Biblio "SEBO"
A chuva tinha abrandado. Eu inclinei-me para a frente e pus a cabeça de fora da carroça, a espreitar. As pedras rosadas do mosteiro brilhavam na noite. Da terra gelada erguia-se uma bruma pardacenta. Já passava da meia-noite.
Havia várias horas que eu esperava pelo nosso reencontro. Para dizer a verdade, já esperava por ele havia anos - seis anos - só que o tinha imaginado em circunstâncias diferentes.
O porteiro saiu ao encontro da carruagem. Tinha sido recentemente admitido à condição clerical e tinha sido tonsurado com uma navalha bem afiada, pelo que a calva lhe refulgia ao luar.
- Bem-vindo a Poblet - disse.
- Como vos chamais, Irmão? - perguntei.
- Silva, - respondeu - Irmão Silva, de Cerdanya.
Eu apresentei-me e pedi-lhe que me conduzisse à cela de Francisco de Monteada. Ele baixou os olhos e não reagiu.
A viagem tinha sido longa e eu estava irritável e impaciente. - Percebestes o que eu vos disse, Irmão Silva?
- Percebi, sim, Irmão Lucas - disse ele - mas o Padre Adelmo decretou que ninguém entrasse na cela do cruzado.
- Tenho comigo uma carta com o selo do Arcebispo Sancho de Tarragona - disse eu. - Nela me é confiada a custódia de Francisco e o encargo do seu exorcismo.
- Talvez seja melhor eu ir chamar o Padre Adelmo - disse o Irmão Silva - e vós falais com ele sobre isso.
- Não, Irmão Silva - disse eu. - Quero falar com Francisco já. Com relutância, o Irmão Silva acompanhou-me à igreja. Chegou-me ao nariz o cheiro conhecido do incenso das matinas, a primeira oração da manhã. Respirei fundo - aquele cheiro pungente teve o condão de me despertar os sentidos. Para mim, aquele é o cheiro de Deus, o cheiro de casa, a única casa que alguma vez conheci. Os monges já estavam reunidos, à espera de que o Abade desse início aos cânticos. Muitos deles bocejavam, e os mais novos esfregavam os olhos na tentativa de espantar o sono. Ao atravessar a nave central, senti que todos os monges presentes na capela se viravam e olhavam para mim. Um dos mais velhos tentou captar a atenção dos outros dando início a parte da liturgia, mas os congregados ignoraram-no.
Quando cheguei ao pé da Cruz de pedra que havia ao lado do estrado, ajoelhei para rezar uma oração em silêncio - Santa Maria, dai-me a Vossa bênção e livrai-me do mal. Dai-me forças para cumprir a minha missão. Benzi-me, levantei-me e acompanhei o Irmão Silva até uma porta de canto pela qual passámos da igreja ao claustro. Contornámos o perímetro, passando por várias escrivaninhas, colocadas entre colunas. Os monges tinham recolhido os manuscritos para o banco de pedra que havia na passagem coberta, para os proteger da chuva. Reparei na caligrafia, nos traços firmes, nas curvas confiantes.
Chegados ao canto do pátio, entrámos na torre. O Irmão Silva acendeu um archote e subiu pela escada de caracol. Eu subi atrás dele, tentando acompanhar-lhe a passada, mas o rapaz não tardou a desaparecer e com ele a luz brilhante, deixando para trás bruxuleios esporádicos, e depois a escuridão.
Avancei com cuidado pelos degraus em espiral. As minhas sandálias escorregavam na pedra fria e eu tentei amparar-me ao corrimão estreito. Um passo, mais outro, e outro, até conseguir marcar um ritmo e acalmar o peito ofegante. Cheguei ao cimo da escada, onde o Irmão Silva me esperava. Tinha pensado em repreender o rapaz pela pressa, mas a minha atenção foi desviada para a porta trancada que se via a escassos pés de distância.
- Estais preparado, Irmão Lucas? - perguntou o rapaz.
A chama do archote iluminava-lhe um dos lados da cara - imberbe, ansiosa, insegura. Eu hesitei por momentos antes de lhe responder afirmativamente com a cabeça.
Era um compartimento despido, à excepção de uma Cruz de madeira pendurada na parede do fundo. O luar entrava por um alçapão e projectava na cela uma luz estranha, irreal. Um bocado de pão seco coberto de baratas interrompia o feixe de luz no chão de pedra. Na sombra, um vulto humano tiritava. Estava acocorado em cima de um monte de palha. Ao entrar na cela, fui assaltado por um cheiro insuportável a excrementos e suor. Tirei um lenço de dentro do hábito e tapei com ele o nariz e a boca. Depois aproximei-me da pessoa para a observar melhor. Estava acorrentada pelos pulsos a uma argola de ferro encastrada na parede e envergava umas vestes esfarrapadas que mal lhe cobriam a carcaça emaciada. Tinha o cabelo comprido e desordenado e a barba num caos. Uns olhos azuis fitavam um ponto incerto. O seu aspecto exterior tinha-se alterado muito, mas mesmo assim eu reconheci a pessoa.
- Desde que aqui chegou ainda não pronunciou uma palavra - disse o Irmão Silva. - Às vezes, durante o sono, tartamudeia umas palavras, mas sempre incompreensíveis. Há muitos monges que acham que ele fala um dialecto secreto do demónio. Têm medo de ser vítimas da maldição.
Também eu tive medo, medo dos demónios que se tinham apossado de Francisco, medo do poder aterrador do diabo, capaz de reduzir àquele estado um homem como Francisco. Tive vontade de fugir dali. Apertei com força a Cruz que trazia pendurada ao pescoço, procurando dominar o pânico que me subia do estômago.
Lembra-te de quem és. Lembra-te da missão que aqui te traz. Lembra-te do teu estatuto.
Dei dois passos na escuridão e estendi a mão na direcção daquela aparição. Pousei-lhe a mão na testa e desci-a lentamente pela maçã do rosto, até ao queixo. Quando retirei a mão, trazia os dedos cobertos de ranho e surro.
Entrava pelo alçapão uma aragem fria que me fustigava a cara. Dei um passo atrás e senti a mão do Irmão Silva no meu ombro.
- É um caso perdido - disse o Irmão Silva. - O Padre Adelmo tentou durante semanas a fio exorcizar os demónios. Sangrou-o, queimou-o, perfurou-o, até lhe deu novo baptismo. Tudo em vão.
Eu peguei na corrente que prendia Francisco. Segui com os olhos os elos até ao pulso, que estava coberto de sangue seco.
Senti que o meu silêncio deixava desconfortável o Irmão Silva, que talvez se sentisse pouco à vontade face às condições em que mantinham Francisco.
- Foi o Padre Adelmo que deu ordens para que o acorrentássemos à parede. É para o bem dele, Irmão Lucas.
Eu não disse nada. Na minha memória rodopiavam imagens da nossa vida em comum em Santes Creus - o portão enferrujado do mosteiro, as flores roxas à volta da cisterna, a mesa de carvalho em que fazíamos as nossas refeições em perfeito silêncio.
Deixei cair a corrente e afastei o cabelo de Francisco para lhe ver melhor a cara. Parecia muito mais velho do que os vinte e sete anos que efectivamente tinha. Os olhos azuis, translúcidos, não tinham qualquer reflexo. Dos cantos dos olhos abriam-se-lhe rugas em leque, sulcos negros que cavavam caminhos de desolação até às têmporas. Os lábios, pardacentos e finos, entreabriam-se, como se ele estivesse a sussurrar algum segredo atroz das suas andanças. Tinha as faces macilentas, e a pele acima da barba era pálida e exangue. As patilhas tinham-lhe crescido desmedidamente pela cara abaixo, até à queixada que lhe sobressaía da barba como rocha batida que não cede à tempestade.
- Francisco, sou eu, o Lucas. - Chamei-o várias vezes pelo nome. Não me respondeu.
- Irmão Lucas, este cheiro é inevitável - disse o Irmão Silva. - O Padre Adelmo proíbe os monges de aqui entrarem sem sua autorização. Nós fazemos todos os possíveis para...
Eu levantei a mão, e o Irmão Silva calou-se. Não era meu propósito julgar o rapaz ou os outros monges. O tagarelar dele impedia-me de me concentrar enquanto observava as feições de Francisco, à procura de algum sinal de vida, alguma coisa que pudesse reconhecer do nosso passado.
Não encontrei nada.
O Irmão Silva espirrou. Estendi-lhe o meu lenço. Quando voltei a olhar para Francisco, ele estava a olhar para mim. Os nossos olhares encontraram-se durante vários segundos, até que ele desviou os olhos.
- Conhecíei-lo bem, Irmão Lucas?
- Era meu amigo - respondi.
Respirei fundo várias vezes. O ar fétido e putrefacto que se respirava na cela não dava tréguas. Até me tremiam as pernas. Desatei a tossir. Virei costas e saí para o corredor. O Irmão Silva saiu atrás de mim e fechou a porta.
- Estais a sentir-vos bem, Irmão Lucas? - perguntou. Inclinei-me para a frente e finquei as mãos nas coxas, para me aguentar.
- O mundo está de pernas para o ar, Irmão Silva.
SANTES CREUS
Conheci Francisco há onze anos. Chegou ao mosteiro de Santes Creus no fim do Verão do Ano de Nosso Senhor de 1265. Tinha então dezasseis anos, mais um do que eu. O Abade Pedro tinha-nos avisado de que ia chegar o filho de um grande barão, um Monteada de sangue e de nome.
É frequente a nobreza mandar os filhos primogénitos para os mosteiros por um período determinado - normalmente três anos - para aí receberem educação antes de assumirem o manto da família. Os mosteiros cister-cienses proíbem geralmente a presença destes visitantes temporários, os chamados oblatos. O caminho da perfeição - o caminho do Nosso Salvador - exige uma dedicação exclusiva, uma devoção infinita. Mas os abades podem abrir excepções. E Francisco era um caso excepcional.
Com os dedos em sangue e uma fé inabalável, os primeiros frades cis-tercienses da Ibéria talharam há mais de um século, no meio da mais agreste desolação, o santuário de Deus de Santes Creus. Mas raramente a fé é suficiente. A construção e a manutenção de templos dedicados à promoção e projecção da glória espiritual do Reino de Cristo exigem fundos mais terrenos. E a família Monteada foi desde o princípio a financiadora deste. Com este sacrifício, muitos membros da família garantiram um lugar no paraíso e conquistaram um lugar de eterno descanso no mosteiro.
Para que ninguém se esqueça de quem são os nossos patronos, os monges passam sete vezes por dia diante da cripta da família Monteada. Talhada no muro de pedra logo à direita da porta de acesso à igreja, a cripta guarda os restos mortais de Garsenda de Provença e Guillem de Monteada, bisavós de Francisco. Em vida, Guillem foi o mais poderoso dos vassalos da Coroa. Foi ele que comandou a força que conquistou a ilha de Maiorca aos infiéis, no Ano de Nosso Senhor de 1229.
Toda a gente no Reino de Aragão conhece os pormenores do martírio de Guillem. A família encomendou uma balada comemorativa dos feitos de Guillem. Eu aprendi-a no meu primeiro ano de noviciado. Ainda hoje sei os versos de cor. Um sarraceno espetou uma estaca na ilharga de Guillem. Com as tripas de fora, Guillem continuou a comandar as forças cristãs montado no seu cavalo. Caiu morto às portas da Cidade de La Palma.
Guillem deve ter visto o fantasma do Cavaleiro Branco São Jorge e sentido que a vitória estava iminente antes de a sua alma subir ao céu. O Cavaleiro Branco cavalgou por cima das defesas do inimigo, espalhando o terror pelos corações dos infiéis e provocando uma manobra de diversão que permitiu que os nossos soldados abrissem brechas nas muralhas da cidade. Uma vez lá dentro, os soldados de Cristo desencadearam uma punição divina sobre os habitantes da cidade. Consta que quase todos os muçulmanos, homens, mulheres e crianças, morreram nas primeiras duas horas do ataque. Tratou-se de uma cena da mais atroz carnificina cujo nobre propósito, não fora a sua inspiração divina, podia ser confundido com obra do diabo.
Escusado será dizer que o Abade Pedro e todos os outros membros da comunidade monástica esperavam com ansiedade a chegada do herdeiro da família Monteada. O Abade mandou vir pintores da guilda de Barcelona para retocar a fachada da igreja e várias zonas do claustro principal, entre as quais a cripta da família Monteada com o brasão da família, um escudo vermelho com sete besantes, moedas de ouro de Bizâncio.
Ia eu a rezar em silêncio, enquanto percorria o claustro, quando deparei com um dos artífices que retocavam a folha de ouro que revestia a cripta.
- Por que é que o brasão da família Monteada tem sete moedas de ouro? - perguntei ao artífice. Sempre tinha admirado o desenho, mas sempre me tinha interrogado sobre o significado das sete moedas.
- Os Monteada são ricos - respondeu, sem levantar os olhos do que estava a fazer.
- Isso sei eu - retorqui - mas por que não três besantes simbolizando a Santíssima Trindade?
- Eles são muito ricos - disse ele.
De facto, Francisco era um caso excepcional.
Quando, finalmente, o jovem herdeiro chegou, eu estava nos aposentos do Abade a fazer lançamentos nos livros de contabilidade do mosteiro. Talvez seja melhor eu explicar. De dois em dois anos, o Abade Pedro escolhia um monge particularmente promissor para seu assistente pessoal. Era uma grande honra desempenhar funções de tal responsabilidade, que eu assumi aos treze anos. No desempenho de tais funções, passava o princípio das tardes - entre as orações das horas sexta e nona - nos aposentos do Abade. Redigia-lhe a correspondência. Fazia as actas de reuniões importantes. Lembrava ao Abade os dias festivos previstos no calendário litúrgico. Contava e separava as moedas do erário - que me escorriam por entre os dedos como fresca água primaveril. O facto de ter sido nomeado para novo mandato de dois anos quando completei os meus quinze representou o reconhecimento do Abade Pedro pela minha devoção e discrição. O Abade Pedro fazia-me frequentemente confidente dos seus pensamentos íntimos sobre outros membros do mosteiro.
De acordo com as instruções recebidas, o porteiro conduziu Francisco aos aposentos do Abade.
- Entrai, meu filho - disse o Abade Pedro a Francisco, que parecia relutante em transpor a soleira da porta. - Sede bem-vindo a Santes Creus.
Era uma cena que já tínhamos representado vezes sem conta. Dar as boas vindas aos recém-chegados. Uns altos e outros baixos, uns gordos e outros magros. Mas sempre com a mesma expressão - uma complacência ostensiva, uma clara consciência das prerrogativas que o berço lhes conferia, como filhos da alta nobreza. E talvez um ligeiro esgar de escárnio, reflexo da amarga injustiça da sua situação, quando se tratava de filhos segundos ou terceiros obrigados a tomar o hábito. As famílias nobres davam estes filhos à Igreja para evitar a divisão do património. Na Igreja, estes filhos não herdavam terras e por outro lado levavam vidas dignas da nobreza, que redundariam em benefício espiritual para os pais.
Levantei-me quando vi Francisco aproximar-se. Vi logo que ele era uma pessoa diferente. Francisco tinha um sorriso ausente. Aliás, meio sorriso. Tinha a parte esquerda da boca levantada e o olho esquerdo ligeiramente fechado. A outra metade da cara de Francisco era triste, com o olho direito fixo no vago, como quem pensa nalgum íntimo desgosto. Esta discrepância dava ao fácies de Francisco uma expressão ausente e irónica, como se o divertisse o seu próprio sofrimento.
O Abade Pedro pareceu ter ficado por momentos desconcertado com a postura de Francisco. O Abade ficou um bom minuto a observar Francisco antes de falar.
- Agradeço ao Senhor - disse finalmente - por me ter achado digno de vos tomar a meu cargo. - O peso dos olhos de Francisco parecia dirigir-se para a janela. O Abade mexeu-se para a esquerda, na tentativa de interceptar o olhar de Francisco.
- Como muito bem sabeis, Francisco - continuou o Abade - o mosteiro deve a sua existência à generosidade da vossa família. Os Monteada sempre reconheceram o trabalho sagrado que a Ordem de Cister desenvolve.
- Os nossos irmãos e irmãs beneditinos - disse o Abade, dando início ao discurso reservado aos recém-chegados - ganharam predilecção pelo ouro e pela prata. Mas Cristo era um homem da pedra e da madeira, Francisco. Os monges de Cister porfiam por restaurar a pureza da visão original de São Bento. Os nossos irmãos beneditinos usam hábitos pretos. Nós usamos hábitos de pano cru - símbolo da pureza da palavra de Cristo e da nossa missão. As nossas construções são austeras e simples. Não temos decorações supérfluas nas paredes a distrair-nos das nossas vidas de oração e contemplação. Desprezamos a nova moda de instalar vidros coloridos nas nossas igrejas. Se a luz de Deus é perfeita, para quê distorcer os raios sublimes?
O Abade Pedro olhou ansioso para o recém-chegado, mas Francisco não tinha a mínima intenção de falar. Nem sequer era certo que Francisco estivesse a dar ouvidos ao discurso do Abade. O olhar de Francisco parecia fixo num ponto mesmo por trás do Abade Pedro. O Abade olhou para trás, evidentemente à procura do foco de interesse de Francisco.
- Os nossos irmãos beneditinos - prosseguiu o Abade, levantando a voz na tentativa de atrair a atenção de Francisco - têm servos para lhes amanhar a terra. Os irmãos de Santes Creus lavram eles próprios a terra. Usamos as mãos como Cristo carpinteiro as usou na Galileia. Não é nosso propósito substituir a Regra de São Bento, que continua a ser o nosso guia, o nosso caminho para o Omnipotente. Queremos apenas corrigir alguns excessos da velha Ordem. Com pedra e madeira, expandimos o reino de Cristo às mais negras planuras da Ibéria.
- Francisco - disse o Abade Pedro, já aos gritos - em atenção ao carácter invulgar e temporário da vossa estada entre nós, preparei uma cela privativa para vossa habitação. Estareis também isento do trabalho no campo em dias alternados. E no refeitório reservei para vós um lugar à minha direita, que é por onde começa a distribuição da comida. Em dias festivos podereis escolher a posta de peixe mais suculenta.
- Senhor - foram as primeiras palavras de Francisco - Cristo também teve isenções?
- Que dizeis, Francisco?
- Pergunto se Cristo recebeu tratamento especial na Cruz.
- Não - disse o Abade. - Nosso Senhor sofreu da maneira mais atroz.
- Então não me parece - disse Francisco - que um Monteada mereça tratamento especial. Agradeço a vossa consideração, Abade Pedro, mas preferia ocupar o meu lugar normal entre os outros no dormitório e executar as tarefas que se esperam de qualquer membro do mosteiro.
O Abade Pedro sorriu discretamente. Ao menos ficou a saber que Francisco o tinha escutado.
- Quereis ter a bondade - pediu Francisco, olhando na minha direcção - de me conduzir ao dormitório?
Passada a agitação inicial gerada pela chegada de Francisco, depressa este se adaptou à vida de Santes Creus. Francisco parecia particularmente apto para os ritmos da vida monástica. Rezava com evidente devoção durante cada um dos oito ofícios de oração diária - a Opus Dei. Enquanto alguns monges mastigavam as palavras, em especial às matinas, Francisco entoava sempre os salmos com particular intensidade. O Abade Pedro comentou uma vez que as orações de Francisco se revestiam de uma qualidade desesperada, como se o rapaz estivesse a prestar um juramento solene perante o Senhor, ou à procura de alguma informação essencial.
Ao nascer do sol, Francisco tomava o seu lugar no campo ao lado dos outros monges - quatro horas por dia a manejar a pá e a enxada. A lançar as sementes que, como boas acções, haveriam de dar uma safra multiplicada por cem. Enquanto outros se iam deixando ficar pelas sombras, Francisco não parava nem para beber água, e trabalhava com um vigor invulgar. Às vezes, nos dias quentes, despia o hábito branco. O suor escorria-lhe pelas costas nuas, os músculos retesados curvavam-se para o cereal amarelo.
Os outros observavam Francisco com curiosidade. Quem era aquele, nobre entre os nobres, que trabalhava como um camponês e parecia gostar do que fazia? Vários rapazes sussurravam comentários desagradáveis. Eu próprio ouvi Felipe González pôr em dúvida as origens nobres de Francisco.
- Se calhar, - disse Felipe - o pai dele era algum trabalhador do campo que frequentava os aposentos da Baronesa enquanto o marido dela andava por fora.
Porém, com o passar do tempo, foi como se a energia de Francisco contagiasse os outros frades. E todos nós acabámos por lhe seguir o exemplo. No primeiro Verão que Francisco passou no mosteiro, registou-se uma colheita nunca antes atingida de cevada e trigo.
Ao contrário da maioria dos nossos noviços, Francisco já sabia ler e escrever quando chegou a Santes Creus. Por isso pôde tirar partido da excelente colecção de livros do mosteiro. Nas duas horas que passava na biblioteca depois da Missa, Francisco enterrava a cabeça no manuscrito de algum obscuro santo cristão. Tinha sempre o polegar sujo de tinta preta, de virar as páginas. Concentrava-se tanto que nem parecia ouvir os sinos a chamar para a sexta, e tinha de ser o bibliotecário a bater-lhe no ombro quando já quase todos os rapazes tinham saído para o serviço do meio-dia.
Durante o dia, os frades observam a proibição de conversas frívolas que a Ordem impõe. Conforme está escrito, numa torrente de palavras não se pode evitar o pecado. A proibição é levantada durante um quarto de hora por dia. Os monges e os irmãos leigos reúnem-se no parlatório para falar do que muito bem entendem. Invariavelmente, juntam-se os mesmos pequenos grupos. Parece haver uma hierarquia a dominar estes ajuntamentos. Os monges têm em atenção o estatuto social da família de cada um dos participantes, de maneira que os membros da mais alta nobreza só se encontram uns com os outros. Felipe González rodeava-se de um grupo de quatro monges, filhos das mais ricas e poderosas famílias de Barcelona. Auto-denominavam-se os jovens leões. Alfredo Marti liderava uma facção rival mas igualmente prestigiosa, cujos membros eram oriundos dos territórios do norte. Os restantes irmãos formavam grupos idênticos, mas menos ilustres.
Dado o destacado estatuto da sua família, a chegada de Francisco ameaçava fazer perigar o equilíbrio entre facções. Estávamos todos ansiosos por ver a qual dos grupos ele iria aderir: o de Felipe ou o de Alfredo. Considerando que Monteada ficava perto de Barcelona, a maioria dos monges era de opinião que Francisco optaria pelo grupo de Felipe.
Felipe abordou Francisco duas semanas depois de ele chegar.
- Francisco de Monteada, - disse Felipe - convidamos-vos a fazer parte dos jovens leões.
Francisco levantou os olhos. Sorriu para Felipe, com a mesma expressão irónica que tinha no rosto durante a entrevista com o Abade Pedro. O parlatório remeteu-se ao silêncio, com todos os irmãos suspensos da resposta que Francisco iria dar.
- Obrigado, Felipe, - respondeu Francisco - sinto-me muito honrado com o convite. Mas prefiro a aragem que corre deste lado do parlatório.
Felipe ficou pálido, de queixo caído, como se tivesse acabado de saber que a sua família era descendente de servos. Aquilo era uma espécie de humilhação para Felipe, que quando retirou para o outro extremo do parlatório até parecia que tinha, de repente, perdido a força nas pernas.
Francisco foi então motivo de muitas conversas no parlatório, e nem todas elogiosas. Houve quem achasse que a recusa de Francisco ao convite de Felipe era demonstrativa de uma profunda arrogância.
- Se calhar - ouvi um dos jovens leões comentar - o jovem Monteada acha-se superior a nós. Vamos a ver como é que ele se desenvencilha sozinho.
A verdade é que Francisco se desenvencilhou muito bem. Com o tempo, a generalidade dos mancebos ganhou um respeito relutante, ou mesmo admiração, por Francisco e pela sua independência. Não era só pelo nome de família, embora houvesse claramente quem não visse mais do que isso. No seu sorriso sereno, na inclinação da cabeça, na leve inflexão da voz, Francisco denotava uma admirável dignidade, uma postura que o distinguia dos colegas - e dos próprios superiores. Tinha-se a impressão de que toda a gente compreendia tacitamente que Francisco era diferente, que estava fadado para se colocar acima das intrigas do parlatório e das mesquinhas controvérsias entre a nossa nobreza catalã. Francisco não fazia o mínimo esforço para agradar ao Abade ou para se envolver nas maquinações em que se forjavam as poderosas alianças entre famílias, que perduravam muito para além do momento em que os mancebos deixavam o mosteiro para assumir prelaturas ou baronatos. Parecia indiferente à solicitude do Abade e imune à bajulação dos impostores interessados em cair nas boas graças de um Monteada. Resistia ao futuro confortável que toda a gente parecia apostada em destinar-lhe. Estava, em suma, fadado para cometimentos maiores. Para isso ou, simplesmente, para sofrimentos maiores.
A minha amizade com Francisco começou no parlatório. Nem todos os irmãos se encaixavam numa das facções que se tinham formado. Por ciúmes da posição que eu ocupava como assistente do Abade ou pelas cir- cunstâncias invulgares do meu nascimento, os outros irmãos, excluíam-me dos seus círculos de conversa.
Talvez valha a pena acrescentar mais uma nota explicativa. Antes de iniciar o meu noviciado, fui criado do mosteiro. Como o leitor pode imaginar, vivem no nosso seio vários habitantes locais. Os mais diligentes adquiriram o estatuto de irmãos leigos. É uma prova da humildade cisterciense o facto de os monges considerarem irmãos estes camponeses analfabetos e toscos. Embora aos irmãos leigos não seja permitido participar nos oito ofícios, a obra de Deus, o Abade Pedro autoriza-os a celebrar Missa com os monges. Os menos aptos para as tarefas espirituais, incluindo as mulheres, vão para criados, a quem cabe executar a generalidade dos trabalhos subalternos do mosteiro.
A minha mãe era criada no mosteiro. Tinha treze anos e era solteira quando eu vim ao mundo. E claro que escondeu a gravidez por baixo do balandrau de lã. Deu à luz e abandonou o recém-nascido no estábulo, antes de fugir. No mosteiro, nunca mais ninguém soube dela.
Era convicção geral que o meu pai era Lucas Sierra de Manresa, um jovem monge que de forma abrupta e inesperada tinha desaparecido do mosteiro semanas antes do meu nascimento. Com base neste pressuposto, baptizaram-me Lucas de Santes Creus. Mas sempre desconfiei que o Irmão Sierra tinha servido de oportuno bode expiatório e que o meu verdadeiro pai era um homem de origens muito menos humildes, talvez um dignitário de visita ao mosteiro, ou mesmo um bispo. De outro modo, como se explicaria o meu precoce desenvolvimento e a protecção do Abade Pedro?
Estou mesmo convencido de que o Abade Pedro conhece a verdadeira identidade do meu pai. Disse-me uma vez que eu tinha os olhos negros do meu pai.
- Lucas Sierra tinha olhos negros? - perguntei eu.
- Lucas quê? - respondeu ele.
Dadas as circunstâncias infelizes que rodearam o meu nascimento, fui obrigado a viver com os outros criados até à idade de nove anos. Penso que é interessante salientar que nunca me senti à vontade no meio dos criados, e também não me parece que eles me vissem como um dos seus. Mesmo os criados mais velhos pareciam tratar-me com uma distância consentânea com o tratamento que era devido, nas circunstâncias, a alguém mais bem nascido. Por exemplo, enquanto os criados dormiam amontoados num magote esfarrapado em cima do chão de pedra da cozinha, para mim reservavam sempre um espaço separado, debaixo da mesa de trinchar.
Havia noites frias na cozinha. Ainda me lembro de acordar completamente destapado na noite escura do pino do Inverno. À espera de que o nascer do sol me trouxesse algum calor. A tentar soprar alguma vida para os dedos gelados. Na expectativa das migalhas de pão e dos restos da mesa dos monges que haveriam de apaziguar, mas só em parte, as dores que me atormentavam o estômago.
Até que, um dia, se deu um milagre. No dia em que eu fiz nove anos, o Abade Pedro chamou-me para noviço, o primeiro e único habitante local a tornar-se membro de pleno direito do mosteiro. O Abade Pedro apresentou-me aos outros monges durante a reunião na sala do capítulo. Eu estava ajoelhado ao lado dos mesmos rapazes a quem tinha servido a ceia na noite anterior. A lã parda do meu novo hábito era como seda que me acariciava a pele. As vestes tinham pouco uso, pois tinham sido de um monge falecido de doença no mês anterior. Mas tinha passado tão pouco tempo entre nós que a roupa estava praticamente nova. Como o dono anterior era substancialmente mais velho do que eu, o hábito ficava-me um bocado grande. Eu dobrava-lhe as mangas para cima com muito cuidado, para evitar as rugas desagradáveis que tantas vezes tinha visto nos hábitos dos outros monges.
No fim da leitura diária de um capítulo da Regra de São Bento, o Abade apresentou-me aos meus colegas.
- Recebemos Lucas - disse ele - como um pai receberia um filho transviado de regresso ao redil.
O Abade descreveu a minha admissão como um acto de expiação pelos pecados do passado e um símbolo do espírito de clemência que dominava o mosteiro. Eu estava grato pela oportunidade que me era dada de ocupar o lugar a que sabia ter direito na constelação do universo de Deus, e estava firmemente determinado a provar a bondade da decisão do Abade.
Mas já estou a desviar-me do meu propósito. O presente manuscrito propõe-se apresentar um mapa da alma de Francisco, uma descrição das suas lutas espirituais, não um relato dos feitos de um dos humildes servos de Deus, isto é, eu. A minha amizade com Francisco começou no parlatório. Acho que Francisco reconheceu na minha personalidade uma nobreza inata e apreciou os meus dotes de exímio conversador. De resto, foi ele que começou as nossas conversas. Lembro-me da primeira observação que ele fez: - Acho, Irmão Lucas, que o hábito vos fica um bocado grande. - Dito isto, sorriu.
Em breve os longos e penosos minutos passados no parlatório se tinham transformado em algo de muito diferente - um período que eu esperava com ansiedade - uma oportunidade de conversar com o meu amigo, aliás o meu único amigo. Além do Abade Pedro, meu benfeitor. Ao longo do primeiro ano que Francisco passou no mosteiro, a nossa relação evoluiu no sentido de um profundo respeito mútuo e de uma forte ligação espiritual. O único obstáculo era a tendência de outros membros para se imiscuírem nas nossas conversas privadas. Às vezes, sem querer, Francisco suscitava a participação de outros irmãos que não pertenciam a uma facção específica. Havia alturas em que Francisco dava mostras de grande ingenuidade. Dirigia um comentário impensado, avulso, a algum desses rejeitados, que se agarravam ao comentário como se fosse um convite para se juntar a nós. O nosso pequeno grupo de parlatório tinha certamente um ar heterogéneo.
Por coincidência, a enxerga de Francisco no dormitório ficava ao lado da minha. Pela nossa proximidade, eu e Francisco habituámo-nos à presença um do outro. Quando, no primeiro ano, Francisco foi passar a Páscoa com a família, dei comigo a sentir a sua falta. Ao acordar para as matinas, olhava para o contorno frio e liso do seu cobertor de lã e experimentava por momentos uma sensação de solidão no imenso mosteiro.
Na maior parte dos dias que passou no mosteiro, Francisco patenteou o espírito inefável que fazia dele um líder entre os nossos pares. Mas também houve períodos soturnos, em que nunca sorria e parecia perdido em outro mundo. Durante esses períodos, parecia que os seus olhos olhavam para dentro, fitos de uma maneira que eu não sei explicar. Durante esses períodos, todos os rapazes sentiam a sua ausência. Para mim, era como se o sol tivesse deixado de nascer.
Não sei se, durante esses períodos, Francisco preferia o isolamento ou se não tinha alternativa. Eu tentava em vão envolvê-lo nas conversas do parlatório ou trocar olhares com ele no claustro. Quando não me ignorava, mostrava-se frio e distante. Logo quando mais precisava da minha amizade, Francisco ficava manietado na sua própria solidão.
A princípio, eu pensava que aquele comportamento era uma coisa pessoal em relação a mim. Sentia-me ferido pela sua distância. Com o tempo, fui percebendo que aquele comportamento soturno nada tinha a ver comigo - que uma força maior se tinha apossado dele.
Que força maior era essa? Quem, além de Deus Nosso Senhor, pode ver o que vai na alma de uma pessoa e dar resposta a esta pergunta? Ciente disto, direi humildemente que penso que Francisco lutava para emergir das trevas que lhe tinham envolvido a alma no dia da morte do irmão. Era uma luta feroz e, por vezes, parecia que ele ia perdê-la. Preocupavam-me muito as crises de Francisco, que chegavam a durar uma semana, às vezes várias semanas. Dava a ideia de que sofria desnecessariamente. Durante um dos seus acessos mais prolongados, falei no assunto ao Irmão Juan, na capela. A seguir ao Abade, o Irmão Juan era o monge mais qualificado do mosteiro. Ocupava havia mais de vinte anos essa posição, mas nunca iria além dela. Era extremamente escuro e quase toda a gente alimentava a suspeita de que era descendente de uma família de muçulmanos convertidos na altura em que Toledo fora conquistada aos infiéis.
Tudo indicava que o Irmão Juan tinha um relacionamento especial, quase paternal, com Francisco. Francisco escolhera o Irmão Juan para seu confessor e falava sempre dele com profundo respeito. Nos períodos mais negros de Francisco, era frequente ver o Irmão Juan sentado a seu lado durante as horas de silêncio que passávamos no claustro. "Uma comunhão de muda tristeza" era como o Abade Pedro se referia à relação entre os dois.
- Lucas, - disse o Irmão Juan em resposta às preocupações por mim manifestadas - não vos preocupeis com Francisco. Da mesma forma que o Inverno dá lugar à Primavera, também os demónios irão deixar Francisco em paz.
Senti-me muito aliviado e agradeci ao Irmão Juan as suas palavras sensatas. Quando eu ia a virar costas, ele disse em voz baixa:
- Lucas, tendes reparado se, ultimamente, o Abade Pedro passa mais tempo com os criados? Ou melhor, com as criadas?
Eu tive uma hesitação, apanhado desprevenido pela pergunta do Irmão Juan. Ele baixou os olhos sem me dar tempo de responder.
O Irmão Juan tinha razão quanto aos demónios de Francisco. As trevas acabariam por se dissipar. A nuvem da melancolia acabaria sempre por se desfazer, e ele voltaria para o convívio comigo. Isto é, retomaria o lugar que era o seu no mosteiro.
Durante as nossas refeições, observávamos a Regra - o que quer dizer que comíamos sem falar, concentrados na comida, dádiva de Deus, e na Sua Palavra, lida por um dos irmãos. Cada um dos cinquenta monges de Santes Creus lia durante uma semana inteira por ano. Eu sentia-me sempre um tanto nervoso nos dias que precediam a minha vez de fazer a leitura. Era muito embaraçoso cometer uma falha de oratória - um erro de dicção ou de pronúncia diante do Abade e dos demais irmãos. Mais de um erro e o irmão prevaricador sentiria nessa mesma noite a vergastada afiada da vara nas costas nuas.
Francisco subiu os degraus de mármore de acesso ao púlpito no primeiro Domingo do Advento. Deu as graças costumeiras. Antes de ler a passagem escolhida das Escrituras em latim, Francisco pronunciou uma mensagem especial em catalão.
- Quero exprimir o meu agradecimento ao Abade Pedro, - disse Francisco - pela solicitude que devota a todas as pessoas que tem a seu cargo, em especial às criadas.
Vários monges trocaram entre si olhares furtivos. Eu levantei os olhos para o Abade enquanto Francisco dava início à leitura das Escrituras. O Abade olhava fixamente para Francisco com uma expressão de perplexidade e compaixão.
Circulavam boatos sobre a confraternização do Abade Pedro com as criadas. De facto, o Abade Pedro considerava que as raparigas eram ovelhas do seu rebanho, e como tal tinham direito ao seu ministério. Como a Ordem proibia a entrada de mulheres em quase todas as partes do mosteiro, o Abade não tinha outra alternativa que não fosse tomar providências especiais que lhe permitissem ministrar-lhes a devida orientação espiritual.
Várias semanas depois de Francisco ter feito a sua infeliz observação, eu vi-o passar serões a afeiçoar um calço triangular de madeira.
- Para que é o calço? - perguntei a Francisco no parlatório.
- É um presente para o Abade - respondeu.
Na altura fiquei espantado, porque achava que Francisco não tinha o devido respeito por um homem da posição do Abade Pedro. E pensei que talvez ele tivesse reconhecido o erro do seu comportamento. Ou talvez a sua oração no refeitório não contivesse a sinistra insinuação que alguns dos meus colegas lhe tinham atribuído.
Um certo Domingo, antes da ceia, Francisco serviu-se do calço para encravar a porta da despensa, entalando-o por baixo da dobradiça. Foi chamar-me à minha cela, onde eu estava a rezar, dizendo-me que o Abade tinha ficado fechado na despensa e que eu tinha de ir imediatamente chamar o Irmão Juan. Eu fui à cela do Irmão Juan e, de afogadilho, expliquei-lhe a situação tal como a imaginava.
Quando eu e o Irmão Juan lá chegámos, já Francisco e outros rapazes tentavam com um arame fino forçar a abertura da porta. Lembro-me de ter ouvido Francisco chamar várias vezes pelo Abade Pedro.
- Estais a ouvir-nos, Abade Pedro? - perguntava Francisco. - Estais bem? Não tenhais medo, Abade Pedro. Tende fé, Abade Pedro. Nós tiramos-vos daí, não tarda nada.
O Abade não respondia. Quando, finalmente, se abriu a porta, a nossa celebração de vitória foi sol de pouca dura. Eu vi o calço que Francisco andara a fazer cair no chão e percebi a razão pela qual a porta não abria. Antes que tivesse oportunidade de interpelar Francisco, olhei e vi o Abade Pedro em pé, hirto, de expressão petrificada. O Abade declarou que tinha estado a aconselhar úma das criadas num assunto de família de particular dificuldade. E retirou-se para os seus aposentos.
Todos nós ficamos perplexos com o comportamento do Abade, e o mistério ainda mais se adensou quando o Irmão Juan entrou na despensa e de lá trouxe Noelle. Soluçava baixinho, ajoelhada na pedra molhada atrás das talhas de água da chuva. Todos nós seguimos o Irmão Juan, que a transportava nos braços como uma criança, numa procissão silenciosa até ao pátio. Aí, sentou-a num banco de pedra e mandou Francisco ir buscar um pano molhado para lhe pôr na testa. Francisco rasgou uma tira do seu próprio hábito e mergulhou-a na cisterna. Depois sentou-se no banco ao lado de Noelle e comprimiu-lhe firmemente o pano contra a testa. Ela tombou para cima do ombro dele. Francisco passou-lhe o outro braço à volta da cintura e embalou-a docemente, enquanto o Irmão Juan murmurava uma oração.
Noelle era filha de Álvaro, camponês rendeiro de terras que eram propriedade do mosteiro. A dívida cada vez maior de Álvaro para com o mosteiro era motivo de graçolas entre os monges. Todos os meses ele chegava, de chapéu na mão, e explicava ao Abade que não podia fornecer ao mosteiro as quantidades de cereais a que estava obrigado. Na minha qualidade de assistente do Abade, assisti a muitos desses episódios. A chuva que não veio, a colheita que secou, os caçadores que pisaram as espigas, os demónios vindos de debaixo da terra para roubar a safra - as desculpas de Álvaro eram cada vez mais fantasiosas. Toda a gente sabia qual era a verdadeira razão do incumprimento - ele era um bêbado incorrigível e uma total negação para a ciência da agricultura.
Quando abrimos a porta da despensa, tanto o Abade como Noelle estavam completamente vestidos. Mas as dúvidas e as especulações tornaram-se inevitáveis, nomeadamente tendo em conta a vulnerável situação financeira de Álvaro e o local inverosímil da sessão de aconselhamento. Apesar das conversas maliciosas havidas entre alguns dos meus irmãos, eu tenho fé em que o Abade, meu mentor e patrono, tenha estado mesmo, e só, a dar conselhos a Noelle e se manteve fiel aos seus votos de homem de Deus. Ou melhor, tenho mesmo a certeza.
Seja como for, nem a minha opinião nem a de nenhum outro membro do mosteiro têm qualquer importância. O Abade fala em nome de Cristo, e não há homem nenhum que tenha o direito de julgar Cristo. Como escreveu São Bento, o primeiro passo para a humildade é a obediência sem hesitações. O fiel tem de suportar tudo, incluindo a contradição, incluindo a injustiça, em nome do Senhor.
Dias depois do incidente, o Abade Pedro informou-me de que Francisco estava em "rebelião espiritual".
Na altura, eu estava a escovar os fiapos das vestes do Abade.
- Abade Pedro, - perguntei - Francisco está em rebelião contra o Senhor ou contra vós?
Acho que o Abade Pedro interpretou a minha pergunta como uma contestação ao seu diagnóstico e não como aquilo que realmente era - uma tentativa de compreender o seu ponto de vista. As maçãs do rosto do Abade, cobertas das cicatrizes de um mal da adolescência, injectaram-se de sangue. Ele envolveu-me com o braço, com força, e beliscou-me o pescoço até fazer doer.
- Lucas - disse ele - às vezes fazes-me perder a paciência. A pedra sobre a qual São Pedro construiu a Igreja representa Cristo na Terra. Eu sou um mero servidor de Pedro. Quem se revolta contra mim revolta-se contra o Senhor. O melhor seria que o Francisco regressasse a Monteada para não perturbar ainda mais a serenidade do mosteiro.
- Mas, Abade Pedro - disse eu - há muitos rapazes que admiram o Francisco. Eu podia falar com ele. Ele é meu amigo.
- Amigo? - O Abade Pedro soltou uma gargalhada. - Ele tem é pena de ti, Lucas. Achas que o herdeiro da fortuna dos Monteada ia ser teu amigo?
Por muito letrado que fosse, havia coisas que o Abade Pedro não entendia.
Seguiu-se uma troca de correspondência com a família Monteada. Por carta, o Abade Pedro explicava que Francisco estava a passar em Santes Creus por "certas dificuldades" que melhor poderiam ser resolvidas em casa. O senescal da família Monteada respondeu, transmitindo a relutância dos pais em pôr assim termo antecipado ao compromisso do filho para com o Senhor.
- Afinal de contas - escrevia o senescal - Francisco já cumpriu dois terços do seu compromisso de três anos.
E o senescal sugeria uma medida susceptível de melhorar a situação. Propunha-se enviar para o mosteiro o primo direito de Francisco, Andrés Corrêa de Girona.
- Andrés - escrevia o senescal - tem uma influência benigna sobre o primo. Com certeza que vai ajudar Francisco a vencer as dificuldades.
Foram estas as circunstâncias que levaram o Abade Pedro a admitir Andrés Corrêa em Santes Creus como oblato. Andrés tinha dezoito anos, a idade de Francisco. O barbeiro cortou-lhe os compridos cabelos loiros antes de ele entrar no santuário, deixando-lhe os caracóis amarelos ceifados, pisados e espalhados pelo chão à entrada da igreja. Andrés era enorme, largo de ombros, quase uma cabeça mais alto que os outros monges. Direito como uma estaca, nem sequer tinha o bom senso de se curvar, por pouco que fosse, para desviar as atenções da sua estatura invulgar. Fazia lembrar um dos blocos de pedra que servem de alicerces a um mosteiro. Em suma, Andrés ocupava demasiado espaço.
Além do mais, uma queixada possante e umas sobrancelhas que se juntavam mesmo por cima do nariz davam ao Andrés ar de tudo menos de pessoa erudita. Muitos rapazes referiam-se a ele como o "soldado", alcunha que lhe advinha não só da aparência mas também do feitio violento, característica que se tornara evidente quando ainda não tinha passado uma semana sobre a sua chegada.
Tínhamos acabado de nos deitar depois das completas. A voz de Felipe González rasgou o silêncio do corredor.
- Chegaram a encontrar o corpo do teu irmão, Francisco?
Felipe e vários outros jovens leões riram-se. Francisco fitava as tábuas de madeira do tecto como se não tivesse ouvido a pergunta.
Suponho que Felipe nunca terá perdoado a Francisco a nega que este lhe deu no parlatório. Antes tivesse. Andrés pôs-se em pé e passou por mim com ar displicente, como quem vai satisfazer uma necessidade. Quando chegou ao pé de Felipe, a galhofa parou. Andrés inclinou-se e pegou em Felipe como quem pega num saco de cevada, com uma mão na corda da cintura e a outra a segurar-lhe o hábito. Acto contínuo, atirou Felipe pela janela do segundo andar e regressou calmamente à sua enxerga.
Por incrível que pareça, Felipe foi aterrar num monte de estrume e não se magoou muito - apenas uns cortes e uns arranhões. Escusado será dizer que o acto de Andrés, o seu comportamento, era incompatível com os princípios da vida monástica. O Abade Pedro tomou medidas severas contra o prevaricador, anunciando na manhã seguinte, na sala do capítulo, a sentença de André - vinte e cinco chibatadas e uma semana na prisão do mosteiro. Era uma pena severa, mas o Abade Pedro, agia por compaixão para com o réu. Como escreveu São Bento, tal homem é entregue para destruição da sua carne, para que o seu espírito se possa salvar no dia do Senhor.
Nesse mesmo dia, depois da sexta, fui para os aposentos do Abade Pedro, como sempre faço, para cumprir as minhas funções de seu assistente. O Abade folheava um manuscrito de aquisição recente enquanto eu lhe rapava a coroa. Francisco falou da sombra do canto da sala.
- Referistes-vos à generosidade da minha família no dia em que eu cheguei ao mosteiro. - Eu fui de tal modo apanhado de surpresa pela presença de Francisco que a minha mão deixou escapar a navalha, que fez um golpe na testa do Abade Pedro. O Abade deu-me uma grande bofetada na cara. Eu tive de inclinar a cabeça para trás para estancar o sangue que me jorrava do nariz.
- Um dia - prosseguiu Francisco - serei Barão de Monteada e terei a responsabilidade de tomar decisões sobre as doações da família. - Francisco andava de um lado para o outro diante da mesa do Abade Pedro. Pegou numa moeda de ouro, atirou-a ao ar e apanhou-a na palma da mão aberta. - O meu primo Andrés é-me muito querido. Se ele sofrer, a minha opinião sobre os cistercienses vai necessariamente sofrer com isso.
No dia seguinte, na nossa reunião de capítulo, o Abade Pedro anunciou que Andrés se tinha declarado sinceramente arrependido do seu acto e que, nessa conformidade, se tornava desnecessário aplicar-lhe o castigo corporal. Além disso, a pena de prisão seria reduzida a três dias. Os jovens leões rosnaram sons de reprovação. Felipe, em particular, ficou profundamente irritado por ver o seu agressor tratado com tanta benevolência.
Também a mim o episódio me deixou perturbado, mas por outra razão. Nunca até então Francisco tinha invocado a riqueza da família. Nunca se tinha servido do nome que tinha para obter uma vantagem ou um tratamento de favor. O causador de tal mudança era Andrés. Ao contrário do que afiançava o senescal da família Monteada, Andrés não tinha uma influência benigna, mas antes nociva, sobre Francisco. Aliás, não era fácil perceber em que assentava a amizade que os unia, para além dos laços familiares. A meu ver, faltava a Andrés a profundidade espiritual e a capacidade intelectual que justificassem tê-lo por companheiro. Era praticamente analfabeto.
E no entanto, em especial no parlatório, Francisco concentrava por vezes as suas atenções no primo, em detrimento dos seus verdadeiros amigos.
Muitas vezes me perguntei se Francisco teria feito o mesmo por mim - se teria agido ao arrepio da sua maneira de ser para me poupar às chicotadas. Ainda hoje me pergunto o mesmo, de vez em quando.
Um dos irmãos leigos descobriu Noelle quando regressava do campo. Tinham-lhe atirado o corpo para a cisterna. Coisa horrível de se ver, o cadáver nu coberto de marcas de violência, ainda a sangrar das partes, os olhos castanhos fitos, parados, em frente, numa expressão de súplica.
Nessa tarde, no parlatório, ninguém falou. Nem uma palavra se ouviu. Nem uma.
Na nossa reunião diária na sala do capítulo, o Abade Pedro rompeu em soluços enquanto lia passagens da Regra.
- Olhai para a obra do demónio, - disse ele. - Olhai o que ele fez aos meus filhos.
O Irmão Juan murmurava entre dentes enquanto o Abade falava.
- Irmão Juan, se tendes palavras de consolação, - disse o Abade - partilhai-as connosco.
- Vós... vós... - tartamudeou o Irmão Juan.
- Falai mais claro, Irmão Juan, - disse o Abade - assim ninguém entende o vosso palavreado.
- Eu podia ter feito alguma coisa - conseguiu o Irmão Juan dizer. - Podia ter evitado isto.
Três dias depois da descoberta do corpo de Noelle, o Irmão Juan enforcou-se no refeitório. O Abade Pedro disse que o Irmão Juan, como suicida que era, iria passar a eternidade no inferno. Como tal, não podia ser sepultado ao pé dos outros monges no cemitério do mosteiro, ao lado da enfermaria. O Abade Pedro entregou-me umas moedas e mandou-me dá-las a um dos camponeses para este levar o corpo para longe.
Nessa tarde, antes do jantar, o Abade Pedro declarou que o acto do Irmão Juan valia como uma confissão de homicídio. Que o Irmão Juan tinha estado quase a confessar na reunião de capítulo a seguir ao assassinato de Noelle, mas se tinha refreado no último momento.
- É o resultado do pecado - disse o Abade Pedro de braços estendidos, olhos negros afogueados. - E a justiça do Nosso Salvador. E o destino dos condenados.
Foi um período terrível em Santes Creus. Até o pão sabia a sangue.
Só o Abade parecia incólume aos horríveis acontecimentos. Parecia mesmo revigorado pelas tragédias. Rezava com um fervor inquebrantável e pronunciava os sermões com uma convicção apaixonada. Mantinha-me ocupado na transcrição de numerosas missivas dirigidas a membros da Coroa e do Clero. Nelas, o Abade pedia fundos para construir um segundo andar de celas monásticas à volta do claustro. Tal acrescento, dizia o Abade, demostraria ao seu rebanho que nem a perfídia do diabo seria capaz de travar o ardor dos fiéis.
No quarto dia da Quaresma, estava eu a assentar a navalha para o barbear semanal do Abade Pedro. A lâmina cofiava ao de leve a tosca correia de cabedal. Bateram à porta. Fiz menção de ir abri-la, mas ela abriu-se antes de eu lá chegar. Francisco e Andrés entraram de rompante.
- Francisco e Andrés, - disse o Abade Pedro - devíeis estar na capela. Acho melhor irdes para lá, e depressa. E tu, Lucas, palerma, vê se me tratas da tonsura. Tenho hoje um dia muito ocupado.
Eu fui pôr-me atrás da cadeira do Abade e atei-lhe um pano de algodão à volta do pescoço, para não lhe sujar as vestes. O Abade fechou os olhos e eu comecei a cortar-lhe com muito cuidado os cabelos curtos no alto da cabeça. Francisco e Andrés deixaram-se ficar. De pé no meio da sala, olhares frios pousados no Abade.
- Não ouvi passos de saída dos meus aposentos - disse o Abade, sem abrir os olhos. - Andrés, já escapastes às chibatadas uma vez - e por pouco. Se eu fosse a vós não voltava a experimentar a qualidade da minha clemência.
- Estamos aqui - disse Francisco - para falar da morte da criada Noelle.
- Esse assunto está encerrado - disse o Abade. - O Irmão Juan confessou-se culpado. Tendes alguma informação nova que lance luz sobre as relações do Irmão Juan com o mal? Ou porventura o nome de algum cúmplice?
- Sim, Abade Pedro - disse Francisco. - Tenho informações vitais. Tenho a certeza de que o Irmão Juan nunca fez mal à rapariga.
- Ah sim? - disse o Abade Pedro, endireitando-se na cadeira. - Então dizei-me, por favor, como é que sabeis isso?
- Porque - disse Francisco - eu conhecia o Irmão Juan.
- Ora aí está uma coisa que eu, Francisco - retorquiu o Abade - se estivesse no vosso lugar, esquecia depressa, não vá levantar-se o dedo da
suspeita na vossa direcção. Até porque eu estou cá desconfiado de que o Irmão Juan teve cúmplices. Em determinadas circunstâncias, quando os amigos se transformam em acusadores, até um Monteada pode arder na fogueira. Ou talvez só o primo.
- O Irmão Juan - disse Francisco - não matou a rapariga.
- É interessante - disse o Abade Pedro - saber que conheceis intimamente este assunto.
- Abade Pedro, - disse Andrés - Francisco contou-me o que se passou com a criada Noelle. A história da porta da despensa encravada.
- Talvez queirais explicar-vos, Abade Pedro - disse Francisco.
O Abade levantou-se lentamente. O sangue subia-lhe pelo pescoço e o rubor ia coagular-se nos sulcos das faces. Arrancou o pano de algodão e atirou-o ao chão. Brandiu um punho.
- Há dois anos que suporto a vossa arrogância, Francisco. Pensais que nunca tratei de rapazes insolentes como vós? Sei muito bem metê-los na ordem. A força, se for preciso. Com uma vara de ferro. Não quero saber qual é o vosso nome de família.
- Nós só queremos a verdade - disse Francisco.
- A verdade? - disse o Abade. - A verdade é que a rapariga de que falais era uma prostituta. Percebi isso a primeira vez que a vi. Enfeitiçava as pessoas. Despertava nelas o desejo carnal - a luxúria. A luxúria negra, infernal. E eu não vou tolerar tais demónios neste santuário. Estais a ouvir-me? Hei-de esmagar o demónio, tome ele a forma que tomar.
Devo dizer que o Abade Pedro tremia de raiva. Limpou os lábios que espumavam saliva e apoiou-se à borda da mesa para se equilibrar.
- E agora - disse - ponde-vos lá fora.
Mas Francisco e Andrés nem se mexeram. Eu continuava atrás da cadeira do Abade, de respiração suspensa e navalha na mão. Francisco olhou para mim com uma expressão amável. Com o olhar percorreu-me o braço até à mão. E à navalha. Ficou a olhar fixamente o brilho da lâmina metálica. Eu soltei um suspiro e deixei cair a navalha, que tilintou contra o chão de pedra.
- Lucas, - disse André - por favor deixa-nos sós. Eu e o meu primo temos um assunto particular a tratar com o Abade.
Eu olhei para Francisco. Ele fez um sorriso soturno e acenou-me com a cabeça, e eu encaminhei-me para a porta.
- Lucas, - disse o Abade Pedro - fica e acaba de me barbear a tonsura. Lucas, volta aqui.
Andrés fechou a porta nas minhas costas. Eu fui para a capela. Aliás, não me lembro de como lá cheguei. Estava a suar e a tremer. Devo ter rezado algumas cem Ave-Marias antes de ouvir os gritos de um criado, que descobriu o corpo do Abade. Tinha sangrado até à morte.
Disseram que o Abade Pedro se tinha castrado para não ceder às tentações da carne. O Arcebispo de Tarragona considerou que a morte do Abade não fora um suicídio mas sim um acto de "auto-martírio". O Abade Pedro, de acordo com o relatório oficial, usou a navalha não contra si próprio mas sim contra os agentes do demónio.
O Arcebispo apresentou uma petição ao Papa para que este canonizasse o Abade. Há quatro meses, vieram legados de Roma a Santes Creus para me entrevistar sobre outros milagres praticados pelo Abade. Disseram que iriam voltar. Não lhes falei na presença de Francisco e Andrés naquela tarde. Nunca disse a ninguém. Nunca.
E se a tua mão te ofender, corta-a. São estas as palavras exactas que se podem ler na cripta do Abade Pedro, palavras do Nosso Salvador. O túmulo está à porta do refeitório. Como o novo Abade, Alfonso de Barbera, explicava aos monges, a grande humildade que o Abade Pedro tinha em vida repete-se na morte. Os monges pisam-lhe a tumba várias vezes por dia, quando vão tomar as refeições.
O retrato do Abade está esculpido em marfim incrustado no chão de pedra. Envergando as suas melhores vestes, o Abade Pedro empunha o ceptro que simboliza a sua posição de autoridade suprema do mosteiro. Está a olhar para o lado e parece ter um esgar de dor. As mãos estão estrategicamente cruzadas à frente dos órgãos genitais, como que em homenagem ao acto cometido, ou talvez apenas para se proteger das pegadas de noviços apressados.
IRMÃO VIAL
Durante sete anos, não o vi. Mantive-me em Santes Creus e ascendi a prior do mosteiro, lugar logo abaixo do Abade. Sou o mais novo dos priores jamais nomeados para Santes Creus. Tenho potencial para subir ainda mais. O Abade Alfonso refere-se muitas vezes a mim como seu sucessor.
De tempos a tempos, fui tendo notícias de Francisco. A Igreja não perde de vista os seus benfeitores e respectivos herdeiros. Soube que ele tinha ido na cruzada do Rei, há seis anos. Depois de os reis de Espanha terem expulsado os infiéis de quase toda a Península Ibérica, o Rei Jaime resolveu concentrar na Terra Santa o seu poderio militar. Queria cruzar o Mediterrâneo até ao Levante para correr com os infiéis de Jerusalém. Cavaleiros do Hospital, Cavaleiros do Templo e Cavaleiros de Calatrava - a Ordem a que Francisco pertencia - juntaram-se à armada cristã. Às vezes vêm-me as lágrimas aos olhos quando penso nos bravos cavaleiros que tomam a Cruz, que sacrificam tudo para pôr cobro à profanação - dos filhos do diabo que pisam e maculam o chão sagrado pelo qual Cristo carregou a Sua Cruz.
Desde a partida das forças do Rei Jaime, rezei todos os dias pela segurança de Francisco. Todos os dias, até ao dia do anúncio do Abade Alfonso na sala do capítulo.
- Recebi notícia de que os vossos antigos irmãos Francisco de Monteada e Andrés de Girona foram mortos durante o cerco muçulmano ao Krak des Chevaliers. Morreram ao serviço de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aleluia. Peço-vos que continueis a rezar por eles. Temos algumas questões administrativas a tratar antes de passar à leitura da Regra. Irmão Lucas, quereis explicar as novas normas respeitantes à recepção de visitas?
Disse isto assim, com a maior naturalidade, como se estivesse a anunciar a colheita do mês. A notícia atingiu-me como uma marretada. Não conseguia falar. Faltava-me o ar. Aliás, a reunião do capítulo teve de ser interrompida durante vários minutos para que eu recuperasse o fôlego.
Há um ano, o Abade recebeu a informação de que Francisco estava vivo.
- Francisco não foi morto - disse o Abade Alfonso - mas sim capturado vivo e mantido na prisão pelos infiéis durante dois anos. Chegou há meses, de barco. Lamentavelmente, a família Monteada não tem razão para se regozijar. Francisco está possuído pelos demónios. Eu não estou sempre a avisar-vos? Ninguém está a salvo, ninguém é imune às tentações. O demo conspira, maquina, negoceia a alma de cada um de vós. A família Monteada mandou Francisco para o mosteiro de Poblet, onde o Padre Adelmo, o famoso sacerdote italiano, irá fazer o exorcismo. Hoje vamos fazer a leitura do capítulo sessenta e oito da Regra de São Bento.
O Abade Alfonso, que passou quinze anos em Poblet, descreveu o Padre Adelmo como um homem que não tem medo de recorrer às mesmas medidas brutais que o seu adversário quando se trata de lutar por uma alma.
- O Padre Adelmo percebe - disse o Abade Alfonso - que há alturas em que é preciso falar com o diabo na língua dele.
Consta que o Padre Adelmo já exorcizou cem pessoas, a maioria das quais não sobreviveu, mas alcançou a salvação ao exalar o último suspiro. Uma vez exorcizou vinte e cinco homens na vizinha Sabadell, entregues às chamas do Senhor na praça da cidade.
Com o devido respeito, ou mesmo reverência, pelo Padre Adelmo e seus êxitos, eu tinha a forte convicção de que um método diferente, eventualmente mais suave, seria mais adequado para o caso de Francisco. Nos últimos dois anos, aprendi muito sobre as técnicas de exorcismo. O meu professor, o Irmão Vial, não é um monge qualquer. Passou oito anos em cruzada, a lutar contra os infiéis. Regressou à sua propriedade nas províncias do norte de Aragão, mas ao fim de um ano tomou o hábito e doou à Igreja todas as suas propriedades e os seus bens de fortuna. Como tinha fama de ser um dos mais ferozes soldados de Deus, o Arcebispo Sancho de Tarragona, primo e amigo pessoal do Irmão Vial, ofereceu-lhe o lugar de Bispo de San Victorián. O Irmão Vial declinou a oferta. Então o Arcebispo ofereceu ao Irmão Vial o lugar de Abade do mosteiro de Montserrat. Voltou a declinar. A única coisa que queria era o hábito de monge, viver os anos que lhe restavam na pobreza e humildade em que Cristo tinha vivido.
Veio para Santes Creus há dois anos. Pouco depois da chegada do Irmão Vial, uma rapariga do campo lançou um mau olhado à vizinha grávida, provocando-lhe um aborto. Elementos da família da vítima testemunharam perante o tribunal do Abade que tinham visto a acusada pôr a mão sobre a barriga inchada, poucas horas antes da trágica ocorrência. O Abade Alfonso concluiu que a rapariga era uma emissária de Satanás e era responsável pela vaga de mortalidade infantil que assolava a população da aldeia. Como não havia em Santes Creus nenhum monge com prática de exorcismo, o Abade Alfonso resolveu remeter a rapariga para o Padre Adelmo, em Poblet.
A rapariga ia ajoelhada dentro de uma carroça puxada por mulas, atada às tábuas da frente, atacada à pedrada e à paulada pelos seus antigos vizinhos, quando o Irmão Vial surgiu de dentro da igreja. Avançou decididamente para a carroça e mandou os camponeses parar de atirar pedras. O Irmão Vial falava como alguém que estava habituado a dar ordens e a vê-las obedecidas. De facto, vários camponeses já tinham pedras nas mãos, mas não as atiraram. A carroça deteve-se. O carroceiro e os outros aldeões olhavam com curiosidade para este novo monge, um homem grisalho, calvo e corpulento.
O Irmão Vial subiu para a carroça e procurou no meio do feno. Desatou a rapariga e, com o seu próprio hábito, limpou-lhe a cara ensanguentada. Depois pegou nela e levou-a para dentro da igreja.
Eu observei o Irmão Vial dos degraus da igreja. Passou muito perto de mim ao entrar na igreja, com a rapariga de cabeça aninhada nas pregas grossas do seu hábito. Ver uma fêmea poluir o sagrado santuário levou-me a seguir o Irmão Vial.
- Irmão, por favor - interpelei-o. Já tínhamos sido apresentados um ao outro, mas na confusão esqueci-me do nome dele. - As mulheres precisam de uma autorização especial do Abade para poder entrar na igreja. Por favor, Irmão, não sabeis o que estais a fazer.
A verdade é que o Irmão Vial sabia perfeitamente o que estava a fazer. Se ouviu as minhas palavras de prevenção, não fez caso delas. Continuou, entrou no pátio, deu a volta ao claustro e subiu as escadas até ao anexo vazio do segundo andar (a conclusão do segundo piso estava temporariamente suspensa, por falta de fundos). O Irmão Vial levou a rapariga para uma das celas vazias, onde a pousou no chão. Ela ficou sentada, imóvel, a um canto, com os braços no ar como quem se defende de alguma pedrada.
- Irmão Lucas, - disse o Irmão Vial, ofegante - ide buscar-me um banco, uma cópia das Escrituras, vinte folhas de pergaminho em branco, uma pena, seis pães frescos e duas canecas de vinho.
Como prior do mosteiro, eu estava acima do Irmão Vial. Mas nem me passou pela cabeça fazer-lhe perguntas. Fui buscar o que me ele pedia e voltei.
O banco era para o Irmão Vial se sentar. Deu o pão à rapariga. Ficou com o vinho para ele. E começou a ler as Escrituras.
Continuou a ler até ver que a rapariga tinha acalmado. Ela comeu dois pães e bebeu um gole de vinho da caneca do Irmão Vial, que lha ofereceu. Ao cair da noite, adormeceu.
Eu só tinha saído da cela o tempo necessário para satisfazer os pedidos do Irmão Vial. Quando ele se levantou do banco para sair, eu fiz menção de o questionar sobre as suas intenções. Mas o Irmão Vial levou os dedos aos lábios e apontou para a rapariga adormecida, e eu calei-me. Saí da cela atrás dele. E atrás dele desci as escadas e atravessei o pátio.
Tinha-se aglomerado no claustro um magote de monges. Cochichavam uns com os outros, de certeza discutindo o comportamento escandaloso do Irmão Vial. Calaram-se quando nós nos aproximámos, mas não tiravam os olhos do Irmão Vial.
Quando entrámos nos aposentos do Abade, este andava de um lado para o outro. Parou de repente, olhou para o Irmão Vial e depois para mim. Eu encolhi os ombros, hesitante.
- Irmão Vial, - disse o Abade Alfonso - sei que tendes muitos amigos importantes no reino e no clero. Sei que travastes muitas batalhas em nome de Jesus. Mas receio bem que ainda não tenhais percebido as normas em vigor em Santes Creus. O Abade é o pastor, o pai de todos os membros do mosteiro. É ele que os conduz ao Senhor. Nenhum monge, por muito ilustre que seja, pode desobedecer às suas ordens. Eu tomei a decisão de mandar a rapariga para Poblet para bem da sua alma imortal e da preservação do meu rebanho. Ela está possessa. Podeis ter a certeza de que o Padre Adelmo sabe lidar com casos como o dela. Há trinta anos que o padre italiano exorciza demónios por estas bandas.
- Abade Alfonso, - respondeu o Irmão Vial - eu conheço o Padre Adelmo, e na minha juventude assisti a um dos seus exorcismos, no domínio do meu pai. Purificação pelo fogo - um espectáculo arrepiante, mesmo para um soldado calejado como eu. Eu também já combati de perto o diabo. Conheço-lhe os truques e disfarces. Só vos peço uma semana, Abade Alfonso. Uma semana para curar a rapariga. Se, ao fim de uma semana, ela não estiver exorcizada, mandamo-la para Poblet, para o Padre Adelmo.
O Irmão Vial só precisou de quatro dias. Por ordem do Abade Alfonso, eu nunca deixei o Irmão Vial sozinho com a rapariga, a não ser para ir buscar comida e bebida quando o Irmão Vial me pedia. Pelo que vi, era um grande apreciador das uvas da vinha do mosteiro.
- Combater o diabo - disse o Irmão Vial - pode ser uma tarefa enfadonha, Lucas.
De facto, o Irmão Vial passava a maior parte do tempo a ler as Escrituras em voz alta e a cochilar.
- Nunca subestimeis - disse-me ele - a importância de uma boa sesta no calor da tarde, Irmão Lucas.
Quando não estava a ler, ou a dormir, o Irmão Vial conversava com a rapariga - sobre o trabalho dela, a família, os vizinhos. Pelos vistos, o pai da rapariga tinha uma questão antiga por causa da posse de um terreno com os vizinhos, precisamente a família da vítima.
Ao quarto dia, o Irmão Vial mandou chamar o pai da acusada e o da vítima. Reunimo-nos numa antecâmara reservada a visitas que não pertencessem ao clero. O Irmão Vial apresentou-se e mandou-os dividir equitativamente o terreno em disputa.
- Se houver alguma confusão ou desacordo quanto à divisão, - disse o Irmão Vial - o mosteiro confisca a propriedade. Alguma pergunta?
O Irmão Vial regressou à cela onde a rapariga dormia. Acordou-a e perguntou-lhe se renunciava a Satanás e seguia Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela pareceu assustada com o tom grave do Irmão Vial e não respondeu.
- Lucas, - disse o Irmão Vial - renunciais a Satanás e seguis Nosso Senhor Jesus Cristo?
- Sim - declarei eu, em tom enfático.
Ele repetiu a pergunta à rapariga, que respondeu afirmativamente.
Nessa noite falei com o Abade Alfonso sobre o exorcismo. Talvez tenha omitido alguns pormenores acessórios, entre os quais a reunião dos pais na antecâmara, mas confirmei a afirmação do Irmão Vial, de que a rapariga estava livre dos demónios. De facto, ela não voltou a lançar maus olhados desde o exorcismo feito pelo Irmão Vial.
Outros se seguiram. Depressa o Irmão Vial ganhou fama de temível adversário do diabo, talvez tão forte como o sacerdote italiano, o Padre Adelmo de Poblet. As técnicas de exorcismo do Irmão Vial têm a vantagem de uma baixa taxa de mortalidade, aliás uma mortalidade nula, circunstância que preocupa o Abade Alfonso.
- Receio, Irmão Lucas - disse o Abade Alfonso - que Tarragona reprove os métodos pouco ortodoxos do Irmão Vial. É preciso que a Igreja seja temida pelos seus fiéis. É natural que, durante a intensa luta espiritual, alguns dos possessos morram ou sofram mutilações definitivas. Talvez seja melhor vós falardes com o Irmão Vial.
Mas eu nunca toquei no assunto com o Irmão Vial, e pareceu-me que as apreensões do Abade se dissiparam quando o mosteiro recebeu uma arca de moedas do Arcebispo Sancho para a construção de um novo dormitório, destinado a acolher a avalancha de peregrinos que visitavam Santes Creus para receber a bênção do Irmão Vial.
No entanto, o Abade continua um tanto desconfiado em relação ao Irmão Vial e pediu-me que fosse seu supervisor. Embora nunca tenha dado a mínima instrução ao meu supervisado, assisto a todos os exorcismos, faltando a muitos ofícios diários para fazer um relato completo ao Abade Alfonso sobre as actividades do Irmão Vial. Aliás, é o Irmão Vial que me dá instrução a mim, mostrando-me as diversas técnicas que se podem usar para exorcizar demónios, uns mais resistentes que outros.
- A Palavra - diz ele muitas vezes - é a nossa melhor arma contra o diabo.
O Irmão Vial passa várias horas por dia a ler as Escrituras em voz alta aos seus pacientes. Além disso, conversa com eles sobre um vasto leque de assuntos. Umas vezes fala do tempo. Outras vezes ouve-os em confissão. Outras ainda, adopta uma estratégia mais frontal, perguntando ao possesso como foi que ele caiu nas garras do demónio. Nos casos mais renitentes, o Irmão Vial toma sempre notas abundantes, pedindo-me muitas vezes para ir buscar mais pergaminho, quando a sua provisão se aproxima do fim.
- Que estais a escrever? - perguntei eu, uma noite em que o Irmão Vial terminava uma sessão extenuante com uma mulher que tinha sufocado dois filhos e persistia em não se arrepender.
- Estou a transcrever a confissão dela - disse ele. - Quando leio as minhas notas, tento traçar o mapa da alma.
- Mapa da alma, Irmão Vial? - perguntei eu.
- Precisamos de um guia, Irmão Lucas, - disse ele - um mapa que nos ajude a navegar pela floresta escura da fragilidade humana - vaidade, ganância, orgulho e preconceito.
- E o mapa ajuda a revelar a verdadeira causa da possessão da pessoa? - perguntei eu.
- Ajuda, sim, Irmão Lucas, e ilumina o caminho que conduz à salvação.
- E encontrastes esse caminho no caso da criminosa? - perguntei eu.
- Neste caso particular, Lucas, receio que já seja demasiado tarde. Acho que a nossa paciente já se casou com o diabo. Nestes casos, não há hipótese de os separar.
Uma semana depois, o Irmão Vial deu instruções no sentido de se transferir a mulher para Poblet, ao cuidado do Padre Adelmo.
- Os meus métodos - explicou o Irmão Vial - nem sempre dão efeito, Lucas. Uma pessoa tem de reconhecer as suas limitações e tomar as medidas adequadas.
O caso acima referido é excepcional. O Irmão Vial conquistou um currículo impressionante na luta contra Satanás. De trinta e sete casos, o Irmão Vial conseguiu um exorcismo integral em trinta e dois. Transferiu duas pessoas para Poblet. Os três casos restantes ainda estão por resolver. Os pacientes recusam-se a renunciar a Satanás, mas o Irmão Vial ainda não perdeu as esperanças. Essas pessoas vivem no segundo piso do claustro, em celas separadas. Até agora, o Irmão Vial tem resistido a enviá-los ao Padre Adelmo, se bem que já tenha falado nessa possibilidade a duas dessas três pessoas. O Irmão Vial descreveu em pormenor o processo de purificação pelo fogo a uma das pessoas possessas - o som estridente dos gritos da vítima, o cheiro a carne queimada, os berros da multidão. Quando deixámos a cela, o Irmão Vial prognosticou que o homem iria em breve regressar ao Senhor. A ver vamos.
Em resumo, eu colaboro de perto com o Irmão Vial e tenho aprendido muito sobre a arte do exorcismo. Considero o Irmão Vial um amigo e um mentor. E penso que o Irmão Vial ganhou uma grande afeição por mim. Fala-me quase sempre sem formalismos e, apesar de as expressões frívolas de emoção estarem proibidas, sorri-me muitas vezes quando nos cruzamos no claustro.
A notícia de que o Padre Adelmo iria exorcizar Francisco deixou-me aterrado. Como diz o Irmão Vial, cada caso de exorcismo é um caso particular, e como tal deve ser tratado. Estou convencido de que os métodos do Irmão Vial seriam mais adequados à constituição sensível de Francisco. Expus francamente as minhas apreensões ao Irmão Vial, que pareceu intrigado com as recordações que eu tinha de Francisco. Falámos longamente do assunto.
- Irmão Lucas, - disse o Irmão Vial - quem tem jurisdição sobre Francisco é o Arcebispo Sancho de Tarragona. Só ele o pode transferir para Santes Creus, e só o fará se o Abade Alfonso fizer um pedido formal. Ide ter com o Abade Alfonso. Falai-lhe do vosso amigo. Depois perguntai-lhe se a transferência de Francisco para Santes Creus teria consequências para a distribuição de fundos entre os mosteiros cistercienses.
O Irmão Vial obrigou-me a repetir a pergunta antes de avançar para os aposentos do Abade. Fiz exactamente aquilo que o Irmão Vial me tinha sugerido, recitando textualmente a pergunta. O Abade Alfonso ouviu, coçando pensativamente o queixo.
- Adorava ver a cara do sacaninha - disse o Abade Alfonso - quando lhe retirarem de debaixo do nariz o herdeiro da família Monteada.
- A cara de quem? - perguntei.
O Abade Alfonso não respondeu, mas eu acho que se referia ao Abade Rodrigo de Poblet. Os dois vêem-se uma vez por ano na conferência dos abades de Cister. Mantêm uma forte relação de amizade, trocando saudações escritas por ocasião de todas as principais datas festivas.
O Abade Alfonso tratou logo de ditar uma carta ao Arcebispo Sancho, a pedir a transferência de Francisco. Mencionou o facto de, antes da sua partida para o Levante, Francisco ter passado três anos em Santes Creus.
- Não há dúvida - referia a carta - de que Francisco se iria sentir melhor num ambiente que lhe é familiar, no lugar onde passou aqueles que foram provavelmente os anos mais felizes e pacíficos da sua vida.
Nas semanas seguintes, dei comigo a trepar várias vezes por dia à torre sineira, perscrutando o horizonte à procura de um mensageiro de Tarragona. À medida que as semanas passavam sem uma resposta, parecia que a escuridão da noite se prolongava cada vez mais.
Ao fim de nove semanas, chegaram a Santes Creus dois soldados da guarda pessoal do Arcebispo. Eram portadores de uma curta mensagem de duas frases:
Ao estimado Abade Alfonso,
Sobre o assunto da vossa recente carta, vós e o Irmão Vial vireis a Tarragona imediatamente. Providenciei um carro coberto para vosso transporte e dois soldados para vossa protecção.
O Arcebispo Sancho de Tarragona, ao décimo segundo dia de Junho do Ano de Nosso Senhor de 1275.
Enquanto lia a carta dirigida ao Abade, senti-me invadido por uma onda de felicidade. Em breve iria ver a cara de Francisco. Em breve lhe iria ouvir a voz. O Abade Alfonso, com um sorriso largo, parecia igualmente satisfeito. Encarregou-me de levar a notícia ao Irmão Vial e de o informar de que os dois partiriam no dia seguinte para Tarragona.
Fui encontrar o Irmão Vial no claustro. Dei-lhe conta do que dizia a carta. Para minha surpresa, ele assumiu uma expressão solene. Pousou a mão no meu ombro.
- Vós ides viajar para Tarragona no meu lugar, Lucas - disse ele.
- Não percebo o que estais a dizer.
- Ides ser vós a fazer o exorcismo.
- Mas eu não tenho experiência.
- Não assististes a mais de trinta exorcismos feitos por mim?
- Assisti, - respondi eu - mas o caso de Francisco vai ser dificílimo. Além do mais, trata-se de um Monteada. O Abade Alfonso e o Arcebispo Sancho não iam deixar-me fazer o exorcismo.
- Eu falo com o Abade Alfonso - disse o Irmão Vial - e escrevo uma carta de apresentação para o Arcebispo Sancho.
- Receio bem, Irmão Vial, que a vossa carta não me prepare para tão ingente tarefa.
- Preparado já vós estais, Irmão Lucas. Passastes três anos com Francisco em Santes Creus.
- Não compreendo, Irmão Vial.
- Há muitos anos, - disse o Irmão Vial - na campanha da Síria, o meu adjunto Simon desapareceu do acampamento durante uma noite de tempestade. Duzentos soldados sob o meu comando, e nem um só tinha visto Simon partir. Mandei sair uma patrulha de busca durante a manhã, mas regressou algumas horas depois sem sinais de Simon.
- Nessa mesma tarde, um ancião de turbante árabe entrou no nosso acampamento - continuou o Irmão Vial. - Pediu para falar com o comandante, sobre um amigo comum. Os soldados levaram-no à minha presença. Eu estava sentado à entrada da minha tenda quando o vi aproximar-se. Pousou no chão, diante de mim, uma bola de seda branca. Eu peguei nela e desfiz o embrulho. Nas dobras da seda jazia um dedo, cortado de fresco, ainda a latejar. A princípio, pensei que o ancião era algum mercador que me quisesse vender uma relíquia de algum santo vivo. Mas ele disse que o dedo era de Simon. E que o próximo embrulho conteria a cabeça de Simon, se nós não depositássemos cinquenta dinares de ouro numa caverna ali próxima. Deu-nos três dias. Depois de conferenciar com os meus adjuntos, mandei uma companhia a Acre buscar as moedas.
- Ao fim de três dias, os meus homens não tinham regressado. Mandei um dos meus soldados à caverna de que o ancião tinha falado. Ia encarregado de pedir mais um dia, de garantir a entrega do tesouro dentro de mais vinte e quatro horas na condição de mais nada de mal acontecer a Simon.
- Na caverna, o meu mensageiro foi recebido por doze infiéis. O ancião que tinha ido ao nosso acampamento traduziu o pedido para os outros. Enquanto o meu mensageiro esperava, eles falavam e discutiam uns com os outros. Até que o tradutor disse que poupariam Simon por mais um dia.
- O dia nasceu sem qualquer notícia de Acre. Eu improvisei um plano para tentar salvar a vida de Simon. Imaginei que os doze muçulmanos que receberam o meu mensageiro talvez fossem a totalidade do contingente inimigo - um pequeno bando de ladrões e criminosos que vagueavam pelos campos. Iríamos tentar tirar partido da nossa superioridade numérica para os esmagar, começando por os atrair ao exterior do esconderijo para depois resgatar Simon pela força. Com este propósito em mente, mandei um mensageiro dizer aos infiéis que já tínhamos reunido o montante do resgate e combinar a troca para campo aberto a menos de meia milha do nosso acampamento. Frisei bem que só entregaríamos o ouro na altura em que os infiéis nos entregassem Simon.
- Os muçulmanos aceitaram as minhas condições, mas acrescentaram três da sua lavra - nós só podíamos levar cinco homens, e tínhamos de ir até ao ponto de encontro a pé e desarmados. As condições deles fizeram cair por terra o meu plano original. Mas não me deixavam alternativa que não fosse concordar com elas.
- Missão de alto risco, Lucas. Quando os infiéis percebessem que nós não levávamos o tesouro, iam tentar matar Simon e matar-nos a nós. E eram doze, contra os nossos cinco. Situação desfavorável para nós, agravada ainda pelas restantes condições.
Refiz o meu plano. Em vez de apostar na superioridade numérica, iríamos apostar na astúcia e na surpresa. Mandei os carpinteiros construir duas arcas de madeira. Em cada uma, metemos seis bestas. Mandei os meus artilheiros engatilhar uma flecha na câmara de cada besta. Assim, estariam prontas a disparar quando chegasse a altura. Doze flechas para doze infiéis.
Depois escolhi quatro homens para me acompanharem - quatro homens que estivessem a meu lado no campo de batalha. Quatro homens que não vacilassem nem recuassem perante tão perigosa missão. Sabeis quem escolhi?
- Os vossos melhores atiradores, não?
- Não, Irmão Lucas. Nem sequer os meus cavaleiros mais corajosos. Escolhi os melhores amigos de Simon - os que com ele tinham feito a viagem desde a província de Conflent, no noroeste da Catalunha. Estes homens tinham com Simon uma relação cimentada ao longo de muitos anos de treino e luta em conjunto. Não iam abandonar o amigo aos infiéis, mesmo na mais desfavorável das situações.
- Chegámos ao ponto de encontro com os nossos inimigos. Tínhamos o sol pelas costas, a bater nos olhos dos nossos adversários. íamos precisar de todas as vantagens que pudéssemos obter.
- O primeiro a chegar foi o ancião. Revistou-nos um a um, para se certificar de que estávamos desarmados. Depois mandou-me abrir as arcas e mostrar-lhe o tesouro. Eu respondi-lhe que ele podia ver o tesouro quando nós víssemos o Simon. Ele levantou um punho no ar e o seu bando de renegados aproximou-se, a cavalo. Simon, de olhos vendados, vinha no meio deles, a pé. Quando eles pararam diante de nós, eu fiz sinal aos meus homens para que abrissem as arcas. Sob os olhares atentos dos infiéis, dois dos meus camaradas fizeram menção de levantar as tampas das arcas, observando-se mutuamente. Tinham de agir em simultâneo. Mal os infiéis vissem as armas, matariam Simon e despejariam as suas flechas sobre nós. Os meus camaradas não esperaram pela minha ordem para atacar. Eu ia a meter as mãos na arca para tirar duas bestas quando ouvi o silvo de flechas a rasgar o ar e os gritos de dor dos nossos inimigos. Peguei em duas bestas, uma em cada braço, e disparei contra os dois muçulmanos que tinha pela frente. Acertei nos dois.
- O Simon deve ter ficado grato, Irmão Vial, - disse eu - surpreendido e grato.
- Não, Irmão Lucas - respondeu ele.
- Então ele já estava à espera de que fôsseis resgatá-lo? - perguntei eu.
- O Simon estava morto, Irmão Lucas.
- O vosso adjunto estava morto, Irmão Vial?
- No meio da confusão, era difícil distinguir entre amigos e inimigos. Um dos camaradas do Simon da província de Conflent atingiu-o no peito. A besta é uma arma poderosa, Irmão Lucas. Via-se a lâmina metálica sair pelas costas do Simon.
O Irmão Vial suspirou e abanou a cabeça. Depois levantou-se e saiu. Eu corri atrás dele e agarrei-o por um braço.
- Quer dizer então que falhastes, Irmão Vial, - disse eu. - Os homens que escolhestes não salvaram o Simon.
- Não, Irmão Lucas, não salvaram.
- Então e os atributos deles? - disse eu. - Eu pensei que a moral da vossa história...
- O futuro é incerto, Irmão Lucas. - O Irmão Vial falava em tom ríspido. - Insondáveis são os desígnios do Senhor.
- Irmão Vial, acho que não estou a ver a relação entre essa história e o exorcismo de Francisco.
- Não é verdade que vós amais o Francisco?
- Eu amo todos os meus irmãos de Santes Creus, Irmão Vial.
- Não estou a falar de Santes Creus, Irmão Lucas.
- Eu já não vejo o Francisco há seis anos, Irmão Vial.
- O tempo não tem nada a ver com o amor, Irmão Lucas. Vós falastes-me do Francisco como se ainda ontem o tivésseis visto.
- Ainda me lembro do sorriso perverso dele, Irmão Vial.
- Seríeis capaz de arriscar a vida pelo Francisco? - perguntou o Irmão Vial.
- Devo confessar, Irmão Vial, que estou muito confuso. Não percebo aonde quereis chegar com as vossas perguntas. Pura e simplesmente, não estou habilitado a fazer o exorcismo do Francisco.
- Irmão Lucas, não há ninguém no mundo mais habilitado que vós a exorcizar os demónios do Francisco.
Não há ninguém no mundo mais habilitado que vós a exorcizar os demónios do Francisco. Foram estas as suas exactas palavras.
O Irmão Vial fechou os olhos e baixou a cabeça. Agarrou-me firmemente os dois braços.
- Senhor - disse ele - dai ao vosso servo Lucas coragem para cumprir a sua missão. Senhor, dai-lhe sabedoria para ver o Vosso caminho mesmo na mais cerrada floresta. Senhor, dai-lhe coragem para resistir às tentações do demónio.
O Irmão Vial ergueu os olhos, mas continuava a prender-me pelo braço. Tinha mesmo as unhas cravadas na minha pele.
- As tentações do demónio, Lucas - disse ele.
- Sim, Irmão Vial, estou a perceber.
O Irmão Vial falou nessa noite com o Abade Alfonso. Não sei o que lhe disse. Na manhã seguinte, o Abade olhou para mim desconfiado, quando eu entrei na carruagem com a minha sotaina. Mas não disse nada. Aliás, ignorou-me praticamente durante os dois dias que durou a nossa viagem até Tarragona.
Era a primeira vez que eu saía dos limites de Santes Creus. À medida que a carruagem rompia por estradas lamacentas e esburacadas, eu olhava para trás, à procura da tentação do demónio de que o Irmão Vial tinha falado. Mas não a vi. O que vi foi a terra castanha. A floresta esmeralda. Camponeses que paravam a olhar, desconfiados, para a carruagem do Arcebispo. Vi um campo de girassóis que se tinham virado para ficar de frente para a carruagem, como uma comunidade de fiéis fica de frente para o seu pároco. Vi um antigo aqueduto romano - uma geringonça inútil construída por pagãos. Como dizia o Abade Pedro, se Deus quisesse que os rios corressem por aquedutos, tinha-lhe bastado criá-los.
Quando íamos a aproximar-nos de Tarragona, o Abade Alfonso mandou-me fechar as cortinas. Fingiu que ia a dormir, mas eu via perfeitamente que ele ia assustado com o ruído e a azáfama das ruas. Devemos ter passado por algumas mil pessoas.
Chegámos à igreja mesmo a tempo das vésperas. Eu nunca tinha visto um espaço sagrado como aquele - cavernoso, austero. Sentia a presença de Deus em todas as rugas, as Suas impressões digitais nas esculturas angelicais que nos olhavam ternamente do alto dos seus nichos, o Seu hálito cálido nos salmos cantados que ecoavam pelo mosteiro.
Passámos a noite no dormitório de hóspedes, com peregrinos e outros monges de visita. De manhã, logo a seguir às matinas, o Abade Alfonso foi aos aposentos do Arcebispo. Eu fiquei no claustro. Ao fim de várias horas, dirigiu-se a mim um monge.
- Irmão Lucas?
- Sim, sou eu - respondi.
- O Arcebispo vai receber-vos agora.
Eu fui atrás dele, atravessámos a sala do tesouro e subimos as escadas. Enquanto as subíamos, eu ouvia o bater do meu coração. Tive medo de que o meu acompanhante também o ouvisse. Nunca tinha estado na presença de um arcebispo, nem sequer de um bispo. Entrámos para uma antecâmara, de onde passámos ao escritório privado do Arcebispo.
Uma beleza requintada. Mosaicos amarelos e azuis cobriam o chão. Ao meio da sala, uma grande secretária de carvalho pejada de manuscritos, cada um preso por uma fivela de prata. Um cálice de ouro cheio de vinho até à borda, pousado em cima de uma pilha de papéis soltos. Serpentes esculpidas subiam pelo pé do cálice, de modo que as cabeças reluzentes das criaturas mergulhavam para dentro do rebordo do cálice, como se quisessem sorver o líquido doce. Vi naquela sala mais ouro e prata do que tinha visto em toda a minha vida.
O Arcebispo Sancho estava a ler a carta do Irmão Vial. Tinha um nariz comprido, anguloso, nobre. A pele era macilenta, com algumas manchas vermelhas. Vestia uma indumentária branca e tinha na cabeça um chapéu oval. Balançava-lhe no peito uma corrente de prata com uma Cruz de rubis.
Ali de pé, naquela sala, eu sentia um calor percorrer-me o corpo e um formigueiro nos dedos das mãos e dos pés. Sentia-me em casa, como se o meu lugar fosse naquela sala, naqueles aposentos, entre aqueles objectos santos e sublimes. Tem fé, Lucas, disse eu para comigo, um dia o Senhor irá recompensar a tua devoção. Um dia, o Senhor irá fazer-te justiça.
De vez em quando, o Arcebispo levantava os olhos na minha direcção, para logo retomar a leitura da carta. Quando acabou, fez-me sinal para que me sentasse diante dele.
- O meu primo, Irmão Vial, - disse ele - informa-me de que vós éreis amigo do Francisco.
- Sim, vossa eminência, eu estava em Santes Creus quando ele passou três anos no mosteiro.
De vez em quando, o Arcebispo parecia estudar-me. Eu sentia-me vagamente embaraçado e tinha de me lembrar de não dar estalidos com os nós dos dedos, um hábito infeliz que adquiri nos meus tempos de assistente do Abade Pedro.
- Vossa eminência, - disse eu - posso perguntar onde está o Abade Alfonso?
- Mandei-o para a igreja para poder falar convosco em privado. Não estais com medo de mim, pois não, Irmão Lucas?
- Claro que não, vossa eminência, - respondi. - É só porque não me considero merecedor de uma audiência em privado com um homem tão distinto e santo como vós.
- O meu primo também diz na carta - continuou o Arcebispo - que não há no reino ninguém mais habilitado que vós para exorcizar os demónios do Francisco. Estais de acordo?
- Vossa eminência, - respondi. - não sou cego ou arrogante ao ponto de subscrever tal afirmação. Mas nada estaria mais longe dos meus propósitos do que contradizer o Irmão Vial.
Um ténue sorriso perpassou pelos lábios do Arcebispo.
- Ao que parece, - continuou o Arcebispo - o Padre Adelmo chegou a um impasse nos seus esforços com Francisco. Propôs-se, como último recurso, fazer um corte, de orelha a orelha, na cabeça de Francisco para abrir uma passagem pela qual os demónios pudessem sair. Que me dizeis da ideia, Irmão Lucas?
- Talvez haja, - disse eu - outros caminhos a experimentar antes de recorrer a uma medida tão drástica, e sem dúvida fatal.
- Sim, Irmão Lucas, - disse o Arcebispo - estou inclinado a concordar. Os nossos peritos legais chamaram a nossa atenção para o facto de a morte de Francisco poder não satisfazer os pressupostos para garantir a doação prometida pelo Barão Monteada. Teríamos de certeza uma disputa, mas a dádiva não estaria assegurada.
- Uma dádiva, vossa Eminência? - perguntei.
- Não sabíeis? O Barão Monteada ofereceu um terço dos seus bens a troco da salvação do filho. O Barão incluiu como condição no legado a "recuperação física e espiritual" do Francisco. É a inclusão da palavra "física" que me faz hesitar em dar o meu assentimento ao plano radical do Padre Adelmo. Estou inclinado a tentar outra via, a pôr à prova a confiança que o Irmão Vial deposita em vós.
- Fascina-me tal oportunidade, vossa eminência.
- E bem pode fascinar-vos, Irmão Lucas, - disse o Arcebispo. - O domínio e a vasta riqueza dos Monteada não ficam atrás dos da família real. Muita gente tem a ganhar com a salvação do Francisco, incluindo vós, Irmão Lucas.
- Eu, vossa eminência?
O Arcebispo Sancho pousou a mão sobre a minha. Estava fria e suada.
- Eu não iria esquecer-me de tão relevante serviço, - disse ele. Muita gente tem a ganhar com a salvação do Francisco, incluindo vós,
Irmão Lucas.
Incluindo eu, claro. Imaginei-me nos aposentos do Arcebispo. Sentado à secretária dele. À minha secretária. A afagar com a minha mão o tampo de carvalho maciço, sentir o verniz aveludado como gotas de água na palma da minha mão. De um dos lados da secretária, teria sempre pena e pergaminho, com que escreveria cartas a outros arcebispos, ou até, quem sabe, ao Santo Padre, em Roma. Do outro lado, um relicário de ouro em que guardaria um dedo, uma madeixa de cabelo, talvez mesmo a orelha, de algum santo da minha devoção.
O Arcebispo não disse se Francisco era uma das pessoas que tinham a ganhar com a sua salvação. De facto, não me pareceu que estivesse sequer a pensar em Francisco.
O Abade Alfonso regressou a Santes Creus no dia seguinte. Eu recebi o encargo de ir buscar Francisco a Poblet. Levava comigo uma carta selada do Arcebispo Sancho para o Abade Rodrigo. Já fiz a descrição da forma como inicialmente fui recebido em Poblet e das minhas impressões sobre Francisco e sobre as condições em que o mantinham. Fiquei efectivamente chocado ao ver o meu amigo. Não tinha previsto, nem podia ter imaginado, até que ponto os demónios lhe tinham infestado a alma e devastado o corpo.
Na manhã da minha chegada a Poblet, depois de ter visitado Francisco, fui entregar a carta ao Abade Rodrigo e ao Padre Adelmo. Ambos analisaram o documento durante algum tempo, porventura na esperança de nele encontrar uma saída, uma ambiguidade que lhes permitisse reter Francisco mais uma semana ou duas, enquanto pediam esclarecimentos a Tarragona. Eu não conseguia tirar os olhos das mãos cheias de cicatrizes do Padre Adelmo. Mais pareciam garras do que mãos, disformes, queimadas, de aplicar as brasas do arrependimento aos seus pacientes. Conhecedor do teor da carta, esperei pacientemente, sabendo que os dois homens não tinham outra saída que não fosse obedecer às ordens inequívocas do Arcebispo. Ao meio-dia estávamos de partida, Francisco algemado dentro da carroça, eu em cima a guiar os cavalos, acompanhado da nossa escolta.
O Padre Adelmo assistiu à nossa partida do telhado do claustro. O capuz preto do hábito ensombrava-lhe a cara. Mas mesmo assim vi-lhe os olhos, a faiscar com a ira do Senhor.
Já passaram quatro meses desde que Francisco chegou a Santes Creus. Eu tenho procurado seguir fielmente os métodos de exorcismo do Irmão Vial. Acordo para as matinas, recito os salmos antes de ir para a cela de Francisco, que fica no segundo piso do claustro. Leio-lhe trechos das Escrituras várias horas por dia. Cheguei ao fim da Bíblia e voltei ao princípio, pelo Génesis.
Todas as noites reservo um período para transcrever a confissão de Francisco. Quando não há nada a registar, escrevo as minhas memórias de Francisco - como dizia o Irmão Vial, um mapa da alma, um mapa que um dia, espero, irá mostrar o caminho da salvação de Francisco.
O estado físico de Francisco melhorou rapidamente. Quando ele chegou ao mosteiro, trazia as feridas das costas em carne viva e cheias de pus. O Irmão Vial prescreveu ervas do Levante, que têm ajudado a sarar as marcas do exorcismo do Padre Adelmo.
Quando chegou a Santes Creus, Francisco praticamente não comia nem bebia e não falava. Ao fim de uma semana, começou a debicar as refeições. A conselho do Irmão Vial, eu experimentei diversas comidas. Pelos vistos, as preferências de Francisco vão para o frango. Ao cabo de uns meses, já comia rações inteiras. Está a engordar. Está com bom aspecto. O barbeiro vem uma vez por semana à cela de Francisco, aparar-lhe o cabelo e a barba arruivada e cortar-lhe as unhas. Às vezes já parece o Francisco de outros tempos.
Há dois meses, Francisco falou. Pediu-me que falasse mais baixo, para ele poder dormir. Nunca tão poucas palavras me deram tanta felicidade. Desde aí, Francisco fala cada vez mais. A princípio parecia um bocado destreinado e não conseguia encadear mais do que algumas frases, poucas. Mas fez rápidos progressos e ao cabo de algumas semanas já tínhamos conversas com princípio, meio e fim. Tem a memória mais ou menos intacta. Para minha grande surpresa, a princípio Francisco não se lembrava do meu nome, embora se lembrasse de que os dois tínhamos dormido um ao lado do outro no dormitório. Sabe exactamente onde está. Até perguntou pela saúde e paradeiro de alguns dos seus antigos irmãos, que na sua maioria continuam em Santes Creus. Nunca falou em Andrés. Nunca se referiu à cruzada. Eu também não. Até há duas semanas.
Eu nunca tinha percebido por que razão Francisco tomara a Cruz. Embora fosse, à sua maneira, devoto, Francisco não parecia pessoa para seguir o chamamento de ninguém, muito menos o de um exército. Nem nunca tinha mostrado qualquer interesse pela vertente militar do reino de Cristo. Além do mais, como herdeiro do vassalo mais poderoso da Coroa, Francisco tinha em Barcelona uma boa vida. Eu arriscar-me-ia a dizer que qualquer homem do reino, à excepção do Rei, gostaria de estar no lugar de Francisco. E no entanto, Francisco escolheu um caminho diferente - uma perigosa e incerta viagem.
Eu tinha acabado de ler pela segunda vez o Livro do Êxodo quando lhe fiz a pergunta.
- Por que é que tomastes a Cruz, Francisco?
Ele não respondeu. Olhou fixamente em frente e durante o resto do dia não deu sinal de que desse pela minha presença. Francisco tem-se mantido em silêncio desde que, há duas semanas, eu lhe fiz aquela pergunta. Além disso deixou de comer, e parece ter perdido o peso que tinha ganho nos meses anteriores.
Desde a chegada de Francisco, todos os dias acendo uma vela no parapeito da janela dele antes de o deixar. Uma vela de esperança, uma vela de coragem. Nas últimas duas semanas, quando de manhã entro na cela, encontro a chama apagada e o pavio intacto. Como se Francisco deixasse de poder suportar a luz de Deus. Como se preferisse que as trevas exteriores reflectissem o seu estado de alma.
Há dois dias, reparei que lhe pingava sangue do punho fechado. Como ele ignorasse os meus pedidos de que abrisse a mão, abri-lha eu à força. Apertava nela a faca que eu lhe tinha dado para cortar a carne. Tinha na palma da mão um golpe profundo. Via-se o osso. Eu confisquei-lhe a faca ensanguentada e saí da cela a correr.
O meu coração galopava. Temia o pior - ter inadvertidamente causado em Francisco um retrocesso irrevogável, ao falar-lhe da Cruz quando ele ainda não estava preparado. Pensei que Francisco ia morrer antes de eu conseguir exorcizar dele os demónios. Pensei que a sua alma ia ficar para sempre mergulhada no fogo do inferno.
Corri à procura do Irmão Vial. Fui encontrá-lo na cozinha, a ajudar os criados e os irmãos leigos na preparação da ceia.
O Irmão Vial pegou-me pela mão e levou-me para o parlatório. Sentámo-nos no banco. A tensão dos meses anteriores arrasara-me. Cheguei mesmo a chorar, por muito que me envergonhe admiti-lo.
Recuperada a compostura, dei conta ao Irmão Vial da minha frustração e dos meus receios a respeito do futuro de Francisco.
- Lembrais-vos da mulher - perguntei - que sufocou os filhos? Vós dissestes que ela tinha desposado o diabo e que não havia qualquer hipótese de os separar. Talvez o Francisco tenha feito o mesmo maldito pacto. Talvez nunca mais recupere. Talvez não queira viver. Mais lhe valia ter usado a faca para cortar a garganta, em vez da palma da mão.
- O caso do Francisco é diferente do da infanticida - disse o Irmão Vial. - Ele só faz mal a si próprio. Isola-se, passa fome, lacera-se. Por que é que ele se auto-flagela? Provavelmente porque se considera responsável por algum acto, por alguma consequência terrível.
Foi então que eu contei ao Irmão Vial que Francisco e Andrés tinham estado no quarto do Abade Pedro no dia do seu martírio. Achei que não podia deixar de lhe contar. Porque estava convencido de que era o assassinato do Abade Pedro que atormentava Francisco.
O Irmão Vial não me perguntou se eu achava que Francisco era responsável pela morte do Abade Pedro. Se ele tivesse perguntado, eu ter-lhe-ia contado como os olhos de Francisco, como que hipnotizados por alguma força maléfica, tinham seguido a navalha de barba.
- Achais, Lucas, - perguntou ele - que o Abade Pedro foi o culpado da morte da Noelle?
Expressar uma opinião sobre tal assunto podia acarretar graves consequências. Sopesei cuidadosamente as minhas palavras.
- Não foi São Bento que escreveu, Irmão Vial, que os fiéis têm de suportar tudo, incluindo a injustiça, em nome do Senhor? Não foi isso que ele escreveu?
- Foi, sim, Lucas, - disse o Irmão Vial - mas há injustiças que não são suportáveis. Não é o destino do Abade Pedro que atormenta o Francisco. A origem da sua possessão é outra. Tentai saber o que aconteceu depois de o Francisco se ter ido embora de Santes Creus, o que lhe aconteceu na cruzada. Tentai desemaranhar o fio da alma do Francisco.
- Como? - perguntei eu. - Já lhe fiz perguntas sobre a cruzada. Estais a ver como ele respondeu?
- Fé, Lucas, - disse o Irmão Vial. - Fé e paciência.
- Não sou capaz, Irmão Vial. Lembrai-vos de que me dissestes que um homem tem de saber reconhecer as suas próprias limitações. Eu não sei como posso ajudar o Francisco. Não sei o que o Senhor espera de mim.
- O Senhor não exige muito, Lucas - disse o Irmão Vial. - Exige tudo. O sangue e a alma.
Ontem, dia primeiro de Novembro, entrei na cela de Francisco. Ele não tinha tocado na comida e tinha apagado a vela. Li durante horas antes de cair no sono. Fui acordado pelas palavras suaves de Francisco.
- O Andrés estava na Cidadela comigo.
Eu não reagi, tentando distinguir os meus sonhos da substância das coisas. Era a primeira vez que Francisco falava em Andrés ou na cruzada.
- O Andrés estava na Cidadela - disse ele, olhando vagamente em frente. Depois virou-se para o outro lado e fechou os olhos.
Nessa noite não consegui dormir. Passei brevemente pelas brasas mas acordei de repente com uma imagem de Francisco a aproximar-se com uma coroa de espinhos e as mãos abertas, mostrando os estigmas. Na sua agonia, Cristo deve ter tido um aspecto idêntico ao de Francisco naquele primeiro dia em que o vi na cela de Poblet - esquálido, desgrenhado, atrozmente vulnerável. Deambulei descalço de um lado para o outro no chão frio de pedra do meu quarto, apertando entre os dedos as contas do meu rosário. Tremi a noite toda, não sei se de medo ou de emoção antecipada.
Quando tocaram os sinos, vesti-me metodicamente, fui para a igreja rezar as matinas e depois dirigi-me à cela de Francisco, aparentemente da mesma maneira que o tinha feito nos quatro meses anteriores. Acho que não respirei uma única vez durante o longo trajecto.
De certo modo, esperava ir dar com ele morto ou ausente, como se o Senhor o tivesse levado. Nem uma coisa nem outra. Olhou-me nos olhos quando eu entrei e começou a falar como se não tivesse decorrido tempo algum desde as suas primeiras palavras do dia anterior.
A CRUZ
Nunca foi minha intenção tomar a Cruz. Francisco não olhava para mim enquanto falava. Estava sentado na sua enxerga, a olhar pela janela, braços à volta dos joelhos. Balouçava-se devagar para trás e para a frente, a um ritmo incerto. Eu estava de pé, de mãos juntas sobre o peito.
Não me atraía a espada nem o hábito. Achava o martírio solitário, e a vida clerical muito maçadora.
O meu irmão não achava. O Sérgio tinha dezoito anos quando anunciou o desejo de professar - de entrar como noviço para o mosteiro cisterciense de Poblet. O meu pai ficou profundamente aborrecido - o seu primogénito, o herdeiro da família Monteada, queria virar as costas à sociedade dos homens. Tentou fazer ver ao Sérgio a importância de assumir as suas responsabilidades terrenas. Mas nada pôde fazer perante o fervor do Sérgio por Cristo. Excepto convencê-lo a mudar de rumo - tomar a Cruz como guerreiro e não como monge. O Sérgio iria participar na cruzada que ia reconquistar Jerusalém aos infiéis. Regressaria daí a uns breves anos para assumir o lugar a que tinha direito como filho do meu pai, o mais poderoso dos vassalos do Rei. O meu pai não tinha a mínima intenção de entregar o Sérgio ao Senhor com carácter definitivo. Eu queria ir com o meu irmão, mas o meu pai proibiu-me. Eu só tinha quinze anos.
Barcelona inteira celebrou a partida, o Rei Jaime presidiu às festividades. Subiram bandeiras nos mastros - vermelhas e douradas, castanhas e prateadas - as cores e as armas das famílias mais nobres - Berenguer, Díaz, Morera, Munoz - e das ordens militares - Cavaleiros do Templo, Cavaleiros do Hospital de São João, Cavaleiros de Calatrava. Menestréis tangiam os seus alaúdes a troco de uma ou duas moedas dos respeitáveis cidadãos da grande cidade. Vestidos de negros hábitos, sacerdotes vindos de pontos tão distantes como Val d'Aran erguiam as mãos para proferir aos berros as suas bênçãos aos cavaleiros que partiam. As ordens mendicantes aglomeravam-se nas escadarias. Entoavam salmos e agitavam turíbulos de incenso incandescente. Vários membros do clero, vencidos pela emoção e pelo calor do sol de Julho, caíram desmaiados, tornando-se alvos fáceis para os gatunos que se misturavam com a multidão.
Quinhentos cavaleiros de todas as partes de Espanha, ataviados a rigor em traje de combate, pavoneavam-se de um lado para o outro do cais - a receber o aplauso dos leigos, de alta e baixa extracção, e as bênçãos dos religiosos. Os soldados pareciam gigantes, invulneráveis. O Bispo de Barcelona, Arnau de Gurb, deu a bênção com dois dedos. Os rubis amarelos que lhe debruavam as vestes reluziam sob os raios de sol enquanto ele baptizava o navio Maria de la Cruz.
O Sérgio pegou-me na mão antes de subir a rampa. Fez-me um sorriso sereno. Eu tive orgulho do meu irmão.
Tínhamos dormido no mesmo quarto enquanto crescíamos, bebido do mesmo copo, rezado lado a lado. Acho que, desde que nasci, nunca tinha estado separado do Sérgio mais do que um dia.
Limpou-me as lágrimas que me corriam pelas maçãs do rosto com as suas mãos frias, as mesmas mãos que me tinham ensinado a montar e a disparar um arco.
- Deus ama-te, Francisco - disse.
O navio naufragou pouco depois de se ter feito à água. Um navio novo, construído no estaleiro de Drassanes, a menos de uma milha do local onde se afundou. Eu estava com uma concha encostada ao ouvido, a escutar as profundezas do oceano, quando o navio se sumiu na luz forte da manhã. Equipas de marinheiros meteram-se em barcos de pesca e precipitaram-se para o espaço vazio. Em vão. Os cavaleiros, ainda de armadura vestida, não conseguiam nadar. Morreram todos, quinhentos, afogados. O corpo do Sérgio nunca foi encontrado. O amor de Deus pode ser severo.
Francisco riu-se. Uma risada curta, mas inequívoca. Eu devo ter estremecido ou feito um movimento brusco, porque Francisco levantou os olhos para mim. Tinha uma expressão divertida, quase condescendente, mas que não era bem um sorriso.
Desculpai-me, Lucas, mas até vós percebeis a ironia da situação. Quinhentos cavaleiros a chocalhar pelo oceano. Foi uma coisa ridícula de se ver.
Eu benzi-me. Tive medo. Senhor, dai-me coragem para vos servir. Estaria eu na presença de um demónio? Era a voz de Francisco, mas as palavras... Lèmbra-te da tua posição. Lembra-te da tua missão. Lembra-te de quem és. Fechei os olhos com força e tentei imaginar os veios negros da Cruz de madeira que tinha na parede da minha cela.
Ergueu-se do cais um grande coro de lamentações. Medo e angústia. Era como se Deus condenasse o reino inteiro, rejeitando a mais preciosa das nossas oferendas - os nossos filhos e irmãos. Os monges, invocando São Miguel, protector dos marinheiros, fugiam aterrados - de volta à segurança dos seus mosteiros. As mães choravam. Os pais rangiam os dentes. Eu fiquei sozinho a enfrentar o mar - isolado da multidão. As ondas brandas subiam-me pelas canelas. E depois o silêncio. As águas paradas.
Gostava de saber o que terá passado pela cabeça do Sérgio enquanto mergulhava no fundo do oceano. Terá fechado os olhos quando a luz se desvaneceu?
O Santo Padre de Roma tinha declarado que todos quantos caíssem em cruzada tinham lugar garantido no céu. Mas como o Sérgio mal tinha saído da praia, dizia-se na cidade que as almas dos afogados estavam no limbo - uma sentença sem prazo no purgatório que só por intercessão de Santa Eulália, santa padroeira de Barcelona, podia ter fim. O Bispo Arnau disse que Santa Eulália iria defender as almas mais merecedoras perante Nosso Senhor Jesus Cristo, o que queria dizer os filhos das famílias que fossem suficientemente generosas para financiar a construção de uma nova igreja no mosteiro de Montserrat.
A minha mãe achou que o número de orações que iam chegar aos céus corria o risco de exceder a capacidade da nossa santa padroeira. Por isso dirigiu as suas preces a Santa Tecla, que recebera o Evangelho directamente de São Pedro, o guardião das chaves do céu.
Quando não estava ajoelhada a rezar na capela, a minha mãe percorria os jardins a murmurar a Ave-Maria vezes sem conta, quase sem levantar a cabeça. Desconfiada de que alguém tinha lançado um mau olhado ao Sérgio, a minha mãe despediu todo o pessoal doméstico.
Dentro da família, foi o meu pai quem suportou o embate do desgosto da minha mãe. Sem nunca o ter dito, ela culpava-o pela morte do Sérgio. E não deixava de ter razão. Não fora a insistência do meu pai e o Sérgio estaria a bom recato no mosteiro de Poblet.
A minha mãe mudou o quarto de dormir para o andar de baixo, para estar mais perto da capela. Disse que não voltaria a partilhar a cama com o meu pai enquanto ele não cumprisse a penitência devida pela conspurcada união de que tinha nascido o Sérgio, dezanove anos antes.
A minha presença tornou-se penosa aos olhos de minha mãe. Talvez porque as minhas parecenças com o meu irmão reabrissem nela a ferida. A mesma tez pálida, o mesmo azul dos olhos - que eu examinava ao espelho, à procura da causa da repugnância da minha mãe e das vagas demolidoras que mudaram a minha vida.
O nosso domínio de Monteada transformou-se num jardim de desgostos. Uma saudade pungente de um tempo e um lugar que já não existiam.
A minha mãe foi-se embora de Monteada. Os criados meteram os pertences dela em vinte e quatro arcas, que seguiram em caravana atrás da carroça que a transportava para a residência que possuíamos dentro das muralhas romanas de Barcelona - o palácio construído pelo meu avô na rua que recebeu o nosso nome em comemoração da nossa contribuição para a conquista da ilha de Baleares - a Carrer de Monteada.
Cabisbaixo, roído pelos remorsos, o meu pai calcorreava os corredores do castelo. Muitas vezes dava a impressão de que não me reconhecia quando nos cruzávamos no átrio. Tamborilava-me na cabeça com um sorriso intrigado e depois desviava os olhos de mim. Eu achava que o meu pai ia acabar por sufocar, se não de tristeza e remorso, das misturas de fumo azul que o exorcista fazia e que invadiam a casa.
Mas também o meu pai descobriu uma forma de evasão. Reuniu o seu séquito de cavaleiros e partiu para norte, para os torneios de cavalaria - Loire, Marselha, Borgonha, Colónia.
Eu fiquei em Monteada com o senescal da família, o fidalgo Dom Ferrán, e um séquito de criados e tutores. O quarto que eu partilhava com o Sérgio tinha-se transformado num local de culto ao meu irmão. As rosas brancas de condolências exalavam um cheiro doce e enjoativo. As Escrituras estavam abertas na última página que tínhamos lido na noite da partida do Sérgio –
Reparai que foi Deus quem me desorientou,
E me envolveu nas suas redes.
Grito contra essa violência e ninguém responde.
O meu quarto - uma cripta para o meu irmão. E eu - uma árvore desenraizada, cortada por todos os lados.
Francisco fitou os olhos em mim, uns olhos de um azul profundo e irreal. Fez um sorriso largo, uma expressão demente, burlesca, diabólica. Parecia completamente louco. Eu medi a distância que me separava da porta, para o caso de precisar de fazer uma retirada rápida.
Durante várias semanas não saí do meu quarto de dormir. Deitado na cama, olhava pela janela para a erva alta e rubra que balançava ao vento. Li vezes sem conta aquela página das Escrituras, como se por baixo da folha de ouro e da tinta preta se escondesse algum significado secreto.
Dom Ferrán geria os negócios da família na ausência do meu pai. Era responsável pelo bem-estar e educação dos filhos da família Monteada. Com a morte do Sérgio, Dom Ferrán concentrou as suas preocupações exclusivamente em mim. Achou que eu tinha adoecido e deu instruções ao Doutor Dom Mendoza para que descobrisse as causas. Depois de ter colhido e examinado as minhas fezes durante dez dias, o bom do médico diagnosticou uma concentração de bílis negra, uma espécie de melancolia. Prescreveu banhos frios e repouso. Além disso, proibiu-me de apanhar sol ou comer coisas muito condimentadas. Dom Ferrán pôs um dos seus ajudantes de plantão à porta do meu quarto para vigiar o meu estado de saúde e dissuadir-me de qualquer ideia que eu pudesse ter de me ausentar do quarto.
Andrés Corrêa de Girona apareceu à minha porta no quarto Domingo de Outubro, noventa e três dias depois da morte do meu irmão. Eu só tinha visto aquele meu primo direito uma vez - oito anos antes, no funeral do nosso avô. Reconheci o Andrés pelo cabelo loiro e comprido, que lhe chegava aos ombros e lhe dava um ar efeminado. Porém, aos quinze anos, os antebraços de veias salientes e os ombros largos contrabalançavam a impressão causada pelos caracóis loiros.
- Continuais um magricelas, primo - disse ele, abanando a sua cabeça. Eu estava sentado na cama, a desfolhar as pétalas das rosas murchas do Sérgio.
- Vinde ver, primo. - disse ele - Trouxe-vos um presente da minha mãe.
O Andrés desapareceu. Eu continuei a desfolhar as rosas. Pensei que ele ia voltar, e ele esperava que eu fosse atrás dele. Mas o corredor ficou em silêncio, apenas interrompido pelo crepitar das tochas que o iluminavam, em homenagem ao meu irmão. Ao fim de meia hora, mais ou menos, levantei-me da cama e fui espreitar o corredor. O meu vigilante dormia, esparramado na cadeira que lhe tinham destinado à porta do meu quarto. Não se via mais ninguém. Voltei para a cama, mas por pouco tempo. A temeridade do meu primo desagradou-me - entrar no meu quarto sem mais nem menos, sem se fazer anunciar, para me insultar no estado de debilidade em que eu me encontrava. Decidi que se impunha ter uma conversa com ele, mesmo que para isso tivesse de desobedecer às ordens do Doutor Mendoza. Voltei ao corredor e percorri-o com grandes cautelas. Não havia sinal do meu primo. Desci as escadas e abri a porta que dava para o pátio.
O Andrés estava montado no seu cavalo, segurando outro pelas rédeas.
- Chama-se Pancho - disse ele.
O cavalo tinha uns olhos negros profundos, luminescentes.
- Eu disse ao meu pai - disse o Andrés - que isto era cavalo de mais para vós. Mas ele disse que vós íeis crescer com ele.
Cavalgámos o dia inteiro. Pelas searas de Lecaros, com as folhas a fustigar-me a cara e os lábios até sentir gotas de sangue quente nas maçãs do rosto. Cada vez mais depressa. Pelos campos lavrados dos Garcías, e os camponeses deixavam cair os arados para olhar para nós como se fôssemos mensageiros de Deus. Pela mata cerrada do Rei, nos arredores da cidade. O suor salgado do cavalo misturava-se com o meu. Cada vez mais longe. Pelo desfiladeiro lamacento da montanha, em direcção aos penhascos sobranceiros ao mar.
Regressámos já de noite. Dom Ferrán estava no pátio, sentado. Pelos vistos, tinha sabido da nossa saída por algum criado.
- Bem-vindo, Andrés Corrêa de Girona - disse ele. - Obrigado por terdes aceite o meu convite. Só espero que, da próxima vez, façais companhia ao vosso primo sem pregardes um susto de morte aos servos e pedindo desculpas formais aos nossos vizinhos.
O Andrés dormiu na minha cama durante os vários meses que se seguiram. Pôs-se perfeitamente à vontade. Ocupou três quartos da cama, deixando-me perigosamente perto da beira. Três dias depois de ter chegado, pegou na Bíblia aberta.
- Bela passagem - disse o Andrés.
Eu não respondi. Ele virou várias páginas. Depois, sem me consultar, o Andrés fechou a Bíblia com um estrondo seco, que espalhou pelo quarto uma nuvem de pó. Apertou o fecho da capa e meteu o Livro na arca, no meio dos nossos cobertores de Inverno.
Senti uma contracção nos músculos do estômago, como se tivesse levado um murro. Ouvia ranger os meus próprios dentes. Pela presunção do meu primo. Pela sua arrogância sem limites. Como se o Andrés pudesse conjurar as trevas com um gesto tão irreflectido e desprezível. Como se pudesse fechar o capítulo sobre a mais negra das noites, pô-la para o lado e continuar a viver indiferente à devastação causada pela morte do Sérgio. Olhei para o Andrés com expressão reprovadora. Ele sorriu-me, com um ar franco e simples. Talvez, pensei, o Andrés, tal como quase todos os meus amigos nobres, não soubesse ler. Talvez não se apercebesse do significado do seu acto.
- É insensato, primo, imiscuirdes-vos em assuntos que não vos dizem respeito nem compreendeis - disse eu, tentando manter um tom inalterável. - Não vos esqueçais, Andrés, de que aqui sois hóspede.
- Não dizem as Sagradas Escrituras, Francisco, que para tudo há um momento e um tempo para cada coisa? - respondeu ele. - Parece-me que o tempo dessa passagem específica já acabou há muitos dias.
Afinal de contas, eu tinha subestimado o meu primo. Dois dias depois, o Andrés atirou fora as flores mortas que adornavam o quarto.
- O cheiro das flores tornou-se insuportável, Francisco - disse ele. - Não achais que será melhor deitá-las fora?
Não esperou pela resposta. Agarrou-as todas com cuidado e levou o braçado para o corredor.
Desta vez, eu não protestei. Calei-me. Pus-me de lado, tapei o nariz e concentrei-me intensamente na Cruz que tinha por cima da cabeceira da cama.
Apesar dos modos bruscos do Andrés, Dom Ferrán apreciava a sua presença. Não podia deixar de notar uma evidente melhoria no meu estado de saúde. Eu e o André dávamos um passeio diário a cavalo pela manhã e muitas vezes praticávamos tiro ao arco à tarde, depois da ceia. Três dias depois da chegada do Andrés, Dom Mendoza diagnosticou progressos espectaculares na cor e na consistência do produto da minha actividade intestinal.
- Francisco, agora que já estais bom - disse Dom Ferrán nessa tarde, à ceia - temos de concentrar as nossas atenções nos assuntos da família.
Delegações da realeza, da nobreza e do clero pediram autorização para vir a Monteada prestar homenagem ao vosso santo irmão, Sérgio. O vosso pai continua em França a competir nos torneios de cavalaria que se realizam nesta época do ano. Na sua ausência, tendes de ser vós a receber os visitantes. Eles irão observar-vos com muita atenção - para avaliar o vosso carácter, para vos cair nas boas graças, para identificar eventuais fraquezas que possam explorar quando assumirdes o manto da família. O Andrés far-vos-á companhia durante as entrevistas. A presença do vosso primo dará testemunho da vassalagem da família alargada e da futura força do clã.
Dom Ferrán olhou para mim, confiante. O Andrés bocejava.
As visitas começaram dois dias depois. Pela tarde, chegou uma delegação de nobres encabeçada pelo Barão Calvell de Palau. Dom Ferrán introduziu-os no Grande Salão, onde eu e o Andrés já estávamos sentados. O senescal fez uma apresentação formal dos nossos hóspedes, após o que se retirou. Dom Ferrán tinha-nos dito que era fundamental que Barcelona visse que os jovens herdeiros estavam perfeitamente à altura de conferenciar com os chefes de outras famílias nobres.
Eu e o Andrés não tencionávamos fazer batota. Foi Dom Ferrán quem criou a oportunidade ao esquecer-se de especificar na apresentação que fez qual de nós era o Francisco. O Barão Calvell usou da palavra durante algum tempo expressando o seu pesar pelo trágico acidente e as suas condolências pelo sucedido ao meu irmão. Olhava alternadamente para mim e para o Andrés até acabar aparentemente por se concentrar no Andrés, passando a dirigir o seu discurso exclusivamente para o lado do meu primo.
Quando o Barão terminou o seu comprido solilóquio, fez-se uma longa pausa silenciosa. A comitiva olhou ansiosamente para o Andrés, que cofiava o queixo.
- Quantas galinhas mantendes no vosso domínio? - perguntou o Andrés, muito compenetrado.
- Perdão, Dom Francisco? - perguntou o Barão.
O Andrés repetiu a pergunta, num tom profundamente sério. O Barão conferenciou em sussurros com os outros membros da sua comitiva.
- Cento e dez, Dom Francisco, mais coisa menos coisa - respondeu. O Andrés fez um aceno circunspecto na minha direcção, como quem vê confirmadas as suas suspeitas. Os membros da comitiva do Barão Calvell olharam uns para os outros, perplexos.
- Pois - disse finalmente o Andrés. - Muito bem.
O Barão e sua comitiva saíram logo a seguir. Ao retirar-se, olharam atentamente para o Andrés e acharam melhor não lhe virar as costas. O próprio Barão deve ter feito algumas dez vénias até à porta.
Concedíamos uma entrevista por dia. Duas, três, quatro horas a ouvir uma litania ininterrupta de pormenores irrelevantes e mentiras descaradas. O número de hectares e servos que a família possuía; a impressão favorável com que tinham ficado da saúde do Rei Jaime aquando da sua recente visita ao palácio; os bispos e membros da família real que contavam entre os seus amigos íntimos; a profunda consternação que tinham sentido ao saber da morte do meu irmão e as muitas orações que tinham feito em intenção dele, "abençoado Sérgio".
Eu e o Andrés víamo-nos aflitos para não adormecer. Ao fim de vários dias de entrevistas, traçámos uma estratégia. Iríamos terminar a nossa cavalgada matinal com uma corrida de regresso ao domínio da família. Quem perdesse tinha de fazer de Francisco na entrevista dessa tarde. Apesar da prosápia do Andrés, equivalíamo-nos muito na arte de cavalgar, pelo que o papel de herdeiro acabou por ser dividido equitativamente entre nós dois.
Quais abutres a rondar o cadáver do meu irmão, as delegações desciam sobre Monteada. Nós dávamo-lhes aquilo que elas queriam - um discreto aceno de cabeça, um sorriso compenetrado. Pelos vistos, para os nossos visitantes, isto valia tanto como qualquer discurso que pudéssemos fazer-lhes. Quando eles se calavam e erguiam os olhos, já sabíamos que era altura de lhes fazermos um comentário ou uma pergunta. E não os fazíamos esperar.
Mas nós sabíamos muito bem que Dom Ferrán não ia achar bem que nós trocássemos identidades. Quando um criado nos veio dizer que Dom Ferrán queria falar connosco depois da nossa cavalgada matinal, pensámos logo que ele tinha sabido do nosso esquema.
- Tendes alguma coisa para me dizer? - perguntou Dom Ferrán, quando nós nos apresentámos diante dele.
- Dom Ferrán, - disse o Andrés - permiti-me que vos diga desde já que os nossos amigos da cidade têm uma grande tendência para o exagero.
- Não me parece, Andrés - disse Dom Ferrán. - Estais a ser muito modesto. Em Barcelona só se fala de vós dois - os primos cuja boa aparência só é excedida pela sua sagacidade. Dizem que os gémeos - pois é assim que vos chamam - os gémeos falam por parábolas e poesia. Uma parelha temível, sem dúvida. Os nobres podem ter tendência para o exagero, mas sabem sempre discernir a excelência. Todos os vassalos dos Monteada têm a ganhar com a glória do novo herdeiro. As nossas venturas sobem e descem com as da família. Eu tenho a certeza de que, se o Barão Monteada aqui estivesse, estaria muito orgulhoso do desempenho de vós dois neste último mês.
Dom Ferrán estava impante de excitação. Olhava para nós expectante, como se também ele, à semelhança das nossas visitas diárias, aguardasse uma observação ou pergunta nossa. Eu mexi-me, embaraçado.
- Sim, claro - respondeu o Andrés, com os olhos na ponta dos sapatos.
Dom Ferrán não chegou a descobrir o nosso estratagema. Eu e o Andrés continuámos com as nossas cavalgadas durante meses a fio. Podíamos ter continuado durante anos a fio, não fora a intervenção da minha mãe.
Foi ela que convenceu o meu pai a mandar-me para o convento de Santes Creus. Disse que regressaria de Barcelona quando o filho mais novo tivesse cumprido os votos tácitos do mais velho. No lugar do Sérgio, eu teria de cumprir uma pena de três anos no mosteiro - para aplacar a ira do Senhor e talvez a da minha mãe.
Foi então que vos conheci, Lucas. Quando foi isso - há dez anos? Pelos vistos, vós ficastes em Santes Creus. A avaliar pelas jóias que ostentais, eu diria que colhestes frutos generosos do vosso sacerdócio. Dizei-me uma coisa, Lucas: Jesus Cristo usava anéis de ouro nos dedos?
Mas já perdi o fio à meada da minha explicação. Ao fim de três anos de mosteiro, regressei a Monteada, às trevas antigas. Os meus pais estavam ausentes, o meu pai num torneio de cavalaria na Flandres, a minha mãe na nossa residência da cidade. E eu, apesar de estar em casa, sentia umas saudades constantes. Uma dor lancinante. O meu irmão dominava os meus sonhos - o Sérgio no navio com o seu sorriso sereno e inocente, o Sérgio a chamar-me para as águas calmas. Acordado ou a dormir, as minhas noites eram atormentadas pelas mesmas imagens.
Estava eu de volta a casa havia um mês quando o Sérgio me chamou da sua sepultura gélida. Foi um sonho. Eu fazia parte de um regimento de cavalaria. Galopávamos a caminho da Terra Santa. Cavalgámos dias seguidos sem descanso. Os meus receios eram apaziguados pela passada forte e regular do Pancho e pelo troar que abalava a terra, produzido por mil cascos. Eu era um soldado de um vasto e poderoso exército que se movia como um organismo único. A armadura era-me tão leve como a pele e, por baixo dela, o meu corpo era como se fosse de ferro, impenetrável.
Pousei a mão no peito. Tinha a capa molhada. Pensei que era o coração a sangrar, padecimento que bem conhecia. Olhei para baixo mas não vi sangue. Mas tinha a túnica toda encharcada. Achei que devíamos ir a cavalgar debaixo de chuva torrencial.
Estendi as mãos em concha para apanhar água para os lábios ressequidos, mas as minhas mãos continuavam vazias. Não estava a chover.
Só então compreendi. Estávamos no fundo do mar, um regimento pronto para o combate, completamente ataviado. Tentei falar com o cavaleiro mais próximo, interpelá-lo, mas a água turva não o deixava ouvir a minha voz.
Olhei para a esquerda e para a direita. Cavalos e cavaleiros avançavam devagar, subjugados pelo esforço de mexer os membros para romper pela água pesada. Tentei em vão discernir as caras dos outros. Um dos cavaleiros que iam a meu lado fez-me sinal de que me aproximasse. Eu e o Pancho galopámos para junto dele.
Era o Sérgio. Falou sem emoção.
- Estou perdido - disse.
Não está a reconhecer-me - pensei. Berrei-lhe por sobre o tumulto dos cavalos a galope: - Sérgio, sou eu, Francisco, o teu irmão.
Ele olhou para mim, impassível, e investiu na minha direcção. Tentou fincar-me as unhas no peito. Eu consegui desviar-me. O Sérgio desapareceu no meio do turbilhão da carga de cavalaria.
Continuámos assim durante várias horas, até que senti um apertão forte num braço. Virei-me para enfrentar o cavaleiro. A sua armadura brilhante iluminava um caminho que apontava para Leste, para Jerusalém. Não consegui ver-lhe o rosto. Espreitei-lhe para dentro do elmo mas só vi o vasto oceano negro, inescrutável, infinito.
Quando acordei, não precisei de nenhum padre para decifrar a mensagem do meu irmão. O Sérgio tinha-me falado do purgatório. A alma do meu irmão estava no limbo. E pedia-me ajuda. Pedia-me que o resgatasse do inferno com o meu sacrifício.
O cavaleiro sem rosto era eu, um dos soldados anónimos de Cristo. O meu rosto, o meu futuro - incertos, indefinidos. Ia navegar a caminho de Jerusalém em busca de redenção - para o meu irmão e para mim.
Nunca foi minha intenção tomar a Cruz. Tive um chamamento. Do abismo.
Do abismo, sem dúvida. Francisco teria feito melhor em consultar um padre sobre a "mensagem do irmão". Os caminhos do diabo são infinitamente complexos e perversos. Desconfio que foi Satanás que se fez passar pelo seu irmão Sérgio para atrair Francisco ao Levante. De certeza que Satanás viu no herdeiro da família Monteada um trofeu valioso e faria tudo para o fazer cair naquele buraco negro. O diabo percebeu que, longe de casa, Francisco seria mais vulnerável às dúvidas e à tentação. Daí o paradoxo que está no âmago da decisão de Francisco, de tomar a Cruz - o paradoxo que me causa arrepios porque me faz ver os métodos matreiros e nefandos de Satanás - Francisco alistou-se no exército de Deus e partiu para a Terra Santa a mando do diabo.
Talvez haja aqui lugar a outra explicação. Num esforço para desviar a atenção dos seus próprios dramas espirituais, Francisco referiu-se às jóias que eu usava. É verdade que eu uso dois anéis de ouro, um em cada um dos meus dedos médios. Digo isto sem rodeios. Tenho orgulho nos meus anéis e uso-os como símbolo da minha devoção ao Senhor.
O primeiro anel foi um presente do Bispo Bisson de Lérida, em agradecimento pelas minhas negociações com o Barão Enrique de Penedès para venda de uma indulgência. Pode dizer-se que o irmão mais velho de Dom Enrique, Dom Jaume, tinha chamado a morte para a sua própria porta. Durante cinco anos, Dom Jaume tinha-se recusado repetidas vezes a cumprir a sua promessa, feita ao Bispo Bisson, de tomar a Cruz. Depois de um último e fracassado apelo a Dom Jaume, o Bispo Bisson excomungou-o. A declaração do Bispo deserdava Dom Jaume dos bens do seu pai e libertava os vassalos de Dom Jaume de toda e qualquer obrigação que para com ele pudessem ter. Dom Jaume recusou-se a acatar a decisão e foi ao ponto de fazer reféns três padres de Lérida.
Durante esta crise, o irmão mais novo, Barão Enrique, contratou um assassino francês para matar Dom Jaume. O assassino disfarçou-se de frade dominicano e apunhalou Dom Jaume quando ele recebia a comunhão na catedral de Penedès. Constou que o cálice de prata tinha caído no meio do tumulto gerado e o sangue de Dom Jaume se tinha misturado com o de Cristo no chão da catedral.
Não vou dizer que alguma vez se justifique uma medida tão drástica como a que o Barão Enrique adoptou. Entra em absoluta contradição com os ensinamentos do Senhor. Se bem que o Barão agisse, de forma indirecta, como instrumento da justiça divina.
Quando Dom Jaume faleceu, o seu irmão Enrique ficou como herdeiro dos bens do pai e ofereceu à diocese de Lérida uma arca cheia de tesouros. Nessa arca ia o anel que eu agora uso no dedo médio da mão direita. O Bispo Bisson deu-me o anel, com o brasão da família Penedès gravado, em reconhecimento pelo papel que eu desempenhei na negociação dos termos exactos da indulgência concedida ao Barão Enrique. Não penso que seja presunção dizer que consegui um acordo muito difícil - uma indulgência a troco de setenta libras de ouro e prata. Em resumo, obtive para o Senhor a melhor compensação possível e ao mesmo tempo aumentei consideravelmente, se não garanti mesmo, as hipóteses de o Barão ir para o Reino dos Céus quando morresse.
O segundo anel foi uma oferta do Arcebispo Sancho de Tarragona. Enviou-mo para Santes Creus na semana passada, acompanhado de uma carta.
- É sem surpresa que tomo conhecimento - dizia ele na carta - dos progressos recentes feitos por Francisco sob vossa direcção. Acalento altas esperanças, Irmão Lucas, quanto à vossa progressão no clero. Nunca vos disse, Irmão Lucas, mas fiquei profundamente impressionado com a vossa postura durante o encontro que tivemos nos meus aposentos, aqui em Tarragona. - Era exactamente esta a palavra por ele usada - "postura".
- Infelizmente, o Bispo Martin de Tortosa está gravemente doente - continuava a carta. - Estou a fazer uma lista preliminar dos potenciais substitutos. Se o vosso trabalho com Francisco estiver concluído até à altura do passamento do Bispo Martin, não deixarei de vos colocar à cabeça dos candidatos ao lugar. Envio-vos este anel como testemunho de gratidão pelos vossos esforços junto de Francisco e como augúrio da recuperação espiritual e física de Francisco.
Eu sempre acreditei que era portador e transmissor de uma qualidade especial. Nunca deixei de ter fé em que o Senhor, ou um dos Seus ilustres servidores, reconheceria essa qualidade e recompensaria a minha fidelidade. Mesmo antes de receber a carta do Arcebispo, já muitas vezes tinha feito de conta que era um membro do alto clero. Às vezes, quando o Abade Alfonso não estava a ver, experimentava o chapéu de feltro dele e fingia que dava um sermão aos fiéis. Estudava-lhe os gestos durante os serviços religiosos e copiava-os na privacidade do meu quarto.
Parece-me ao mesmo tempo impossível e inevitável que as minhas esperanças, as minhas maiores expectativas, venham a cumprir-se. Quais eram as palavras que o Irmão Vial costumava usar? Fé e paciência. Sua eminência, o Bispo Lucas de Tortosa. Soa muito bem. Já me estou a imaginar a encontrar Francisco por acaso, numa visita a Barcelona com o meu séquito. Falamos durante algum tempo sobre amigos comuns, porventura membros da família real. Partilhamos uma longa e piedosa gargalhada às custas de algum dos nossos antigos irmãos de Santes Creus. Quando a conversa está a esgotar-se, Francisco sorri e convida-me para passar uma semana em Monteada. Eu, por minha vez, faço questão de que ele vá passar parte do Verão à minha propriedade de Tortosa.
Infelizmente, Francisco, possesso dos demónios, não sabe avaliar o significado destes anéis ou a importância dos sacrifícios que eu fiz nos últimos meses. Não percebe que estes anéis representam a minha observância de um dos mais importantes preceitos de Cristo - a força do perdão e a salvação de um pecador pela Igreja. Não é esse o cerne do nosso múnus, mostrar aos pecadores o verdadeiro caminho? Salvar aqueles que se perderam? Em boa verdade, o presente do Arcebispo simboliza precisamente a minha fidelidade a Francisco e ao processo da sua redenção.
ISABEL
Ontem dei um dos meus anéis como esmola a uma família de mendigos. Estavam de visita ao mosteiro para a festa dos santos mártires. O chefe da família abeirou-se de mim quando eu me dirigia à capela para a Missa matutina. Mal vestido e mal cheiroso, era o tipo de homem que tratava por senhor quem quer que usasse sapatos.
Prostrou-se de joelhos, barrando-me o caminho das escadas e distraindo-me das minhas elucubrações sobre a prédica que ia fazer a Francisco. Falou-me dos dois filhos que não tinham pão para matar a fome. Implorou a misericórdia de Deus para ele e para a família. A súplica do homem comoveu-me e não tive dúvidas de que Deus aprovaria a minha decisão de dar o anel àquela família - devia valer o suficiente para lhes dar de comer durante um ano. Quando lhe entreguei o anel, o homem agarrou-se aos meus tornozelos e desatou a beijar-me os pés. O resto da família mantinha-se à distância, a mãe com as crianças agarradas contra as ancas. Estavam com um ar meio desconfiado, demasiado pobres de espírito para compreender o alcance da minha generosidade. O acto gerou uma grande comoção no mosteiro, e eu reparei que os monges mais novos me olhavam com uma certa reverência que, nas circunstâncias, talvez não deixasse de se justificar. Se Francisco deu pelo desaparecimento do anel, não lhe fez qualquer referência.
As minhas conversas com Francisco continuaram. Enquanto, nos primeiros meses que aqui passou, Francisco dava a impressão de que a minha presença lhe era indiferente, agora dá a ideia de que espera ansiosamente a minha chegada, impaciente por começar a falar, por retomar a narrativa no ponto em que a tinha deixado na noite anterior. Com frequência, Francisco anda de um lado para o outro da cela enquanto fala. Por vezes exterioriza emoções fortes, como se estivesse a reviver os episódios que descreve. Fala normalmente durante várias horas sem descanso. Tenho a sensação de que ele tem um grande sentido de urgência. Muitas vezes começa a falar sem sequer me dar tempo de me sentar na cadeira e pousar no colo a prancha de madeira feita por um dos noviços de acordo com as minhas indicações. Nesta escrivaninha em miniatura, tenho uma Bíblia, um tinteiro, uma pena e pergaminho, no qual tomo notas que mais tarde me ajudam a transcrever a confissão de Francisco.
Quando, de manhã, me dirijo para a cela dele depois das matinas, tenho por vezes uma vaga sensação de pressentimento. Talvez porque receie que Francisco possa dizer alguma coisa que vá alterar a minha vida, receie ver-me confrontado com um horror insuportável, do tipo do que atirou Francisco para os braços do diabo. Rezo para ser suficientemente forte para enfrentar sem vacilar essa tentação.
Fé, Lucas. Fé e coragem.
A carta de Andrés chegou menos de uma semana depois do meu sonho com o Sérgio. Falava de uma cruzada que o Rei Jaime estava a organizar para o ano seguinte. Sugeria que nos alistássemos nos Cavaleiros de Calatrava, que com certeza iam acompanhar o Rei. Para mim, foi como se o verdadeiro autor da carta fosse o meu irmão Sérgio, e a proposta fosse mais uma ordem do que uma sugestão.
No dia seguinte fui visitar a minha mãe à nossa residência de Barcelona. Fui encontrá-la num parlatório escassamente iluminado. Estava a rezar, ajoelhada diante de uma estátua de madeira da Virgem com a inscrição MATER DEI, a Mãe de Deus. Maria tinha uma maçã na mão direita, Eva ressuscitada, e um cálice dourado na esquerda, símbolo da função da Igreja na terra, a partilha do corpo e sangue do Nosso Salvador.
A minha mãe pousou as mãos vazias, minúsculas e frágeis nas minhas. Os três anos passados desde a morte do Sérgio tinham deixado marcas. Continuava vestida de preto, em sinal de luto. Eu tive de ajudar a minha mãe a pôr-se em pé e a conduzi-la até uma cadeira, costas curvadas, olhos pregados no chão.
Disse-lhe que tinha visto o Sérgio. Contei-lhe o meu sonho e falei-lhe da minha intenção de tomar a Cruz. Ela ouviu-me sem dizer palavra, como se já soubesse. Quando eu acabei, pousou-me os lábios secos na testa e saiu da sala.
Por troca de cartas, eu e Andrés decidimos que partiríamos para Calatrava, quartel general da Ordem Militar, que fazia parte do seu domínio de Girona. Eu nunca tinha estado em casa de Andrés, embora tivesse estado por várias vezes com o pai dele, irmão da minha mãe, que costumava ficar em nossa casa, em Monteada, quando viajava para Barcelona para participar em reuniões do Conselho Real. Quando eu era pequeno, ele levava-me às cavalitas, a galope pelos jardins do palácio. Eu agarrava-lhe os cabelos loiros com uma das mãos, enquanto com a outra brandia a minha vara contra inimigos imaginários, cortando as cabeças aos infiéis. A minha mãe interrompia sempre as nossas brincadeiras, verberando o irmão por lhe pisar as flores. - "Sir Francisco, - chamava-me o meu tio - "um cavaleiro andante."
Mas havia muitos anos que o Barão Corrêa não vinha a Monteada. Cada vez lhe custava mais deixar os dois filhos, e por isso mandava o senescal da família em sua representação às reuniões na corte do Rei.
O meu tio mandou um dos seus vassalos, Pere de Girona, para me acompanhar até ao domínio de Girona. A viagem até Girona demorou dois dias. Na noite anterior à minha chegada, eu e o Pere acampámos num pinhal abrigado, a meio dia de viagem da casa da família Corrêa. Sentámo-nos ao calor de uma fogueira crepitante, ambos exaustos da jornada. Nenhum de nós se deu ao esforço de desfazer a trouxa para tirar a carne fumada que tínhamos trazido para a viagem. Preferimos deitar-nos com fome e com frio, enroscados em mantas de lã, ansiosos pelo abrigo quente que nos esperava em Girona.
Lembro-me de ter ouvido o ruído leve de passos na neve. Era uma corça com duas crias que tinha vindo espreitar-nos à volta da fogueira. Eu e o Pere devíamos parecer-lhes estranhos peregrinos, a tiritar de frio, perdidos naquela floresta branca. De um só golpe, eu podia ter deixado órfãos os dois faunos, mas faltaram-me as forças e a vontade. Puxei a manta para me cobrir a cabeça. Quando voltei a destapar a cabeça, as visitas tinham abandonado o nosso acampamento e desaparecido nas sombras da floresta. Eu fiquei deitado a olhar para a fogueira e a ouvir o crepitar dos ramos gelados. Se aquelas chamas eram o prenúncio do destino que me esperava na Síria, eu não o via. Era uma viagem que não estava escrita, Lucas, nem escrita nem lida.
Ao alvorecer, a neve tinha coberto as cinzas mortiças. Montámos a cavalo e partimos para Girona. Cavalgámos sem descanso e chegámos ao domínio de Girona antes do meio-dia.
A tempestade tinha finalmente amainado quando chegámos ao castelo. Parámos diante do fosso que rodeava a propriedade - mais propriamente uma vala. Eu e o Pere podíamos tê-la vencido com um salto de cavalo. O meu tio não tinha os recursos nem os inimigos de um Monteada. O Pere ergueu-se em cima do cavalo a chamar até que um criado de cabelos brancos, acordado da sesta nos estábulos, saiu à pressa para baixar a ponte levadiça.
Por um pequeno pátio chegava-se à casa - uma estrutura de madeira, castanha escura, com duas fiadas de janelas de vidros coloridos. Quatro torres de pedra distribuíam-se geometricamente pelo telhado de ripas. Uma das torres inclinava-se para a frente, como que para vigiar quem chegava.
O velho criado segurou-me no cavalo, Pancho, e ajudou-me a desmontar.
- Sede bem-vindo, Dom Francisco - disse. - Só vos esperávamos pela noite. O Barão Corrêa e Andrés ainda andam à caça. Eu sei que o meu jovem amo estava ansioso por vos receber. Mas já não devem tardar.
O Pere levou o meu cavalo para o estábulo. O criado ajudou-me a sacudir a neve da roupa e encaminhou-me para dentro de casa. Ao cabo de uma breve luta, consegui que o velho me deixasse levar a minha arca e alcei-a para o ombro direito. Subi as escadas atrás dele, até ao segundo andar, e aí virámos à direita e seguimos até meio do corredor, onde havia uma porta aberta. Ele afastou-se para me dar passagem.
Parei por breves segundos à entrada da porta. O quarto era grande e cheio de luz, que entrava pelas janelas duplas que davam para o jardim. À direita havia uma grande cama de madeira, com dois cobertores verdes de lã dobrados aos pés. Ouvia-se o crepitar do fogo na lareira de tijolo que ficava no lado oposto à cama. Encaminhei-me para as brasas incandescentes, inalando o cheiro doce do fumo da lenha, até sentir o calor queimar-me a cara.
Ao mesmo tempo que soprava para dentro das mãos em concha para aquecer as mãos enregeladas, virei-me para observar o outro lado do quarto. A um canto, havia uma cruz de mármore branco com a figura de Cristo a contorcer-se de dores, pendurada sobre um pequeno oratório. A estátua de Cristo olhava para o tecto com uma expressão de súplica. Tinha os olhos muito abertos, como se estivesse surpreendido de Se ver pregado na Cruz. Talvez o Filho do Homem pensasse que no último momento o Seu Pai iria mostrar clemência, que a Sua própria profecia fatal não se concretizaria. Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?
Fui até à janela. O vidro tosco turvava a vista. Abri uma portinhola para olhar lá para fora. Os campos estavam brancos e serenos. A várias milhas da propriedade, estendia-se uma montanha. Mesmo por baixo da janela, um jardim cuidadosamente arranjado, de sebes que davam pela cinta de uma pessoa, formava círculos concêntricos à volta de uma fonte onde se via uma estátua de pedra representando a Virgem. Tinha os olhos fechados e as mãos abertas, num gesto de submissão.
A outro canto do quarto havia um espelho pendurado. Aproximei-me e observei o meu rosto nele reflectido, confortado pela sua familiaridade mas perturbado pela sua severidade, pela curva agreste do queixo, pelas ténues linhas verticais abertas pelo vento nos lábios, pelas olheiras negras que me circundavam os olhos e pelas ondas verde-mar que dançavam dentro deles. Cobri o espelho com a minha capa de Inverno.
A porta abriu-se devagar, deixando ver Andrés, com um sorriso largo e malicioso. Da caça, trazia a capa enlameada e o cabelo loiro e espesso em desalinho. Não tinham passado três meses desde a última vez que nos víramos. Mas eu notei uma alteração no seu porte. A sua alta estatura, os seus ombros largos e as suas mãos possantes tinham deixado de parecer os atributos inocentes de um rapaz precocemente crescido e desajeitado para se transformarem em instrumentos de um guerreiro experiente. Tal como uma donzela bonita perde o rubor do desabrochar e aprende a apreciar as atenções que o seu amadurecimento suscita, também Andrés, nos seus dezanove anos, tinha assumido a sua força bruta. Atravessou o quarto em passo firme, com um olhar frontal e uma pose segura que revelavam o domínio que adquirira dos seus membros voluntariosos e fortes. O facto de me ter passado despercebida a evolução da mutação de André era prova da nossa proximidade e da intensidade do tempo que tínhamos passado juntos. Andrés fincou-me uma mão no cachaço enquanto me examinava o rosto.
- Francisco, meu amigo, andaste outra vez a ver fantasmas. Na casa dos Corrêa não é permitido esse tipo de coisa. - Andrés abanava a cabeça, numa censura amigável.
- Pai, - disse Andrés - vinde cumprimentar o vosso sobrinho, Dom Francisco de Monteada.
O Barão Corrêa, que estava em pé à entrada da porta, parecia gémeo do filho. Homem corpulento, tinha a mesma cabeleira loira, só que entremeada de fios de prata. Reconheci-lhe o sorriso, amável e sincero, que lhe vincava nas covas das maçãs do rosto as marcas de uma vida bem vivida.
- Bem-vindo, Francisco - disse o Barão Corrêa. - Há quantos anos - demasiados anos. Já devíeis ter vindo há mais tempo visitar o vosso tio e os vossos primos.
Os meus olhos divisaram uma terceira figura à entrada da porta, uma jovem. Trazia um vestido de veludo verde escuro que lhe cobria o corpo por completo. As mangas e a bainha eram decoradas a brocado. Mesmo assim, via-se bem o contorno da sua silhueta - a elevação do busto esbatendo-se até à cinta; o contorno suave das clavículas, visível através do tecido suave; o pescoço esguio; o cabelo cor de linho, apanhado na nuca.
- Francisco, disse Andrés - apresento-te a minha irmã, Isabel. Tinha uma cara vulgar. O nariz talvez demasiado proeminente, a pele sardenta, os lábios demasiado finos. No entanto, o conjunto não deixava de ser francamente agradável. Ou mesmo desconcertante.
Talvez fosse pela cor dos olhos - cinzento azulado - exactamente a cor da pedra tumular do meu irmão. Camadas sobrepostas de pedra. Naquelas profundezas, Isabel, que tinha apenas dezasseis anos, parecia possuir um entendimento que os outros membros da família Corrêa não tinham, a consciência desse outro lado, nocturno, da existência humana. Quando os meus olhos fitaram os dela, era como se estivesse a ver-me ao espelho, a ver as sombras crepusculares que estão sepultadas no mais recôndito da minha alma.
Imagino que esta ideia possa parecer ridícula. Se é verdadeira ou falsa, já não importa, pois não? Mas, na altura, houve uma parte de mim que interpretou esta confluência de cores como um sinal de esperança - a esperança de que talvez Isabel não fosse estranha à escuridão que residia em mim.
- Francisco, - disse o Andrés, interrompendo os meus pensamentos - esta é a minha irmã mais nova.
O Barão Corrêa e o Andrés observavam-me com curiosidade, à espera de uma reacção minha.
- Perdoai-me, prima, - disse eu - o vosso irmão não me preveniu de que vós éreis assim graciosa.
Ela entreabriu os lábios, franziu as maçãs do rosto, o brilho dos seus olhos cinzentos pareceu multiplicar-se. Era um sorriso.
- Vós, Francisco, - exclamou ela - sois exactamente como o Andrés vos descrevia. Agora que cá estais, talvez ele consiga falar de outros assuntos.
O Barão Corrêa enfiou o braço no de Isabel. - Minha filha, vamos deixar os dois soldados discutirem estratégias de batalha e vestirem-se para jantar.
O Barão Correia e a filha deixaram o quarto, despedindo-se o Barão com uma vénia profunda, teatral.
Eu desviei os olhos dos do Andrés. Abri a tampa da minha arca e pus-me a separar as minhas coisas em cima da cama.
- Tenho novidades, Francisco, - disse ele. - Recebemos há dois dias correspondência de Calatrava. O Rei Jaime vai mandar a Ordem de Calatrava para o Levante com a sua comitiva. Os filhos ilegítimos do Rei - dois deles - acompanham a nossa força na expedição ao Levante. Os bastardos reais.
- São os melhores - respondi eu.
- Isso é o que vamos ver no Outono.
- Graças ao Senhor - disse eu.
Não me parece que tivesse sobrevivido mais um Inverno em Monteada. À espera de poder responder ao apelo lancinante que, todas as noites, o Sérgio me soprava ao ouvido.
O André desatou a rir-se e avançou na minha direcção de braços abertos. Envolveu-me num abraço forte. Quase sem poder respirar, vi a miniatura de Cristo olhar directamente para mim, como se me convocasse para algum destino que eu não conhecia nem podia conhecer.
- Vamos então esperar pelos bastardos - disse o Andrés.
Um toque de trombeta anunciou o jantar. O Andrés e eu descemos ao Grande Salão, no primeiro andar, onde criados com bacias de água doce e toalhas nos deram assistência na lavagem das mãos. A sujidade de dois dias de viagem entranhava-se profundamente e só a muito custo se soltou da minha pele. Os convivas sentaram-se a um dos extremos da compridíssima mesa de carvalho. O Barão foi ocupar a cabeceira, o Andrés e eu sentámo-nos a um dos lados e em frente de nós, junto do pai, Isabel. Lareiras embutidas nas outras duas paredes aqueciam satisfatoriamente a sala.
Tapeçarias de grandes dimensões cobriam duas paredes opostas. Eu estava de frente para o martírio de João Baptista em oito painéis, do cativeiro à morte. O primeiro painel retratava João, amarrado, metido na prisão por Herodes. No segundo, a sobrinha de Herodes, a bela Salomé, dançava para o tio. O Rei estava satisfeito; os seus olhos sorviam-lhe os movimentos graciosos. Foi então que ele lhe prometeu em juramento dar-lhe o que ela lhe pedisse, mesmo que fosse metade do seu reino. No quinto painel, ela pediu-lhe a cabeça de João Baptista. O sexto representava o Rei Herodes pesaroso, como se João fosse seu amigo. Fiel ao seu juramento, mandou que se cumprisse o desejo de Salomé. No oitavo e último painel, Salomé sorria, segurando uma bandeja com a cabeça do santo.
O Barão Corrêa deu graças em nome dos presentes, sentados de cabeça baixa, antes de os criados trazerem da cozinha adjacente pão e manteiga a que logo se seguiu vinho aromatizado quente. Foram servidos dois pratos de carne. Veio para a mesa um grande javali em cima de uma bandeja de madeira. Tinha sido caçado pelo Andrés em minha honra, no dia anterior. Tinha a boca cheia de laranjas e uns olhos franzidos que olhavam com desprezo para os comensais. O chefe dos criados segurou na cabeça do javali enquanto o Barão Corrêa trinchava a carne suculenta. Havia também um prato especial de guisado de carneiro, misturado com arroz e cozinhado em leite de amêndoas. Eu estava faminto da viagem e tive de refrear o apetite para não parecer indelicado. Depois da carne foi servido um cozido mais leve de ervilhas e feijões com cebolas e açafrão, mas era prato que não colhia as minhas preferências.
O Barão Corrêa e eu falámos de pessoas de Barcelona que ambos conhecíamos. Ele conhecia os Garcías, que eram meus vizinhos. O Barão Corrêa e Dom Garcia tinham sido colegas no Conselho do Rei, que fixava o montante do dízimo anual que os muçulmanos tinham de pagar nos novos territórios da Catalunha. Um dos filhos da família Garcia tinha tomado a Cruz anos antes. O Barão Corrêa perguntou se a família já tinha recebido notícias do rapaz. Eu disse-lhe que não, mas que continuavam esperançados no seu regresso.
- Vós também estais esperançado, Francisco? - perguntou Isabel. Sim, claro que estou esperançado - eram as palavras que se esperavam de mim, as palavras que eu devia ter pronunciado. Mas não pronunciei.
- Não, Isabel - disse eu. - Eu vou visitá-los de vez em quando. Aquela casa cheira a morte.
A conversa parou abruptamente. O meu comentário fora infeliz. Dar voz às minhas meditações pessimistas no meu primeiro jantar em Girona. Idiota. Não soube controlar-me.
Isabel não desarmou.
- A que é que cheira a morte? - perguntou. Pergunta mórbida, mas a culpa era minha.
- Isabel, deixai o nosso hóspede comer em paz - disse o Barão Corrêa. Sorriu-me, um sorriso paternal, circunspecto e de viés, que interpretei como um convite ao silêncio.
Mas tinham-me feito a pergunta, e eu fiz questão de responder. Pensei no cheiro que invadia o quarto que fora meu e do Sérgio, nas semanas que se seguiram à sua morte.
- É um cheiro doce, - respondi - como o de uma sala cheia de incenso e flores.
- Que espécie de flores? - insistiu ela.
- Rosas brancas - respondi - quase a murchar.
Por um breve momento, os nossos olhares encontraram-se. Isabel, solene, parecia estar a ponderar a minha resposta. Andrés tamborilava nervosamente com a faca. O Barão Corrêa servia de vinho copos que já estavam cheios.
Um silêncio embaraçado, quebrado por uma gargalhada de Isabel. Desenfreada, desmedida, ilimitada. Um som como eu nunca tinha ouvido. Ela tentou refrear a gargalhada, tapando a boca com a mão. Mas em vão. Eu olhei para ela, incrédulo. Aquela era a mesma rapariga cujos olhos cinzentos pareciam sofrer sem limites? Como podia ela rir-se perante tanta e tão recente tristeza, que não ignorava?
Fora a gargalhada de Isabel, a sala estava em silêncio, Era como se todos os presentes tivessem parado de respirar. O Barão Corrêa observava-me, indeciso, à espera de uma reacção minha. O Andrés franzia a testa. Eu continuava a olhar fixamente para Isabel, tentando compreender aquela contradição do seu carácter. Ela retribuía o olhar e a sua gargalhada atravessava a mesa, as janelas e as portas. Não tenho dúvida de que os servos que descansavam nos seus casebres ao fim de um dia de labuta ouviam as reverberações.
A par da gargalhada de Isabel, ouvi um som antigo e esquecido, arrancado às profundezas de outra vida. Era a minha própria gargalhada, distorcida, desesperada. Parecia vinda do mais fundo das minhas entranhas e subir em vagas. O Andrés e o Barão ficaram perplexos, a olhar ora para Isabel ora para mim. Aos poucos, foram aderindo ao riso, primeiro a medo, depois mais abertamente. Os criados seguiram o exemplo do patrão. Não tardou que toda a gente que estava na sala de jantar secundasse as gargalhadas de Isabel, como se ela fosse o maestro de uma composição musical que atingiu o auge e depois começou gradualmente a abrandar.
- A próxima vez que eu cheirar rosas, de certeza que vou pensar em vós, Francisco - conseguiu Isabel dizer por entre tentativas de recuperar o fôlego.
Isabel estendeu o braço e pôs a mão com a palma para cima sobre a mesa, entre a bandeja de carne sangrenta e o jarro de vinho tinto. Achei que a intenção de Isabel era pegar na minha mão num gesto indicativo da sua boa vontade e do carácter bem intencionado das suas gargalhadas. Mas hesitei, com medo de estar enganado - imagine-se a minha atrapalhação se tentasse agarrar-lhe a mão e a intenção dela não fosse essa. Mas Isabel fez-me um aceno de cabeça e o seu sorriso franco convenceu-me a avançar. Com muito cuidado, levantei a minha mão e estendi-a por cima da mesa à procura da dela. O encontro foi breve - mal se deu o contacto, retirámos as mãos.
O Andrés nunca se sentiu à vontade a falar da morte ou dos mortos. Talvez porque receasse que o facto de falar nisso desencadeasse a minha espiral de melancolia. Riu-se como as outras pessoas, mas eu via que ele se sentia desconfortável. Quando o ruído amainou, aproveitou a oportunidade para mudar de assunto. Falou do futuro.
- Pai, contai ao Francisco o que o Tio Ramón vos mandou dizer de Calatrava. Parece-me que ele não acredita na minha versão.
O Tio Ramón não tinha nenhuma relação de parentesco com os Corrêa. Mas era amigo íntimo da família e tinha lutado ao lado do Barão Corrêa no exército do Rei, contra os muçulmanos. Depois de tomar parte na campanha dos territórios do sul da Catalunha, o Barão Corrêa retirou-se para o seu domínio de Girona e casou-se. Ramón manteve-se como soldado de Cristo e acabou por chegar a Grão Mestre da Ordem de Calatrava.
Com a comoção, o Barão Corrêa não ouviu a pergunta do filho. O Andrés viu-se obrigado a repetir para captar a atenção do pai.
- Sim, acho que o relato do Andrés é perfeitamente fiel - respondeu o Barão Corrêa. - Recebemos há dois dias uma mensagem de Ramón. A Ordem de Calatrava vai acompanhar os filhos do Rei à cabeça da expedição.
O Andrés agarrou-me o braço. - Como vês, meu amigo, em breve estaremos a lutar pela Cruz contra os sarracenos.
O riso de Isabel dissipou-se ao ouvir falar na Cruz. O seu sorriso transformou-se numa expressão de quase desdém. Fulminou o Andrés com o olhar, mas ele fez de conta que não reparava. Então, ela virou-se para mim.
- Francisco, - disse-me - por que é que ides acompanhar o meu irmão nesta aventura sem sentido?
O Andrés soltou um suspiro sonoro e antecipou-se à minha resposta. - Calai-vos, Isabel, que vós não percebeis nada destas coisas. - O tom exasperado do Andrés mostrava que não era aquela a primeira vez que os dois irmãos tinham discutido o assunto.
- Talvez o vosso amigo saiba falar pela sua própria boca - disse Isabel.
- Sei, sim, Isabel, - disse eu - nos meus dias bons, sei. Vou com o vosso irmão nesta aventura sem sentido. O nosso propósito é sermos o coração do exército de Cristo. O coração e a alma.
Ela ficou a observar-me atentamente, tentando descortinar as minhas intenções, talvez mesmo a natureza da minha fé. Falou para o Andrés sem tirar os olhos de mim.
- Irmão, acho que o vosso amigo confunde a minha juventude com ingenuidade.
- Não foi essa a minha intenção, - protestei eu - mas se foi essa a ideia que dei, peço-vos que aceiteis as minhas desculpas.
Talvez o meu tom de voz transmitisse algum sarcasmo, mas não estava no meu propósito insultar a irmã do meu amigo. Pelos vistos, Isabel não aceitou as minhas desculpas. Continuou a observar-me sem responder. Parecia estar à espera de uma clarificação. O peso enorme do seu olhar perturbava-me.
O Andrés veio em meu socorro. - Pai, Isabel está outra vez a esquecer-se de qual é o seu lugar. Será que lhe compete aprovar ou reprovar as minhas decisões, ou as do meu primo? Ou mesmo questionar o meu comportamento? Isabel, vós sois minha irmã. A minha irmã mais nova. Não sois minha mãe.
Isabel manteve-se de costas direitas, firme, indiferente às críticas do irmão. Até ao momento em que ele falou na mãe. Aí, deixou-se afundar de novo na cadeira, como quem amortece um golpe.
A Baronesa Corrêa tinha morrido ao dar à luz Isabel. A mãe começou a sangrar pouco depois de ela ter nascido. O médico não conseguiu estancar a hemorragia, e a jovem mãe morreu exangue. O Andrés tinha então três anos. Nunca falava na mãe. Eu soube da morte dela e das circunstâncias que a rodearam por um dos nossos colegas de seminário cuja família também era de Girona. O Andrés dava a ideia de ter varrido da memória o episódio doloroso. Isabel não. Aquela perda trágica deixou um negro sepulcral nos sulcos suaves dos seus olhos cinzentos.
Esta fatalidade era, portanto, a fonte do entendimento de Isabel - consagrado no dia do seu nascimento, no sangue de sua mãe. Este fardo era o espelho em que eu me vi reflectido no dia em que conheci Isabel.
O Barão Corrêa apercebeu-se da tristeza de Isabel e rapidamente interveio para a proteger. - Andrés, cuidado com a língua. A esta mesa, Isabel pode dizer sempre o que pensa. - Depois virou-se para mim. - Acontece, Francisco, que a minha filha acha que Cristo foi um homem de acção.
- Nesse caso, Barão Corrêa, - disse eu - parece-me que o mais natural seria que a vossa filha apoiasse o propósito do irmão, de tomar a Cruz. Haverá alguma forma de se ser mais activo do que lutar sob a Sua bandeira?
Isabel não esperou pela resposta do pai. Sentia-se recuperada do remoque do irmão e queria explicar-se. Dirigiu-se ao pai, mas o que disse tinha claramente como destinatário o irmão. O Andrés abanou a cabeça como se protestasse contra a tolerância do pai quanto às liberdades da irmã.
- Sim, Pai, - disse Isabel - Cristo é um homem de acção. Mas há diversos tipos de acção, diversas motivações. É claro que nem todos os tipos de acção, mesmo que tomada sob a capa de serviço à Cristandade, são legitimados pelo Nosso Salvador. E eu receio, Pai, que a decisão do meu irmão de tomar a Cruz tenha mais a ver com um desejo de glória marcial do que com o chamamento do Senhor.
O Andrés deu um murro na mesa que fez saltar os nossos pratos e talheres. Assustado com o barulho, um dos rapazinhos que nos serviam deixou cair no meio do chão uma panela de barro cheia de guisado de carneiro. O barro estilhaçou-se em mil cacos que ficaram a reluzir no chão de pedra. O rapaz recuou e baixou a cabeça em sinal de reconhecimento da sua indignidade de servir à mesa do senhor. Os cães precipitaram-se sobre os restos de guisado espalhados pelo chão. Toda a gente, menos o Andrés, parecia absorvida pelo incidente.
Sobrepondo-se à sôfrega algazarra dos cães, o Andrés dirigiu-se em tom ríspido à irmã.
- Nós não temos a pretensão, nem eu nem o Francisco, de imitar Cristo, mas de ser homens de acção no Levante. Com a vossa bênção ou sem ela.
- Há alturas, Francisco, em que o meu irmão, por falta de palavras, se exprime com os punhos - disse ela, mas isso já eu sabia. - E vós estais de acordo com o meu irmão? - perguntou.
Situação difícil, a minha. Claro que apoiava o Andrés mas não queria ofender a minha prima duas vezes na mesma noite, nem ser a vítima seguinte do seu interrogatório. Consegui no último momento descobrir uma saída aceitável. Ignorei a questão, pura e simplesmente.
- Eu nunca me considerei um homem de acção - disse - a não ser quando era muito pequeno e deparava com um dragão ou uma espécie rara de Cíclope, daqueles que viviam nos arredores de Barcelona.
O Andrés soltou uma gargalhada sonora e deu-me uma palmada nas costas.
- A minha filha nunca se coibiu de exprimir as suas opiniões, Francisco - disse o Barão Corrêa.
- E por que havia de se coibir - respondi eu - quando tem tanto para dizer?
Ele sorriu face ao elogio que eu fazia à filha. Isabel olhou-me com ar céptico.
- Dás demasiado crédito à minha irmã, amigo - disse o Andrés.
Quando, pela manhã, o Andrés me bateu à porta, eu estava enrolado num cobertor de lã verde, a ver a alvorada rubra despontar no horizonte. Tinham passado os restos da tempestade de neve. O céu ia estar limpo para a caça. Encontrámo-nos na estrebaria, onde os criados já tinham preparado os nossos cavalos e provisões para o dia. O meu arco e flechas pendiam da ilharga do Pancho. O Andrés e eu fomos os primeiros a chegar. Uns bons minutos depois, chegou o Barão Corrêa acompanhado de Isabel. Isabel trazia um vestido roxo com capa da mesma cor, cingida na gola por uma fivela de prata. Uns minúsculos sapatos bordados despontavam-lhe por baixo da bainha da saia. Trazia o capuz caído para trás. Eu via-lhe as melenas soltas de cabelo puxadas para trás das orelhas, à excepção de uma, que teimosamente se furtava aos seus esforços e lhe descia, encaracolada, por uma das faces.
O Andrés mirou Isabel da cabeça aos pés e torceu o nariz.
- Pai, - disse o Andrés - nós vamos para a caça ao veado, não vamos para um baile. Vestida desta maneira, Isabel vai espantar a caça mesmo antes de nós chegarmos aos bosques. Não percebo por que é que fazeis todas as vontades à minha irmã. Uma mulher deve deixar a caça aos homens da família.
- Isabel, minha querida - reagiu o Barão Corrêa - essa vossa indumentária é um tanto ou quanto heterodoxa. Tendes de ver se, para a próxima, escolheis uma cor mais natural. Andrés, a culpa é tanto vossa como de Isabel. Ela tem pouca experiência e por isso não podemos esperar que ela saiba ataviar-se convenientemente. Na vossa qualidade de irmão mais velho, devíeis tê-la aconselhado nessa matéria.
- Obrigada, Pai - disse Isabel, olhando de soslaio para o irmão mais velho.
Partimos em fila indiana encabeçada pelo Andrés, em direcção à montanha que eu tinha visto da minha janela. Cavalgámos para nascente, ao encontro do sol. Este reflectia-se na neve, provocando uma luminosidade que nos encandeava. Durante grande parte do trajecto mantive os olhos fechados, deixando ao Pancho a responsabilidade de seguir o pelotão. A medida que avançávamos, eu ia-me deixando embalar pelo respirar firme e laborioso dos cavalos. Isabel começou a viagem na cauda do grupo, mas eu troquei várias vezes de posição com ela, pelo que repartimos a tarefa de fechar a caravana. Mantivemos um bom ritmo na subida à cordilheira, e Isabel nunca se atrasou nem vacilou.
Como eu ia muito perto de Isabel, ouvia-a conversar com o cavalo. Era um hábito peculiar, não no facto de falar ao cavalo - muitos cavaleiros o fazem por norma. Mas Isabel parecia embrenhada numa animada conversa filosófica. Ela e o cavalo, chamado Flacito, passaram em revista uma série de assuntos mas pareceu-me que se tinham concentrado especialmente na estupidez da cruzada. A avaliar pelas respostas de Isabel, dir-se-ia que o Flacito ainda estava mais convencido dessa estupidez que a própria Isabel.
- Flacito, - disse Isabel - achas mesmo que muitos daqueles que tomam a Cruz são homens sem direcção nem objectivo?
Por várias vezes tive de me abster de refutar afirmações do Flacito, lembrando a mim próprio que os cavalos não têm o dom da fala.
Ao fim de meia hora, encontrámo-nos com o segundo grupo de vizinhos dos Corrêa - Guillem e Miguel Clemente, pai e filho. Vinham acompanhados de dois criados a pé. Suponho que o Barão Corrêa terá convidado os vizinhos na tentativa de cimentar uma relação mais favorável com uma família que, a seguir aos Corrêa, era a maior proprietária de terras de Girona. Os dois pais saudaram-se calorosamente. Apesar de o Barão Corrêa me ter apresentado, nenhum dos Clemente pareceu ter-se interessado pela minha pessoa, ou sequer reparado em mim.
O filho, Miguel, tinha vinte e nove anos, mais dez do que eu. Vestia um gibão preto grosso com gola de pele e chapéu de seda a condizer. Os caracóis, muito negros e bem oleados, saíam-lhe por debaixo do chapéu. Parecia encantado com a presença de Isabel. Cavalgou a seu lado durante grande parte do trajecto. Dada a pouca distância a que eu ia, montado no Pancho, não podia deixar de ouvir pedaços da conversa entre os dois. Aliás, tratava-se mais de um monólogo - era Miguel que fazia toda a despesa da conversa - que incidia principalmente nos importantes contactos da família, ou no tamanho do respectivo domínio. Fiquei com a ideia de que ele ia a fazer um inventário exaustivo dos bens que iriam caber-lhe em herança, até ao último porco. As respostas de Isabel consistiam invariavelmente em uma única palavra - "si" ou "bueno". Mas dizia-as num tom entusiasmado que eu interpretei como um fraquinho por Miguel. E pensei que, se calhar,-a indumentária imprópria por ela escolhida não era fruto de inexperiência, mas antes da expectativa de contar com a companhia de Miguel Clemente. Talvez o Barão Corrêa e Isabel tivessem para a caçada planos mais ambiciosos do que a mera obtenção do nosso jantar.
Não tenho dúvidas de que Miguel tinha certos atributos que faziam dele um marido apetecível e um aliado conveniente para a família Corrêa. Dada a juventude de Isabel, eu não a achava capaz de resistir aos encantos do pretendente. Já estava a imaginar um casamento de Outono nos jardins da casa da família Corrêa, debaixo do olhar atento da estátua da Virgem, um estrado nupcial decorado com folhas prateadas, o cabelo de Isabel apanhado num penteado da moda. Na mesma altura, eu e o Andrés estaríamos a combater no Levante.
Foi longa a caminhada até às montanhas. O passo do Pancho já ia demasiado incerto e Miguel continuava a debitar o seu solilóquio. Até que as circunstâncias obrigaram Miguel a interromper o discurso. Tínhamos chegado ao sopé da montanha, uma zona densamente arborizada onde os veados encontravam refúgio. Começava a caçada, e acabavam as conversas entre os caçadores. Abrandámos o passo para bater o terreno à nossa volta. As bétulas esguias constituíam um labirinto para os cavalos.
Cavalgávamos lado a lado, como um exército ao ataque, uma frente compacta que varria a floresta. Miguel e Isabel iam à ponta direita, o Barão Corrêa e o Senor Clemente ao meio, o Andrés e eu à esquerda. Durante algum tempo, avançámos sem encontrar nenhuma peça de caça. Uma lebre minúscula passou, espavorida, à nossa esquerda, mas nem eu nem o Andrés achámos que ela valesse uma flecha. Eu sentia um desejo forte e estranho de ser o primeiro a matar - estranho, digo eu, porque não costumo sentir o desejo de concorrer com outros membros de uma partida de caça.
Mas foi Miguel quem localizou o primeiro veado. Esbarrou praticamente com ele ao passar uma cumeada. O veado pareceu tão surpreendido como nós. De olhos arregalados, o animal empinou-se nas patas traseiras, paralisado por ver intrusos no seu santuário. Miguel já estava de arco apontado antes que qualquer de nós tivesse tempo de reagir. A flecha silvou no ar e foi alojar-se num dos quartos traseiros do veado. O animal ferido manteve-se em pé e, a coxear, tentou abrigar-se num rufo de mato. Para minha surpresa, os Clemente pareciam perfeitamente satisfeitos com o tiro de Miguel e não tinham pressa de acabar o trabalho. O Senor Clemente felicitou mesmo o filho.
O meu irmão Sérgio tinha-me ensinado a caçar quando eu tinha atingido a idade de montar e atirar. Eu tinha uma facilidade natural com o arco e a flecha, e depressa a minha habilidade ultrapassou a do Sérgio. Era capaz de derrubar um gamo a pleno galope, a uma distância de cem pés.
O Sérgio sempre me tinha chamado a atenção para a importância de uma "morte instantânea". Ou seja, matar um animal com a primeira flecha para o poupar a um sofrimento desnecessário e prestigiar todos os participantes na caçada. Tendo em mente esta recomendação, preparei o meu arco. Enquanto o preparava, o Senor Clemente ordenou-me, com um berro, que não disparasse - o veado, disse ele, era de Miguel. Eram as primeiras palavras que ele me dirigia. Eu ignorei-o e disparei uma flecha que trespassou o pescoço do veado e lhe pôs termo à vida antes de o corpo chegar ao chão coberto de neve.
O Senor Clemente investiu para mim, com o cavalo a trote, o braço direito no ar com o punho fechado. - O veado era do Miguel - declarou. - Foi ele o primeiro a fazê-lo sangrar. - Brandiu o punho e repetiu-se.
Eu não protestei. Não disse uma palavra. Miguel avançou a meio galope na minha direcção. Ao chegar ao pé de mim encostou o arco à sela do Pancho, de tal maneira que eu senti uma ligeira pressão nas costas.
- Se não fôsseis convidado dos Corrêa, - disse ele - eu era capaz de não perdoar esta afronta.
- E se vós não fôsseis convidado dos Corrêa - retorqui eu - eu devolvia-vos o vosso arco partido aos bocadinhos.
Miguel retirou lentamente a arma.
Ultrapassado este incidente, toda a gente se entregou à caçada com mais determinação. Eu abati outro veado à distância. Um tiro difícil, porque o animal estava quase completamente coberto pela sombra de uma árvore. A flecha entrou-lhe pelo lado da garganta e foi alojar-se dentro do corpo.
Quando, segundos depois, chegámos ao pé do veado, ele já não respirava. O Barão Corrêa, curvado sobre a montada e observando o animal caído, declarou que não havia em toda a província de Girona ninguém com uma pontaria como a minha. O Senor Clemente opinou que não bastavam dois tiros certeiros para definir a perícia de um arqueiro - uma afirmação acertada mas não naquelas circunstâncias. Eu atei o corpo do animal ao lombo largo do Pancho e o grupo seguiu caminho.
Miguel matou mais um veado, desta vez ao primeiro tiro. Mandou um dos criados apanhá-lo do chão. Quando o homem se aproximou do veado, Miguel usou a corda como laço. Lançou-a em volta do tronco do criado, imobilizando-lhe os braços contra o corpo. Prendeu o laço com um esticão e partiu a galope, arrastando o homem atrás de si. Por momentos, eu fiquei desorientado, siderado - como se aquilo que estava a ver não pudesse estar de facto a acontecer. E pensei que talvez Miguel estivesse a fazer uma brincadeira em que o criado desempenhasse um papel voluntário. O som produzido pelo corpo do homem a roçar na neve lembrou-me de quando eu descia de trenó com o Sérgio as encostas do nosso domínio. Eu agarrava-me ao pescoço do Sérgio e gritava de pavor enquanto saltávamos por cima dos ressaltos da descida e nos desviávamos das rochas e das árvores, às vezes por pouco. A berraria do Senor Clemente acordou-me das minhas divagações. O pai Clemente ria-se e apontava na direcção do criado que, indefeso, derrapava pelo chão.
Antes que eu conseguisse organizar as ideias, o Andrés partiu em perseguição de Miguel. Eu via os cascos do cavalo bater no chão gelado e via a silhueta imponente do meu amigo, de costas para nós, ganhar rapidamente terreno a Miguel. O Andrés desembainhou o punhal e debruçou-se para a frente na montada. Parecia um leão pronto a formar o salto, um guerreiro a preparar-se para desferir o golpe de misericórdia. Brandiu o punhal no ar. O Senor Clemente perdeu a vontade de rir.
Mas a hora de Miguel Clemente ainda não tinha chegado. O Andrés colocou-se ao lado do vizinho. Com um golpe certeiro, cortou a corda que atava o criado. O homem deslizou uns metros antes de abrandar e se ir deter num banco de neve. O Andrés recolheu o punhal. Trotou até junto do criado caído e debruçou-se para o ajudar a pôr-se em pé. O homem não parecia estar ferido.
Miguel galopou ainda mais uns segundos antes de dar meia volta. Voltou para junto do grupo com a corda cortada na mão, e a rir-se.
- Barão Corrêa - disse. - Se eu soubesse que o Andrés gostava tanto dos sem-terra tinha-lhe trazido dois servos de presente.
O Barão Corrêa, de boca aberta, fitou o vizinho com ar incrédulo. Isabel, que estava afastada do grupo, dirigiu-se, a trote, para Miguel. Aquele movimento nada tinha de extraordinário. Mas percebeu-se, sem margem para dúvidas, que ia cumprir uma missão séria. Um a um, todos nós acompanhámos com os olhos a sua trajectória. Quando Isabel estava mesmo de frente para Miguel, endireitou-se no cavalo e assim ficou, hesitante, durante uns segundos. Deu a impressão de que ia dizer alguma coisa. Mas não encontrou as palavras certas. De repente, deu uma valente bofetada na cara de Miguel. O som seco ecoou pelo vale, subiu às montanhas e voltou a descer.
Miguel ficou perplexo e sem reacção diante da sua agressora. Estava sem chapéu, que tinha ido parar ao chão coberto de neve. Parecia uma criança, envergonhado com o castigo inesperado e público aplicado por uma mulher que tinha pouco mais de metade da sua idade. Cobriu com a mão a face atingida, tentando disfarçar o ardor da bofetada. Isabel não se mexeu. Eu vi, pelo canto do olho, que o Andrés mantinha a mão no punhal, não fosse Miguel tentar responder à irmã. Foi um momento de grande tensão. Até o meu cavalo, Pancho, ficou totalmente imóvel, sustendo a respiração.
Até que no rosto de Miguel se estampou um sorriso amarelo.
- As mulheres histéricas - disse - deviam ficar em casa enquanto os homens vão à caça.
Miguel desmontou, apanhou o chapéu do chão e sacudiu-lhe a neve dos folhos de seda. Montou outra vez e voltou para o pé do pai.
Nessa noite, ao jantar, ignorámos o incidente e os Clemente. Estava tudo dito. O Barão Corrêa elogiou a minha perícia com o arco, mas tudo o que eu sentia era vergonha. Só queria poder reviver o momento em que Miguel tinha lançado o laço. Talvez assim conseguisse cortar-lhe a corda com uma flecha e pôr cobro àquela palhaçada a tempo de evitar que o criado sofresse tal indignidade. Sentei-me à mesa sem fome, apesar do dia longo que tinha tido. Olhava para o Andrés e de vez em quando para Isabel, e os gestos nobres de um e de outro só acentuavam em mim o sentimento de que não me tinha comportado à altura.
O Barão Corrêa afirmou que Isabel se tinha revelado uma amazona muito capaz e estava pronta para usar arco. Isabel ficou radiante. Com a boca cheia de carne de veado, o Andrés grunhiu um protesto. O Barão Corrêa pediu-me para ensinar a filha a atirar ao arco.
- Pai - protestou o Andrés, com veemência - não fica bem uma mulher de arma às costas. É impróprio.
- Também foi impróprio - reagiu Isabel - que Eleanor da Aquitânia envergasse a armadura antes de partir para a luta contra os sarracenos na Síria, há cem anos?
- Ó Isabel, - disse o Andrés - eu pensava que vós éreis contra a cruzada.
- Pois estais enganado, meu irmão. Eu sou é contra a motivação pela qual vós quereis tomar a Cruz.
- Pai, a Isabel está a falar por sofismas. Condena o acto que agora arvora em exemplo virtuoso.
- Francisco, - disse o Barão Corrêa, ignorando por momentos os filhos altercantes. - Durante três anos, eu lutei lado a lado com o Tio Ramón. Muitas vezes enfrentámos forças muito mais numerosas do que as nossas. Mas nenhuma das provações por que passei me preparou para os desafios que os meus próprios filhos me colocam.
O Barão virou-se para o Andrés.
- Eleanor era Rainha de França e Inglaterra, não era, Andrés?
- Era, sim, Pai, - respondeu o Andrés - mas era da realeza.
- Se Eleanor pôde ir lutar contra os infiéis - disse o Barão - com certeza que a Isabel pode usar arco.
- Francisco, que me dizeis? - perguntou o Barão. - Ensinais Isabel a atirar?
- Claro, Tio, - disse eu. - Fá-lo-ei com todo o gosto.
Isabel beijou o pai e agradeceu-me. Eu senti-me como se tivesse acabado de receber um grande presente que não merecia. O Andrés abanava a cabeça, num protesto mudo.
Rolando Esteban era um escudeiro fiel ao seu amo. Era leal, tinha bom feitio e era muito trabalhador. Tinha pouca destreza no manejo do cavalo, o que fazia dele o pau de cabeleira ideal para as minhas lições com Isabel. Ao nascer do sol, partíamos os três a cavalo em direcção às montanhas, onde as árvores serviam de alvo ao treino de tiro de Isabel. Rolando perdia invariavelmente o fôlego e fazia um esforço denodado para não nos perder de vista, a mim e a Isabel. Nós nunca tentávamos deixá-lo para trás, pois isso iria pôr em perigo a honra de Rolando e de Isabel. Mas, para todos os efeitos, Isabel e eu cavalgávamos sozinhos, lado a lado.
O sol da manhã subia depressa no céu. Feitas as saudações iniciais, não trocávamos palavras durante a caminhada até às montanhas. Era como se a visão do alvorecer a inundar as montanhas no seu despertar dourado tornasse a nossa conversa supérflua, ofensiva para a paisagem sem mácula. Até as discussões de Isabel com o Flacito ficavam reduzidas ao silêncio.
Quando chegávamos ao bosque, eu demostrava a maneira correcta de disparar o arco, exagerando e separando os segmentos consecutivos do movimento total - colocar a flecha exactamente perpendicular ao arco, puxá-la bem para trás, apontar ao alvo e disparar. As lições constituíam um bálsamo, com o sol a projectar sobre o meu rosto o seu brilho, dissipando a névoa sombria dos dias e noites de Monteada.
Isabel e eu pouco falávamos - apenas o suficiente para trocar impressões sobre a mecânica de um tiro bem feito e para identificar determinados alvos. Eu não estou a par das atitudes ou actividades femininas, e não sabia se o silêncio reinante entre nós seria embaraçoso para a menina. Ao fim da primeira semana, ensaiei um começo de conversa. Estávamos a uma hora de caminho da propriedade, quase em plena montanha, quando lhe dirigi a palavra.
- O Miguel Clemente mereceu a bofetada que vós lhe destes.
Como Isabel não respondeu, presumi que o vento tivesse levado as minhas palavras. E repeti o que tinha dito.
Ela ia a olhar em frente, na direcção das montanhas.
- Sim, - disse ela. - Já tinha ouvido.
Voltámos a mergulhar no silêncio - no relincho dos cavalos, no chiar da neve debaixo dos cascos destes.
Quando uma pessoa está a aprender a atirar, é essencial que adquira os gestos correctos. Os maus hábitos são difíceis, quando não impossíveis, de reverter. Nesta fase da instrução, é frequentemente necessário o contacto manual - foi assim quando o Sérgio me ensinou e quando o meu pai o ensinou a ele.
Na primeira semana, eu e Isabel concentrámo-nos muito na posição correcta do corpo e no tempo de disparo. Para lhe corrigir a contorção da postura, eu punha-me diante dela e, com as mãos, ajustava-lhe a posição das ancas. Para lhe corrigir a tendência para disparar prematuramente, punha-me atrás dela, com o peito contra as suas costas, as minhas mãos sobre as suas para as guiar. Nesta posição, as nossas faces roçavam uma na outra. Eu sentia-lhe a respiração breve enquanto apontava o arco. Às vezes inspirava o ar que ela tinha acabado de expirar.
No espaço de poucas semanas, a pontaria de Isabel melhorou espectacularmente. Eu ensinei-a a atirar a cavalo, primeiro a trote e depois a galope. Fiz-lhe prelecções sobre as subtilezas da caça - a identificação dos diferentes tipos de pegada na neve, a necessidade de se ficar imóvel para detectar o movimento da presa, a importância do primeiro tiro. Ela escutava-me sempre com grande paciência, mas eu estava convencido de que sabia mais do que dava a entender. Digo isto porque nunca precisava de dizer as coisas duas vezes. Isabel parecia apreender a técnica adequada logo que eu fazia as primeiras correcções. Chegava a ser excessivamente delicada, como se não quisesse ferir os meus sentimentos revelando até onde iam de facto os seus conhecimentos e, consequentemente, a inutilidade das minhas prelecções.
Duas semanas depois da nossa primeira lição, o Barão Corrêa autorizou Isabel a levar um arco para a caçada. No percurso até às montanhas, o Barão Corrêa fez-me uma série de perguntas sobre a pontaria de Isabel.
- Tende paciência, Tio, - disse-lhe eu. - Em breve ireis poder apreciar as aptidões da vossa filha.
Isabel cavalgava atrás de nós, aparentando indiferença. Eu sabia que ela estava ansiosa por mostrar o que sabia, quanto mais não fosse para irritar o irmão, que cavalgava, cabisbaixo, a meu lado.
Quando chegámos ao bosque, toda a gente desmontou dos cavalos. O Barão Corrêa indicou a Isabel vários alvos - árvores, ramos, arbustos. Isabel disparou uma flecha sobre cada um deles. Ao ver a habilidade da filha, o Barão Corrêa foi aumentando a dificuldade. Isabel respondeu garbosamente ao desafio. Falhou alguns alvos mas, globalmente, saiu-se muito satisfatoriamente.
Quando deu por terminado o teste da filha, o Barão Corrêa pousou a mão no meu ombro e pronunciou o seu veredicto. - Muito bem, Francisco. Excelente trabalho.
O Andrés atirava pedras a rasar o campo de neve, fingindo ignorar a exibição da irmã.
Montámos a cavalo e seguimos caminho. O Barão Corrêa falou do tempo propício mas ninguém parecia prestar-lhe grande atenção. Eu fiz um ou outro comentário breve, mas ia concentrado na paisagem, atento a qualquer movimento. Não tardou muito que deparássemos com vários veados a pastar num vale. Eles também se aperceberam da nossa presença e fugiram para os bosques próximos. Todos nós olhámos para Isabel, mas ela não esperou que lhe dissessem nada. Esticou o arco apontado a um animal tresmalhado. Depois largou o cordão retesado. O veado tropeçou na neve e caiu redondo.
A lâmina tinha-lhe trespassado o ombro, mas o veado estava apenas ferido, deitado de lado, emitindo um guincho lancinante, arrepiante. O Andrés largou a galope até junto do animal, desmontando de punhal na mão. Afastou-lhe as orelhas pendentes e cortou-lhe as goelas de um lado ao outro. O veado calou-se; a cabeça mergulhou na neve fofa. O Andrés voltou para junto do cavalo, a olhar para a irmã e a limpar lentamente à manga as duas faces ensanguentadas da lâmina do punhal. Mas Isabel nem deu pela presença do irmão. Parecia enfeitiçada pela poça de sangue escarlate empapada no branco da neve. Tinha as mãos em concha a tapar-lhe firmemente a boca. Até que o Barão Corrêa a afastou dali.
Todas as manhãs, Isabel metia os restos de comida do dia anterior num grande saco de pele. Quando regressávamos das nossas lições de tiro ao arco, ela percorria a cavalo vários pontos do domínio da família, a distribuir comida por famílias de servos que não podiam trabalhar, por estarem doentes ou acidentados.
O Barão Corrêa sentia-se dividido quanto às actividades caritativas da filha.
- Isabel, - disse um dia, ao jantar - acho louváveis as visitas que fazeis pelos vários pontos do nosso domínio. A família deve demonstrar a sua benevolência para com aqueles que dela dependem.
- Obrigada, Pai, - respondeu ela. - Já fiz muitas amigas.
- Pois é, Isabel. - O Barão Corrêa levantou o indicador. - Era disso que eu vos queria falar. Estou ao corrente dos vossos contactos com os nossos servos. Minha querida, amizade é coisa que existe entre pessoas da mesma classe. Por exemplo, o vosso irmão e o Francisco são amigos. A sua amizade assenta não só na sua mútua afinidade mas também na semelhança das suas situações, oportunidades, relações. Se duas pessoas partilhassem uma afinidade mas vivessem em mundos diferentes, a amizade seria impossível. Seria contra a natureza. Simpatia, sim. Caridade, também. Mas não amizade. Como sois muito nova e sois rapariga, estas complexidades talvez se tornem difíceis de entender. Quando vos sentirdes confusa, reparai no exemplo do vosso irmão, e no meu. Estais a entender o que o vosso pai vos quer dizer, Isabel?
- Acho que sim, Pai, - respondeu Isabel. - Quereis dizer que o Andrés pode ser amigo do Miguel Clemente mas não pode ser amigo do Ernesto, nosso moço de estrebaria, porque o Ernesto é de condição inferior.
- Exactamente, minha querida - declarou o Barão, triunfante.
- Andrés, - disse Isabel - posso pedir-vos conselhos sobre estas questões, de vez em quando?
O Andrés tinha a atenção concentrada na comida que tinha no prato e foi apanhado desprevenido pela pergunta da irmã. Hesitou por momentos antes de responder. - Com certeza. - O Barão Corrêa fez um sorriso largo e satisfeito.
- Irmão, - disse Isabel - será que vos posso maçar já com uma pergunta rápida?
- Sim, Isabel. - O Andrés não levantou os olhos do prato. - O que é?
- Preferíeis a amizade do Ernesto ou do Miguel Clemente?
- O Andrés - interrompeu o Barão Corrêa - tem estado concentrado na comida, minha querida. Talvez seja melhor explicar-lhe o contexto. Estas questões são muito complexas.
- Não, Pai - disse Isabel. - Estou certa de que o meu irmão, um homem de dezanove anos, compreende intuitivamente estas matérias.
Seguiram-se uns breves momentos de indecisão antes da resposta do Andrés. Olhou com atenção para o Barão Corrêa, como se a resposta estivesse no sorriso contido do pai, e decidiu-se.
- Do Ernesto, claro - declarou o Andrés. - O Miguel Clemente é um crápula.
Dito isto, o Andrés retomou a sua refeição, lançando um olhar desconfiado na direcção da irmã.
- Tendes razão, Pai - disse Isabel. - Estas questões são mesmo muito complexas.
Durante o resto da minha estada em Girona, o Barão Corrêa não voltou a levantar a questão da amizade entre Isabel e os servos. Mas preocupava-o a segurança da filha nas suas viagens pelas diversas aldeias e deu instruções ao Andrés para que fosse com ela. Eu acompanhava o meu amigo e sua irmã nestas voltas pelo domínio da família. Quando Isabel percebeu que tinha dois acompanhantes, passou a recolher outras coisas - roupas, utensílios, tochas, calçado - que o Andrés e eu, quais vendedores ambulantes, carregávamos atrás dela. Isabel era bem conhecida entre os servos da família Corrêa, e as suas visitas eram sempre bem recebidas. Até parecia que sabia o nome de toda a gente. Caminhava de braço dado com as raparigas do campo e respectivas mães, embrenhadas em animadas conversas sobre uma criança doente, uma colheita perdida, uma disputa entre irmãos, ou mesmo sobre os potenciais candidatos à mão de uma rapariga da família. Eu, que nunca tinha conhecido de perto uma camponesa, ficava fascinado com aquelas conversas e às vezes tentava escutar o que elas diziam.
Isabel e as suas companheiras desciam o caminho principal, rompendo por entre carroças de cavalos, um bando de gansos a grasnar, camponeses que regressavam dos trabalhos agrícolas. De ambos os lados do caminho, saía fumo negro pelos telhados de colmo dos casebres, abriam-se portas por onde entravam e saíam crianças e animais - porcos, galinhas, gatos - que coabitavam com os donos. Ao pé das casas maiores acumulavam-se montes de excrementos, e o cheiro a estrume invadia a rua. O retinir do martelo do ferreiro misturava-se com o ladrar dos cães e o choro das crianças. Um cenário turbulento, mas em que Isabel se mostrava perfeitamente à vontade.
O acidente deu-se numa Segunda-feira, três semanas depois da nossa primeira aula de tiro ao arco. Enquanto Isabel dava as suas voltas com as pessoas da aldeia, o Andrés e eu ficámos fora do povoado, a treinar a troca de cavalos em andamento. Este difícil exercício atraía um público significativo de populares, em especial crianças. E nós fazíamos tudo o que estava ao nosso alcance para os divertir. Montávamos os nossos cavalos a galope lado a lado e, quando estávamos mesmo a par, o Andrés levantava-se nas esporas, agarrava a sela do Pancho e içava-se para trás de mim. Depois eu agarrava na crina farta do cavalo dele e saltava-lhe para a sela. Quando nos saía bem, a manobra era espectacular. Os aldeões batiam as palmas e gritavam de entusiasmo. Até os cavalos pareciam gostar do desafio. O Pancho abanava a cabeça e relinchava, depois de cada troca bem sucedida.
Ao fim de uma troca difícil e um tanto ou quanto atribulada, um dos nossos espectadores, um rapazinho, disse-nos que a "senhorita" se tinha ido embora para uma aldeia próxima. Partimos a cavalo atrás de Isabel, na esperança de a apanhar antes de ela alcançar o destino seguinte. Quando íamos quase a chegar lá, avistámo-la. Estava imóvel, em cima do cavalo, no meio de um lago gelado onde, segundo disse o Andrés, se ia nadar durante os meses de Verão.
- Ah, a minha impaciente irmãzinha resolveu esperar - disse Andrés.
Mas Isabel não estava à espera. À medida que descíamos em direcção ao lago, foi-se tornando evidente a posição perigosa em que ela se encontrava. O gelo tinha perdido espessura com o sol da tarde e o peso de uma pessoa a cavalo tinha causado fissuras à superfície. Isabel tinha medo de que o gelo cedesse se ela se mexesse.
Quando chegámos ao lago, o Andrés saltou do cavalo e correu na direcção da irmã. Eu meti as esporas no Pancho, que avançou, e agarrei o Andrés pelo ombro no preciso momento em que ele ia a pôr o pé no gelo.
- O gelo não aguenta o teu peso, - disse eu. - Vais ao fundo antes de chegar ao pé dela. Vou lá eu buscá-la.
O Andrés hesitou. Tapou a cara com os punhos cerrados. Depois recuou para a margem. Eu desmontei, mantendo-o preso pelo ombro, não fosse ele mudar de ideias.
- Irmã, - gritou o Andrés. - Deixai-vos estar quieta. O Francisco vai aí buscar-vos.
Eu entreguei a minha capa ao Andrés e pousei os joelhos e as mãos no chão, começando a gatinhar na direcção de Isabel. Uma fina camada de água à superfície do gelo encharcou-me a roupa - os joelhos, as canelas, as mãos enluvadas. Fui falando com Isabel enquanto me aproximava dela, dizendo-lhe que ia correr tudo bem, que o gelo ia aguentar o peso. Quando estava a dez passos dela, disse-lhe que desmontasse devagarinho e se deitasse no chão de barriga para baixo. Ela passou ambas as pernas para um dos lados do Flacito, mas hesitou em largar a rédea e tactear o gelo.
- O gelo aguenta, - sosseguei-a eu. Ela deixou-se deslizar pela ilharga do cavalo e pousou os pés, a medo, em cima do gelo.
Da margem mais distante do lago veio um estrondo horrível. Começou como um rumor quase imperceptível. As vibrações transformaram-se num troar cavo que atravessava o vidrado negro. E a superfície fracturou-se. Parecia o ranger sonoro da porta de uma velha igreja de pedra a abrir-se com dificuldade nos gonzos ao cabo de décadas sem uso. Uma fenda larga e bem visível abriu caminho desde a margem mais distante até Isabel. Isabel ficou paralisada, a balouçar em cima de um chão sólido que estava prestes a desaparecer. Branca de medo, olhou para mim - com uma expressão de súplica, como se estivesse na minha mão mudar o curso dos acontecimentos.
A fenda foi ganhando velocidade até chegar mesmo ao ponto em que estava Isabel. Fez uma breve pausa por baixo dela, como se não conseguisse decidir se havia de interromper a marcha, e depois continuou até à outra extremidade do lago. Seguiu-se uma trégua breve e silenciosa.
O Andrés, aproveitando a acalmia passageira, gritou da margem. - Estamos salvos, salvos!
Foi então que tudo aconteceu. Isabel desapareceu. O gelo em que estava assente cedeu. Desapareceram sem deixar rasto, ela e o Flacito, engolidos pelo lago negro. Eu rastejei rapidamente na direcção da fenda. A fina camada de gelo aguentou-me enquanto eu perscrutava a escuridão à procura de Isabel e gritava o seu nome - como se ela me pudesse responder.
A água fria batia contra a lâmina de gelo, salpicando-me as mãos. O Andrés berrava. Eu ouvia-o aproximar-se, mas as perguntas frenéticas que ele fazia pareciam ressoar cada vez mais longe.
Aquele negrume gelado chamava-me. Ou seria a própria morte? Deslizei pelo gelo e caí no buraco. Senti o corpo em brasa, por causa da água gelada. Mal conseguia respirar. Bati os pés para me manter à tona e olhei para o céu azul, para as nuvens exangues, suspensas, imparciais, que passavam lá em cima. Flecti os joelhos contra o corpo, juntei os braços e mergulhei na água turva.
Abri os olhos lá em baixo, mas estava escuro como breu. Fiquei debaixo de água tanto tempo quanto conseguia manter-me sem respirar, após o que regressei à superfície. Nem sinal de Isabel. O cavalo veio à superfície perto de mim. Parecia movimentar-se ao retardador, batendo as pernas contra o rebordo da água, esmagando o gelo no processo de alargar a zona escura. O Andrés tinha conseguido chegar ao rebordo do buraco e berrava palavras desconexas e incompreensíveis.
Eu respirei fundo e voltei a mergulhar. Impeli-me para o fundo com longas braçadas. O lago era surpreendentemente fundo. Levei vários segundos a descê-lo. Quando toquei no fundo, não via nada. Nadei em círculo debaixo de água, tentando bater o máximo de espaço possível. Tacteava à minha volta como um cego, mas só sentia água. Isabel não estava em lado nenhum.
Exalei lentamente o meu último sopro. Senti uma dor aguda, como se tivesse uma tenaz a apertar-me o peito, esmagando-me as costelas e a espinha. Apesar da dor que sentia, não queria emergir. Como havia de voltar para encarar o Barão Corrêa e dizer-lhe que a filha tinha morrido? Como havia de dar tão grande desgosto à família Corrêa?
A pouco e pouco, a dor foi cedendo, como se alguém tivesse aliviado a tenaz, e, apesar dos meus pensamentos tristes, experimentei uma estranha sensação de paz. Estava tão cansado, que a sepultura gelada me parecia um fim repousante.
Perguntei a mim mesmo onde nos iriam encontrar, a mim e a Isabel, quando, na Primavera, o gelo derretesse. Talvez nos encontrassem perto um do outro - quase a tocar-nos mutuamente. Ouvia o bater do coração no vazio silencioso daquele buraco, e via-me suspenso e a flutuar enquanto a água gelada se apossava do meu corpo. Perguntei a mim mesmo se o meu irmão teria experimentado as mesmas sensações ao afogar-se no oceano. Perguntei a mim mesmo o que seria o jantar dos Corrêa naquela noite.
Estendi os braços o mais possível e suspirei em silêncio como se me preparasse para adormecer. Era uma rendição serena. Quando tinha o braço direito completamente estendido para cima, senti a mão tocar numa massa sólida. Pensei que era um bloco de gelo a descer, mas quando estendi o outro braço encontrei um tornozelo delicado. Era de Isabel.
O sol devia estar a incidir directamente sobre o lago, porque quando puxei Isabel para mim vi-lhe claramente o rosto. Tinha os olhos fechados. Os cabelos loiros cobriam-lhe a face de remoinhos. A pele parecia porcelana, suave como a figura de Cristo que havia na parede do meu quarto, na casa dos Corrêa. Estava linda.
Os gritos desesperados do Andrés penetraram naquele espaço silencioso e foi como se me tivessem acordado de um sonho. Levantei os olhos, na direcção da voz, na direcção do sol. Estava vivo. O Andrés chamava-me de regresso ao mundo.
Enfiei os braços por baixo dos de Isabel e nadei com os pés. Subimos a caminho da luz. Pareceu-me que a nossa subida tinha durado vários minutos. Ou seriam dias?
Salva-me, ó Deus, porque as águas quase me submergem.
Chegámos finalmente à superfície, numa explosão de gelo e fogo. Isabel estava petrificada. Precisei de quantas forças tinha para levar o seu corpo até à placa de gelo. O Andrés fazia-me gestos frenéticos. Eu empurrei-a em direcção a ele. Ele agarrou-a pelos braços e arrastou-a para chão firme. Eu fui atrás, a gatinhar para longe daquela negra câmara funerária.
Durante vários minutos, deixei-me ficar deitado no gelo de barriga para o ar, a ver o meu amigo tentar trazer a irmã de volta à vida. O Andrés abanava-a furiosamente e gritava o seu nome. Parecia que os gritos dele vinham de dentro de mim, uma dor que trespassava o torpor gélido e me rasgava o peito como uma flecha farpada. Fechei os olhos e arrependi-me de ter trazido o corpo dela à superfície. Desejei nunca ter saído de Barcelona para vir para casa dos Corrêa.
De repente, ela acordou. Arregalou os olhos cinzentos - espantada, aterrada - como se estivesse a ver pela primeira vez o mundo em toda a sua triste e infeliz beleza. E depois desatou a arfar e a tossir furiosamente, expelindo uma golfada de água. O Andrés segurava a irmã pelos braços para a imobilizar. A água limpa jorrava-lhe da boca como se ela tivesse engolido meio lago. Ao contemplar-lhe a cara pálida, azulada, senti um aperto no peito. Senti uma estranha pressão no fundo dos olhos, como se neles se estivessem a formar lágrimas que uma força interior se recusava a libertar. Estendi a mão por sobre o gelo e tacteei a água que o corpo de Isabel expelia, morna.
A tosse de Isabel amainou e o Andrés pousou em cima do gelo o corpo inerte da irmã. Desapertou a fivela que lhe prendia a capa e embrulhou-a naquele manto castanho. Disse-me que olhasse por Isabel enquanto ele ia buscar a corda que eu trazia sempre presa à sela do Pancho. Pensou que podíamos prender-lha à volta da cinta e puxá-la para a margem. Quando o Andrés se afastava, a rastejar, Isabel começou com arrepios. Eu cingi-a contra mim, na esperança de a aquecer e lhe atenuar os arrepios - mas em vão, porque também eu estava encharcado e enregelado.
Fiquei a ver o meu amigo manobrar o corpo volumoso para não se sumir pelo gelo - a gatinhar, a rebolar, a marinhar - até que conseguiu alcançar a margem. Em terra firme, o Andrés correu para o Pancho, a buscar a corda. Ainda ele não tinha chegado ao pé do meu cavalo e já se ouvia outro baque. Segui com os olhos a nova fenda, que num instante rasgou o lago num movimento de ziguezague, cortando-nos o acesso à margem. A placa em que Isabel e eu estávamos assentes mexeu-se até ficar inclinada para a intersecção entre as duas fissuras. Parecia que toda a superfície gelada do lago ia soçobrar de uma vez só.
Quando voltei a olhar para a margem, já o Andrés tinha pegado na corda e voltado. Vinha a correr sobre o gelo mas rompeu a superfície perto da margem, num recesso plano do lago. Praguejava e esbracejava na água com as mãos enluvadas.
- Francisco, estou perdido - gritou. - O gelo não pode comigo. Ouve, tu e a Isabel tendes de vir até à margem sozinhos. Tendes de rastejar agarrados um ao outro. Achas que ides conseguir?
Eu não respondi. Não sabia a resposta. Eu, talvez conseguisse chegar à margem. Talvez. Com Isabel, o caso mudava de figura. Estava deitada de lado, exausta. Nem parecia capaz de levantar a cabeça.
- Isabel, - disse eu - temos de sair rapidamente daqui. O gelo vai ceder a qualquer momento.
Ela olhou para mim com ar ausente. Tartamudeou qualquer coisa ininteligível. Eu dei-lhe umas palmadas na cara.
- Isabel, o tempo está contra nós. Temos de rastejar até à margem mais próxima. - Vi que ela se esforçava por perceber o que eu lhe estava a dizer, mas era como eu estivesse a falar uma língua estrangeira.
- Estendei-vos em cima do gelo, - disse-lhe eu - para que nenhuma parte do vosso corpo faça demasiado peso sobre a superfície gelada e a quebre.
Passei-lhe a mão pelo cabelo e repeti isto várias vezes, até que ela fez que sim com a cabeça. Mas não se mexeu. Eu abanei-a e empurrei-a, e ela começou a rastejar. Eu rastejei atrás dela.
Ela avançava muito devagar, a uma cadência incerta, e parava muitas vezes para descansar. Mas ainda assim ia fazendo progressos, lentos mas seguros, em direcção à margem. Quando chegou à nova fissura, Isabel parou. Era o ponto mais perigoso do nosso trajecto. Hesitou em atravessá-lo. Mas não tínhamos alternativa. Eu disse-lhe para continuar em frente. Com toda a convicção que consegui reunir, disse-lhe que estávamos quase a chegar à margem. Ela avançou a medo. Quando ela estava mesmo em cima da fissura, eu ouvi quebrar o gelo por baixo da superfície - camadas que estalavam uma atrás da outra. Isabel esperou o destino em completa imobilidade - lábios cerrados, olhos bem fechados. Estava demasiado cansada para oferecer qualquer tipo de resistência. Eu fitei-a com intensidade, concentrando a atenção na sua testa franzida, como se dependesse da minha vontade mantê-la à superfície.
O som do gelo a estalar tornou-se agudo. Chiava e rangia. Depois abrandou, e finalmente parou por completo, deixando na sua esteira um silêncio inquietante. Isabel entreabriu os olhos e, sem mexer a cabeça, espreitou a superfície em que estava assente. O gelo tinha-se aguentado.
- Avançai, Isabel, - disse eu. - Avançai agora.
Isabel pegou-me na deixa e gatinhou até ao outro lado da fenda.
Olhou para trás e eu fiz-lhe sinal de que continuasse até à margem antes de eu avançar. Se eu me afundasse, o mais provável era que ela se afundasse a seguir. Mas ela recusou-se a avançar mais. E eu não tive alternativa senão rastejar por cima da fenda. O rumor recomeçou e aumentou de volume, até invadir o lago inteiro. Eu acelerei o ritmo. Com a pressa, fiz demasiada força na superfície com uma das mãos, que furou o gelo e mergulhou na água gélida. Mas o buraco não alargou. Com muito cuidado, retirei a mão e continuei. Quando cheguei ao pé de Isabel, acenámos um ao outro. Eu apertei-lhe a mão ao de leve.
Da margem, o Andrés dava-nos ânimo, aos berros. - Só faltam trinta pés. Ides conseguir. - Nós retomámos o caminho, desta vez gatinhando lado a lado. - Quinze pés, - berrou o Andrés. - Está quase.
Eu ia a olhar para baixo quando senti neve entre os dedos. Tínhamos chegado a terra.
Apesar de estar encharcado, tinha a boca seca. Deixei cair a cara contra o chão e abocanhei a neve. Quando olhei para cima, vi a cara lívida de Isabel. Batia os dentes e tremia violentamente. A capa castanha do Andrés, que ela trazia a envolvê-la, estava encharcada. Naquele estado, Isabel não iria resistir muito tempo ao ar livre. Eu e o Andrés trocámos olhares ansiosos e apressámo-nos a preparar os nossos dois cavalos para o regresso. O cavalo de Isabel tinha desaparecido, sepultado naquele lago impiedoso.
Achámos ambos que conseguiríamos andar mais depressa se Isabel fosse comigo a cavalo no Pancho. O peso do Andrés, sozinho, já era um sacrifício para qualquer cavalo, muito maior se tivesse de levar mais uma pessoa. O Andrés ajudou-me a subir para a sela do Pancho e sentou a irmã atrás de mim. Isabel passou os braços à volta do meu tronco e apoiou a cabeça no meu ombro. E foi assim que fizemos a viagem de regresso a casa da família Corrêa.
Ao cair da noite, ao cabo de uma hora de viagem, chegámos à propriedade. Isabel e eu íamos enlaçados num abraço frio, que mais parecia um abraço de morte. O Andrés e vários criados tiraram-nos aos dois de cima do Pancho como se fôssemos uma frágil escultura de cristal. Pousaram-nos diante da lareira do Grande Salão. Estávamos petrificados, na mesma posição em que tínhamos feito a viagem - Isabel agarrada a mim, com o peito colado às minhas costas. Pendiam-nos dos cabelos farripas de gelo como se fossem ornamentos de uma celebração do solstício. Por trás de nós, o Barão Corrêa andava de um lado para o outro, enquanto as chamas oscilavam numa dança frenética e macabra. Quando o fogo derreteu o gelo que nos prendia um ao outro, o corpo de Isabel deslizou para o chão. E ela ali ficou, inerte. O Barão Corrêa levantou-a nos seus braços possantes e subiu as escadas. O Andrés ajudou-me a levantar-me.
Nos primeiros três dias, a casa dos Corrêa viveu num torvelinho. Os criados da casa corriam de um lado para o outro com cobertores e água fria num esforço inútil para estancar a febre que minava o corpo de Isabel. Estava entre a vida e a morte. Os seus gritos delirantes ouviam-se por toda a casa, mesmo no meu quarto com a porta fechada. Quase tudo o que dizia era incompreensível - palavras e frases misturadas num todo indecifrável. Parecia estar a passar outra vez pelos momentos de terror vividos no lago gelado. Gritou várias vezes o meu nome. Chamava por mim como se fosse eu que estava a afogar-me, não ela.
Tínhamos conseguido resgatar-lhe o corpo, mas o espírito continuava aprisionado naquele pesadelo de esquecimento impiedoso. O Andrés ficava sentado à porta do quarto da irmã com a espada pousada no colo, como se estivesse a guardá-la do anjo da morte. Não comia nem dormia. O pai mandou chamar um médico de Tortosa, mas iam passar muitos dias até que ele chegasse e nessa altura já ela teria o destino traçado.
Reconheci a lenta investida do mesmo manto de escuridão que se tinha abatido sobre a minha casa de Barcelona. A casa dos Corrêa estava a ser arrastada para o mesmo luto corrosivo. Eu conhecia-lhe os sinais. Sentia-os em mim e por toda a casa, na família e nos criados - as lágrimas silenciosas, as perguntas desesperadas, as expressões de descrença, as orações sussurradas. Senti-me a reviver o passado. Há quatro anos, deitado na cama, sem sono, à escuta dos murmúrios vindos do corredor, dos preparativos para as cerimónias fúnebres em honra do Sérgio, com o sabor de uma tristeza inefável, como uma Cruz para sempre marcada a fogo na testa.
Um raio de luz que tinha bruxuleado estava agora a ser sufocado. A escuridão voltava como se nunca tivesse deixado de estar presente, como se sempre tivesse ficado à espera da oportunidade de se reafirmar. A morte de Isabel parecia insuportavelmente inevitável. Primeiro o Sérgio, agora Isabel - duas sepulturas geladas.
Ao quarto dia, a febre começou a ceder. Na altura, eu não estava presente. Foi um criado que me reproduziu depois as primeiras palavras que ela tinha pronunciado - Está a nevar? - como se nada tivesse acontecido, como se o mundo não tivesse estado à beira do abismo para dele se afastar depois.
O Andrés veio imediatamente trazer-me as notícias. Não dei pela entrada dele no meu quarto. Pálido e abatido por quatro dias sem dormir nem comer, o Andrés pousou as mãos sobre os meus ombros e falou.
- A Isabel vai salvar-se. - Foi tudo o que me disse.
Quando ele saiu do meu quarto, eu parei de andar de um lado para o outro e fiquei a olhar pela janela. O sol estava prestes a nascer por trás da cordilheira de montanhas. As árvores espreguiçavam-se depois de uma longa noite. A neve branca brilhava à luz violácea.
Fui até ao oratório e ajoelhei-me. Juntei as mãos e rezei uma oração de acção de graças. Depois ergui os olhos para a figura de Cristo. Ele fitava um ponto que estava para além de mim, absorto no seu próprio sofrimento.
Nessa tarde entrei pela primeira vez no quarto da enferma. A cama de Isabel ocupava o meio do compartimento. As paredes eram nuas, caiadas de branco. Em cima de uma mesa de madeira havia um jarro de água e um copo vazio. E havia duas cadeiras, uma ao lado dela, a outra aos pés da cama. O Andrés dormia profundamente, sentado na segunda.
Eu avancei devagar até junto dela. Estava encostada a almofadas e olhava para o exterior, pela janela. Eu sentei-me ao lado da cama. Isabel virou-se e olhou para mim. Esboçou um sorriso suave, mas não falou. Ainda estava fraca. Tinha a pele pálida ruborizada pelo esforço de sobrevivência, pérolas de suor na testa e o peito subia e descia a uma cadência irregular. Eu peguei-lhe na mão esquerda e encostei a palma à minha face. Inclinei-me sobre ela e pousei a cabeça no seu ventre. Caíram-me sobre a cara os seus cabelos loiros: tinham o sabor amargo do lago. Ela pousou a mão sobre a minha cabeça enquanto eu chorava em silêncio para dentro das dobras da áspera manta de lã que a cobria.
Durante mais uma semana, Isabel não saiu da cama. Dormia de dia e de noite, fora uma hora a meio do dia em que remexia sem apetite as refeições preparadas de acordo com as instruções do médico Dom Eximen de Tortosa. O médico chegou dois dias depois de a febre ter cedido. Com Isabel a dormir profundamente, Dom Eximen adoptou uma pose contemplativa, observando a doente, de mão direita na anca e cofiando com a esquerda a barba comprida e desgrenhada.
- Comida, - disse Dom Eximen.
- Perdão, Dom Eximen? - disse o Barão Corrêa.
- Comida, - repetiu o médico. - A menina precisa de comida. Feita a prescrição, de que constavam vários dos seus pratos preferidos, e cobrados uns honorários substanciais, o médico despediu-se. Tinha de regressar a Tolosa, segundo disse, para assistir na doença a "um membro distinto, muito distinto mesmo, da família real". Deixou ficar o seu assistente, o Irmão Tagle, com a missão de administrar "alimento espiritual" a Isabel.
A semana passou sem sobressaltos - a pouco e pouco, Isabel foi recuperando forças e ao fim de algum tempo já dava uns curtos passeios pelo jardim. Eu e o Andrés acompanhávamo-la nestas excursões como ajudantes, um de cada lado de braço dado com ela, a dar-lhe apoio. A princípio Isabel não falava, concentrando toda a sua energia nas voltas ao jardim. Eu e o Andrés aproveitávamos para discutir as virtudes relativas de diversos tipos de arma - se, por exemplo, um homem armado de escudo e espada derrotava outro com idênticas capacidades mas armado de besta e maça; ou se um homem a cavalo, com lança mas sem escudo, vencia outro armado de arco e flecha, sem cavalo mas com boa pontaria. Por várias vezes tive de interromper o Andrés para evitar alusões à cruzada ou aos sarracenos, em especial quando ele começou a servir-se de exemplos de armas da preferência dos infiéis. Nenhum de nós queria provocar a reacção de Isabel, no estado debilitado em que se encontrava. Mas os passeios foram-se tornando cada vez mais longos e ela foi-se interessando cada vez mais pelas nossas conversas.
Durante uma das nossas surtidas, gerou-se um burburinho do lado de fora do muro de pedra que circundava o jardim. Um touro tinha fugido do cercado. Na altura, Isabel ia a falar do seu plano de ampliação da capela da propriedade como presente ao pai pelo seu quadragésimo quarto aniversário. O Andrés, enfadado do assunto e ansioso por participar na refrega, pediu à irmã que o dispensasse para ir ajudar a apanhar o touro tresmalhado. Era uma novidade ouvir o Andrés pedir autorização a quem quer que fosse, muito menos à irmã. Acho que o facto de ela ter estado às portas da morte lhe conferiu temporariamente um estatuto elevado.
Ao ouvir o pedido do Andrés, Isabel olhou para mim de sobrancelhas franzidas. - O meu irmão pediu-me mesmo autorização para se ausentar, ou fui eu que voltei a cair no delírio?
- Pode ser só uma breve recaída - respondi eu.
O Andrés torceu o nariz, olhou em frente e fingiu ignorar-nos. Isabel deixou o irmão neste limbo torturante durante mais um minuto, após o que o beijou na face franzida.
- Querido irmão, - disse. - Tenho aqui um braço fiel em que me apoiar. Ide onde vos chama o coração.
O Andrés foi-se embora e nós ficámos a rir-nos da figura absurda que ele fazia, a esgueirar-se como podia por entre o emaranhado de ramos e a encavalitar-se no muro de pedra para saltar para o outro lado.
Isabel e eu continuámos o nosso passeio pelo jardim. Tentámos retomar a conversa, mas todos os temas que escolhíamos nos pareciam irrelevantes. A minha voz soava esganiçada e monocórdica. Não tardou que os dois estivéssemos a calcorrear o caminho de pedras sem dizer palavra. Eu tentava desesperadamente pensar num assunto novo e promissor. Mas nada me ocorria. A ausência do Andrés tornou-se pesada, desconcertante. A distância que me separava de Isabel tornou-se palpável e opressiva. Começámos a acelerar o passo. Eu tropecei num tufo de erva queimada pelo gelo e por pouco não me estendi ao comprido no chão coberto de neve. O ruído da neve a ranger debaixo dos nossos pés acentuava o desconforto insuportável da situação. De certeza, pensei eu, que as agruras da guerra são mais fáceis de suportar que este penoso silêncio.
- Acho que esta noite vai nevar, - disse Isabel, salvando temporariamente a situação.
- Sim, também me parece, Isabel.
- As nuvens já começam a descer sobre nós - disse ela.
Eu olhei para o céu e vi tudo azul. - Talvez fosse melhor, - disse eu - avisarmos o vosso pai, para ele mandar os criados apanhar mais lenha.
- Excelente ideia, - respondeu ela. - Vou dizer-lhe.
Tentei pensar numa tréplica inteligente para alimentar o diálogo. Puxei pela cabeça, mas o tema estava esgotado, defunto. Voltámos à estaca zero. Mordi o interior do lábio até sentir o sabor do sangue.
- O meu irmão gosta de aventura - disse finalmente Isabel.
- Pois gosta - respondi eu, agarrando o assunto com ambas as mãos. - Em Monteada fazíamos corridas quase todos os dias.
Mas Isabel parecia não me ouvir. Continuou a falar, num tom que me era cada vez mais familiar, com um timbre de voz mais entusiástico. - O meu irmão é um aventureiro. Teria dado um excelente pirata se tivesse nascido em circunstâncias diferentes. Vai tomar a Cruz pela mesma razão que ainda agora o levou a fugir daqui. Pela aventura.
Isabel estava outra vez a observar-me. Eu olhei-a de relance e desviei os olhos, concentrando-me no caminho que tinha à minha frente.
- Mas vós não, Francisco. Vós sois muito diferente do meu irmão. Vós não fostes atrás do touro. Ficastes aqui, ao pé de mim. Não é pela aventura que ides para o Levante.
- Portanto, eu diria que ides por Cristo - continuou Isabel. - Que tomais a Cruz para glorificar o Seu Nome. Só que não tendes os modos severos, mal humorados, que os soldados de Cristo invariavelmente adoptam. E se fosse esse o vosso propósito, duvido que vos désseis tão bem com o meu irmão. Não, não acredito que tomeis a Cruz pela aventura ou por Cristo. E, no entanto, ides arriscar tudo na cruzada.
- Pois eu acho que me avaliais mal, Isabel - reagi eu. - Não sou tão diferente do vosso irmão como pensais. Eu também tomo a Cruz em busca de aventura. Não consigo imaginar-me a levar a vida que o meu pai leva sem antes ter a oportunidade de explorar o mundo.
Ela acenou, pensativa, e deu vários passos antes de voltar a falar. - Não acredito no que estais a dizer.
Falava como se estivesse a afirmar um facto. Estava completamente segura de si. Isabel não acreditava em mim. Aquela menina de dezasseis anos não acreditava em mim. Que direito tinha ela de questionar-me sobre o que quer que fosse, e principalmente sobre aquele assunto?
- Bom, Isabel, é por vontade de Deus. - Reproduzi, num tom paternalista e ácido, o argumento dos nossos antepassados, os primeiros cruzados. O argumento que se tinha transformado em refúgio de idiotas e fanáticos. Ainda não tinha acabado de pronunciar aquelas palavras e já estava arrependido de o ter feito. Dissipou-se em mim a fúria causada pela presunção dela. Ficou-me na boca o sabor amargo do meu sarcasmo.
Não previ a reacção de Isabel. Senti que se lhe crispavam os músculos do braço. Parou e ficou estática. Parecia que estava a analisar a minha afirmação, absorvendo-lhe lentamente o significado. Terminada a análise, soltou o braço do meu e correu para casa à minha frente. Eu fiquei parado uns segundos, a maldizer-me. Depois, os braços e as pernas impeliram-me a correr atrás dela.
Alcancei Isabel ao chegar à porta fechada, com cujo ferrolho se debatia. Agarrei-a por um braço. Ela tentou fugir, mas eu não deixei. Estava a chorar. Eu pronunciei o seu nome.
- Isabel.
A minha entoação denunciou-me. O som agradável, a maneira como as sílabas do seu nome se articulavam. Havia na minha voz uma intimidade espontânea, uma reverência imprevista.
Os lábios de Isabel curvaram-se para baixo num esgar severo, mas nos seus olhos havia doçura. Desistiu de tentar libertar-se.
Fiquei à espera de uma bofetada fria. Não, não fiquei à espera dela. Fiquei na esperança desse gesto, do toque dela, mesmo que agreste. Mas ela não me deu essa satisfação. O seu olhar magoado mantinha a mesma pergunta muda. Eu gemi. Sustive a respiração. Com imagens do meu irmão morto a pairar-me diante dos olhos, tentei responder-lhe.
- Tomo a Cruz por um fantasma, Isabel, um homem que morreu. Calei-me. Nunca tinha falado do Sérgio - nem sequer com o Andrés.
Era um assunto só meu. Mas Isabel estendeu os braços e puxou-me pela capa, como que a dar-me ânimo para continuar, e eu continuei.
- Tomo a Cruz pelo meu irmão. O Sérgio está à espera, suspenso entre o céu e o inferno. Está à minha espera... à minha espera. Só eu posso fazer pender a balança a seu favor. Tenho de cumprir a sua malograda missão.
Ela pegou-me na mão e segurou-a com força.
- Talvez o vosso irmão já esteja no céu, - disse ela - e o vosso sacrifício seja desnecessário.
Eu fiz uma pausa e olhei para longe, para além do jardim, para o horizonte, e depois de novo para Isabel. - Os demónios que não me deixam dormir de noite falam-me dos padecimentos do Sérgio. Sussurram-me segredos sobre o mar que me irá levar à Terra Santa. Chamam-me ao cumprimento do meu destino.
- Podíeis ficar em Girona connosco, Francisco - disse Isabel. - Aqui estais em segurança. Os demónios estão proibidos de entrar no domínio dos Corrêa. - Esboçou um ténue sorriso.
- Pois estão. Eu vi o aviso quando entrei no vosso domínio, há umas semanas - disse eu. - Infelizmente, os meus demónios são analfabetos, uma corja de atormentadores sem maneiras nem educação. Têm pouco respeito pelas habituais cortesias.
Ela deu uma curta gargalhada, mas isso não lhe serviu de alívio. Emprestei-lhe um lenço. Ela limpou a cara com ele e devolveu-mo. As lágrimas doces ficaram indelevelmente entranhadas no tecido. Eu guardei aquela relíquia abençoada debaixo da minha cota de malha, até que a perdi para sempre na batalha de Toron.
Com as costas da minha mão, tentei limpar-lhe as lágrimas. Ela pegou-me na mão, virou-a e pousou os lábios na palma.
O Irmão Tagle, assistente de Dom Eximen, proibiu Isabel de sair nos dois dias seguintes, por causa de uma tempestade de neve que cobria a propriedade de um manto branco. Eu queria estar com ela, mas não na companhia de outras pessoas. Acalentei a esperança vã de que Isabel conseguisse escapar à clausura para um encontro no jardim. Fiquei no meu quarto a espreitar pelos vidros incolores, à espera de a ver aparecer. Declinei o convite do Andrés para ir andar de trenó e simulei um acesso de enjoo para evitar refeições sucessivas. Era ao mesmo tempo prisioneiro e sentinela, confinado aos meus aposentos, mantendo sob vigilância permanente a minha prisioneira do jardim, a Virgem de pedra. Tentei lembrar-me das palavras exactas da minha conversa com Isabel, mas foi nos intervalos de silêncio que vivi naqueles dois dias - os espaços de silêncio entre as palavras que trocámos, os gestos desajeitados que afastavam velhas sombras como as brisas sussurrantes que varriam a neve do parapeito da minha janela.
Ao fim de dois dias, a tempestade acabou. Estava escuro lá fora quando eu saí do meu quarto e percorri sem fazer barulho o corredor até ao quarto de Isabel. Encostei o ouvido à porta e ouvi a voz de barítono do Irmão Tagle. Falava do amor de Deus por todos os seres vivos.
- Jesus Cristo - dizia ele - salvou-vos a vida. Só pelo Seu amor podeis curar-vos por completo. - Estava a ler passagens das Escrituras.
"Eu abri ao meu amado, mas já o meu amado se tinha retirado."
Embora fosse o Irmão Tagle quem estava a fazer as leituras, eu sentia que era Isabel quem pronunciava aquelas palavras, de lamentosa condenação. Encostei a palma da mão à superfície áspera da porta fechada. Ouvia-a respirar.
"Suplico-vos, ó filhas de Jerusalém, que, se achardes o meu amado, lhe digais que estou enferma de amor.”
O TIO RAMON
Eu ia a descer as escadas quando um grupo de três cavaleiros entrou na mansão dos Corrêa. A bater os pés por causa do frio, ficaram a ver-me descer. Quando eu pus o pé no patamar, dois deles atacaram-me. Empurraram-me a cara à parede de pedra fria e encostaram-me à garganta a ponta de uma faca. Abriram-me as mãos vazias. Revistaram-me todo, até aos tornozelos.
- O homem não está armado, Ramón - disse um dos meus interpelantes. - Fala, homem. Quem és tu? Que fazes tu por estas paragens?
O aparecimento do Andrés ao fundo do corredor fez-me sentir um alívio considerável. Infelizmente, ele parecia mais interessado em cumprimentar os meus assaltantes, abraçando-os calorosamente, do que em salvar-me. Até que acabou por reparar que eu estava ali.
- Tio Ramón, - disse ele - o homem que está a puxar o lustro ao chão é o meu amigo Francisco de Monteada. Ele e eu somos os vossos novos recrutas na Ordem de Calatrava.
Quando me senti livre do joelho que me comprimia as costas, pus-me em pé.
- Muito prazer, - disse eu, enquanto apalpava a face dorida. Estendi a mão. Por pouco não fiquei com ela partida, tal a força com que Ramón a apertou.
O Tio Ramón era tanto tio do Andrés como era meu tio. Mas a verdade é que, pelos vistos, toda a gente o tratava assim, talvez em alusão à sua avuncular maneira de ser. Ramón era o Grão Mestre da Ordem de Calatrava e comandante de mais ou menos uma centena de cavaleiros. Era um soldado temível e uma figura imponente. Não era alto. Mas era possante. O essencial do seu peso concentrava-se no peito e nos ombros. Tinha uma calva distinta, larga e enrugada. Uma cicatriz a toda a largura de uma das faces indicava a sua profissão. Tinha uns lábios finos e delicados, que contrastavam com a sua linguagem desbragada e o seu gosto pela ingestão de vinhos doces, duas actividades que mereciam a reprovação do Abade Vincente, do mosteiro cisterciense adjacente à fortaleza de Calatrava. O Abade Vincente parecia comprazer-se em analisar os defeitos espirituais de Ramón.
- Para um homem de Deus, - dizia muitas vezes o Abade Vincente - Ramón está demasiado apaixonado pela vida.
Apesar de ser pessoa de sorriso fácil e de ocasional gargalhada franca, Ramón tinha uns olhos tristes, castanhos com finos laivos dourados, como se a morte de cada um dos seus soldados tivesse deixado neles uma marca. Os olhos eram emoldurados por espessas sobrancelhas grisalhas escuras e por rugas que abriam para as têmporas como raios de sol.
Em Calatrava, Ramón passava os dias com os jovens cavaleiros, a ensiná-los, a espicaçá-los, a aconselhá-los. Era como se, para ele, a Ordem fosse uma família alargada. Fixava rapidamente os nomes de todos nós, os nossos pontos fortes e fracos. Como dizia o Abade Vincent, Ramón tinha o dom de conhecer o fundo de uma pessoa pela direcção e número de rugas que essa pessoa tinha na cara.
- Ramón vê coisas a mais - afirmava o Abade. - Há coisas que o melhor é esperar que seja Deus a vê-las.
Talvez isto fosse verdade em termos gerais, mas não em termos da profissão de Ramón. No auge da batalha, um comandante tem de saber com quem pode contar, quem foge quando vê as coisas mal paradas, quem fica e enfrenta as dificuldades. Em suma, Ramón era um daqueles homens que, pela ordem natural das coisas, comandam outros homens, e quem o seguia fazia-o mesmo sabendo que o esperava uma morte quase certa.
Ramón tinha dois guarda-costas - Bernard e Roberto - embora preferisse chamar-lhes os seus adjuntos. Foram eles que me interpelaram no átrio da casa dos Corrêa. Nunca se afastavam de Ramón, e vigiavam como cães de guarda quem quer que dele se aproximasse. Em temperamento e personalidade, os dois homens eram muito parecidos - sisudos, vigilantes e ferozmente fiéis ao mestre. Nunca os vi sorrir ou franzir o cenho, a não ser quando estavam bêbados. O Andrés costumava dizer, a brincar, que Bernard e Roberto lhe faziam lembrar as duas estátuas de leões que guardavam a entrada do palácio de Barcelona.
O Tio Ramón tinha de andar acompanhado de guarda-costas - já por várias vezes tinha sido alvo de tentativas de assassinato - não por ser o mestre de Calatrava, mas por razões mais seculares. Havia quem previsse que as "indiscrições" de Ramón iriam acabar por lhe sair caras. De certeza que havia homens que o queriam ver morto - os maridos, pais e irmãos das mulheres em questão. Eu tive a minha primeira experiência de combate a defender o Tio Ramón das espadas de assassinos a soldo, contratados por um pai enraivecido. Aliás, não foi bem assim. Eu e o Andrés fomos mais espectadores do que participantes activos.
Eram italianos - um grupo de oito - todos vestidos de igual, capa cor de laranja com dragonas douradas e chapéu triangular preto, de aba larga. Ramón tinha-nos convidado, ao Andrés e a mim, para o acompanhar, e aos seus guarda-costas, ao mercado que havia no exterior do forte da cidade de Calatrava. Isto aconteceu pouco depois da nossa chegada ao forte. Acho que a ideia de Ramón era recompensar-me pela forma pouco ortodoxa como nos tínhamos conhecido. O Andrés e eu deambulávamos por entre a azáfama do mercado, a provar os produtos. Envergávamos as vestes brancas da Ordem e, à cinta, só levávamos punhal. Eu tinha acabado de mergulhar um dedo numa talha de azeite quando o Andrés me bateu nas costas. Provei o azeite antes de me virar. A rua estava vazia. Os sons da negociação e da discussão de preços tinham parado. Os mercadores tinham fugido das bancas.
Apareceram os italianos, quatro de cada lado. O chefe deu um passo em frente. Tinha uma cara comprida e uma testa alta, de pessoa inteligente. Por baixo de um nariz fino e afilado, cultivava um bigode de pontas compridas e enceradas, perpendiculares ao rosto estreito.
Tirou o chapéu, fez uma vénia profunda e apresentou-se como "o venerável Gian Paolo Manzella di Siena - soldado, espião, bon vivant, contador de histórias, renegado, traidor, confidente e assassino a soldo."
Dito isto, pigarreou como se quisesse clarear a voz e um dos seus colegas passou-lhe um rolo de pergaminho atado com uma fita vermelha. O venerável Manzella desfez o laço com grande aparato, desenrolou o manuscrito e começou a ler solenemente num catalão atamancado. Era difícil decifrar o que ele dizia, mas eu percebi que o Conde de Anjou tinha julgado, declarado culpado e condenado à morte o Tio Ramón pela "profanação" da sua filha, Lady Mireille.
O Tio Ramón estava encostado a uma banca, a mordiscar um figo. Eu ouvi-o exclamar "Sim, Mireille, uma linda rapariga". Sorriu amavelmente para o seu homólogo italiano, que enfunou as narinas em tom de desprezo e terminou a leitura: "... assinado Conde de Anjou, Marceau Dourmant, ao décimo quarto dia de Abril do Ano de Nosso Senhor de 1268."
Eu deitei a mão ao punhal. Tinha o coração aos saltos.
Os oito italianos desembainharam as armas a um sinal do Senor Manzella e aproximaram-se da nossa posição. Ficámos cercados. Mas Ramón e os guarda-costas estavam com um ar descontraído, como se enfrentar assassinos no mercado fosse a coisa mais natural do mundo.
- Como está Mireille? - perguntou o Tio Ramón.
- Ah, está muito bem - respondeu o Senor Manzella, torcendo o bigode entre os dedos. - Casada com o mesmo alemão abrutalhado. Uma senhora tão bela merecia melhor. Já vai com seis filhos. Umas pestes, cada qual pior que o outro.
Ramón abanou a cabeça, como quem diz que é uma pena, e suspirou, condoído.
Quando os italianos estavam praticamente em cima de nós, Ramón e os guarda-costas desembainharam as espadas. Hesitaram um momento antes de carregarem para um dos lados. O Andrés e eu fomos atrás. Era difícil ter uma visão clara da situação. Havia galinhas em corrida desordenada e bancas de fruta viradas de pernas para o ar. Retirados os destroços, apareceram dois italianos mortos, esparramados em cima de fruta esmagada e tecidos exóticos. Os seis sobreviventes, entre os quais o venerável Manzella, corriam na direcção oposta, a fugir da cidade. Um ia agarrado a um braço ferido. Outro coxeava.
- Por favor apresentai os meus respeitos a Mireille - berrou-lhes Ramón de cá de longe. E entre dentes, de forma quase inaudível, acrescentou: - Um amor de rapariga. - Acabou de comer o figo que ainda tinha na mão, e regressámos todos ao forte.
Infelizmente, não tínhamos figos para o Tio Ramón comer durante a sua visita ao domínio da família Corrêa. O pai do Andrés não estava à espera da visita do seu antigo camarada. Caso contrário, teria mandado vir os melhores de Granada. Ramón era um grande apreciador.
Estava eu ainda a recuperar da minha desagradável recepção, massajando o pescoço, quando o Barão Corrêa chamou Ramón do alto das escadas. Deve ter ouvido a algazarra. Desatou pelas escadas abaixo, dois degraus de cada vez.
- Ramón - disse - parece que perdestes o cabelo nalgum campo de batalha.
- Já passou assim tanto tempo? - retorquiu Ramón, com um sorriso. Beijaram-se nas duas faces e repetiram o gesto várias vezes, estudando- se mutuamente como se quisessem catalogar as mínimas mudanças na cara um do outro.
- Eu e o vosso pai - disse Ramón para o Andrés - combatemos juntos no sul de Espanha contra os infiéis. Devo a minha vida à sua espada. Salvou-me muitas vezes.
- Vinde cá, minha filha - disse o Barão Corrêa a Isabel, que estava na outra extremidade do corredor - vinde cumprimentar o vosso padrinho, o padrinho dos meus dois filhos. Maior amigo não pode haver.
Isabel olhou em volta e avançou a medo para ir beijar Ramón.
- A última vez que vos vi dáveis-me por aqui - disse Ramón, pondo uma mão à altura da cinta. - Fizestes-vos uma mulher elegante, tal como vossa mãe.
Isabel fez uma vénia mas não disse nada. Percebeu que a chegada de Ramón significava a partida do irmão, e a minha. Não queria fingir que lhe agradava tal perspectiva, mesmo sendo afilhada de Ramón e havendo uma grande afinidade entre o seu pai e aquela visita.
O jantar foi servido no Grande Salão. Foi uma noite de festa. Um constante cortejo de criados entrava e saía da cozinha transportando diversos pratos - peixe, carneiro, sopa de legumes, veado servido com um delicioso molho de ervas maceradas e misturadas com vinho, gengibre, cravinho e canela. O animal tinha sucumbido no dia anterior à caçada. O Tio Ramón e o Barão Corrêa ocupavam os dois topos da mesa. Isabel sentava-se à esquerda do pai, ao meu lado. Bernard e Roberto, guarda-costas de Ramón, um de cada lado dele. Escorraçavam os criados que tentavam aproximar-se de Ramón o suficiente para poderem servi-lo. Até que os criados desistiram e passaram a usar-me como intermediário para fazer chegar a comida a Ramón.
O Barão Corrêa mandou o Andrés à adega buscar uma caixa de vinho importado de França. Regressado o Andrés e enchidas as nossas canecas, Ramón passou um relance rápido à volta da mesa.
- Ao filho do Rei, o bastardo Fernando Sánchez - proclamou Ramón, antes de emborcar de um trago o conteúdo da sua caneca e bater com o fundo desta no tampo da mesa.
O bater da caneca de barro sobre a robusta mesa de madeira foi prontamente seguido pelo das duas canecas vazias dos guarda-costas, Bernard e Roberto. A de Roberto escaqueirou-se contra a mesa, mas nenhum dos três homens deu sinal de ter reparado. Isabel levantou-se do seu lugar ao lado do pai e orientou os criados na operação de limpar os cacos e substituir a vasilha inutilizada. Ramón serviu-se da manga para limpar o fio de vinho tinto que lhe escorria pelo queixo.
- Recebi um despacho do Rei - disse Ramón. - O velho resolveu finalmente descer do trono e aceitar que nem tudo vai bem no mundo.
O Barão Corrêa inclinou-se para a frente e sussurrou num tom de voz que chegou a todos os recantos da sala de jantar, de tal maneira que até os cães, inclinando a cabeça, desviaram a atenção da comida que havia em cima da mesa e olharam, perplexos, para o dono. - Ramón, acho que devíeis ter mais cuidado na escolha das palavras. Já tendes inimigos que vos cheguem. Nenhum de nós quer, com certeza, que chegue aos ouvidos do Rei a notícia falsa de que se assistiu na minha casa a alguma manifestação de desrespeito por ele.
O Barão Corrêa franziu o cenho a Ramón e, com a cabeça, fez um sinal para os criados. Os criados, por sua vez, baixaram as cabeças, fingindo não ouvir os atrevidos comentários de Ramón nem o pedido do seu amo.
- Podeis estar descansado - disse Ramón - porque o Rei é meu amigo pessoal. E eu amo-o como a um pai. É um homem de muitas qualidades exemplares. Mas é preguiçoso como uma mula de vinte anos. Digo isto com um afecto de filho.
Dito isto, Ramón voltou a erguer a sua caneca, que um criado tinha voltado a encher, e fez um brinde. - Ao Rei e a todos os filhos que porventura tenha.
Bernard e Roberto ergueram as suas canecas, e os três homens voltaram a beber tudo, perante os olhares do Barão Corrêa e dos criados. O Barão Corrêa levantou as mãos e mandou um dos criados ir à adega buscar mais vinho.
- A queda de Antioquia nas mãos dos infiéis - disse Ramón - impressionou muito o Rei. Consta que os sarracenos cortaram o pescoço a todos os cristãos da cidade que não puderam vender ou trocar. No Verão, vai ser lançada uma cruzada a partir de Barcelona, com a missão de reconquistar a cidade e vingar os nossos irmãos. Será comandada pelo próprio Rei, com a ajuda dos seus dois filhos bastardos, Fernando Sánchez e Pedro Fernández. Dom Fernando pediu para a Ordem de Calatrava se incorporar na cruzada ao lado do exército real. Eu não conheço Dom Fernando, mas ouvi dizer que é um guerreiro hábil e corajoso. No mínimo, tem o bom senso suficiente para escolher os meus cavaleiros para combaterem a seu lado. Os cavaleiros de Calatrava lutam como leões na defesa da Cristandade. Não é verdade, Andrés?
- É, sim, Tio Ramón - respondeu o Andrés com grande convicção. - É sabido em toda a Espanha que não há cavaleiros mais corajosos ou audazes que os de Calatrava.
Esta era, sem dúvida, a resposta correcta, e provavelmente verdadeira. Ramón, Bernard e Roberto ergueram as canecas, despejaram o conteúdo e fitaram o Andrés com expressão expectante. Ele olhou para o líquido escuro, levou a caneca aos lábios e bebeu até ela ficar vazia. Uma boa parte do conteúdo caiu-lhe para a capa, mas Ramón ficou satisfeito.
- Andrés - disse ele - já estou a ver que ides dar um excelente guerreiro.
O Andrés ficou muito corado e tartamudeou umas palavras ininteligíveis, como se aquele fosse o maior elogio que alguma vez tinha recebido.
- Tenho pena, meu amigo - disse Ramón, dirigindo-se ao Barão Corrêa - que a minha visita tenha de ser tão curta. Fui chamado ao palácio para acertar pormenores com Dom Fernando. Temos de partir amanhã de manhã para Barcelona e daí para Calatrava, para treinar os meus soldados. Vós dois, Andrés e Francisco, partis na próxima semana directamente para Calatrava. São dez dias de viagem daqui até lá. Gozai os vossos últimos dias de liberdade. Em breve passareis a pertencer-me, Cavaleiros de Calatrava.
O Andrés piscou-me o olho, eufórico, extasiado. Pegou numa criada que tinha vindo pôr uma bandeja na mesa, enlaçou-a pela cintura e dançou à volta da mesa ao ritmo das palmas do Tio Ramón. Bernard e Roberto apanharam a deixa do mestre e puseram-se a bater com as colheres de pau no tampo da mesa. Esta orquestra de três elementos estava surpreendentemente eufórica, e vários outros criados juntaram-se à dança. O Barão Corrêa olhava para o filho com expressão condescendente. Isabel, sem expressão nenhuma, olhava em frente. O Andrés acabou por se cansar e voltar a sentar-se. O jantar prosseguiu.
- Pai, - disse o Andrés - contai ao Francisco como o Tio Ramón vos salvou a vida.
- O vosso pai tem andado por aí a contar mentiras, Andrés? - perguntou Ramón.
- Por favor, Pai - insistiu o Andrés.
- Muito bem, Andrés - disse o Barão Corrêa. - Foi há vinte anos, na última batalha que travei antes de regressar a Girona. Os infiéis tinham acabado de entregar Sevilha às forças cristãs. Os sevilhanos comemoravam nas ruas da cidade. O nosso regimento de Aragão - uns cem soldados - foi ocupar um forte nos arredores de Sevilha. Partimos do princípio de que os muçulmanos tinham retirado todas as suas forças, conforme previam os termos da rendição. Não estávamos à espera de mais combates. Enganámo-nos. Ainda não tinha passado uma semana sobre a nossa vitória quando um dos generais infiéis e a força que comandava cercaram o castelo ao nascer do dia. Deve ter pensado que nós tínhamos algum tesouro escondido no forte.
, Ou talvez quisesse só matar uns quantos cavaleiros cristãos antes de retirar.
- Os infiéis devem ter levado algumas cinquenta escadas para a batalha - todas elas da altura das muralhas do castelo. Antes que nós pudéssemos organizar a nossa defesa, os infiéis avançaram sobre o castelo, encostando as escadas às muralhas. Os soldados deles trepavam rapidamente. Nós corríamos freneticamente à volta do parapeito, empurrando as escadas para fora antes que os soldados infiéis conseguissem chegar ao cimo. As escadas caíam de costas, como árvores cortadas na floresta, fazendo estatelar os homens no chão. Mas eles eram em muito maior número que nós. Até parecia que havia duas escadas que se erguiam por cada uma que nós derrubávamos.
- Quando vigiava as muralhas exteriores, - prosseguiu o Barão Corrêa - vi um assaltante infiel que se aproximava rapidamente da torre do castelo. Corri para a torre e agarrei a escada no preciso momento em que o infiel ia a pôr o pé na ameia. Nenhum de nós tinha sacado da arma.
- Eu e o infiel enfrentámo-nos em cima do rebordo da torre. Ao cabo de alguma luta, eu consegui empurrá-lo para fora do parapeito. Mas as nossas armaduras tinham-se enganchado uma na outra e eu fui parar com ele ao chão, na parte de fora das muralhas do castelo.
- Não me magoei na queda. Aliás, um dos infiéis ajudou-me a levantar-me antes de perceber que eu era um cavaleiro cristão. Vi-me rodeado de uma multidão de soldados muçulmanos, que me observavam com curiosidade. Saquei do punhal e fiquei à espera. Calculei que podia levar pelo menos dois comigo. Eles formaram um círculo apertado à minha volta, mas não atacaram.
- Até que um infiel avançou para mim. Devia ter o dobro do meu peso. Era um gigante. Puxou do punhal. Enfrentámo-nos, rondando-nos umtuamente. A multidão de muçulmanos à nossa volta adensou-se. Pelos vistos, havia muitos infiéis que tinham abandonado as suas funções no cerco para vir assistir ao nosso combate corpo a corpo. - Nós, os soldados cristãos, assistíamos do alto da torre - disse Ramón. - E gritávamos palavras de incentivo ao vosso pai. Eu acho que ele estava a negociar o seu próprio salvo conduto.
- Se eu falei - disse o Barão Corrêa - foi para dar a mim próprio a extrema unção. O infiel era mais forte e mais rápido que eu. Por duas vezes me raspou o punhal pelo peito, quase conseguindo trespassar-me a cota de malha. Movia-me uma perseguição à volta do círculo. Felizmente para mim, ele escorregou, ou vós, Andrés e Isabel, não estaríeis agora aqui. Eu lancei-me sobre ele e apunhalei-o na barriga - um golpe mortal. Os companheiros arrastaram-lhe o corpo para fora do círculo. Pareciam estar a escolher outro para lutar comigo quando Ramón surgiu no círculo. Achei que ele era um anjo caído do céu.
- Que fizestes vós, Tio Ramón? - perguntou o Andrés - lançastes-vos em voo das muralhas do castelo?
- Passei uma corda por baixo dos braços - disse Ramón - e um grupo de camaradas nossos desceu-me até ao chão.
- Sem me dar tempo para pensar, - disse o Barão Corrêa - Ramón enlaçou-me com um braço pelo peito e fomos os dois içados pelo ar. Batíamos com força contra a muralha, mas continuámos a subir. Os infiéis tinham bestas, mas não as dispararam contra nós. Estavam tão espantados que só conseguiam aplaudir, prestando homenagem à bravura de Ramón. Nessa manhã ainda houve mais umas escaramuças, mas a força sitiante debandou pouco depois.
- O vosso pai contou-vos - perguntou Ramón - que me pediu em casamento quando íamos os dois no ar, muito apertadinhos?
- Calai-vos, Ramón - disse o Barão Corrêa.
- Contada pelo vosso pai, a guerra parece um divertimento - disse Ramón. - Eu conto-vos umas histórias verdadeiras sobre a cruzada.
Com a boca cheia de comida, Ramón descreveu animadamente várias batalhas travadas no Levante. Eu e o Andrés escutávamos, absortos. Intercalávamos perguntas quando Ramón passava por cima de pormenores da luta. Bernard continuava a propor brindes, a que todos bebíamos. Todos excepto Isabel. Essa mantinha-se calada, retraída.
- Isabel, - disse Ramón - estais com uma cara que até parece que o anjo da morte visitou a vossa casa. Esta expedição só vai trazer glória para o vosso irmão e para o nome da família Corrêa. O grande exército que o Rei Jaime está a reunir vai esmagar a determinação dos sarracenos. Dentro de poucos anos, reconquistamos Jerusalém. Nessa altura convido-vos a irdes com o vosso pai rezar comigo junto do Santo Sepulcro. Prometo.
As palavras de Ramón não produziram o efeito pretendido. Isabel continuava sorumbática. Ramón percebeu que tinha de adoptar medidas mais drásticas para conseguir que Isabel aderisse àquele ambiente festivo. Deteve-se por momentos em reflexão, começando depois a bater palmas e a incitar os criados a fazerem o mesmo. Fez sinal aos dois músicos para que começassem a tocar. Estes começaram a tanger os seus alaúdes, numa cadência dolente e lírica. Quando a melodia envolvente tinha atingido um ponto alto, Ramón dirigiu-se a Isabel e estendeu-lhe a mão. Ela aceitou-a com relutância e pouco depois estava Ramón com a afilhada a dançar à volta da mesa, ao ritmo marcado pelos músicos. O ritmo acelerou-se, pondo à prova os dotes dos dois dançarinos. Isabel mexia os pés e fazia rodopiar o vestido com uma elegância e um charme que hipnotizavam convivas e criados. As pregas do vestido, resplandecentes de ouro e prata, ondeavam em infinita harmonia. Na face tinha uma velatura de graciosidade impenetrável.
Cativada pela música, Isabel acabou por exibir os laivos de um sorriso, franzindo ao de leve as maçãs do rosto. Ramón sentiu que era chegada a oportunidade que esperava e fê-la rodopiar por entre o cortejo de criados. Quando acabaram, Isabel fez uma vénia graciosa. Ramón foi sentar-se, a transpirar das sobrancelhas, se não triunfante, pelo menos com um certo ar de alívio.
- Enchamos as taças, meus amigos - disse Ramón, quase sem fôlego. - Esta é uma noite de júbilo.
E era. Isabel continuava circunspecta, mas com aquele sorriso que tanto trabalho dera a Ramón suscitar. Eu passei o serão envolto numa névoa. O vinho doce espalhou-se-me por todo o corpo, primeiro pelo peito, depois pelos braços e chegou-me às pontas dos dedos. A minha cabeça andava à roda e eu sentia uma afeição infinita por todas as pessoas presentes na sala. Não me lembro de quantos brindes se fizeram. À Rainha Mãe, aos Apóstolos e todas as suas amantes, a Jesus, José e Maria, a Sansão e Dalila, a Gengis Khan, e a Isabel e sua inebriante beleza. Este último foi de Roberto - as primeiras palavras que ele pronunciou em todo o serão. Acho mesmo que foram quase todas as palavras que eu alguma vez ouvi a Roberto. Ramón e o Barão Corrêa estavam tão bêbados que nem deram pelo atrevimento. Eu olhei de soslaio para Isabel, que olhava em frente e fingia não ter ouvido o elogio de Roberto.
Eu também fiz um brinde: - Ao Roberto, que tem alma de poeta mas esconde-a bem.
Sorri para Isabel enquanto erguia a minha taça. Ela fitou-me com os seus olhos cinzentos a faiscar de indignação, como se tivesse sido eu, e não Roberto, a tomar liberdades inconvenientes.
Apesar do prazer de um serão bem passado, desceu-me pelo peito uma nostalgia melancólica que se foi alojar no fundo do estômago. A notícia dada por Ramón significava que eu ia em breve deixar o convívio dos Corrêa. Tinha passado quase três meses naquela casa, e sentia no peito uma leveza que nunca tinha sentido desde a morte do Sérgio. A solidão persistente, infinda, que reinava em Monteada tinha-se desvanecido. A sua sombra invernosa tinha deixado de toldar as horas de lua cheia. As suas lâminas afiadas tinham deixado de me acordar de madrugada. Olhei para Isabel, que se sentava à minha direita. Ela estava a conversar com o irmão. Eu sabia que talvez não voltasse a vê-la. Só não sabia se ela teria consciência disso. Tive o impulso de lhe falar a sós, como no jardim, só que não estávamos sós. No entanto, o ambiente eufórico daquele serão abria caminho a alguma privacidade. Aproveitei um momento particularmente turbulento, em que o Tio Ramón se tinha posto em pé em cima da mesa de jantar para demonstrar a forma correcta de parar um golpe de espada, para lhe falar.
- Estais feliz pelo vosso irmão e por mim, Isabel? - perguntei.
- Francisco, se encontrardes aquilo que procurais, - disse ela - eu fico feliz por vós.
- Dizei-me então, por favor, o que é que eu procuro? - disse eu. - No meio de tanto vinho e divertimento, já me esqueci do que era.
- Fantasmas e demónios, Francisco. Foi o que vós dissestes. - Isabel pronunciou estas palavras sem amargura, mas com firmeza. A nossa conversa acabou ali. Filha e pai retiraram-se pouco depois da nossa breve conversa. Isabel nem sequer de relance me olhou quando se levantou da mesa e subiu as escadas pelo braço do pai.
Os que ficaram beberam até entrar na sala de jantar o primeiro raio de luz natural. Com um sorriso ténue e cansado, o Tio Ramón anunciou que estava na hora de se retirar. O Andrés já dormia, com a cabeça pousada no braço estendido pela mesa fora. Eu e Roberto avançámos de braço dado, apoiando-nos um ao outro, pelas escadas acima. Quando chegámos ao corredor, ele deu-me as boas noites, antes de cair de borco no chão de pedra. Um grupo de criados que devia vir sub-repticiamente atrás de nós pegou nele e levou-o. Eu entrei no meu quarto a cambalear, dei as boas noites ao meu impassível companheiro pregado na Cruz, e atirei-me para cima da cama completamente vestido.
O Grão Mestre e comitiva já tinham deixado o domínio quando, ao princípio da tarde, eu acordei, com uma insuportável dor de cabeça e a língua encortiçada. O Andrés manteve-me ocupado nos dias seguintes, fazendo a relação do que tínhamos de levar para a viagem, arrastando-me para o mercado, discutindo com os vendedores o preço das provisões. Durante os preparativos para a nossa partida, mal falei com Isabel. Suspirava pela presença dela, mas não sabia o que havia de lhe dizer. Não havia nada a dizer.
Num dia frio e sem nuvens, o Barão Corrêa e Isabel vieram ao pátio despedir-se de nós. O bafo da minha respiração subia no ar fresco. Agradeci ao Barão Corrêa a sua hospitalidade e convidei-o a visitar-nos em Barcelona, em data a combinar. Ele deu-me um abraço caloroso.
- Francisco, - disse ele - para mim sereis sempre um filho.
- E vós para mim um pai - respondi.
- Quando salvastes a vida da minha filha - disse o Barão Corrêa - salvastes a minha própria vida. Ela é a luz deste escuro lar.
Eu fiz uma vénia a Isabel e recomendei-lhe que continuasse a praticar o tiro ao arco. E dei-lhe o meu arco de presente. Por mais de uma vez ela o tinha admirado pela sua delicada construção. Ela disse que o presente era demasiado generoso, mas eu insisti para que o aceitasse. Isabel avançou na minha direcção. Eu recuei um passo e fiquei siderado. Ela beijou-me em ambas as faces e depois agarrou-me pela nuca com as duas mãos e apertou a cara contra a minha. Tudo se passou num breve instante, mas eu fechei os olhos e guardei na memória o odor da sua pele.
Na noite da nossa chegada à fortaleza, Ramón falou aos novos recrutas no refeitório.
- No Ano de Nosso Senhor de 1099, - disse ele - um exército esfarrapado de mil e quinhentos cavaleiros esfomeados montou cerco a uma cidade habitada por mais de cem mil pessoas. O governador egípcio reforçou a guarnição local com um contingente especial de soldados árabes e sudaneses escolhidos a dedo. A cidade era Jerusalém; o exército era o de Cristo. Os nossos irmãos, que estão agora no paraíso, saíram vitoriosos. Em um mês, derrubaram as muralhas e conquistaram Jerusalém.
- Como foi isso possível? Que fizeram esses cavaleiros para alcançar tão estrondosa vitória?
- Foi intercessão de Deus - respondeu um dos recrutas.
- Isso é só parte da resposta - atalhou Ramón. - Cristo inspirou os cavaleiros. Mas os primeiros cruzados também foram mais fortes, mais rápidos e mais disciplinados que os seus adversários. Nunca vos esqueçais da razão que nos leva a fazer um treino tão rigoroso. Um dia ireis servir a Deus da mesma forma que o fizeram os primeiros cruzados.
A instrução de base para um Cavaleiro de Calatrava dura dois anos. O primeiro, de noviciado, é reservado aos aspectos mais espirituais da cavalaria - aprender a liturgia e a Regra da Ordem. No segundo, depois de pronunciados os votos, os cavaleiros concentram-se nos aspectos físicos e militares da nossa vocação.
Mas a armada do Rei Jaime não ia esperar que nós, os vinte e um novos recrutas da Ordem de Calatrava, completássemos o nosso plano de formação. Ramón disse que tínhamos de definir prioridades na instrução. Felizmente, eu e o Andrés tínhamos aprendido a liturgia na nossa qualidade de monges de Santes Creus.
- Os soldados infiéis - disse Ramón - não costumam importar-se com aquilo que nós sabemos sobre os ofícios de oração.
Iríamos passar apenas oito meses na fortaleza. Oito meses em que Ramón nos moldou, fez de nós soldados.
Ao nascer do dia seguinte ao da nossa chegada, fomos acordados pelos ferreiros. Os velhos artesãos entraram-nos pelo dormitório e mediram-nos os braços e as pernas, a largura dos ombros e a coroa da cabeça. Furtaram-se aos nossos olhares. Nem sequer nos perguntaram os nomes enquanto garatujavam números nos seus canhenhos.
Quando, passados três meses, voltaram com as nossas armaduras, sete dos nossos já se tinham ido embora. Três voluntariamente. Os outros quatro dispensados por Ramón. Na altura, invejei-os. Por não terem de suportar mais as extenuantes e intermináveis sessões de instrução. Os dias e noites que se fundiam, de tal maneira que, quando tocava a sineta para nos acordar, eu era capaz de jurar que tinha acabado de pousar a cabeça para descansar. Arrancado ao meu momento de paz para ir percorrer o trilho da montanha antes do nascer do sol. Pelo meio da floresta, por cima dos riachos negros e das pedras pontiagudas. Com Ramón e os seus guarda-costas sempre a guiar-nos os passos. Todos os passos. Regressando à fortaleza a tempo da oração da manhã. Com o estômago às voltas. Nas primeiras semanas, vomitei todos os dias no pátio. Com os meus camaradas à minha volta, a regurgitar, a cuspir, a tentar recuperar o fôlego antes de entrar na capela.
No fim do pequeno almoço e de uma breve pausa para descansar, fazíamos simulacros de batalha, armados de espadas e escudos de madeira. Havia quem cedesse à exaustão e fosse esporeado por um dos instrutores até voltar a pôr-se em pé e prosseguir. Ainda estou a ouvir os berros dos nossos instrutores, homens que tinham abraçado a vida monástica depois de muitos anos de luta - até à morte, homens, morte de mártir! Disparávamos flechas contra escudos de madeira a balouçar, presos por correias a um ramo alto. Eu sentia os ombros a arder, os dedos dormentes e a sangrar. Marchava o dia inteiro sem descanso, sem água. Com as mãos e os pés em carne viva. Com as pernas e as costas perras e moles.
Um dia, pela manhã, fui aos aposentos de Ramón durante o nosso período de descanso. Senti o olhar ansioso do Andrés seguir o meu percurso pelo dormitório em direcção ao corredor. Ia demitir-me da Ordem, explicar a minha situação a Ramón.
- Tio, eu não consigo continuar. O meu corpo não suporta esta punição. Estou arrumado.
Fiquei especado diante de Ramón, sem conseguir falar. Ele estava a remendar uma bota, cosendo o rasgão, indiferente à minha presença. Até que, finalmente, levantou os olhos e me fitou durante vários minutos. Juntou as mãos de modo a que só as pontas dos dedos se tocassem.
- Pensais, Francisco, que sois o único a sofrer? - perguntou. - Pensais que tendes outro caminho para mitigar a vossa dor?
Voltei para o dormitório sem pronunciar uma única palavra.
Ao cabo de alguns meses, a pele rija voltou a cobrir as bolhas. Doíam-me os músculos, mas a tensão tinha-se tornado para mim coisa familiar, quase reconfortante. Quando à noite me deitava e fechava os olhos, cavalgava pelo bosque de Monteada. Sentia o sangue correr-me pelos membros, a quente vibração dos tendões a pulsar.
Adormecia. Acordava. Corria. Rezava. Comia. Lutava. Escutava. As minhas dúvidas e os meus receios, o passado e o futuro em regressão.
A manhã em que os ferreiros voltaram foi diferente. Quando acordámos, raios de luz iluminavam as minúsculas partículas de pó que pairava suavemente por todo o dormitório. Era a primeira vez em três meses que eu não via o raiar do dia. Senti no nariz o cheiro doce do orvalho que subia no ar, vindo do pátio. Os ferreiros pousaram as armaduras em cima das nossas enxergas e depois ajudaram-nos a envergá-las, fazendo as afinações necessárias para que se nos ajustassem melhor ao corpo.
Por cima de um saio comprido de algodão acolchoado, vesti uma cota de malha não menos comprida, quarenta mil anéis de metal forjados na fornalha. A cota de malha cobria-me o peito e os braços, e chegava-me aos joelhos. Uma coifa de malha, aberta à frente, entrou-me pela cabeça e foi cobrir-me o pescoço. Um espesso chumaço de algodão no cocuruto servia de almofada ao grande elmo, um vaso metálico de tampa rasa que se encaixava à justa na minha cabeça. As pernas eram protegidas por umas caneleiras de malha metálica que me chegavam aos pés.
Por cima da armadura, enverguei um manto branco - uma capa larga, sem mangas. Branco, a cor do hábito dos monges de Cister, que representa a simplicidade e a pureza da nossa sagrada missão.
A minha espada pesava dez libras, media três pés de comprimento e quase meio pé de largura no punho. À cinta, eu usava uma arma mais pequena, um punhal pontiagudo, tão afiado que eu cortava as pontas dos dedos a limpar-lhe a lâmina.
Finalmente, um comprido escudo triangular, feito de madeira revestida pela parte da frente a couro fervido e almofadada a algodão pela parte de trás. As arestas do escudo eram debruadas a metal para lhes aumentar a resistência.
Ao ver os meus camaradas pavonear-se pelo pátio em grande uniforme, lembrei-me da nossa missão, da minha missão. Éramos soldados de Deus. Nessa qualidade, eu ia salvar a alma do meu irmão. Peguei na espada pelo punho sólido - a lâmina reluzia, impecável. Um dia seria manchada de sangue. Mas não naquele dia.
Ramón mandou formar os recrutas em filas com os outros soldados, mais experientes. Mais de cem cavaleiros prontos para o combate. Todos envergando armaduras idênticas - em obediência aos estatutos da Ordem e ao espírito de fraternidade - todos iguais aos olhos de Deus. Ramón atravessou a nossa formatura em silêncio, inspeccionando as armaduras reluzentes dos recrutas. Depois foi colocar-se de frente para todos nós.
- Muito bonito - disse ele. - Devíamos organizar um concurso de beleza, mas falta-nos um júri competente. Ides ter de vos contentar com uma corrida a pé. O Roberto e o Bernard vão escolher um parceiro para cada um de vós e vão atar cada par pelos pulsos, com uma correia. Cada um é responsável pelo respectivo parceiro. Ides percorrer o trilho da montanha a correr, tal como fazeis todas as manhãs. Só que hoje ides de armadura vestida. E o vosso parceiro vai correr ao vosso lado. Há cinquenta bandeiras no cume da montanha. Cada par pega numa bandeira e regressa. Tendes de chegar ao fim da corrida com a armadura completa, incluindo a espada e o escudo. Não se pode romper o atilho que une as parelhas. Os dois primeiros cavaleiros a enterrar a bandeira no terreiro serão nomeados tenentes da Ordem de Calatrava.
Os soldados veteranos soltaram um grito de júbilo. Um posto de tenente de Calatrava era uma grande distinção - uma honra reconhecida em círculos religiosos e laicos. Roberto e Bernard foram pelas fileiras emparelhar soldados mais experientes com os novos recrutas. Ramón tinha outros planos para o André e para mim.
- Ata os primos - ordenou Ramón a Bernard. - No Levante, o Andrés e o Francisco lutarão com redobrada vontade se estiverem lado a lado. Hoje vão correr juntos..
Bernard atou o cordão com força ao meu pulso e depois ao do Andrés.
- É como as corridas de cavalos em Monteada, primo, - disse o Andrés - só que desta vez ganhamos os dois.
O segredo para se andar depressa era a coordenação. Passado um curto período de atrapalhação, o Andrés e eu aprendemos a acertar o passo de modo a que os nossos pulsos de dentro, que iam atados, andassem para trás e para a frente ao mesmo tempo. Atravessámos a floresta sem atropelos, e sem atropelos subimos pelo trilho da montanha. Os outros tiveram mais dificuldade em adaptar-se. Integrámo-nos num grupo de cinco equipas que se destacaram do pelotão. Sunyer de Jaca e Carlos de Casabas, dois dos soldados mais rápidos, lideraram o grupo até tropeçarem e caírem num monte de pedras. Quando ultrapassámos a dupla que acabava de perder a liderança, abrandámos o passo e vimos que Sunyer tinha a tíbia partida e a furar-lhe a pele. Pela armadura nova de Carlos escorria baba e sangue. Sunyer olhava para a perna sem saber o que fazer. Carlos falava em voz baixa, tentando consolar o companheiro. Várias equipas aproximaram-se dos camaradas caídos a oferecer ajuda. Bernard, que corria à nossa frente, deu-nos um berro, ordenando-nos que continuássemos e deixássemos os feridos para os enfermeiros.
Na encosta íngreme, duas das equipas do grupo da frente ficaram para trás. Tinham acelerado demasiado e não conseguiam manter o ritmo. A distância entre as equipas ia aumentando à medida que nos aproximávamos do cume. Quando eu e o Andrés nos aproximámos das fiadas de bandeiras, já só levávamos duas equipas à nossa frente.
Na primeira situação de competição, não me pareceu que a armadura levantasse obstáculos à nossa velocidade. A cota de malha, feita na oficina mais avançada da Ibéria, permitia uma gama completa de movimentos. O elmo ajustava-se bem à cabeça e não me tirava visibilidade. Mas eu não estava habituado a carregar as quase sessenta libras de peso a mais. Na descida, senti uma pontada nos músculos tensos, que se ia tornando mais forte e mais frequente à medida que descíamos. Sentia os ombros vergar ao peso da malha pesada e as costas fustigadas pela espada e pelo escudo. Quando íamos a entrar no bosque, caí. As minhas pernas cederam. Levei o Andrés comigo a tropeçar no mato. Bati com o elmo numa pedra antes de aterrar de barriga num retalho de chão. A minha cara foi pousar numa fresca almofada de folhas mortas. A respirar a terra bolorenta, olhei para o pulso, esticado para trás, ainda preso pelo cordão de couro. O Andrés estava sentado a meu lado. Arfava-lhe o peito por baixo dos anéis de metal, tinha a cara encharcada de suor.
- Acabou a sesta? - perguntou.
Eu pus-me em pé e sacudi as folhas da armadura. Bernard chamava-nos de baixo, aos gritos.
- Não tenhas pressa - disse o Andrés, franzindo o sobrolho. - Afinal de contas, quem é que está interessado em ser tenente?
Começámos a andar em passo acelerado, mas pesavam-me as pernas como se fôssemos a correr debaixo de água. Bernard pôs-se a correr ao nosso lado, vociferando obscenidades. Nós acelerámos o passo, tentando acompanhá-lo. Esmagávamos com os pés galhos e ramos. Rompíamos por entre os arbustos, por cima das raízes das árvores, penetrando cada vez mais fundo no bosque. Olhei para a direita. Tínhamos alcançado Galindo e Marcos. Galindo, de olhar vítreo, espuma branca nos lábios. Uma camada de sangue cobria-lhe a parte da frente da armadura. Três flechas com penas tinham-lhe trespassado a barriga. Tinha a malha metálica rasgada, desvendando a carne viva que lhe debruava as entranhas. Eu olhei em frente, correndo o mais que podia para me afastar daquela visão diabólica. Quando me virei e olhei de relance para Galindo, as flechas tinham desaparecido, e a armadura estava intacta, impecável. Ele e Marcos debatiam-se com a erva alta. Tentaram acompanhar-nos, mas desapareceram quando já entrevíamos a fortaleza por entre as árvores.
Eu e o Andrés arrastávamo-nos sem fôlego. Subimos a última encosta de acesso à entrada do forte mesmo atrás de Alejandro e Sancho. Os nossos instrutores puxaram por nós com os seus incitamentos quando entrámos no pátio. Ramón esperava-nos de braços cruzados, em pose solene, como se estivesse ali para julgar os nossos esforços. Caímos por terra ao pé da estaca que o Andrés enterrou no chão. Fomos a segunda equipa a terminar a prova.
Os outros chegaram ao pátio em magotes, uns a tropeçar, outros a coxear. Quando acabaram de chegar as primeiras doze equipas, já o Andrés e eu tínhamos recobrado forças suficientes para nos sentarmos direitos e aplaudirmos os nossos irmãos que iam chegando. Depois de terem chegado todas as equipas, mesmo as mais atrasadas, Ramón partiu com os seus guarda-costas, para ajudar a evacuar Sunyer para a enfermaria. Na ausência de Ramón, foram canceladas as actividades diárias regulares. Participámos nos serviços na capela, tomámos o pequeno almoço no refeitório e voltámos para o pátio, à espera de notícias sobre o estado de saúde de Sunyer.
A espera durou quase o dia inteiro. Ramón voltou ao anoitecer.
- Parabéns a todos - disse ele. - Fizestes uma corrida corajosa. Trago más notícias. Os médicos não conseguiram salvar a perna do Sunyer. Amputaram-lha esta tarde, abaixo do joelho. O Sunyer aguentou a operação estoicamente - como um Cavaleiro de Calatrava. Agora está a descansar. Rezai por ele esta noite. Alejandro e Sancho, ide aos meus aposentos depois do serviço de completas.
Naquela noite, estendido na minha enxerga, eu pensava em Alejandro e Sancho, que tinham ido tomar posse como tenentes da Ordem. Tinham chegado ao pátio uns escassos dez passos à nossa frente. Podíamos tê-los alcançado, se eu não tivesse caído. Pensei em Sunyer. Na sua perna, que era agora um coto ensanguentado. O destino que muda num instante, num passo em falso.
No dia seguinte, os sinos tocaram antes do nascer do sol. Enquanto me vestia para a corrida matinal, reparei que Alejandro e Sancho não estavam nos seus lugares habituais. Varri o dormitório todo com os olhos mas não os vi. Pensei que talvez tivessem passado a noite a comemorar a vitória com Ramón, nas tabernas do burgo. O nosso Grão Mestre tinha um fraquinho por bebidas alcoólicas.
Saímos para o pátio, onde formámos em filas. Caía uma chuva impiedosa. Nós tínhamos os pés em poças de água, e levantava-se o nevoeiro ao lusco-fusco que antecede o nascer do sol. Os sussurros entre camaradas foram-se desvanecendo, e as atenções centraram-se nos dois soldados que tínhamos diante de nós. Envergando armadura completa, estavam virados de frente para nós, segurando espadas por cima das suas cabeças curvadas. Um dos soldados pegava na espada pela lâmina, com a mão nua. O metal tinha-lhe feito um golpe fundo na palma da mão, pelo que o sangue escorria em espirais rubras que a água da chuva levava por entre os anéis da cota de malha até à lama do chão.
- Fizemos ontem a corrida pelo trilho da montanha. - Ramón percorria as filas de soldados. Falava baixo, obrigando-nos a prestar atenção para ouvir o que ele dizia. - Uma corrida. O prémio - um posto de comando em Calatrava. Amanhã, no Levante, vamos correr à frente das flechas infiéis. O que está em jogo - a vida e a morte.
- Olhai para os vossos irmãos Alejandro e Sancho. Eles ficaram toda a noite à vossa espera. Para vos mostrar o seu arrependimento. Ontem chegaram à frente. Mas no percurso pelo bosque cortaram o atilho que os prendia um ao outro. Para poderem chegar à meta mais depressa.
- O Alejandro e o Sancho estão com sorte. Estão vivos. Estão vivos porque é hoje e não amanhã. E porque o Grão Mestre de Calatrava é clemente. Os infiéis não são. No Levante, desobediência significa morte. Abandonar o nosso companheiro... morte. Lutar sozinho e não ao lado do nosso camarada... morte.
- Andrés e Francisco, parabéns. Sois vós os primeiros tenentes da Ordem de Calatrava. Hoje sois vós a comandar a corrida.
Nem toda a nossa instrução consistia em esforços físicos violentos. Todas as tardes tínhamos duas horas de estudo. Um mestre da Ordem ensinava-nos carpintaria e construção. Nas primeiras semanas, serrávamos troncos de carvalho em barrotes, tábuas e traves, com que fazíamos espetos compridos, escadas, um aríete. Ao fim de vários meses, aprendemos a desenhar e construir complicadas máquinas de cerco - torres sobre rodas com plataforma de abordagem - para usar no assalto aos castelos. Um médico deu-nos duas semanas de instrução em medicina - limpar e enfaixar feridas, fazer talas para ossos partidos, fazer xarope de rosas para tratar a disenteria. Os veteranos faziam palestras sobre estratégia de batalha, sobre as tácticas usadas anteriormente pelos generais sarracenos, sobre os pontos fortes e fracos dos seus soldados e as suas armas. Normalmente, os muçulmanos usam poucas ou nenhumas armaduras, mas têm armas sofisticadas. Recorrem principalmente à besta mecânica, capaz de disparar uma flecha com força suficiente para furar a armadura a cem pés de distância.
- Os infiéis têm medo de nos olhar nos olhos, - explicaram os nossos instrutores - por isso preferem lutar de longe. Encurtai a distância, homens. Encurtai a distância o mais depressa possível. O combate à vista impede-os de usar a besta.
Ramón atribuiu a cada cavaleiro um criado, dois escudeiros e quatro cavalos - dois de guerra, para o caso de um ser abatido, um de carga, para transportar a nossa armadura, e um de passeio. O criado tinha por missão transportar e preparar a comida durante as viagens. Os dois escudeiros cuidavam dos nossos cavalos e ajudavam-nos a vestir a armadura antes da batalha, tarefa que normalmente exigia a participação dos três, cavaleiro e escudeiros. A cota de malha era difícil de manejar, e os ferreiros punham-lhe fivelas e correias em sítios a que a pessoa que a envergava não conseguia chegar. Passávamos uma hora por dia com os nossos escudeiros, a vestir e a despir o traje de combate, adquirindo cada vez maior rapidez.
Também comandávamos manobras com os infantes de Calatrava - quase todos camponeses treinados para lutar com lança e arco, apoiando os cavaleiros. Estes, juntamente com os escudeiros e os criados, tomavam as refeições e pernoitavam em outra ala da fortaleza.
De vez em quando, Ramón perorava sobre aquilo a que chamava a "arte da guerra". "Um verdadeiro guerreiro" - segundo Ramón - "é sempre um artista. Em nome de Cristo, mergulha no pântano das paixões humanas - fúria, terror, vergonha, euforia, valor, reverência. Mergulha no caos, procurando criar a ordem - o Reino de Deus dentro de si próprio e em toda a Terra. O guerreiro passa a noite sem dormir antes da batalha, antes da criação, na incerteza do amanhã. Pode estar ansioso por mostrar o que vale - por atingir a glória efémera, o reconhecimento dos seus pares. Mas a única recompensa que perdura é a sua fé.
Na última semana que passámos em Calatrava, Ramón explicou as circunstâncias anormais da nossa partida. Por carta, o Rei Jaime tinha pedido que Calatrava enviasse um "contingente exclusivamente aristocrático" - só cavaleiros. Os nossos criados, escudeiros, artilheiros e infantes não iriam acompanhar-nos na expedição ao Levante.
Razões de espaço a bordo dos navios da esquadra, segundo dizia a carta do Rei, tornavam "impraticável" a inclusão dos soldados rasos e criados de Calatrava.
- Todos nós temos pena de deixar para trás os nossos fiéis camaradas - disse Ramón, à ceia. - No entanto, o Rei garantiu-me que as nossas ne- cessidades serão satisfeitas. Há no Levante falta de cavaleiros e excesso de escudeiros e infantes - um corpo sem uma cabeça que o comande. O Rei promete que, mal cheguemos ao Levante, providenciará apoio generoso ao nosso contingente - incluindo criados, dois escudeiros por cada cavaleiro e quinhentos infantes dos exércitos que já estão no Oriente.
- De qualquer maneira, não temos voto na matéria. Temos de obedecer às instruções do Rei.
Eu estava sentado mesmo em frente de Ramón. Quase no fim da ceia, ouvi-o sussurrar ao ouvido de Bernard. - O Rei - disse ele - deve precisar de alguns cinco navios só para os seus bajuladores e as suas cortesãs.
Dois dias antes da nossa partida para o porto de Barcelona, fomos investidos cavaleiros da Ordem de Clatrava: Recebemos as nossas espadas, benzidas pelo Arcebispo Emmanuel de Toledo. A cerimónia começou ao pôr do sol com um banho ritual. Purificados pelas águas bentas, envergámos hábitos de linho branco, e sobre estes um manto com capuz. Ajoelhámos, descalços, diante do altar, sobre o qual pousámos as nossas armas e armadura. Ficámos naquela posição desconfortável até ao nascer do dia, sem proferir palavra. Um grupo de monges de Cister do mosteiro adjacente entoou versos das Sagradas Escrituras durante a longa noite e manteve as velas e os turíbulos permanentemente acesos. Uma nuvem túrbida de incenso arroxeado alastrava pelo mosteiro. Uma noite dolorosamente enfadonha - oito horas quietos como idiotas naquele preparo ridículo.
Ao alvorecer, entrou na igreja o Arcebispo. Um homem gordo, de testa encharcada em suor, cabelo penteado para a frente ao estilo dos imperadores romanos. Rezou Missa, tossindo sempre que a nuvem de incenso se tornava insuportável. No fim pousou as mãos no altar e benzeu as nossas armas em nome de Jesus Cristo. Depois da Missa, o Tio Ramón procedeu à investidura. Bateu-nos na cara com uma das faces da sua espada e declarou cada um de nós Cavaleiro de Calatrava. As pancadas mais fortes, reservou-as Ramón para aqueles que dormitavam, vencidos pela noite de vigília. Quando sentiam a lâmina endireitavam a cabeça, estremunhados. Um dos meus irmãos desequilibrou-se e caiu.
O Andrés dormia profundamente, de pescoço caído e cabelo loiro a cobrir-lhe a cara. O que me espantava era como ele conseguia continuar ajoelhado, naquele estado. Tentei sem êxito acordá-lo, sussurrando-lhe no silêncio da catedral, mas o som era absorvido pelos espaços ocos que sustentavam a abside. Coube ao Andrés receber o golpe mais cruel, cujo som vibrou pela ampla catedral. Até o Arcebispo pareceu estremecer com o eco.
Não havia dúvida de que Ramón estava desiludido com o Andrés, um tenente da Ordem, um líder para os nossos irmãos.
De joelho dobrado, proferimos os nossos votos. Pobreza, castidade, obediência. Jurámos defender a Igreja contra os nossos inimigos, proteger as viúvas, os órfãos e os pobres. Já era quase noite quando a cerimónia foi finalmente dada por terminada e nós tomámos o caminho do Grande Salão, onde ia ter lugar um banquete comemorativo.
Não desperdicei a oportunidade que me era dada por Francisco, ao abordar o tema da cerimónia da sua investidura. É minha convicção que Francisco quebrou os seus votos no Levante. Tenho a certeza de que é essa transgressão que está na origem da sua possessão. Aproveitei a ocasião para lhe fazer perguntas sobre o seu comportamento durante a cruzada.
- Pobreza, castidade, obediência - repeti.
- Foram exactamente essas as palavras que nós proferimos, Lucas.
- Sabeis o que elas querem dizer, Francisco? Estais consciente das implicações do compromisso que assumistes perante o Senhor, o Seu Filho, e o Espírito Santo?
- As palavras são simples, Lucas.
Francisco deve ter-se sentido como se tivesse assestada sobre si a luz do Senhor, tal era a intensidade do meu olhar.
- E obedecestes a esses votos, Francisco?
Francisco deu a impressão de não ter ouvido a minha pergunta. Olhava fixamente para as palmas das mãos, com a atenção concentrada noutro lugar, muito longe dali. Quais foram as palavras que Isabel usou para definir o que Francisco procurava no Levante? Fantasmas e demónios.
- Francisco de Monteada, - disse eu, em tom firme - enquanto combatestes em nome de Deus, cumpristes os vossos votos?
Ele esboçou um sorriso. Ou melhor, meio sorriso. A mesma expressão irónica que tinha da primeira vez que eu o vi, nos aposentos do Abade Pedro.
- Quem me dera ter quebrado só um desses votos - ou todos eles. Os meus actos são bem mais tenebrosos, Lucas.
- Falai-me deles, Francisco. Eu estou aqui para vos ouvir em confissão. Para vos oferecer o perdão de Deus. Falai-me dessas trevas.
- É um crepúsculo sem estrelas, Lucas, sem redenção.
NOTA AOS FIÉIS
- Um crepúsculo sem estrelas. Sem redenção. - Repeti as palavras de Francisco ao Irmão Vial.
O Irmão Vial coçou as ralas farripas de cabelo que lhe cobriam as têmporas.
- O vosso amigo parece-me um bocado arrogante, Lucas - disse ele.
- Não estou a perceber, Irmão Vial.
- Ninguém está para além da redenção, - disse o Irmão Vial. - Um homem que faz tal afirmação pode com igual facilidade declarar-se para além da perdição.
- Mas, Irmão Vial, - retorqui eu - fostes vós que dissestes que, nos casos em que a criatura se casou com o diabo, a separação é impossível. Não foi isso que dissestes a propósito da mulher que matou os dois filhos por asfixia?
- Vós guardais na memória tudo o que eu digo? - observou o Irmão Vial.
- Quase tudo.
- Então - disse ele - devo ter dito mesmo essas palavras.
- Irmão Vial, - disse eu - dizem as Escrituras que quem blasfemar contra o Espírito Santo nunca mais terá perdão; é réu de pecado eterno.
- A Bíblia diz isso, Lucas?
- De facto, Irmão Vial, diz. Talvez Francisco seja culpado de um pecado eterno. O Abade Pedro disse, antes do seu martírio, que Francisco estava em rebelião espiritual, que era um homem em guerra com Deus.
- O Abade Pedro disse isso, Lucas?
- De facto disse, Irmão Vial.
- Um homem em guerra com Deus... - matutou o Irmão Vial. Batucava com a sandália de couro no chão de pedra. - Parece-me que Francisco é um homem que está mais em guerra consigo próprio do que com Deus.
- Não estou a compreender, Irmão Vial.
- Nem eu, Lucas.
Apesar da grande admiração que nutro pelo Irmão Vial, tenho de reconhecer que o facto de não ter frequentado o seminário lhe limita a capacidade de apreender questões de natureza mais espiritual. Um homem em guerra consigo próprio... O Irmão Vial deve ter ouvido a frase quando esteve no Levante - dita por algum cavaleiro analfabeto numa taberna de Acre. Trata-se de uma avaliação ingénua, para não usar um adjectivo mais severo, da situação de Francisco. Como é que um homem pode estar em guerra consigo próprio? O verdadeiro conflito espiritual é aquele que opõe o Senhor a Satanás. A Igreja aos esbirros do demo. As nossas almas limitam-se a ser o campo de batalha. De facto, é em nome de Deus que eu luto todos os dias contra Satanás pela conquista da alma de Francisco.
Talvez as experiências do Irmão Vial enquanto guerreiro lhe tenham diminuído, ou mesmo liquidado, a capacidade de julgar os seus camaradas. Quando eu lhe reproduzi o relato que Francisco me fizera das actividades impróprias do Grão Mestre de Calatrava, o Irmão Vial soltou uma sonora gargalhada.
- Pois é, - disse ele - o grande homem é mesmo assim.
- O grande homem? - perguntei eu, incrédulo. - Quer dizer que conhecestes Ramón no Levante?
- Toda a gente que tenha estado no Levante conheceu o Tio Ramón. É um homem com um grande apetite pela vida.
- Então estais a par das suas depravações.
- Peço desculpa, Lucas. Não estou a perceber.
- As violações dos seus votos. O relato de Francisco sugere que ele se entregava à embriaguez e à fornicação. Pior ainda, permitia, ou até incentivava, os seus cavaleiros a imitarem-no nesses actos depravados. Sinto-me corar de indignação só de pensar nas almas jovens e impressionáveis que ele tinha a seu cargo. Descobrimos um grande escândalo, Irmão Vial. Vou imediatamente escrever um despacho para o Arcebispo de Tarragona, a relatar estas lamentáveis revelações.
- Lucas, - disse o Irmão Vial - sois dotado de uma cabeça admirável e de uma memória prodigiosa. Ou eu me engano muito, ou sabeis de cor os Salmos e as Escrituras. Porém, muitas vezes, a verdade fica aquém e vai para além das palavras. O carácter de um homem não se define numa equação simples. Um cavaleiro pode manter-se fiel aos seus votos, resistindo a todas as tentações, e no entanto ter o coração transformado num campo gelado. Cumpre os seus deveres contrariado, e nunca se esforça para além daquilo a que é obrigado. Outro cavaleiro quebra sistematicamente os seus votos, e no entanto o seu coração transborda de amor. No campo de batalha, recusa-se a abandonar um camarada ferido, mesmo que o inimigo seja mais numeroso que ele na proporção de dez para um. Aos olhos do Senhor, qual deles tem mais valor? Respondei vós, por vossa conta e risco. Como disse Cristo, pois, conforme o juízo com que julgardes, assim sereis julgados; e, com a medida com que medirdes, assim sereis medidos.
- Eu, no vosso lugar, desistia de escrever ao Arcebispo a propósito do Tio Ramón. A vossa missão é Francisco e a sua salvação. Mas há uma pessoa a quem podeis escrever, uma pessoa que talvez vos possa ajudar a apressar a confissão de Francisco.
- E quem é essa pessoa, Irmão Vial? Escrevo-lhe já.
- É uma mulher, Lucas, a irmã de Andrés. Como é que ela se chama?
- Isabel?
- Isso mesmo, Isabel. Mandai chamar a rapariga.
- Estou baralhado, Irmão Vial. Éreis capaz de pôr a tentação diante de Francisco, no estado vulnerável em que ele se encontra?
- Lucas, éreis capaz de pôr uma caneca de água diante de um homem que acabasse de atravessar o deserto a pé?
O Irmão Vial levantou-se, cruzou os braços por dentro do hábito e saiu para o pátio. Eu apressei-me a ir atrás dele. Quando o alcancei, ele contemplava as flores roxas que circundavam a cisterna. Puxei-lhe pelo hábito para ele me dar atenção.
- Irmão Vial, com todo o respeito, acho que seria um erro tremendo mandar vir a rapariga a Santes Creus. Ela será uma tentação desnecessária, um obstáculo espúrio à convalescença de Francisco.
- A tentação, Lucas, não é um exclusivo do maligno. Não é verdade que o Senhor coloca a vida e a morte diante de cada pessoa?
- De facto, Irmão Vial, assim é.
- Ambas tentam um homem. Nós vamos tentar Francisco com a vida.
- Mas, Irmão Vial, Isabel já não vê Francisco há seis anos. Com certeza está casada. E por certo que o marido não vai permitir que a esposa atravesse os campos sozinha.
- Nesse caso mandamos uma escolta, Lucas.
- Sim, Irmão Vial, mas Francisco vai despertar em Isabel a lembrança dolorosa do irmão que ela perdeu. Duvido que ela aceite o convite.
- A rapariga vai aceitar vir.
E mais não disse, antes de entrar na capela para o ofício da tarde. A nossa conversa deixa-me muito perturbado. Receio que o Irmão Vial esteja a subestimar a influência, potencialmente perniciosa e perturbadora, que Isabel pode exercer sobre a recuperação de Francisco. Dizia o Abade Pedro que numa mulher nunca se pode confiar.
- Lembra-te, Lucas, - dizia ele - que tu próprio tinhas vindo ao mundo ainda não havia uma hora quando a tua mãe te abandonou num palheiro.
Se calhar, fiz mal em contar ao Irmão Vial a confissão de Francisco. Podia ao menos ter omitido a parte da visita de Francisco ao domínio dos Corrêa em Girona. Assim, o Irmão Vial não saberia da existência de Isabel.
Não posso ignorar a recomendação do Irmão Vial no sentido de mandar vir Isabel. Como prior do mosteiro estou hierarquicamente acima dele. Mas o Irmão Vial tem uma autoridade que lhe advém do seu prestígio moral e espiritual, não da sua posição hierárquica. E, claro, das relações que tem - em especial com o primo, Arcebispo Sancho de Tarragona. Seria um grande erro desafiar o meu mentor. Amanhã vou mandar vir a rapariga. As consequências negativas, se as houver, recairão sobre a cabeça do Irmão Vial.
Pode ser que Isabel decline o convite. Era o mais desejável. Não deve estar nada interessada em embarcar naquilo que seria provavelmente uma viagem de dez dias desde Girona até Santes Creus - isto se ainda estiver em Girona. Pode ser que se tenha casado com algum fidalgo de outras paragens e nunca chegue sequer a receber o convite. Aliás, é disparate meu estar preocupado com o efeito que a sua visita possa ter sobre Francisco, já que o mais certo é que tal visita nunca chegue a acontecer.
O estado físico de Francisco continua a registar melhoras. Quase todos os dias damos longos passeios à volta do pátio. Uma vez por semana arriscamos uma saída do mosteiro e passeamos pelas encostas que rodeiam o santuário. Acho que a beleza natural dos nossos arredores o encanta, para não dizer que o revigora. Parece que fica mais bem disposto para o resto do dia.
A confissão de Francisco continua. A intensidade do seu comportamento durante as nossas sessões não esmoreceu. Pelo contrário, parece aumentar de dia para dia. Às vezes Francisco treme enquanto fala, como se estivesse a aproximar-se de algum terrível abismo, porventura mesmo da raiz do mal que o corrói.
O caso de Francisco é um assunto da maior importância para a Igreja. Não posso deixar de sorrir quando penso nas grandes obras, de caridade e não só, que se podem fazer com a generosa recompensa que o Barão Monteada oferece - um terço dos seus bens a troco da salvação do filho. Espero que o trabalho que estou aqui a fazer resulte num monumento à glória de Deus. Não há dúvida de que a Igreja depositou em mim uma confiança que me assusta. É quase como ter os olhos de Roma concentrados em Santes Creus.
Escrevo todas as semanas ao Arcebispo Sancho, dando-lhe conta dos progressos de Francisco. Parece que me torno mais próximo do Arcebispo a cada troca de correspondência. Acho que o Arcebispo me considera um amigo pessoal. Na semana passada recebi uma carta do Arcebispo. Nela me informa do agravamento do estado de saúde do Bispo Martin. "Infelizmente", diz a carta, "Tortosa terá em breve uma vaga. Espero que o vosso trabalho com Francisco esteja concluído antes de eu ter de nomear alguém para o preenchimento dessa vaga.
O selo da carta do Arcebispo já vinha partido quando o criado pessoal do Abade ma entregou. Isso não me preocupa. Até é bom que o Abade Alfonso saiba da consideração que o Arcebispo tem por mim. Talvez assim mostre o devido apreço pelas minhas capacidades, coisa que às vezes me parece faltar-lhe. A verdade é que o acho mais atento às minhas necessidades desde que chegou aquela carta para mim. Ontem, o Abade perguntou-me se eu preferia algodão fino do Egipto ao tecido coçado e grosso do hábito que agora uso. Antes mesmo que eu tivesse tempo de responder à pergunta, o Abade Alfonso mandou chamar o Irmão Mário, o alfaiate do mosteiro, que me tirou as medidas e esta semana mesmo vai talhar o tecido.
O meu destino parece ter mudado para sempre. O futuro oferece-me imensas possibilidades. Às vezes, de noite, fecho os olhos e passo em revista mental os aposentos do Arcebispo - o cálice de ouro a transbordar de vinho, as vestes de seda. Acho que é uma questão de tempo até ao dia em que o Senhor me vai chamar para um cargo de maior santidade.
Na noite passada sonhei com um simples padre que, numa terra estrangeira e daqui a muitos anos, talvez cem, lia uma cópia deste manuscrito. A sugestão do Irmão Vial, de que estas páginas podem ser uma espécie de mapa da alma de Francisco, parece presciente mas um tanto curta de vistas. Tenho para mim que este manuscrito vai ser mais do que isso - um mapa não só da alma de Francisco mas também de outras almas com idênticos padecimentos. Não sei se o Irmão Vial não estará arrependido de ter decidido delegar a responsabilidade pelo exorcismo. Talvez fosse inevitável que essa responsabilidade recaísse sobre mim. Enquanto a minha estrela sobe, é natural que a dele feneça. Aliás, tenho uma certa pena dele. Acho que é por isso que partilho alguns pormenores da confissão de Francisco com o Irmão Vial - para lhe dar a sensação de que também ele tem uma participação - ainda que seja uma participação marginal. Devo reconhecer que o Irmão Vial não dá mostras de inveja. Nunca deixa de elogiar o meu trabalho e incentivar os meus esforços. Ainda esta tarde o Irmão Vial me abordou no parlatório.
- Paciência, persistência e contenção, - disse ele. - São as armas mais poderosas do Senhor contra as artimanhas do diabo. De todas estas qualidades, Irmão Lucas, destes sobejas provas nos últimos quatro meses, à espera de que Francisco começasse a sua confissão. Onde os métodos violentos do Padre Adelmo de Poblet falharam, o método mais pacífico do Irmão Lucas funcionou. Estou orgulhoso de vós.
- Talvez - continuou o Irmão Vial - quando Francisco for dado como salvo eu vos ceda a responsabilidade por outros casos de possessão. Ides ver que o método que adoptastes com Francisco resulta da mesma forma com outras almas perturbadas.
- Irmão Vial, - disse eu, - gostava muito de ter essa oportunidade. Não é para me gabar, mas acho que já tenho um currículo invejável como prior, um currículo que ficará como testemunho da minha diligência e da minha incondicional dedicação a Santes Creus. Já reparastes nas sebes que circundam o mosteiro? Muitos visitantes se referiram já à maneira como o verde dos arbustos ameniza o cinzento da pedra. Ouvi por acaso o Abade Alfonso dizer a uns visitantes que tinha sido dele a ideia de plantar as sebes. Talvez vos tenha dito o mesmo a vós, Irmão Vial. Longe de mim contradizer o meu Abade. Mas não posso deixar de lembrar como é frágil a memória dos homens. Às vezes uma pessoa ouve uma sugestão, esquece-se de quem lha fez e adopta-a como se fosse sua.
O Irmão Vial levou o dedo aos lábios, a mandar-me calar. Agarrou-me pelos ombros e sorriu ao de leve.
- Irmão Lucas, - disse ele - estais no início de um percurso difícil. Espero ardentemente que depois da vossa experiência com Francisco vos acheis mais próximo do Senhor do que alguma vez estivestes e rechaceis os falsos profetas da ambição e da vaidade que tentam todos os homens. Pode ser, Irmão Lucas, que quando eu começar a libertar-me dos meus deveres oficiais vós sejais nomeado exorcista principal de Santes Creus e vos reveleis um adversário do diabo mais feroz e implacável do que eu alguma vez consegui ser.
Foram exactamente estas as suas palavras. Um adversário do diabo mais feroz e implacável do que eu alguma vez consegui ser.
Agradeci ao Irmão Vial as suas amáveis palavras. Senti-me um tanto ou quanto embaraçado com os seus generosos elogios e com os seus planos para a minha carreira futura. Embaraçado mas não surpreendido. Não é verdade que o diabo lança mão dos mesmos truques para enganar, para possuir, para destruir os filhos de Deus? E nós, Seus devotados servos, não empregamos os mesmos métodos para frustrar os mais tenebrosos e ardilosos planos do diabo? Eu uso exactamente os mesmos métodos para provocar, para desalojar os demónios de Francisco, até que um dia eu, instrumento do Senhor, consiga esmagá-los. Aliás, este manuscrito constitui um fiel e precioso registo desses métodos e daquilo a que o Irmão Vial chama este "percurso difícil". Às vezes, na minha imaginação, vejo monges que vêm de toda a Espanha a Santes Creus - de carroça, a cavalo, a pé - com o propósito de copiar este manuscrito e conhecer o seu autor. Talvez vejam no documento um modelo, um manual de combate contra o diabo. Talvez um dia todo o mundo cristão conheça o nome de Francisco - e o meu. Irmão Lucas de Santes Creus. Bispo Lucas. Beato Lucas. São Lucas. Tenho mesmo de concentrar mais energia na minha escrita.
Considerando o potencial de ampla divulgação da informação aqui contida, sinto que se impõe descrever o pano de fundo sobre o qual se desenrolou a gloriosa cruzada contra os infiéis. Isto porque receio que a versão que Francisco dá dos acontecimentos possa dar uma impressão distorcida ao meu estimado leitor. Afinal de contas, ele continua possesso.
Satanás gerou o incubo. Há seiscentos anos, a semente venenosa do Islão germinou nos desertos da Arábia. Os exércitos de Maomé espalharam o flagelo para oriente até à Pérsia, para norte até à Terra Santa, para ocidente e para sul através da África. As trevas lançaram a sua sombra sobre a Europa. Os mouros levaram consigo a peste quando atravessaram os Estreitos de Gibraltar e entraram em Espanha.
Desde há trezentos anos, os senhores cristãos combatem sultões e califas pelo domínio da Península Ibérica. De facto, os reinos cristãos de Espanha, com Aragão à frente, Castela, Leão, Navarra e Portugal puseram de lado as suas disputas de fronteiras e outras querelas menores para se unirem numa luta comum contra os infiéis. Nas últimas décadas, os exércitos cristãos empurraram os mouros cada vez mais para sul, conquistando Valência, o Algarve, Córdova, Múrcia e Sevilha. Granada é o último reduto dos infiéis em Espanha. Se Deus quiser, em breve os exércitos cristãos irão expulsar os selvagens de volta às negras regiões de África, do outro lado do Mediterrâneo.
Infelizmente, o paganismo continua a grassar a oriente. A abominação continua. Os infiéis ocupam, profanam e conspurcam a terra em que Cristo viveu e morreu - uma relíquia sagrada. A princípio, o exército de Deus registou vitórias miraculosas. No Ano de Nosso Senhor de 1099, os cruzados conquistaram Jerusalém. De facto, o Senhor lançou fogo e enxofre sobre os filhos do diabo. Os cavaleiros passaram a fio de espada todos os habitantes da cidade fortificada. Consta que o sangue dava pelos tornozelos aos soldados.
As Ordens militares internacionais assentaram arraiais em Jerusalém. Os Cavaleiros do Hospital de São João reivindicaram a posse da Igreja do Santo Sepulcro - construída no Gólgota, campo de caveiras, local da crucificação. Além de combater os infiéis, os hospitalários proporcionavam abrigo e assistência médica aos peregrinos de visita ao Levante. Os Cavaleiros do Templo receberam o nome da sua base de operações. Os fidalgos conquistadores concederam aos templários o terreno do antigo templo judeu. Os cruzados tinham pegado o fogo ao templo, que ficara reduzido a cinzas, depois de terem fechado lá dentro os judeus que procuravam fugir à fúria de Cristo. Não há dúvida de que os monges guerreiros ergueram bem alto a bandeira da misericórdia e da devoção. Tomam os mesmos votos que os monges normais - pobreza, castidade, obediência. A Igreja de Roma concedeu a todos os cruzados a remissão dos seus pecados a troco dos seus serviços.
A Ordem a que pertencia Francisco, dos Cavaleiros de Calatrava, tem uma longa e rica história de luta contra os mouros nas frentes de combate da Andaluzia, na Espanha muçulmana. É com orgulho que escrevo que foi um dos meus irmãos, um monge de Cister chamado Ramón Sierra, abade de um mosteiro de Navarra, o fundador da Ordem. No Ano de Nosso Senhor de 1159, o Abade Sierra foi a Toledo em serviço. Durante a sua estada, soube que os mouros se preparavam para atacar a vizinha Cidade de Calatrava. A situação era desesperada - os Mouros eram em muito maior número que os defensores da cidade. O Abade Sierra, com autorização do Rei de Castela, organizou a defesa da cidade, para o que recrutou um exército de soldados e monges da sua província natal e dos territórios vizinhos. Face à força impressionante reunida pelo Abade Sierra, os mouros desistiram de atacar a cidade.
Inspirado pela força dos seus recrutas, nomeadamente dos monges, o Abade Sierra instalou um exército cristão na fortaleza de Calatrava. Alguns anos depois, o Papa Alexandre III assinou uma Bula Papal em que reconhecia os Cavaleiros de Calatrava como a primeira ordem religiosa e militar de origem espanhola. Frei Garcia, Grão Mestre da Ordem, jurou fidelidade ao Rei de Espanha e pediu filiação na Ordem de Cister. O pedido foi aceite. Desde então, os Cistercienses e os Calatrava consideram-se irmãos e parceiros ao serviço do Senhor. Os Calatrava fazem com a espada aquilo que nós não conseguimos fazer com o Livro Sagrado.
A Ordem de Calatrava é famosa pela valentia e perícia militar dos seus membros e pela sua devoção espiritual. Os membros estão proibidos de caçar, dedicar-se à falcoaria, jogar dados ou xadrez - actividades que são consideradas distracções frívolas da oração e da formação espiritual. A fornicação é punida com chicotadas e, em certos casos, expulsão das fileiras. Lamentavelmente, parece que, sob o comando do Tio Ramón, a Ordem de Calatrava afrouxou consideravelmente a sua disciplina monástica. Esperemos que o actual Grão Mestre tenha voltado a instaurar os preceitos espirituais que são os alicerces tradicionais da Ordem.
Os Calatrava tiveram um papel determinante na reconquista de Espanha. Reagindo a reveses sofridos pelos enclaves cristãos na Terra Santa, os Calatrava têm vindo a voltar as suas atenções para oriente. Há seis anos, quando o Rei Jaime organizou um exército de Aragão para partir para o Levante, convidou os Calatrava para acompanharem a armada. Com a bênção do Rei Alfonso de Castela, genro do Rei Jaime, os Cavaleiros de Calatrava aceitaram o convite. Francisco e os seus camaradas integraram-se na cruzada do Rei Jaime. Aliás, este manuscrito contém uma crónica da peregrinação de Francisco, uma expedição que se realizou numa época de grande turbulência no Oriente. Nos anos que precederam a partida de Francisco para a Terra Santa, o Sultão Baibars, à frente das hordas infiéis, varreu o Levante conquistando território cristão, assassinando e escravizando as populações. Na altura em que Francisco lá chegou, o Reino de Jerusalém nem sequer incluía a Cidade de Jerusalém. Os Cristãos estavam confinados a uma estreita faixa costeira ao longo do Mediterrâneo, de Jaffa até Tiro, passando por Acre.
No Ano de Nosso Senhor de 1269, Hugo, Rei de Chipre, subiu ao trono do Reino de Jerusalém, depois de coroado na grande catedral de Tiro. Hugo era um rei adiado - a maior parte do seu reino estava ocupada pelos infiéis. Talvez por essa razão, Hugo optou por residir na ilha de Chipre. Nomeou um condestável para Acre, com a missão de administrar os assuntos da cidade. Infelizmente, a ausência do Rei e a falta de pulso do condestável criaram uma confusão de autoridades em Acre, a maior cidade do reino amputado. Sem a presença do Rei para unir os cavaleiros cristãos, irromperam os conflitos entre as várias facções. Os venezianos lutavam contra os genoveses por causa dos privilégios comerciais. Os grão-mestres das diversas Ordens militares faziam reivindicações inconciliáveis no que toca a ascendente em questões militares.
Tão problemática como os conflitos de autoridade a nível interno era a presença de um grande número de condenados cristãos que viam as suas sentenças comutadas pela fixação de residência no Levante. Se é certo que a maioria das ovelhas deste rebanho se voltou para o Senhor, há no entanto uma minoria que se mantém teimosamente fiel aos seus métodos maldosos. Com efeito, um padre de Poblet que recentemente visitou a Terra Santa disse-me que foi roubado duas vezes nas duas semanas que passou em Acre. Além disso, disse que se tinha visto obrigado a fazer grandes desvios para evitar passar por ruas conspurcadas pela presença de mulheres pagãs e cristãs que aí se vendiam.
A incapacidade, demonstrada pelos nossos soldados e mercadores cristãos, de se unirem em nome de Cristo e porem cobro à licenciosidade na sua presença é talvez a explicação para o facto de o Senhor ter consentido que o exército de Baibars desbaratasse os nossos postos avançados cristãos e ocupasse a Cidade Santa. Pode ser que, com a ameaça que constitui para a Cristandade, Baibars convença os nossos cavaleiros a levarem uma vida de verdadeiros monges guerreiros - pobreza, castidade, obediência e, se necessário for, martírio. Talvez seja essa, afinal, a vontade de Deus, o Seu justo castigo. O Seu desígnio.
Que Baibars é um agente de Satanás não pode haver dúvidas. As suas malfeitorias estão sobejamente documentadas. Limitar-me-ei aqui a mencionar alguns episódios, não vá o leitor mal informado ser induzido em erro pela falta de atenção de Francisco aos crimes dos infiéis. Até sinto um arrepio na espinha quando penso nos actos de barbárie cometidos contra os nossos bravos soldados.
Safed é um nome que para qualquer cristão deveria ser sinónimo de horror. No Ano de Nosso Senhor de 1266, Baibars montou cerco ao castelo templário de Safed. Ao cabo de uma defesa valorosa mas condenada ao fracasso, a Ordem do Templo negociou salvo-conduto a troco da sua rendição. Os documentos foram assinados e entregues às respectivas partes. O selo pessoal de Baibars autenticava o édito, como garantia da inviolabilidade dos cavaleiros cristãos. Quando os confiantes cavaleiros, com os seus estandartes templários erguidos para Deus, iam a sair das muralhas do castelo, os soldados de Baibars caíram-lhes em cima. Os que não tiveram morte imediata foram logo a seguir esfolados vivos e decapitados. Consta que Baibars em pessoa participou na tortura de muitos cavaleiros e se deliciou com os gritos angustiados das suas vítimas.
No ano seguinte, o Reino de Acre enviou uma delegação de embaixadores cristãos ao castelo de Safed, que Baibars havia convertido em fortaleza muçulmana. Os embaixadores levavam a proposta de uma trégua entre forças cristãs e muçulmanas. Nem o facto de terem visto mil caveiras de cristãos à volta do castelo desmobilizou estes homens destemidos do cumprimento da sua missão. Mas Baibars foi inflexível. Não ofereceu aos nossos embaixadores, exaustos de uma longa viagem, nem pão nem água, e rejeitou qualquer tentativa de compromisso. Provavelmente foi melhor assim. Não há paz possível com Baibars ou com os seus soldados. Os infiéis têm de ser arrancados pela raiz e completamente destruídos.
Talvez o meu venerável leitor tenha uma perspectiva mais optimista sobre a possibilidade de uma solução pacífica no Levante. Para acabar com tais ilusões, vou dar-lhe mais um exemplo do carácter traiçoeiro dos infiéis. Como o meu leitor certamente sabe, a cidade cristã de Antioquia caiu nas mãos dos muçulmanos em Maio do Ano de Nosso Senhor de 1268. Menos conhecida é a quantidade de atrocidades perpetradas pelos soldados infiéis no rescaldo da captura da cidade. O relato que se segue foi feito por um Cavaleiro de Aragão que estava em Antioquia no momento do assalto. Pela graça de Deus, este soldado conseguiu fugir da cidade no meio do caos do massacre que se seguiu.
A primeira ordem de acção dada aos comandantes muçulmanos foi sobre a execução de soldados cristãos. Os afortunados foram decapitados.
Outros tiveram morte mais lenta - chicoteados, mutilados, queimados, esquartejados. Depois dos combatentes, foi a vez de os habitantes da cidade - mulheres, crianças, velhos - merecerem a atenção dos infiéis. Arrancaram-lhes os olhos, cortaram-lhes os narizes e as orelhas, violaram rapazes e raparigas, uma coisa indescritível. Profanaram imagens da Virgem - cuspidas e esmagadas. Houve relatos de soldados sarracenos a defecar nas igrejas e lugares santos.
Os cristãos que tiveram a sorte de encontrar esconderijo foram depois arrebanhados e vendidos como escravos. Não houve soldado do exército do Sultão que não comprasse um ou dois escravos, e mesmo assim ainda sobraram alguns, que foram vendidos nos mercados do Cairo. Diz-se que, dado o grande número de cristãos capturados, o preço de uma rapariga passou a ser inferior ao de uma cabra velha.
Foi esta a carnificina, a maldade, com que depararam os exércitos de Cristo. É lamentável que as nossas forças possam ter cometido alguns excessos. Mas, dadas as circunstâncias, tal comportamento, nada cristão, da parte de guerreiros cristãos é compreensível. Com esta nota, devolvo o leitor à vida de Francisco, à sua confissão, aos seus padecimentos.
O REINO DE ACRE
Levávamos quase dois meses de mar. Sete dos dez navios da nossa armada, incluindo o do Rei Jaime e seu séquito, tinham sido obrigados a voltar para trás por causa das tempestades, constantes e violentas. No nosso navio, quarenta homens tinham adoecido de disenteria e morrido; os seus corpos foram rapidamente lançados pela borda fora, para evitar o contágio. Houve um desgraçado que foi atirado para o bojo pardacento antes de ter exalado o último suspiro, com a inocência e a incredulidade estampadas nos olhos encovados. As nossas camaratas tresandavam a morte - as tripas e os excrementos em sangue impregnavam-se indelevelmente nas tábuas gastas, infiltravam-se pelas frinchas, como se fossem uma brilhante camada de verniz.
Quando, em Novembro do Ano de Nosso Senhor de 1270, surgiu no horizonte a cidade fortificada, houve uma explosão de lágrimas de alegria a que nem os cavaleiros mais empedernidos escaparam. O sol de inverno ungia as muralhas de pedra da cidadela dos templários que defendia a entrada em Acre. Torres reluzentes anunciavam a majestade da cidade como se do próprio Éden se tratasse.
Os três barcos de Espanha deslizaram pela enseada, e todos os homens presentes na amurada murmuravam orações de gratidão. Filas compactas de cavaleiros entraram pelas portas da cidade como formigas atarefadas à volta dos restos de um animal morto. Não era bem a entrada gloriosa que o Tio Ramón tantas vezes havia descrito no porão, durante as tempestades. Mas era triunfante - estávamos vivos.
O contingente de Calatrava tinha perdido dezassete homens. Restavam oitenta e sete cavaleiros no nosso contingente. Subimos aos tropeções os degraus de pedra de acesso a uma praça aberta, onde o condestável e outros notáveis da cidade deram as boas vindas aos comandantes. Representantes das três ordens mais importantes - Templários, Cavaleiros Teutónicos e Hospitalários - estavam presentes para receber os seus irmãos e acompanhá-los às respectivas instalações.
Depressa se espalhou nas nossas fileiras a notícia de que milhares de soldados infiéis cercavam as muralhas da cidade. Houve um cavaleiro que segredou a informação aos seus irmãos, que foram passando a notícia até que toda a gente ficou a saber dela. Acabávamos de chegar a uma cidade sitiada. Mas os receios gerados por esta informação foram-se dissipando à medida que eu ia perscrutando o insólito do lugar, os seus segredos, que desviaram e seduziram as minhas atenções.
A acompanhar os Cavaleiros da Cruz estavam os nativos da cidade, vestidos com espantoso garbo - turbante branco a envolver-lhes a cabeça, sapatos roxos de biqueira empinada, pulseiras de ouro em forma de serpentes demoníacas. Alguns mirones curiosos olhavam para nós como se fôssemos refugiados em oração diante de algum altar primitivo. Rapazinhos seminus vendiam pão grosseiro e poções perfumadas que deixavam uma sensação premonitória. Prostitutas cobertas de jóias posavam nas sombras como uma promessa sonolenta e temida.
A queima de incenso produzia uma névoa que invadia as ruas estreitas. A pedra vermelha, manchada, salitrada, erguia-se em igrejas douradas. Torres pontiagudas dominavam uma cidade condenada. Nós bebíamos o vento agreste - sorvíamo-lo como viandantes do deserto, ávidos depois de meses a respirar o ar fétido dos porões do navio. Um bálsamo salgado invadia a cidade - o cheiro da libertação do meu irmão e da minha própria liberdade.
Calatrava não tinha representantes em Acre. Estávamos órfãos, mas tivemos a sorte de estar ligados aos hospitalários pelo sangue do Tio Ramón, primo em quarto grau do Barão Gustav Bernières de Ruão. O Barão Bernières era o Grão Mestre Adjunto do Hospital de São João, a mais poderosa Ordem do Levante.
O Barão estava rodeado de um séquito de cavaleiros, soldados cansados da guerra, vestindo armadura completa, olhar distante e preocupado, cruzes brancas cosidas às túnicas pretas. Eu senti-me um rapazinho no meio de homens que tinham passado pelas atrocidades do combate e visto a morte cara a cara, ao passo que eu só a tinha visto de um navio, em porto seguro. Trataram-nos com cortesia, mas lia-se-lhes na expressão um laivo de desdém, ou porventura de animosidade por não sermos iniciados, como se invejassem a nossa inocência.
O Barão providenciou a instalação dos nossos cavaleiros na Ala dos Hospitalários. A sua Ordem tinha sofrido pesadas baixas nas recentes ofensivas de Baibars, pelo que até viam com agrado a possibilidade de adoptar os recém-chegados. Além disso, dos cerca de trezentos hospitalários que se mantinham na Terra Santa, a maioria estava de guarda à fortaleza do norte, o Krak des Chevaliers.
Perto do centro da cidade, os hospitalários ocupavam um complexo imponente que circundava um pátio com claustro, palmeiras que rompiam por entre um chão coberto de mosaicos árabes - aves com cauda de pavão, motivos verdes e amarelos sobre cerâmica branca. Nós, cavaleiros de Calatrava, estávamos instalados no segundo andar da ala esquerda do complexo. Dormíamos dez num quarto, em colchões de palha, com a brisa do oceano a povoar-nos os sonhos de castelos de vidro que chegavam ao céu; lindas mulheres de cabelos cor de cobre e pele acetinada; inimigos invisíveis, gargantuescos, invulneráveis.
Os cavaleiros hospitalários, na sua maioria franceses e alemães, dormiam na ala oeste, e os seus infantes nos estábulos, onde partilhavam com os cavalos os colchões de palha. Os infantes dos hospitalários eram camponeses oriundos de todos os países cristãos da Europa. Alguns eram naturais do Levante. Muito poucos tinham cavalo e todos usavam escassa armadura - talvez um escudo, a que por vezes se juntava um elmo roubado da cabeça de algum inimigo morto. Mas muitos batiam-se com uma bravura que ultrapassava a dos seus irmãos nobres.
Dom Fernando Sánchez, filho bastardo do Rei Jaime, honrou a palavra de seu pai disponibilizando aos cavaleiros de Calatrava escudeiros da sua própria força. Foram eles que transportaram a nossa armadura para o complexo dos hospitalários. Os hospitalários deram-nos cavalos dos seus estábulos.
As refeições dos cavaleiros eram servidas no refeitório. Comíamos aos pares, sendo que cada um estava encarregado de vigiar a dieta do seu parceiro - para se certificar de que ele se alimentava o suficiente para recuperar forças para a batalha, se bem que tal mandato fosse desnecessário no caso dos Cavaleiros de Calatrava. Nas poucas semanas que passámos em Acre, comemos vorazmente, freneticamente, mesmo quando estávamos cheios, para apaziguar falsas dores de fome, fantasma que nos tinha atormentado nas últimas semanas passadas no mar. Todos juntos, os cavaleiros das duas Ordens só conseguiam encher até meio as compridas mesas de carvalho do Grande Salão, e o eco das acções de graças lembrava aos presentes os irmãos ausentes e mortos. Fazíamos duas refeições por dia. Pão de sésamo com azeite, puré de grão e melão de manhã. Ao jantar, arroz, pão com mel e, dia sim dia não, cordeiro no espeto. O vinho jorrava abundantemente em ambas as refeições.
No pátio, do lado oposto ao refeitório, ficava um hospício. Fiéis à missão inicial que tinha em Jerusalém antes de Saladino ter reconquistado a cidade aos cruzados, a Ordem do Hospital mantinha uma enfermaria na ala oeste do complexo, para acudir aos doentes e albergar os peregrinos que afluíam à Terra Santa. Mas a maioria dos ocupantes da enfermaria era constituída por cristãos locais desalojados pelas recentes arremetidas de Baibars. No terceiro andar havia uma ala separada para os cavaleiros gravemente feridos em combate. Um dos hospitalários contou-nos que os casos incuráveis eram levados para ali para morrer. Quando, certa manhã, explorávamos esse sector, eu e o Andrés caminhávamos junto às grades, espreitando para dentro da escuridão que predominava para lá das barras de ferro, ouvindo gemidos íntimos e respirando o cheiro rançoso da carne em putrefacção.
Fazíamos turnos de guarda aos portões e torres da cidade. Cada Ordem tinha responsabilidade por um sector diferente. Baibars tinha cercado a cidade fortificada, mas não tinha tomado qualquer iniciativa no sentido de derrubar as defesas. Durante a noite, víamos as fogueiras dos infiéis, que pareciam mil vaga-lumes a bater contra os portões da cidade. Ouvíamos o som das suas gargalhadas, cheirávamos os temperos picantes dos seus assados. Quando levantávamos os olhos, deparávamos com um céu estrelado e carregado de premonições.
Três meses e meio depois da nossa chegada, acordámos com a surpresa de que os infiéis tinham desaparecido, tinham desmontado as tendas e partido, qual caravana de peregrinos que se some na noite. O Barão Bernières disse que a decisão de retirar, tomada por Baibars, era resultante das informações que tinha sobre a chegada de um grande contingente à cidade. Mas o Tio Ramón, em privado, conjecturava que os generais infiéis se teriam limitado a voltar as suas atenções para norte, e iriam voltar.
Terminado o cerco, abriram-se os portões da cidade. Ruas moribundas voltaram a encher-se de vida com um cortejo de mercadores, com as suas mercadorias atrás. Das janelas dos nossos aposentos no complexo dos hospitalários ouvíamos a procissão de comerciantes a caminho do mercado.
Os nossos comandantes abrandaram a vigilância do contingente. O Barão Bernières e o Tio Ramón deram aos seus cavaleiros um dia de folga, para irem explorar a cidade. Eu e o Andrés saímos do complexo depois do pequeno almoço. A princípio, tentámos evitar as multidões, optando por ruas secundárias, desorientados no labirinto de vielas. As ruas sinuosas eram tão estreitas que tínhamos de andar de lado, a apalpar a parede. As casas inclinavam-se umas para as outras, tapando-se mutuamente a luz. A luz do sol desapareceu como se nós tivéssemos atravessado uma porta de acesso à noite.
Agachados para conseguirmos passar por baixo de um arco, entrámos num túnel escuro. Eu passei os dedos pela pedra fria. Um rego de água corria-me por cima das botas. Um homem pedia esmola em silêncio, de mão estendida. Eu saltei por cima dele. A rua voltou a abrir. Voltou a aparecer o sol.
De uma corda sobranceira à rua pendiam roupas pretas que pingavam água e sabão para o empedrado. O cheiro a lixívia fez-me arder os olhos.
À janela estava um velho, em tronco nu e com o peito coberto por uma penugem fina de pêlos brancos, que olhou cá para baixo, para o Andrés e para mim. Eu cumprimentei-o alegremente. Ele manteve uma expressão inalterável, impassível.
Chegavam-nos aos ouvidos os ruídos do mercado - berros, altercações, gargalhadas. Um estranho fio de música insinuava-se por entre o tumulto, acelerando a nossa aproximação.
Contornámos uma curva e demos connosco no meio de um carnaval fantástico. Homens de todas as cores - brancos, pretos, pardos, esverdeados, amarelos, vermelhos. Com um sorriso de boas-vindas, faziam-nos gestos para que nos aproximássemos deles e das suas bancas, como se fôssemos velhos amigos. Cada um falava uma língua diferente, umas ásperas e outras doces, como uma Torre de Babel. Usavam trajes de toda a parte. Um homem de vestes brancas esvoaçantes e de kaffiyeh árabe a cingir-lhe a cabeça falava com um francês, que vestia as meias altas e blusa que estavam na moda nas cortes da Europa.
Entre estes homens diferentes, a barganha continuava, solene e ponderada, como se estivessem a filosofar. As negociações azedavam, adoçavam, voltavam a azedar.
As lojas vendiam todo o tipo de mercadoria - peles de pantera da índia, sedas carmim de Mossul, papel de Samarcanda, o pergaminho espesso e de cor creme. Noutras bancas expunham-se especiarias e demais iguarias - sacos abertos de canela, açafrão, ruibarbo, anis, alcaparras, cravinho, tâmaras, pistácios. Aromas inebriantes que me penetravam a pele, a tal ponto que sentia os pêlos dos braços eriçados. Um vermelho tão vermelho que eu iria jurar nunca ter visto uma cor como aquela.
Entrámos numa praça. Duas girafas do Iémen vagueavam placidamente por ali, como se tivessem passado quase todos os seus dias num lugar assim. As crianças guinchavam. Punham-se em bicos de pés, a dar pão aos animais. As nobres bestas nem se dignavam baixar os olhos para o clamor que se gerava à sua volta.
Com a promessa de água fresca misturada com limões também frescos, um velho que vendia lascas da Verdadeira Cruz conseguiu atrair-nos, a mim e ao Andrés, ao interior da sua loja. Com o sabor frio e acre a chegar-me às paredes da garganta, umas lágrimas amargas toldaram-me por momentos o cenário da abençoada transacção. Esvaziadas as canecas, voltámos a nossa atenção para os pedaços de madeira manchados de sangue. Tinham o aspecto de pedaços de madeira acabados de cortar à machadada, e o dedo entrapado do mudo ajudante do homem indicava a origem do sangue ressequido. Eu e o André, imberbes, envoltos no hábito de uma ordem estranha, devemos ter-lhe parecido um alvo fácil. Acho que o facto de termos pegado nas lascas - só para observar mais de perto o ridículo da marosca - encheu o velho de esperanças.
- Para crentes verdadeiros como vós, - disse ele - dispenso dois pedaços: um dinar de ouro cada.
Saímos logo, mas o velho, que já tinha feito o investimento dos limões frescos, seguiu-nos por entre as bancas, mantendo um diálogo unilateral em que ia baixando o preço - chegou a três pedaços de madeira "embebidos no Seu sangue" por meia moeda de cobre - até que conseguimos finalmente despistá-lo, escondendo-nos a um canto do apinhado mercado, a arfar e a rir.
Uns quarteirões mais adiante, deparámos com uma loja onde se vendiam artigos pertencentes a diversos guerreiros que tinham atravessado esta terra distante, cujas armas se espalhavam agora pelas paredes, em homenagem ao seu sacrifício solitário em desertos há muito esquecidos. Havia flechas com penas que deviam ter mais de cem anos; um escudo redondo, cravejado, com as marcas de muitos golpes de espada; uma lança quebrada, com a ponta embotada de tantos serviços prestados ao Senhor. Desembainhei uma adaga curva muçulmana que o dono da loja garantia ter pertencido à guarda do imperador abássida, em Bagdade. O Andrés experimentou o elmo redondo de um guerreiro mongol. Parecia Gengis Khan em Acre.
O comerciante queria cinco dirrãs de prata pela relíquia mongol. O Andrés ofereceu três. Acabou por comprar o elmo por quatro. Quatro pratas pela memória daquele guerreiro, se bravo se cobarde não sabíamos, nem em que campo de batalha tinha exalado o último suspiro. E eu pensei que talvez o meu elmo, ferrugento e ensanguentado, tivesse um dia lugar naquela parede.
Três bancas mais adiante, o mesmo capacete mongol estava à venda por duas pratas. Voltámos à primeira loja, onde o homem fingiu não se lembrar de nós. Estávamos no meio de uma acesa discussão com ele, exigindo a devolução das duas pratas pagas a mais, quando se ouviu uma grande algazarra vinda do sector veneziano. Relutantemente, abandonámos os nossos esforços e fomos ver o que se passava.
Era a chegada de um novo lote de escravos. Vinham acorrentados uns aos outros, caminhando desde o cais de desembarque até uma plataforma semicircular em pedra que ficava no extremo do mercado e tinha bancos de pedra alinhados de frente para ela. Era um cortejo dolente, um circo sórdido - raparigas pagãs, de cabelos loiros, da Geórgia; mulheres voluptuosas dos haréns da Arábia; homens altos e altivos, cor de ébano, da África profunda; orientais musculosos, capturados pelos muçulmanos a leste da Pérsia.
O principal negociante de escravos era um veneziano dos seus quarenta anos, com uma barba rala como um retalho de ervas daninhas a cobrir-lhe os diversos queixos. Com uns olhos castanhos que varriam a assistência à procura de potenciais clientes. Um medalhão de ouro com as insígnias do Papa de Roma pendia-lhe de uma grossa corrente e dançava-lhe à altura da barriga. Vários anéis de rubis, em ouro e prata, pareciam estrangular-lhe os dedos sapudos. Ajudavam-no seis compatriotas - todos marinheiros, rostos curtidos pelo vento.
Os venezianos conduziram os seus cativos, em rebanho, até ao estrado e desapertaram as correntes para permitir um exame mais aprofundado por parte dos potenciais compradores, que subiam ao palanque para inspeccionar a mercadoria. Eram compradores locais e outros de kajfiyeh árabe, que tinham feito longas viagens para ali estar. Um grupo de templários examinava uma das mulheres árabes. Levantavam-lhe o cabelo contra a luz do sol, estudando as melenas negras e brilhantes. Um mercador árabe servia-se de uma vara para tirar as medidas a um dos africanos - ombros, largura do peito, bicípites.
Dom Fernando examinava as raparigas da Geórgia. O filho bastardo do Rei Jaime era um homem de trinta e quatro anos, cabelo escuro cortado curto, barba pontiaguda e cavanhaque. Era de média estatura, bem constituído. Reconhecia-se à distância pela capa roxa que sempre usava. Os olhos pequenos e muito negros tinham uma expressão de permanente preocupação, como se estivesse a fazer importantes cálculos mentais. Talvez estivesse a pensar em quem iria ter de matar para ser o sucessor ao trono, ou simplesmente para se manter vivo.
Quando, no início da viagem, o Tio Ramón nos tinha apresentado, ao Andrés e a mim, Dom Fernando reconheceu o meu nome. Ignorou o Andrés.
- Então este é que é o jovem Monteada - disse ele, olhando-me fixamente. - Estou a par da morte prematura do vosso irmão. Quer dizer que agora sois vós o herdeiro do domínio de Monteada. Os últimos serão os primeiros. Como disse o Nosso Salvador.
No mercado de escravos, a expressão preocupada de Dom Fernando foi substituída por um olhar pensativo e atento. Examinava o grupo de raparigas da Geórgia, observando-lhes os dentes, os olhos, a postura. Concentrava as suas atenções em uma em particular, uma criatura franzina, dos seus treze anos, ou menos. Dom Fernando pousou-lhe suavemente a mão na cara e olhou para ela com um sorriso paternal. Depois voltou-se para um dos ajudantes do veneziano e mandou-o puxar para baixo a bata da rapariga. Ele puxou-a até à altura da cinta, deixando à vista as dunas sedosas da feminilidade da rapariga. O homem, que se mantinha atrás dela, perguntou a Dom Fernando, por gestos, se queria que tirasse o resto. Dom Fernando, pensativo, disse que não com a cabeça e a seguir pousou-lhe a mão no seio esquerdo, que apalpou como quem avalia a frescura de uma laranja nos mercados de Barcelona; a rapariga ficou impassível, perfeitamente imóvel, como a estátua em pedra da Virgem que havia no jardim dos Corrêa. Dom Fernando cofiou com uma das mãos a barba bem cuidada, fez um aceno circunspecto e foi tomar lugar na galeria, rodeado pelos seus oito lugar-tenentes e quatro cortesãs.
O leilão começou quando um dos homens africanos foi trazido à boca do palanque. Um mercador genovês, bem vestido, de calções, jaqueta vermelha e saio, fez a primeira oferta. Pôs a mão no ar, com três dedos estendidos, e disse "Oro" - três moedas de ouro. Com o primeiro lance, irrompeu de entre a multidão uma chuva de gritos, mãos no ar, palavras crípticas, estranhas. O dono dos escravos, sentado numa sólida cadeira de madeira ao lado do palanque como um bispo no seu trono, seguia a evolução dos lances de modo desapaixonado, ponderado, apontando para o autor da maior oferta com os dedos esticados, como se estivesse a benzer um dos seus súbditos. Havia na galeria vários árabes, que se acotovelavam. A licitação atingiu registos estridentes. Eu tapei os ouvidos com as mãos para não ouvir os guinchos. Até que a licitação acabou. Vendido. Ao primeiro licitante, o elegante genovês, por nove dinares. Voltaram a acorrentar o africano e levaram-no para fora do palanque, entregando-o ao seu novo dono.
Seguiu-se uma das raparigas da Geórgia - a mesma que Dom Fernando tinha examinado tão detidamente. Trouxeram-na à boca do palanque, baixaram-lhe a bata até à altura da cinta e voltaram a puxar-lha para cima. A rapariga ficou imóvel, siderada - a olhar para o mar, como que na esperança de vislumbrar o pai, a mãe, ou qualquer outro refúgio. Um olhar encantado que fez descer sobre a galeria uma calma nostálgica, uma oração silenciosa àquela pálida madona e às nossas terras de origem, reais e imaginárias. Dirigi os meus pensamentos para Isabel e meti a mão no hábito para apertar contra a pele o lenço em que guardava as suas lágrimas.
Foi um momento de sortilégio, que logo foi interrompido, escorraçado pela avalancha de gritos selvagens vindos da galeria. O preço oferecido pela rapariga subiu rapidamente, com lances vindos de licitantes com olhares primitivos, sôfregos, infrenes. Dom Fernando parecia ausente da transacção em curso, a brincar com a ponta da capa roxa e a galhofar com os seus lugar-tenentes. A venda estava prestes a ser fechada por dezassete moedas de ouro quando Dom Fernando voltou finalmente a atenção para o palanque e fez uma oferta. Disse que trocava duas das suas cortesãs - "vindas directamente da corte real de Barcelona" - pelas cinco raparigas da Geórgia.
- Dou-vos a minha palavra de honra - disse Dom Fernando - de que as duas raparigas são virgens. Que a Coroa de Aragão seja minha testemunha.
O dono dos escravos pensou que tinha percebido mal e pediu ao ajudante que lhe traduzisse a oferta de Fernando. Ouvida de novo a proposta, agora na sua língua materna, fez um ar perplexo e perguntou a Dom Fernando: - Mas estas mulheres que me estais a oferecer são de fé cristã, não são, signore?
Dom Fernando respondeu de imediato: - Tão cristãs como era Maria Madalena.
O dono dos escravos levantou-se da cadeira e pôs-se a andar no estrado de um lado para o outro, franzindo os olhos, coçando a cabeça, como se fosse o Rei Salomão a decidir o destino do recém-nascido reivindicado por duas mulheres. Esfregou as mãos, convocou um dos colegas e com ele conferenciou em agitados murmúrios. Depois desceu do estrado para observar mais de perto as duas mulheres que lhe ofereciam, as quais se riam com as companheiras e pareciam deliberadamente indiferentes à transacção proposta.
- Si. - Uma palavra do dono dos escravos, um aceno de Dom Fernando, e estava feito o negócio. O veneziano deu uma ordem aos seus ajudantes, e o grupo de raparigas da Geórgia foi acorrentado e entregue à comitiva de Dom Fernando.
As duas cortesãs não se mexeram do contingente real. Três marinheiros venezianos desceram do estrado e postaram-se ostensivamente nas imediações do círculo formado pelo séquito de Dom Fernando, à espera de um sinal dele. O Andrés e eu, movidos por uma curiosidade irreprimível, abrimos caminho por entre a multidão para nos abeirarmos da real comitiva.
Dom Fernando dirigiu-se às duas mulheres: - Minhas elegantes ninfas, tenho más notícias para vós. Agora sois propriedade de Veneza.
Desviou os olhos delas, falou com um dos seus lugar-tenentes e voltou a olhar para o lado delas, como se esperasse que as duas mulheres já se tivessem ido embora.
Ao ver que elas não tinham dado um passo, adoptou um tom mais severo. - Ouvi, minhas lindas. Já estou farto da vossa companhia. O melhor é irdes usar dos vossos encantos para cativar outros amos. Agora deixai-me em paz.
As duas mulheres esboçaram uma gargalhada desconfortável, talvez na esperança de que o Príncipe estivesse a pregar-lhes uma partida bem urdida mas inofensiva. Porém, ao verem aproximar-se os venezianos, as duas cortesãs tomaram consciência da gravidade da sua situação.
- Mas Dom Fernando, - disse uma das mulheres, com uma ligeira tremura na voz - nós somos vossas cortesãs, cortesãs reais.
Ele olhou com ar sério para a sua interlocutora. - Não, - disse - vós éreis cortesãs reais. Agora sois propriedade destes cavalheiros. Aconselho - vos a tirardes o melhor partido possível da vossa nova situação. Aliás, prostitutas já vós éreis. Não vos esqueçais disso. E não vos esqueçais de ter fé. As circunstâncias podem mudar. Não é verdade, jovem Monteada?
Dom Fernando olhou para mim com um sorriso que podia parecer de compaixão, não fora o rebordo dos lábios virado para baixo, trocista, e um brilho nos olhos que exprimia uma vida inteira de desejo irrestrito, ambição insaciável e revolta reprimida. Fitei por brevíssimos momentos aqueles olhos em brasa, incapaz de os suportar por mais tempo.
As mulheres prostraram-se, caindo de joelhos, e agarraram-se às pernas de Dom Fernando. Ele baixou os olhos para elas, com uma vaga sensação de desilusão estampada no rosto, um indisfarçável enfado com todo aquele episódio. Depois fez um sinal aos venezianos, que se aproximaram para levar dali as mulheres.
Mas elas recusavam-se a ir. Uma delas pôs-se aos gritos histéricos. A outra tentou comover um dos venezianos, que olhou para ela com indiferença. Ela desfiou pormenores da sua linhagem, garantindo que era prima em terceiro grau do Bispo de Barcelona, como se isso a tornasse imune a destino tão indigno. Os venezianos acabaram por pegar nas mulheres e levá-las ao ombro para as traseiras do estrado.
Enquanto se desenrolava este drama, a comitiva real entregava-se a uma galhofa furtiva. As cortesãs que ficaram eram as que mais se riam, talvez de alívio por não terem sido elas as escolhidas pelo seu senhor. Dom Fernando alisava a túnica, engelhada pelos puxões desesperados das mulheres vendidas. Do seu grupo, era o único que estava calado, de expressão alterada, meditabundo, outra vez apreensivo, como se estivesse a pensar em vitais assuntos de estado ou porventura em questões de sucessão. Quando um dos venezianos lhe veio trazer o documento de permuta, Dom Fernando assinou-o como se de um tratado entre Aragão e Navarra se tratasse. Concluída a transacção, o séquito partiu com as novas aquisições.
Eu tive o impulso absurdo de voltar a comprar as duas mulheres e mandá-las de volta a Aragão. Absurdo porque tanto eu como o Andrés tínhamos deixado quase todo o nosso dinheiro nas instalações dos hospita-lários. Ambos vasculhámos os bolsos mas não conseguimos juntar mais de quatro moedas de prata. Mesmo sem dispormos do dinheiro necessário, perguntámos ao negociante de escravos quanto queria pelas "virgens catalãs". Ele olhou para nós muito sério, desconfiado, como que a dizer que nos estávamos a meter em assuntos que não nos diziam respeito. Depois, optou por ignorar pura e simplesmente a minha pergunta. Passados breves minutos, as duas mulheres eram revendidas a um mercador por três moedas de ouro.
Começou logo de seguida o leilão de mais um grupo de escravos. Eu virei-me para o lado do mar, com os punhos fechados e o fresco da brisa do oeste a percorrer o suor frio que me cobria o corpo.
Na semana seguinte, o Tio Ramón convocou os Calatrava para uma reunião na ala dos hospitalários. Ladeado pelos seus guarda-costas, Bernard e Roberto, Ramón estava em pé ao canto do pátio, por baixo do refeitório, de cujas janelas abertas descia um cheiro a azeitonas pisadas.
- Meus irmãos, - disse ele - em breve vamos entrar em combate. O bastardo Dom Fernando está cada vez mais impaciente neste antro de deboche. Falou com o Grão Mestre Adjunto do Hospital, Barão Bernières, e convenceu-o a enfrentar os infiéis. Afinal de contas, não viemos do outro lado do mundo para provar as prostitutas, não vos parece?
Eu não pude evitar uma gargalhada. Dom Fernando, ansioso por desferir um golpe nos infiéis, espada de Cristo, protector da Cristandade. Tinha piada.
- Tendes alguma coisa a acrescentar, Francisco? - perguntou Ramón.
- Não, Tio - respondi. - Peço-vos desculpa.
O Barão Bernières e Dom Fernando - continuou Ramón - decidiram atacar Baibars onde ele é mais vulnerável - no castelo de Toron, a trinta milhas de marcha de Acre. Os muçulmanos conquistaram a fortaleza há três anos. Presentemente, tem apenas uma pequena guarnição a guardá-la.
- A conquista do castelo seria uma grande vitória para o Nosso Salvador. A sua posse daria aos nossos exércitos uma base de operações para proteger o reino e atacar os infiéis mais a leste.
- Dom Fernando e as suas forças - duzentos cavaleiros e mais de mil infantes - partem amanhã para Toron. Nós partimos no dia seguinte com o Barão Bernières e seus quatrocentos cavaleiros.
- As nossas forças conjuntas vão sitiar o castelo. Não vamos esperar que os habitantes do castelo se submetam pela fome. Sabemos pelo nosso espião, um árabe cristão que vive na fortaleza, que as reservas de comida e água do castelo dão para vários meses. O Barão tem esperança de que o cerco convença a populaça e os soldados encurralados da inevitabilidade da queda do castelo, e os comandantes aceitem negociar uma rendição sem derramamento de sangue. O Barão oferece salvo-conduto para todos os habitantes, a troco da completa evacuação do castelo.
- O Barão, na sua qualidade de comandante da força mais numerosa, assume o comando global dos exércitos cristãos. E pediu que os Cavaleiros de Calatrava o acompanhassem na expedição.
- Preparai-vos, meus amigos. Dentro de dois dias marchamos sobre Toron.
Portanto, estava decidido. Eu estava ansioso pela batalha, pelo sabor e cheiro da guerra, para resgatar a alma do Sérgio e dissipar a sombra do meu fardo.
UM CAMPO DE SANGUE
Os soldados a cavalo fizeram a viagem até Toron em um dia.
Montávamos cavalos cedidos pelos nossos irmãos hospitalários.
Os escudeiros de Dom Fernando levavam as nossas armaduras. Em Toron, os hospitalários e o exército de Dom Fernando sitiaram o castelo - cercando-lhe as muralhas, para impedir entradas ou saídas. Nós, os Calatrava, montámos as nossas tendas a uma milha dos outros acampamentos cristãos. Ficámos no limite da floresta, fora das vistas do castelo. O Tio Ramón tinha oferecido os nossos serviços de ajuda à construção de uma torre de assédio. Pelos vistos, o nosso Grão Mestre era perito em todos os aspectos do combate, incluindo a engenharia. Durante duas semanas, Ramón dirigiu os mestres hospitalários e respectivo pessoal auxiliar, num total de cerca de quinhentos homens, na concepção e construção da torre.
Os mestres hospitalários tinham transportado de Acre cinquenta varas de ferro e as quatro vigas de canto da torre - de madeira maciça, com mais de cem pés de comprimento, o suficiente para chegar à torre mais alta do castelo. Os hospitalários tinham recebido as medidas das torres de Toron dos cavaleiros cristãos que se tinham rendido e entregue o castelo três anos antes.
Num campo plano, os hospitalários estenderam o material. No primeiro dia, sob a orientação de Ramón, os mestres encaixaram o ferro na madeira. As varas de ferro mantinham as vigas separadas, formando um quadrado. Cordas atadas à volta dos quatro cantos mantinham as vigas presas. Os mestres apertavam as cordas todas para o mesmo lado, fazendo curvar a madeira e obrigando as quatro vigas a apontar todas para dentro do quadrado. Deitada ao pé da floresta, a estrutura da torre fazia lembrar a carcaça de um animal gigantesco, com costelas de ferro e restos esfarripados de carne pendente.
Os hospitalários distribuíram machados. Nós, Cavaleiros de Calatrava, acabámos a derrubar árvores numa qualquer floresta remota da Síria. Equipas de dois trabalhavam de cada lado do tronco. Limpávamos cada mata até ao fim, antes de passarmos à seguinte. Eu sentia as costas e os ombros a arder, do esforço.
Os hospitalários transportavam para outro estaleiro a madeira derrubada. Aí, os mestres cortavam e serravam as árvores, dando-lhes a forma de sólidas vigas. O ruído rangente das serras misturava-se com a tosse dos operários, que inalavam a serradura seca.
Outro grupo levava a madeira cortada para junto do esqueleto da torre, como se estivessem a dar de comer ao animal morto. No acampamento principal, Ramón conferenciava com o mestre chefe dos hospitalários, revendo esboços, inspeccionando o trabalho, berrando ordens. Com o bater constante dos maços, Ramón tinha dificuldade em fazer-se ouvir. Pregos transportados entre os dentes dos mestres eram rapidamente aplicados na estrutura, enterrados até ao fundo. A cobertura de pranchas de madeira avançava de dia para dia, escondendo as entranhas vazias da torre. Lentamente, o animal ganhava forma.
No campo adjacente, os mestres tinham colocado grandes talhas de vinagre. Lá dentro, de molho, tinham metido peles de animais, trazidas de Acre. Terminada a sinfonia de martelos, e quando já não se via o esqueleto, os hospitalários trouxeram as peles. Pregaram-nas à madeira mole da superfície da torre, fazendo uma cobertura que acabou por tapar toda a estrutura. Ramón dizia que aquilo servia para impedir, ou pelo menos retardar, a propagação das chamas provocadas pelas setas incendiárias.
No último dia de construção, um novo contingente de mestres hospitalários chegou de Acre com quatro rodas de madeira que me davam pelo peito, e eixos de ferro. Os hospitalários fixaram as rodas ao fundo da torre, dando à máquina pernas para andar.
Enquanto decorriam os trabalhos finais, Ramón mandou os seus homens de Calatrava lavar-se na floresta. Tomámos banho no rio, libertando-nos da sujidade causada pelo trabalho braçal e preparando-nos para uma missão totalmente diferente. Voltámos cerca de duas horas depois para contemplar a nossa criação - a torre, já na vertical, como se tivesse acabado de acordar. O Andrés disse que pensava que nem um exército inteiro seria capaz de pôr a torre em pé. Ramón disse-nos mais tarde que o peso tinha sido quase todo suportado por um dispositivo mecânico inventado pelos infiéis.
Ali ficámos algum tempo, a contemplar a imponente construção, a prestar homenagem à colossal criatura. Era afinal uma máquina de morte, uma forma de transferir os soldados cristãos para uma das torres do castelo. Mais de cem cavaleiros iam poder aproximar-se do castelo em pleno dia, protegidos por aquele abrigo de madeira e ferro. O interior da máquina tinha três andares ligados por duas aberturas e escadas de corda pregadas ao tecto mais alto. O último andar tinha uma prancha que descia ao encontro de uma das torres do castelo, uma rampa a partir da qual os cavaleiros iriam atacar as defesas muçulmanas. Os quarenta cavaleiros que iam no último andar seriam a primeira vaga do ataque, reforçados e rendidos pelos cavaleiros que iam no piso seguinte. Debaixo de fogo dos muçulmanos que guarneciam as muralhas, centenas de infantes iriam empurrar a torre de modo a fazer com que as quatro rodas de madeira nos levassem para a batalha.
E ia mesmo haver batalha. O Tio Ramón tinha-se reunido de manhã com o Barão Bernières e Dom Fernando. Os outros dois comandantes tinham perdido a paciência com os infiéis. Os generais muçulmanos tinham recusado as generosas ofertas de salvo-conduto. A última das indignidades enfureceu todos os cavaleiros cristãos. Os infiéis tinham despido por completo o nosso emissário e tinham-no mandado de volta amarrado e vendado em cima de um burro, que veio a trote ao encontro das forças cristãs.
Os três comandantes decidiram atacar o castelo daí a dois dias. Assim, ficávamos com um dia para levar a máquina até às linhas da frente. Ramón transmitiu-nos os planos de batalha. Depois de uma barragem de artilharia disparada pelas catapultas, os três exércitos - Calatrava, hospitalários e forças de Dom Fernando - atacariam em simultâneo. Os Calatrava e os hospitalários iriam unir forças contra as muralhas ocidentais do castelo. Esta força conjunta contaria com a torre de assédio para nos levar ao centro da batalha. O exército de Dom Fernando iria atacar do lado oriental.
Quinhentos soldados de engenharia hospitalários passaram a noite de pá e enxada, a abrir um caminho largo pelo qual a torre de assédio pudesse avançar direita ao castelo. Ao nascer do dia, ataram cordas e roldanas ao grande engenho. Equipas de hospitalários revezaram-se a puxar a torre na direcção do castelo.
Antes do amanhecer já nós, os Calatrava, tínhamos envergado as armaduras. Montados nos nossos cavalos de guerra, escoltámos a torre, protegendo-a da eventualidade de os infiéis tentarem algum ataque de surpresa para lançar fogo à máquina ou destruí-la. Mas não aconteceu nada disso. Passámos todo o dia e boa parte da noite a observar os esforços extenuantes das equipas de hospitalários, o lento movimento da torre - passo a passo. De quarto em quarto de hora, os hospitalários faziam uma pausa para limpar a lama dos eixos das rodas.
Ao anoitecer, caiu uma chuva leve. Um dos soldados de escorregou à frente da torre. Eu ouvi o ruído das suas costelas a ceder, esmagadas como um feixe de gravetos numa bigorna. Estava o sol para nascer quando chegámos ao acampamento do Barão Bernières. Tínhamos levado vinte e duas horas a percorrer uma milha. Quando os nossos escudeiros nos tiraram as armaduras, sentimos o cheiro dos restos de carne assada no espeto da ceia da noite anterior. Lá longe viam-se os contornos da fortaleza, mas nós não quisemos saber daquela aparição de pedra. O corpo pedia-nos descanso, os olhos fechavam-se-nos.
Deitámo-nos por escassas duas horas dentro das tendas que tinham sido montadas antes da nossa chegada. Um dos infantes dos hospitalários acordou-nos com uma pungente melodia de flauta - uma elegia de sereia - uma solene chamada para a batalha. Bocejámos e abanámos a cabeça, a espantar os espíritos perturbados que nos visitavam durante o sono. Tinha parado de chover e aparecido um arco-íris - "o arco-íris de ouro de Noé", como lhe chamava o Tio Ramón. Os vermelhos de fogo, o verde esmeralda, o azul e o amarelo que cruzavam os céus, unindo os dois lados do vale.
Por entre uma ténue névoa, vislumbrámos o castelo. A pedra cinzenta parecia distante, indiferente, depois de ter visto soldados de muitas nações marchar diante das suas muralhas para irem acabar sepultados nas sombras da sua fachada imponente. As muralhas erguiam-se em direcção ao céu, escoradas por torres redondas, abertas, guarnecidas por besteiros sarracenos. De pé em cima do parapeito de uma das torres, um homem vigiava o nosso acampamento. Era talvez um cavaleiro como eu, ou então um dos seus comandantes que contava quantos éramos e avaliava a nossa força. Era a primeira vez que eu via um inimigo isolado, um infiel, se bem que a uma certa distância - era mais uma silhueta que um homem. Ainda assim, senti um frémito de apreensão e entusiasmo - naquele mesmo dia, eu podia ir estar cara a cara com aquele soldado sem nome.
Seteiras - fendas estreitas, verticais - ornavam as muralhas de pedra em filas horizontais, formando um dispositivo ameaçador que dava aos besteiros sarracenos a possibilidade de disparar, escondidos, sobre o inimigo que se aproximasse. Havia fendas mais largas para as bestas mecânicas, que serviam para disparar contra a torre de assédio e as catapultas. Adarves circundavam as muralhas, permitindo às sentinelas dos infiéis percorrer todo o perímetro do castelo e localizar os pontos de vulnerabilidade do inimigo. Havia pontos onde os adarves eram salientes e ocultavam grandes fendas no chão, através das quais se podia lançar azeite a ferver ou pedras sobre os soldados que tentassem escalar as muralhas.
Os escudeiros levaram as nossas armaduras para uma clareira de terra e gravilha que havia ao pé das nossas tendas e ajudaram-nos a vesti-las para a batalha - desfazendo os nós da cota de malha, apertando fivelas, ajustando correias. Ramón recomendou-nos que não levássemos caneleiras. A cota de malha de que eram feitas era muito pesada e limitava-nos os movimentos quando andávamos a pé.
Os criados franceses dos hospitalários serviram-nos um pequeno almoço de pão e vinho, uma mistela horrorosa, morna, que mais parecia vinagre que outra coisa. Os criados olhavam para nós com desprezo, como se fôssemos nós que devíamos servi-los a eles. Depois de provar aquele líquido intragável, despejei a minha caneca para o chão.
- Este vinho sabe a merda - disse Galindo Fánez.
- Ça va - respondeu, imprudente, um dos criados franceses.
- Merde, merde - disse Galindo com um cerrado sotaque catalão, apontando para a caneca.
- N'importe quoi vous dites, vous allez mourir avant midi. - Este segundo erro foi quase fatal para o nosso criado francês.
Se Galindo sabia francês ou não, desconheço. Mas não há dúvida de que percebeu o essencial daquelas palavras - digais o que disserdes, antes do meio dia estareis mortos. Galindo agarrou o provocador pelos cabelos, atirou-o ao chão e encostou a espada ao pescoço do francês.
- Pode ser que eu morra na próxima batalha, - disse Galindo - mas não vou morrer sem beber uma caneca de vinho decente.
O sorriso trocista desvaneceu-se da cara do francês, que ficou branco. De olhos arregalados, agarrou-se ao punho que segurava a espada que o ameaçava.
Se o francês soubesse do feitio sensível de Galindo, com certeza que teria sido mais cuidadoso na escolha das palavras. Galindo tinha revelado o seu temperamento logo no nosso primeiro dia de instrução em Calatrava. Estávamos no palheiro, pendurados numa barra de metal que havia por cima dos estábulos. Era uma prova de força. Ramón contava os segundos que nós aguentávamos agarrados ao varão. Galindo foi um dos três recrutas que caíram antes dos trinta segundos.
- Não fiqueis preocupadas, minhas lindas, - disse Ramón ao trio - que o Bernard e o Roberto vão pôr-vos em forma.
Grão Mestre ou não, Ramón tinha insultado Galindo, que se levantou de um salto e avançou decididamente para o nosso mestre. Parecia mesmo que ia atacar Ramón pelas costas. Mas Ramón deve ter ouvido os passos ou pressentido a aproximação de Galindo. Rodou o corpo e aplicou uma cotovelada na cabeça de Galindo, no momento em que este ia atacá-lo. Galindo estatelou-se no meio do chão, de cara enterrada num monte de lama.
- Galindo, - disse Ramón - um dia sereis um Cavaleiro de Calatrava. Até lá, procurai manter-vos em pé.
No nosso acampamento improvisado de Toron, Galindo estava em pé. Em cima do francês, a entornar-lhe um jarro de vinho pela cabeça.
- Matai-o - disse Enrique Sánchez. - Matai esse filho da mãe. Todos nós, Galindo incluído, olhámos surpreendidos para Enrique. Era o mais jovem dos cavaleiros, nos seus dezoito anos acabados de fazer. Era simpático, todos os nossos camaradas gostavam dele, e era mais conhecido pelas suas façanhas no amor do que nos nossos concursos marciais.
Estivera quase para ser expulso da Ordem uns meses antes da nossa partida. Foi na festa da Assunção. Muitos cavaleiros assistiam às festividades da cidade, outros estavam na taberna. Regressámos à fortaleza já de noite, a cantar baladas e a dançar. Ninguém sabia do paradeiro de Enrique. Pensávamos que ele tinha regressado mais cedo, em outro grupo. E tinha - num grupo de dois. Fomos dar com eles no refeitório. Esmeralda, uma prostituta da cidade, correu a cumprimentar Ramón.
- Que ricos meninos tendes aqui escondidos, Ramón - disse Esmeralda.
Nós estávamos acompanhados do prior da Ordem, Padre Dioniso, que tinha sido acordado pelas nossas cantorias. Descalço, as tíbias pálidas e secas a espreitar-lhe por debaixo do hábito, o padre fazia-nos uma prelecção sobre os malefícios do consumo de álcool quando a cena que tínhamos diante dos olhos o deixou sem palavras. Enrique estava deitado de barriga para o ar em cima de uma das mesas de madeira - nu, à excepção de um penduricalho de couro que tinha à volta do pescoço, oferta da companheira.
- Padre Dioniso, - disse Ramón - permiti-me que vos apresente a Esmeralda, uma das mais amadas residentes de Calatrava. O Enrique já vós conheceis, claro.
Toda a gente se convenceu de que Enrique seria expulso da academia no dia seguinte. Os outros soldados, incluindo eu, retiraram-se apressadamente para os seus aposentos, deixando Ramón, Enrique e Esmeralda entregues à ira do Padre Dioniso. Só muitos dias depois soubemos o que se tinha passado. Segundo Galindo, Esmeralda conhecia bem o Padre Dioniso. Tratava-o por "el lobo", o lobo, e rosnava em tom de galhofa. Apesar da forma íntima como Esmeralda o tinha saudado, o padre continuava a protestar que não conhecia a rapariga de lado nenhum. O padre lançou-se numa diatribe contra os fornicadores, levando Esmeralda às lágrimas com uma descrição convincente dos tormentos que a esperavam no inferno. Quando acabou, desatou a esbofetear a própria cara. Fê-lo vezes sem conta e ficou com as maçãs do rosto cheias de vergões, até que Ramón lhe agarrou a mão. Aos soluços, o padre prostrou-se de joelhos e confessou uma ligação ilícita que mantinha com Esmeralda. Beijou os pés do Tio Ramón e implorou-lhe clemência. O Tio Ramón acedeu a guardar para si o segredo do Padre Dioniso, na condição de que ele autorizasse Enrique a continuar em Calatrava. Para manter as aparências, o Padre Dioniso insistiu com Ramón na aplicação de um castigo, mínimo que fosse, a Enrique. Ramón respondeu ao padre que, dadas as circunstâncias invulgares, precisava do acordo de Enrique, que num gesto magnânimo concordou com a imposição de uma hora extra de oração silenciosa à tarde, durante um mês.
Da magnanimidade demonstrada por Enrique para com o Padre Dioniso não houve qualquer sinal naquela madrugada que precedia a batalha. - Matai o filho da mãe do francês - repetiu Enrique, enquanto desembainhava a espada com uma das mãos e na outra enrolava o penduricalho de couro que Esmeralda lhe tinha oferecido. Parecia decidido a executar ele próprio aquilo que preconizava, se faltasse a coragem a Galindo.
Foi o acaso que salvou a vida ao francês. O Tio Ramón e seus dois lu-gar-tenentes, Bernard e Roberto, chegaram antes que Galindo ou Enrique fizessem correr sangue. O nosso mestre vinha de uma reunião de estratégia com todos os comandantes.
- A tensão nervosa no fim de um dia difícil leva a pessoa a ferver em pouca água - disse Ramón, avançando com o seu cavalo para os exaltados. - Este homem não é vosso inimigo. Poupai as espadeiradas para os infiéis.
Galindo e Enrique não se mexeram.
- Quereis então treinar com os nossos anfitriões? - disse Ramón, a rir-se. - Muito bem. Galindo, o melhor é vós segurá-lo para o Enrique poder cortar-lhe o pescoço. Já agora, por quê ficar por aqui? Vamos matar os criados todos.
Galindo e Enrique olharam, hesitantes, para Ramón, depois para o seu prisioneiro e de novo para Ramón. Finalmente, Galindo largou o francês, que desapareceu num instante. Enrique voltou a embainhar a espada. Nós retomámos os preparativos, olhando de vez em quando de relance para Galindo e para Enrique, com uma vaga mistura de desconforto e respeito.
- Ramón, qual é a recompensa - perguntou Pancho Jerez - para o cavaleiro que matar o maior número de infiéis?
Pancho era um excelente guerreiro - um exímio espadachim, muito eficaz em torneios. Mas o seu amor próprio excedia em muito os seus talentos. Tentou convencer os outros cavaleiros a chamar-lhe El Cid. Ofereceu-me um cinto de excelente couro para eu o tratar por este nome e convencer o Andrés a fazer outro tanto. Acabámos por tratá-lo por El-Cidiota.
- Limitai-vos a lutar - disse Ramón. - Deixai para o Senhor a contagem dos mortos.
Vestimos as túnicas brancas por cima da cota de malha. Apertei com força o lenço que tinha recebido de Isabel no jardim da casa da família Corrêa. Em seguida guardei-o dentro da cota de malha, contra o peito.
Uma vez envergadas as armaduras, Ramón conduziu-nos ao encontro dos nossos irmãos hospitalários. Entre eles vinha o Barão Bernières - um homem elegante, sentado muito direito na sela, de fina cabeleira arruivada que lhe dava pelos ombros, e uma barba castanha clara, bem aparada. Todas as manhãs passava um tempo considerável a cuidar da aparência. Em Acre, no refeitório, apresentava-se a todas as refeições como se fosse jantar com o Rei, de vestes bem passadas e cabelo castanho a brilhar de óleo. Cheguei a ouvir alguns dos seus cavaleiros referirem-se ao seu mestre, entre dentes, como "o imaculado". Tratava-se de uma alcunha imbuída de uma ironia pouco lisonjeira para o comandante de várias centenas de cavaleiros, ainda por cima alguém que só recentemente tinha chegado ao Levante e ainda não tinha provas dadas no campo de batalha. A principal credencial advinha-lhe do seu nome de família. O Barão era irmão de François Bernières, o Arcebispo de Paris. Lembro-me de, na própria manhã do ataque, ter visto o Barão sentado à porta da tenda a aparar as sobrancelhas, enquanto o escudeiro segurava um espelho.
Do que não havia dúvida era de que o Barão não era um guerreiro - até eu, que nunca tinha travado nenhuma batalha, percebia isso. Era demasiado bonito. Mas, como dizia o Tio Ramón, a grande virtude do Barão residia no facto de, mesmo sem ter vocação para a espada, se saber rodear de gente com essa vocação, caso do nosso Grão Mestre, o Tio Ramón.
Sob o comando do Barão Bernières, os Calatrava constituíam um contingente autónomo dentro do seu regimento dos hospitalários. Um batedor do acampamento de Dom Fernando tinha informado o Barão e Ramón de que as suas tropas iam começar o assalto do lado oposto.
Nós, os Calatrava, estávamos atrás das catapultas com os cavaleiros hospitalários, a afiar as espadas e a fazer os ajustamentos finais nas nossas armaduras. De frente para o castelo, a torre de assédio tomava lugar ao lado dos exércitos, a observar os nossos preparativos, à espera dos seus ocu-pantes.
As catapultas - doze, ao todo - tinham sido transportadas a coberto da escuridão para posições em que pudessem alvejar as muralhas do castelo. Encavalitadas nos engenhos, carroças cheias de pedras. Quarenta soldados e manobreiros, comandados por um capitão, operavam cada um dos dispositivos. Qual público de donzelas embevecidas a assistir a um torneio de cavalaria, assim presenciávamos nós as equipas de hospitalários a preparar as máquinas e a carregá-las. Eu nunca tinha visto instrumentos tão avançados - catapultas construídas pelos melhores artesãos de Acre. Um braço comprido e polido balançava sobre um eixo metálico. A ponta mais comprida do braço estava presa, impaciente, pronta para saltar, com uma grande pedra na bolsa de cabedal. Da outra ponta pendiam várias cordas, à espera de serem puxadas em uníssono para propulsionar o míssil. Gravado e pintado em cada braço estava o nome que cada tripulação tinha dado à sua máquina - o Ministro, o Leão, Paris, o Apóstolo.
O bombardeamento começou quando o reflexo do sol se tornou visível nos elmos metálicos usados pelos cavaleiros hospitalários. Ouviu-se o silvo das pedras a subir nos ares a ponto de quase desaparecerem no meio das nuvens, para depois descerem e irem cair dentro do castelo - um estrondo assustador, terrível. Os sarracenos que guarneciam as muralhas responderam com uma salva de setas que por pouco não atingiram a nossa posição.
O ataque das catapultas era cerrado. O silvo dos projécteis na trajectória descendente, ao encontro do castelo, era assustador, mesmo para os cavaleiros cristãos que estavam agachados no outro extremo da trajectória. O impacto fazia tremer os alicerces das muralhas da fortaleza e a terra debaixo dos nossos pés. Olhei para o Andrés, que estava à minha direita. Ele assistia com ar compenetrado àquele espectáculo aterrador.
- Santa Mãe de Deus - disse ele, em surdina.
Os besteiros sarracenos, incapazes de atingir os seus alvos por estarem demasiado longe, desapareceram das torres. Parecia impossível, mas as muralhas continuavam em pé. Rebentadas, fendidas, furadas, mas lá continuavam. Isto é, até que um acontecimento inesperado levou o Barão Bernières a alterar os nossos planos de batalha.
De repente, tornou-se visível na muralha exterior uma brecha considerável. Acho que devíamos ter suspeitado de uma artimanha, dadas as características da abertura - os dois lados praticamente paralelos, como se alguém tivesse cortado com uma faca uma fatia de parede. Talvez pressentindo a possibilidade de algum ardil, o Barão mandou um dos seus adjuntos carregar sobre o castelo com uma companhia de cavaleiros. A cavalo, os hospitalários - cerca de oitenta homens - aproximaram-se cautelosamente da fenda, sem que ninguém os molestasse. Ramón achou aquilo muito estranho. Estava mesmo à minha frente.
- Barão, - disse Ramón - a fenda - acho-a certinha de mais. Receio que seja uma emboscada. Mandai retirar os vossos homens. É melhor cumprirmos o plano original. A torre de assédio vai levar-nos direitos às muralhas do castelo.
O Barão sorriu amavelmente para Ramón, mas com uma ponta de desdém.
- Nunca esperei - disse o Barão - ver o Grão Mestre de Calatrava perder a coragem no auge da batalha.
Da posição em que estávamos, víamos através da brecha. Os cavaleiros hospitalários passaram a cavalo pelo meio da abertura. Ao cabo de um breve intervalo, ouvimos gritos exultantes dos hospitalários que tinham entrado no castelo, e o matraquear triunfante dos cascos dos cavalos no pátio deserto. "Glória a Deus", gritava-se do interior do castelo, e os gritos eram repetidos pelos irmãos que estavam do lado de fora. Era como se os nossos inimigos se tivessem dissipado no meio do nevoeiro.
Com ar triunfante, o Barão olhou para o Tio Ramón, que estava a seu lado.
- Pois é, meu amigo, - disse o Barão - acho que os infiéis perceberam que de nada lhes servia resistir a uma força avassaladora como a nossa. - E deu uma palmada nas costas do Tio Ramón.
Quando o portão deslizou pela abertura - ferro forjado, talvez vinte pés de altura - gerou-se um momento de angustiante confusão e incredulidade entre os cavaleiros encurralados no interior do castelo. Os soldados sarracenos voltaram a aparecer nas muralhas. Em vez de se virarem para nós, olhavam para os que tinham aprisionado no interior do castelo.
Os gritos de vitória dos hospitalários não se calaram logo. Muitos deles pareciam não se ter apercebido do significado da sua nova situação. Os cavalos foram os primeiros a aperceber-se dela. Começaram a empinar-se e a relinchar furiosamente. Os sarracenos davam a ideia de estar a saborear a lancinante e palpável sensação de incerteza. Durante vários minutos, não tomaram nenhuma atitude em relação aos seus reféns, que em breve iriam tomar consciência do terrível erro estratégico que acabavam de cometer. Tinham sido os próprios sarracenos a demolir aquele pedaço de muralha, assim seduzindo os cavaleiros hospitalários e respectivo comandante com a perspectiva de uma vitória fácil.
Eu olhei de soslaio para Ramón. Ele tinha os olhos fechados, mas pela sua expressão carrancuda percebi logo o destino que esperava os nossos irmãos. Os cavaleiros com quem tínhamos partilhado dormida e mesa durante quase quatro meses - oitenta deles - eram homens mortos, atraídos ao interior do castelo para servirem de alvos de treino aos experientes atiradores sarracenos que defendiam as muralhas com as suas bestas.
O som da carnificina começou com o silvo das setas infiéis a trespassar as armaduras. Um dos cavaleiros encurralados carregou sobre o portão e brandiu a espada contra as barras de ferro - um gesto feroz mas desesperado, cujo som retiniu pelo vale. A montada do cavaleiro foi abatida e caiu e ele tentou pôr-se em pé. Eu vi-o agarrar-se desesperadamente às grades. Foi abatido pelas costas. Caiu para a frente e os braços enfiaram-se pelos intervalos do portão, pelo que o seu corpo inerte ficou ainda em pé, suspenso.
Nós assistimos a tudo, impotentes, incapazes de nos olharmos uns aos outros nos olhos, como se aquilo fosse de algum modo responsabilidade nossa, ou houvesse alguma coisa que nós pudéssemos fazer para acabar com o massacre. Fazer o quê?
O Tio Ramón deu ordens aos infantes que manobravam as catapultas para que retomassem os disparos. Abanou violentamente vários capitães, mas eles ficavam inertes, paralisados, presos à aflição dos seus camaradas - os lancinantes pedidos de ajuda, os gritos de dor, os gemidos dos moribundos. Até que ficou apenas um pérfido silêncio.
O Barão Bernières estava com cara de quem tinha viajado pelas profundezas dos infernos e deparado consigo mesmo. Ramón tentou captar a atenção do Barão e fazê-lo concentrar na batalha que tínhamos diante de nós.
- Barão, vós sois o nosso comandante - disse Ramón. - Estamos à espera das vossas ordens.
Mas o Barão olhava silenciosamente em frente, para lá de Ramón, com um vago sorriso no rosto.
- Barão, - insistiu Ramón, berrando-lhe à cara - recomendo que usemos a torre de assédio. - Ramón repetiu várias vezes a mesma coisa, até que o Barão fez um aceno afirmativo com a cabeça, como quem quer ver-se livre de uma maçada.
Ainda Ramón não tinha despachado Roberto com as suas ordens quando entrou no nosso círculo, em corrida atabalhoada, um dos batedores de Dom Fernando. Com o olhar tresloucado que reflecte a ferocidade do combate, aproximou-se do Barão e de Ramón, escoltado por um dos cavaleiros hospitalários. Relatou que o primeiro aríete de Dom Fernando tinha sido incendiado, com azeite a ferver lançado dos baluartes do castelo.
- Mas já temos o segundo aríete em posição - disse o batedor. - Dom Fernando está convencido de que consegue proteger com os seus arqueiros o avanço do engenho.
O batedor esperou por uma resposta, mas o Barão olhou para ele com ar assustado, como se ele fosse o fantasma de um dos seus homens, que tivesse regressado para o atormentar. Foi um momento desagradável, embaraçoso, em que o batedor se sentiu desconcertado face ao modo como era recebido. Quando se tornou evidente que o Barão não ia responder, Ramón falou.
- Diz a Dom Fernando que as nossas vidas dependem do seu êxito. Roberto, dá água ao batedor. Manda-o de volta a Dom Fernando com notícias do revés temporário que nós aqui sofremos.
Depois da partida do batedor, o Barão Bernières cambaleou e inclinou-se perigosamente para a frente. O Tio Ramón agarrou-o a tempo de evitar que ele caísse no chão e sentou-o entre o seu séquito de hospitalários.
- Meu senhor, - disse Ramón - com vossa permissão, vou assumir o comando das forças até que estejais recuperado. - O Barão não respondeu. Os cavaleiros hospitalários que o rodeavam, incluindo os lugar-tenentes do Barão, corroboraram a sugestão de Ramón. Estavam todos de olhos no chão, embaraçados com o comportamento do seu comandante.
Ramón deu instruções ao Coronel Pierre Delacorte, primeiro lugar-te-nente do Barão, para que preparasse as equipas de hospitalários para entrarem em acção com a torre de assédio. A seguir tomou o comando dos infantes hospitalários que transportavam os potes de fogo grego para a linha avançada de catapultas.
O fogo grego foi inventado em Bizâncio há perto de seiscentos anos. Os nossos irmãos gregos guardaram ciosamente o segredo da sua composição, até que os muçulmanos o roubaram ou descobriram por acaso, no século passado. É feito de enxofre, salitre e azeite, tudo misturado em potes de barro. Em Calatrava, o Tio Ramón já nos tinha falado do seu poder de destruição. Ramón tinha sido sujeito à barragem de pedras e enxofre dessa mistura durante o fracassado cerco dos sarracenos a Margat. Nessa altura, Ramón era cavaleiro da Ordem que defendia o castelo contra um exército ido do Egipto. O cerco durou meio ano e os cavaleiros famintos viram-se obrigados a comer as suas próprias montadas e finalmente os seus próprios companheiros mortos. Segundo disse Ramón, um dos padres da ordem concedeu uma indulgência extraordinária que permitia...
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