — Escute, doutor, a que horas o senhor começou a dormir em seu, escritório, esta manhã?

Bliss olhou letàrgicamente. O ódio parecia tê-lo abandonado e os olhos pareciam novamente pesados.

— A que horas? — repetiu ele, como um homem tentando concentrar seus pensamentos. — Deixe-me ver... Brush trouxe meu desjejum por volta das nove horas e, poucos minutos, tomei o café... pelo menos um pouco de café... — Seu olhar vagueou pelo espaço. — É tudo de que me lembro até que... até que bateram à porta... Que horas são, Sr. Vance?

— Já passa bastante do meio-dia — informou Vance. — O senhor naturalmente se pôs a dormir logo que tomou o café. Muito natural, creio. Scarlett me disse que o senhor trabalhou até tarde à noite passada.

Bliss concordou com a cabeça, pesadamente.

— Sim, até às três desta madrugada. Eu queria ter o relatório em ordem para Kyle quando ele chegasse... E agora

— Bliss olhou desanimadamente na direção do corpo estendido de seu benfeitor — encontro-o morto... assassinado... não posso compreender.

— Nem nós... por enquanto — retrucou Vance. — Mas o Dr. Markham — procurador distrital — e o sargento Heath, do Departamento de Homicídios, aqui estão com a finalidade de esclarecer os fatos. Pode ficar tranqüilo, senhor, que a justiça será feita. No momento o senhor poderá ajudar-nos materialmente, respondendo a umas poucas perguntas. Sente-se capaz disso?

— Claro que me sinto capaz — respondeu Bliss, com uma ligeira demonstração de nervosa vitalidade. — Mas — acrescentou, passando a língua nos lábios ressequidos — estou com uma sede tremenda. Um gole dágua...

— Ah! Creio que o senhor gostaria de beber um pouco dágua... O que acha, sargento?

Heath já estava a caminho das escadas da frente. Desapareceu pela porta e pude ouvir sua voz dando ordens em stacaccato a alguém que se encontrava lá fora. Um minuto ou dois depois tornava a entrar no museu com um copo com água.

O Dr. Bliss bebeu como um homem que estivesse morto de sede e, depois que baixou o copo, Vance lhe perguntou: — Quando o senhor terminou o relatório financeiro para o Sr. Kyle?

— Esta manhã, pouco antes de Brush trazer meu café. — A voz de Bliss estava mais forte, havia mesmo uma certa animação no tom com que falou. — Eu o havia praticamente completado antes de ir-me deitar à noite passada — não levei mais do que uma hora de trabalho. Assim, desci para o escritório esta manhã às oito horas.

— Onde está agora o relatório?

— Em minha mesa, lá no escritório. Pretendia verificar as contas depois do café, antes que Kyle chegasse... Vou buscá-lo.

Começou a levantar-se, mas Vance o deteve.

— Isso não será necessário, senhor. Tenho-o aqui... Estava na mão do Sr. Kyle.

Bliss olhou para o papel que Vance lhe mostrava, com olhos estupidificados.

— Na mão de Kyle? — gaguejou ele. — Mas... mas...

— Não se preocupe com isso. — A voz de Vance era casual. — Esse fato virá a ser explicado quando conhecermos melhor a situação. Sem dúvida o relatório foi retirado do seu quarto quando o senhor estava dormindo...

— Talvez o próprio Kyle...

— É possível, mas pouco provável. — Era óbvio que Vance examinava a idéia de ter Kyle, pessoalmente, retirado o relatório. — Casualmente, é normal que o senhor deixe destrancada a porta que leva de seu escritório ao museu?

— Sim. Jamais eu a tranco. Não há necessidade. Na verdade nem mesmo lhe poderia dizer, de repente, onde se encontra a chave.

— Assim sendo — observou Vance — qualquer pessoa no museu poderia ter entrado no escritório e retirado o relatório depois das nove horas, quando o senhor adormeceu.

— Mas quem, em nome dos céus, Sr. Vance... ?

— Não sabemos. Estamos ainda na fase conjetural de nossa investigação. Se o senhor não se incomoda, doutor, permita-me que eu faça as perguntas... Por acaso o senhor sabe onde o Sr. Salveter se encontra?

Bliss voltou a cabeça na direção de Vance, com um gesto de ressentimento.

— Certamente sei onde ele se encontra — respondeu cerrando os maxilares firmemente. (Fiquei com a impressão de que queria proteger de qualquer suspeita o sobrinho de Kyle). — Mandei-o ao Museu Metropolitano...

— O senhor o mandou? Quando?

— À noite passada pedi-lhe que fosse lá, como primeira coisa a fazer esta manhã, a fim de indagar a respeito de um jogo duplicata de reprodução do mobiliário existente na recentemente descoberta tumba de Hotpeheres, mãe de Kheuf da quarta dinastia...

— Hotpeheres? Kheuf?... O senhor está-se referindo a Hetep-hir-es e a Khufu?

— Certamente. — O tom de voz do doutor era mordaz. — Eu emprego a transliteração de Weigall. Na sua História dos Faraós...

— Está bem, está bem. Perdoe-me, doutor. Lembro-me agora de que Weigall modificou muitas das aceitas transliterações do egípcio... — No entanto, se minha memória está correta, a expedição que descobriu a tumba de Hetep-hir-es — ou Hotpeheres — foi patrocinada pela Universidade de Harvard e pelo Museu de Belas Artes de Boston.

— É verdade, mas eu sabia que o meu velho amigo, Albert Lithgoe, Curador do Departamento de Egiptologia do Museu Metropolitano, poderia fornecer-me a informação que eu desejava.

— Compreendo. — Vance fez uma pausa. — O senhor falou com o Sr. Salveter esta manhã?

— Não. — Bliss pareceu indignado. — Eu estava em meu escritório das oito horas em diante e o rapaz não iria pensar em me perturbar. Ele provavelmente saiu de casa aí pelas nove e meia... o Museu Metropolitano abre às dez horas.

Vance concordou com a cabeça.

— Sim. Brush disse que ele saiu por volta dessa hora. Mas já não deveria estar de volta?

Bliss deu de ombros.

— Talvez — respondeu, como se o assunto não tivesse a menor importância. — É possível porém, que o rapaz tenha tido que esperar pelo Curador. De qualquer modo, estará de volta tão logo tenha cumprido sua missão. É um rapaz muito consciencioso; ambos, minha mulher e eu, gostamos muito dele. Foi ele quem, intercedendo junto ao seu tio, tornou possível as escavações do túmulo de Intef.

— Foi o que me disse Scarlett. — Vance falou com a casualidade de um completo desinteresse e puxando uma cadeira de madeira dobrável deixou-se cair nela preguiçosamente. Markham olhou para Vance com um olhar de reprovação — um olhar que disse tão claramente quanto o teriam feito palavras: "Deixe-me conduzir a conversação." Vance reclinou-se para trás e colocou as mãos cruzadas na nuca.

— Escute, doutor, — prosseguiu ele, com um ligeiro bocejo — por falar do velho Intef, como sabe eu estava presente quando o senhor se apropriou daquele fascinante escaravelho de lápis-lazúli...

Bliss levou a mão ao lenço de pescoço e olhou culpada-mente na direção de Hani, que se havia deslocado para a frente da estátua de Teti-shiret e se encontrava agora de costas para nós, em uma atitude de alheamento e de absorta adoração. Vance fingiu não ter percebido os movimentos do doutor e continuou, olhando sonhadoramente para fora das janelas de trás: — Um escaravelho muito interessante... estranhamente marcado. Scarlett me disse que o senhor o havia transformado em um alfinete de gravata... Ele está aí com o senhor? Eu gostaria de vê-lo.

— Realmente, Sr. Vance, — novamente a mão de Bliss dirigiu-se a sua gravata — ele deve estar lá em cima. Se o senhor chamar Brush...

Scarlett adiantou-se e se colocou ao lado de Bliss.

— Estava em seu escritório à noite passada, doutor, — disse ele — em cima da mesa...

— É isso mesmo! — Bliss, agora, estava perfeitamente controlado. — Vocês o encontrarão em cima de minha mesa,, preso à gravata que eu estava usando ontem.

Vance levantou-se e premiou Scarlett com um olhar glacial.

— Muito agradecido — disse, friamente. — Quando eu precisar de seu auxílio chamá-lo-ei. — Em seguida voltou-se para Bliss. — A verdade é, doutor, que eu estava procurando certificar-me se o senhor se recordava de ter usado o seu alfinete de escaravelho... Não está no seu escritório, sabe? Estava ao lado do corpo do Sr. Kyle quando aqui chegamos.

— Meu escaravelho de Intef aqui! — Bliss pôs-sé de pé num salto e ficou olhando, com olhos esgazeados pelo pânico„ para o homem assassinado. — Impossível!

Vance foi até o corpo de Kyle e apanhou o escaravelho..

— Impossível não é, senhor, — disse Vance ostentando o alfinete — mas é bastante mistificador... Provavelmente foi retirado de seu escritório ao mesmo tempo que o relatório..

— Está fora de meu alcance — observou Bliss lentamente, em rouco sussurro.

— Talvez tenha caído de sua gravata — sugeriu Heath antagonicamente, espichando o queixo para a frente.

— O que é que o senhor quer dizer? — O tom de voz do doutor parecia áspero e assustado. — Eu não o tinha nesta gravata. Deixei-o no escritório...

— Sargento! — Vance olhou para Heath com ácida reprovação. — Vamos levar as coisas calmamente e com discrição.

— Sr. Vance, — a agressividade de Heath não diminuiu — aqui estou para descobrir quem assassinou Kyle. A pessoa que teve todas as oportunidades de cometer o crime foi o Dr. Bliss. Além disso, encontramos um relatório financeiro e um alfinete de gravata que o fisgam para junto do morto. Há, ainda, aquelas pegadas...

— Tudo o que o senhor está dizendo é verdade, sargento, — interrompeu Vance — mas agarrar o doutor não nos dará explicação sobre esta extraordinária situação.

Bliss se afundara em sua cadeira.

— Oh, meu Deus! — lamentou-se. — Estou vendo aonde o senhor quer chegar. O senhor pensa que eu o matei!

— Buscou Vance com os olhos em desesperado apelo. — Digo-lhes que estava adormecido desde às nove horas. Nem mesmo sabia que Kyle estava aqui. É horrível... horrível... Certamente, Sr. Vance, não acredita...

Ouviram-se vozes zangadas à porta principal do museu e todos nós olhamos naquela direção. No patamar de cima aparecia Hennessey, de braços abertos, protestando energicamente. No portal via-se uma jovem mulher.

— Esta é minha casa — dizia ela em voz zangada e aguda. — Como ousa o senhor impedir que eu entre nela?

Scarlett imediatamente subiu correndo as escadas.

— Meryt!

— É minha esposa — informou-nos Bliss. — Por que ela não pode entrar, Sr. Vance?

Antes que Vance respondesse Heath já estava berrando: — Está bem, Hennessey. Deixe a senhora entrar.

A Sra. Bliss desceu rapidamente as escadas e quase correu para o marido.

— Oh, o que é isso Mindrum? O que aconteceu? — A moça ajoelhou-se e pôs os braços em torno dos ombros do doutor. Naquele momento percebeu o corpo de Kyle e, suspirando e estremecendo, afastou os olhos.

Era uma mulher impressionante, cuja idade, segundo avaliei, estava em volta dos vinte e seis ou vinte e sete anos. Tinha grandes olhos ^negros e pestanas longas e a pele da tonalidade azeitona profunda. Seu sangue egípcio aparecia mais marcado nos lábios cheios e sensuais e nas proeminentes maçãs do rosto, o que lhe emprestava uma aparência decididamente oriental. Havia nela algo que me fazia lembrar o lindo quadro da Rainha Nefertiti pintado por Winifred Brunton1 em uma reconstituição. Usava chapéu de tom azul leve, não diferente da própria touca usada por Nefret-íti; o vestido de crepe georgete castanho caía solto em seu corpo elegante e ondulado, modelando e ressaltando suas curvas sensuais. Havia vigor e beleza em sua delicada figura que seguia as linhas do ideal do antigo Oriente, tal como o assinalamos no Banho Turco de Ingres.

Apesar de sua juventude, a Sra. Bliss possuía um ar distinto de maturidade e equilíbrio, características profundas, inegáveis em sua natureza. Eu podia facilmente imaginar, observando-a ajoelhada ao lado do marido, que ela seria capaz de poderosas emoções e igualmente poderosas ações.2

 

 

(1) Esse retrato colorido (com o nome da Rainha grafado como Nefertiti) aparece em Reis e Rainhas do Antigo Egito (Charles Scribner's Sons).


(2) Vim a saber posteriormente, através de Scarlett, que a mãe da Sra. Bliss era uma dama copta de descendência nobre que traçava sua linhagem desde os faraós Salte e que, apesar da fé cristã, mantivera sua tradicional veneração pelos deuses nativos de seu país. Sua única filha, Meryt-Amen (A Bem Amada de Amûn), recebera esse nome em homenagem do grande Ramsés II, cujo título completo como Filho do Deus Sol era Ramose su Mery-Amun. No inglês mais correto o nome da Sra. Bliss deveria ser grafado como Meryet-Amun, mas a forma escolhida foi, sem dúvida, baseada nas transliterações de Flinders Petrie, Maspero e Abercrombie. Meryet-Amun não era nome incomum entre as rainhas e princesas do antigo Egito. Já foram assinaladas três rainhas com esse nome: uma (da família de Ah-mose I) cuja múmia se encontra no Museu do Cairo; outra (da família de Ramsés II) cuja tumba e cujo sarcófago se encontram no Vale das Rainhas; e uma terceira cuja câmara de sepultamento e cuja múmia foram recentemente encontradas pela Expedição ao Egito do Museu Metropolitano de Arte, em elevações nas proximidades do templo de Deir el Bahri, em Tebas. Esta última Rainha Meryet-Amun era filha de Thut-mose III e de Meryet-Rê, e esposa de Amen-hotpe II. A história relativa ao encontro de sua tumba se acha registrada na II Seção do Boletim do Museu Metropolitano de Arte, de novembro de 1929.

 

 

 

Bliss afagou a espádua da mulher de maneira afetuosamente paternal. Seus olhos, porém, continuavam abstratos.

— Kyle está morto, querida — disse-lhe com voz desanimada. — Foi assassinado... e esses cavalheiros estão-me acusando de tê-lo morto.

— Você? — A Sra. Bliss se pôs de pé imediatamente. Por um momento seus olhos se fixaram no marido, incompreensivelmente; em seguida voltou-os para nós com uma raiva coruscante. Antes que a moça pudesse falar, entretanto, Vance se aproximou dela.

— O doutor não está sendo preciso, Sra. Bliss — disse ele em voz baixa e uniforme. — Nós não o acusamos. Estamos, meramente, procedendo a uma investigação sobre este trágico acontecimento. Acontece que o alfinete de escaravelho do doutor foi achado ao lado do corpo do Sr. Kyle.

— E daí? — A Sra. Bliss se tornara estranhamente calma. — Qualquer pessoa poderia tê-lo posto lá.

— Exatamente, senhora — replicou Vance, com amistoso conforto. — Nosso principal objetivo nesta investigação é nos certificarmos de quem foi essa pessoa.

Os olhos da mulher estavam semicerrados e ela permanecia rígida, como se transfixada por um súbito e devastador pensamento.

— Sim... sim — murmurou ela. — Alguém colocou o escaravelho aí... alguém... — A voz de Sra. Bliss desapareceu, e uma nuvem, como de dor, desceu-lhe sobre o rosto. Rapidamente, porém, ela se recompôs e, tomando uma inalação profunda, olhou Vance nos olhos, resolutamente.

— Quem quer que seja que cometeu essa coisa horrível, desejo que os senhores o encontrem. — Seu rosto tornou-se duro. — E eu os ajudarei. Compreendem? Eu os ajudarei.

Vance estudou-a brevemente, antes de responder.

— Acredito no que está dizendo, Sra. Bliss. E chamá-la-ei para esse auxílio. — Vance se inclinou ligeiramente. — Mas neste momento não há nada que a senhora possa fazer. Algumas coisas rotineiras têm que ser feitas preliminarmente. Nesse meio tempo muito apreciaria se a senhora aguardasse por nós na sala de visitas — há umas perguntas que desejo fazer-lhe dentro em pouco... Hani pode acompanhá-la.

Eu estivera observando o egípcio com um canto de olho durante essa rápida cena. Quando a Sra. Bliss entrara no museu, Hani mal se voltara em sua direção, mas quando começou a falar com Vance ele se encaminhara para junto dos dois silenciosamente. Encontrava-se agora de braços cruzados imediatamente por trás da arca incrustada, com os olhos fixos na mulher, em uma atitude de protetora devoção.

— Venha, Meryt-Amun — chamou ele. — Permanecerei junto a você até que estes cavalheiros desejem consultá-la. Não há nada a temer. Sakhmet desfechou sua justa vingança e ela está a coberto do poder humano da lei ocidental.

A mulher hesitou por um momento. Em seguida, indo até Bliss, beijou-o de leve na testa e se encaminhou para as escadas da frente, servilmente acompanhada por Hani.

 


VI

 

Uma incumbência de quatro horas

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 13:15 horas)

 

 

Os olhos de Scarlett acompanharam a Sra. Bliss com uma expressão de pena e preocupação.

— Pobre moça! — comentou ele com um suspiro. — Como sabe, Vance, ela era muito devotada a Kyle — seu pai e Kyle eram grandes camaradas. Quando o velho Abercrombie morreu, Kyle cuidou dela como se fosse uma filha... Este caso é um golpe terrível" para ela.

— Qualquer um pode compreender isso — comentou Vance, superficialmente. — Mas a Sra. Bliss tem Hani para consolá-la... Casualmente, doutor, o seu criado egípcio parece estar muito en rapport com a Sra. Bliss.

— O quê? O quê? — Bliss levantou a cabeça e fez um esforço em se concentrar. — Ah, sim... Hani. Um cão fiel — no que diz respeito a minha mulher. Praticamente foi quem a criou depois da morte do pai. Nunca me perdoou por me ter casado com ela. — Sorriu tristemente e emergiu em um estado de pensativo desespero.

O charuto de Heath se apagara, mas ele continuava a mastigá-lo raivosamente.

Heath estava ao lado do corpo de Kyle, com as mãos nos bolsos e as pernas abertas, encarando o doutor com frustrada animosidade.

— De qualquer modo, para que todo esse palavrório? — indagou grosseiramente. Olhou para Markham. — Escute aqui, Chefe. O senhor já conseguiu provas suficientes para uma acusação?

Markham estava extremamente preocupado. Por instinto deveria determinar a prisão de Bliss, mas sua fé em Vance o impedia. Percebia que Vance não estava satisfeito com a situação e sem dúvida sentia, como resultado da atitude de Vance, que haviam certas coisas relacionadas com o assassinato de Kyle que não haviam subido à superfície. Além disso, talvez houvesse em sua própria mente alguma incerteza quanto à autenticidade dos indícios que apontavam na direção do egiptólogo.

Estava prestes a responder a Heath quando Hennessey enfiou a cabeça pela porta e chamou: — Ei, sargento! O rabecão acaba de chegar.

— Bem, já era tempo. — Heath estava mal-humorado. Voltou-se para Markham. — Há alguma razão, senhor, pela qual o corpo não deva ser removido?

Markham olhou na direção de Vance que concordou com a cabeça.

— Não, sargento — respondeu. — Quanto mais depressa ele chegue ao necrotério, mais rapidamente teremos o relatório post mortem.

— Certo! — Heath levou à boca a mão em concha e berrou para Hennessey: — Mande entrar.

. Um momento mais tarde, dois homens — um deles o motorista do rabecão e o outro um sujeito desleixado — desceram as escadas conduzindo uma cesta grande de vime, modelada no formato de um caixão de defunto. Sem uma palavra os dois homens, insensivelmente, colocaram o corpo de Kyle dentro da cesta e se encaminharam na direção da porta da frente com sua repulsiva carga, o sujeito desleixado na parte de trás, ensaiando uns passos de dança enquanto se deslocavam.

— Que rapazinho simpático — comentou Vance com um sorriso.

Com a remoção do corpo parecia que uma mortalha havia sido retirada do museu. Mas havia ainda a estátua caída de Sakhmet e a poça de sangue para contarem a terrível história da tragédia.

Heath permaneceu olhando a figura desanimada e silenciosa de Bliss.

— Aonde vamos daqui? — Sua pergunta continha ao mesmo tempo desgosto e resignação.

A inquietação de Markham crescia e, chamando Vance a um lado, conversou com ele em voz baixa. Não pude ouvir o que disseram, mas Vance falou seriamente com o procurador distrital durante alguns minutos. Markham ouviu atentamente e em seguida deu de ombros.

— Muito bem — estava dizendo Markham quando os dois tornaram a aproximar-se — mas a não ser que você chegue a uma conclusão rápida teremos breve que entrar em ação...

— Ação! Oh, minha tia! — Vance suspirou profunda* mente. Sempre ação — sempre fogos de artifício. O ideal rotariano! Ocupe-se... faça as coisas andarem. Eficiência!... Por que as forças da justiça têm que emular o caprichoso derviche? O cérebro humano, afinal de contas, tem certas funções.

Pôs-se a caminhar para cá e para lá à frente dos armários. Os olhos fitos no chão, enquanto todos os demais o observavam. Até mesmo o Dr. Bliss se levantou e o encarava com expressão de curiosidade e ^esperança.

— Nenhum desses indícios soa como verdadeiro, Markham — disse Vance. — Há alguma coisa aqui que está fora do lugar. É como um enigma que diz uma coisa e significa outra. Asseguro-lhe que a explicação óbvia é a explicação errada... Em algum lugar se encontra uma chave para a solução desse caso. E deve estar-nos olhando na cara, ainda que não a vejamos.

Vance parecia profundamente perplexo e insatisfeito e caminhava de um lado para outro com aquele calmo e dissimulado sentimento de alerta que desde muito tempo eu me acostumara a reconhecer.

De repente se deteve junto à poça de sangue à frente do último armário e se inclinou. Estudou-a durante um momento e em seguida seus olhos se dirigiram para o armário. Lentamente o seu olhar desceu a cortina parcialmente cerrada até parar na saliência trabalhada acima da haste da cortina. Depois de.alguns instantes seus olhos voltaram para a poça de sangue; fiquei com a impressão de que Vance estava avaliando as distâncias e procurando determinar as relações exatas entre o sangue, o armário, a cortina e a moldura ao longo da borda das prateleiras.

Endireitou-se dentro de pouco tempo e permaneceu junto à cortina, de costas para nós.

— Sim, muito interessante... — murmurou ele. — Creio...

Voltou-se e, puxando uma das cadeiras de madeira dobráveis colocou-a diretamente em frente ao armário, no ponto ·exato em que estivera a cabeça de Kyle. Em seguida subiu na cadeira e durante um tempo considerável permaneceu inspecionando a parte de cima do armário.

— Meu Deus! É extraordinário! — Sua voz era quase inaudível.

Puxando o monóculo colocou-o no olho. Depois estendeu a mão até à borda da prateleira e pegou algo muito próximo de onde, de acordo com Hani, tinha sido colocada a estátua de Sakhmet. Exatamente o que era nenhum de nós conseguiu ver, mas Vance não tardou a guardar o que fosse no bolso do casaco. Um pouco mais tarde desceu da cadeira e encarou Markham com um olhar de satisfação.

— Este crime tem assombrosas possibilidades — observou ele.

Antes que Vance pudesse explicar sua enigmática observação Hennessey tornou a aparecer no topo das escadas e a chamar Heath.

— Está aqui um cara chamado Salveter que diz querer falar com o Dr. Bliss.

— Ah! Bon! — Vance, por alguma razão, parecia altamente satisfeito. — Faça-o entrar, sargento!.

— Oh, claro! — Heath fez uma careta de aborrecimento. — OK, Hennessey, faça o cavalheiro entrar. Quanto mais gente mais divertido... O que é isso, afinal? — resmungou ele. — Uma convenção?

O jovem Salveter desceu as escadas e se aproximou de nós com ar inquisitivo e surpreso. Dirigiu a Scarlett um cumprimento ligeiro com a cabeça; logo em seguida viu Vance.

— Como está o senhor? — cumprimentou ele, obviamente surpreendido com a presença de Vance. — Já se passou um bocado de tempo desde que o vi... no Egito... Por que toda esta excitação? Fomos invadidos pelo Exército? — Seu humor não parecia verdadeiro.

Salveter era um homem de aparência agressiva e franca, de uns trinta anos, com cabelos cor de areia, grandes olhos cinzentos, nariz pequeno e lábios retos e finos. Tinha altura mediana e era bem feito de corpo, dando a impressão de que deveria ter sido um atleta nos tempos de estudante. Estava vestido de maneira simples, em um terno de tweed que não lhe caía bem e a gravata borboleta em seu colarinho mole estava de lado. Tenho minhas dúvidas quanto a seus sapatos jamais terem sido engraxados. Meu primeiro instinto era de gostar dele. O rapaz dava a impressão de uma franqueza de adolescente; entretanto, havia uma característica em seu todo — que não pude avaliar à época — que avisava às pessoas de que tomassem cuidado e não procurassem forçá-lo em coisa nenhuma contra sua obstinação.

Enquanto falava com Vance seus olhos percorriam a sala com intensa curiosidade, como se estivesse observando alguma coisa errada.

Vance, que o estivera olhando apreciativamente, respondeu após uma ligeira pausa em um tom que me pareceu desnecessariamente despido de simpatia.

— Não, não foi o Exército, Sr. Salveter. É a polícia. O fato é que o seu tio está morto. Foi assassinado.

— Tio Ben! — Salveter parecia chocado com a notícia; não tardou, porém, a que uma carranca vincasse sua testa. — Então é isso! — Voltou-se e encarou belicosamente o Dr. Bliss.

— Ele tinha um encontro marcado com o senhor hoje de manhã, doutor... Quando e como isso ocorreu?

Foi Vance, entretanto, quem respondeu.

— Seu tio, Sr. Salveter, foi atingido na cabeça com aquela estátua de Sakhmet, por volta das dez horas. O Sr. Scarlett se deparou com o corpo aqui, aos pés de Anúbis e me avisou. Eu, por minha vez, avisei ao procurador distrital... Por falar nisso, este é o Sr. Markham... e aqui o sargento Heath, do Departamento de Homicídios.

Salveter mal olhou na direção dos dois.

— Uma odiosa afronta — resmungou, contraindo os possantes maxilares.

— Uma afronta... sem dúvida! — Bliss levantou a cabeça e seus olhos, lamentavelmente desanimados, enfrentaram os de Salveter. — Isto significa o fim de todas as nossas escavações, meu rapaz...

— Escavações! — Salveter continuava a estudar o homem mais idoso. — Que importância têm? O que quero é botar as mãos no cão que fez isso. — Voltou-se agressivamente e encarou Markham. — O que posso fazer para ajudá-lo, senhor?

— Seus olhos eram meros traços — parecia um animal selvagem preparando-se para atacar.

— Poupe suas energias, Sr. Salveter — aconselhou Vance com voz arrastada, deixando-se cair indolentemente na cadeira.

— Poupe suas energias. Posso compreender exatamente como o senhor se sente. A agressividade no entanto — embora seja uma virtude em determinadas circunstâncias — é realmente inútil na presente situação... Acredite, por que não dá umas voltas em torno do quarteirão, vigorosamente, e volta até aqui? Estamos ansiosos por conversar polidamente com o senhor, mas calma e autocontrole são desejáveis ao máximo.

Salveter encarou Vance com ferocidade, mas Vance suportou-lhe o olhar com lânguida frieza. Durante uns trinta segundos travou-se um verdadeiro choque de olhares entre os dois, sem que nenhum deles piscasse. Já vi outros homens tentarem encarar Vance para confundi-lo, sem o mínimo êxito. Sua força calma e o vigor de seu caráter eram colossais e eu gostaria que ninguém ousasse enfrentar o seu olhar.

Finalmente Salveter deu de ombros. Um leve sorriso de concordância perpassou em sua boca.

— Abro mão do passeio — disse ele com surpreendente submissão. — Abra os fogos.

Vance deu uma tragada profunda no cigarro e deixou que seus olhos vagassem ao longo da grande frisa da Rapsódia de Pen-ta-Weret.

— A que horas saiu de casa esta manhã, Sr. Salveter?

— Cerca das nove e meia. — Salveter se encontrava agora de pé, em atitude de relaxamento, as mãos nos bolsos do casaco. Toda sua agressividade desaparecera e, ainda que observasse Vance atentamente, não havia animosidade nem tensão em sua atitude.

— E, por acaso, o senhor deixou a porta da frente destrancada ou aberta?

— Não!... Por que iria fazê-lo?

— Na verdade não sei. — Vance concedeu-lhe um sorriso de encorajamento. — Entretanto é uma pergunta mais ou menos vital. O Sr. Scarlett, sabe, encontrou a porta aberta quando chegou, entre dez e dez e meia.

— Bem, não deixei a porta aberta... Qual é a pergunta seguinte?

— Ao que sei o senhor foi ao Museu Metropolitano de Arte.

— Sim. Fui tomar algumas informações a respeito de umas reproduções do mobiliário da tumba de Hotpeheres.

— E conseguiu as informações que desejava?

— Sim.

Vance consultou o relógio.

— Uma e vinte e cinco — anunciou ele. — Isto significa que o senhor esteve ausente cerca de quatro horas. O senhor, por acaso, foi e voltou a pé até à Rua Oitenta e Dois?

Salveter cerrou os dentes durante um momento e olhou antagonicamente para Vance, que permanecia indiferente.

— Não fui a pé em qualquer dos sentidos, obrigado. — (Não pude determinar se ele estava meramente exercendo intenso autocontrole ou se de fato se assustara). — Fui de ônibus até à Avenida e voltei de táxi.

— Uma hora de ida e de volta, digamos. Isso lhe permitiu três horas para conseguir as informações, não?

— Matematicamente correto. — Novamente Salveter sorriu selvagemente. — Acontece, porém, que entrei nas salas à direita da entrada, a fim de dar uma espiada na Tumba de Per-nêb. Ouvi dizer que, recentemente, haviam acrescentado alguns objetos à coleção dos conteúdos da câmara de sepultamento... Per-nêb, como sabe, era da quinta dinastia...

— Sim, sim... E como Khufu, filho de Hetep-hir-es, pertenceu à dinastia precedente, o senhor estava esteticamente interessado no conteúdo da câmara de sepultamento. Muito natural... Durante quanto tempo o senhor percorreu e confraternizou com os fragmentos de Per-nêb?

— Olhe aqui, Sr. Vance, — Salveter estava ficando mais apreensivo — não estou percebendo aonde o senhor quer chegar, mas se é para auxiliar sua investigação sobre a morte de Tio Benjamim, aturo suas bobagens... Permaneci em torno dos armários das salas egípcias durante cerca de uma hora. Interessei-me e não me apressei — sabia que o Tio Benjamim tinha um encontro com o Dr. Bliss esta manhã e achei que, se chegasse aqui à hora do almoço, estaria bem.

— Mas o senhor não voltou à hora do almoço — observou Vance.

— E daí? Tive que ficar esfriando meus pés durante quase uma hora no escritório externo do Curador depois que fui lá para cima — o Sr. Lythgoe estava conversando com Lindsley Hall sobre uns desenhos. Depois tive que esperar mais ou menos meia hora enquanto ele telefonava para o Dr. Reisner, no Museu de Belas Artes de Boston. Estou com sorte de já estar de volta.

— Muita sorte... Sei como são essas coisas. Muito cacetes.

Aparentemente Vance aceitara a história sem dúvida. Levantou-se preguiçosamente e tirou do bolso uma caderneta de apontamentos, enquanto tateava no colete como se estivesse procurando alguma coisa com que escrever.

— Desculpe-me por tudo isso, Sr. Salveter, mas será que tem um lápis que me empreste? Parece que o meu sumiu.

(Imediatamente me tornei interessado, pois sabia que Vance nunca levava um lápis no bolso e sim uma pequena caneta-tinteiro que sempre trazia presa à corrente do relógio.) — Com prazer. — Salveter tirou do bolso e estendeu para Vance um lápis grande amarelo, de feitio hexagonal.

Vance pegou-o e fez com ele diversas anotações em sua caderneta. Em seguida, quando já ia entregá-lo, fez uma pausa e olhou para a marca nele impressa.

— Ah, um Mongol n? 1, hem? — observou. — Populares, esses lápis Fabers-482... O senhor os usa sempre?

— Nunca usei outros...

— Muito obrigado. — Vance restituiu o lápis e enfiou a caderneta no bolso. — Agora, Sr. Salveter, muito apreciaria se fosse para a sala de visitas e nos aguardasse lá. Nós queremos interrogá-lo de novo... Casualmente, a Sra. Bliss se encontra lá — acrescentou Vance naturalmente.

As pálpebras de Salveter se cerraram perceptivelmente e olhou de lado para Vance.

— Oh, sim? Obrigado... Esperarei na sala de visitas.

— Aproximou-se de Bliss. — Sinto muito, senhor, — disse.

— Sei o que isso significa para seu trabalho... — Ia acrescentar alguma coisa, mas parou. Em seguida se encaminhou decididamente para a porta da frente.

Salveter se encontrava a meio caminho nas escadas quando Vance, agora contemplando a estátua de Sakhmet meditativamente, voltou-se de súbito e o chamou.

— Oh, Sr. Salveter. Diga a Hani que gostaríamos de vê-lo. É um bom sujeito.

Salveter fez um gesto de assentimento e passou pela porta grande de aço sem olhar para trás.

 


VII

 

As impressões digitais

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 13:30 horas)

 

 

Pouco depois Hani se juntava a nós.

— Às suas ordens, cavalheiros — anunciou ele, olhando de um para outro de nós arrogantemente.

Vance já havia puxado uma segunda cadeira para junto da primeira em que ele subira para a inspeção no alto do armário. Fez, então, um gesto de chamada para o egípcio.

— Nós apreciamos o seu ardente espírito de cooperação, Hani — disse Vance. — Será que você podia ser tão amável ao ponto de subir nesta cadeira e nos indicar exatamente o local em que colocou ontem a estátua de Sakhmet?

Eu estava observando Hani com atenção e sou capaz de jurar que suas sobrancelhas se contraíram levemente. Mas quase não houve hesitação de sua parte em cumprir a solicitação de Vance. Fazendo uma reverência lenta e profunda aproximou-se do armário.

— Não coloque as mãos sobre a madeira — advertiu Vance. — E não toque na cortina.

Desajeitadamente, devido ao seu longo e esvoaçante kaftan, Hani subiu em uma das cadeiras. Vance subiu na outra.

O egípcio permaneceu durante alguns momentos olhando para a parte de cima do armário e, em seguida, apontou com um dedo ossudo para um ponto próximo da borda, exatamente a meio caminho da abertura de 75 cm.

— Exatamente aqui, effendi, — disse ele. — Se o senhor olhar de perto poderá ver onde a base de Sakhmet marcou a poeira.,..

— Oh, sim. — Vance, apesar de sua atitude de concentração, estava, não obstante, estudando o rosto de Hani. — Mas se olharmos com bastante atenção podemos perceber outros pontos em que a poeira foi atingida.

— Talvez o vento daquela janela acolá... Vance riu.

— Blasen ist nicht flõten, ihr miisst die Finger bewegen — para citar Goethe figurativamente... Sua explicação, Hani, é um pouco poética em demasia. — Vance indicou um ponto à moldura da borda do armário. — Duvido que mesmo o seu simum — ou samum, como vocês preferem chamá-lo1 — pudesse ter feito esse arranhão na base da estátua, não acha?... Ou quem sabe se você colocou a estátua com violência indevida.

 

 

 

(1) Não tenho certeza da razão pela qual Vance acrescentou essa frase intercalada, a não ser que se deva ao fato de que a palavra simum vem do árabe samma (que significa ser envenenado) e Vance julgasse que Hani reconhecesse melhor a palavra em sua correta forma etimológica.

 

 

— Claro que é possível, embora pouco provável.

— Não, de fato não é provável, considerando sua supersticiosa reverência para com a leonina dama. — Vance desceu de seu poleiro. — No entanto, parece que Sakhmet andou-se equilibrando na borda do armário, diretamente no centro, quando o Sr. Kyle chegou esta manhã para examinar os novos tesouros.

Todos nós o estivéramos observando com curiosidade. Heath e Markham pareciam especialmente interessados, e Scarlett — de cara fechada e imóvel — não tirara os olhos de cima de Vance. Até Bliss, que tinha parecido completamente chocado pela tragédia e em um estado de completo desânimo, tinha seguido o episódio com atenção. Era evidente que Vance havia descoberto algo de importância. Conhecia-o muito bem para subestimar sua persistência e esperei, com uma espécie de excitação íntima, que chegasse a hora em que ele compartilharia conosco sua nova descoberta.

Markham, no entanto, expressou sua impaciência.

— O que você tem em mente, Vance? — indagou irritadamente. Esta não é a hora de manter segredos e de ser dramático.

— Estou meramente sondando as possibilidades mais sutis deste sedutor caso — replicou ele de maneira casual. — Sou uma alma complexa, velho Markham. E não possuo, alas!, uma natureza simples e direta. Sou inimigo jurado do óbvio e do trivial... Você se lembra do que o coração do jovem disse para o salmista?... "As coisas não são coma parecem"...

Markham, de longa data, havia passado a compreender essa espécie de gárrula evasiva de parte de Vance, e nenhuma outra pergunta foi enunciada. Além disso, nesse momento houve uma interrupção, que emprestaria a todo o caso um aspecto ainda mais complicado e sinistro.

A porta da frente foi aberta por Hennessey e o capitão Dubois e o detetive Bellamy, peritos em impressões digitais, desceram as escadas rapidamente.

— Desculpe-me por fazê-lo esperar, sargento, — disse Dubois apertando a mão de Heath — mas eu estava às voltas com um arrombamento de cofre na Rua Fulton. — Dubois olhou em volta. — Como está, Sr. Markham? — Estendeu a mão para o procurador distrital... — Como está, Sr. Vance? — Dubois falou com civilidade, mas sem entusiasmo; acredito que o seu arrufo com Vance durante o caso da Canária ainda o amargurava.

— Não há muito serviço para o senhor aqui, capitão — interrompeu Heath impacientemente, — Só o que desejo é que o senhor examine aquela estátua pequena que está caída ali.

Imediatamente Dubois se tornou seriamente profissional.

— Isso não levará muito tempo — resmungou ele, inclinando-se sobre a estátua de diorita representando Sakhmet.

— O que pode ser isso, sargento?... Um desses trabalhos futuristas de arte que não significam coisa alguma?

— Para mim não significa nada — rosnou o sargento — a não ser que o senhor descubra nela algumas lindas e identificáveis impressões digitais.

Dubois grunhiu e estalou os dedos na direção de seu auxiliar. Bellamy, que permanecera imperturbável no fundo do quadro durante a troca de cumprimentos, avançou vigorosamente e abriu uma maleta de mão negra que trouxera com ele. Dubois, usando um lenço grande e as palmas das mãos, ergueu cuidadosamente a estátua e colocou-a de pé sobre o assento da cadeira. Em seguida remexeu na maleta e tirou de dentro um insuflador ou fole manual de pequeno porte e espalhou sobre toda a figura um pó cor de açafrão pálido. Em seguida a essa operação, delicadamente soprou todo o pó em excesso e fixou no olho uma lente de joalheiro, antes de se ajoelhar e examinar atentamente cada uma das partes da estátua.

Hani observara o espetáculo com o mais agudo interesse. Vagarosamente se deslocara para junto dos homens das impressões digitais, até ficar a uma distância de cerca de dois metros de onde se encontravam. Seus olhos se concentravam no que faziam enquanto suas mãos, caídas ao longo do corpo, se mantinham tensamente arqueadas.

— Os senhores não encontrarão impressões digitais minhas em Sakhmet, cavalheiros — proclamou ele em voz baixa e tensa. — Eu as esfreguei... Nem haverá nela quaisquer impressões para orientá-los. A Deusa da Vingança atacou por sua própria vontade e sua própria força e não são necessárias mãos humanas para ajudá-la em seus atos de justiça.

Heath fuzilou o egípcio com um olhar de crítico desprezo. Vance, porém, se voltou em sua direção com uma considerável ·demonstração de interesse.

— Como você sabe, Hani — perguntou ele — que as impressões de seus dedos não aparecerão na estátua? Foi você quem a colocou ontem em cima do armário.

— Sim, effendi, — respondeu o homem sem tirar os olhos de Dubois. — Eu a coloquei ali, mas com respeito. Eu ·a esfreguei e poli de cima até em baixo quando foi desempacotada. Somente depois eu a peguei em minhas mãos e a coloquei em cima do armário, como effendi Bliss havia determinado. Quando já estava no lugar pude ver onde minhas mãos haviam deixado marcas sobre a superfície polida. Tornei a esfregá-la com um pedaço de camurça, de modo que se encontrasse pura e intocada quando o espírito de Sakhmet baixasse seus olhos pesarosamente sobre os tesouros roubados existentes nesta sala... Não havia marcas ou impressões quando a deixei aí em cima.

— Bem, meu amigo, agora há nela impressões digitais — declarou Dubois sem qualquer emoção. Ele se munira de uma poderosa lente de aumento e estava focando seus olhos nos grossos tornozelos da estátua. — E são impressões tremendamente claras, também... Parece-me que foram feitas por alguém que tenha erguido a estátua... Ambas as mãos aparecem em volta dos tornozelos... Passe-me a máquina fotográfica, Bellamy.

Bliss tinha dado pouca atenção à entrada dos homens das impressões digitais, mas, quando Hani começara a falar, saíra de sua desanimada letargia e concentrara seu interesse no egípcio. Depois, quando Dubois anunciara a presença de impressões digitais, ficara olhando atentamente para a estátua. Uma surpreendente mudança ocorrera nele. Parecia um homem nas garras de um medo consumidor; antes que Dubois terminasse de falar Bliss se pôs de pé num salto e permaneceu em uma atitude de completo pavor.

— Deus que me ajude! — exclamou ele, o som de sua voz me produzindo um calafrio. — São minhas impressões digitais as que estão na estátua!

O efeito dessa admissão foi de aturdimento. Mesmo Vance pareceu momentaneamente arrancado de sua calma habitual" e, dirigindo-se a um cinzeiro padrão, do tipo pequeno, nele esmagou abstratamente o cigarro, ainda que não tivesse fumado mais do que sua metade.

Heath foi o primeiro a quebrar o elétrico silêncio que se seguiu ao grito de angústia de Bliss. Tirou o charuto apagado da boca e empinou o queixo.

— Claro que são suas impressões digitais! — explodiu o sargento desagradavelmente. — De quem mais poderiam ser?

— Um momento, sargento! — Vance havia-se recuperado inteiramente e sua voz era casual. — Impressões digitais, como sabe, podem ser muito enganadoras. E umas poucas assinaturas papilares em uma arma letal não significam que, necessariamente, seu autor seja um assassino. O que é mais importante, como sabe, é ter a certeza de quando e em que circunstâncias foram feitas as assinaturas.

Vance se aproximou de Bliss, que permanecia fitando a estátua de Sakhmet como um homem aturdido.

— Diga-me uma coisa, doutor, — Vance tinha assumido um ar natural e espontâneo — como sabe que as impressões digitais são suas?

— Como eu sei? — Bliss repetiu a pergunta em tom descolorido e resignado. Parecia ter envelhecido à frente mesmo de nossos olhos. Seu rosto pálido e encovado fazia com que sua cabeça parecesse a de um homem morto. — Porque... Oh, meu Deus!... Porque eu peguei a estátua!... Foi na noite passada... ou melhor, hoje pela manhã, antes de eu voltar lá para cima. Segurei a estátua pelos tornozelos, exatamente como aquele cavalheiro diz que aparecem as marcas de duas mãos.

— Como aconteceu que fizesse isso, doutor? — perguntou Vance calmamente.

— Fiz sem pensar. Já tinha mesmo esquecido de que o fizera, até que as impressões digitais foram mencionadas. — Bliss falou com uma franqueza febril: parecia mesmo supor que sua própria vida estivesse dependendo de que acreditassem no que dizia. — Quando terminei de arrumar todos os números do relatório, hoje pela madrugada, por volta das três horas, desci até aqui ao museu. Tinha falado com Kyle a respeito do novo carregamento e desejava ter certeza de que tudo estivesse em ordem para seu exame... Como sabe, Sr. Vance, muita coisa dependeria da impressão que os tesouros produzissem nele... Verifiquei os itens que se encontravam no armário lá do fim e tornei a cerrar a cortina. Quando já me ia retirar, notei que a estátua de Sakhmet não tinha sido colocada corretamente sobre a parte de cima do armário — não estava exatamente no centro e sim meio de lado. Por isso ergui as mãos e a coloquei na posição correta, empunhando-a pelos tornozelos...

— Perdoe minha intromissão, Vance, — Scarlett, com o olhar atônito, havia avançado uns passos — mas posso assegurar que uma tal atitude é perfeitamente natural com o Dr. Bliss. Ele é apegado à ordem... o que é motivo de brincadeiras de nossa parte. Nunca ousamos deixar coisa alguma fora do lugar: ele está constantemente nos criticando e tornando a arrumar as coisas depois que o fazemos. Vance fez que sim com a cabeça.

— Então, se bem o compreendo, Scarlett, caso uma estátua fosse deixada um pouco deslocada, seria praticamente inevitável que o Dr. Bliss, ao vê-la, corrigisse sua posição.

— Sim, creio que é uma conclusão razoável.

— Muito obrigado. — Vance tornou a se voltar para Bliss. — Sua explicação é de que o senhor ajustou a posição da estátua de Sakhmet empunhando-a por ambos os tornozelos, indo em seguida para a cama?

— Essa é a verdade, que Deus me ajude! — O homem procurou os olhos de Vance com ansiedade. — Apaguei as luzes e subi. Não tornei a pôr os pés no museu até à hora em que o senhor bateu na porta de meu escritório.

Heath, obviamente, não estava satisfeito com esta história. Parecia claro que ele não tinha a intenção de abandonar sua crença na culpabilidade de Bliss.

— O problema com esse álibi — retorquiu ele obstinadamente — é que o senhor não tem nenhuma testemunha. E é o tipo de álibi ao qual qualquer pessoa pode recorrer quando imprensada.

Markham interveio com diplomacia. Ele próprio, patentemente, não estava convencido nem de uma forma nem de.outra.

— Creio, sargento, — disse ele — que seria aconselhável que o capitão Dubois verificasse a identidade dessas impressões digitais. Ficaremos então sabendo definitivamente, pelo menos, se foram ou não deixadas pelo Dr. Bliss... Pode fazer isso agora, capitão?

— Claro.

Dubois remexeu na maleta e dela retirou um diminuto rolo embebido em tinta, uma pequena lâmina de vidro e um bloco também pequeno de papel.

— Creio que os polegares bastam — disse ele. — Há apenas um conjunto de mãos na estátua.

Dubois passa o rolo de tinta sobre a lâmina de vidro e, indo até Bliss, pediu-lhe que esticasse as mãos.

— Pressione seus polegares na tinta e em seguida aplique-os contra este papel — determinou Dubois.

Bliss obedeceu sem uma palavra. Colhidas as impressões, Dubois tornou a ajustar a lente de joalheiro em seus olhos e inspecionou as marcas.

— Parece com as outras — comentou. — Linhas Ulnar... idênticas às da estátua... De qualquer modo vou confrontá-las.

Ajoelhou-se junto da estátua e manteve o bloco de papel próximo aos seus tornozelos. Durante cerca de um minuto ficou estudando os dois conjuntos de impressões.

— São iguais — anunciou finalmente. — Fora de qualquer dúvida... e não há qualquer outra marca visível na estátua. Este cavalheiro — fez um gesto de desprezo na direção de Bliss — é a única pessoa que botou as mãos na estátua, tanto quanto eu possa ver.

— Isto me alegra — sorriu Heath. — Deixe-me ver as ampliações assim que estiverem prontas — tenho um pressentimento de que vou precisar delas. — Pegou outro charuto e arrancou-lhe a ponta com os dentes com maligna satisfação.

— Creio que será tudo, capitão. Muito obrigado... Agora o senhor poderá ir alimentar-se.

— E deixe-me dizer-lhe que bem que estou precisando.

— Dubois entregou a máquina fotográfica e o restante do aparelhamento a Bellamy, que acondicionou tudo com enfadonha precisão. Barulhentamente os dois homens se retiraram do museu.

Heath finalmente acendeu seu charuto e, por alguns momentos, ficou a puxar a fumaça voluptuosamente, com um olho fechado na direção de Vance.

— Isto como que liquida as coisas, não é, senhor? — perguntou ele. — Ou será que o senhor engoliu o álibi do doutor? — Passou a se dirigir a Markham. — Deixo isso a seu critério, senhor. Há somente um conjunto de impressões digitais naquela estátua, se essas impressões foram fixadas à noite passada, eu gostaria que alguém me dissesse que fim levaram as impressões digitais do pássaro que atingiu Kyle na cabeça. Ele foi abatido com a parte de cima da estátua e quem quer que o tenha feito deve tê-la empunhado pelas pernas... Agora, Sr. Markham, eu pergunto: iria alguém apagar as próprias impressões e deixar apenas as do doutor? Mesmo que o quisesse não seria possível fazê-lo.

Vance falou antes que Markham pudesse responder.

— Como o senhor sabe, sargento, se a pessoa que matou o Sr. Kyle empunhou ou não a estátua?

Heath olhou surpreso para Vance.

— Espere aí! O senhor não pensa seriamente que aquela dama de cabeça de leão cometeu o crime por si mesma — como diz esse iogue, não é? — Apontou Hani com o polegar, sem sequer virar a cabeça.

— Não, sargento. — Vance sacudiu a cabeça. — Ainda não acredito no sobrenatural. Nem acredito, tampouco, que o assassino tenha apagado as próprias impressões e deixado as do Dr. Bliss. Mas penso, sabe, que há alguma explicação que satisfaça todos os aspectos contraditórios deste caso espantoso.

— Talvez sim. — Heath sentiu que poderia ser tolerante e magnânimo. — Entretanto, minha opinião a respeito das impressões digitais está baseada em provas tangíveis.

— Um procedimento muito perigoso, sargento — advertiu Vance, com desusada seriedade. — Duvido que o senhor possa jamais conseguir uma condenação do Dr. Bliss com as provas que possui. Tudo é demasiado óbvio — demasiado imbecil. Estamos atolados em um embarras de richesse — o que quer dizer que nenhum homem de posse de suas faculdades mentais iria cometer um crime e deixar para trás tantos indícios tolos de condenadora evidência... E creio que o Sr. Markham concorda comigo.

— Não tenho tanta certeza — protestou Markham, dubiamente. — Há algo no que você diz, Vance, mas, por outro lado...

— Desculpem-me, cavalheiros! — Heath, de súbito, se animara. — Tenho que falar com Hennessey. Voltarei em um minuto! — O sargento se encaminhou com vigorosa determinação até à porta da frente e desapareceu.

Bliss, por toda a sua aparência, não se interessara absolutamente por essa discussão a respeito de sua possível culpabilidade. Afundara em sua cadeira, permanecendo com os olhos fitos no chão, resignadamente — uma figura trágica e alquebrada. Depois que o sargento saiu, Bliss moveu a cabeça lentamente na direção de Vance.

— Seu detetive está plenamente justificado em sua opinião — observou ele. — Percebo seu ponto de vista. Tudo está contra mim... Tudo! — Seu tom de voz, ainda que monótono e descolorido, era ácido. — Se ao menos não tivesse adormecido hoje pela manhã eu poderia saber o significado de tudo isso... Meu alfinete de gravata... aquele relatório... as impressões digitais... — Sacudiu a cabeça como um homem que estivesse aturdido. — É horrível... É horrível! — Levou ao rosto as mãos trêmulas e colocou os cotovelos nos joelhos, inclinando-se para a frente em uma atitude de completo desespero.

— Tudo é demasiado horrível, doutor — replicou Vance animadoramente. — Aí está nossa esperança de uma solução.

Novamente se encaminhou até o armário e permaneceu durante um momento em distrait contemplação. Hani voltara a sua ascética adoração de Teti-shiret e Scarlett, de cenho franzido e se sentindo infeliz, caminhava nervosamente para cá e para lá entre o delicado assento real e as prateleiras que continham os shawabtis. Markham continuava perdido em reflexões, as mãos cruzadas nas costas, olhando o raio de sol que atravessava diagonalmente as janelas de trás.

Percebi que Hennessey entrara silenciosamente pela porta principal e tomara posição no patamar da escada, com uma das mãos agourentamente metida em um dos bolsos do casaco.

Em seguida abriu-se a porta pequena de metal no topo das escadas de ferro em espiral e Heath apareceu na entrada do escritório do Dr. Bliss. Tinha uma das mãos atrás das costas, fora das vistas, enquanto descia para o museu. Encaminhou-se diretamente até Bliss e permaneceu durante um momento olhando lamentosamente para o homem em cuja culpa ele acreditava. Repentinamente levou a mão à frente — com ela empunhava um sapato de tênis branco.

— Isto é seu, doutor? — berrou ele.

Bliss olhou para o sapato com atônita surpresa.

— Sim... é. Certamente é meu...

— O senhor aposta sua vida como é seu! — O sargento foi até onde estava Markham e manteve a sola do sapato virada para cima para que fosse examinada. Eu estava de pé ao lado do procurador distrital, e notei que a sola do sapato era cortada por pequenas cristas e que havia no salto um desenho de pequenos buracos circulares. Mas o que me fez sentir um calafrio de horror foi o fato de que toda a sola se achava vermelha de sangue já seca.

— Encontrei esse sapato no escritório — informou Heath. — Estava enrolado em um jornal, no fundo da cesta de papéis, coberto por toda a sorte de porcarias... escondido!

Passaram-se alguns momentos antes que Markham conseguisse falar. Seus olhos iam de Bliss para o sapato e deste para aquele; finalmente se detiveram em Vance.

— Creio que isso encerra o assunto. — Sua voz demonstrava resolução. — Não tenho outra alternativa senão...

Bliss se pôs de pé e correu na direção do sargento; o olhar hipnotizado não se despregava do sapato.

— O que é isso? — exclamou. — O que tem esse sapato a ver com a morte de Kyle? — Percebeu o sangue. — Oh, Deus do céu! — murmurou.

Vance pôs a mão no ombro do homem.

— O sargento Heath encontrou pegadas aqui, doutor. Foram produzidas por um de seus sapatos de tênis...

— Como é possível? — Os olhos fascinados de Bliss continuavam fixados na sola ensangüentada. — Deixei esses sapatos em meu quarto, lá em cima, à noite passada, e desci esta manhã com chinelos... Há algo diabólico acontecendo nesta casa.

— Sim, algo diabólico!... Algo incrivelmente diabólico... Pode ficar tranqüilo, Dr. Bliss, que vou verificar o que é...

— Desculpe-me, Vance, — a voz séria de Markham soou agourentamente — sei que você não acredita que o Dr. Bliss seja o culpado. Mas tenho uma obrigação a cumprir. Se não tomar qualquer providência em face das provas estarei traindo o povo que me elegeu. Além do mais, você poderá estar errado. (Markham pronunciou estas palavras com a generosidade de um velho amigo). De qualquer modo o meu dever é claro.

Acenou afirmativamente para Heath.

— Sargento, prenda o Dr. Bliss e acuse-o pelo assassinato de Benjamin H. Kyle.


VIII

 

No escritório

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 14:00 horas)

 

 

Eu já vira Vance em crucial desacordo com as opiniões de Markham, mas, quaisquer que tenham sido os seus sentimentos, sempre assumira uma atitude crítica e indiferente. Agora, porém, nem leviandade nem galhofa marcavam suas maneiras. Estava compenetrado e sério: uma ruga profunda surgira em sua testa e um ar de perplexa exasperação se instalara em seus frios olhos cinzentos. Comprimiu os lábios fortemente e enfiou as mãos profundamente nos bolsos do casaco. Esperei que ele protestasse vigorosamente contra a ação de Markham, mas Vance permaneceu em silêncio, tendo eu me apercebido de que se defrontava naquele momento com um dos problemas mais difíceis e estranhos de sua carreira.

Seus olhos se afastaram de Bliss para as costas imóveis de Hani, onde ficaram. Mas eram olhos que não viam — olhos que se voltavam para dentro, como se à procura de algum meio de contrabater a medida drástica em vias de ser tomada contra o grande egiptólogo.

Heath, ao contrário, parecia deliciado. Um sorriso de satisfação se alargara em seu rosto duro à ordem de Markham e, sem sair da frente de Bliss, chamou estridentemente pela agourenta figura do detetive no patamar da escada.

— Ei, Hennessey! Diga a Snitkin que telefone para a 8ª Delegacia para que mandem um tintureiro... Depois vá ao encontro de Emery e traga-o até aqui.

Hennessey desapareceu, enquanto Heath, permanecia fixando Bliss como um gato, como se esperasse que o doutor tentasse uma investida pela liberdade. Se a situação não fosse tão trágica a atitude do sargento teria parecido humorística.

— Não há necessidade de identificar e tomar as impressões digitais do doutor na delegacia — avisou Markham. — Mande-o diretamente para a estação central. Eu assumo a responsabilidade.

— Para mim está ótimo, senhor. — O sargento parecia grandemente satisfeito. — Mais tarde eu gostarei de conversar pessoalmente com este menino.

Bliss, passada a surpresa, se recompusera. Estava sentado ereto, a cabeça ligeiramente lançada para trás, olhando desafiadoramente através das janelas traseiras. Não havia covardia ou temor em sua atitude. Confrontado com o inevitável o doutor tinha, aparentemente, decidido aceitar sua sorte com estóica intrepidez. Eu não podia deixar de admirar a fortaleza do homem em uma situação extrema.

Scarlett permanecia como um homem paralisado, a boca pendendo parcialmente aberta, os olhos fixos em seu empregador com uma espécie de inacreditável horror. De todas as pessoas que se encontravam na sala, Hani era o menos perturbado; nem mesmo se voltara de sua elevada contemplação de Teti-shiret.

Vance, após alguns momentos, deixou cair o queixo sobre o peito e sua ruga de perplexidade se aprofundou. Em seguida,, como se acionado por súbito impulso, voltou-se e se dirigiu até o armário da extremidade. Permaneceu absorto, reclinado sobre a estátua de Anúbis. Não tardou, porém, que sua cabeça se deslocasse para cima e para baixo, para um lado e para outro, enquanto examinava várias partes do armário e sua cortina parcialmente aberta.

Dentro em breve voltava até Heath.

— Sargento, deixe-me olhar novamente aquele sapato. — Sua voz era baixa e demonstrava esforço.

Heath, sem descuidar de sua vigilância, meteu a mão no bolso, dele retirando o sapato. Vance pegou-o e, novamente ajustando o monóculo, examinou-lhe a sola. Em seguida devolveu o sapato para o sargento.

— Casualmente — disse ele — o doutor tem mais do que um pé... Onde está o outro sapato?

— Não o procurei — explodiu Heath. — Este era o bastante para mim. É o pé direito... o mesmo que produziu as pegadas.

— É verdade. — A maneira arrastada de Vance me fez saber que o seu cérebro estava mais à vontade. — Ainda assim eu gostaria de saber onde está o outro sapato.

— Eu o encontrarei... não se preocupe, senhor — Heath falou com desprezo e certeza. — Tenho uma pequena investigação a fazer tão logo tenha o doutor seguramente registrado na estação central.

— Procedimento policial típico — murmurou Vance. — Registre o homem primeiro e investigue depois. Muito boa prática.

Markham agitou-se com este comentário.

— Parece-me, Vance, — observou ele com a dignidade ferida — que a investigação já conduziu a algo razoavelmente definitivo. O que mais viermos a achar será apenas sob a forma de provas suplementares.

— Oh, e essa agora? Que engraçada! — Vance sorriu sarcasticamente. — Noto que você está se entregando à previsão dos fatos. Por acaso você consulta uma bola de cristal nas horas vagas?... Eu não sou aquilo a que chamam de clarividente, mas, velho Markham, posso ler o futuro melhor do que você. Asseguro-lhe que quando esta investigação for continuada não haverá provas suplementares contra o Dr. Bliss. Na verdade você ficará surpreso com o que vai ser revelado.

Vance chegou mais para perto do procurador distrital e deixou de lado o seu tom de escárnio.

— Você não percebe, Markham, que está fazendo o jogo do assassino? A pessoa que matou Kyle planejou tudo para que você agisse exatamente da forma como está agindo... Além disso, como já disse, jamais será conseguida uma condenação com as ilógicas provas de que vocês dispõem.

— Pode ser que eu chegue muito perto disso — retorquiu Markham. — De qualquer modo, meu dever é claro.

Tenho que correr um risco na busca da condenação... Mas Vance, por uma vez, creio que você permitiu que suas teorias negligenciassem um fato simples e óbvio.

Antes que Vance pudesse responder Hennessey e Emery entraram na sala.

— Aqui, rapazes — comandou o sargento. — Levem este pássaro lá em cima para que ponha alguma roupa e tragam-no de novo cá para baixo. Andem ligeiro.

Bliss saiu entre os dois detetives. Markham voltou-se para Scarlett.

— É melhor que o senhor espere na sala de visitas. Desejo interrogar a todos e creio que o senhor nos poderá dar algumas das informações que desejamos... Leve Hani junto.

— Estou pronto a fazer o que puder. — A voz de Scarlett demonstrava medo. — Mas o senhor está cometendo um engano terrível...

— Aí está um ponto que esclarecerei por mim mesmo — interrompeu Markham com frieza. — Agora tenha a bondade de aguardar na sala de visitas.

Scarlett e Hani atravessaram o museu lentamente e transpuseram a grande porta de aço.

Vance se dirigira até à frente da escada em espiral e se pôs a caminhar para cá e para lá com controlada ansiedade. Uma atmosfera tensa se estabelecera sobre o museu. Ninguém falava. Heath examinava a estátua de Sakhmet, com forçada curiosidade. Markham caíra em um estado de solene abstração.

Poucos minutos mais tarde Hennessey e Emery voltaram com o Dr. Bliss envergando roupa de sair. Mal tinham atingido a parte de trás do museu quando Snitkin enfiou a cabeça pela porta da frente e avisou: — O tintureiro está aí, sargento.

Bliss se voltou imediatamente e os dois detetives, atentos, acompanharam-lhe o gesto. Os três homens mal haviam dado alguns passos quando a voz de Vance estalou como um chicote.

— Parem! — Vance estava olhando para Markham. — Você não pode fazer isso! A coisa é uma farsa. Você está fazendo um asno de si mesmo.

Nunca eu vira Vance tão exaltado — ele estava completamente diferente de sua usual frieza — e Markham, notada-mente, sentiu-se abalado.

— Dêem-me dez minutos — apressou-se a continuar Vance. — Há algo que desejo saber — uma experiência que quero fazer. Então, se vocês não ficarem satisfeitos, podem levar a cabo essa prisão imbecil.

O rosto de Heath ficou vermelho de cólera.

— Olhe aqui, Sr. Markham — protestou ele. — Temos as provas...

— Um minuto, sargento. — Markham levantou a mão. obviamente ficara impressionado pela seriedade fora do comum de Vance. — Dez minutos não vão fazer qualquer diferença material. E se o Sr. Vance dispõe de alguma prova que nós desconhecemos, poderemos muito bem vir a conhecê-la agora. — Voltou-se bruscamente para Vance. — O que você tem em mente? Estou disposto a lhe conceder os dez minutos... Sua solicitação tem alguma coisa que ver com o que você encontrou em cima do armário e guardou no bolso?

— Oh, muito. — Vance, novamente, assumira seu ar fanfarrão. — E muito obrigado pela consideração... Sugiro, entretanto, que esses dois marmanjos conduzam o doutor pela porta da frente e o mantenham lá, à espera de instruções posteriores.

Markham, após uma breve hesitação, fez sinal com a cabeça para Heath, que deu a Hennessey e Emery a necessária ordem.

Quando ficamos sós, Vance se voltou para a escada em espiral.

— In primis — disse ele, quase alegremente — desejo de todo o coração fazer um exame superficial do escritório do doutor. Tenho o pressentimento de que lá encontraremos algo do mais fascinante interesse.

Vance já se encontrava a meio caminho nas escadas, com Markham, Heath e eu em seus calcanhares.

O escritório era uma peça espaçosa, com cerca de sete metros quadrados. Tinha na parte de trás duas janelas grandes e, no lado leste, uma menor, que dava para um pátio pequeno. Em torno das paredes viam-se algumas estantes fechadas e maciças; arrumadas nos cantos, pilhas de panfletos e de pastas de cartolina. Ao longo da parede onde se encontrava a porta que conduzia ao saguão, estendia-se um longo diva. Entre as duas janelas da parte de trás uma mesa grande, de mogno, com a parte superior plana, e, em frente a esta, uma cadeira giratória almofadada. Havia outras cadeiras em torno da mesa — testemunhas da conferência que ali se realizara na noite anterior.

Era uma peça arrumada, onde se destacava a notável limpeza em tudo o que continha. Mesmo os papéis e os livros em cima da mesa estavam cuidadosamente arrumados, atestando a natureza meticulosa de Bliss. A única coisa desarranjada no escritório era o lugar onde Heath havia despejado o conteúdo da cesta de papéis, na busca do sapato de tênis. As cortinas das janelas traseiras estavam levantadas e o sol da tarde inundava a peça.

Vance parou por algum tempo logo que transpôs a porta, olhando vagarosamente a sua volta. Seus olhos se detiveram por um momento na disposição das cadeiras, mas mais especialmente, em minha opinião, na cadeira giratória do doutor, que permanecia afastada da mesa alguns pés. Vance observou os painéis almofadados da porta e deixou que os seus olhos se detivessem na cortina descida da janela lateral. Após algum tempo foi até à janela e levantou a cortina. A janela estava fechada.

— Bastante estranho — comentou ele. — Um dia tórrido como este e a janela fechada. Tenha isso em mente, Markham... Observe que é claro, há uma janela oposta na casa vizinha.

— Que possível significação pode ter este fato? — perguntou Markham, de mau humor.

— Não tenho a mais remota idéia... A não ser — acrescentou Vance de maneira caprichosa — que algo se tenha passado aqui que o ocupante — ou ocupantes — deste escritório não queria que os vizinhos presenciassem. As árvores do quintal impedem completamente qualquer olhar indiscreto através das janelas de trás.

— Oba! Isto parece que marca um ponto a nosso favor — rejubilou-se Heath. — O doutor fecha a janela e baixa a cortina lateral a fim de que ninguém o veja entrar e sair do museu ou esconder o sapato.

Vance concordou com a cabeça.

— Seu raciocínio, sargento, vai muito bem até aqui. Mas vamos levar a equação até mais uma casa decimal. Por que, por exemplo, o seu culpado doutor não abre a janela e levanta as cortinas depois de realizado o sangrento feito? Por que deverá ele deixar mais um indício óbvio indicando sua culpa?

— Sujeitos que cometem crimes, Sr. Vance, — argumentou o sargento obstinadamente — não pensam em tudo.

— O que há com este crime — retrucou Vance calmamente — é que o criminoso pensou demasiadamente nos detalhes. Ele pecou pela prodigalidade, por assim dizer.

Vance se aproximou da mesa. Em uma das extremidades do móvel via-se um colarinho duplo, engomado, com uma gravata azul-marinho.

— Prestem atenção — advertiu Vance. — Aqui estão o colarinho e a gravata que o Dr. Bliss removeu ontem à noite durante a conferência. Qualquer pessoa poderia tê-los apanhado, não?

— Você já fez esta mesma observação anteriormente. — O tom de voz de Markham traía um toque de aborrecido sarcasmo. — Você nos trouxe até aqui para nos mostrar essa gravata? Scarlett já nos havia dito que ela se encontrava aqui. Desculpe-me, Vance, se eu confessar que sua descoberta não me impressionou.

— Não, não os trouxe até aqui para exibir a gravata do doutor. — Vance falou com calma segurança. — Apenas citei a gravata en passant.

Espalhou os papéis despejados da cesta, para cá e para lá, com o pé.

— Estou bastante ansioso por saber onde está o outro tênis do doutor. Tenho um pressentimento de que o local onde se encontra nos poderá revelar algo.

— Bem, na cesta não estava — declarou Heath. — Se estivesse eu o teria encontrado.

— Ah! Mas, sargento, por que não estava na cesta? Eis aí um ponto digno de consideração, sabe?

— Talvez não existisse sangue nele. Se assim fosse não haveria razão em escondê-lo.

— Mas, meu Deus! Parece-me que o inocente pé esquerdo está ainda mais bem escondido do que o incriminatório pé direito. (Durante a discussão Vance tinha realizado uma busca razoavelmente completa de todo o escritório, à procura do sapato de tênis desaparecido). — Por certo não se encontra aqui.

Markham, pela primeira vez desde que deixáramos o museu, revelou sinais de interesse.

— Percebo o seu ponto, Vance — concedeu ele relutantemente. — O sapato revelador estava escondido aqui no escritório enquanto o outro desapareceu... Admito ser um fato bastante estranho. Qual é a sua explicação?

— Oh, espere um momento! Vamos primeiro localizar o sapato antes de nos entregarmos a especulações... — Vance em seguida se dirigiu a Heath. — Sargento, se o senhor pedisse a Brush que o acompanhasse até o quarto do Dr. Bliss, estou bastante inclinado a acreditar que o senhor encontraria lá o sapato que está faltando. Lembre-se de que o doutor disse que estava usando seus tênis ontem à noite e que desceu esta manhã com suas chinelas.

— Ahn! — Heath não apreciou a sugestão. Pôs-se a encarar Vance com um olhar intenso e calculado. Logo em seguida mudou de idéias. Dando de ombros em capitulação saiu do saguão rapidamente e pudemos ouvi-lo chamar pelo mordomo pelas escadas dos fundos.

— Se p sargento encontrar o sapato lá em cima — observou Vance para Markham — será isso uma prova razoavelmente conclusiva de que o doutor não usou sapatos de tênis hoje pela manhã, pois sabemos que ele não voltou para o quarto depois de descer para seu escritório antes do café.

Markham parecia perplexo.

— Então quem teria trazido o outro pé do sapato hoje pela manhã? E como foi ele parar na cesta de papéis? E como veio a ficar manchado de sangue?... Certamente o criminoso usou o sapato que Heath encontrou aqui...

— Oh, sim. Quanto a isso não pode haver dúvida. — Vance balançou a cabeça gravemente. — A minha teoria é que o criminoso usou apenas um dos sapatos, tendo deixado o outro lá em cima.

Markham estalou a língua aborrecido.

— Esta teoria não faz sentido.

— Desculpe-me, Markham, se discordo de você — tornou Vance suavemente. — Mas creio que ela faz muito mais sentido do que os indícios com que vocês tão confiantemente contam para condenar o doutor.

Heath entrou na sala atabalhoadamente, com o tênis do pé esquerdo na mão. Tinha um ar apalermado, mas seus olhos brilhavam de excitação.

— Ele estava lá, sim — anunciou. — Ao pé da cama... Mas como teria ido parar lá?

— Talvez — sugeriu suavemente Vance — o doutor o tenha usado lá em cima à noite passada, como ele nos disse.

— Então como, diabo, o outro sapato veio bater aqui?

— O sargento neste momento empunhava os dois pés de tênis, um em cada mão, olhando-os com odiosa surpresa.

— Se soubermos quem trouxe o outro tênis para baixo hoje pela manhã — tornou Vance — saberemos quem matou Kyle. — Em seguida acrescentou: — Não que isso nos traga alguma vantagem particular no presente momento.

Markham mantinha-se olhando para o chão carrancudo e fumando furiosamente. O episódio do sapato o havia desconcertado. Nesse momento olhou para cima e fez um gesto de impaciência.

— Você está transformando esse caso em uma montanha, Vance — disse ele agressivamente. — Numerosas explicações simples se apresentam espontaneamente. A mais plausível dentre elas parece ser a que o Dr. Bliss, quando desceu hoje pela manhã, apanhou seus sapatos de tênis para tê-los a mão em seu escritório e, em seu nervosismo — ou apenas acidentalmente — esqueceu-se de um, ou mesmo deixou de apanhar ambos, fato de que não se apercebeu até chegar aqui...

— E então — continuou Vance com um sorriso amarelo — tirou um dos pés de chinelo, calçou o sapato de tênis, assassinou Kyle, tornou a trocar o sapato voltando a usar a chinela de que já se desfizera, e escondeu o sapato de tênis na cesta de papéis.

— É possível.

Vance suspirou audivelmente.

— Sim, possível é. Suponho que qualquer coisa seja possível neste mundo ilógico. Mas, realmente, Markham, não posso participar entusiasticamente de sua tocante teoria de haver o doutor apanhado apenas um sapato ao invés de dois e não se ter apercebido da diferença. Ele é por demais ordenado e metódico... consciente em demasia dos detalhes.

— Vamos então supor — insistiu Markham — que o doutor realmente estivesse com um pé de tênis e o outro de chinelos quando veio para o escritório hoje pela manhã. Scarlett nos disse que os seus pés o incomodavam um bocado.

— Se essa hipótese for correta — contrabateu Vance — como o outro pé de chinelos veio ter aqui embaixo? Seria muito difícil que o doutor o tivesse posto no bolso e saísse com ele por aí.

— Brush, talvez...

Heath havia acompanhado a discussão atentamente e entrou em ação nesse momento.

— Podemos verificar esse ponto imediatamente, Sr. Vance — disse ele, já se encaminhando rapidamente para a porta e chamando o mordomo.

No entanto nenhum auxílio veio da parte de Brush, que declarou que nem ele nem qualquer outro membro da casa se havia aproximado do escritório depois que Bliss lá entrara às oito horas, com a exceção do momento em que ele levara o café do doutor. Quando lhe indagaram que sapatos o Dr. Bliss estava usando, Brush respondeu que não prestara atenção.

Depois que Brush saiu Vance deu de ombros.

— Não vamos ficar excitados sobre o mistério da separação dos sapatos de tênis. Minha principal razão para atrair vocês até o escritório foi examinar os resíduos do café do doutor.

Markham perceptivelmente ia falar e seus olhos se estreitaram.

— Bons Céus! Você não acredita...? Confesso que também pensei nisso. Mas com todas aquelas provas...

— Pensou em que, senhor? — Heath estava visivelmente exasperado e havia irritação em sua voz.

— Ambos, o Sr. Markham e eu, — explicou Vance, aplacadoramente — notamos que o Dr. Bliss parecia estonteado quando apareceu esta manhã em resposta a minhas continuadas batidas à porta.

— Ele estava dormindo. Não foi o que nos disse?

— Certo. E aí está por que estou tão grandemente interessado em seu café matinal.

Vance encaminhou-se para a extremidade da mesa sobre a qual se via uma pequena bandeja de prata contendo um prato com torradas, uma xícara e uma molheira. A torrada não havia sido tocada, mas a xícara estava praticamente vazia. Somente alguns detritos endurecidos do que fora evidentemente café remanesciam no fundo. Vance se inclinou e olhou para dentro da xícara. Em seguida levou-a ao nariz.

— Nota-se aqui um odor ligeiramente ácido — observou ele.

Vance tocou com a ponta do dedo no interior da xícara e levou-o à língua.

— Sim!... Exatamente o que pensei — concluiu ele, baixando a xícara. — Ópio. Ópio em pó... do tipo comumente usado no Egito. As outras formas e derivados de ópio — tais como o láudano, a morfina, a heroína, a tebaína e a codeína — não são fáceis de serem obtidas aqui.

Heath havia-se aproximado e permanecia olhando belicosamente para dentro da xícara.

— Bem, suponhamos que houvesse ópio dentro do café — resmungou ele. — O que significa?

— Ah, quem sabe? — Vance estava acendendo um de seus cigarros, o olhar perdido no espaço. — Isto poderia, é claro, responder pela longa sesta do doutor hoje pela manhã e por sua situação confusa quando atendeu a minha batida. Poderá também significar que alguém narcotizou o café com alguma finalidade. O fato é, sargento, que o ópio no café do doutor pode significar várias coisas. No presente momento não posso expressar qualquer opinião. Estou unicamente chamando a atenção do Sr. Markham para a droga... Posso dizer, no entanto, que tão logo vi o doutor hoje pela manhã e observei a maneira pela qual agia, desconfiei que deveria haver indícios de um opiato no escritório. Além disso, sendo eu bastante familiarizado com as condições do Egito, concluí que deveria tratar-se de ópio em pó — opii pulvis. O ópio provoca muita sede; aí está por que não me surpreendi absolutamente quando o doutor pediu um copo com água. — Olhou para Markham. — Esta descoberta de ópio afeta a situação legal do doutor?

— Sem dúvida é um ponto forte a seu favor — opinou Markham após alguns instantes.

Era mais do que aparente que Markham estava profundamente perplexo. No entanto, relutava em afastar-se de sua crença na culpabilidade de Bliss; assim, quando tornou a falar, evidenciou que estava lutando desesperadamente contra a nova descoberta de Vance.

— Percebo que a presença do ópio deve ser explicada antes que uma condenação possa ser obtida. Por outro lado, porém, não sabemos qual a quantidade de ópio que o doutor ingeriu, nem quando o fez. Ele poderá ter tomado o café depois do crime — temos apenas sua palavra de que o café foi tomado às nove horas... Não, certamente que isso não afeta a questão fundamental — embora levante um ponto muito importante. Entretanto, a evidência contra o Dr. Bliss é demasiado forte para ser contrabalançada por este único ponto a seu favor. Certamente, Vance, é preciso que você aceite que a mera presença de ópio naquela xícara não é uma prova conclusiva de que ele tenha estado dormindo desde as nove horas até o momento em que você bateu à porta do escritório.

— O promotor público perfeito — suspirou Vance. — Um hábil advogado de defesa, no entanto, poderá plantar muitas sementes de dúvida fecundas na denominada consciência dos jurados, não?

— Certo. — A admissão veio após uns momentos de reflexão. — Entretanto, não podemos desprezar o fato de que Bliss foi, praticamente, a única pessoa que teve condições de matar Kyle. Com a exceção de Hani, todas as demais pessoas da casa se encontravam ausentes. Hani, para mim, não passa de um inofensivo fanático que acredita nos poderes sobrenaturais das divindades egípcias. Tanto quanto eu saiba Bliss era a única pessoa que se encontrava realmente a mão quando Kyle foi assassinado.

Vance permaneceu estudando Markham durante alguns segundos. Em seguida disse: — Suponhamos que não tenha sido necessário para o assassino estar em algum lugar próximo do museu quando Kyle foi morto com a estátua Sakhmet.

Markham tirou o charuto vagarosamente da boca.

— O que você quer dizer? Como poderia a estátua ter sido empunhada por alguma pessoa ausente? Parece-me que o que você está dizendo não faz sentido.

— Talvez faça. — Vance parecia misterioso e sério. — Além disso, Markham, encontrei algo em cima daquele armário lá do fim que me faz pensar que o crime foi planejado com diabólica habilidade... Como eu lhe disse, desejo fazer uma experiência. Depois de fazê-la, a linha de ação a ser seguida repousará inteiramente em suas próprias convicções. Há alguma coisa de sutil e de terrível neste crime. Todas suas aparências exteriores são enganadoras — e o são deliberadamente.

— Quanto tempo demorará essa experiência? — Markham estava patentemente impressionado pelo tom de voz de Vance.

— Somente alguns minutos...

Heath apanhara na cesta de papéis uma folha de jornal, na qual estava enrolando cuidadosamente a xícara.

— Isto aqui vai para o nosso laboratorista — explicou ele mal-humorado. — Não duvido de sua conclusão, Sr. Vance, mas quero a análise de um especialista.

— O senhor está certo, sargento.

Naquele momento o olhar de Vance se apercebeu de uma pequena bandeja de bronze sobre a mesa, contendo alguns lápis amarelos e uma caneta tinteiro. Inclinando-se naturalmente, Vance apanhou os lápis, examinou-os e tornou a colocá-los onde estavam. Markham, apesar de ter notado a ação de Vance, se absteve de fazer qualquer pergunta.

— A experiência terá que ser feita no museu — anunciou Vance — e para ela será necessário um par de almofadas do sofá.

Encaminhou-se até o diva e de lá voltou com duas almofadas grandes debaixo do braço. Em seguida foi até à porta de aço e a manteve aberta.

Markham, Heath e eu passamos e descemos as escadas em espiral. Vance seguiu-nos.

 


IX

 

Vance faz uma experiência

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 14:15 horas)

 

 

Vance caminhou diretamente até o último armário, ante o qual tinha sido achado o cadáver de Kyle, e colocou no chão as duas almofadas. Em seguida olhou mais uma vez especulativamente para a borda superior do armário.

— Creio... — murmurou ele. — Com a breca! Estou quase com medo de prosseguir. Se eu estiver errado tudo isso desabará por inteiro em cima da minha cabeça...

— Vamos, vamos! — Markham estava ficando impaciente. — Os solilóquios estão fora de moda, Vance. Se você tem alguma coisa a nos mostrar, vamos adiante.

— Você tem razão.

Vance foi até o cinzeiro e resolutamente apagou nele a cigarro. Voltando até o armário fez sinal para Markham e para Heath.

— À guisa de prelúdio — começou ele — desejo chamar-lhes a atenção para esta cortina. Observem que o anel metálico de sua extremidade saiu da haste e se encontra pendurado.

Percebi, pela primeira vez, que o pequeno anel da extremidade da cortina não se achava preso na haste e que a borda esquerda da cortina se soltara correspondentemente.

— Observem também — continuou Vance — que a cortina deste armário se encontra apenas parcialmente cerrada. É como se alguém tivesse começado a descerrá-la e, por alguma razão, tivesse parado. Quando, esta manhã, notei a cortina parcialmente aberta o fato me pareceu um pouco estranho, pois, obviamente, a cortina deveria encontrar-se ou completamente fechada ou completamente aberta. Podemos presumir que a cortina se encontrava fechada quando Kyle chegou — temos a palavra de Hani de que ele havia fechado a cortina deste particular armário, devido à desarrumação de seu conteúdo; também o Dr. Bliss, pelo telefone, mencionou a Kyle que os novos tesouros se encontravam no armário dá extremidade — o armário com a cortina fechada... Ora, para abrir a cortina não há necessidade de fazer-se mais do que um simples movimento com o braço — isto é, pegar a borda esquerda da cortina e puxá-la para a direita: o anel de latão deveria correr suavemente sobre a haste de metal... Mas, o que foi que encontramos? Encontramos a cortina aberta pela metade! Inquestionavelmente, Kyle não teria aberto a cortina pelo meio para examinar as peças dentro do armário. Assim, concluí que alguma coisa deveria ter interrompido o curso do anel a meio caminho e que Kyle morreu antes que pudesse ter aberto completamente a cortina. É o que penso, Markham; concorda comigo?

— Prossiga — Markham ficara interessado. Heath, também, observava Vance com extrema atenção.

— Então prestem atenção. Kyle foi encontrado morto diretamente à frente deste armário. Ele foi morto como resultado de ter sido atingido na cabeça pela pesada estátua de diorita de Sakhmet. Esta estátua, como sabemos, foi colocada em cima do armário por Hani. Quando observei que a cortina do armário havia sido apenas parcialmente aberta e, em seguida, descobri que o primeiro anel de latão da cortina — o anel da extremidade esquerda — não estava na haste, comecei a especular... especialmente por estar familiarizado com os hábitos metódicos do Dr. Bliss. Se aquele anel estivesse fora da haste ontem à noite, quando o Dr. Bliss esteve no museu, podemos estar certos de que ele o teria visto...

— Você está sugerindo, Vance, — perguntou Markham que o anel foi deliberadamente retirado da haste hoje pela manhã — e com uma finalidade?

— Sim! Em algum momento entre o telefonema do Dr. Bliss para Kyle ontem à noite e a chegada deste último esta manhã, creio que alguém removeu aquele anel da haste — e, como você disse, com uma finalidade!

— Que finalidade? — quis saber Heath. Seu tom de voz era agressivo e antagônico.

— Isso ainda tem que ser apurado, sargento. — A voz de Vance não mudou de modulação. — Eu admito que tenha uma teoria muito definida a esse respeito. Na verdade, tenho esta teoria desde o momento em que vi a posição em que se encontrava caído o corpo de Kyle e soube que Hani havia colocado a estátua no topo do armário. A cortina parcialmente aberta e o anel de latão desenfiado dão base a esta teoria.

— Creio compreender o que você tem em mente, Vance.

— Markham balançou a cabeça afirmativamente e devagar.

— Foi por isso que você examinou a parte de cima do armário e pediu a Hani que mostrasse exatamente onde ele havia colocado a estátua?

— Precisamente. E não apenas encontrei o que estava procurando, mas Hani confirmou minhas suspeitas quando apontou para o local onde havia colocado a estátua. O ponto se encontrava alguns centímetros para dentro da borda do armário. No entanto, havia também um arranhão profundo na" própria borda e um segundo contorno da base da estátua na poeira, mostrando que esta havia sido posta para a frente depois que Hani a colocara no lugar.

— Bem, o próprio Dr. Bliss admitiu que ele a movera na noite passada, antes de retirar-se — sugeriu Markham.

— Ele disse apenas que havia endireitado a estátua — replicou Vance. — Além disso, as duas impressões produzidas na poeira pela base da estátua são exatamente paralelas, de modo que o ajustamento a que o Dr. Bliss se referiu não pode ter sido o deslocamento da estátua 15 centímetros para a frente.

— Percebo o que quer dizer... Sua teoria considera que alguém deslocou a estátua para a própria borda do armário após o Dr. Bliss ter mexido nela. Não é uma hipótese descabida.

Heath que estivera ouvindo irritadamente, com os olhos semicerrados, subiu de repente a uma das cadeiras em frente ao armário e examinou a moldura da borda.

— Quero ver isto de perto — resmungou ele. Não tardou a descer e sacudir a cabeça vigorosamente para Markham. — Está certo, é como o Sr. Vance diz... Mas o que todo este palavrório tem a ver com o caso?

— É exatamente o que estou procurando certificar-me, sargento. — Vance sorriu. — Pode ser que não tenha nada com isso. Mas, por outro lado...

Vance se inclinou e, com considerável esforço ergueu a estátua de Sakhmet. (Como já disse, a estátua tinha cerca de 60 cm. de altura. Era solidamente esculpida e se apoiava em uma base pesada e grossa. Eu mesmo levantei-a mais tarde para sentir-lhe o peso, o qual, creio, devia ser de uns quinze quilos.) Vance, subindo em uma das cadeiras, colocou a estátua com toda a precisão em cima do armário, bem sobre a moldura da borda. Tendo cuidadosamente recolocado sua base sobre o desenho produzido na poeira, fechou a cortina. Em seguida pegou com a mão esquerda o anel que se encontrava solto, levou a borda da cortina para trás até que o anel atingisse a margem esquerda da estátua, inclinou esta para a direita e colocou o anel exatamente por baixo da borda exterior da sua base.

Em seguida Vance mexeu em um dos bolsos do casaco e de lá retirou o objeto que encontrara em cima do armário. Mostrou-nos o que era.

— O que descobri, Markham, — explicou ele — foi um pedaço de lápis, com três polegadas, cuidadosamente cortado e aparado; presumo ter desempenhado as vezes da haste vertical de alçapão feito em casa, como nos apresenta a figura 4 do manual de alçapões... Vamos ver se funciona.

Inclinou a estátua para a frente e colocou o pedaço de lápis sob a borda traseira de sua base. Retirou as mãos e a estátua permaneceu inclinada em nossa direção, perigosamente equilibrada. Durante um momento parecia prestes a cair espontaneamente, mas o lápis preparado era, aparentemente, do exato tamanho necessário para inclinar a estátua para a frente sem desequilibrá-la. v — Até aqui minha teoria funciona. — Vance desceu da cadeira. — Agora prossigamos com a experiência.

Deslocou a cadeira para um lado e acomodou as duas almofadas no local exato onde estivera a cabeça de Kyle, aos pés de Anúbis. Em seguida se pôs novamente de pé e encarou o procurador distrital.

— Markham, — disse, sombriamente — estou-lhe apresentando uma possibilidade. Observe a posição daquela cortina; considere a posição do anel de latão solto — sob a borda da estátua; observe a atitude inclinada de Nossa Senhora da Vingança; imagine agora a chegada de Kyle esta manhã. Ele havia sido informado de que os novos tesouros se encontravam no armário da extremidade, com a cortina cerrada. Ele avisou Brush que não incomodasse o Dr. Bliss porque iria até o museu para examinar o que continha o recente carregamento.

Vance fez uma pausa e, deliberadamente, acendeu um cigarro. Pelos seus movimentos lentos e preguiçosos percebi que os seus nervos estavam tensos.

— Não estou sugerindo — continuou ele — que Kyle tenha encontrado seu fim como resultado de uma armadilha mortal. De fato nem mesmo sei se a armadilha que reconstituí irá dar certo. No entanto, estou aventando a teoria como uma possibilidade, pois se o advogado de defesa puder provar que Kyle poderia ter sido assassinado por alguma outra pessoa que não o Dr. Bliss — isto é, por uma pessoa ausente —, então a acusação de vocês terá sofrido um decidido contratempo...

Vance se aproximou da estátua de Anúbis. Erguendo o canto mais baixo da parte esquerda da cortina colocou-se junto da parede oeste do museu.

— Vamos admitir que Kyle, após tomar posição à frente deste armário tivesse erguido a mão e puxado a cortina. Bem, o que teria acontecido — desde que a armadilha mortal tivesse sido realmente preparada?

Deu na cortina um puxão decidido para a esquerda. A cortina correu na haste até esbarrar e ficar presa a meio caminho do anel de latão que havia sido inserido sob a base de Sakhmet. O puxão deslocou a estátua de sua posição de perigoso equilíbrio. Ela se inclinou para a frente e caiu com um terrível estrondo sobre as almofadas do sofá, no ponto exato onde estivera a cabeça de Kyle.

Houve um silêncio que durou alguns momentos. Markham continuava fumando, com os olhos fixos na estátua caída. Estava carrancudo e pensativo. Heath, no entanto, ficara francamente atônito. Aparentemente não havia considerado a possibilidade de uma armadilha mortal e a experiência de Vance prejudicara, em grande parte, toda sua teoria. Olhava para a estátua de Sakhmet com uma surpresa perplexa, o charuto fortemente preso nos dentes.

Vance foi o primeiro a falar.

— Como vêem, parece que a experiência deu certo. Realmente, creio haver demonstrado a possibilidade de que Kyle tenha sido morto enquanto se encontrava sozinho no museu... Kyle era de estatura bastante baixa e havia distância suficiente entre a parte de cima do armário e sua cabeça para que a estátua pudesse ter adquirido o momentum fatal. A profundidade do armário é de 60 cm. apenas, de modo que seria inevitável que a estátua atingisse Kyle na cabeça, desde que estivesse parado à sua frente. Obviamente, ele deveria estar parado à frente do armário quando puxou a cortina. O peso da estátua é suficiente para ter causado aquela terrível fratura de crânio e sua posição, atravessada na parte de trás da cabeça de Kyle, é perfeitamente coerente com a idéia de ter ele sido morto por uma armadilha cuidadosamente preparada.

Vance fez um ligeiro gesto de ênfase.

— Você deve admitir, Markham, que a demonstração que acabo de fazer torna plausível a culpa de qualquer pessoa que se encontrasse ausente e, conseqüentemente, remove um de seus mais fortes pontos contra o Dr. Bliss, isto é, proximidade e oportunidade... Além disso, este fato, tomado em conexão com a existência de ópio no café, dá-lhe um álibi convincente, ainda que não absoluto.

— Sim... — Markham falou com lentidão deliberada e meditativa. — Os indícios negativos que você descobriu tendem a contrabalançar os indícios diretos do escaravelho, do relatório financeiro e das pegadas de sangue. Não há dúvida a respeito de o doutor poder apresentar uma defesa forte...

— Haverá pelo menos uma dúvida razoável, como estão as coisas... não? — Vance sorriu. — Uma bela frase — sem significação, é claro, mas tipicamente legal. Como se a mente humana jamais fosse capaz de ser razoável!... E, Markham, não despreze o fato de que, se o doutor pretendesse unicamente eliminar Kyle com a estátua de Sakmet, os indícios da armadilha mortal não teriam sido presentes. Se o objetivo fosse somente liquidar Kyle, por que razão o lápis com a ponta aparada — no formato de uma haste de arapuca — estaria em cima do armário?

— Você está perfeitamente certo — admitiu Markham.

— Um hábil advogado de defesa pode transformar em ruínas a minha acusação contra o doutor.

— Considere ainda sua evidência direta por um momento. — Vance sentou-se e cruzou as pernas. — O alfinete com o escaravelho, que foi encontrado ao lado do corpo, pode ter sido levado por qualquer pessoa presente à conferência na noite passada e deliberadamente colocado ao lado do cadáver. Ou, se o doutor tivesse sido posto a dormir pelo ópio adicionado ao seu café, teria sido uma questão fácil para o assassino retirar o alfinete de cima da mesa hoje pela manhã — como sabem, a porta para o escritório nunca está fechada. E, o que seria mais simples do que pegar o relatório financeiro a essa mesma hora e colocá-lo na mão do morto?... Quanto às pegadas de sangue, qualquer pessoa da casa poderia ter apanhado o sapato de tênis no quarto do doutor, forjado as impressões no sangue e escondido o sapato na cesta de papéis, enquanto Bliss dormia sob a influência do opiato... Ainda mais: a janela fechada para o pátio; não indicará a janela fechada e com a cortina baixada que alguém no escritório não desejava que os vizinhos mais próximos vissem algo que estava ocorrendo?

Vance deu uma tragada vagarosa em seu cigarro, soltando uma longa espiral de fumaça.

— Não sou Demóstenes, Markham, mas defenderia o caso do Dr. Bliss em qualquer tribunal e garantir-lhe-ia uma absolvição.

Markham pusera-se a andar para lá e para cá, com as mãos nas costas.

— A presença dessa armadilha mortal e do ópio no café — concedeu ele afinal — lança no caso uma luz inteiramente plausível, a culpabilidade de qualquer outra pessoa. — Markham recomeçou a andar e olhou atentamente para Heath. — Qual é sua opinião, sargento?

Heath, obviamente, se encontrava em um dilema.

— Estou ficando maluco — confessou Heath após uma pausa. — Pensava que já tivéssemos o diabo do caso ensacado hermèticamente, e agora o Sr. Vance apresenta todas essas sutilezas e arranja uma saída para o doutor. — Olhou para Vance com ar beligerante. — Juro por Deus, Sr. Vance, deveria ser advogado. — Seu desprezo era devastador.

Markham não pôde evitar um sorriso, mas Vance sacudiu a cabeça tristemente e encarou o sargento com um ar exageradamente injuriado.

— Oh, sargento, há necessidade de insultos? — protestou Vance estranhamente. — Estou apenas procurando evitar que o Sr. Markham e o senhor façam papel de tolos. E o que recebo em troca? Dizem-me que deveria ser advogado! Que pena, ai de mim!

— Vamos pôr o cinismo de lado. — Markham estava demasiadamente preocupado para aderir à frívola atitude de Vance. — Você marcou o seu ponto e, ao fazê-lo, brindou-me com um problema sério e ponderável.

— Mesmo assim e apesar de tudo — insistiu Heath — há inúmeros indícios contra Bliss.

— É verdade, sargento. — Vance voltara a ficar pensativo. — Temo, porém, que esses indícios não sejam mantidos a um exame mais cerrado.

— Você acha e eu aceito — observou Markham — que os indícios foram plantados propositadamente; — que o verdadeiro criminoso planejou-os maliciosamente, de modo a apontarem para o Dr. Bliss.

— É uma tal técnica tão fora do comum? — indagou Vance. — Quantos criminosos têm tentado lançar suspeitas em alguma outra pessoa? A história criminal está cheia de casos de homens inocentes sendo condenados à base de indícios circunstanciais, não está? E, não será inteiramente possível que indícios enganadores, em tais casos, fossem deliberadamente plantados pelo verdadeiro criminoso?

— Mesmo assim — replicou Markham — não posso permitir, a este ponto do jogo, que sejam ignorados inteiramente os indícios que apontam na direção do Dr. Bliss. Devo ser capaz de provar um complot contra ele antes que possa inocentá-lo completamente.

— E a ordem de prisão?

Markham hesitava. Ele percebera, creio, a desesperança de sua acusação, agora que Vance desenterrara tantos elementos indiciais contraditórios.

— Claro que é impossível — concluiu ele — determinar neste momento a prisão do doutor, à vista dos fatores atenuantes que você trouxe à luz... Mas — acrescentou sombriamente — por certo que não vou ignorar por completo todos os indícios contra ele.

— E o que faz alguém em circunstâncias legalmente tão complicadas?

Markham permaneceu fumando durante um momento em preocupado silêncio.

— Vou manter Bliss sob cerrada observação — decidiu finalmente. Em seguida voltou-se para Heath. — Sargento, pode dizer a seus homens que soltem o Dr. Bliss. Tome, porém, as providências que se fizerem necessárias para que ele seja seguido de dia e de noite.

— Para mim está bem, senhor. — Heath começou a caminhar na direção das escadas da frente.

— Sargento, — chamou Markham — diga ao Dr. Bliss que não saia de casa até que eu tenha falado com ele.

Heath desapareceu para cumprir a missão.


X

 

O lápis amarelo

 

 


(Sexta-feira, 13 de julho — 14:30 horas)

 

 

Markham, vagarosamente, acendeu outro charuto, deixando-se cair sentado, pesadamente, em uma das cadeiras dobráveis próxima à arca incrustada e encarando Vance.

— A situação está começando a parecer séria e complexa —- comentou ele, com um suspiro de cansaço.

— Mais séria do que você pensa — retrucou Vance — e muito mais complexa... — Asseguro-lhe, Markham, que este crime é uma das tramas criminais mais surpreendentes e sutis com que você jamais se defrontou. Superficialmente parece simples e claro — a intenção foi mesmo que assim parecesse — e a sua primeira interpretação dos indícios foi exatamente aquilo com que o criminoso contava.

Markham observava Vance intensamente.

— Você tem alguma idéia de que trama foi essa? — Suas palavras eram mais uma assertiva do que uma pergunta.

— Ah, sim... sim. — Vance quase no mesmo instante tinha ficado alheado. — Uma idéia?... Sem dúvida. Mas não é o que você denominaria de um fulgor deslumbrante. Imediatamente suspeitei de uma trama e tudo o que foi encontrado posteriormente confirmou minha teoria. Mas, tenho apenas uma nebulosa idéia a respeito, e o objetivo preciso da trama está ainda completamente obscuro. No entanto, como sei que as indicações de superfície são deliberadamente enganadoras, há uma chance de chegarmos à verdade. Markham sentou-se agressivamente.

— O que tem você em mente?

— Oh, meu caro! Você me corteja de forma abominável.

— Vance sorriu com brandura. — Minha mente está nublada e obscurecida. Está envolta em neblina e garoa, névoa e vapor; está cirrosa e nublada, coberta por cúmulos e estratos; está cheia de novelos de lã, rabos de cavalos, rabos de gatos, fumo congelado e pingos de chuva. "Os elementos da natureza de fato se abatem sobre o obscurecido panorama"... Meu cérebro, realmente, está toldado...

— Poupe-me de seu vocabulário meteorológico. Lembre-se de que não passo de um ignorante procurador distrital. — O sarcasmo de Markham era proporcional à sua exasperação.

— Talvez, no entanto, você possa sugerir nosso próximo passo. Admito francamente que, a não ser o interrogatório dos membros da casa de Bliss, não vejo outro meio de resolver este problema. Assim é que, se Bliss não é o culpado, o crime foi obviamente cometido por alguém que não somente conhecia Intimamente a situação doméstica daqui como também tinha acesso à casa.

— Creio — sugeriu Vance — que devemos inicialmente nos familiarizar com as condições e as relações aqui existentes. Com isso teríamos algum equipamento, não? Por outro lado, isso poderia também indicar alguma linha fértil de inquirição.

— Vance se inclinou para a frente na cadeira. — Markham, a solução deste problema depende quase exclusivamente de que encontremos o motivo. Há sinistras ramificações até esse motivo. O assassinato de Kyle não foi um crime ordinário. Foi planejado com uma fineza e uma habilidade que tocam às raias do gênio. Somente um tremendo incentivo poderia tê-lo produzido. Há fanatismo por trás desse crime — uma poderosa e devastadora idée fixe, cruel e incrivelmente implacável. O crime ocorrido foi meramente uma preliminar para algo ainda mais diabólico — foi um meio para atingir um fim. O objetivo final era infinitamente mais terrível e mesquinho do que a súbita morte de Kyle... Um crime limpo e apaixonado pode por vezes ser justificado ou, pelo menos, atenuado. Neste caso, porém, o criminoso não se deteve com o assassinato: usou-o como meio para esmagar e arruinar alguma pessoa inocente...

— Admitindo que o que está dizendo seja verdadeiro — Markham se pôs de pé inquieto e se encostou nas prateleiras que continham os shawabtis — como poderemos conhecer as inter-relações do pessoal da casa sem que os interroguemos?

— Inquirindo o único homem que fica de fora com relação ao pessoal da casa.

— Scarlett?

Vance fez que sim com a cabeça.

— Sem dúvida ele sabe muito mais do que nos disse. Esteve com a expedição de Bliss durante dois anos, viveu no Egito e conhece a história da família... Por que não o ter aqui para uma breve causerie antes de interrogar os membros da casa? Há alguns pontos que eu gostaria de saber antes que a investigação prossiga.

Markham observava Vance atentamente. Não tardou a sacudir a cabeça para baixo e para cima, lentamente.

— Você tem algo em mente, Vance, e não se trata de nimbos, cúmulos, estratos ou cirros... Muito bem. Chamarei Scarlett e vamos interrogá-lo.

Nesse momento Heath tornou a entrar no museu.

— O Dr. Bliss foi para seu quarto, com ordens de ficar por lá — informou. — Todos os demais estão na sala de visitas, com Hennessey e Emery de olho nas coisas. Também já mandei o tintureiro embora e Snitkin está de guarda na porta da frente. — Raramente eu vira Heath tão desanimado.

— Como procedeu o Dr. Bliss quando o senhor determinou que fosse solto? — quis saber Vance.

— Parece que não estava ligando nem a uma coisa nem a outra — respondeu o sargento com uma entonação de desgosto. — Nem disse nada. Limitou-se a subir, de cabeça baixa, como atordoado... Pássaro curioso, se me perguntam...

— Os egiptólogos são pássaros curiosos em sua maior parte, sargento — observou Vance consoladoramente.

Markham começava novamente a impacientar-se. Logo se dirigiu a Heath.

— O Sr. Vance e eu decidimos ouvir o que o Sr. Scarlett nos tenha a dizer antes de prosseguir com a investigação. Quer pedir-lhe que venha até aqui?

O sargento abriu os braços e deixou-os cair em um gesto amplo de resignação. Em seguida retirou-se do museu, para voltar pouco depois com Scarlett a reboque.

Vance puxou várias cadeiras. Por sua maneira séria e deliberada percebi que encarava a reunião com Scarlett como de alta importância. Na ocasião eu não sabia do que lhe ia na cabeça, nem entendi por que escolhera Scarlett como sua principal fonte de informações. Antes que o dia terminasse, porém, tudo estava demasiado claro para mim. Com sutil sabedoria e precisão Vance tinha escolhido o único homem que poderia fornecer as informações necessárias para o esclarecimento da morte de Kyle. As coisas que Vance veio a saber através de Scarlett, naquela tarde, vieram a demonstrar-se fatores determinantes na solução que deu ao caso.

Sem qualquer preliminar, Vance informou Scarlett sobre a mudança de situação do Dr. Bliss.

— O Sr. Markham decidiu adiar a prisão do doutor. No momento os indícios são por demais conflitantes. Descobrimos várias coisas que, do ponto de vista legal, lançam séria dúvida sobre sua culpabilidade. O favo é, Scarlett, que chegamos à conclusão de que precisamos ir além nessa investigação antes que possamos fazer algum movimento definitivo.

Scarlett pareceu grandemente aliviado.

— Por Jó, Vance! Estou terrivelmente satisfeito com isso — exclamou ele com completa convicção. — A culpa do Dr. Bliss é inaceitável. Qual, possivelmente, poderia ter sido o motivo do homem? Kyle era seu benfeitor...

— Você tem alguma idéia sobre o assunto? — interrompeu Vance.

Scarlett abanou a cabeça enfaticamente.

— Não faço a mínima idéia. A coisa me atordoou. Não posso imaginar como pode ter acontecido.

— Sim... muito misterioso — murmurou Vance. — Temos que chegar ao assunto descobrindo o motivo... Aí está por que estamos apelando para você. Desejamos saber exatamente como são as coisas no interior da casa de Bliss. Você, sendo mais ou menos um estranho, poderá conduzir-nos até à verdade... Por exemplo, você mencionou uma relação íntima entre Kyle e o pai da Sra. Bliss. Conte-nos toda a história.

— É um tanto romântica, mas muito simples. — Scarlett interrompeu-se e sacou o cachimbo. Após acendê-lo, continuou: — Você conhece a história do velho Abercrombie, pai de Meryt. Ele foi para o Egito em 1885 e, no ano seguinte, tornou-se assistente de Grébault, quando Sir Gaston Maspero voltou ao território francês para reassumir sua cadeira no Colégio de França. Maspero manteve sua posição como chefe do Serviço de Antiguidades Egípcias no Cairo, até ser exonerado em 1914, quando foi eleito secretário permanente da Academia de Inscrições e Belas Letras em Paris. Abercrombie, então, substituiu Maspero como Diretor de Antiguidades no Museu do Cairo. Em 1898, entretanto, Abercrombie apaixonou-se por uma dama copta, com quem se casou. Meryt nasceu dois anos mais tarde, em 1900.

Scarlett parecia estar enfrentando alguma dificuldade com seu cachimbo e usou dois fósforos para tornar a acendê-lo.

— Kyle entrou no quadro quatro anos antes do nascimento de Meryt — prosseguiu ele. — Foi para o Egito em 1896, como representante de um grupo de banqueiros de Nova York, que se haviam interessado financeiramente pelo sistema previsto de irrigação do Nilo.1 Kyle conheceu Abercrombie — então assistente de Grébault — e o conhecimento se desenvolveu em sólida amizade. Kyle voltou ao Egito quase todos os anos durante o processo de construção da represa — isto é, até 1902. Naturalmente veio a conhecer a dama copta com quem posteriormente Abercrombie contraiu casamento e, tenho razões para acreditar, era muito apaixonado por ela. Sendo, amigo de Abercrombie e um cavalheiro, absteve-se de qualquer manifestação. Entretanto, quando a dama morreu, ao nascer Meryt, abertamente transferiu sua afeição da mãe para a filha. Tornou-se padrinho de Meryt e, de uma forma generosa, tomou conta dela como se fosse sua própria filha... Kyle não era um mau sujeito...

 

 

 

(1) A irrigação a que Scarlett se referia era o sistema que teve como resultado as represas de Asan e de Asyût e a barragem Esneh.

 


— E Bliss?

— Bliss foi pela primeira vez ao Egito em 1913. Encontrou Abercrombie nessa ocasião e se tornaram amigos. Também conheceu Meryt que na época tinha apenas treze anos de idade. Sete anos mais tarde — em 1920 — o jovem Salveter apresentou Bliss a Kyle e a primeira expedição ao Egito foi realizada no inverno 1921/22. Abercrombie morreu no Egito no verão de 1922 e Meryt foi adotada, de uma certa forma, por Hani, há muito tempo mantido pela família. A segunda expedição de Bliss teve lugar em 1922/23 e, novamente, Bliss veio a encontrar-se com Meryt. À época Meryt tinha vinte e três anos e, na primavera seguinte, Bliss a desposou... Você conheceu Meryt, Vance, quando da terceira expedição de Bliss, em 1924... Bliss trouxe Meryt com ele para a América depois de sua segunda expedição e, no ano passado, acrescentou Hani a sua equipe pessoal. Desde então Hani tem trabalhado como um subinspetor para o governo egípcio... Aí está um resumo das relações entre Bliss, Kyle, Abercrombie e Meryt. Era isso o que você desejava?

— Exatamente. — Vance olhou meditativamente para a ponta de seu cigarro. — Em suma, então, Kyle interessou-se pela Sra. Bliss devido ao seu amor pela mãe dela e sua amizade por seu pai; além disso, não há dúvida de que tinha um outro interesse em financiar as posteriores expedições de Bliss, devido ao fato de ter este último desposado a filha de seu perdido amor.

— Sim. A hipótese é perfeitamente razoável.

— Assim sendo, Kyle provavelmente não se esqueceu da Sra. Bliss em seu testamento. Será que você sabe, Scarlett, se Kyle incluiu alguma cláusula para ela?

— Pelo que sei — explicou Scarlett — Kyle deixou para Meryt uma considerável fortuna. Soube através de Hani, que me mencionou uma vez, haver Kyle legado a ela uma vultosa soma. Hani se mostrava deliciado com o fato, pois não há dúvida de que sente por Meryt uma afeição canina, muito profunda.

— E quanto a Salveter?

— Presumo que Kyle tenha-se lembrado dele com grande generosidade. Kyle não era casado — não sei dizer se sua lealdade à mãe de Meryt é ou não a responsável por ser solteirão, e Salveter o seu único herdeiro. Além disso ele gostava imensamente do rapaz. Estou inclinado a pensar que, quando for lido o testamento, será verificado que foram deixadas somas iguais para Salveter e para Meryt.

Vance voltou-se para Markham.

— Será possível a você determinar a um de seus hábeis coadjutores que verifique confidencialmente o que consta do testamento de Kyle? Tenho a impressão de que essa informação nos poderá ajudar em muito materialmente.

— Isso pode ser feito — concordou Markham. — No momento em que esta coisa estourar nos jornais os advogados de Kyle aparecerão. Usarei um pouco de pressão.

Vance tornou a dirigir-se a Scarlett.

— Creio que você me disse que Kyle, recentemente, havia reclamado quanto às despesas das expedições de Bliss. Será que você conhece alguma razão para essa reclamação, outra que não a falta imediata de resultados?

— Não. — Scarlett pensou durante alguns momentos. — Como sabe, expedições semelhantes às que o Dr. Bliss tem planejado são tremendamente caras e luxuosas, e os resultados, é claro, altamente problemáticos. Além do mais, por mais bem sucedidas que sejam, levam algum tempo para que sejam produzidas evidências tangíveis quanto a seu valor. Kyle estava começando a ficar impaciente; ele não era um egiptólogo e pouco conhecia de tais assuntos; pode ter-lhe parecido que o Dr. Bliss estava empenhado em uma aventura extravagante, às suas custas. De fato, no ano passado, ele ameaçou que, a não ser que resultados definitivos fossem obtidos nas novas escavações, não continuaria a jogar dinheiro fora. Era essa a razão pela qual o doutor estava tão ansioso, ontem à noite, em apresentar o relatório financeiro e fazer com que Kyle visse os novos tesouros que chegaram ontem.

— Não havia nada de pessoal na atitude de Kyle?

— Ao contrário. Todas as relações eram muito amistosas. Kyle gostava de Bliss como pessoa e o admirava imensamente. Bliss, por sua vez, só tinha palavras de louvor e de gratidão para com Kyle... Não, Vance, você não encontrará coisa alguma atacando o problema desse ângulo.

— Como se sentia o doutor à noite passada com relação ao possível resultado de sua entrevista com Kyle?... Estava preocupado ou otimista?

Scarlett contraiu o cenho e puxou uma baforada de seu cachimbo.

„ " Diria que nem uma coisa nem outra — respondeu afinal. Seu estado de espírito era o que podemos denominar de filosófico. Bliss estava inclinado a receber bem as coisas — aceitar o que viesse — e ele possui também autocontrole em dose rara. O estudante sério de todas as épocas, se é que você me compreende.

— Compreendo, sim... — Vance jogou fora o cigarro e cruzou as mãos atrás da cabeça. — Mas, em sua opinião, qual teria sido a reação do Dr. Bliss se Kyle se recusasse a financiar futuras expedições?

— Isso é difícil de dizer... Provavelmente teria ido buscar capital em algum outro lugar. Não se esqueça de que seu trabalho fez grandes progressos, a despeito do fato de que ele, verdadeiramente, não tivesse ainda entrado na tumba de Intef.

— E qual foi a atitude do jovem Salveter em face de uma possível cessação das escavações?

— Ele estava mais aborrecido com isso do que o doutor. Salveter tem um entusiasmo incrível e fez vários apelos ao tio para que continuasse a financiar o trabalho. Caso Kyle insistisse em sua recusa isso por certo iria fazer com que o rapaz chegasse muito perto do desespero. Pelo que sei, Salveter chegou mesmo ao ponto de se oferecer para abrir mão de sua herança se Kyle continuasse a financiar a expedição até o fim.

— Não há dúvidas quanto à sinceridade de Salveter — acedeu Vance. Seguiu-se um silêncio que durou um tempo considerável. Finalmente, Vance puxou a cigarreira. No entanto, não a abriu e permaneceu tamborilando nela com os dedos. — Há uma outra pergunta que quero fazer-lhe, Scarlett — disse ele em breve. — Como a Sra. Bliss encara o trabalho de seu marido?

Era uma pergunta vaga — propositalmente, presumo. Scarlett ficou um pouco perturbado, mas após um momento respondeu: — Oh, Meryt é uma esposa muito dedicada. Durante os primeiros tempos de casada estava muitíssimo interessada em tudo o que o doutor fazia — de fato ela o acompanhou, como você sabe, na expedição de 1924. Viveu em uma tenda e toda essa espécie de coisas e parecia perfeitamente feliz. Mas — para lhe dizer a verdade, Vance, — ultimamente o seu interesse vem diminuindo. Creio ser uma reação racial. Nela o sangue egípcio é uma influência poderosa. Sua mãe era quase fanática com respeito ao assunto da santidade egípcia e muito orgulhosa. Ressentia-se com o que denominava de violação das tumbas de seus ancestrais pelos bárbaros do Ocidente — expressão que usava para todos os cientistas ocidentais. Meryt, entretanto, nunca emitiu a sua opinião e estou meramente supondo que o antagonismo existente em sua mãe tenha, recentemente, se manifestado nela. Por favor, compreenda não se tratar de nada sério. Meryt sempre foi leal a Bliss e ao trabalho de sua escolha.

— Talvez Hani tenha alguma coisa a ver com seu estado de espírito — observou Vance.

Scarlett lançou-lhe um olhar interrogativo.

— Talvez seja possível — admitiu relutantemente, recolhendo-se, depois, ao silêncio.

Vance obstinadamente perseguiu seu objetivo.

— Mais do que provável, eu diria. E vou ainda mais longe. Tenho suspeitas de que o próprio Dr. Bliss reconheceu a influência de Hani em sua esposa e se ressentiu com o fato, amargamente. Lembre-se de sua tirada contra Hani quando chegou aqui ao museu esta manhã. Abertamente o Dr. Bliss acusou Hani de estar envenenando a mente de sua mulher.

Scarlett se remexeu na cadeira, inquieto, e mordeu o bocal do cachimbo.

— Nunca houve qualquer afeição entre o doutor e Hani — comentou evasivamente. — Bliss somente o trouxe para a América porque Meryt insistiu nesse ponto. Creio que ele tem a impressão de que Hani o espiona a favor do governo do Egito.

— E isso é completamente improvável? — Vance lançou a pergunta repentinamente.

— Realmente, Vance, não sei responder. — Scarlett, de súbito, inclinou-se para a frente, e suas linhas se tornaram tensas. — Mas vou-lhe dizer uma coisa: Meryt é incapaz de qualquer deslealdade fundamental para com seu marido. Mesmo que ela admitisse ter sido um erro seu casamento com o Dr. Bliss — que é muito mais velho do que ela e completamente absorvido em seu trabalho — ela manteria o seu negócio, como uma pessoa bem educada.

— Ah... é isso mesmo. — Vance concordou ligeiramente com a cabeça e escolheu um cigarro na cigarreira. — Isso me leva a uma questão mais delicada... Você acha que a Sra. Bliss tem, como devo dizer? qualquer outro interesse fora de seu marido? Isto é, será possível que além do interesse no trabalho do marido suas emoções mais íntimas estejam envolvidas em qualquer outra coisa?

Scarlett se pôs de pé e começou a falar incoerentemente.

— Oh, Vance, realmente... Acabe com isso!... Você não tem o direito de me fazer uma tal pergunta... Não sou bisbilhoteiro... Não se deve comentar tais assuntos... Isto não é correto... realmente, meu velho... Você me põe em uma posição embaraçosa... (A maneira de falar de Scarlett despertou minha simpatia.) — Os crimes acontecem também nos melhores círculos — retornou Vance sem se alterar. — Estamos às voltas com uma situação a mais fora do comum. Alguém transferiu Kyle deste mundo para o outro de um modo muito desagradável... Mas, como sua sensibilidade está tão tremendamente afetada, retiro a pergunta. — Vance sorriu para desarmar Scarlett. — Você mesmo não é inteiramente impermeável aos encantos da dama... não, Scarlett?

O homem se voltou e encarou Vance com ferocidade. Antes que respondesse, Vance se pôs de pé e o olhou fixamente nos olhos.

— Um homem foi assassinado — disse calmamente — e uma trama diabólica foi introduzida no crime. Uma outra vida humana está em jogo. Estou aqui para descobrir quem engendrou esse odioso esquema e salvar da cadeira elétrica uma pessoa inocente. Assim, não vou permitir que delicados tabus convencionais se atravessem em meu caminho. — A voz de Vance se abrandou um pouco. — Compreendo suas reticências. Em circunstâncias ordinárias seriam admiráveis. Neste momento, porém, são uma tolice.

Scarlett suportou frontalmente o olhar de Vance, mas após uns momentos tornou a sentar-se.

— Tem razão, meu velho — concordou, em voz baixa. — Direi tudo o que quiser saber.

Vance concordou com a cabeça indiferentemente, e ficou fumando por uns instantes.

— Creio que você já me disse tudo — falou finalmente. — Mas talvez o chamemos mais tarde... A hora do almoço já vai longe. Suponho que queira ir para casa.

Scarlett soltou um profundo suspiro de alívio e se pôs de pé.

— Muito obrigado — disse e sem qualquer outra palavra se retirou.

Heath seguiu-o e pude perceber que dava instruções a Snitkin para que deixasse Scarlett sair.

— Bem — disse Markham, dirigindo-se a Vance, quando o sargento voltou — como a informação de Scarlett lhe pôde ser útil? Não posso perceber que luz deslumbrante tenha lançado sobre o nosso problema.

— Meu Deus! — Vance sacudiu a cabeça com incrédula comiseração. — Scarlett nos deixou muito bem informados. Suas declarações foram infinitamente reveladoras. Temos, agora, uma base definitiva em que nos apoiar na caçada aos membros da casa.

— Estou satisfeito em que você esteja assim tão confiante. — Markham levantou-se e encarou Vance seriamente. — Você de fato não pode acreditar... ? — Interrompeu-se, como se não ousasse emitir seu pensamento.

.

 


XI

 

O coador de café


(Sexta-feira, 13 de julho — 14:45 horas)

 

 

Markham tornou a sentar-se. Estava por demais desanimado para se ressentir com a bem-humorada ironia de Vance. O assassinato de Kyle, cuja solução, inicialmente, parecia tão simples e clara, estava-se tornando mais e mais complicado. Forças ocultas, sutis e terríveis, estavam-se fazendo sentir. Já agora era claro para qualquer um que o crime, ao invés de ser um mero e brutal esfacelar de cabeça, era um fator sinistro em uma trama profunda e cheia de ramificações. Até mesmo Heath começava a se dar conta das significações ocultas dos indícios claros aos quais emprestara suas primeiras esperanças de uma rápida solução.

— Sim — admitiu ele com o charuto balançando para cima e para baixo nos lábios finos — aquele lápis não tem qualquer significado particular... Este caso — como o Sr. Vance diria — está ficando denso. Ninguém que tenha miolos vai estragar todo o seu trabalho semeando indícios que apontem para si mesmo, caso seja o culpado. — Franziu o cenho na direção de Markham.— E o ópio no café, Chefe?

Markham apertou os lábios.

— Era no que estava pensando. Talvez seja aconselhável procurar descobrir logo quem poderia ter adicionado a droga... Qual a sua opinião, Vance?

— Uma brilhante idéia. — Vance fumava pensativamente. — É da máxima importância saber quem poderia ter posto o pó soporífero no café do doutor, pois não há dúvida de que quem fez isso foi a mesma pessoa que enviou Kyle para sua longa peregrinação. De fato, a chave de toda a trama está na questão de quem teria tido a oportunidade de lidar com aquela xícara de café.

Markham sentou-se decididamente.

— Sargento, chame o mordomo. Traga-o pelo escritório, pois assim as pessoas que se encontram na sala de visitas não o verão.

Heath levantou-se alegremente e subiu as escadas em espiral de três em três degraus. Um minuto ou dois mais tarde reapareceu à porta do escritório, empurrando Brush sem-cerimoniosamente a sua frente.

O homem se encontrava visivelmente em estado de terror. O rosto estava pálido e tinha as mãos crispadas fortemente. Aproximou-se de nós inquieto, mas inclinou-se com instintiva correção e permaneceu ereto, como um empregado bem treinado aguardando as ordens.

— Sente-se e descontraia-se, Brush. — Vance se ocupava em acender mais um cigarro. — Não posso culpá-lo por se sentir excitado. É uma situação muito difícil. Se você procurar acalmar-se poderá ajudar-nos... Acalme-se!...

— Sim, senhor. — O homem sentou-se na borda de uma cadeira e pôs as mãos tensamente nos joelhos. ;— Muito bem, senhor. Mas estou muito aborrecido. Tenho trabalhado em casas de cavalheiro há mais de quinze anos e nunca, antes...

— Oh, está bem... Estou de acordo com suas palavras. — Vance sorriu agradavelmente. — No entanto as emergências aparecem. Esta talvez seja sua grande oportunidade para ampliar o seu campo de atividades. O fato é, Brush, que você nos poderá conduzir à verdade relativa a esse infortunado caso.

— Espero que sim, senhor. — O mordomo, perceptivelmente, havia-se acalmado com a atitude natural de Vance.

Fale-nos, então, a respeito dos arranjos nesta casa com relação ao café da manhã. — Vance, com o assentimento tácito de Markham, assumira o papel de interrogador. — Onde toma a família o seu café matinal?

— Na saleta de refeições, lá embaixo. — Brush estava conseguindo controlar-se admiravelmente. — Há uma saleta na frente da casa, no porão, que a Sra. Bliss decorou em estilo egípcio. Somente o almoço propriamente dito e o jantar são servidos na sala de jantar, lá em cima..

— Ah! E a família toma junta o café da manhã?

— Geralmente sim, senhor. Chamo todos às oito horas e às oito e meia o café é servido.

— E quem, exatamente, aparece a essa despropositada hora?

— O doutor e a Sra. Bliss e o Sr. Salveter... e o Sr. Hani.

As sobrancelhas de Vance se ergueram ligeiramente.

— Hani faz as refeições com a família?

— Oh, não, senhor. — Brush parecia perplexo. — Não compreendo exatamente qual a situação do Sr. Hani — se entende o que quero dizer, senhor. É tratado pelo Dr. Bliss como um empregado, mas, mesmo assim, chama a senhora pelo primeiro nome... Ele faz suas refeições em uma alcova próxima à cozinha — não comeria comigo e com Dingle. — Notava-se em sua voz um certo ressentimento.

Vance procurou consolá-lo.

— Você deve compreender que Hani é um velho servidor da família da Sra. Bliss — além de ser funcionário do governo do Egito...

— Oh, o arranjo satisfaz perfeitamente a Dingle e a mim, senhor — foi a resposta evasiva.

Vance não insistiu no assunto, mas perguntou: — O Sr. Scarlett costuma tomar o café com os Blisses?

— Com bastante freqüência, senhor — especialmente quando há serviço a ser realizado no museu.

— Ele esteve aqui hoje pela manhã?

— Não, senhor.

— Então, se Hani estava em seu quarto toda a manhã e o Dr. Bliss no escritório, a Sra. Bliss e o Sr. Salveter devem ter tomado o café juntos, não?

— Correto, senhor. A Sra. Bliss desceu um pouco antes das oito e meia e o Sr. Salveter logo em seguida. Q doutor me tinha dito às oito horas, quando passou para o escritório, que tinha o que fazer e que os outros não deveriam esperar por ele.

— Quem lhe falou sobre a indisposição de Hani, Brush?

— O Sr. Salveter, senhor. Disse-me que Hani lhe pedira para me informar que não iria descer para o café... Seus quartos ficam um na frente do outro, no terceiro andar, e já observei que Hani deixa sempre a porta de seu quarto aberta.

Vance acenou com a cabeça aprovativamente.

— Você está sendo muito claro, Brush... Então, se compreendi bem, às oito e meia da manhã de hoje a situação dos membros da casa era a seguinte: a Sra. Bliss e o Sr. Salveter encontravam-se na sala de refeições de baixo; Hani estava em seu quarto e o Dr. Bliss no escritório. Presumivelmente o Sr. Scarlett estava em casa. E você e Dingle?

— Dingle estava na cozinha e eu entre a cozinha e a sala de refeições, servindo.

— E, de seu conhecimento, não havia mais ninguém na casa?

O mordomo pareceu surpreender-se ligeiramente.

— Oh, não, senhor. Não poderia haver mais ninguém na casa.

— Mas se você estava lá embaixo — insistiu Vance — como pode afirmar que ninguém chegou pela porta da frente?

— Ela estava fechada.

— Tem certeza?

— Absoluta, senhor. Uma de minhas obrigações é verificar todas as noites, antes de ir dormir, se a porta está trancada; e ninguém tocou a campainha ou usou aquela porta hoje de manhã, antes das nove horas.

— Muito bem. — Vance ficou fumando meditativamente, por algum tempo. Em seguida recostou-se preguiçosamente na cadeira e fechou os olhos. — Casualmente, Brush, onde e como foi preparado o café esta manhã?

— O café? — O homem começou a mostrar-se surpreendido, mas logo se recompôs. — O café é uma das manias do doutor... se me entende, senhor. Ele o encomenda de uma firma egípcia na Nona Avenida. É negro e úmido e um pouco queimado durante a torração. Tem o sabor de café francês, se é que o senhor conhece o gosto do café francês.

— Infelizmente, sim. — Vance suspirou e fez uma careta. — Uma bebida execrável. Não é de admirar-se que os franceses o encham de leite... Você também toma esse café, Brush?

O mordomo pareceu um pouco desconcertado.

— Não, senhor. Não que eu me incomode com o seu gosto, mas a Srta. Bliss, bondosamente, deu permissão a mim e a Dingle de que preparássemos nosso próprio café à moda antiga.

— Oh! — Vance semicerrou os olhos. — Então o café do Dr. Bliss não é preparado à moda antiga. f

— Bem, senhor, talvez eu tenha usado a palavra errada, mas, certamente, não é preparado da forma costumeira.

— Fale-nos a esse respeito. — Vance tornara a se descontrair. — Fala-se tanto neste mundo sobre a forma de preparar café corretamente. Há pessoas que positivamente se fanatizam sobre o assunto. Não me surpreenderia se um dia estourasse uma guerra civil entre os que são contra e os que são a favor de ferver-se a água ou, talvez, entre as chaleiras e as cafeteiras. Bobagens... como se o café tivesse alguma importância. O chá, por outro lado... Mas prossiga e nos apresente as idéias do doutor sobre o assunto.

Markham começara a marcar com os pés um irritável ritmo e Heath abanava a cabeça com laboriosa impaciência. Vance, porém, com sua irrelevante loquacidade, havia obtido exatamente o efeito que desejava. Tinha conseguido acalmar os nervos de Brush e afastar-lhe o cérebro do objetivo direto do interrogatório.

— Bem, senhor, — explicou o homem — o café é preparado em uma espécie de cafeteira semelhante a um samovar grande...

— Onde fica localizada essa bizarra máquina?

— Está sempre na extremidade da mesa do café... Tem por baixo uma lamparina de álcool para conservar o café quente depois de ter sido... ter sido...

— Coado, é provavelmente a palavra.

— Coado, senhor. A cafeteira é dividida em duas partes — uma se encaixa na outra como uma cafeteira francesa.

Vance saiu de sua aparente letargia e apagou o cigarro.

— Então a sala de refeições esteve vazia uns cinco minutos entre a hora em que a Sra. Bliss e o Sr. Salveter subiram e a hora em que você veio passar o café do Dr. Bliss?

— Cerca de cinco minutos, sim, senhor.

— Bem, procure agora focar sua mente naqueles cinco minutos, Brush. Você ouviu algum ruído vindo da sala de refeições durante esse tempo?

O mordomo encarou Vance criticamente e fez uma tentativa de concentração.

— Não estava prestando muita atenção, senhor — respondeu por fim. — Estive a maior parte do tempo ao telefone. Mas não me lembro de ter ouvido ruído nenhum. Na verdade ninguém poderia ter estado na sala de refeições durante esses ·cinco minutos.

— A Sra. Bliss ou o Sr. Salveter poderiam ter voltado por algum motivo — sugeriu Vance.

— É possível, senhor — admitiu Brush em dúvida.

— Além disso, não poderia Hani ter descido nesse ínterim?

— Mas ele não estava bem, senhor. Levei-lhe o café...

— Você já nos disse isso... Escute aqui, Brush, Hani ·estava na cama, quando você foi levar-lhe esse abominável café?

— Estava deitado, no sofá.

— Vestido?

— Estava com aquele roupão listrado com que geralmente anda pela casa.

Vance permaneceu em silêncio durante alguns momentos. Em seguida voltou-se para Markham.

— Não é o que alguém denominaria de uma situação cristalina — comentou. — O samovar contendo o café parece ter estado em um estado quase indecente de exposição esta manhã. Observe que a Sra. Bliss e Salveter estiveram sozinhos com esse samovar durante a primeira refeição e que qualquer um deles poderia ter ficado um pouco para trás no terminar o café, ou mesmo retornado. Hani, também, poderia ter descido para a saleta de refeições tão logo a Sra. Bliss e Salveter subiram. De fato, qualquer pessoa da casa teve oportunidade de mexer no samovar antes que Brush levasse o café do Dr. Bliss.

— Acho que sim. — Markham pareceu refletir profundamente sobre o assunto por um momento. Em seguida dirigiu-se ao mordomo. — Você notou alguma coisa fora do comum com relação ao café que coou para o Dr. Bliss?

— Não, senhor. — Brush tentou, sem êxito, esconder sua surpresa ante a pergunta. — Tudo parecia perfeitamente bem, senhor.

— A cor e a consistência normais?

— Não percebi nada de errado no café, senhor. — A apreensão do homem crescia e, mais uma vez, uma palidez doentia se espalhou em suas emaciadas feições. — Talvez tenha ficado um pouco forte — acrescentou nervosamente. — Mas o Dr. Bliss prefere o café bem forte.

Vance levantou-se e bocejou.

— Gostaria de dar uma olhadela nessa saleta de refeições e em seu estranho coador de café. Um pouco de observação talvez nos ajude.

Markham acedeu prontamente.

— Seria melhor que fôssemos através do escritório do doutor — sugeriu Vance — a fim de não despertarmos a curiosidade dos ocupantes da sala de visitas...

Brush foi na frente silenciosamente. Parecia um fantasma e enquanto subia as escadas em espiral, à nossa frente, notei que se apoiava fortemente ao corrimão de ferro. Por vezes dava a impressão de estar inteiramente dissociado dos trágicos eventos da parte da manhã; de outras, porém, parecia-me que algum torturante segredo ou suspeita solapava seu equilíbrio.

A saleta de refeições se estendia, com exceção de uma pequena entrada, ao longo de toda a frente da casa; não tinha, porém, mais de 1,80m de profundidade. As janelas da frente, que davam para a passagem da rua, eram guarnecidas de vidro opaco e cobertas por pesadas cortinas. A dependência se achava ornamentada de forma exótica e decorada com desenhos egípcios. A mesa do café tinha, pelo menos, uns dois metros de comprimento, apesar de muito estreita, incrustada e pintada no decadente estilo rococó do Novo Império — não diferente do mobiliário barroco encontrado na tumba de Tut-ankh-Amun.

Na extremidade da mesa via-se o samavor para café. Era de cobre polido, com cerca de 60 cm de alto, apoiado em três pés abertos. Sob ele uma lamparina de álcool.

Vance, após uma ligeira olhadela, passou a não dar qualquer atenção à peça, para minha perplexidade. Vance parecia mais interessado na disposição dos quartos de baixo. Enfiou a cabeça na despensa do mordomo, entre a cozinha e a saleta de refeições, e permaneceu no portal durante alguns momentos examinando atentamente a estreita passagem que levava das escadas de trás até à frente da casa.

— Uma questão simples para qualquer pessoa chegar até à saleta de refeições sem ser visto — observou ele. — Vejo que a porta da cozinha está situada atrás da escada.

— Sim, senhor... é isso mesmo. — A anuência de Brush foi quase ansiosa.

Vance pareceu não notar essa atitude.

— Você disse que levou o café para o Dr. Bliss cinco minutos depois que a Sra. Bliss e o Sr. Salveter tinham subido... O que fez depois disso, Brush?

— Fui arrumar a sala de visitas, senhor.

— Ah, sim. Você já nos disse isso. — Vance estava passando o dedo nas incrustações de uma das cadeiras. — Acredito que você tenha dito que a Sra. Bliss saiu de casa pouco depois das nove horas. Você a viu sair?

— Oh, sim, senhor. Ela parou na porta da sala de visitas quando ia saindo e disse que estava indo às compras, o que eu deveria informar ao Dr. Bliss, se ele perguntasse.

— Tem certeza de que ela saiu?

Os olhos de Brush se arregalaram; a pergunta parecia assombrá-lo.

— Plena certeza, senhor — replicou ele com ênfase. — Abri a porta da frente para ela... A Sra. Bliss se encaminhou na direção da Quarta Avenida.

— E o Sr. Salveter?

— Desceu quinze ou vinte minutos mais tarde e saiu.

— Disse alguma coisa para você?

— Somente: "Estarei de volta para o almoço". Vance suspirou profundamente e consultou o relógio.

— Almoço!... Meu Deus! Estou positivamente faminto. — Dirigiu a Markham um olhar compungido. — São quase três horas... e ainda não comi nada hoje, a não ser chá com bolinhos às dez horas... Será que alguém deve morrer de fome somente porque um crime idiota foi cometido?

— Posso servi-los, senhores... — começou Brush, mas foi interrompido por Vance.

— Idéia excelente. Chá com torradas nos manteriam de pé. Vamos, porém, falar primeiro com Dingle.

Brush inclinou-se e foi para a cozinha. Pouco depois reapareceu com uma mulher corpulenta e plácida, de seus cinqüenta anos.

— Esta é Dingle, senhor — anunciou ele. — Tomei a liberdade de informá-la a respeito da morte do Sr. Kyle.

Dingle ficou-nos olhando estolidamente e esperou, imperturbável, com as mãos nos generosos quadris.

— Boa tarde, Dingle. — Vance sentou-se na borda da mesa. — Como Brush já lhe disse ocorreu um sério acidente aqui nesta casa...

— Um acidente, então? — A mulher sacudiu a cabeça prudentemente. — Talvez. De qualquer modo o senhor não me poderia derrubar com uma pena. O que me surpreende é que não tenha acontecido algo há mais tempo — com este jovem Sr. Salveter morando na casa, o Sr. Scarlett sempre por aí e o Dr. Bliss permanentemente às voltas com suas múmias, dia e noite. Mas, certamente, nunca esperei que alguma coisa acontecesse ao Sr. Kyle — ele era um cavalheiro muito bom e muito liberal.

— A quem você esperava que acontecesse alguma coisa,. Dingle?

A mulher compôs o rosto determinadamente.

— Não estou dizendo... não tenho nada com isso. Mas as coisas por aqui não estavam de acordo com a natureza... — Tornou a abanar a cabeça astutamente. — Vejamos, tenho uma bonita sobrinha, jovem, que deseja casar-se com um homem de cinqüenta anos e digo para ela...

— Tenho certeza de que você lhe deu um conselho excelente, Dingle, — interrompeu Vance — mas preferimos ouvir sua opinião sobre o pessoal da casa de Bliss.

— O senhor já os ouviu. — Os maxilares da mulher se cerraram com um clique e tornou-se óbvio que nem ameaças nem lisonjas poderiam obter mais coisa alguma dela sobre o assunto.

— Oh, está tudo muito bem. — Vance procurou tratar sua recusa como coisa sem importância. — Mas há um outro assunto sobre o qual gostaríamos de saber algo. Você não ficará absolutamente comprometida se nos disser. Você ouviu alguém aqui nesta saleta, depois que a Sra. Bliss e o Sr. Salveter subiram esta manhã — isto é, durante o tempo em que você esteve preparando as torradas para o café do doutor?

— Então é isso? — Dingle olhou de soslaio e permaneceu em silêncio durante alguns momentos. — Talvez sim, talvez não — disse por fim. — Não estava prestando a mínima atenção. Quem poderia ter sido?

— Não faço a menor idéia. — Vance sorriu convidativamente. — É o que estamos procurando apurar.

— É isso agora? — Os olhos da mulher se voltaram para a cafeteira. — Já que o senhor está-me perguntando — replicou ela, com uma malevolência que, na ocasião, não pude compreender — direi que creio ter ouvido alguém passando uma xícara de café.

— Quem supõe que fosse?

— Pensei que fosse Brush. Naquele exato momento, porém, ele se aproximou vindo da entrada de trás e me perguntou se as torradas estavam ficando prontas. Assim fiquei sabendo que não era Brush.

— E o que pensou, então?

— Não pensei coisa alguma.

Vance concordou abruptamente e se voltou para Brush.

— Talvez pudéssemos agora tomar o chá com torradas.

— Certamente, senhor. — Brush encaminhou-se para a cozinha fazendo sinal para que a mulher fosse à sua frente; Markham os fez parar.

— Traga-me um recipiente qualquer, Brush — ordenou ele. — Quero levar o resto do café existente na cafeteira.

— Já não tem mais café na cafeteira — informou Dingle, agressivamente. — Já limpei e poli aquela porcaria às dez horas da manhã de hoje.

— Graças a Deus que assim seja — suspirou Vance. — Sabe, Markham, se você tivesse um pouco daquele café para analisar, você estaria mais longe do que nunca da verdade.

Com esta enigmática observação Vance acendeu um cigarro lentamente e começou a examinar uma das figuras desenhadas na parede.


XII

 

A lata de ópio

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 15:15 horas)

 

 

Poucos minutos mais tarde Brush nos serviu chá com torradas.

— É chá oolong, senhor, de Taiwan — explicou Brush orgulhosamente a Vance. — Não passei manteiga nas torradas.

— Você tem uma intuição rara, Brush — falou Vance elogiosamente. — E a Sra. Bliss e o Sr. Salveter? Eles ainda não almoçaram.

— Levei-lhes chá há uns momentos. Eles não queriam mais nada.

— E o Dr. Bliss?

— Ele não tocou a campainha me chamando, senhor. Além disso, muitas vezes o doutor nem almoça.

Dez minutos mais tarde Vance chamou Brush.

— Suponhamos que você chame Hani. O mordomo piscou os olhos.

— Sim, senhor. — Inclinou-se respeitosamente e saiu.

— Há um ou dois pontos — explicou Vance a Markham — que devemos esclarecer imediatamente e Hani talvez possa fazê-lo... A morte em si do Sr. Kyle é o que há de menos diabólico nesta trama. Estou plenamente confiante no que ficaremos sabendo através de Salveter e da Sra. Bliss, razão pela qual, como vêem, desejo acumular antecipadamente o máximo de munição possível.

— Seja como for — interveio Heath — um sujeito foi assassinado e se eu puder pôr a mão no pássaro que fez isso não passarei noites sem dormir preocupado com tramas.

— O senhor é tão tremendamente primitivo, sargento. — Vance tomava seu chá sombriamente. — Encontrar o criminoso é simples. Mas, ainda que o senhor o tivesse algemado isso não lhe traria nenhum bem. Dentro de vinte e quatro horas o senhor teria que lhe apresentar desculpas.

— Ao diabo com desculpas! — explodiu Heath. — Entreguem-me o pássaro que assassinou Kyle e eu lhes mostrarei algumas coisas íntimas que não vão para os jornais.

— Se o senhor prendesse o criminoso neste momento — tornou Vance calmamente — iriam ambos para os jornais... e todos os artigos seriam contra o senhor. Estou tentando poupá-lo à própria impetuosidade.

Heath deu de ombros, mas Markham encarou Vance com seriedade.

— Estou começando a concordar com seus pontos de vista — opinou Markham. — Os elementos deste caso são infernalmente confusos.

Nesse momento passos suaves e ritmados soaram no saguão e Hani apareceu à porta. Estava calmo e alheado como de costume e o seu rosto imóvel não registrou a mínima surpresa por nos encontrar de posse da saleta de refeições.

— Venha até aqui e sente-se. — O convite de Vance era quase exageradamente agradável.

O egípcio avançou lentamente até onde estávamos, mas não se sentou.

— Prefiro ficar de pé, effendi.

— Claro que é mais confortador permanecer de pé em momentos, de tensão — comentou Vance.

Hani inclinou a cabeça levemente, mas não respondeu. Sua atitude, tipicamente oriental, era formidável.

— O Sr. Scarlett nos disse — começou Vance, sem levantar os olhos — que a Sra. Bliss se encontra bem aquinhoada no testamento do Sr. Kyle. Esta informação, de acordo com o Sr. Scarlett, partiu de você.

— Não é natural — perguntou Hani com voz calma — que o Sr. Kyle aquinhoasse sua afilhada?

— O Sr. Kyle lhe disse que o havia feito?

— Sim. Ele sempre confiou em mim, pois sabia que eu amava Meryt-Amen como um pai.

— Quando o Sr. Kyle lhe confidenciou este assunto?

— Há anos atrás, no Egito.

— Quem mais, Hani, sabia dessa provisão?

— Creio que todo o mundo sabia. O Sr. Kyle me falou na presença do Dr. Bliss e, naturalmente, eu disse a Meryt-Amen.

— O Sr. Salveter sabia disso?

— Eu mesmo lhe disse. — Havia uma nota curiosa no tom de voz de Hani, que na ocasião não pude interpretar.

— E você falou também ao Sr. Scarlett. — Vance ergueu os olhos e estudou o egípcio impessoalmente. — Você não é o que poderíamos chamar de um bom repositório para segredos.

— Não considerei o assunto como segredo — replicou Hani.

— Obviamente não era. — Vance ergueu-se e se encaminhou vagarosamente até o samovar.

— Será que você sabe se o Sr. Salveter foi também objeto dos benefícios do Sr. Kyle?

— Não poderia dizê-lo com certeza. — Os olhos de Hani permaneciam voltados sonhadoramente para a parede oposta. — No entanto, de certas observações que ouvi do Sr. Kyle, concluí que o Sr. Salveter também se encontrava bem aquinhoado no testamento.

— Você gosta do Sr. Salveter, não, Hani? — Vance levantou a tampa do samovar e espiou para o seu interior.

— Ele é, tenho razões para supor, um jovem admirável.

— Oh, muito. — Vance sorriu levemente e tornou a colocar a tampa no samovar. — E está muito mais perto da idade da Sra. Bliss do que o doutor.

Hani pestanejou e pareceu-me que ia dizer alguma coisa. Foi, no entanto, uma reação momentânea. Lentamente cruzou os braços e permaneceu como uma esfinge, silencioso e ' alheado.

— A Sra. Bliss e o Sr. Salveter serão, ambos, ricos, agora que o Sr. Kyle está morto. — Vance falou com casualidade, sem olhar na direção do egípcio. Após uma pausa, perguntou: — Mas, e as escavações do Dr. Bliss?

— Provavelmente terminaram, effendi. — A despeito do tom monótono de Hani havia em suas palavras uma nota discernível de satisfação. — Por que devem os sagrados locais de repouso de nossos ancestrais serem violados?

— Pode estar certo de que não sei — respondeu Vance com brandura. — A arte que é desenterrada raramente é digna de consideração. A única arte verdadeira da antigüidade é a arte chinesa e toda a beleza estética moderna emana dos gregos... Mas esta não é a ocasião apropriada para discutir o instinto criador... Voltando às pesquisas do Dr. Bliss, não será possível que sua esposa continue a financiá-lo?

Uma nuvem negra baixou sobre o rosto de Hani.

— É possível. Meryt-Amen é uma esposa dedicada... E ninguém poderá adivinhar o que fará uma mulher.

— Já me disseram isso... Os não versados em psicologia feminina. — A atitude de Vance era irônica e quase petulante. — Além disso, mesmo que a Sra. Bliss decline de continuar financiando o trabalho do marido, o Sr. Salveter — com o seu fanático entusiasmo em egiptologia — poderá ser persuadido a agir como o anjo financeiro do doutor.

— Não, se isso ofendesse Meryt-Amen... — começou Hani, mas logo parou abruptamente.

Vance pareceu não notar a interrupção súbita da resposta de Hani.

— Eu suponho — observou Vance — que você procuraria influenciar a Sra. Bliss para que não auxiliasse o marido a completar as escavações.

— Oh, não, effendi. — Hani sacudiu a cabeça. — Eu não ousaria dar-lhe conselhos. Ela sabe o que faz... e sua lealdade ao Dr. Bliss ditaria sua decisão, qualquer que esta fosse.

— Ah!... Diga-me uma coisa, Hani. Em sua opinião, quem é o maior beneficiado com a morte do Sr. Kyle?

— O ka de Intef.'

 

 

(1) Sir E. A. Wallis Budge define ka (ou, mais corretamente, ku) como "o espírito do homem" e, ainda, como "o espírito de uma divindade". Breated, explicando a mesma palavra, diz que representava "a força vital" que supostamente anima o corpo humano e, também, que o acompanha ao mundo seguinte. G. Elliott se refere a ka como sendo "um dos espíritos gêmeos da morte". (O outro espírito, ha, veio a ser endeusado em identificação com Osíris). Ka era o espírito de um mortal, que permanecia na tumba após a morte e, se a tumba fosse violada ou destruída, não disporia mais de um local para repouso. A própria palavra em inglês — soul — não é uma tradução precisa de ka, mas talvez esteja tão perto quanto possível em inglês. A palavra alemã doppel gänger, no entanto, é uma tradução quase exata.

 

 

 

Vance ergueu os olhos e deu um sorriso de desânimo.

— Ah, sim... muito esclarecedor — murmurou.

— Por essa razão — continuou Hani com uma expressão visionária em seu rosto — o espírito de Sakhmet veio ao museu esta manhã e abateu o violador...

— E — interferiu Vance — pôs o relatório financeiro na mão do violador, colocou o alfinete de gravata do Dr. Bliss ao lado do corpo e forjou pegadas de sangue levando até o escritório... Sua dama da vingança não é muito equilibrada — na verdade é uma criatura de maus instintos, procurando culpar uma outra pessoa por sua pequena incursão no mundo do crime. — Vance estudou atentamente o egípcio através de olhos apertados. Em seguida inclinou-se para a frente sobre a extremidade da mesa. Quando tornou a falar sua voz mostrava-se severa e retumbante. — Você está procurando acobertar alguém, Hani... Quem é?

O egípcio tomou uma respiração profunda e as pupilas de seus olhos se dilataram.

— Já lhe disse tudo o que sei, effendi. — Sua voz era mal audível. — Acredito que Sakhmet...

— Besteira! — Vance cortou-lhe a frase. Em seguida deu de ombros e sorriu. — Jawâb ul ahmaq sakut.2

 

 

(2) Provérbio árabe significando: "O silêncio é a resposta apropriada a um tolo."

 

 

Um brilho astuto aflorou aos olhos de Hani e creio ter percebido um sorriso de mofa em sua boca.

Vance, no entanto, não se achava absolutamente desconcertado. De algum modo percebi que, a despeito da evasiva do egípcio, ele conseguira saber o que queria. Após uma breve pausa Vance tapou o samovar.

— Deixando a mitologia de lado — disse ele afavelmente — a Sra. Bliss, pelo que sei, mandou Brush levar-lhe, esta manhã, uma xícara de café.

Hani limitou-se a concordar com a cabeça.

— Por falar nisso, qual a natureza de sua doença?

— Desde que vim para este país — replicou o homem — venho sofrendo de má digestão. Esta manhã, quando acordei...

— Lamento muito — murmurou Vance com simpatia.

— E você achava que uma xícara de café era suficiente para o que precisava?

Hani, obviamente, ressentiu-se com a pergunta, mas em sua resposta não houve qualquer indício do que estava 'sentindo.

— Sim, effendi. Eu estava sem fome... Vance pareceu levemente surpreendido.

— Realmente! Não sei por que eu estava com a impressão de que você havia descido para coar uma segunda xícara de café nessa cafeteira.

Mais uma vez uma expressão de cautela desceu sobre o rosto de Hani, e ele hesitou perceptivelmente antes de responder.

— Uma segunda xícara? — repetiu. — Aqui na saleta de refeições?... Não me dei conta disso.

— Isso não tem qualquer importância — retrucou Vance. — Alguém esteve sozinho com a cafeteira hoje pela manhã. E quem quer que tenha sido — isto é, quem quer possa ter estado sozinho com ela — estava envolvido na trama da morte do Sr. Kyle.

— Como poderia ter sido isso, effendi? — Hani, pela primeira vez, parecia vitalmente preocupado.

Vance não lhe respondeu à pergunta. Estava debruçado > sobre a mesa, olhando criticamente as incrustações.

— Dingle falou que ela acha que ouviu alguém por aqui depois que a Sra. Bliss e o Sr. Salveter subiram, após o café, e me pareceu que poderia ter sido você... — Vance olhou para cima de repente. — É possível, é claro, que a Sra. Bliss tenha voltado para tomar mais uma xícara de café... ou mesmo o Sr. Salveter...

— Fui eu que estive aqui! — Hani falou lentamente e com impressionante ênfase. — Desci quase imediatamente depois que Meryt-Amen voltou para o seu quarto. Coei mais uma xícara de café e voltei lá para cima em seguida. Foi a mim que Dingle ouviu... Menti ao senhor um momento atrás porque eu já lhe tinha dito, no museu, que eu tinha ficado em meu quarto toda a manhã — minha ida à saleta de refeições tinha desaparecido de minha cabeça. Não julguei que o assunto tivesse qualquer importância.

— Bem, bem! Isso explica tudo. — Vance sorriu meditativamente. — Agora, já que você se recordou de sua peregrinação em busca de café, poderia informar-nos quem, nesta casa, possui ópio em pó?

Eu estava observando Hani e esperava que ele demonstrasse algum sinal de medo à pergunta de Vance. No entanto, apenas uma expressão de surpresa pude observar em seu impassível rosto. Passou-se seguramente meio minuto antes que ele respondesse.

— Finalmente compreendo por que o senhor me inquiriu com relação ao café — disse ele. — O senhor, porém, está disfarçando inteligentemente.

— Deixe isso para lá. — Vance abriu a boca em um bocejo.

— Effendi Bliss não foi posto a dormir esta manhã — continuou o egípcio e, a despeito do tom oracular de sua voz, havia uma subcorrente de ódio por baixo de suas palavras.

— Esta agora!... E quem disse que ele havia sido posto a dormir, Hani?

— Seu interesse pelo café... sua pergunta com relação ao ópio... — Sua voz desapareceu.

— Bem?

— Nada mais tenho a dizer.

— Ópio — informou Vance — foi encontrado no fundo da xícara do doutor.

Hani pareceu genuinamente surpreendido com esta notícia.

— Tem certeza, effendi? Não posso compreender.

— Por que você deveria compreender? — Vance aproximou-se do homem e permaneceu a encará-lo, inquirindo-o com o olhar fixo. Quanto sabe você a respeito deste crime, Hani?

O véu do alheamento tornou a cair sobre o egípcio.

— Não sei coisa alguma — respondeu de mau humor. Vance fez um gesto de impaciente resignação.

— Você, pelo menos, sabe quem possuía ópio em pó por aqui.

— Sim, isso eu sei. Ópio em pó fazia parte do equipamento médico em nossas excursões de exploração no Egito. Effendi Bliss se encarregava disso.

Vance esperou.

— Há um armário grande lá em cima no saguão — continuou Hani. — Todos os suprimentos médicos são conservados nesse armário.

— A porta é mantida fechada?

— Não. Creio que não.

— Você poderia ter a bondade de ir até lá em cima para ver se o ópio ainda se encontra no armário?

Hani inclinou-se e partiu sem uma palavra.

— Olhe aqui, Vance. — Markham levantara-se e caminhava para cá e para lá. — O que lucraremos em saber se o resto do ópio se encontra ainda no armário?... Além disso, não confio, em Hani.

— Hani tem-nos revelado muita coisa — replicou Vance. — Deixe-me lidar com ele a minha moda durante algum tempo. Hani tem idéias que são muito interessantes... Quanto ao ópio, tenho a distinta impressão de que a lata contendo o pó de cor marrom, da canastra médica, deve ter desaparecido.

— Mas, por que — interrompeu Markham — deveria a pessoa que usou parte do ópio remover todo ele de dentro do armário? Essa pessoa não deixaria a lata em cima de sua mesa de cabeceira com a finalidade de nos levar diretamente até ela.

— Não exatamente. — O tom de voz de Vance era grave. — Mas essa pessoa poderia estar tentando lançar a suspeita sobre outra... Isso, porém, é mera teoria. De qualquer modo, ficarei terrivelmente desapontado se Hani encontrar a lata no armário.

Heath estava fuzilante.

— Parece-me, senhor, — reclamou ele — que algum de nós deveria procurar aquele ópio. Não se pode acreditar em coisa alguma que Swami diz.

— Ah, mas o senhor pode confiar em suas reações, sargento — respondeu Vance. — Além disso eu tinha um objetivo definido ao mandar Hani lá em cima sozinho.

Novamente ouviu-se os sons dos passos de Hani no saguão do lado de fora. Vance encaminhou-se para a janela. Sob as pálpebras cerradas observava a porta ansiosamente.

O egípcio entrou na sala com um ar de resignação, como um mártir. Em uma das mãos trazia uma lata pequena e circular ostentando um rótulo branco de papel. Colocou a lata solenemente sobre a mesa e levantou para Vance olhos pesados.

— Encontrei o ópio, effendi.

— Onde? — Vance pronunciou a palavra suavemente. Hani hesitou e baixou os olhos.

— Não estava no armário — informou. — O lugar da prateleira onde é geralmente guardado estava vazio... Então eu me lembrei...

— Muito conveniente! — Havia escárnio na voz de Vance. — Você se lembrou de que você mesmo havia tomado o ópio há algum tempo, não?... Não conseguia dormir ou qualquer coisa assim.

— O effendi compreende muitas coisas. — A voz de Hani era igual e inexpressiva. — Umas semanas atrás estava deitado sem conseguir dormir — não vinha dormindo bem havia muitas noites — quando fui até ao armário e levei o ópio para o meu quarto. Coloquei a lata na gaveta do meu próprio armário...

— E esqueceu de recolocá-lo no lugar — concluiu Vance. — Espero que tenha conseguido curar sua insônia. — Sorriu ironicamente. — Você é um revoltante mentiroso, Hani. Mas não o culpo absolutamente por isso...

— Disse-lhe a verdade.

— Si non è vero, è molto bene trovato. — Vance sentou-se franzindo o cenho.

— Não falo italiano...

— Uma citação de Bruno. — Vance inspecionou o egípcio especulativamente. — Traduzindo em voz corrente significa que, conquanto você não tivesse falado a verdade, inventou muito bem sua mentira.

— Obrigado, effendi.

Vance deu um suspiro e abanou a cabeça, simulando cansaço. Em seguida disse: — Você não demorou muito para ter feito uma busca extensa pelo ópio. Deve tê-lo encontrado, provavelmente, no primeiro lugar que olhou... você tinha uma idéia bastante definida sobre onde o encontraria...

— Como já disse...

— Acabe com isso! Não seja tão insistente. Você está-se tornando maçante... — Vance levantou-se ameaçadora-mente e se encaminhou na direção do egípcio. Tinha os olhos frios e o corpo tenso. — Onde encontrou você a lata de ópio?

Hani afastou-se e seus braços caíram ao longo do corpo.

— Onde encontrou o ópio? — repetiu Vance a pergunta.

— Já expliquei, effendi. — Apesar da obstinação da atitude de Hani o tom de sua voz não era convincente.

— Sim! Você já explicou... mas não falou a verdade. O ópio não estava em seu quarto — ainda que você tivesse uma razão para nos fazer crer que assim fosse... Uma razão! Qual é ela?.... Talvez eu possa adivinhar qual seja. Você mentiu porque encontrou o ópio...

— Effendi! Não continue... O senhor está sendo enganado...

— Não estou sendo enganado por você, Hani. (Raramente eu vira Vance tão sincero.) Você, asno idiota! Será que não compreende que eu sabia onde você encontraria o ópio? Você acredita que eu o teria mandado procurá-lo se não tivesse a mais absoluta certeza de onde o ópio se encontrava? E você me informou... em sua sinuosa maneira egípcia você me informou lucidamente. — Vance descontraiu-se e sorriu. — Entretanto, minha verdadeira razão para mandar você procurar o pó soporífero foi a de me certificar até que ponto você estava envolvido na trama.

— E conseguiu verificar, effendi? — Havia horror e resignação na pergunta de Hani.

— Sim... Oh, sim. — Vance olhava para o outro casualmente. — Você não é absolutamente sutil, Hani. Você está apenas envolvido — você tem características comuns com a avestruz, de quem erroneamente se diz que enterra a cabeça na areia quando se vê em perigo. Você meramente enterrou a cabeça em uma lata de ópio.

— Effendi Vance é por demais erudito para minha compreensão inferior.

— Você está extraordinariamente cansativo, Hani. — Vance virou a cabeça e caminhou para a outra extremidade da sala. — Vá embora, por favor. Vá embora.

Nessa ocasião algo perturbou a paz do saguão, lá fora. Podíamos ouvir vozes zangadas no fim do corredor. As vozes tornaram-se mais altas e não tardou a que Snitkin aparecesse à porta da saleta de refeições mantendo o Dr. Bliss firmemente pelo braço. O doutor, completamente vestido e de chapéu na cabeça, protestava inutilmente. Estava pálido e o olhar tinha uma expressão de caça assustada.

— O que significa isso? — indagou sem que estivesse falando com ninguém em particular. — Quero ir lá fora tomar um pouco de ar e esse sujeito me arrastou cá para baixo...

Snitkin olhava na direção de Markham.

— O sargento Heath me disse que não deixasse ninguém sair de casa e este cara estava tentando cair fora. Cheio da gaita, também... O que devo fazer com ele?

— Não vejo nenhuma razão pela qual o doutor não tome um pouco de ar — disse Vance, dirigindo-se a Markham. — Não teremos nenhuma conferência com ele a não ser mais tarde.

— Para mim está bem — concordou Heath. — Há pessoas demais dentro desta casa.

Markham acenou com a cabeça para Snitkin.

— Pode deixar o doutor ir dar uma volta, patrulheiro. —Voltou o olhar na direção de Bliss. — Por favor, volte, senhor, dentro de uma meia hora. Queremos fazer-lhe perguntas.

— Estarei de volta antes disso — somente quero ir dar uma volta no parque. — Bliss parecia nervoso e preocupado. — Sinto-me estranhamente pesado e sufocado. Meus ouvidos estão zunindo assustadoramente.

— E, segundo creio — acrescentou Vance — o senhor está com uma sede fora do comum.

O doutor olhou-o com alguma surpresa.

— Eu já consumi cerca de quatro litros de água desde que fui para o meu quarto. Espero que não esteja às portas de um ataque de malária...

— Espero que não, senhor. Creio que se sentirá per-^ feitamente bem mais tarde.

Bliss hesitou ao transpor o portal.

— Algo de novo? — quis saber ele.

— Oh, muita coisa. — Vance falou sem entusiasmo. — Mas trataremos disso mais tarde.

Bliss franziu o cenho e esteve por fazer outra pergunta. No entanto, mudou de idéia e, inclinando-se, saiu, com Snitkini, acompanhando-o mal-humorado.

 


XIII

 

Uma tentativa de fuga

 

(Sexta-feira, 13 de julho — 15:45 horas)

 

 

Foi Hani quem quebrou o silêncio após a partida de Bliss.

— Quer que eu vá embora, effendi? — perguntou a Vance, com um respeito que me pareceu exagerado.

— Sim, sim. — Vance se pusera distrait e introspectivo. Eu sabia que estava remoendo alguma coisa em sua cabeça. Permanecia próximo da mesa, com as mãos nos bolsos, olhando atentamente para o samovar. — Vá lá para cima, Hani. Tome algum bicarbonato de sódio — e pense um pouco. Curve-se divinamente, por assim dizer; entregue-se a um pouco de "exercício sagrado" como diz Shakespeare em seu... é no Richard III?

— Sim, effendi — no Ato III. Catesby usa essa frase para o Duque de Buckhingham.

— Surpreendente! — Vance estudou o egípcio criticamente. — Eu não fazia idéia de que os fellahin fossem tão versados nos clássicos.

— Eu costumava ler quatro horas de cada vez para Meryt-Amen quando ela era mais jovem...

— Ah, sim. — Vance abandonou o assunto. — Mandaremos chamá-lo quando precisarmos de você. Nesse meio tempo espere no seu quarto.

Hani inclinou-se e se dirigiu para o saguão.

— Não se iluda com as aparências, effendi — disse ele solenemente, voltando-se ao chegar à porta. — Eu não estou compreendendo inteiramente as coisas que aconteceram nesta casa hoje, mas não se esqueça...

— Muito obrigado. — Vance fez um gesto com a mão, dispensando Hani. — Pelo menos não me esquecerei de que o seu nome é Anûpu.

Com um olhar de raiva o homem desapareceu. Markham estava ficando cada vez mais impaciente.

— Tudo nesse caso parece vão — queixou-se ele. — Qualquer pessoa da casa poderia ter posto ópio no café — o que nos leva exatamente ao mesmo ponto em que estávamos ao vir para a saleta de refeições... Por falar nisso, onde acha você que Hani encontrou a lata de ópio?

— Oh, isso? No quarto de Salveter, claro... Por demais óbvio, sabe?

— Quero ir para o inferno se vejo algo de óbvio a esse respeito. Por que teria Salveter deixado a lata lá?

— Mas Salveter não a deixou lá, meu caro... Meu Deus! Você não percebe que alguém nesta casa tinha idéias? Há um deus ex machina no nosso meio e que se está preocupando horrivelmente com a situação. A trama foi por demais inteligente é há um gênio tutelar procurando simplificar as coisas para nós.

Heath pigarreou em violento desgosto.

— Bem, em minha opinião, esse anjo está fazendo um trabalho infernal.

Vance sorriu com simpatia.

— Um trabalho diabólico, digamos, sargento. Markham olhou-o com inquisitivo olhar de desagrado.

— Você acredita, Vance, que Hani tenha estado nesta saleta depois que a Sra. Bliss e Salveter subiram?

— E possível. De fato parece mais provável que tenha sido Hani do que a Sra. Bliss ou Salveter.

— Se a porta da frente estivesse destrancada — sugeriu Markham — poderia concebivelmente ter sido alguém de fora.

— Seu assaltante hipotético? — perguntou Vance secamente. — Passou por aqui, talvez, para um pouco de estimulante cafeínico antes de atacar sua vítima no museu. — Vance não deu a Markham tempo para uma resposta, e se dirigiu para a porta. — Vamos interrogar os ocupantes da sala de visitas. Precisamos de algumas outras informações... oh, muito mais informações.

Vance liderou o caminho até em cima. Enquanto caminhávamos no saguão de cima pesadamente atapetado, na direção da sala de visitas, chegou até nós uma voz aguda e zangada. A Sra. Bliss estava falando e percebi as últimas palavras de uma frase.

—... deveria ter esperado.

Salveter respondeu em tom rude e tenso.

— Meryt! Você está maluca...

Vance pigarreou e fez-se silêncio.

Antes, porém, que entrássemos na sala, Hennessey chamou misteriosamente Heath da frente do saguão. O sargento passou além da porta da sala de visitas e nós, pressentindo alguma revelação, seguimos seus passos.

— Sabe, aquele pássaro, Scarlett, que o senhor me disse para deixar sair — informou Hennessey em um sussurro — bem, exatamente quando ia saindo voltou-se repentinamente e correu escadas acima. Ia atrás dele, mas como o senhor lhe tinha dado o OK, achei que estava bem. Alguns minutos depois ele desceu e saiu sem uma palavra. Fiquei pensando se não teria sido melhor se eu o tivesse seguido lá em cima...

— Você agiu corretamente, Hennessey. — Vance falou antes que o sargento pudesse responder. — Não havia qualquer razão para que ele não fosse até lá em cima — provavelmente foi falar com o Dr. Bliss.

Hennessey pareceu aliviado e olhou esperançosamente na direção de Heath, que se limitou a grunhir seu desdém.

— E por falar nisso, Hennessey, — continuou Vance — quando o egípcio veio aqui em cima a primeira vez, foi diretamente para o andar de cima ou, en route, passou pela sala de visitas?

— Ele entrou e falou com a senhora...

— Você ouviu alguma coisa do que ele disse?

— Não. Pareceu-me que estavam conversando em uma dessas línguas estrangeiras.

Vance voltou-se para Markham e disse em voz baixa: — Foi por isso que mandei "Hani subir sozinho. Eu imaginava que ele se aproveitaria da oportunidade para se comunicar com a Sra. Bliss. — Tornou a falar com Hennessey. — Quanto tempo permaneceu Hani na sala de visitas?

— Um minuto ou dois, talvez. Não mais do que isso. — O detetive estava ficando apreensivo. — Eu deveria ter impedido que ele fosse lá?

— Oh, não... O que aconteceu depois?

— O sujeito saiu da sala, parecendo preocupado e foi lá para cima. Desceu logo em seguida, com uma lata na mão. "O que tem você aí, Abdullah?", perguntei. "Algo que o Sr. Vance me mandou buscar. Tem alguma objeção?", indagou ele. "Não, se você está falando a verdade; mas não estou gostando de sua cara", respondi. O homem me deu as costas e desceu.

— Perfeito, Hennessey — concordou Vance, encorajadoramente. Em seguida, tomando Markham pelo braço, voltou até à sala de visitas. — Creio que o melhor será interrogar a Sra. Bliss.

Quando entramos a mulher levantou-se para nos cumprimentar. Estava sentada junto à janela da frente e Salveter permanecia encostado na porta de dobrar que conduzia à sala de jantar. Obviamente deviam ter assumido essas posições quando nos ouviram no saguão, pois, enquanto subíamos, estavam conversando bem perto um do outro.

— Lamentamos ter que perturbá-la, Sra. Bliss, — começou Vance cortesmente — mas é necessário que a interroguemos agora.

Ela aguardou sem o menor movimento ou sem mudança de expressão e fiquei com a impressão nítida de que a Sra. Bliss ressentiu-se com a nossa intrusão.

— E Sr. Salveter, — prosseguiu Vance, voltando seu olhar para o homem — por favor vá para o seu quarto. Iremos vê-lo mais tarde.

Salveter pareceu desconcertado e preocupado.

— Não poderei estar presente...? — começou ele.

— Não — cortou Vance, com desusada severidade. Percebi que até mesmo Markham ficara algo surpreendido com sua maneira. — Hennessey! — chamou Vance na direção da porta, e o detetive apareceu quase imediatamente. — Escolte este cavalheiro até seu quarto e veja que não se comunique com ninguém até que o convoquemos.

Salveter, lançando um olhar de apelo para a Sra. Bliss, saiu da sala, com o detetive ao lado.

— Sente-se, por favor, madame. — Vance aproximou-se da mulher e, depois que ela se sentou, puxou uma cadeira a sua frente. — Vamos fazer-lhe algumas perguntas íntimas e se a senhora realmente deseja que o assassino do Sr. Kyle seja levado à justiça, não se ressinta com as perguntas e responda-as francamente.

— O assassino do Sr. Kyle é uma criatura desprezível e desumana — respondeu ela em voz tensa e dura — e farei tudo o que puder para ajudá-los. — A mulher não olhou para Vance, concentrando seu olhar em um enorme camafeu cor-de-mel que usava no indicador da mão direita.

As sobrancelhas de Vance se ergueram ligeiramente.

— A senhora acha, então, que fizemos bem em liberar seu marido?

Não pude perceber o propósito da pergunta de Vance e a resposta da mulher confundiu-me ainda mais. Ela ergueu a cabeça vagarosamente e olhou um de nós de cada vez. Finalmente disse: — O Dr. Bliss é um homem muito paciente. Muitas pessoas julgam-no erradamente. Não tenho certeza sequer, se Hani lhe é absolutamente leal. Mas meu marido não é nenhum tolo, ainda que não seja muito esperto às vezes. Não ponho o crime além de suas possibilidades ou das possibilidades de qualquer um. O crime, muitas vezes, pode significar a mais alta forma de coragem. No entanto, se o meu marido houvesse assassinado o Sr. Kyle, não teria sido tão estúpido a esse respeito — certamente não teria deixado indícios apontando em sua direção... — A Sra. Bliss tornou a olhar para as mãos cruzadas. — Mas, se ele estivesse pensando em um crime, o Sr. Kyle não seria o objeto de sua ação. Há outras pessoas de quem ele teria mais razões para desejar fora do caminho.

— Hani, por exemplo?

— Talvez.

— Ou o Sr. Salveter?

— Quase que qualquer pessoa com exceção do Sr. Kyle — tornou a mulher, sem nenhuma modulação perceptível da voz.

— A irritação poderia ter ditado o crime. — Vance falou como se estivesse apenas discutindo um ponto meramente acadêmico. — Se o Sr. Kyle se tivesse recusado a continuar financiando as escavações...

— O senhor não conhece meu marido. Tem o temperamento mais equilibrado que já vi. Paixão é algo desconhecido em sua natureza. Não dá qualquer passo sem uma longa deliberação.

— A mente de um sábio — murmurou Vance. — Sim, sempre tive dele essa impressão. — Tirou a cigarreira. — Incomoda-se se eu fumar?

— O senhor se incomoda se eu o fizer? Vance pôs-se de pé e lhe estendeu a cigarreira.

— Ah, Régies! — A mulher escolheu um cigarro. — Tem muita sorte, Sr. Vance. Não havia nenhum disponível na Turquia quando fiz uma encomenda.

— Tenho sorte dupla, pois posso oferecer-lhe um. — Vance acendeu o cigarro da Sra. Bliss e retomou sua cadeira. — Em sua opinião, Sra. Bliss, quem se beneficiaria mais com a morte do Sr. Kyle? — Vance fez a pergunta descuidadamente, mas pude perceber que observava a mulher atentamente.

— Não sei dizer. — Era claro que a mulher estava em guarda.

— Mas, por certo — insistiu Vance — alguém seria beneficiado por sua morte. Do contrário ele não teria sido assassinado.

— Este é um ponto que cabe à polícia esclarecer. Não posso dar-lhe qualquer ajuda em torno dessa linha.

— Talvez a polícia já se tenha dado por satisfeita a esse respeito e eu esteja meramente lhe fazendo a pergunta para fins de corroboração. — Vance, conquanto se mantivesse cortes, falava com alguma significação definida. — Olhando o problema friamente, a polícia pode argumentar que a morte súbita do Sr. Kyle removeria um espinho do flanco de Hani e acabaria com aquilo que ele chama de violação dos túmulos de seus ancestrais. Além disso a polícia poderia agarrar-se ao fato de que a morte do Sr. Kyle enriqueceria não só a senhora como o Sr. Salveter.

Esperei que a mulher se ressentisse com essa observação de Vance, mas ela se limitou a levantar os olhos e esboçar um frígido sorriso e a dizer em tom desapaixonado: — Sim, acredito que haja um testamento indicando o Sr. Salveter e eu mesma como os principais beneficiários.

— O Sr. Scarlett já nos falou a esse respeito — retrucou Vance. — É muito compreensível... E, por falar nisso, a senhora está pretendendo usar sua herança para perpetuar os trabalhos do Dr. Bliss no Egito?

— Certamente — tornou ela com indisfarçável ênfase. — Se ele me pedir para ajudá-lo, o dinheiro estará a sua disposição para fazer o que desejar... Especialmente agora — acrescentou ela.

A expressão facial de Vance se tornara fria e séria e após um rápido levantar dos olhos tornou a baixá-los e ficou contemplando o próprio cigarro.

Nesse momento Markham levantou-se.

— Quem, Sra. Bliss, — perguntou ele, com o que interpretei como desnecessária agressividade — teria um objetivo para tentar responsabilizar o Dr. Bliss por este crime?

O olhar da mulher se modificou, mas apenas por um instante.

— Tenho certeza de que não sei — retrucou ela. — Alguém, de fato, tentou fazer uma coisa dessas?

— A senhora mesma o sugeriu, madame, quando foi chamada sua atenção para o alfinete de escaravelho. A senhora disse, positivamente, que alguém o teria posto ao lado do corpo do Sr. Kyle.

— E daí? — Ela se tornara, de súbito, desafiante. — Meu instinto inicial era, naturalmente, defender o meu marido.

— Contra quem?

— Contra o senhor e contra a polícia.

— A senhora lamenta esse "instinto inicial"? — Markham fez a pergunta bruscamente.

— Certamente não! — A mulher retesou-se em sua cadeira e olhou sub-repticiamente na direção da porta.

Vance percebeu-lhe a ação e disse: — É apenas um dos detetives lá no saguão. O Sr. Salveter está aguardando em seu boudoir... nada poderá escutar.

Rapidamente ela cobriu o rosto com as mãos e um estremecimento percorreu-lhe o corpo..

— O senhor está-me torturando — protestou ela.

— E a senhora está-me olhando por entre os dedos — observou Vance com um sorriso suave.

A Sra. Bliss se pôs de pé e olhou ferozmente para Vance.

— Por favor não diga "Como ousa o senhor?" — falou Vance. — É uma frase tão comum. E sente-se, novamente... Hani informou a senhora, acredito — em sua linguagem nativa — que se supunha que tenham posto ópio no café do Dr. Bliss hoje pela manhã. O que mais lhe disse ele?

— Isso foi tudo o que disse. — A mulher tornou a sentar-se; parecia exausta.

— A senhora sabia que o ópio era guardado no armário lá de cima?

— Eu não sabia disso — replicou ela desatentamente — ainda que não me surpreenda.

— O Sr. Salveter sabia disso?

— Oh, sem dúvida... se é que estava mesmo lá. Ele e o Sr. Scarlett são os encarregados dos suprimentos médicos.

Vance encarou-a rapidamente.

— Ainda que Hani não o tivesse admitido — disse ele — tenho a certeza de que a lata de ópio foi encontrada no quarto do Sr. Salveter.

— Sim? (Não pude deixar de sentir que a Sra. Bliss estava esperando essa notícia. De qualquer modo, não foi surpresa para ela.) — Por outro lado — continuou Vance — o ópio pode ter sido encontrado por Hani em seu quarto.

— Impossível! Em meu quarto não poderia estar! — explodiu a Sra. Bliss, que se acalmou, porém, ao defrontar-se com o olhar fixo de Vance. — Isto é, não sei como teria sido possível — rematou fracamente.

— Provavelmente estou enganado — murmurou Vance.

— Mas, diga-me, Sra. Bliss, voltou à saleta de refeições hoje pela manhã para uma outra xícara de café, depois que a senhora e o Sr. Salveter haviam subido?

— Eu... eu... — a mulher tomou uma respiração profunda. — Sim!... Há algum crime nisso?

— Encontrou-se com Hani na saleta?

Após uma breve hesitação ela respondeu: — Não. Ele estava em seu quarto, doente... mandei seu café lá.

Heath rosnou, desgostosamente.

— Estamos descobrindo umas quantas coisas — resmungou ele.

— É mesmo, sargento — concordou Vance prazerosamente. — Uma quantidade surpreendente. O auxílio da Sra. Bliss é imenso. — Voltou-se novamente para a mulher. — A senhora sabe, é claro, quem matou o Sr. Kyle? — perguntou ele brandamente.

— Sim... sei! — As palavras foram pronunciadas com impulsivo rancor.

— E sabe também por que foi ele assassinado?

— Sei disso, também. — Uma mudança súbita se apossou dela, que parecia simultaneamente com medo e excitada; a trágica aridez de sua atitude assombrou-me.

Heath emitiu uma estranha e indistinta exclamação.

— Diga-nos quem foi — explodiu ele irascivelmente, agitando o charuto junto ao rosto da mulher — ou mandarei prendê-la como testemunha acessória ou material...

— Calma, calma, sargento! — Vance levantou-se e colocou a mão apaziguadoramente no ombro de Heath. — Por que precipitar-se? Não lhe traria absolutamente qualquer benefício encarcerar a Sra. Bliss neste momento... E, além disso, ela pode estar completamente errada em sua diagnose do caso.

Markham entrou em cena.

— Tem razões definidas para sua opinião, Sra. Bliss? — perguntou ele. — A senhora dispõe de alguma prova contra o assassino?

— Evidência legal, não — respondeu ela calmamente. — Mas... mas... — Faltou-lhe a voz e sua cabeça tombou para a frente.

— Creio que a senhora saiu de casa às nove horas da manhã de hoje. — A voz calma de Vance pareceu refazê-la.

— Sim. Pouco depois do café.

— Compras?

— Peguei um táxi até à Quarta Avenida, para ir ao Altman. Não vi lá o que queria e fui a pé até o metrô. Dirigi-me ao Wanamaker e, mais tarde, ao Lord e ao Taylor. Depois fui até o Saks, e finalmente entrei em uma lojinha da Avenida Madison...

— A rotina usual — suspirou Vance. — E a senhora, é claro, não comprou coisa alguma?

— Encomendei um chapéu na Avenida Madison...

— Notável! — Vance sentiu que Markham o estava olhando e acenou com a cabeça significativamente. — Creio que isto é tudo pelo momento, Sra. Bliss — disse Vance. — Por favor vá para o seu quarto e aguarde lá.

A mulher levou um lencinho aos olhos e nos deixou sem dizer palavra.

Vance foi até à janela e olhou para a rua. Ele estava, segundo eu percebia, profundamente perturbado com o resultado da entrevista. Abriu a janela e os sonolentos ruídos de verão chegaram da rua até nós. Vance permaneceu em silêncio durante alguns momentos e nem Markham nem Heath interromperam sua meditação. Por fim, Vance voltou-se e, sem olhar para nós, disse, em tom calmo e introspectivo: — Há demasiadas correntes cruzadas nesta casa — demasiados motivos, demasiados objetivos a serem colimados, demasiadas complicações emocionais. Um caso plausível poderia ser levantado quase que contra qualquer um...

— Mas quem poderia lucrar com o envolvimento de Bliss no crime? — quis saber Markham.

— Oh, meu Deus! — Vance inclinou-se contra a mesa do centro e olhou um retrato a óleo, grande, do doutor, pendurado na parede leste. — Aparentemente qualquer um. Hani não gosta de seu empregador e se debate em agonia psíquica a cada cesta de areia que é retirada da tumba de Intef. Salveter está apaixonado pela Sra. Bliss e, naturalmente, o marido é um obstáculo a seus desejos. Quanto à dama propriamente, não a quero julgar mal, mas estou inclinado a acreditar que ela retribui a afeição do jovem cavalheiro. Se é assim, a eliminação de Bliss não a levaria ao suicídio.

O rosto de Markham sombreou-se.

— Também fiquei com a impressão de que o próprio Scarlett não é impermeável aos encantos da dama e de que existe uma certa frieza entre ele e Salveter.

Certo. Ça crève les yeux. — Vance acenou com a cabeça abstratamente. — A Sra. Bliss é inegavelmente fascinante... digo eu. Se ao menos eu pudesse encontrar a pista que estou procurando! Sabe, Markham, estou com a impressão de que algo novo irá acontecer dentro em breve. A trama, até agora, vem saindo errada. Fomos conduzidos pelo criminoso a um labirinto mouro, mas a chave não foi ainda colocada em nossas mãos. Quando tal acontecer, saberei para que porta ela serve — e não será a porta que o criminoso pretende que nós usemos. Nossa dificuldade no momento é que temos pistas em demasia e nenhuma delas é a pista real. Aí está por que não podemos fazer prisões. Devemos esperar que a trama se desenvolva.

— Este desenvolvimento, como o senhor o chama, é muito rápido para mim — retorquiu Heath impacientemente. — E não me importo em admitir que, em meu modo de pensar, estamos sendo desviados. Após tudo o que foi dito e o que foi feito, não foram as impressões digitais de Bliss, e de ninguém mais, que foram encontradas na estátua? Não foi o seu alfinete de gravata encontrado ao lado do corpo? E não teve ele todas as oportunidades para liquidar Kyle?...

— Sargento, — falou Vance pacientemente — iria um homem inteligente e de treinamento científico profundo cometer um assassinato e não apenas negligenciar suas impressões digitais na arma, mas também ser tão descuidado ao ponto de deixar cair seu alfinete de gravata na cena do crime e em seguida esperar calmamente em seu quarto que a polícia venha prendê-lo, depois de ter produzido pegadas de sangue para guiá-la?

— E ainda há o ópio, sargento — aduziu Markham. — A mim parece muito claro que o doutor estava drogado.

— Faça como quiser, senhor. — O tom de Heath beirava a impolidez. — Mas para mim não estamos indo a parte alguma.

Enquanto ele falava Emery assomou à porta.

— Telefone para o senhor, sargento — anunciou. — Lá embaixo.

Heath saiu apressadamente e desapareceu no saguão. Voltou três ou quatro minutos depois. Tinha o rosto aberto em sorrisos e gingava enquanto se encaminhava para Vance.

— Ahn! — Enfiou os polegares nas Cavas do colete. — Seu bom amigo Bliss acaba de tentar a fuga. Um de meus homens, Guilfoyle,1 a quem telefonei para que seguisse o doutor, passou a acompanhá-lo assim que ele saiu desta casa para o passeio no parque. Mas ele não foi para o parque, Sr. Vance. Foi pela Quarta Avenida até o Corn Exchange Bank, na Rua Vinte e Nove. Estava fora do expediente, mas ele conhecia o gerente e não teve dificuldades em conseguir o seu dinheiro...

 

 

 

(1) Guilfoyle, lembrei-me, era o detetive do Departamento de Homicídios que foi destacado para vigiar Tony Skeel, no caso da Canária e que informou a respeito da luz acesa toda a noite na casa de Drukker, no caso do Bispo.

 

 

— Dinheiro?

— Claro! Sacou tudo o que tinha no banco — em notas de vinte, de cinqüenta e de cem — e em seguida tomou um táxi. Guilfoyle saltou para outro táxi e seguiu-o até a cidade. Ele desceu na Grande Estação Central e se dirigiu apressadamente ao guichê. "Quando parte o próximo trem para Montreal?" perguntou ele. "Quatro e quarenta e cinco", informou o bilheteiro. "Quero uma ida", disse o doutor... Eram então quatro horas e o doutor foi até o portão e lá ficou, esperando. Guilfoyle se aproximou dele e perguntou: "Vai dar um passeio no Canadá?" O doutor se pôs arrogante e não quis responder. "De qualquer modo", disse Guilfoyle, "não creio que o senhor saia hoje do país", e pegando o doutor pelo braço levou-o até à cabina telefônica... Guilfoyle está vindo para cá com o seu inocente amigo. — O sargento se balançou para cá e para lá na ponta dos pés. — O que diz a isso, senhor?

Vance olhou-o lugubremente.

— E isso é tido como um outro sinal de culpa do Dr. Bliss? — Sacudiu a cabeça desanimadamente. — Será possível que o senhor encare uma tentativa tão infantil de fuga como incriminante?... Diga-me, sargento, não poderia essa idéia surgir na cabeça de um cientista inexperiente, próximo do pânico?

— Claro que sim. — Heath riu-se desagradavelmente. — Todos os patifes e assassinos se assustam e tentam cair fora. Mas isso não prova sua inocência.

— Ainda assim, sargento, — a voz de Vance era desanimadora — um criminoso que acidentalmente deixa pistas por todos os lados apontando diretamente para sua pessoa e, em seguida, se permite essa tolice de tentar cair fora estüpidamente, não é por certo brilhante. E posso assegurar-lhe que o Dr. Bliss nem é imbecil nem lunático.

— Tudo isso não passa de palavras, Sr. Vance — declarou o sargento obstinadamente. — Este pássaro cometeu um bocado de erros e, vendo que ia ser apanhado, procurou sair do país. E aqui estou para dizer-lhes que a coisa está fazendo sentido.

— Oh, minha tia... minha querida e trêmula tia! — Vance deixou-se afundar e que sua cabeça caísse para trás cansadamente, contra o forro rendado.

 

 

 


CONTINUA