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Agosto de 1798
–A cada minuto que passa, fico mais aliviada por ser um casamento pequeno – admitiu Emma.
Fitou o espelho enquanto a sua criada pessoal lhe colocava mais um adorno na coroa ouro velho.
– Eu, pelo contrário, a cada minuto que passa, gostaria que fosse maior – declarou Cassandra.
Acenou à criada que se afastasse e assumiu o arranjo do toucado. Forrado a seda branca e ornado com pérolas minúsculas e uma discreta pena branca, o adereço era vistoso, mas sem espalhafato, tal como convinha a uma noiva já de idade madura, e não acabada de cursar a sua primeira temporada.
A idade de Emma era uma das razões para a dimensão da cerimónia. As outras eram a localização no campo, a dispersão da alta sociedade por todo o reino em agosto e talvez um certo desejo da parte de Emma de não ser o centro de uma assembleia.
– Num casamento grande conseguimos evitar as pessoas que desejamos evitar sem sermos óbvias – notou Cassandra ao mesmo tempo que prendia dois ganchos. – Claro que você, sendo a noiva, não tem hipóteses de o fazer, mas os convidados sim.
Emma olhou para a amiga no espelho.
– Está à espera de ser ignorada por alguém? Foi por essa razão que só ontem veio da cidade?
– Por sinal, estava a pensar que provavelmente eu é que terei vontade de evitar alguns dos convidados – desabafou Cassandra com uma gargalhada. – Atrasei-me porque o meu irmão insistiu em fazer-me uma visita. É uma boa amiga, por se preocupar com a forma como a sociedade irá receber-me, mas inquieta-se em vão. Os parentes e os amigos do Southwaite nunca o insultariam, nem a si, dessa forma.
Desejou poder partilhar com Emma a razão real que a levara a atrasar a saída de Londres. A amiga tinha muito bom senso e poderia aconselhá-la sobre a melhor forma
de lidar com as ameaças que Gerald, o irmão, conde de Barrowmore, tinha feito a respeito da tia Sophie. Há um ano, Emma teria com toda a probabilidade encontrado
forma de lhe emprestar o dinheiro que, tão abruptamente, se tornara imprescindível para frustrar os planos nefastos de Gerald.
Contudo, seria egoísta da sua parte ensombrar o dia de casamento de uma amiga com histórias infelizes. Emma estava prestes a tornar-se a mais recente condessa de
Southwaite e a liberdade que teria para ajudar uma amiga encontrava-se condicionada por deveres maiores. Assim como por um marido que não simpatizava por aí além
com a dita amiga.
Emma voltou-se para trás. A expressão do rosto sugeria que pressentia o tumulto interior de Cassandra. Puxou a amiga para si e abraçou-a, encostando a cabeça ao
seu corpo.
– Obrigada por ter vindo, mesmo mais tarde do que o planeado. Se não o tivesse feito, teria de me arranjar completamente sozinha, apenas com a criada, e sem ninguém
com quem me rir para acalmar os nervos.
Cassandra fez-lhe uma festa na cabeça, deslizando a mão pelos caracóis que lhe caíam sobre os ombros. Emma tinha vinte e cinco anos, mais dois do que ela, mas, no
que respeitava às coisas mundanas, não era raro Cassandra pensar nela como uma irmã mais nova. Saboreou o abraço, especialmente porque, caso não obtivesse meios
para colocar a tia Sophie a salvo de Gerald, não haveria muitos mais.
– É a minha melhor amiga, Emma, e que amiga excecional.
Entre as qualidades mais notáveis de Emma constavam a capacidade de discordar sem censurar e de aceitar as escolhas das amigas sem exigir explicações.
– Não faltaria por nada neste mundo.
Pegou na bolsa dela, que tinha pousado em cima da cadeira.
– E agora, um pouco de cor nos lábios e nas maçãs do rosto.
– Sabe que não uso pinturas.
– É só um bocadinho, Emma. Só desta vez, para não ficar com esse ar de fantasma assustado.
Emma fez uma careta quando se espreitou no espelho.
– Estou um bocadinho pálida, não estou? Pareço mesmo um bocadinho assustada?
– Um bocadinho, é dizer pouco. Além do mais, sem razão nenhuma. Não é que a espere um grande mistério quando forem para o quarto. Ele tem-se comportado como um cavalheiro,
esta semana, e mantido as distâncias, para não se dar o caso de sair da sua cama diretamente para a cerimónia?
Emma corou.
– Como é que adivinhou? Ele tem-se comportado com toda a discrição.
– Que desconsolo que não deve ter sido!
O rosto de Emma ficou escarlate. Olharam uma para a outra e desataram a rir-se.
– Deve ser para a deixar ansiosa pela primeira vez oficial – provocou Cassandra.
– Julgo que a presença das tias e da irmã lhe refreou os ânimos. Passou a ser o paradigma da virtude no dia em que elas chegaram.
– Isso é porque as tias são umas coscuvilheiras implacáveis. Provavelmente presumem que a única justificação possível para este casamento é a Emma estar grávida.
Não me chocaria nada ficar a saber que se revezavam para montar vigilância, à noite, para o apanhar a esgueirar-se para o seu quarto.
– Hortense deve ter trazido um monóculo especificamente para esse propósito – gracejou Emma com um risinho. – Na verdade, é mais provável que Darius não quisesse
escandalizar Lydia.
Cassandra aplicou um pouco de pintura e espalhou-a pela face de Emma até obter um blush ligeiro. O conde de Southwaite, com quem Emma, dentro de uma hora, estaria
casada, tratava a irmã Lydia como uma colegial, embora esta tivesse vinte e dois anos. De forma a preservar a inocência dela, proibira-a de fazer amizade com Cassandra,
uma das razões pelas quais esta não nutria particular apreço por ele.
Atendendo ao preconceito com que Southwaite a considerava, não esperara receber um convite para o casamento. Era óbvio que Emma levara a melhor. Apesar dos defeitos
que tinha, ele amava-a desmesuradamente.
Restaria saber se daí a alguns meses continuaria a fazer a vontade à mulher, caso Cassandra ficasse em Inglaterra. Não acreditava que nem uma coisa nem outra viessem
a verificar-se. Por esse facto, os preparativos que vivia com Emma tinham algo de enternecedor.
– Prontinha.
Afastou-se para Emma se olhar novamente ao espelho.
Embora esta não fosse de beleza excecional, os seus olhos possuíam uma vivacidade cativante e a atenção que dedicava seduzia pela frontalidade. Naquele momento,
concentrava-se profundamente no seu próprio reflexo.
– Está na hora e não adianta demorar-me mais tempo. Desce comigo, Cassandra? Se eu vacilar quando vir os convidados, por favor dê-me um beliscão e puxe por mim.
– O homem que ama está à sua espera. Quando as portas se abrirem, nada mais terá importância.
Não deixou, porém, de acompanhar Emma, para juntas enfrentarem o mundo que as aguardava pelo menos mais uma vez.
*
Bastava um homem olhar para Lady Cassandra Vernham para começar a imaginar coisas escandalosas. O facto de correrem rumores de que não era completamente inocente
na arte do prazer não ajudava em nada a demover tais pensamentos quando estes se faziam presentes.
Ela estava parada ao lado de umas janelas altas que a chuva cobria de arabescos. Acabara de se escusar de uma conversa e dedicava-se a examinar os convidados, fazendo
planos para a sua próxima investida social.
Os caracóis escuros elegantemente desordenados pareciam quase negros à luz diminuta. Os grandes olhos azuis faziam supor uma inocência que os lábios vermelhos e
cheios se apressavam a contradizer. O vestido de cor creme vaporoso realçava-lhe demasiado bem a figura, enfatizando-lhe a exuberância feminina.
Não era a primeira vez que Yates Elliston, visconde Ambury e herdeiro do conde de Highburton, pensava que Cassandra Vernham era deliciosamente apetecível. As cores
e os sons da sala esmoreciam enquanto a sua imaginação se perdia num banquete. A sua boca beijava e provava pernas torneadas e branquíssimas, ascendendo pelo corpo
dela enquanto as suas mãos levantavam o vestido claro para revelar...
– Que audácia, ela ter vindo.
A fantasia agradável, que alcançara a curva de uma coxa extremamente sensual, evaporou-se. Yates voltou-se e deparou com o amigo, o visconde Kendale, a olhar na
direção de Cassandra com ar furioso.
– A noiva convidou-a. São amigas muito próximas – disse Yates.
O barulho que enchia o pequeno salão voltou a fazer-se sentir, amplificando-se à sua volta como uma orquestra a afinar os instrumentos.
– Certamente sabe que Southwaite não gosta dela.
– Permitiu que fosse convidada para fazer a vontade a Emma – explicou Yates. – Se ele não se importa com a presença dela, por que razão se importa você?
– Pela simples razão de que não estou cego por amor, como ele. Vi a maneira como você olhava para ela ainda agora, por exemplo. Com todas as mulheres que tem à sua
disposição, ansiosas por lhe fazer as vontades, pelo que posso constatar, não tem necessidade nenhuma de se fixar naquela.
Kendale aludia ao episódio em que, seis anos antes, Cassandra recusara casar-se com o barão Lakewood, um amigo comum, depois de este a ter comprometido. As reputações
de ambos tinham sido fortemente abaladas por aquela atitude caprichosa. Pior ainda, no ano anterior, na primavera, Lakewood morrera num duelo convocado por causa
de uma mulher. Ao que tudo indicava, essa mulher seria Cassandra, pois ele nunca deixara de a amar.
– Estava apenas a ponderar uns negócios que tenho de concluir com ela, e a planear como iria fazê-lo.
Era indesculpável, o quanto demorara a tratar daquele assunto, mesmo que os deveres familiares o justificassem, de alguma forma.
– Estava, estava... Conheço esse seu olhar. A não ser que... Não está a pensar recorrer à sedução para se vingar, pois não?
Não naquele momento, mas a desprezível ideia ocorrera-lhe mais do que uma vez ao longo dos anos, numa tentativa ignóbil de desencantar desculpas para fazer o que
não devia ser feito. Cassandra Vernham nunca se casara. Um cavalheiro não devia aproveitar-se da inocência dela, mesmo quando os rumores mais recentes indicavam
que ela já não a possuiria.
Pela expressão, Kendale não conseguia decidir-se se era contrário àquela ideia, o que queria dizer que apreciava o imbróglio. Normalmente, Kendale perfilhava noções
rigorosas de honra, mas a suspeitosa independência de Cassandra colocava-a fora do alcance de qualquer rigidez de ideais.
– É um tipo diferente de negócio, o que devo concluir com ela. Muito menos aprazível.
Do outro lado do salão, Cassandra afastou-se das janelas devagar. Com a graça e o autodomínio próprios da filha de um conde, juntou-se a uma pequena roda de convidados.
No espaço de dois minutos, encontrava-se no centro. Com a sua entrada no grupo, a conversa e os semblantes perderam a seriedade e a prudência e tornaram-se leves
e animados.
– Que raio de maneira de Southwaite dar início ao casamento. Agora vai ser quase impossível forçar a mulher dele e aquela mulher a afastarem-se – disse Kendale.
Yates quase explicou o óbvio: que Southwaite estava demasiado apaixonado para recusar o que quer que fosse à sua jovem mulher. Apesar de ela não ter berço, casara-se
com Miss Fairbourne, não casara? E, para a maioria dos convidados, isto era tão reprovável quanto a figura de Cassandra Vernham.
– Suponho que tenhamos de cumprir com o dever que nos foi confiado. – Kendale passou os dedos pelo cabelo escuro. – Que raio de situação.
– Ela está a aguentar-se sem a nossa ajuda.
– Prometemos à noiva.
– Pois que seja. Por sorte, vai estar de serviço só até ao copo-d’água. Depois, terei de o substituir. Parece-me que daqui a um quarto de hora estamos a trocar.
– E de que é que vou falar com ela? Perguntar-lhe se conhece os boatos mais recentes sobre si própria?
– E você conhece-os? Não fazia a mínima ideia de que seguia as crónicas sociais, Kendale.
– Não li nada nem ouvi nada. No entanto, sei qual seria o teor dos boatos. Tal como você.
Efetivamente, Yates sabia.
– Continuam a ser só rumores. Os homens continuam a não ter nome – declarou ele, pensando em voz alta, calculando, uma vez mais, as suas obrigações enquanto cavalheiro.
Não se importava de saber que grau de verdade aqueles rumores continham. Embora não tivesse sido completa, a desgraça dela havia sido suficiente para apelar à sua
imaginação, o que a tornava uma amiga desadequada para a nova Lady Southwaite. Em princípio Southwaite iria tratar do problema nas semanas seguintes.
Cassandra, radiosa, era toda sorrisos quando deixou o grupo onde estava e se afastou, distribuindo cumprimentos por todos com quem se cruzava.
Kendale obrigou-se a fazer boa cara.
– Aqui vou eu. Quinze minutos, foi o que disse. Um segundo mais e substitui-me.
Cassandra rezava para que os criados chamassem os convivas para o copo-d’água. Rápido.
Até há dez minutos, gerira muito bem os quarenta convidados que se reuniam na sala. Mas depois a situação tornara-se incomportável. Por razões que não conseguia
descortinar, o visconde Kendale, um dos melhores amigos de Southwaite, não só procurara a sua companhia como também não arredava pé.
Ela circulava pela sala e ele seguia-a como uma sombra. Ela tentava incluir outros convidados na conversa e ele ficava a olhá-los por cima do ombro dela. Qualquer
um que tivesse a generosidade de o agraciar com uma pergunta recebia uma resposta mínima. Dizer que a arte da conversação não era um forte de Lord Kendale seria
uma forma generosa de descrever a sua falta de aptidão social.
Servira no exército, por isso seria de esperar mais dele. A maior parte dos oficiais eram muito afáveis. Supostamente, aqueles que não o eram evitavam a convivência
social. O título que inesperadamente recebera por herança ditara a impossibilidade de continuar a esconder-se. Alguém o devia ter aconselhado a, em festas, procurar
a companhia de uma mulher que lhe permitisse esconder a sua falta de jeito.
Ao que tudo indicava, naquele dia escolhera-a a ela.
Cassandra parou de tentar dialogar com outras pessoas, para bem de todos. Ela e Kendale encontravam-se junto às janelas, sentindo o silêncio esticar.
– Que tempo deplorável.
Era a terceira vez que ele comentava a pluviosidade. O rosto formoso não abandonou a neutralidade estoica enquanto os olhos verdes apreciavam os convivas.
– Felizmente, estamos numa casa ampla e confortável, e a intempérie não esmorecerá a celebração. – Se ele insistia naquele tópico, ela não se deixaria desanimar.
– Além disso, a tempestade não deverá facilitar a chegada de espiões, de barco, à nossa costa, portanto o senhor e Southwaite não se verão obrigados a sair a correr
em proteção do reino a meio da boda.
A expressão de Kendale endureceu. Viu-lhe frieza no olhar.
– Os esforços que fazemos para garantir que a costa está a salvo de visitantes indesejados são escassos e pouco reconhecidos, mas tampouco merecem o seu desdém.
– Não os desdenho, Lord Kendale. Aliás, sou uma das poucas pessoas que está suficientemente a par das vossas atividades para lhes dar o reconhecimento devido. A
valentia que demonstrou na incursão que teve lugar no início do verão foi-me relatada. Além disso, eu nunca insultaria um homem por quem a minha querida amiga Emma
nutre, reconhecidamente, tão alta consideração.
O olhar dele recaiu sobre o noivo e a noiva.
– Preferiria que Miss Fairbourne tivesse sido discreta quanto ao sucedido. Não deveria servir para alimentar boatos da boca de...
Deteve-se. Bebeu mais um gole de ponche.
De pessoas como você. Fora aquilo que ele começara a dizer antes de o bom senso o fazer parar. Aquilo ou, quiçá, algo pior.
Realmente, o homem era intragável. Ela ali a fazer-lhe o favor de o tolerar e ele quase tem o desplante de a insultar descaradamente.
– Receia que vá contar as suas façanhas aos meus amantes, Lord Kendale? Que venda o seu nome a um espião francês?
– Hoje em dia não há como saber se o francês é amigo de Inglaterra ou espião, se pensarmos bem no assunto.
– Então deixe-me tranquilizá-lo. As confidências da Emma nunca servirão para alimentar boatos da minha parte, para com ninguém. Até as mulheres de reputação duvidosa
têm as suas lealdades. A sua própria experiência com elementos do belo sexo já lho terá ensinado, não é verdade?
– Abstive-me de experiências com mulheres de reputação duvidosa. Atendendo às consequências que vi sofrerem outros homens, não lamento o que mais possa ter perdido
em resultado disso.
– Que bom para si. Devo concluir, então, que é muito seletivo no seu relacionamento com mulheres, e sentir-me lisonjeada pela atenção que me dedica. Embora, por
outro lado, me sinta tentada a perguntar-me se as suas experiências não se circunscreverão às mulheres da sua família ou do governo da sua casa.
Os olhos de Kendale estreitaram-se. Abriu a boca para responder. Uma mão veio pousar-lhe no ombro num gesto de bonomia, travando-o.
– Perdoem-me a interrupção, mas vocês os dois pareciam estar prestes a perder as estribeiras.
Tratava-se do visconde Ambury, que sorriu ao amigo, e depois a Cassandra.
– Se pretendem chegar a vias de facto, devíamos procurar a privacidade do terraço. Eu serei o árbitro, e que se dane a chuva.
Kendale ficou corado e o embaraço que sentiu só o deixou ainda mais irritado. Cassandra procurou Emma, para verificar se a pequena altercação tinha sido notada pela
sua querida amiga, cujo dia de casamento ela não desejava de todo perturbar.
Tentou disfarçar a tensão constrangedora com um pouco de humor:
– Não me atrevo a menosprezar esta chuva, Lord Ambury. O meu vestido não sobreviveria a umas poucas gotas, quanto mais à tromba-d’água que cai agora.
Os impressionantes olhos azuis de Ambury examinaram-na dos pés à cabeça. O seu olhar demorou-se no ondear da seda creme que, diáfana e fina, fluía da cintura subida
do vestido.
– É incontestável. Diria mesmo que esse vestido, molhado, ficaria colado a si como as túnicas das estátuas gregas. Fascinante, sem qualquer sombra de dúvida, mas
pouco próprio, talvez, para um casamento. – Voltou-se para o amigo, que se remetera, carrancudo, ao silêncio e sugeriu: – Kendale, talvez pudesse levar alguma coisa
para beber a Lady Lydia. Tem ar de quem está mesmo a precisar de uma bebida.
Lord Kendale foi-se embora. Cassandra deu por si a desejar que ele não tivesse partido. Ambury era uma das pessoas que tentava evitar e agora tinha-o à sua frente,
com um sorriso sarcástico que a deixou a pensar que não poderia vir coisa boa dali.
Cassandra não conhecia Kendale bem, mas o mesmo não se aplicava a Ambury. Durante uns bons anos, até ao último verão, as conversas entre os dois restringiam-se a
cumprimentos fugazes. No entanto, durante os últimos meses, surgira um assunto de carácter particular, que exigia um maior número de palavras.
Quando ela vendera as suas joias, na primavera anterior, na Fairbourne’s, a leiloeira, Ambury arrebatara as melhores peças, um par de brincos de safiras e diamantes.
Desde então que adiava o pagamento.
A comunicação entre os dois sobre o assunto processava-se por escrito, com uma cordialidade artificial. Contudo, dois dias antes, tomada pelo pânico, depois da visita
do irmão e de decidir ajudar a tia Sophie a fugir, redigira intempestivamente uma missiva repleta de exigências e acusações.
Com alguma sorte, ele ainda não a teria lido. Não que a reação dele alterasse em alguma coisa a verdade fundamental da história que ambos partilhavam, que era também
a verdadeira razão do silêncio que presidia ao confronto entre os dois. Ambury detestava-a pelo papel que desempenhara na vida de um dos amigos dele.
O olhar e postura dele comunicavam o desdém esperado, mas também um inegável interesse masculino que a surpreendeu. A presença dele irradiava desafio e os seus olhos
desafiavam-na a... a quê? A brincar com o fogo latente que se inquietava apesar de ambos saberem que era indesejável? Um pouco mais de calor, um pouco mais de audácia,
e as atenções dele implicariam que ela se renderia a um sorriso, e que seria recetiva a qualquer coisa que ele tivesse em mente.
– Obrigada por me ajudar a escapar – soprou. – Queria muito falar com Lady Hollenfield, mas não me atrevia a levar Lord Kendale comigo.
Rodou o corpo para lhe indicar que não seria necessário continuar a fazer-lhe companhia.
– Perdoe o Kendale. Estamos a trabalhar arduamente para lhe incutir boas maneiras. Confio que daqui a um ou dois anos não causará mais do que três discussões em
qualquer casamento em que esteja presente.
Ela riu-se levemente da graça dele. Para seu desalento, ele tomou aquilo como um convite para a acompanhar. Ela olhou-o de soslaio.
– Veio ontem da cidade, Ambury?
– Cheguei ontem, mas vim do Essex.
– Então já há algum tempo que não está na cidade?
– Continuo envolvido em assuntos familiares que me obrigam a ausentar-me da cidade durante muitas semanas, como expliquei nas minhas cartas.
Se ele não tinha estado na cidade, provavelmente não tinha visto a carta dela, na qual ela o acusava de usar a família como desculpa para evitar pagar-lhe o valor
das joias.
– Vai voltar à cidade a seguir ao copo-d’água?
– Ainda tenho assuntos a tratar na propriedade da família. Espero, contudo, estar de regresso à cidade na segunda-feira.
Altura na qual leria a carta que o aguardava em casa há mais de uma semana. «Direto» seria uma palavra diplomática para caracterizar o tom da missiva.
Os músicos terminaram de tocar uma peça. A ausência de música abriu um súbito vazio.
– Vai tocar hoje? – indagou ela, buscando um tema mais seguro.
Todos sabiam que Ambury era um violinista soberbo. Era um talento inesperado para um homem de sociedade de quem se desconhecia qualquer tipo de ocupação produtiva.
– Raramente o faço em público.
– Nem sequer para o seu bom amigo e respetiva mulher?
– Já toquei para eles. Em privado.
– Deve ter sido muito romântico.
– Talvez. Não sei dizer.
– Vá lá, não me diga que nunca usou a sua música para exercer influência sobre as senhoras? Não tem reputação de resistir a tirar partido dos seus dotes nos jogos
do amor.
– É assim que vamos passar o tempo? A comparar a reputação um do outro? Ou deverá a minha qualidade de cavalheiro constranger-me de contribuir para este tópico?
Que resposta despropositada! Concluindo que seria impossível manter uma conversa educada, Cassandra começou a encaminhar-se lentamente para Lady Hollenfield.
Ambury não a largou.
– Desconheço a razão pela qual Kendale veio sequer falar comigo – declarou ela quando se tornou claro que ele não a deixaria. – Não tem mais consideração por mim
do que qualquer outro elemento do vosso círculo. Agora é a sua vez de se mostrar inusitadamente solícito. Não acredito que, com tantas mulheres presentes, não consiga
encontrar uma companhia mais apelativa.
– Duvido que seja possível. É muito apelativa a imagem desse vestido, encharcado de chuva, que tomou conta da minha imaginação e lhe dá grande vantagem relativamente
a todas as outras mulheres.
– Concentrar-se na história da mulher que o tem vestido deve ajudá-lo a ver-se rapidamente livre dessa imagem.
Ele franziu o sobrolho, como se tentasse seguir as instruções dela. Aqueles olhos azuis examinaram-na devagar. O escrutínio revelou-se tão minucioso que ela se sentiu
nua quando ele se fixou, por fim, nos seus olhos. Abriu um sorriso malicioso e devastador.
– Infelizmente o seu conselho não veio ajudar. Agora o vestido encerra um corpo encantador e não há nada que possa ofuscar esse brilho.
– Não sou nenhuma colegial para me deixar hipnotizar pelos seus encantos, Ambury. Por muito audazes que sejam os seus comentários, a sua atenção não deixa de me
intrigar.
Ele riu-se, mas os seus olhos contavam outra história. Ambury era capaz de mostrar o sorriso mais amistoso mesmo quando retalhava o interlocutor com a sua loquacidade
letal. Inquietava-a que ele estivesse naquele momento a afiar as armas.
– A sua sagacidade ultrapassa-nos. A verdade é que Lady Southwaite nos pediu, a mim e ao Kendale, para não a deixarmos sem companhia, já que a maioria dos convidados
pertence à família do marido. Não lhe diga que lho contei. Foi bem intencionado.
Era mesmo da Emma, combinar uma coisa daquelas. Malogradamente, a amiga não sabia que Kendale e Ambury eram as últimas pessoas daquela sala a quem devia destinar
aquela missão.
Ela dedicou toda a sua atenção ao homem que se vira na obrigação de desempenhar tão indesejada tarefa. Belo de mais para seu próprio bem, e encantador ao ponto de
se tornar uma ameaça à segurança feminina, Ambury atraía a atenção de todos quando entrava em qualquer lugar. Tal como era frequente neste tipo de homem, a maturidade
tornava-o ainda mais apelativo.
Já devia ter passado dos trinta, mas o cabelo preto em nada o acusava. Os sulcos suaves que surgiam de ambos os lados da boca limitavam-se a chamar a atenção para
a perfeição masculina daqueles lábios. O corpo esguio e forte em tudo se adequava à moda mais recente, que ele trajava com um desembaraço que transmitia simultaneamente
extremo cuidado e confiante indiferença.
Os olhos azul-escuros e fundos fitavam-na de forma tão direta como ela o fitava a ele. Todos diziam que os olhos dele refletiam o seu bom humor, mas, naquele momento,
a boa disposição demonstrada refletia aspetos que não eram minimamente favoráveis a Cassandra.
– A Emma desconhece a razão pela qual semelhante obrigação vos seria desagradável – retomou ela. – Podiam ter explicado, e poupar-se ao suplício.
– Longe de mim descrever-lhe a sua desgraça quando a própria Cassandra escolheu não o fazer. É verdade que me pareceu uma omissão peculiar, numa amizade tão próxima.
– A Emma não dá importância a histórias antigas nem a boatos peçonhentos. É uma pessoa rara, que aceita as pessoas tal como as conhece e que forma as suas próprias
opiniões sem a influência de outros. Foi generoso da vossa parte aceder ao pedido dela. No entanto, não necessito do vosso auxílio.
– Demos a nossa palavra. Vai estar sempre com um de nós.
Se tivesse de aguentar novamente a companhia de Lord Kendale, era provável que se desentendessem. Visto que, aparentemente, Lord Ambury não tinha lido a carta dela...
– Durante quanto tempo temos de suportar a companhia um do outro?
– Ela pediu que a acompanhássemos durante o copo-d’água.
– Tanto tempo?
– Receio que sim.
Sendo assim, ele ia ficar colado a ela horas a fio. Que incómodo e que aborrecimento!
CAPÍTULO 2
–Espero que não se importe de sair por esta porta – comentou Lydia, enveredando por uma passagem que dava para o lado norte da casa senhorial. – Preferia evitar
os olhares e as perguntas das minhas tias.
Cassandra presumiu que as perguntas se refeririam à prudência de sair a cavalo na companhia da sua pessoa. Apesar de Lydia já ter idade suficiente para «estar na
prateleira», vivia sob a supervisão constante de uma infinidade de adultos. Cassandra sabia que também a sua família estava ansiosa por a tratar da mesma forma.
Só tinha a liberdade que tinha porque a tia Sophie lhe havia proporcionado um lar.
– Fico muito contente por a chuva ter parado – disse. – Vai ser ótimo dar um bom passeio, seguido de um banho de mar.
Cassandra segurou no vestido de montar de cor rosada que a amiga lhe emprestara, para não tropeçar. A altura de Lydia explicava, em parte, o excesso de tecido, mas
o modelo da saia era propositadamente longo, para zelar pelo recato da cavaleira. Reparou, com apreensão, que havia outros sítios onde não se ajustava bem. No peito,
o tecido ficava repuxado.
– Disse aos criados que lhe trouxessem um animal seguro, por isso a lama não deve ser problema – explicou Lydia, rodando a tranca de uma porta pesada.
Quanto a Lydia, não precisaria daquele tipo de cuidados. Era uma autêntica amazona, o que se devia em parte ao facto de ser irmã de um homem que detinha uma das
mais reputadas coudelarias de Inglaterra.
Lá fora, aguardavam-nas dois moços, segurando duas montadas. Quando as ajudavam a subir para os cavalos, Cassandra vislumbrou mais uma razão pela qual Lydia não
desejava que as tias assistissem àquela saída. A amiga tinha calças por baixo da saia e montava com uma perna de cada lado da sela. A sela amazona de Cassandra permitia-lhe
montar com mais decoro, mas prometia um ritmo que, no seu entender, não seria do agrado de Lydia.
Evitaram o caminho principal que fazia a ligação entre a casa e a estrada e prosseguiram em corta-mato. O sol brilhava intensamente e a humidade fazia erguer uma
neblina ligeira.
– Fiquei radiante quando sugeriu fazermos isto, Lydia, mas espero que não deixe de pensar que valeu a pena quando o seu irmão der pela nossa saída.
Lydia sorriu. Ao contrário dos sorrisos que se lhe viam em público e que pareciam tão falsos quanto eram, aquele animava todo o seu rosto. Os olhos e cabelo negros
e a estrutura óssea delicada mas bem definida davam-lhe um ar encantador, com algo de poético, até.
– Quer-me parecer que o meu irmão vai estar muito ocupado, esta tarde, e que não pensará de todo em mim. Não demorou a tomar o que desejava, e não me parece que
se importe de o fazer novamente.
Cassandra riu e comentou:
– Não sabia que estava ao corrente.
– Supostamente não estaria, mas não sou estúpida.
Lydia dirigiu os cavalos para norte na estrada costeira, assim que lá chegaram. A lama parecia estar ainda pior, pois preenchia os sulcos das rodas moldados na terra.
Cassandra esperava que o tempo estivesse melhor de manhã, ou arriscava-se a demorar vários dias a regressar a Londres.
– Li uma notícia sobre si num pasquim, na semana passada – observou Lydia.
– Que novidade...
Fazia anos que as crónicas sociais aludiam a todos os tipos de comportamento impróprio por parte dela. Eram tudo insinuações, invenções pegadas, mas havia pessoas
que acreditavam nelas, muito especialmente a sua família.
– Dizia que há meses que não a veem a jogar. É novidade, ser notícia por deixar um vício. Espero que não esteja a pensar emendar-se. Ficarei em lágrimas se tal vier
a acontecer.
– Neste aspeto em particular, receio que sim. As perdas que sofri na primavera ensinaram-me a não confiar nem na minha sorte às mesas nem na honradez daqueles com
quem jogo.
A atenção de Lydia prendeu-se nas palavras da amiga ao ponto de abrandar o passo ao cavalo.
– Ouvi dizer que teve de vender as joias para recuperar. Está a dizer que considera que os seus adversários fizeram batota?
– Tenho quase a certeza disso. No entanto, não me atrevo a dizê-lo publicamente, e nunca se poderá provar.
– Tem a certeza de que não se poderá provar?
– Só se forem apanhados em flagrante de uma próxima vez.
– Pois, imagino que só assim.
– Infelizmente, nem isso me fará reaver o dinheiro que perdi.
Tivera toda a espécie de problemas depois de sofrer aquele enorme prejuízo. Fora obrigada a vender joias para saldar contas que os comerciantes vinham cobrar. Agora
desejava ter ignorado as ameaças destes alguns meses mais e ter ficado com o produto da venda em leilão.
– Tem de me contar o que aconteceu. Vai ver que penso numa vingança à altura. Assim tenho alguma coisa para fazer, enquanto estou aqui presa pelo meu irmão. Agora
que ele veio para Crownhill, o resto do verão vai ser um tédio.
– Queixa-se de mais, Lydia. Comparado com o meu irmão, o seu é um santo. Pelo menos, tem em mente o seu melhor interesse. Receio cada vez mais que com o Gerald não
seja assim, mas não sei porquê.
– Ele tem sido cruel para si? O que mais pode ele fazer? Não lhe dá um tostão. Só lhe falta mesmo repudiá-la.
– Tem andado a explorar formas de me coagir a obedecer-lhe.
E encontrara uma eficaz. Ela desejava poder confidenciar-lhe o segredo, mas fazê-lo de forma descuidada podia dar origem a rumores que talvez fossem benéficos para
os planos de Gerald. Aquele passeio com Lydia era uma espécie de reencontro, mas a verdade é que há muito tempo que não eram próximas.
– O patife. Certamente que não pode estar à espera de a obrigar a casar depois de tanto tempo.
– Receio que esteja.
– Então é um pateta, que não faz a mínima ideia da pessoa que você é. Se não permitiu que Lakewood fizesse o que era devido, e há seis anos que convive com as consequências,
dificilmente se deixará impressionar por quaisquer ameaças que ele possa fazer-lhe agora.
A avaliação de Lydia era mais lisonjeira do que ela merecia. Era também alheia ao perigo dos desenvolvimentos mais recentes. Gerald compreendera que, enquanto as
ameaças que fazia à irmã não davam fruto nenhum, as que dirigia à tia Sophie prometiam farto retorno.
Sentiu um enjoo momentâneo ao recordar o sorriso oleoso com que Gerald, enfatuado com a descoberta de uma nova frente de batalha para a guerra entre os dois, expusera
que as faculdades mentais da tia Sophie periclitavam e que a senhora precisava de cuidados e vigilância. Ela esperava que ele tivesse acreditado na ausência de preocupação
que fingira para descartar as ameaças, que qualificara de aviltantes e estapafúrdias.
Na verdade, ficara completamente desfeita, assustadíssima com aquela constatação da vulnerabilidade da tia Sophie. As pessoas desembaraçavam-se de familiares a toda
a hora. Oficialmente, o irmão não detinha qualquer autoridade sobre a tia mas, como parente mais próximo do sexo masculino e, para mais, conde, provavelmente conseguiria
se o tentasse.
Ele estava a contar que ela aceitasse a sua autoridade para poupar a tia. Queria vê-la casada, silenciada, e longe de Londres e da vida social para sempre, escapando
assim ao incómodo da presença dela.
Cassandra imaginou a vida que levaria se cedesse às exigências dele. Ficaria amarrada para sempre a um qualquer fulano, amável e aborrecido, que adorava caça às
codornizes e detestava a temporada social. Ficaria desterrada nalguma propriedade rural. Até Lakewood teria sido preferível, e ela nunca gostara dele nem confiara
nele.
– A tia Hortense pensou em juntar-se a nós – disse Lydia. – Ainda bem que resolveu que a tarde estava demasiado quente para sair. Teria estragado o nosso divertimento.
– Disse-lhe que íamos tomar um banho de mar depois do passeio?
– Foi o meu erro. Ficou com vontade de vir. Se tivesse vindo, teria insistido para se montar um pavilhão perto da água e se trazer um exército de criados para a
servir. Seriam horas perdidas em preparativos.
Cassandra leu naquela resposta a ausência de criados para as assistirem, como também de pavilhão.
– Disse que é um sítio reservado.
– Está preocupada com o seu recato? Não tenha medo. Ninguém conhece o caminho até à água, a não ser eu, e com aquela enseada nem os barcos de pesca conseguem ver
a costa. Siga-me. Eu mostro-lhe.
Lydia virou a montada em direção à costa, por um trilho íngreme e acidentado, nada promissor. Cassandra seguiu-a, impaciente por entrar na água. A tempestade não
aligeirara o ar, como costumava acontecer na altura do verão. E agora, o sol arrancava vapores ao chão, o que só vinha aumentar o desconforto.
– Precisamos de subir por esta fraga e descer pelo outro lado – explicou Lydia. – Não se assuste com o cavalo. Não cai.
– Do outro lado é tão íngreme como deste?
– Mais. Quando estivermos dentro de água prometo-lhe que vai achar que valeu a pena.
Lydia conduziu o cavalo por um caminho que só ela conseguia ver. Cassandra seguia-a com grande apreensão. Não era má cavaleira, se a montada a conduzisse pelos parques
de Londres. Imaginou-se a cair sobre as rochas e silvas pelas quais passava.
O cavalo e as orações absorveram-lhe a atenção até que o caminho se endireitou e ela se colocou a par de Lydia. Para seu desconsolo, o pequeno planalto no qual se
encontravam parecia despencar num penhasco à sua frente.
De olhos fixos no declive acentuado, procurou reunir toda a coragem.
– Vamos parar um minuto aqui, se não se importa.
– Parece-me que não temos escolha – acrescentou Lydia.
Cassandra olhou para ela. Lydia olhou para baixo com os olhos semicerrados e uma expressão de curiosidade comprometida. Cassandra seguiu a direção daquele olhar.
Outros haviam decidido tomar um banho de mar. Ambury e Kendale encontravam-se à borda-d’água, a tirar a roupa. Os cavalos estavam amarrados aos despojos do mastro
de um navio próximo do rochedo.
– Pensei que só a Lydia conhecia este sítio.
– Provavelmente o meu irmão também o conhece. Já os deve ter trazido cá.
Ambury tinha acabado de se desembaraçar do colete e desabotoava agora as mangas da camisa. Naquele momento, com a brisa a agitar-lhe o cabelo e vestido apenas com
camisa, calças e botas, tinha o aspeto de um pirata. Dentro de instantes, estaria nu como um deus do mar.
Cassandra reparou distraidamente que Kendale se encontrava mais adiante. Já estava sem camisa, revelando costas fortes e musculadas onde se viam umas cicatrizes
estranhas. As costas de Ambury não demoraram a surgir também, quando este tirou a camisa.
Os músculos dos ombros definiram-se, quando ele se sentou e se esticou para tirar as botas. Disse alguma coisa a Kendale e ambos começaram a rir. Era um riso diferente
dos risos que Cassandra conhecia. Era um riso viril, que só tinha lugar entre pares.
Espiar aquela íntima camaradagem fascinou-a. Tal como a fascinou o corpo de Ambury, quando este se levantou novamente. Desapertara as calças. Começou a tirá-las,
juntamente com a roupa interior. Dobrou-se para puxar a roupa do corpo.
Cassandra ouviu o silvo de uma inspiração profunda. Voltou-se e viu Lydia, de olhos arregalados.
– Feche os olhos, Lydia! Não devia estar a...
– Oh, pare! – reagiu a amiga. – Parece as minhas tias ou, pior, o meu irmão. Também está a olhar e não é casada. Porque é que eu não posso?
– Eu também não devia.
– Mas está a olhar tanto que até parece estar a desenhá-los!
– A minha reputação já está manchada. A sua não. Além do mais, se se vem a saber que estive aqui, é a mim que vão acabar por acusar.
Imaginando o desprezo da acusação de Southwaite, Cassandra inclinou-se e esticou o braço, procurando tapar os olhos de Lydia com a mão. Esta riu-se e afastou o cavalo
para sair do alcance de Cassandra.
– Lydia! Sinceramente!
– Oh, disparates. Sou demasiado velha para ser assim tão ignorante e diz-se por aí que você não é tão ignorante quanto isso há anos. Se formos apanhadas, desgraçamo-nos
as duas.
– Se algum dos dois se voltar, tem de olhar para outro lado. Está a ouvir-me? Não quero ser responsável por você deixar de ser ignorante neste aspeto em particular.
– Tão delicada. Parece-me que gosto mais da Cassandra dos pasquins do que da verdadeira.
– Lydia!
– Prometo. A propósito, não fazia a mínima ideia de que o rabo de um homem podia ter aquele aspeto. Como se fosse esculpido em pedra. A forma sugere suavidade, como
o nosso, mas, por outro lado, parece ter uma firmeza inabalável.
Cassandra avaliou os traseiros em questão. O de Ambury chamava-lhe especialmente a atenção. Era de facto muito duro, bem-feito e redondinho.
– Ouvi dizer que nem todos os homens possuem traseiros de tamanha superioridade estética, Lydia. Os homens mais cheiinhos também devem ser mais moles ali, imagino.
– Ouviu dizer, foi?
– Sim. É isso que dizem.
– Parece-me que não iria gostar tanto de um homem mole, então. São adoráveis aquelas reentrâncias de um lado e do outro.
Um homem que não era mole em coisa nenhuma apresentava-se em todo o esplendor, olhando o mar. O sol refulgia no manto de água à sua frente e até no cabelo e no corpo
dele. Os redemoinhos brancos da ressaca da onda pincelavam-lhe os pés. De pernas abertas e tensas, Ambury ergueu ambos os braços e entrelaçou as mãos por cima da
cabeça. Espreguiçou-se como se acabasse de acordar e todos os músculos se retesaram em resposta. Até mesmo aqueles que tinham sido objeto da admiração prévia.
– Valha-me Deus, mas que quente se pôs o sol hoje – resmungou Cassandra.
– Estava a pensar exatamente isso – replicou Lydia.
Kendale já estava dentro de água, vendo-se apenas os ombros e braços que nadavam contra as ondas. Ambury entrou devagar. Pouco a pouco, a água envolveu-o. Primeiro
os pés e as pernas, até ao joelho. Depois as coxas. Por fim, entrou até à cintura. Continuou a caminhar, desenhando de um lado e de outro um rastro de água com as
mãos.
Parou. Kendale disse alguma coisa e nadou para mais longe. Ambury limitou-se a ficar parado, deixando que o sol lhe desenhasse planaltos e vales nas costas, as mãos
contrariando a força da água, o que lhe contraía os ombros.
Lydia deu meia-volta ao cavalo e alertou:
– Temos de ir. Já! Ele sabe que estamos aqui, parece-me.
– Mas ele passou o tempo todo virado para leste, Lydia.
Cassandra começou a dar meia-volta ao cavalo, também. Não era tarefa fácil, na pequena elevação.
Enquanto se debatia com as rédeas, viu pelo canto do olho que Ambury se tinha voltado. A distração foi tanta que o cavalo julgou ter permissão para procurar por
moto próprio o caminho da descida. Ela olhou para trás para apreciar a saída da água daquele tronco, e chegou à conclusão de que era muito bem-feito.
Não sabia se ele a vira nem tampouco se olhara para o sítio onde ela e Lydia os observavam. No instante seguinte, estava deitado de costas na água, flutuando na
direção de Kendale. O mar revolto encobria aquilo que insistira que Lydia não visse, mas não completamente. Cassandra desviou o olhar, em parte porque o seu cavalo
decidira aventurar-se na colina com maior rapidez do que ela se atrevia a permitir.
Lá em baixo, Lydia aguardava-a. Desatou a rir quando Cassandra chegou aos solavancos.
– Espero que o meu irmão esteja a divertir-se tanto neste dia como nós.
– Não pode contar a ninguém.
– Eu sei. Mas vou rebentar. Quando chegarmos a casa e a Hortense nos perguntar como correu a tarde, privadas da sua companhia, corro o risco de me engasgar. Julga
que algum deles nos viu ali em cima?
– Não me parece.
– E se viram? E se dizem alguma coisa?
– Ninguém dirá nada. – Pelo menos não a Lydia. – O Ambury poderá deixar escapar alguma indireta, mas do Kendale espero apenas estoico silêncio. No entanto, se algum
dos dois, ou qualquer outra pessoa fizer a mínima alusão ao sucedido, deve fingir ignorância completa do assunto. Sem risinhos, Lydia. Sem corar. Olhe para a pessoa
como se fosse feita de vidro e não reaja de forma alguma.
– É fácil. Consigo fazer isso.
Claro que conseguia. Lydia passava a maior parte dos dias a fazer isso mesmo.
– Já que não conseguimos entrar na água, impõe-se tomarmos um banho nos nossos aposentos depois do passeio – declarou Cassandra. – Vamos regressar a casa para os
mandar preparar.
Um bom banho frio.
– Digo-lhe que estava alguém ali em cima – insistiu Kendale quando ele e Yates dirigiram os cavalos para o topo da colina íngreme.
– Não vi ninguém.
– Pressenti alguém. Não estávamos sozinhos.
Yates também pressentira. Mesmo antes de Kendale o avisar, sentira a presença de outras pessoas e de estar a ser observado.
– Julgo que era aquela mulher.
– Ela tem nome, Kendale. Se ela ali esteve, o que não me parece, teria sido na esperança de descer para tomar um banho, também.
– Talvez. Mas vendo que estávamos lá, devia ter-se ido embora. Em vez disso, ficou a ver.
– Não sabe.
– Pareceu-me ver rastos de cor entre a vegetação e as árvores, e não eram flores gigantes. Estava mais alguém com ela, também.
Yates preferiu não pensar onde aquilo poderia levar. Aquela mulher tê-los visto despir-se já era mau o suficiente. Pensar que a irmã de Southwaite pudesse...
– Já que não tem certezas, vamos pensar que não estava lá ninguém. É a conclusão que qualquer cavalheiro tiraria.
Kendale fez avançar o cavalo. A expressão dele revelava consternação.
– Quando voltarmos a vê-las, vai ser difícil agir como se nada se tivesse passado.
– Mas devemos fazê-lo, pois não temos a certeza de nada.
– O mais certo é aquela mulher deixar entender que nos viu, sem dizer diretamente. Será de forma ardilosa e subtil, mas vai fazer questão de nos dizer.
– Se o fizer, não deve ter qualquer reação. Mostre-se confuso, se for preciso, mas olhe para ela como se fosse feita de vidro e desconsidere qualquer comentário.
Kendale acenou com a cabeça, mas não parecia mais tranquilo.
Chegaram ao alto e desceram em direção à estrada que serpenteava lá em baixo. Dois pontos coloridos, um rosa e outro azul, seguiam por ela, em direção a sul. A proximidade
das senhoras em questão não abonava a favor da insistência de Ambury de que ninguém estivera a observá-los daquele cume.
A postura de Kendale ficou mais rígida, militar. O maxilar cerrado. O rosto ganhou mais cor.
– Ajudava se não ficasse com ar de culpado, Kendale. Eu disse que não deve ter qualquer reação. Em vez disso, está corado como um colegial e ainda estamos a meio
quilómetro delas.
– Não gosto disto, é tudo.
– Ninguém gosta destas situações desconfortáveis, mas...
– Não é constrangimento. Só não gosto que uma mulher me tenha visto nu sem eu a ter visto nua. Há uma desvantagem, tem de admitir.
– Preocupa-se que elas possam ter estado a avaliar-nos como nós as avaliaríamos, quanto à estética?
– Não, que diabo!
– Então não compreendo porque é que...
– As mulheres não fazem isso. Quer dizer, não olham para os homens dessa maneira – protestou Kendale, rindo. – É uma ideia descabida.
– Será que não? E tem a certeza disso por causa da sua vasta convivência com mulheres, presumo. Porque já se despiu à frente de montes delas e reparou que nem uma
reagiu com algum ardor ao ver o seu corpo nu? Sendo assim, dou a mão à palmatória.
O maxilar de Kendale crispou-se novamente.
Yates reparou que o ritmo deles tinha abrandado e que, por vontade de Kendale, nunca alcançariam as senhoras em questão.
– Se diz que as mulheres poderão olhar para os homens dessa forma, devo admitir que o façam, visto que você provavelmente já esteve com montes delas. É uma possibilidade
muito real quanto a uma das mulheres em questão, concedo-lhe isso.
Kendale retomou o fio à meada como se não tivessem decorrido vários minutos. Aparentemente tinha passado aquele tempo a digerir a revelação.
– Sendo assim – prosseguiu Kendale –, não estou minimamente preocupado. Ao contrário de si, não gasto o meu tempo em incursões hedonistas e tenho uma vida ativa.
Se houve avaliações, estou confiante de que eu, pelo menos, passei na prova.
– Então, imagino que hoje todos os olhos estiveram postos em si. Fico aliviado em sabê-lo. Agora posso dialogar com qualquer uma das senhoras sem o mínimo constrangimento.
Enquanto Kendale assimilava as implicações daquilo, Yates esporeou o cavalo e saiu a galope.
– Temos companhia – avisou Lydia, olhando para nordeste.
Um cavalo acabara de descer a colina e galopava em direção a elas, levantando torrões de lama com os cascos. Um outro cavaleiro vinha mais devagar, e virou para
sul, em direção à casa, e não a elas.
– Julgo que é o Ambury – disse Cassandra.
– Oh, céus, é mesmo! Viu-nos e vem passear connosco.
Lydia deu meia-volta ao cavalo.
– Perdoe-me, Cassandra, mas não consigo olhar para ele tão pouco tempo depois. Não me atrevo a ficar. Se ficar, de certeza que me rio.
Com aquilo, Lydia partiu a galope. Vexada por ter sido abandonada, Cassandra concentrou-se em Ambury. Se ele considerou estranho Lydia escolher aquele momento para
exercitar o cavalo, a expressão do seu rosto não o mostrou. Aproximou-se no mesmo instante em que Lydia se embrenhava num matagal, a norte.
O seu rosto não dava qualquer indicação de saber que ela e Lydia tinham estado na colina. Nenhuma. E, contudo, naquele instante, ela soube que ele sabia que ela
lá tinha estado. Não conseguia identificar o que é que nele lho comunicava, mas percebia-o, sem dúvida alguma.
Ela devolveu-lhe um olhar tão neutro como o dele. Estava certa de não revelar nada mais do que ele tinha revelado. Não obstante, transitou entre os dois, naquele
olhar, o reconhecimento mútuo de que ela o observara a despir-se e de que ele estava ao corrente de que ela o havia feito.
Ocorreu-lhe uma imagem daquele homem a entrar nu no mar. Depois outra, dele nu ali mesmo em cima do cavalo. Ela afastou ambas as imagens, não fora corar e trair-se.
– Lady Cassandra, vejo que é capaz de sujeitar o tempo à sua vontade. Tenho a certeza de que todos os presentes lhe estão gratos por ter ordenado ao Sol que aparecesse.
– A minha vontade teve pouca influência. Foi um gesto de misericórdia da parte do próprio Sol, para a Lydia e eu podermos escapar à tarefa de entreter as tias de
Southwaite. Ambas as senhoras teriam ficado incomodadas com a minha presença.
– Vejo que a Lydia decidiu que toda a gente ficaria incomodada com a presença dela.
– Ela adora uma boa cavalgada. Eu estava a atrasá-la.
– Permita-me, então, que a acompanhe até à casa. Esperemos que o sol se mantenha generoso.
Cassandra procurou Lydia com o olhar, mas esta já estava longe. Fez avançar o cavalo. Ambury seguiu ao seu lado.
– Encontrá-la aqui fora, longe da festa, foi afortunado – retomou ele. – Queria agradecer-lhe a sua benevolência e discrição quanto ao leilão. Foi amável da sua
parte não o mencionar no casamento nem na boda. Tem sido de uma paciência extraordinária.
Ela pensou na carta que enviara. Fora um exemplo fulgurante de falta de paciência.
– Será necessário mais tempo? Por favor não se sinta insultado pela minha pergunta. Preciso verdadeiramente de saber. Vendi os brincos por necessidade, e a minha
situação não se modificou. Não os vendi noutro lado porque prometeu acertar as contas no espaço de poucas semanas, mas já passou bastante mais tempo do que isso.
– A demora do pagamento não tem a ver com falta de fundos, se é isso que está a pensar.
Era exatamente aquilo que ela pensava. Todos sabiam que o pai de Ambury, o conde de Highburton, não dava ao herdeiro uma mesada tão avultada quanto seria de esperar,
para um homem da posição dele. Era a expressão financeira de um distanciamento entre os dois.
– Não mencionei isto na nossa correspondência, mas talvez devesse tê-lo feito, para que não duvidasse da minha palavra a respeito de assuntos de família que estão
a preocupar-me. O meu pai está muito doente – declarou Ambury. – É grave. Este verão tenho passado todo o tempo que consigo com ele e o advogado, a ajudá-lo a pôr
os assuntos em ordem.
– Lamento saber que assim é. É sensato envolver-se, imagino, e tratar de tudo enquanto ele ainda pode ajudar.
– O meu pai pensava fazer a maior parte das coisas sozinho. Falta-lhe a força, porém, e por isso, nos últimos meses, recaiu mais sobre mim do que eu esperava.
– Foi lá que esteve esta semana?
– Sim.
– Parece cumprir estes deveres para com ele com grande esmero.
– É importante para ele que tudo esteja perfeitamente em ordem.
– É o seu sacrifício propiciatório? A tentativa de amenizar as diferenças que se acentuaram ao longo dos anos?
Ele olhou-a como se ela acabasse de proferir algo surpreendente. Por um momento, ele pareceu quase vulnerável.
– Uma pequena tentativa, talvez.
– As razões dessas diferenças provavelmente parecem-lhe muito insignificantes agora que o tempo está a esgotar-se.
– Sim. Absolutamente insignificantes.
Então era aquela a razão dos sucessivos atrasos dos últimos meses, em que ele adiava uma vez e outra estar com ela. As acusações que tecera tão duramente naquela
carta atormentavam-na agora. Naquelas circunstâncias iam ser tidas como injustas e cruéis.
– Os brincos são um trabalho admirável e sem dúvida que estou disposto a pagar o valor que licitei e a entrar finalmente na posse deles – afirmou ele. – Como é que
lhe foram parar às mãos?
– Quase todas as joias que vendi na Fairbourne’s me foram dadas pela minha tia.
– Os brincos estavam entre as joias que recebeu dela?
A pergunta pareceu-lhe muito precisa. Agora que pensava no assunto, ele perguntara-lhe a mesma coisa numa das primeiras conversas.
– Por que razão deseja saber?
Ele encolheu os ombros.
– A Fairbourne’s é muito cuidadosa quanto à proveniência e história dos quadros que vende, mas nem tanto com as joias.
– A proveniência é muito clara. Provêm de mim.
– E antes de si?
– Um rubi é um rubi. Um diamante é um diamante. Nem a proveniência nem o histórico de proprietários são necessários para sustentar a sua natureza, como os colecionadores
precisam que se faça com um desenho de Rafael.
– Imagino que não. Ainda assim, gostaria de saber mais sobre a história deles. Parte do prazer de se possuir um objeto raro provém do conhecimento da sua história
– completou ele. – Pelo menos para mim assim é.
Ela podia dizer-lhe. Não havia nenhuma razão efetiva para não o fazer. Então por que razão dava por si a hesitar e a sentir-se muito desconfiada? Talvez porque,
naquele preciso momento, por mais simpatia que mostrasse, Ambury não lhe parecesse tão amistoso quanto isso. Os seus trunfos, os olhos e aquela boca, traíam-no de
formas subtis.
Prosseguiram durante mais uns trinta metros antes de ele voltar a falar.
– Então recebeu-os mesmo da parte da sua tia?
A persistência dele aumentou ainda mais o desconforto dela. Apertou as rédeas.
– Está a aborrecer-me com as suas perguntas.
Ele riu-se.
– Perdoe-me. Vou tentar escolher outras para a distrair. Por exemplo, quanto tempo ficou no alto daquela colina a ver-me tirar a roupa?
Apanhou-a completamente desprevenida. Ela corou e gaguejou e fez exatamente aquilo que tão veementemente dissera a Lydia para não fazer.
– Não faço a menor ideia do que está a falar – atirou, finalmente.
Os olhos azuis de Ambury brilhavam. Era demasiado óbvia a forma como desfrutava da desorientação dela.
– Foi muito impróprio da sua parte, mas eu não me importo. Liberta-me de uma decisão difícil que se impunha.
Ela receava perguntar, mas claro que tinha de o fazer.
– Que decisão?
– Se deveria ou não adicioná-la às minhas conquistas. A evidência incontestável de que é de facto uma mulher do mundo absolve-me de alguns pontos de honra irritantes
que me fizeram hesitar.
Ela sentiu-se corar novamente. Por inteiro, até à ponta dos dedos dos pés.
– Anuncia sempre as suas intenções com tanto descaramento?
– Habitualmente não. Mas pareceu-me que, desta vez, pouparia um tempo considerável.
Ela recompôs-se. O homem estava a divertir-se de mais às suas custas.
– Está à espera que eu desmaie de excitação, Ambury? Que aguarde por um dos seus avanços semanas a fio? Não pode estar a falar a sério. Está a jogar um jogo qualquer
para fazer com que eu pareça uma idiota, como forma de exprimir a sua reprovação e o seu desdém. – Deu meia-volta ao cavalo e concluiu: – Despeço-me agora de si.
Na eventualidade de desejar mostrar-se útil, pode ir a procura da Lydia antes que comece outra vez a chover. Eu faço sozinha o resto do caminho até à casa.
Ele inclinou-se e segurou-lhe nas rédeas do cavalo, impedindo-a de prosseguir.
– Faço-lhe uma visita quando regressar à cidade.
– Prefiro que não o faça. Seria entediante ter de resistir a uma sedução tão cínica.
– Não vou visitá-la para a seduzir. Não dou a conhecer as minhas intenções assim tão descaradamente. Preciso de lhe pagar os brincos. Está recordada?
Os brincos. Claro.
– Talvez a sua tia também me receba, para uma visita breve.
Ele tinha de insistir no assunto, não tinha?
– Agora nunca recebe visitas.
– Tenho a certeza de que consegue convencê-la a abrir uma exceção.
– Não imagino por que razão me daria a esse trabalho.
Na verdade, conseguia pensar em várias razões pelas quais não o fazer. Deu um sacão às rédeas.
– Mudei de ideias. Vou cavalgar mais um bocado e eu própria procurarei a Lydia. Quanto ao nosso assunto, conto vê-lo então no início da próxima semana.
CAPÍTULO 3
Cassandra inspecionou o jardim, procurando o chapéu de palha singelo que a tia usava quando tratava das plantas. Avistou a aba comprida a balouçar para cima e para
baixo atrás de umas roseiras altas.
Tanto ela como a tia Sophie tinham rendimentos modestos, mas podiam manter um jardineiro se desejassem. Contratavam um homem na primavera e no outono para fazer
o trabalho mais pesado, mas a tia Sophie preferia poupar os honorários dele e dedicar-se ela própria à manutenção diária. Uma vez que já não fazia visitas sociais
de manhã nem ia a festas, tinha bastante tempo para o fazer.
Cassandra percorreu os caminhos estreitos que a conduziam ao chapéu de palha. À medida que se aproximava, o rosto da tia mostrava-se, a um ritmo regular, emoldurado
por folhas verdes e botões vermelhos. Era um rosto belo, ainda, apesar da pele que se fazia mais fina e as rugas mais vincadas. Mais cheiinho agora, pois a tia Sophie
engordara nos últimos dois anos. Os estilos da moda mais recentes não o escondiam da mesma forma que os corpetes e os peitilhos de antigamente. Não que Cassandra
estivesse à espera de encontrar a tia enfiada num sofisticado vestido de musselina de corte império. Sophie não atualizava o guarda-roupa há dez anos, mas já não
lhe importavam as sedas e as rendas.
Acabaria de imaginar que os olhos de Sophie pareciam ocupados em pensamentos muito distantes daqueles canteiros? Perguntou-se se a mente da tia viveria no passado
de forma mais intensa do que seria expectável com memórias normais. Fora isso que Gerald dissera na desagradável reunião da semana anterior. Que as faculdades mentais
da tia Sophie já não lhe pertenciam completamente.
A preocupação voltou a instalar-se como um peso no peito de Cassandra. Detestava ver a crueldade do irmão dirigida a Sophie. Mas não era apenas a preocupação que
a entristecia. A culpa também, e não era só por ela própria ser fonte de problemas para a tia.
Desde que Gerald levantara aquela hipótese, que volta e meia se perguntava se ele poderia ter razão. Por coisas pequenas em que não reparava antes. As expressões
vagas e distantes como a que Sophie agora apresentava pareciam-lhe mais ameaçantes. Os momentos de esquecimento assumiam mais peso. Até a escolha de Sophie, de deixar
de participar na vida social... Cassandra nunca se perguntara que razões a teriam levado a fazê-lo, mas Gerald conseguira pô-la a pensar nelas.
Avançou com determinação. Não deixaria Gerald fazer-lhe aquilo. Fazer-lhes, a ambas. Não se passava nada de errado com a cabeça nem com o raciocínio da tia. Gerald
teria sorte se chegasse aos sessenta com aquela lucidez de espírito.
Quando contornou as roseiras, viu que a tia se debruçava para arrancar uma trepadeira que invadira o canteiro. Cassandra duvidava que um jardineiro mostrasse mais
energia. As luvas de trabalho de Sophie agarravam e torciam o comprido invasor enquanto um dos pés ancorava o peso exigido pelo esforço. As raízes cederam justamente
quando Cassandra chegou. Sophie quase caiu com a súbita capitulação que implodiu o solo.
Sophie atirou a trepadeira para um cesto, apanhou a tesoura de jardinagem e começou a analisar as roseiras.
– O fim do verão é a melhor altura para as flores – disse, como se Cassandra tivesse passado a manhã ao seu lado. – Parece-me que vou dar uma depenadela às roseiras
e encher a casa de flores. As cores pálidas do outono não demoram a chegar.
– Eu ajudo. A tia corta-as e eu ponho-as no cesto.
Sophie começou a cortar. Era uma mulher exigente quanto à beleza dos objetos e não colhia qualquer flor. Ficava uns instantes a analisar e ponderar antes de cada
corte.
Cassandra colocava no cesto, uma a uma, as rosas perfumadas. O molho começou a crescer.
– Preciso de um conselho seu, tia Sophie – principiou. – Fiz uma coisa por impulso de que me arrependo.
Sophie fitou a roseira, escolhendo o troféu seguinte.
– Espero que pelo menos lhe tenha dado prazer. Sempre considerei que o prazer que se goza por impulso é o melhor.
Cassandra olhou para a tia de esguelha. Eram conselhos daquela natureza que faziam com que a mãe e o irmão quisessem vê-la em casa.
– O impulso não teve nada a ver com o assunto; não se trata de prazer. De forma alguma. Escrevi uma carta pouco prudente a uma pessoa.
– Não lhe disse que as cartas podem trazer problemas? As palavras, depois de escritas, não poder ser apagadas. Até é difícil serem esquecidas. Avisei-a inúmeras
vezes para nunca, nunca escrever quando as emoções estão tumultuosas.
– Avisou-me, mas referia-se a assuntos do coração.
– Se quer chamar-lhes assim, não vou escandalizá-la com outra designação. Diga-me, por favor, que não fez nada disso nessa carta. Uma mulher deve ser afoita se quer
um homem, mas não no papel.
– Não escrevi para homem nenhum a declarar a minha luxúria, e muito menos o meu amor. Nem escrevi a um amante já rendido mencionando o nosso prazer. Espero ter aprendido
alguma coisa consigo durante estes anos todos.
Sophie ficou mais satisfeita. Fez menção de cortar a rosa seguinte, mas parou. De repente, pareceu a Cassandra que estava mais forte e atenta. Mais presente.
– O que era a carta que escreveu, se não dirigiu indiscrições a um homem?
– Fiz um negócio com um homem e ele demorou a concluí-lo. Num momento de despeito, escrevi-lhe a exigir-lhe que o fizesse.
Sophie deixou cair a tesoura no cesto. Tirou as luvas das mãos muito brancas.
– Imagino que tivesse sido mais polido pedir a um advogado que lha escrevesse, mas não me parece que deva sentir que se portou mal.
– Fiz acusações que, retrospetivamente, foram severas. Insinuei que a demora não era acidental. Usei palavras que ele poderá considerar insultuosas. Seria melhor
que ele não a lesse. Tenho razões para pensar que ainda não o fez. Estou a ponderar se devo oferecer um suborno ao seu criado pessoal para que procure a carta e
ma devolva.
– Tem alguma afinidade especial com esse criado?
– Não o conheço minimamente.
Sophie começou a andar sem pressas em direção à casa.
– Não se ponha a gastar o seu dinheiro e não deixe que isto a perturbe. Os comerciantes são insultados com frequência, seja uns pelos outros, seja pela clientela.
Encaixam isso com o lucro. Esse também não irá reagir tão mal quanto julga e provavelmente continuará a querer a sua freguesia.
– Seriam boas notícias, se se tratasse de um comerciante. Lamento dizer que se trata de um cavalheiro.
– Estou a ver. E posso perguntar de que cavalheiro se trata?
– E isso importa, para o conselho que receberei?
– Se importa? Claro que sim. Não se consegue prever a reação do cavalheiro sem conhecer o seu nome. Oxalá seja um sujeito estúpido que verá louvores nos seus insultos,
conduzido pelo desejo desesperado de ser cortejado por uma mulher bonita.
– Lamento dizer que o cavalheiro não sofre nem de estupidez nem de desespero. É o visconde Ambury.
As sobrancelhas de Sophie arquearam-se.
– O herdeiro de Highburton? Aquele belo jovem de olhos azuis? Os assuntos que tem com ele são de natureza financeira, não são amorosos?
– Amorosos definitivamente que não.
– Que pena. Ele é delicioso. Não olhe para mim assim. No dia em que eu deixar de reparar, espero que alguém me dê um tiro.
– A carta vai irritá-lo. Subornar o criado é provavelmente a minha única escolha. Quanto será preciso, o que lhe parece?
– Não poderá ser um suborno pequeno, para o criado aceitar. A consideração e a recomendação do Ambury são demasiado valiosas para arriscar por menos de vinte libras,
é o meu palpite.
Se ela dispusesse de vinte libras, não teria escrito a carta, para começar.
– Então tenho de fazer outra coisa qualquer. Depressa.
Segurou na porta para a tia entrar em casa com o seu manancial de rosas. Sophie pousou o cesto numa bancada da cozinha fresca, tirou vários vasos de uma prateleira
e depois sentou-se a arranjar as flores.
Sophie avaliou a composição que criou num jarrão de porcelana francesa. Com uma precisão de artista, cortou o pé a uma última rosa e adicionou-a à parte da frente,
para concluir. Afastou o jarrão e puxou para junto de si uma jarra azul redonda e larga. Cassandra observava-a e pensava para si própria se o tópico da conversa
delas se teria desvanecido por completo da mente de Sophie.
Por fim, a tia deu por concluída a jarra azul também. Deu um grande suspiro e pegou numa taça de estanho.
– Santo Deus, Cassandra, o que tinha na cabeça para enviar uma carta cheia de insultos ao herdeiro de Highburton? Se vai lançar a luva a um homem destes, pelo menos
certifique-se de que tem um exército a postos no monte mais próximo para vir em seu socorro.
Cassandra riu-se. A prova de que Sophie se ocupara do dilema reconfortou-a. Esperava que a tia tivesse engendrado uma solução enquanto se entretinha com todas aquelas
rosas.
– Talvez possa dizer-me onde consigo arranjar um exército.
– Na minha juventude, teria conseguido reunir um exército com um simples sorriso – replicou Sophie, com melancolia. – Agora... Não há aqui exército nenhum, querida.
Só eu.
– É a primeira vez que sai de casa em quase um ano, e vai vestida dessa maneira?! – exclamou Cassandra quando Sophie, mais tarde, saiu do quarto.
A tia ficara conhecida pelo seu estilo quando frequentava a sociedade, tanto em casa como no estrangeiro. Naquele dia, porém, parecia uma governanta envelhecida.
Não se via qualquer adorno no vestido cinzento e antiquado. Joias, também não as tinha. Uma touca grande e branca com quase nenhuma renda escondia-lhe a maior parte
do cabelo.
– Não vou sair de casa. Oficialmente, não. Serei apenas a sua dama de companhia. Deixe-o pensar que sou uma criada. Não deve apresentar-me. Serei a criada pessoal
em quem ele nem sequer repara.
– Julgo que seria melhor se a tia fosse quem é. Deixava-o em estado de choque e ele nem sequer reparava na magreza do meu suborno.
– Se quer que vá, é assim que vou.
Desejando que a tia Sophie se tivesse arranjado mais, Cassandra assumiu a dianteira para descer as escadas. Uma carruagem alugada aguardava-as na rua. Ajudou Sophie
a entrar e instalou-se. Entregou ao cocheiro um pedaço de papel pela janela.
– Tem a certeza de que é aqui que o Ambury tem o apartamento dele? – perguntou Cassandra a Sophie.
A tia remoera o assunto durante quatro horas antes de revelar a sua recomendação e o seu plano. Cassandra não estava convencida da sua eficácia.
Deveriam visitar Ambury enquanto ele ainda estava fora, mas fingindo que julgavam estar em casa. Enquanto insistiam em ser recebidas, Cassandra traria à baila o
assunto da carta com o criado ou quem quer que mostrasse estar encarregado do edifício. A expectativa era resolver o assunto com um pequeno suborno e que a carta
lhes fosse entregue apenas para se verem livres dela.
– Não faço visitas nem aceito convites, mas continuo a ter amigos – afiançou Sophie. – Obtive o endereço com uma carta breve.
A carruagem seguiu aos solavancos pela rua estreita.
– Lembra-se daquela altura em S. Petersburgo, em que fizemos uma visita à condessa Petrovnik e a deixou tão impressionada? – perguntou Sophie.
– O irmão dela estava presente, tanto quanto me lembro.
– Conquistou-os a ambos com a sua beleza e a sua vivacidade. Esqueceram completamente que eu estava na sala.
– Que exagero.
– De todo. Falo sem qualquer ressentimento. Recordo-lhe apenas que a minha época de deslumbrar todo e qualquer um já passou, e cabe-lhe a si impressionar quem quer
que seja com que deparemos hoje. Só a acompanho porque poderia parecer estranho se não o fizesse. Não podemos deixar que entre no apartamento do Ambury completamente
sozinha, em plena luz do dia.
Cassandra quis dizer-lhe que uma simples explicação resolveria o problema, só que quase nunca era assim. Quando vira a sua reputação comprometida com Lakewood, existira
uma explicação perfeitamente lógica. Toda a gente conseguia ver que fora inevitável ausentar-se com ela, e que não se tratava de uma qualquer entrevista amorosa.
Mesmo assim, esperava-se dos dois que abafassem qualquer indício de escândalo com o casamento.
Que mundo estúpido aquele. No entanto, era também o mundo em que viviam, e a tia Sophie tinha razão. Ambury não estava na cidade, mas se ela fosse vista a entrar
no apartamento dele sozinha, estaria metida em grandes sarilhos.
– Porque está a rir-se? – perguntou a tia Sophie. – Alguma coisa a deixou animada.
– Só pensar na questão que levanta, deixa-me com vontade de rir. Seria muito curioso acabar comprometida quando o homem nem sequer está na mesma cidade que eu.
– Curioso para si, ainda mais curioso para ele. Imagine-o a regressar e descobrir que tinha sido acusado de algo que não teve o prazer de consumar.
A expressão de Sophie imitou a confusão de Ambury, depois o choque e a surpresa. Ambas começaram a rir-se.
– Quem sabe o Gerald não o desafiava, se ele não fizesse o que era devido – avançou Cassandra. – Muito bem, Ambury! Exijo satisfações!
– Com os diabos, senhor! Não estava sequer no mesmo condado! – replicou Sophie com voz grave. – Sei que os rumores sobre os meus poderes de sedução são abonatórios,
mas nem eu consigo levar uma mulher para a cama em Londres quando estou no Essex.
– As suas desculpas não resgatam a honra da minha família. Designe o seu padrinho, ou passará por covarde!
– Só me faltava bater-me por ela quando nem sequer a possuí!
– Então tome-a, senhor, e encontramo-nos na manhã seguinte!
Cassandra secou os olhos húmidos de riso. A troca de palavras pareceu-lhe tanto mais hilariante por não ser inteiramente inverosímil.
A réplica sagaz da tia Sophie também a alegrou. Aquela era a tia Sophie que ela conhecia e amava, a tia que lhe dera um lar depois de ela se ter recusado a casar
com Lakewood, a célebre beldade que a levara numa viagem demorada pelas capitais do Continente. Não havia nela qualquer indício de ausência ou distração naquele
instante. Continuava a ser a mulher sofisticada e jovial, não sem malícia, que convivera com príncipes e as suas cortes durante décadas.
A carruagem parou e a diversão também. Sophie olhou a casa.
– Disseram-me que o apartamento dele fica no segundo andar, naquela que era a área social da casa, antes de ser transformada em espaço de residência para cavalheiros.
O edifício até parecia agradável e a rua também, mas via-se que as condições de vida de Ambury eram modestas.
– Não é o que se esperaria do herdeiro de um conde.
– É apenas o orgulho de Highburton a punir um filho que não se coaduna com o modelo familiar, diria eu – discorreu Sophie. – No fim, ele vai ficar com tudo, por
isso o mais certo é ter longos róis de contas espalhados por toda a cidade à espera desse dia.
Sem dúvida que as perspetivas de Ambury lhe permitiriam acumular uma dose considerável de crédito. Porventura presumira também que ela esperaria por esse dia, como
todos aqueles comerciantes.
O cocheiro ajudou-a a descer e aproximaram-se da porta. A tia Sophie deixou-se ficar dois passos atrás, assumindo o papel de uma mera sombra.
– O assunto que tenho a tratar com Lord Ambury não pode esperar – insistiu Cassandra, altiva, esperando com isto intimidar o homem meio calvo, alto e magro que a
observava afincadamente por detrás dos óculos.
Ele não se deixou levar.
– Tal como expliquei, ele não está em casa.
– Deram-me a informação de que estava na cidade, portanto sei que se encontra no apartamento.
– Sou o seu criado pessoal e julgo saber onde ele se encontra, melhor do que quem quer que seja que lhe deu informações falsas.
– É mais provável ele ter-lhe dito que deseja evitar-me e ter solicitado a sua ajuda. Vá explicar-lhe que não arredarei pé. Está na hora de me dar satisfações sobre
a dívida que tem para comigo.
A palavra dívida fê-lo corar.
– Não posso ir ter com um homem que não se encontra no edifício.
– Então aguardarei que ele regresse.
Olhou para trás do homem, para as portas que conduziam ao interior do apartamento. Sentiu Sophie atrás de si; e um dedo incisivo no fundo das costas. Aceitando a
deixa, começou a andar.
– Minha cara senhora, receio que espere em vão – disse o criado, seguindo-a precipitadamente. – Se deixar o seu cartão...
– Ele nunca me devolverá a visita, se está a evitar-me neste momento. Eu espero. Ele está na cidade, ainda que os jornais não mencionem o assunto, e imagino que
deva aqui voltar ainda hoje, numa altura ou outra.
A tia Sophie assomou do outro lado dela. Deslumbre, soprou enquanto o criado erguia os olhos para os céus a implorar paciência.
Cassandra parou antes de chegar à porta. Fitou diretamente o criado nos olhos e tentou mostrar-se precisada da compreensão dele. O criado corou profundamente.
– Posso saber com quem estou a falar, senhor, uma vez que teve a amabilidade de me deixar aguardar por Lord Ambury?
– Robert Higgins, ao seu serviço – respondeu, um meio-sorriso desenhando-se-lhe no rosto antes de ele interiorizar completamente a pergunta de Cassandra. – Mas,
quanto à espera, eu não...
– A sala de visitas, não foi o que disse? Devem ser estas portas largas aqui, presumo.
– Eu disse isso?
Ele parecia verdadeiramente não saber.
– Dificilmente pode ser chamada de sala de visitas, no sentido normal do termo. É mais uma sala de estar, se quiser, mas confortável o suficiente para o meu senhor,
julgo eu.
– Tenho a certeza de que também o será para mim.
Cassandra empurrou as portas.
– Oh, confortável, deveras. Esta disposição tão cativante das cadeiras é obra sua, Mr. Higgins? Ou Lord Ambury tem outros criados?
Higgins inclinou a cabeça com modéstia.
– Trato do senhor sozinho. Até cozinho um pouco, se me permite o abuso.
Cassandra sentou-se num banco comprido e confortável, perto da lareira. A tia Sophie sentou-se numa cadeira que ficava ainda mais próxima, onde o cabelo grisalho
parecia misturar-se com o cinzento da pedra.
– Não pretendo ser um fardo. Espero aqui, quieta como um rato – afirmou Cassandra.
– Custa-me pensar que vai desperdiçar a tarde inteira à espera de um momento que não chegará a acontecer.
– Duvido de que seja um desperdício. Tenho muito em que pensar e esta sala é acolhedora. Convida a uma reflexão séria. Na verdade, o senhor é tão amável e atencioso...
Talvez pusesse a hipótese de me aconselhar num assunto que me preocupa profundamente.
Ele tossiu e endireitou-se.
– Se posso ser-lhe útil em alguma coisa, então é minha obrigação.
– Tive uma pequena discussão com uma amiga por causa de uma questão de etiqueta. Ou talvez fosse uma questão de moral. A minha amiga estava a braços com um dilema
peculiar...
Uma leve pancada no braço distraiu-a. Sophie inclinou-se sobre ela e sussurrou-lhe algo ao ouvido.
– Mr. Higgins, a minha criada vê a biblioteca por aquelas portas. Ela é do tipo erudito. Na realidade, foi por essa razão que se fez dama de companhia. Aquela leitura
toda tornou-a imprópria para o casamento. Importava-se que ela desse uma vista de olhos aos livros? Ela promete não tocar em nenhum.
– Claro que não. Nem me parece que o senhor se importe se ela tirar um ou dois da estante para ver mais de perto. Utilizamos a melhor encadernação, como decerto
irá verificar.
Sem uma palavra, o fantasma de cor cinzenta ergueu-se e deslizou pela sala até à porta da biblioteca. Mr. Higgins observava-a. Franziu a testa com ar intrigado.
Cassandra voltou a requerer a atenção dele.
– Como estava a dizer, a minha amiga tinha um dilema. Ela escreveu uma carta à mãe e pô-la no correio, mas rapidamente se arrependeu do conteúdo. Disse-me que planeava
intercetar a carta antes de a mãe a ler. Bom, eu disse-lhe que isso era roubar. Ela insistiu que não. Alegava que enquanto a mãe não a abrisse, a carta ainda estava
em trânsito. O que lhe parece? Qual de nós duas estava certa?
– Parece-me que, depois de enviada, a carta pertence ao serviço postal, até ser entregue ao destinatário e paga por ele, altura em que passa a pertencer-lhe.
– Então concorda que se for intercetada não é roubada?
– Não é roubada à mãe, se o fizerem antes de ser entregue. Claro que isso não seria possível. O serviço postal não devolve correio.
– Não. Suponho que não.
Atrás de Mr. Higgins, um vulto cinzento movimentava-se silenciosamente na biblioteca.
– Eis a situação com que a minha amiga se deparou. Se intercetasse a carta, estaria a fazer um ato de bondade. Se a mãe a lesse, o conteúdo só lhe traria desgosto.
Está a ver o impasse moral, tenho a certeza.
Mr. Higgins fez um aceno de cabeça, mostrando-se solidário.
– Não invejo a escolha da sua amiga. Como é que a resolveu?
– Pediu à criada da mãe que a subtraísse à pilha de cartas e que lha devolvesse antes de a mãe a ver.
Higgins franziu o sobrolho ao ouvir que uma criada roubara a carta.
– Agora a minha amiga deseja dar um presente à criada. Como prova do seu apreço por ela ter poupado a mãe àquele desgosto. O que lhe parece, Mr. Higgins? Poderá
fazê-lo, sem desvirtuar as boas intenções da criada?
– Suponho que um pequeno presente possa ser apropriado, uma vez que a criada correu o risco de desagradar à senhora.
– Pequeno, como? Se fosse o senhor, por exemplo, que soma julgaria adequada, mas que não fosse tanto que se confundisse com um pagamento por serviços prestados?
– Eu? Eu nunca faria uma coisa dessas, por isso nenhuma soma seria adequada.
– Nem sequer para poupar uma grande angústia ao seu senhor?
– Não consigo imaginar que tipo de carta pudesse causar angústia a Lord Ambury.
– Talvez uma carta que o levasse a desafiar um homem e a acabar morto. Não valeria a pena usar de um pequeno artifício para evitar que isso se desse?
– Morto! Deus me livre! O que é que estava escrito nessa carta que a sua amiga escreveu à mãe? Alguma coisa muito chocante, começo a suspeitar, se a compara com
um insulto grave ao ponto de exigir um duelo.
Cassandra olhou para um lado e para o outro, como se verificasse que ninguém estava a ouvir. A única outra pessoa que estava nas proximidades desaparecera para a
biblioteca. Mr. Higgins inclinou-se, porventura mais interessado na resposta do que estava pronto a admitir.
– Confessou ter uma ligação com um homem – sussurrou Cassandra.
– Não!
– Um homem ilustre. Não ouso dizer o nome dele, mas posso assegurar-lhe que é um homem muito conhecido de todas as pessoas do reino.
– Quer dizer que... Certamente que não... Meu Deus, ela pôs isso por escrito? Que indiscrição... Mesmo sendo dirigido à mãe.
– Exatamente. Por aqui, pode ver o dilema. Para ela, era um assunto de vida e de morte, de certa forma, e ameaçava-a a possibilidade de um enorme escândalo que afetaria
a família inteira e até a reputação de... não posso dizer! É certamente tão significativo como um insulto capaz de provocar um duelo, penso que concordará.
– Oh, sim, claro!
– A criada prestou um bom serviço, não só à minha amiga como também à própria Inglaterra, julgo eu.
– Quem diria. Foi um artifício verdadeiramente nobre.
– Que bela forma de o dizer. Portanto, que soma seria adequado oferecer de presente? Se fosse o senhor que usasse esse nobre artifício, por exemplo.
Higgins ponderou o assunto.
– É difícil dizer. Arriscamo-nos a sermos despedidos, não é? Sem recomendações, para mais. A bem ver, podemos ficar sem ganha-pão de forma irreversível. Nobre ou
não, é uma opção com riscos enormes, e o presente teria de refletir isso.
Cassandra, apreensiva, via o valor do «presente» aumentar a cada afirmação.
– Mas não deve ser tão elevada que pareça suborno, diria.
– Claro. Claro. Mesmo assim...
– Julgo que devemos partir, senhora.
Uma voz frágil interrompeu-os. A idosa que falou encontrava-se por trás de Mr. Higgins.
Ele voltou-se, sobressaltado por se ver assim lembrado de que não estavam sós.
– Daqui a alguns minutos vamos – disse Cassandra.
Estava quase a conseguir que Higgins dissesse um número.
– Não me sinto bem, minha senhora. Sinto-me bastante fraca.
Higgins colocou-se ao lado dela imediatamente.
– Devia sentar-se. Tenho sais algures por aqui. Vou...
– Ar fresco é só do que necessito, obrigada.
A tia Sophie disparou um olhar fulminante na direção de Cassandra.
– Claro – anuiu Cassandra. – Foi indelicado da minha parte não reconhecer que, se falou, é porque era necessário.
Foi para junto de Sophie e amparou-lhe as costas com um braço.
– Obrigada, Mr. Higgins. Por todos os seus gentis conselhos. Acabou por não ser mau Lord Ambury não estar em casa. O senhor ajudou-me imensamente e o assunto que
tinha a tratar com ele pode ser concluído noutro dia.
Com grande alarido e preocupação da parte de Higgins, ajudaram a tia Sophie a subir para a carruagem que as aguardava. Assim que ele voltou para o edifício, Cassandra
exprimiu o seu desagrado.
– Estava quase a conseguir. Ele estava quase a dizer um montante, e a seguir eu ia explicar-lhe a minha situação e...
– Pois acontece que não seria necessário.
A tia Sophie abriu a bolsa. Tirou uma carta e pousou-a no colo de Cassandra.
Era a carta que enviara a Ambury.
– Roubou-a!
– De acordo com a sua própria explicação, e a de Mr. Higgins, não era de Ambury até ele a ler.
– Até lhe ser entregue.
– Oh, escapou-me essa parte. Céus, que imprudência minha. Diga ao homem para dar a volta à carruagem e devolvemo-la imediatamente.
Cassandra dificilmente o faria. Tampouco iria repreender a tia, por muito censurável que o roubo pudesse ser. Naquele momento a carta estava na sua mão, e não naquele
apartamento, à espera de que Ambury a visse.
Virou-a para quebrar o selo e verificar se a linguagem era tão insultuosa como a sua memória insistia em fazê-la crer. O selo, porém, já estava quebrado.
– Tia Sophie, preferia que não a tivesse lido. Compreendo a sua curiosidade, mas agora sinto-me envergonhada por ter tomado conhecimento da minha falta de moderação.
O olhar incisivo de Sophie voou para o rosto de Cassandra.
– Eu não a abri. Tirei-a de um monte de cartas que estava na biblioteca e enfiei-a na minha bolsa sem praticamente olhar para ela.
Não eram boas notícias. O selo estava quebrado. Era impensável Higgins ter bisbilhotado o correio do patrão.
Era provável que o selo se tivesse quebrado acidentalmente no transporte. Sim, fora isso que acontecera.
Não queria sequer imaginar qual seria a alternativa.
CAPÍTULO 4
A casa de Adams Street era uma pequena habitação que ficava localizada numa travessa perto do extremo norte de Mayfair. Yates julgou, pelo exterior, que proporcionaria
conforto a Lady Cassandra e à sua tia, mas não luxo. Erguia-se nuns módicos três andares e o contraste com as duas moradias mais amplas que a ladeavam tornava-a
ainda mais modesta.
Haveria criados, mas não muitos. Poderiam dispor de algum tipo de carruagem, mas que não seria imponente.
Ele sabia tudo sobre as economias que uma existência daquelas requeria. A falta de generosidade do seu próprio pai votara-o a habitar o equivalente masculino daquela
casa. Um homem, contudo, tinha a opção de complementar o seu rendimento, embora para ele, sendo herdeiro de um par do reino, se impusesse a maior discrição na procura
de emprego. Felizmente, descobrira, após alguma investigação discreta, uma ocupação que não só lhe estimulava o intelecto e proporcionava alguma aventura, mas também
em que o cliente desejava a discrição tanto quanto ele.
Não foi um mordomo nem um lacaio a abrir a porta, antes uma mulher que parecia ser governanta. Levou-o para uma pequena sala de visitas no andar de cima e foi-se
embora com o cartão dele.
A sala tinha um ambiente menos feminino do que ele esperava. Tecidos da cor de joias revestiam a mobília. Via-se madeira escura por todo o lado. Uma parede ostentava
três estampas emolduradas de Piranesi, muito diferentes das vistas de Roma que o seu próprio pai possuía. Estas apresentavam as bizarras imagens da prisão, com o
seu emaranhado de escadarias opressivas que não conduziam a lado nenhum.
Pertenceriam a Cassandra ou à tia? As imagens refletiam uma independência vincada de gosto e pensamento.
No caso de Cassandra, esta não era apenas independente, sabia-o agora, mas irreverente. Irresponsável. Irritante. Provavelmente era culpada de todos os maus comportamentos
a que a existência das palavras começadas por «ir» aludia.
Tinha razões para acreditar que Cassandra Vernham ultrapassara a linha que separava a coragem do descaramento e que não tinha qualquer respeito nem sequer pelo decoro
e regras básicos. Aquilo mudava tudo, e ele deixara de se sentir na obrigação de alicerçar os negócios com ela em cortesias que lhe poupassem o orgulho.
– Lord Ambury. Que bom receber a sua visita.
Lady Cassandra dirigiu-se a ele assim que entrou na sala. Com os seus abundantes caracóis negros e pele cor de marfim, e o corpo envolto num vestido amarelo-claro
diáfano ao estilo grego que flutuava a cada passo que dava, conseguia ser ao mesmo tempo voluptuosa e exuberante.
– Espero que esteja tudo bem com o seu pai.
– Está melhor. Insiste em regressar à cidade, para estar perto de eventuais desenvolvimentos da guerra.
– Não deixa de ser uma altura triste para si. Lamento que assim seja.
Parecia sincera. Por alguns instantes, ele permitiu que o bálsamo da compreensão dela aplacasse as emoções tumultuosas que a situação com o pai vincara. Mas depois
capitulou. A irritação que sentia para com ela voltou a dominar.
– Pensou melhor e vai deixar-me ver a sua tia?
– Não é uma decisão minha. A minha tia não é uma velhinha indefesa nem está ao meu cuidado.
Chamou com um gesto a mulher que o recebera à porta e que se encontrava agora junto da parede, aguardando que a solicitassem. Entregou-lhe o cartão dele.
– Merriweather, leve isto à minha tia. Diga-lhe que o visconde Ambury lhe fez uma visita.
Não passou mais de um minuto até ela voltar e dizer que Lady Sophie não podia receber naquele dia.
Cassandra dispensou a criada.
– A minha tia agora está muito ciosa da sua privacidade. Não o leve a peito, Lord Ambury.
Falava com voz doce. Inocente. O brilho do seu olhar era capaz de enfeitiçar um homem que não se acautelasse.
– Perdoe, mas levo. Segundo o meu criado, Higgins, ela não é assim tão reclusa como quer fazer-me crer.
Cassandra bateu as suas pestanas grossas e arregalou os olhos azuis.
– A que se refere?
Com os diabos, a mulher estava a tratá-lo como se ele fosse um idiota.
– Ele disse que uma criada idosa a tinha acompanhado a si na ida ao meu apartamento, ontem. A sua tia, suponho.
– Supõe bastante, mas também tem a reputação de fazer exatamente isso com as mulheres.
– Está a dizer que a mulher que a acompanhou ontem não era a sua tia?
– A descrição que Higgins fez da criada deve responder à sua pergunta. De certeza que o seu criado é capaz de fazer a distinção entre uma criada e uma senhora.
– Não se a senhora envidar todos os esforços para parecer uma criada.
– Não dá muito crédito a Mr. Higgins.
– Pelo contrário, dou é muito a si e à sua tia. Se as duas estivessem decididas a enganá-lo, ele não teria qualquer hipótese. – Aproximou-se mais dela e disse em
tom de censura: – Namoriscou com ele? Teve essa audácia? Esse descaramento? Cativou-o com a sua atenção e lisonjeou-o, insistindo em conversar com ele? Usou da vantagem
da sua posição social para o deixar desprevenido?
– Que acusações tão peculiares me faz, Lord Ambury. Visitei-o para insistir na conclusão do nosso negócio, não para deixar ninguém desprevenido.
– Duvido. Depois de escrever aquela carta, não quis sujeitar-se à minha reação a ela.
Ela ficou imóvel. Piscou duas vezes os olhos. Pôs uma máscara de inocência.
– Carta? Que carta?
– Sabe muito bem a que carta me refiro. Àquela raivosa, exigente, insultuosa na qual me acusou de ser um canalha, um abusador, uma fraude, um... Hã, o que era mesmo?...
Ah, sim, um mentiroso. A carta que roubou da minha biblioteca ontem.
Viu-a corar do fundo do decote até ao cimo da testa.
– Ah – disse ela. – Essa carta.
Ambury dominava a sala de estar, tanto pela sua figura como pela sua presença. A vitalidade que irradiava preenchia todo o aposento. Era um pilar de força, esguio
e sombrio, cuja presença e energia mal deixavam Cassandra reclamar um lugar.
Contudo, foi o que fez. Não havia escolha. Tinha muita prática em fazer frente a pessoas como Ambury, o que lhe era de grande ajuda naquele momento.
Os olhos dele faiscavam de tal forma que tinham deixado de ser azuis. O seu maxilar parecia talhado em pedra. A boca cerrada parecia ter quase a mesma dureza.
– Higgins informou que não estava em casa – disse ela. – Era minha esperança resgatar a carta antes que a lesse.
– Parei na cidade durante um dia, antes de ir para o Essex. Não foi do conhecimento público. Nem isso importa. Quer tenha levado a carta antes de eu a ler, ou depois,
não foi resgatada. Foi roubada.
– Estava muito perturbada quando a escrevi e arrependi-me quase imediatamente. Foi muito errado escrever aquelas coisas. No entanto...
– No entanto?
– O meu pedido de desculpas relativamente à carta permanece, mas não lamento minimamente ter insistido que me pague o que é devido. Esperei durante meses que acertasse
as contas dos brincos. Consignei-os, e às outras joias, àquele leilão porque precisava dos fundos. Não sou nenhum comerciante, que pode conceder crédito indefinidamente
e, por circunstâncias que não posso explicar, a minha frustração levou a melhor. Portanto, peço desculpa pelos insultos piores da carta, mas não me arrependo de
me certificar que conclui o assunto agora, em vez de demorar outros tantos meses a fazê-lo.
Ele dirigiu-lhe um olhar fulminante. Ela endireitou as costas, para não vacilar.
– Então, veio concluir o assunto hoje ou pretende apenas repreender-me pelo meu comportamento? – perguntou ela, por fim. – Se devo aguardar ainda até à próxima semana,
que seja, mas é este o limite da minha paciência.
Ele abanou a cabeça de exasperação.
– É o limite do descaramento!
– Descaramento que chega para vender os brincos noutro lado se tiver de ser, juntamente com o anel que me entregou depois do leilão, como garantia.
– Mesmo que venda tudo, não vai obter aquilo que eu licitei.
– Foi por essa razão que esperei. Mas não posso esperar mais e devo fazer o que é necessário.
Ele continuava de semblante carregado, mas agora mais por inquietação do que raiva.
– Desejo simplesmente saber como é que a sua tia entrou na posse dos brincos. Assim que documentar a história das joias, acerto tudo imediatamente.
– Nunca disse que os brincos me tinham sido dados pela minha tia.
– Nunca disse que não tinham sido, por isso presumi...
– Demasiado, mais uma vez. Mas posso validar-lhe, agora, essa parte da história deles.
– Então não deve demorar muito a descobrir a sua proveniência. Visto que a sua tia não me recebe, peço-lhe que aborde o assunto com ela.
– E se eu recusar?
– Quando licitei os brincos, comprei informação, além das joias. Sem a informação, recebi apenas meia peça.
– A consignação que fiz para o leilão consistiu em joias, não em informação. Você só me arranja confusão. Vou vendê-las noutro sítio qualquer e...
– Disseram-me que os brincos podem ter sido roubados, sabe. Tenho a certeza de que não deseja negociar bens furtados. A lei não vê isso com bons olhos.
Apresentou a acusação com a maior das calmas.
Ela precisou de uns momentos para constatar que tinha percebido corretamente.
– Roubados? Quem lhe disse uma coisa tão escandalosa?
– Não posso dizer. Certamente que está a ver o meu problema, porém. Não quero dá-los a alguém para depois vir outra pessoa reclamá-los.
– O que vejo é um homem a querer adiar mais uma vez e a arranjar novas desculpas para o fazer.
Ele colocou-se à frente dela com quatro passadas largas. Para estupefação de Cassandra, pegou-lhe no queixo e inclinou-lhe a cabeça, olhando-a diretamente nos olhos.
– Não volte a insultar-me. Pode não ser homem e isso impedir-me de a desafiar, mas há outros duelos para além dos das armas e você nem por uma unha negra escapa
a um.
– Faça o que tem a fazer, Ambury. Então verá o que é que eu faço com a sua artilharia pesada. Já me bati com melhores especímenes do que você.
Era um risco grande desafiá-lo na mesma moeda. Sophie provavelmente repreendê-la-ia, dizendo que deslumbrá-lo teria sido melhor escolha. Só que ela não queria deslumbrá-lo.
Só queria que ele lhe desse a porcaria do dinheiro.
Ficaram frente a frente, num desafio mútuo. Lentamente, ela virou a cabeça, exigindo que ele lhe tirasse a mão do queixo. Finalmente, ele fê-lo. Pareceu-lhe quase
violento. Liberta, ela afastou-se e a seguir voltou-se para o encarar.
Ambury não parecia lá muito afável, mas recuou o suficiente para falar com firmeza e calma.
– Só precisa que a sua tia lhe conte o que sabe sobre a história dos brincos para pôr fim a esta história.
Ela tentou adivinhar os pensamentos dele. Seria mesmo assim tão simples?
Mais relevante ainda, teria a sua tia roubado os brincos? Afinal, a tia Sophie tinha subtraído a carta da biblioteca dele. Ambury tinha razão para se perguntar se
ela teria experiência naquele tipo de coisas.
Primeiro Gerald e agora Ambury. Pobre tia Sophie. A única pessoa que a protegia era a própria Cassandra e todos os planos para o fazer exigiam mais dinheiro do que
aquele que possuía, até Ambury pagar as joias.
De repente, a aura de perigo abandonou-o. Voltou a ser o homem afável que toda a gente conhecia. Agraciou-a com um sorriso encantador.
– Sei que espera há demasiado tempo e que tem receio de não ver o fim a isto. Para a tranquilizar, sugiro que deixemos o pagamento dos brincos ao cuidado de um advogado,
juntamente com os próprios brincos, até isto estar resolvido. Não deve demorar muito tempo. Só tem de fazer algumas perguntas à sua tia para resolver o assunto.
É justo, não concorda?
Era justo. Tanto, que levantava suspeitas. Aquilo trazia água no bico. Pressentia-o, sobretudo devido à intensidade com que Ambury a olhava.
– Porque é que sinto que me encurralou no canto de um quarto?
– Só faço isso com mulheres em condições de grande privacidade e com propósitos muito diferentes.
– Seja como for, isso não evita que me sinta incomodada, Ambury.
– É no interesse de ambos que o assunto se resolva sem percalços, não lhe parece?
Ela ponderou.
– Farei o que puder, mas não insisto em perguntar se ela não quiser responder.
– Peço-lhe apenas que tente. Vou tratar de marcar uma reunião com um advogado para os dois quando regressar à cidade, na segunda-feira, e escrevo-lhe a dizer a hora.
Traz os brincos, e eu levo o pagamento, e o advogado fica na posse de ambos, até me dar a informação de que preciso ou até eu a descobrir de outra forma, se a Cassandra
não conseguir.
– Isso pode levar uma eternidade. Não posso esperar assim tanto.
– Acordamos num mês, a contar de hoje? Se eu não souber mais do que aquilo que sei agora, os brincos ser-lhe-ão devolvidos.
Parecia-lhe um atraso grande, mas iria provavelmente precisar de pelo menos aquele tempo para preparar a viagem que tiraria Sophie do alcance de Gerald.
Relutante, acedeu à proposta dele.
– Não posso prometer que a minha tia satisfará a sua curiosidade, Ambury – adiantou, quando este se preparava para se despedir. – Poderá ter de desistir dos brincos,
se precisa de tantos detalhes para os oferecer de presente à sua futura noiva. A pessoa que lhe encheu os ouvidos com histórias de que tinham sido roubados provavelmente
está à espera de os comprar a mim por um bom preço.
Ele inclinou a cabeça.
– Porque é que diz que os comprei para uma pretensa futura noiva?
– Já está mais do que na altura de se casar. Considerando o preço deles, presumo que terá encontrado a sua futura condessa. Mas não se preocupe. Prometo não dar
início a qualquer boato.
Yates examinou os documentos que tinha à sua frente, na secretária. Aguardava-o outra pilha numa mesa próxima. Pensou que só com muita sorte conseguiria despachá-los
a todos antes do Natal.
Os odores do fim do verão entravam pela janela com a brisa que fazia tremular os cantos de várias páginas. Pegou num pisa-papéis, para assegurar que a cuidadosa
disposição não seria perturbada. Ele próprio se sentia um pouco como aqueles documentos, curvado ao peso da responsabilidade.
Não o melindrava o dever com o qual se havia comprometido, mas desempenhava-o sem qualquer alegria. Nem o facto de vir a herdar o património que estava a ser submetido
a um escrutínio tão minucioso o animava, quando tinha de sair da cidade para se dirigir para aquele escritório, em Elmswood Manor. Aquilo tudo fazia-o sentir-se
como um executor ainda antes de o pai morrer, e a saúde frágil do conde ensombrava toda a casa.
Já tinham gasto mais de oito meses naquilo e ainda mais haveria para gastar; talvez os meses que lhe restassem. À medida que o seu lado físico definhava, o conde
parecia agarrar-se cada vez mais à parte de si que não tinha fim. A energia que possuía, gastava-a no título e no património, nos aspetos da sua vida que faziam
dele um Highburton, como parte de uma longa linhagem.
É o seu sacrifício propiciatório? A tentativa de amenizar as diferenças que se acentuaram ao longo dos anos? Cassandra Vernham podia ser irreverente e irritante,
mas era de uma perspicácia veloz. Ele estava a tentar fazer exatamente aquilo. Era uma tentativa pobre, mas não tinha mais nada.
Pensar nela fê-lo puxar dos papéis referentes aos brincos. Se coagira Cassandra a obter mais informações da tia, estava mais do que na altura de ele próprio obter
informações na casa em que se encontrava. Normalmente, deslindar um mistério fascinava-o, e, nas suas discretas investigações, não se coibia de fazer as perguntas
necessárias. Por outro lado, normalmente as perguntas não eram feitas à sua própria família.
Reviu os papéis, pousou-os e levantou-se. Quando saía do aposento, passou pela caixa do violino que há demasiado tempo coabitava com ele. A tentação de parar e tocar
deteve-o. Decidiu que podia adiar a tarefa seguinte só um pouco, pegou no instrumento e afinou-o.
Um tutor apresentara-lho quando ele tinha dez anos de idade. Durante anos limitou-se a brincar mas, na universidade, de repente, pareceu-lhe mais apelativo. Nessa
altura, houve um período de vários anos em que praticava durante horas todos os dias, retirando tanta satisfação de executar na perfeição uma nova peça de música
como retirava quando acertava nos alvos com a pistola.
Pegou no arco e, dez notas depois, já atingira o seu melhor desempenho. Mal sentia as cordas quando os dedos se moviam sobre delas. O arco funcionava como uma extensão
de si próprio. A música formava uma nuvem suspensa no ar, acima do mundo, e na qual ele flutuava. Em dias bons como aquele, afigurava-se tão densa que nada parecia
existir além dela.
Por vezes, nem os seus próprios pensamentos resistiam à música. As notas, intrusas, fundiam-se com a sua consciência. Ditavam a sua dissolução. Era uma ocorrência
rara, que ele não apreciava especialmente. Tampouco conseguia predizê-la, o que conferia à execução um carácter demasiado caprichoso.
Hoje aquilo não acontecera. Em vez disso, as progressões e a destreza disciplinavam-lhe os pensamentos. A natureza de separação da nuvem proporcionava-lhe o raro
isolamento que lhe permitia pensar com clareza. Não existia caos na música.
O seu cérebro aproveitou a oportunidade para classificar as coisas que estavam feitas e as que estavam por executar. Ele não fazia qualquer esforço nem direcionava
os pensamentos. Acontecia, apenas. Tocar ajudava-o a cumprir as suas obrigações para com o património, tal como o tinha ajudado nos estudos. No trabalho de investigação,
constatara que uma hora com o arco o ajudava a ver padrões em que não reparara sozinho, assim como explicações ocultadas por uma quantidade excessiva de factos.
Algo parecido ocorria naquele momento, relativamente aos brincos.
Quando terminou a peça, pôs o violino de lado e saiu do escritório para cumprir o seu dever.
A porta que dava para os aposentos do pai estava entreaberta. Espreitou e viu-o a dormir numa poltrona colocada perto da janela da sala de estar privativa.
A mãe estava sentada noutra poltrona. Alta, magra, de cabelos brancos, feições despertas e olhos mais despertos ainda, era uma mulher formidável. Naquele momento
tinha os olhos fechados, mas a postura não perdera a rigidez. A necessidade de controlo era símbolo da sua vida e a sua natureza. Filha de um marquês, sempre tivera
mais aprumo do que o próprio pai de Ambury, se tal era possível. Fora uma boa parceria, se podia chamar-se parceria a um matrimónio e a severidade mútua podia definir
um casal.
Os olhos dela abriram-se quando ele entrou.
– Pode esperar, com certeza. Ele acaba de adormecer.
– Não vim vê-lo. Gostava de falar consigo, se não se importa.
Ela levantou-se com um suspiro.
– Esperava que viesse para lhe moderar o zelo pelo património, não para o encorajar.
– É importante para ele. Só descansa porque sabe que eu o faço no seu lugar.
Ela foi ter com ele à porta.
– Espero que, quando eu sentir o fim a aproximar-se, não me ponha a desperdiçar o tempo que resta a contar alfinetes. É só disso que se trata, se virmos bem. De
contar e organizar alfinetes.
Ele não podia discordar. A grande maioria do património fizera-se sempre acompanhar da documentação adequada. A Yates, esperavam-no boas terras e rendas altas, tal
como ao seu pai. As pilhas de papéis que se acumulavam na secretária eram, de facto, os alfinetes do legado de Highburton, não as joias. Na sua maioria.
A mãe seguiu-o até à biblioteca. Pelo caminho, passaram na galeria. Yates parou a meio.
Apontou para um quadro que estava pendurado lá em cima, perto do teto, o mais alto de uma das filas de pinturas que cobriam a parede.
– Sempre me disseram que me pareço com ela.
A mãe inclinou a cabeça para trás e semicerrou os olhos.
– Precisa de ser limpo. Ela mal se vê. Mas a sua bisavó era uma mulher bela e sim, é parecido com ela.
– Provavelmente é por isso que reparava sempre no quadro quando vínhamos para Elmswood Manor, apesar do sítio onde está localizado e do verniz escuro. Ela tem um
par de brincos. Azuis e dourados. Safiras, diria.
– Os seus olhos estão muito melhores do que os meus.
– Não os reconhece? Recebeu os brincos quando se casou. Tal como a avó, quando se casou com o avô.
– Talvez. Recebi várias caixas de joias, mas a maioria delas, de tão antiquadas, não davam para usar, tal como essas.
– Estavam no inventário do avô. Brincos de safiras, diamantes e ouro.
A mãe retomou o percurso da biblioteca.
– Se o diz. Muito bem, de que queria falar?
Ele esperou até estarem sentados na biblioteca para responder.
– Quero falar daqueles brincos. Como referi, estavam no inventário que foi feito pelo avô cinco anos antes da morte dele. Já não se encontram, porém, em nenhuma
das caixas que recebeu.
– Vasculharam as minhas joias?
O tom de voz dela era de indignação. Era invulgar vê-la exprimir aborrecimento. Nunca fora mulher de dar a conhecer as suas emoções. Nem ao pai, nem a ele. A união
dos pais fora um casamento de conveniência e ele nascera pelo mesmo motivo. Exceto as discussões que ele próprio provocara com o pai, pouco se exprimia naquela família,
fosse de temperamento ou de amor, o que só acrescentava dramatismo às ditas discussões.
– As joias de Highburton – corrigiu ele. – O pai deu instruções ao advogado para efetuar um novo inventário no inverno passado.
– Ele quer contar todo e qualquer alfinete, estou a ver. O pobre do Prebles anda a fazer listas das pratas e da roupa branca?
– Sim.
– Meu Deus! O Prebles também contou os meus espartilhos e corpetes?
– Não me parece, pois a sua propriedade pessoal não tem lugar nesta empresa interminável.
– Não perdi os brincos, se é isso que quer saber.
– O pai pensa que foram roubados. Encarregou-me de descobrir o que lhes aconteceu.
A resposta surpreendeu-a.
– Tanto incómodo por causa de uns brincos feios. Nunca os usei.
– Valem centenas, mãe. O pai tem terrenos de menos valor. Os diamantes são de tamanho apreciável.
Yates recordou a consternação que viu nos olhos cansados do pai quando este soube dos brincos desaparecidos.
Pensara que comprar as joias no leilão resolveria o assunto. Afinal, seriam devolvidas à posse da família. O pai mostrara-se irritado com a solução e surpreendido
por os brincos terem ido parar às mãos de Cassandra Vernham. Maldição! Alguém traiu esta família. Descubra da fedelha como é que ela lhes pôs a mão.
– Por um acaso, a mãe penhorou-os? – perguntou ele.
A mãe dirigiu-lhe um olhar como já não dirigia há anos. A última vez fora quando circularam rumores sobre a primeira amante dele e ela ficara a saber que a mulher
era a filha, casada, de uma das suas amigas.
O corpo adquiriu uma firmeza de autoridade.
– Não tenho qualquer razão para penhorar joias, ou seja o que for. A condessa de Highburton não joga. Não gasta para além do dinheiro que lhe é atribuído, e não
vende, seguramente, joias de família que não lhe cabe vender. Honra as tradições familiares e tem o comportamento frugal de moralidade que herdou por posição, mesmo
se o filho não faz o mesmo por sofrer de expectativas mais inflamadas.
Não lhe faltava o que dizer em resposta, na sua maioria, coisas desagradáveis, mas não desejava fazê-lo. Ela fora uma boa condessa e mesmo agora ficava sentada com
o conde horas a fio. Podia nunca ter existido grande paixão entre eles, mas poucos conseguiam suplantá-la quando se tratava de cumprir com os seus deveres.
– Não se atreva a acusar a minha criada de roubo, se é o que tenciona fazer a seguir, Yates. Ela está comigo há décadas e eu não deixarei que faça jogos de intimidação
com ela. Ouvi falar do seu passatempo secreto, de andar a revirar pedras e a remexer na terra, e não tolerarei que desempenhe esse sórdido papel no seio da sua família.
– Não vou acusá-la de nada, apenas falar com ela. O pai pediu-me para descobrir o que aconteceu. Eu não me importo minimamente, mas quero proporcionar-lho, se é
isso que ele quer.
Não era exatamente verdade, que não se importava. O assunto parecia-lhe por de mais peculiar. Por outro lado, talvez estivesse demasiado enredado no seu papel de
investigador e não conseguisse resistir a desenredar o nó para descobrir como é que os brincos do retrato tinham acabado no leilão da Fairbourne’s.
O desgaste dos últimos seis meses percebia-se nas palavras que a mãe proferiu a seguir.
– Faça o que tiver de fazer, claro.
Ergueu-se e ele fez o mesmo.
– Antes de dormir, falou novamente em voltar para a cidade. Não consegui dissuadi-lo da ideia. Talvez esta noite o Yates possa tentar.
Iria tentar, mas não serviria de nada. Acabara de saber, naquela manhã, que as forças francesas tinham desembarcado na Irlanda. Na manhã seguinte, ele e o pai iriam
empacotar os documentos todos e partir para Londres. Agora que o pai se sentia um pouco melhor, não se privaria de participar nos debates que ocupavam o governo
acerca do desastroso desenvolvimento. Era um Highburton.
CAPÍTULO 5
Agosto esvaziava Londres da sua vida social. Até as pessoas do teatro ou de outros círculos artísticos, que poderiam dar festas, eram escassas. No agosto anterior,
Cassandra pudera, pelo menos, fazer visitas a Emma, mas agora também esta estava no campo.
Tudo aquilo deixava-a com tempo de sobra para ponderar as insinuações de Ambury. Sentia-se muito tentada a vender os brincos a outra pessoa qualquer e a deixá-lo
pendurado. Infelizmente, era pouco provável que conseguisse que essa outra pessoa pagasse o mesmo preço por eles, e precisava mesmo muito de todo o dinheiro que
os brincos lhe pudessem render.
Naquele domingo, Cassandra pesava o seu dilema enquanto bebia limonada no terraço, acompanhada da tia Sophie.
– O tempo está quente de mais, mesmo para agosto – comentou a tia.
Levantou os olhos do livro e contemplou os canteiros, na sua extravagância de cores. Eram plantas que cresciam livremente e possuíam uma beleza exuberante, intensa,
à semelhança da própria Sophie.
– Claro que, nem de perto nem de longe, tão quente como naquele verão que passei em Nápoles. Deus me livre, na altura passei a maior parte dos dias nua e todas as
noites também. Mas era um calor insuportável. Embora talvez me sentisse especialmente acalorada nesse mês por causa do Leonardo.
Perscrutou a memória um pouco mais, depois sorriu interiormente e regressou ao livro.
Cassandra nunca ouvira falar de Leonardo. Ao longo dos anos, houvera outros homens que proporcionaram à tia o mesmo calor extemporâneo, o que levou Cassandra a lidar
bem com a referência a Leonardo.
Sob os caracóis quase grisalhos que escapavam do penteado elegante da tia, Cassandra vias as páginas do livro que Sophie virava ritmadamente. Era óbvio que a sua
mente absorvia perfeitamente bem o conteúdo do livro. Nada do que Cassandra via dava credibilidade à afirmação de Gerald de que Sophie tinha as faculdades debilitadas.
Era certo que no presente a tia tinha um modo de vida peculiar, recolhido, mas depois de todos os Leonardos, talvez até fosse de esperar. Uma mulher com um passado
tão colorido e dinâmico poderia, aos sessenta e quatro anos, estar cansada.
– Tia Sophie, que dinheiro tem?
– Não chega para lhe emprestar, querida – respondeu Sophie sem nem sequer levantar os olhos do livro. – É isso que significa quando alguém diz que uma pessoa tem
um rendimento respeitável, como eu. É o bastante para levar uma vida decente, embora modesta, e até para um luxo ocasional, mas nunca para emprestar desavisadamente.
– Não quero pedir emprestado, tia. Estava a pensar que, se tivéssemos dinheiro suficiente, entre as duas, podíamos viajar até ao Continente antes de o outono chegar.
– Há uma guerra no Continente. Paris está fora de questão e não tenho qualquer desejo de visitar Viena, agora que o Franz se casou. Seria de mau tom da minha parte.
Franz era outro Leonardo, um homem do passado de Sophie.
– Talvez Nápoles, então, ou...
– Nunca pensei vir a dizer isto, mas já tive a minha dose de viagens. Além disso, dei-lhe a maior parte das minhas joias, e não há muito mais para empenhar.
– Penso que seria mais saudável se fôssemos para o campo, pelo menos. Talvez possamos visitar a região dos lagos.
– Fico sensibilizada por estar preocupada comigo, mas inquie- ta-se de mais.
A tia Sophie já não lia o livro, preferindo dedicar-se a examinar Cassandra. Voltou o belo rosto para ela e fitou-a com olhos perspicazes.
– O seu irmão não me assusta, Cassandra. Nunca terá a audácia de tomar alguma atitude. E, se encontrar coragem para o fazer, a sua mãe trata de o demover.
A Cassandra, não lhe parecia que podiam confiar em nenhuma das duas assunções. Nos últimos anos, Gerald desenvolvera uma arrogância que ultrapassava qualquer expectativa.
Quanto à mãe de ambos – a tia Sophie não precisava de saber com que frequência ela lhe escrevia a repreendê-la por viver debaixo do teto e da influência da cunhada.
Cassandra deu uma palmadinha na mão da tia, como se concordasse com ela. A pele daquela mão pareceu-lhe muito fina e fria, e a própria mão, frágil. Sophie envelhecera
de forma algo abrupta, como acontece por vezes às mulheres quando o tempo finalmente as alcança. O rosto sob a touca debruada a renda ainda refletia a mulher bela
que fora, porém, e os seus olhos, embora mais claros agora, não raro mostravam o brilho sagaz e alegre que fazia com que os homens tombassem de amores por ela às
dezenas.
Há dois anos, Cassandra não teria a menor dúvida de que a tia Sophie conseguia manter Gerald à distância com um simples gracejo demolidor. No momento presente, contudo,
aquela mão parecia-lhe muito pequena e a tia vulnerável e, sem dúvida, necessitada de cuidado e proteção.
Se o Continente fosse demasiado arriscado, iriam até à América. Cassandra não se importava de sair de Inglaterra. O mundo mudava à sua volta e ela sentia-se cada
vez mais empurrada para as franjas da sociedade. Tentava não se importar com aquilo – afinal, fora ela própria que o propiciara –, mas lutar para que isso não acontecesse
tornara-se cansativo.
A tia deixou-se distrair pelo jardim novamente. Desta vez parecia que aqueles olhos azuis ficavam ainda mais claros. Um sorriso de menina fazia Sophie parecer ainda
mais distante.
– Sim, se o Gerald não se comporta, terei de falar com o conde a respeito dele – afirmou ela com ar sonhador.
– O Gerald agora é o conde. O pai morreu.
Sophie pestanejou.
– Claro que sim. Ainda estava com a cabeça no Leonardo e equivoquei-me.
Voltou a erguer o livro. Cassandra tentou não ficar na expectativa de que a tia virasse alguma página, mas sentiu manifesto alívio quando esta finalmente o fez.
Sim, estava na altura de esclarecer a história daqueles brincos para que Ambury não adiasse por mais tempo o pagamento e ela pudesse seguir em frente com os seus
planos.
– Tia Sophie, tenho curiosidade acerca de uma coisa. Na primavera passada, quando eu disse que tinha de vender algumas joias, foi muito específica quanto àquelas
que podia vender.
– Fui?
– Insistiu em olhar para elas todas. Não se lembra? Era março, e espalhámos as joias todas no tapete da biblioteca. A tia andava pelo meio delas a apontar para aquelas
que eu não podia consignar ao leilão.
– Agora estou a lembrar-me. Davam tanta vida ao tapete. Julguei que os tapetes com joias podiam ser uma nova moda. Só que ia ser difícil andar neles. – Franziu a
testa como se aquela ideia a baralhasse. – Estavam todas em cima do tapete? Todas sem exceção?
– Foi isso que me disse para fazer. Até aquelas que tinham as anotaçõezinhas estavam lá.
A tia Sophie fizera acompanhar algumas das joias de breves instruções sobre onde e quando não deviam ser usadas. Uma, por exemplo, dizia: «Não usar em Viena». Cassandra
presumira que fora um presente de Franz.
– Claro que sim. Estou a lembrar-me.
Cassandra olhou atentamente para o rosto da tia, tentando decidir se ela realmente se lembrava. Detestava aquela necessidade de se certificar de tudo, que sentia
agora constantemente. Mesmo que Gerald não ganhasse aquele jogo, já conseguira ter resultados pelo simples facto de o jogar.
– Lembra-se dos brincos de safiras e diamantes? Eram antiquados, mas da melhor forma. Os diamantes do meio de ambos eram bastante grandes.
– A menina teria ficado fabulosa com eles. Iriam realçar-lhe os olhos – comentou a tia, piscando os olhos. – Vendeu-os com os outros?
– Por um preço muito alto – tentou Cassandra falar sem alvoroço.
Ambury comprou-os. Diz que foram roubados e julgo que suspeita de que a ladra foi a senhora. Seria benevolente deixar aquilo por dizer.
– Quem lhe deu aqueles brincos? O Leonardo, talvez?
– Credo, não. O Leonardo não tinha meios para me dar presentes como esse. Mas era um amante tão atencioso que uma mulher dificilmente se importaria. Tinha um truque
maravilhoso que fazia com a... Ah, não devo escandalizá-la. Não queremos dar ao seu irmão mais razões para se opor a que viva aqui, pois não? Então, como me vieram
parar às mãos? – Franziu o sobrolho e ponderou o assunto. – Talvez os tenha comprado. Sim, tenho quase a certeza de que foram os brincos que comprei naquele inverno.
– Devem ter custado uma fortuna.
– Estavam numa loja de penhores e por um valor muito menos dispendioso do que se suporia. Talvez o penhorista julgasse que os diamantes eram uma imitação.
Sophie voltou a pegar no livro.
Cassandra bebeu um gole de limonada. Perguntara e obtivera a sua resposta. Podia, em consciência, relatar a Ambury pelo menos parte da história das joias. O único
aspeto da conversa que ficava por esclarecer era em que constituía o truque de Leonardo.
Sim, já poderia resolver o assunto, desde que ignorasse a sensação de que a tia Sophie acabava de lhe mentir.
Dois dias depois, chegava com o correio matinal uma carta de Ambury, pedindo a Cassandra que o visitasse na propriedade da família às duas da tarde. O advogado estaria
presente e o assunto seria conduzido com total discrição.
Uma outra carta chegou ao mesmo tempo. Emma escreveu, dizendo a Cassandra que tinha regressado à cidade. Pedia-lhe que a visitasse na leiloeira da família ao meio-dia.
Curiosa com o que poderia ter desencadeado o regresso de Emma a Londres, tão pouco tempo a seguir ao casamento, Cassandra apresentou-se na leiloeira às onze horas.
Receara não voltar a ver Emma após o casamento e, contudo, ali estavam, reunidas como haviam feito tantas vezes no passado.
O cavernoso salão de exposições apresentava-se vazio, sem sequer um quadro a animar as paredes cinzentas. O chão de madeira ainda evidenciava o polimento a que tinha
sido sujeito e que marcara o fim da época anterior, alguns meses atrás. Não se encontrava por lá nenhum dos empregados.
Ouviu sons, que a conduziram ao escritório, no outro extremo da galeria. Ali, encontrou Emma sentada a uma grande secretária. A superfície de madeira à sua frente
convertera-se num tapete de joias.
– Não consegui imaginar o que poderia tê-la feito regressar à cidade, Emma. Devia ter adivinhado que só podiam ser raridades como essas.
Cassandra pegou num rubi particularmente vistoso suspenso numa corrente. O engaste era simples, mas uma joia daquelas de poucos enfeites precisava.
Pousou-o.
– Não devia estar a gozar a vida de casada? Surpreende-me que o Southwaite tenha concordado regressar a Londres.
Emma pegou nuns brincos que consistiam em pouco mais do que duas pérolas perfeitas.
– Ele não queria vir, mas sentiu-se obrigado, depois de ficar a saber dos mais recentes desenvolvimentos da guerra. Eu, claro, não me quis separar dele.
Cassandra indicou a secretária.
– Ele sabe disto?
– Posso ter-me esquecido de as mencionar. Assim que soube que iria regressar, tomei providências para que fossem entregues. Temporariamente, claro, enquanto as avalio.
– E o seu irmão? Agora a leiloeira é dele. Não devia estar...
– Está doente. Uma febre de verão. Ele não percebe muito de joias, de qualquer forma. Percebe menos do que eu, e também eu não sou nenhuma perita. Razão pela qual
preciso da sua ajuda.
Cassandra deu toda a atenção às joias. Aprendera sobre joias e engastes raros com a tia Sophie. Durante os primeiros anos que passaram juntas, quando viajava com
a tia, esta indicara-lhe as mais valiosas gemas que adornavam a alta sociedade do Continente e dera-lhe lições sobre como avaliar a sua qualidade e o seu valor.
– A maior parte é bastante recente e foi cravada há uns vinte anos, talvez. – Pegou em algumas delas e ergueu-as à luz da janela. – Os engastes são muito sóbrios.
O valor está nas pedras. A maior parte delas tem uma limpidez excelente. Onde as descobriu?
– A Marielle encontrou-as.
– Então vamos rezar para que as tenha encontrado na posse legítima dos seus proprietários.
Marielle era uma jovem francesa, uma emigrada que fugira da revolução quando era ainda menina. Tornara-se agente ao serviço da Fairbourne’s, para a qual servia de
intermediária entre outros emigrados que desejassem vender valores que traziam de França.
– Os proprietários acederam a ser nomeados, por isso provavelmente estamos a salvo, a esse respeito. O que acha? São tão boas como parecem?
– São dignas da Fairbourne’s. Se esperar até ao outono, parece-me que ao todo renderão pelo menos setecentas libras. Se tentar vendê-las agora, conseguirá metade,
se tanto.
– A Marielle diz que os amigos podem esperar se eu prometer incluí-las quando voltarmos a arrancar. O nosso próximo leilão vai ser em meados de setembro, julgo.
Cassandra continuou a examinar as joias, devolvendo cada uma delas a uma das várias linhas que formara em cima da mesa.
– Porque é que o Southwaite regressou à cidade?
– Vai ficar a saber não tarda nada. A situação da Irlanda sofreu um grande revés. As tropas francesas desembarcaram no condado de Mayo. Não se sabe em que número,
mas os rebeldes estão a juntar-se a eles e, de acordo com as últimas informações, ainda não tinham sido completamente derrotados.
Eram notícias chocantes, deveras, embora correspondessem a um desenvolvimento para o qual todo o país estivera a preparar-se.
– Todo aquele receio com a costa sudeste e eles decidem entrar pela Irlanda!
Cassandra continuou a examinar as joias. A notícia de que a Fairbourne’s realizaria um leilão no mês seguinte deixou-a aliviada. Se Ambury se revelasse um problema
ainda maior, poderia colocar novamente os brincos para venda.
– O Southwaite ficará irritado se souber que se encontrou comigo hoje? – perguntou.
Emma deu a volta à secretária e abraçou-a.
– Expliquei-lhe o quanto me é querida e que temos uma verdadeira amizade e não a espécie de tolerância que provavelmente receberei por parte das mulheres dos círculos
dele. – Emma encostou os lábios à testa de Cassandra, num gesto carinhoso. – Ele não proibiu a nossa amizade. Esperei que o convite para a boda o tivesse deixado
claro.
A lealdade de Emma comoveu profundamente Cassandra, que sentiu um ardor na garganta. Apontou para as joias.
– Da esquerda para a direita, o valor aumenta.
Emma regressou à cadeira, tirou um pedaço de papel de uma gaveta e começou a escrevinhar.
– A Lydia também regressou à cidade – comentou.
– Seria de esperar que ficasse em Crownhill, mesmo que o irmão não o fizesse. Prefere lá estar quando fica sozinha. Porque é que terá voltado para a cidade?
– Não tenho a certeza, mas... parece-me que veio para a ver.
Há seis meses, Cassandra teria exprimido uma alegria rebelde e talvez até incluísse Emma nos planos para contornar qualquer interferência de Southwaite na amizade
delas. No momento presente, porém, as lealdades de Emma tinham alguma complexidade.
– O mais provável é querer ver as outras amigas ou começar a tratar de um novo guarda-roupa. – Pegou na bolsa. – Agora tenho de a deixar. Prometi encontrar-me com
uma pessoa daqui a meia hora.
A mansão, propriedade do conde de Highburton, não poderia deixar de impressionar, situada como estava em Pall Mall, perto de Marlborough House. Propriedade de pedigree
impecável, era de tamanho e opulência condizentes com o pariato que havia prosperado numa vida de decoro moral, conjugado com o alinhamento com o lado vencedor na
maior parte das controvérsias políticas dos séculos mais recentes.
O jornal matinal informara que Highburton regressara a Londres e se encontrava na sua residência. Normalmente, ela sentir-se-ia desconfortável ao apresentar-se em
casa de um homem moribundo, mas o conde disporia, sem dúvida, de amplos aposentos e de privacidade inviolável, no interior daquele imenso monte de pedra. Desconfiava
de que nem sequer repararia que ela assomava à sua porta.
Quando o lacaio a acompanhou até à sala de visitas, Ambury já lá se encontrava.
Cumprimentou-a com um sorriso e uma vénia. Ela voltou a reparar, ao mesmo tempo que fazia a cortesia, que a maturidade lhe caía muito bem. Ainda era célebre a beleza
do rosto do pai, e o filho saía a ele pelo menos nesse aspeto, ainda que todos soubessem que, de espírito, um e outro tivessem pouco em comum. A dissonância com
o pai em quase tudo o que era de importância, criara um fosso entre eles ainda antes de Ambury sair da universidade.
O facto de a vida de Ambury o afastar das noções de comportamento, de carácter estrito e conservador, que a sua família há muito tempo abraçara, não ajudara, supunha.
Mesmo gerações antes, quando quase toda a gente da classe usufruía de uma certa licenciosidade, os condes de Highburton e as respetivas famílias eram famosos pela
sua retidão. Ambury, porém, tinha a reputação de ser um libertino. Os apontamentos que surgiam sobre ele nos jornais não eram nada ambíguos. Ao contrário de Southwaite,
seu amigo, ele não era especialmente discreto nos seus casos amorosos.
– Não quer sentar-se? O advogado chegará dentro de momentos – convidou Ambury, indicando uma de duas cadeiras dispostas com bastante proximidade.
Cassandra não queria sentar-se ali se aquele homem tinha a intenção de pousar aquele primoroso traseiro na outra ao lado. Naquele dia, estava lindo de mais para
sossego dela. Do tipo de beleza que deixava qualquer mulher alvoroçada e apatetada. Precisava de ter a cabeça em ordem.
– O advogado não será necessário. Perguntei à minha tia sobre os brincos. Ela lembra-se de os comprar a um penhorista, há alguns anos. Quanto à forma como ele os
obteve, fica à imaginação de cada um.
– Há alguns anos? Dois anos? Trinta?
– Ela não disse.
– Que penhorista foi?
– Ela também não disse.
– É tudo muito ambíguo. De forma geral, nota que as memórias da sua tia parecem estar mais vagas, Lady Cassandra? Por vezes...
– De todo. Porque sugeriria uma coisa dessas? Está tão boa de cabeça como o senhor. Não lhe fiz perguntas mais específicas relativamente aos brincos. Seria impróprio
da minha parte.
Tirou um pequeno saco de veludo da bolsa e pousou-o na mesa.
– Agora, e correndo o risco de ser extremamente indelicada, dou-lhe os brincos e o senhor dá-me o dinheiro.
Ele agraciou-a com um dos seus sorrisos. Ela esforçou-se por não se deixar afetar por ele, pois sabia que prenunciava problemas.
– Primeiro devo pedir-lhe que tente saber mais coisas da sua tia, sobre quando e onde encontrou os brincos.
– Ela disse-me aquilo que sabe.
– Duvido. Não é o tipo de joia que alguém possa esquecer como obteve.
– Ousa afirmar que a minha tia mentiu?
– Estou a sugerir que ela respondeu às suas perguntas discretas sem dizer nada mais. Como a própria Lady Cassandra reconheceu, não lhe pediu pormenores. Tenho a
certeza de que seria mais expansiva se fosse eu a abordar o assunto. Visto que ela não me recebe, peço-lhe para voltar a fazê-lo, com menos circunspeção.
Era notório que ele não iria ceder. Reteria o pagamento até ela descobrir a história toda ou até o mês ter decorrido. Num gesto de despeito, Cassandra agarrou no
saquinho de veludo e voltou a enfiá-lo na bolsa.
Pôs-se a caminhar lentamente pela sala e observou:
– Fizeram alguma redecoração recentemente. Já não se deteta aquela influência óbvia de Pompeia.
Ele olhou em redor como se ainda não tivesse reparado.
– Esqueço-me de que esteve de visita várias vezes durante a sua primeira temporada. Imagino que tenha havido mudanças desde então.
Cassandra deteve-se a admirar uma cadeira que ostentava elementos góticos moderados na talha dos braços. A condessa devia estar a experimentar aquele estilo, para
ver se se adequava a ela própria e à sala de visitas.
– Estive aqui, e não foi só durante a minha primeira temporada. Estive presente em algumas reuniões sociais com a minha tia, depois de ir viver com ela. Não me parece
que a sua mãe desejasse realmente a minha presença, mas a tia Sophie lá conseguia que me convidassem.
– Os meus pais sempre gostaram muito dela, apesar da sua vida invulgar. O meu pai era amigo do seu pai, logo tinha motivos para ser tolerante com a irmã do amigo.
– Foi muito generoso da parte dele. Talvez os seus pais esperassem redimi-la.
– Diz isso com amargura. A sua tia não parecia ressentir-se da forma como a sociedade a via, por isso não há razão para a Lady Cassandra o fazer.
Não, não havia. Contudo, ela ressentia-se.
– Talvez não seja a receção que fazem à sua tia que a deixa incomodada, mas a receção que lhe fazem a si – concluiu ele.
Ela parou de admirar o mobiliário e deteve-se a olhar para Ambury. Ele não o dissera com sarcasmo nem crueldade. Fizera simplesmente uma observação que, como uma
seta, lhe foi direita ao coração.
– Julgo que está certo – concordou ela, tentando fingir boa disposição. – Penso, no entanto, que é mais a inveja que me deixa incomodada. A minha tia nunca se casou,
e viveu livremente, e por qualquer razão foi aceite. Talvez o mundo não se atrevesse a proibi-la de fazer o que desejasse.
Ele avançou devagar até ao sítio onde ela estava, à janela. Parecia estar a pensar honestamente no assunto.
– Era uma época diferente. Além disso, todos sabiam que não tinha casado por o noivo ter morrido.
– Pois... claro. É essa a diferença. Ela quase fez a coisa certa, ao passo que eu me recusei desde o início. Sim, suponho que isso explica tudo.
Ele olhou para ela com um ar muito sério. Aquilo deixava-a desconfortável. Além de alvoroçada e apatetada.
Então, um criado entrou e segurou a porta aberta. Seguiu-se um homem grisalho. Tudo nele, desde a postura de formalidade à expressão séria, do casaco conservador
aos óculos, anunciava a sua profissão.
O advogado chegara.
CAPÍTULO 6
Yates apresentou Mr. Prebles, que interrompera o seu trabalho e ali se apresentara pontualmente, muito à semelhança do que sempre acontecia. Mr. Prebles curvou-se
numa vénia profunda a Cassandra e limitou-se a ficar parado tal como o lacaio fazia, próximo da parede, aguardando instruções.
– É o advogado do conde, Mr. Prebles? – indagou Cassandra.
– Sim, com muita honra.
Cassandra voltou-se para Yates com uma expressão cética.
– Não faria mais sentido encontrar uma terceira parte que não colocasse nenhum dos dois em desvantagem?
– Mr. Prebles, Lady Cassandra está preocupada, caso este acordo não corra como espero, que o senhor se mostre menos objetivo na sua resolução. É uma inquietação
justa, parece-me.
– É-o, de facto. Deixe-me reassegurar-lhe, Lady Cassandra, que aquilo que for acordado hoje corresponderá à forma como o assunto será por mim tratado. Só poderia
ser advogado do conde há tanto tempo com uma honestidade sem concessões, a qual, o próprio conde pratica, tal como é do conhecimento público.
Yates pensou que Prebles podia ter tido a gentileza de acrescentar «tal como o filho» no final da pequena preleção. A verdade é que o advogado não conhecia bem o
filho. Nem os meses que haviam passado sequestrados entre listagens e escrituras forjara o mínimo à-vontade entre os dois. É certo que, em anos transatos, fora Prebles
o homem incumbido de transmitir ao filho as reprimendas do pai, fosse sobre jogo, sobre mulheres, sobre política, sobre... muitas coisas.
Cassandra enfiou a mão na bolsa e voltou a tirar o saquinho de veludo. Despejou o seu conteúdo numa mesa encostada a uma janela. O ouro cintilava. A luz refletia
nos dois diamantes que ornariam as orelhas da sua proprietária, e três safiras pendiam em filigrana de ouro por baixo deles.
– O acordo, Mr. Prebles, é o senhor guardar estes brincos, e a soma que o Ambury licitou por eles, durante trinta dias no máximo, até estarmos de acordo em que os
brincos devem ir para o Ambury e o dinheiro para mim. Se assim não for, ao trigésimo primeiro dia, os brincos devem ser-me devolvidos.
Prebles olhou para Yates para confirmar, pegou nos brincos e devolveu-os ao saquinho.
Yates aproximou-se dele e entregou-lhe as notas enroladas.
Depois de Prebles se retirar, Cassandra preparou-se para fazer o mesmo.
– Não perguntou porque é que eu não trouxe o anel – disse.
– Perguntá-lo ter-me-ia sujeitado a uma resposta que o Prebles não precisava de ouvir.
Yates nem sequer tinha pensado no anel. Deixara-o, a seguir ao leilão, como garantia, para ser vendido caso não cumprisse com o pagamento.
Ela apreciou a sala mais uma vez, deixando a resposta por dar, provavelmente porque ele continuava sem fazer a pergunta.
– Sempre admirei esta sala de visitas – declarou. – Assim como a galeria que fica a seguir ao salão de baile. Lembro-me, durante a minha primeira temporada, que
punham ramos de palma nos cantos norte quando a sua família dava algum baile. Não foram poucas as raparigas que deram o seu primeiro beijo atrás deles.
– Está a sentir-se nostálgica?
– Não disse que dei o meu primeiro beijo atrás deles.
A não ser que Lakewood tivesse mentido, dera mesmo. Por um instante, Yates voltou a vê-la num daqueles bailes, com um vestido de estilo muito diferente daquele que
trazia hoje. Era tão azul como os seus olhos, com forma de ampulheta, em vez dos estreitos tubos de tecido dos dias de hoje. Tinha o cabelo arranjado em cachos apertados,
e não os caracóis naturais de agora. As matronas comentavam que mesmo nessa altura ela pintava os lábios.
– Venha comigo. Revisitaremos a cena dos seus primeiros triunfos mundanos.
– A minha primeira temporada pouco teve de triunfante – objetou Cassandra.
Seguiu Ambury, contudo, quando este saiu da sala.
– Foi você, Ambury, que acumulou vitórias nessa primavera. Diria mesmo que a pobre Amanda Stockton não chegou a recuperar do minuto que passou naquele canto.
– Ficou a saber disso?
– Toda a gente soube, Ambury. Ela desmaiou, por amor de Deus.
– Foi só um beijo.
– Foi a desgraça dela. Todos os pretendentes lhe pareceram comezinhos, a seguir. – Ela olhou para ele e riu-se. – Pare de ser presunçoso.
– Não estou a ser presunçoso. Já me disseram que beijo melhor do que a maioria, mas estou estupefacto por ser acusado de arruinar as hipóteses que Miss Stockton
teria de ser feliz com outro homem.
– Melhor do que a maioria? Estranho, nunca ter ouvido esse rumor, seu arrogante.
A galeria acompanhava a casa a todo o comprimento, flanqueando o salão de baile do lado norte. Tal como em Elmswood Manor, ostentava retratos de antepassados e de
familiares, só que aqueles eram os mais recentes.
Nada mudara naquele sítio desde essa temporada, seis anos antes. Cassandra percorreu o chão de madeira envernizado, olhando para aqui e para acolá, absorvendo tudo.
Parou diante de um dos retratos, que lhe chamou a atenção.
– O meu avô, do lado do meu pai – elucidou ele, colocando-se ao lado dela.
– É bonito, mas parece um pouco severo.
– É uma característica de família.
– Em todos, exceto em si – provocou ela, retomando a marcha.
Por cima do ombro, deitou um último olhar ao quadro.
– E, contudo, uma pessoa pergunta-se, Ambury, se também você não se tornará severo com o passar do tempo. Austero, pois também é apanágio da família. Penso que consigo
detetá-lo já em si. Duvido que agora beijasse Miss Stockton atrás dos ramos de palma.
A observação dela foi relevante. Talvez fizesse sentido e ele estivesse a ficar um pouco austero. Ia ao encontro de uma constatação sua, enfatizada pelos deveres
e obrigações recentes, de que os melhores anos da juventude haviam passado, juntamente com as suas liberdades.
Encontravam-se perto do lugar que recebera as folhas de palma. Não era o momento de olhar para ela, mas ele olhou, na altura exata em que a luz que entrava na galeria
pelas janelas abertas recaiu sobre ela e uma brisa lhe sacudiu os anéis do cabelo e as pontas das fitas que lhe pendiam do vestido.
– Tem razão numa coisa. Agora não beijaria uma Miss Stockton qualquer, mas só porque tenho mais seis anos de idade e não possuo interesse algum por raparigas que
começam a frequentar a sociedade.
– Então, fará melhor em ficar com a mulher para quem comprou os brincos, Ambury, e sentir-se satisfeito por ela o deixar pensar que se sente deslumbrada. Nós, as
mulheres, quanto mais ganhamos em idade, menos facilmente desmaiamos, por muito bem que beije.
A ferroada foi como palha para o fogo.
– Não devia desafiar um homem assim quando está sozinha com ele.
O comentário suscitou alegres gargalhadas.
– Oh, não... por misericórdia. Agora está a tentar conquistar-me, como ameaçou fazer? Você despreza-me, Ambury. Sabemos ambos que estou em segurança.
As palavras dela, aludindo ao que aludiam, deviam tê-lo detido. Em vez disso, tiveram como efeito anular a pouca determinação que ele conseguira reunir.
– Não está. De todo.
Ele virou-a para si e puxou-a para os seus braços.
Ela ergueu os olhos, espantada. Então, as pestanas grossas desceram e os lábios vermelhos afastaram-se, sem dúvida para o repreender.
Ele silenciou-a com um beijo.
Não poderia dizer-se que o beijo fosse austero, reparou distraidamente Cassandra com a parte da mente que não sucumbira à perplexidade. Um pouco severo, talvez,
mas sem ser desagradável. Fora beijada vezes suficientes para conseguir apreciar as nuances e naquele momento o toque dele transmitia-lhe simultaneamente doce sedução
e domínio.
Tentou escapar à névoa de sensação que ele criara, mas o senso comum não parava de lhe fugir assim que ela o alcançava. Percorriam-lhe o corpo os prazeres mais deliciosos,
incitando-a a permitir-lhes fazer o seu pior. O calor permeou-lhe a pele até atingir o seu centro.
O abraço dele desarmou-a completamente. Braços fortes envolveram-na, puxando-a mais para perto... Uma carícia demasiado audaz, mas escandalosamente apetecida, desceu-lhe
as costas, firme o bastante para fazer desaparecer o tecido do vestido sob o calor daquela mão... Ele levantava-a por forma a ter o pescoço dela ao alcance da boca,
depois o decote...
Não devia. Sabia-o. Não poderia estar certo. Porém, passara tempo de mais sem sentir aquela excitação de mulher e esqueceu por um momento que o homem que a suscitava
poderia não ter boas intenções. O prazer revigorava-a, deslumbrava-a. Poderia, de facto, estar naquele momento atrás das folhas de palma durante a primeira temporada,
a ser beijada pela primeira vez.
Não resistiu com suficiente imediatez. Sabia-o, apesar de adiar esse momento. Ele tomou aquilo como anuência, claro. Breves mordidas nos lábios anunciavam maior
intimidade. Bastavam os preliminares de uma paixão anunciada para um frémito responder do centro do seu corpo, convidando-a à imprudência.
Voltou a cabeça para pôr fim aos beijos. Sentiu no rosto a lã superfina do casaco dele e no ouvido o suave martelar do seu coração. Ficaram assim, ela envolta no
abraço dele, por dez segundos no máximo, durante os quais ela ignorou a verdade do momento e se permitiu saborear a ilusão de receber o cuidado de um homem.
Recuou. Os braços dele caíram ao mesmo tempo. Ela devia dar meia-volta e ir-se embora. Fingiria que nada tinha acontecido, ou que ele a importunara, coisa que ele
fizera de certa forma, pelo menos no início. Devia...
– Porquê?
O olhar dele estava de tal maneira focado nela que Cassandra não se atreveu a mover-se. Detetava-se bem nele a austeridade familiar, naquele momento.
Procurou ser a Cassandra que o mundo conhecia e tentou pensar numa resposta inteligente. Porque sou temerária, claro. Porque fui beijada tantas vezes que um beijo
mais é coisa pouca.
– Porque recusou? – pressionou ele. – Ele comprometeu-a. Não foi intencional e foi bastante inocente, mas a verdade é que aconteceu. Porque é que o recusou quando
ele procurou fazer a coisa certa?
O real significado do «porquê?» dele sobressaltou-a. Nunca ninguém lho tinha perguntado. Não diretamente. Em vez disso, foram feitas suposições e tiradas conclusões,
tanto sobre ela como sobre Lakewood. Ao mesmo tempo que o mundo exprimia horror por ela não aceitar o casamento, também congeminava e comentava sobre o que teria
acontecido para a levar a recusar. O homem devia ter mostrado a sua verdadeira face de formas verdadeiramente pavorosas, para uma jovem preferir correr o risco de
se desgraçar a aceitar a salvação social no papel de sua mulher.
Depois do sucedido, permaneceu a sombra da desonra no caminho de Lakewood. Os amigos, Southwaite e Kendale, e até Ambury, culparam-na a ela. A estes, o seu comportamento
devia ter parecido infantil, caprichoso e cruel. Provavelmente ainda parecia.
– Não o queria. – Era a verdade, mas não por inteiro. – Foi de facto bastante inocente e não exigia uma medida tão extrema como o casamento.
– Ele estava apaixonado por si. As intenções dele sempre foram...
– Eu... não... o... queria – devolveu Cassandra lentamente, irritada, agora.
Ninguém parecia importar-se com aquela parte da história. Ninguém se importava.
– Quanto ao amor e às intenções dele, há muita coisa que desconhece. Agora que ele partiu, ninguém mais sabe além de mim.
Ele inclinou a cabeça, de súbito curioso. Demasiado curioso. Ela rogou pragas a si própria por se ter deixado arrastar para aquela conversa.
– Devo retirar-me – anunciou.
Tentou fazê-lo com dinamismo, mas os efeitos do beijo ainda estavam presentes e a voz saiu-lhe com um tremor.
Afastou-se dele, das suas perguntas e daquele maldito condão que ele tinha de fazer dela uma tonta.
– Insistirei com a minha tia na medida do possível, para descobrir mais sobre os brincos. Preciso que o seu advogado me dispense o dinheiro com a maior brevidade.