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CAPÍTULO 7
Os pensamentos de Yates não se ficavam pelos documentos que estavam espalhados à sua frente, por mais esforço que fizesse para se concentrar devidamente. Deu por
si a demorar-se num beijo roubado na penumbra de uma galeria. O que o levou, inevitavelmente, a ponderar a conversa que se seguiu.
O beijo correspondera a um impulso, mas um impulso de longa data. A pergunta sobre Lakewood também.
Há muita coisa que desconhece. Sem dúvida nenhuma. Sempre presumira que o que não sabia se devia à discrição de Lakewood. Naquele momento parecia-lhe que poderia
ser mais do que isso.
Nos anos que se seguiram, desferira olhares de censura aos homens que, bebidos, propagavam especulações sobre o que acontecera realmente quando o barão Lakewood
se encontrara a sós com Lady Cassandra Vernham. Cerrara fileiras com Southwaite e Kendale e, sim, até com Penthurst, e fizera o que os amigos fazem quando um deles
é objeto de suspeitas difamatórias.
No início, os rumores difundiram-se rapidamente e os seus efeitos continuavam a fazer-se sentir. Ele forçara-a, era o que se dizia. Ele enfurecera-se quando ela
lhe recusara a mão e perdera o controlo. Fora responsabilidade dela, por ser leviana, mas, ainda assim...
Ter-se-ia passado daquela maneira?
Levantou-se, indignado com o simples facto de considerar a possibilidade de que Lakewood pudesse não ter sido honrado, quando este não estava ali para se defender.
Não era nada animador, uns beijos levarem-no a mostrar-se desleal com tanta facilidade.
Não obstante, os seus pensamentos divagaram mais uma vez para a penumbra da galeria, como se fossem arrastados por um fantasma caprichoso. Sentiu Cassandra contra
o seu corpo, tão quente, suave e sensual como parecia.
A porta abriu-se e Prebles entrou, parando e, por trás dos óculos, espreitou atentamente Yates. Aproximou-se, então, e observou os documentos espalhados pela secretária.
– Ah – interpelou com um aceno de cabeça –, compreendo agora porque parece aborrecido, senhor. A situação com aquela propriedade é irritante, concordo.
Aquilo era novidade para Yates. Que situação, em que propriedade? O que é que lhe escapara?
Prebles procurou elucidá-lo pegando numa das escrituras e apontando para um mapa.
– Visitou-a? É a escassez de evidência de rendas que o preocupa?
Yates reconheceu a escritura como sendo a de uma faixa de terreno localizada entre os pântanos da costa sul.
– Fui para norte, não para sul. Há escassez de rendas porque a terra não está cultivada?
– Também. Não é a melhor terra, tão próxima do mar e com partes demasiado húmidas para cultivo.
– Mas há mais?
– Parece haver a possibilidade, ou até a probabilidade, de mais alguém ter reclamado a sua posse. Veja, olhe para este mapa mais antigo. A propriedade consta como
pertencendo a Highburton. Mas neste mais recente existe a anotação de que a posse pode ter sido contestada.
Yates atentou aos mapas e depois examinou a escritura. A data inscrita no velino, desenhada num floreado ainda mais dramático do que a escrita de Prebles, assinalava
a transferência para o conde de Highburton no ano de 1693.
– Se existir outra escritura, seria peculiar que tivesse data anterior a esta – comentou.
– Foi isso que pensei. Nunca encontrei provas de que tivesse sido vendida, portanto a anotação do mapa mais recente fica por explicar. Contudo, existe.
Yates dobrou a escritura e pousou-a.
– Na próxima vez que falar com o meu pai vou mencioná-la. Claro que as possíveis rendas seriam de pequena importância e provavelmente não se justificaria o gasto
com tempo e dinheiro do tribunal.
– Sem dúvida, senhor, sem dúvida.
– Quere-as todas, menina? Mesmo todas? – perguntou Merriweather, cujo queixo segurava um monte de caixas que trazia do quarto de vestir.
– Todas.
Cassandra aliviou-lhe a carga dos braços e pousou-a na cama.
Depois de mais uma viagem, mandou Merriweather embora, sentando-se então na cama para examinar a parte do legado que a tia Sophie lhe dera em vida.
Primeiro abriu as duas caixas de madeira maiores. Lá dentro estavam pequenos sacos de veludo e uma série de caixinhas. Eram as pequenas caixas que continham as joias
que ela vendera na Fairbourne’s na primavera anterior. Os saquinhos e as caixas estavam agora vazios.
O mesmo não se poderia dizer dos outros dois volumes. Um arco-íris de pedras e uma pequena fortuna em engastes saudou a inspeção feita. Mas não eram apenas joias
que ocupavam as pequenas caixas. Pequenos pedaços de papel também.
Pegou num dos papelinhos e abriu-o. «Não usar quando o conde de Emilia estiver em Inglaterra», dizia, pela mão da tia Sophie. Devolveu-o à companhia do anel grená
a que se referia e escolheu um saco de organza, que despejou na palma da mão.
Um primoroso colar de filigrana de ouro, mais valioso pelo trabalho do que pelo metal, escorregou. Assim como mais uma anotação. «Melhor usá-lo apenas quando Sir
Charles e Lady Lightbown estiverem fora.» Outras anotações identificavam pessoas específicas. Algumas indicavam simplesmente: «Não vender a não ser com um novo engaste.»
Os bilhetinhos deixavam entrever que as joias tinham sido prendas de amantes às quais as respetivas mulheres e família podiam objetar. Atenuaram a excitação que
sentira quando recebera as dádivas de Sophie. Não queria nem pensar na preocupação que seria verificar quem estava ou não estava em Londres, ou quem poderia ir a
que festa, ao escolher uma joia.
E se cometesse algum erro? Correria o risco de horrorizar algum homem que a visse a usar um presente romântico? Será que a mulher do dito homem adivinharia que este
o agraciara a uma amante?
Era de louvar que a tia Sophie fosse tão cuidadosa com a felicidade alheia, mas a reação de Cassandra fora nunca usar nenhuma daquelas bugigangas.
Voltou a pegar na primeira caixa grande. Abriu, uma a uma, todas as caixas vazias. Algumas daquelas também tinham anotações. Leu-as a todas. Não eram mencionados
nomes e todas elas pareciam desaconselhar a utilização em várias capitais do Continente e não em Inglaterra. Três delas, porém, diziam apenas: «Podem ser penhoradas
ou vendidas, se necessário, mas não devem ser usadas.» Da primeira vez que as lera pensou que fosse a forma de a tia Sophie lhe dar uma lição de gosto e de moda.
Tentou recordar qual era a caixa ou o saco que guardara os brincos de safira e diamante. Seria dos que tinham anotações? Talvez estivessem numa das três caixas que
permitiam a venda mas não a utilização.
A memória não a ajudou. Tampouco conseguiu lembrar-se de pormenores sobre o dia em que espalhara as joias todas em cima do tapete e Sophie apontara para esta e aquela,
permitindo a sua venda. Cassandra pedira esse esforço da tia por causa da história das joias, principalmente por isso. Não quisera cometer erros.
Agora perguntava-se se os teria cometido e se a tia Sophie o teria feito também. Talvez as joias levassem a tia a perder-se nas suas memórias e ela se tivesse distraído
da tarefa entre mãos.
Arrumou todas as joias e tampou todas as caixas. Desejou poder queimar aquelas anotações sem se preocupar com o que significavam. Pior, inquietava-a que, afinal,
pudessem não dizer respeito a amantes e a presentes.
Suspeitou que, se Ambury soubesse da sua existência, também ele julgaria que assim fosse.
Olhar para aquelas caixas deixava-a tristíssima, pois os seus pensamentos enveredavam por direções que eram desleais para com o único familiar que continuava a dedicar-lhe
amizade.
Merriweather regressou ao quarto, segurando um cartão.
– Tem uma visita.
Lydia visitava-a.
Desceu e saudou-a.
– A Emma disse que tinha vindo para a cidade. É bom vê-la! Veio fazer compras?
– Sim, e outras coisas. Decidi que há outras coisas que desejo fazer tão bem como andar a cavalo e desenhar, Cassandra. E você vai ter a oportunidade de me ajudar.
Yates abriu devagar a porta que dava para os aposentos do pai. Entrou silenciosamente. Era assim que se aproximava do pai agora, sem exceção, com movimentos cuidadosos
e passos suaves. Não havia razão para tal; contudo, todos se comportavam da mesma maneira.
O conde encontrava-se na sala de estar, sentado numa poltrona ao lado de uma janela fechada. Os médicos receavam que as febres de verão lhe vencessem o corpo enfermo
e queriam-no no campo. O conde sempre preferira a cidade, porém, e agora, com as notícias que os assolavam da Irlanda, tinha a desculpa perfeita para regressar.
O primeiro-ministro visitara-o no dia anterior para discutir a questão. Fora um ato simbólico, para manifestar reconhecimento pelo papel que os condes de Highburton
haviam desempenhado ao longo dos anos. O conde atual não teria maior capacidade para influenciar o curso político do que para se levantar sozinho daquela poltrona,
mas Pitt alegara que aquela questão não poderia ser resolvida sem o seu sábio conselho.
Os olhos do pai abriram-se.
– O que tem aí? – indagou, indicando os papéis que Yates trazia na mão.
Yates sentou-se numa poltrona.
– Mais do mesmo. Perguntas para as quais o Prebles não tinha resposta.
Yates esperou que ele inquirisse sobre as perguntas, ou que simplesmente adormecesse.
– O que lhe parece esta trapalhada na Irlanda? – acabou por perguntar o conde.
Não falavam de política desde o inverno. Tratara-se de um pacto não declarado. Cuidariam juntos do património, mas evitariam os tópicos que tanto rancor haviam causado
entre os dois.
– Não pensei muito nisso.
Algo semelhante a uma risada cortou o silêncio.
– O diabo é que não pensou! Tem opinião sobre quase tudo, por isso, quanto a isto, não seria diferente.
Devia dizer ao conde o que este desejava ouvir e afirmar que concordava com a opinião dele. Seria uma gentileza, talvez. Um presente.
– Não me dê música, como os médicos fazem. O meu estômago está mal, mas a minha cabeça continua ótima.
– Penso que a trapalhada se deve ao facto de um homem, muito idiota, julgar que se tornará um herói. Seria um erro punir um povo inteiro pelo crime dele.
O conde abanou a cabeça.
– É o que esperava ouvir de si.
– Sou quem sou.
– É verdade, embora em breve seja também Highburton, e aí não será apenas quem é. Aconselha comedimento, então? O Pitt disse-me que há outros a dizer o mesmo. Até
o Penthurst, que consegue ser um homem duro quando é necessário. Deve andar a influenciá-lo, e não é para bem.
Yates não influenciava de forma alguma o duque de Penthurst nos últimos tempos, nem lhe parecia que alguma vez o tivesse feito. O pai não sabia da fratura que se
dera entre ele e aquele amigo. Salvo breves interlocuções formais em assuntos estritamente oficiais, não falava com Penthurst desde março último.
– De certeza que sabe que o julgamento dele se encontra marcado para o próximo mês – acrescentou o pai. – Disse ao Pitt que era um disparate, que ele tinha sido
desafiado pelo Lakewood e que o duelo era um ponto de honra e que toda a gente o sabia. É importante que não haja nenhum tratamento especial, disse ele, para que
os lordes percebam a mensagem.
Fez um esgar de reprovação, que se dissolveu, e encolheu os ombros.
– Não há qualquer perigo, por isso não deve preocupar-se por ele. Os cavalheiros compreendem estas coisas, mas o povo tem de ter os seus espetáculos.
Aquela tentativa de o tranquilizar tocou-o, embora não lhe agradassem os pressupostos que o pai aplicava ao outro amigo. Mas o conde também nunca gostara do homem
que morrera naquele duelo pelo qual Penthurst iria responder perante os seus pares.
Era daquela forma que as discussões começavam, em anos passados. Refreou a sua reação, para não se iniciar mais nenhuma naquele momento.
O pai parecia estar prestes a adormecer. Yates começara a levantar-se da poltrona quando os olhos do conde voltaram a abrir-se. A mão pálida indicou os papéis.
– Que perguntas?
Quão pequenos lhe pareciam aqueles pormenores agora. Alfinetes, chamara-lhes a mãe.
– É esta propriedade, na costa. Ainda não fui lá. Contudo, é evidente pelos registos que não são pagas rendas por ela, há anos. Prebles não sabe explicar. Pensei
que o pai talvez soubesse.
O conde estendeu uma mão vacilante. Pegou na escritura. Oferecendo o velino à luz da janela, semicerrou os olhos.
– Ah, este. – Acenou a cabeça, como se recordasse um velho quebra-cabeças. – Diz-se que existe uma outra escritura que contesta esta.
– Viu a outra escritura?
O pai abanou a cabeça e respondeu:
– No entanto, os rendeiros enviam a renda para a pessoa que a tem. Não é muito rendimento. Metade da terra é pântano.
– Vou dizer ao Prebles para investigar o assunto. Para o pai ficar a saber o que é o quê.
Um suspiro exausto saiu da boca do ancião. Contudo, apesar disso, os seus olhos pareceram-lhe menos baços e distantes por um momento. A mente estava a ser solicitada
e testemunhá-lo deu ânimo a Yates.
Enquanto observava o pai a ponderar a questão, teve um vislumbre do homem com quem se batera e que desafiara no passado, e uma emoção profunda encheu-lhe o coração.
Desejou que houvesse um pacto com o Criador e que o atual conde de Highburton só morresse quando o mais insignificante assunto estivesse tratado, e que os houvesse
para tratar durante longos anos.
– Custaria milhares de libras reclamar esta propriedade – disse o pai, devolvendo-lhe o velino. – Não vale a pena. Deixei estar. Quando herdar, pode reconsiderar,
mas penso que decidirá como eu decidi.
Era uma resposta inusitada por parte de um homem que não favorecia a ambiguidade em nenhuma questão, muito menos no que respeitava à honra de Highburton. Era ponderada
e provavelmente prudente do ponto de vista financeiro, mas desanimou Yates, que acalentara a esperança de que a contestação à propriedade se convertesse numa cruzada.
Passariam horas a afinar a estratégia e ele testemunharia a presença inesgotável de interesse e vivacidade naqueles olhos novamente.
– Abra um pouco a janela, Yates. Malditos médicos, preocupados que uma febre me leve. Que ridículo. Não fazem ideia de como é uma consolação e um tesouro sentir
o sol e a brisa. Talvez seja também uma preparação. Uma forma de nos chamar para casa.
Yates abriu a janela para a brisa entrar. O pai voltou o rosto e sorriu com um prazer interior.
– Conseguiu saber alguma coisa sobre aquelas joias? – perguntou, com uma voz meio adormecida.
– Um pouco. Mas não como saíram da caixa aqui de casa.
– Foram roubadas – disse o pai entre dentes. – Tenho a certeza. Não há mais nenhuma explicação possível. Que raio de situação. Quem diria?
O seu corpo afundou-se lentamente, à medida que o sono o furtava da atenção à postura.
Yates não saiu imediatamente. Ficou a usufruir também da brisa por um momento.
CAPÍTULO 8
Não há muito para um homem de sociedade fazer em Londres no mês de agosto. Especialmente quando procura distrair-se de um abatimento do espírito. Portanto, Yates
foi andar um bocado a pé depois de mais uma série de horas entre escrituras e contas. Nem um longo interregno a fazer música foi capaz de aplacar o estado de espírito
que tomara conta dele naquela tarde em que fora ver o pai.
Durante o passeio, permitiu-se demorar na memória do beijo a Cassandra Vernham. Perguntou-se como reagiria ela se ele a visitasse naquele momento. Àquela hora, não
haveria que enganar quanto ao teor da sua visita. Nada no assunto que tinham em comum obrigava a que se reunissem às onze horas da noite.
Queria acreditar que ela pelo menos debateria durante alguns minutos a possibilidade de o mandar embora antes de o concretizar, mas tinha a certeza de que não o
receberia. Ela correspondera aos beijos. Não era imune mas, como uma mulher do mundo que era, não se renderia imediatamente, se é que se renderia de todo.
Passou algum tempo a engendrar uma estratégia com aquele fim. Distraía-o de uma forma que a noite fria e o exercício não conseguiam. Sentindo-se mais ele próprio,
mas ainda precisado de algum convívio, enveredou em direção a uma casa na qual, sabia, alguns amigos estariam sem dúvida presentes.
Galgou os degraus do edifício com aquilo que poderia chamar-se «leveza no coração». Tinha aquele efeito num homem, contemplar a sedução de uma mulher encantadora.
Ainda a tinha bem presente na sua mente quando entrou na sala de visitas de Mrs. Burton que fazia as vezes de salão de jogos, discreto e frequentado pela elite.
Tanto que, quando a avistou perto de uma mesa, não se achou surpreendido. Então, lembrou-se que Cassandra Vernham não andava a jogar ultimamente. Esperou que a sua
demora em efetuar o pagamento dos brincos não a tivesse impelido a fazê-lo de novo.
Aproximou-se dela. Enquanto isso, admirou o vestido que trazia. O tecido levemente rosado e a saia estreita marcavam discretamente as curvas do seu corpo. As pestanas
pareciam muito grandes à luz das velas e os olhos eram lagos cor de safira observando a mesa.
Os outros clientes mexeram-se e ele pôde ver o duque de Penthurst de pé, do outro lado de Cassandra, também a ver o jogo de cartas. Com sorrisos pontuais, ela reconhecia
a presença de Sua Graça.
Vê-los juntos estragou-lhe a boa disposição. O nome de Cassandra nunca fora relacionado com o de Penthurst em nenhum sentido romântico, mas o julgamento que este
enfrentaria brevemente poderia representar uma alteração. Diabos, tanto quanto sabia, há séculos que ela podia ser amante de Penthurst.
Cassandra pôs-se muito sisuda e apertou o ombro da mulher que estava sentada à sua frente e que sacudiu a mão dela como se fosse um inseto. A mão de Cassandra recuou,
bastante decidida. A outra mulher girou a cabeça para se queixar.
Era Lydia, a irmã de Southwaite. Abandonara a postura habitual, distante e contemplativa. Na verdade, parecia meio tresloucada.
Ele conhecia aquele olhar. Só podia significar uma coisa num sítio como aqueles.
Cassandra desviou o olhar da desenfreada excitação da amiga. Viu-o. Em vez de fingir que ele não estava lá, fez uma expressão desesperada e chamou-o com um gesto.
Ela recuou assim que ele chegou, para não ficarem em cima de Lydia. Corpos preencheram o espaço, ocultando Penthurst.
– É sempre uma grande felicidade vê-la, Lady Cassandra. E maior felicidade ainda quando não se mostra incomodada pela minha presença.
– Por sinal, fico aliviada por o ver. Tem de me ajudar com a Lydia.
A presunçosa satisfação por ela recorrer a ele e não a Penthurst não anulou completamente o sombrio ressentimento que sentira ao ver os dois juntos.
– Lady Lydia parece estar a divertir-se. Espero que sim, visto que o irmão a encarcerará durante um ano se ficar a saber disto. Quanto a si, e ao facto de ser a
responsável por a arrastar para a ruína, não tenho a mínima ideia do que fará.
– Ela estava determinada. Ou a trazia para aqui ou ela ia pedir ao condutor de uma qualquer carruagem de aluguer que a levasse para um qualquer sítio onde pudesse
jogar e iria acabar no pior covil. Decidi que não podia ser assim tão mau, durante algumas horas. Vínhamos, ela perdia, desanimava e ficava por aí.
– Só que não ficou?
Cassandra mordeu o lábio inferior e pareceu-lhe deliciosamente desorientada.
– Nada correu de acordo com o que planeei. Para começar, tem estado a ganhar.
– Muito?
– Uma quantia absurda. Pelo menos setecentas libras até agora, mesmo com as apostas pequenas às quais eu insisto que ela se limite. Não consegue perder, Ambury.
Faz as escolhas mais estúpidas, joga mal e ganha. Até já a aconselhei deliberadamente de forma errada e, mesmo quando me dá ouvidos, continua a ganhar.
Da mesa, chegou-lhes um guincho. Os braços de Lydia ergueram-se no ar. Olhou por cima do ombro para Cassandra.
– Arrisquei um pouco mais desta vez.
O seu grande sorriso dizia que também aquela vez lhe tinha corrido bem.
– Está a ver o que eu quero dizer? Preciso de a tirar daqui antes que a sorte dela vire, pois receio que a queda seja mais acentuada do que a subida. Só que já lhe
dei sinal várias vezes e ela continua a ignorar-me.
– Era assim que jogava? Incapaz de desistir quando estava a perder?
Ela não apreciou a pergunta.
– Ela está inebriada. Eu nunca estive assim tão mal.
– Mas perdeu a sério, não perdeu? Talvez ela se revele mais disciplinada.
– Não perdi por falta de disciplina. Vai ajudar-me com ela ou não? O irmão dela é um bom amigo seu. Julgo que estaria a contar que a detivesse.
– Não fui eu que a iniciei na sala de jogo de Mrs. Burton, por isso não alegue que ela é da minha responsabilidade. Quanto a ajudá-la a si, o que propõe?
– Vá até lá, olhe para ela com gravidade e diga-lhe que está na hora de parar.
Ele desatou a rir.
– Isso iria detê-la a si se estivesse a ganhar centenas de libras?
– Claro que não. Mas a Lydia está habituada a obedecer às ordens do irmão e poderá obedecer-lhe, como substituto dele.
Naquele momento específico, Lydia não parecia ser uma mulher inclinada a obedecer a quem quer que fosse que interferisse com o seu triunfo. Yates chegou a desejar
que o irmão pudesse vê-la. Darius tinha a preocupação de que a irmã pudesse ter-se tornado distante e falha de emoção. Seria questionável, claro, se ele apreciaria
constatar o quão viva ela parecia estar naquele momento.
Yates contornou a mesa para observar Lydia de lado e conseguir atrair-lhe o olhar. Ela reluzia de orgulho, indicando os seus proveitos.
– Parece que sou esplêndida nisto, Ambury. Quem diria?
– Chama-se sorte, e vira facilmente. É sensato parar enquanto se ganha.
– Parece-me mais sensato aproveitar a maré de sorte enquanto ela nos favorece – replicou ela com uma gargalhada.
– Permita-me que lhe chame uma carruagem e que a leve a casa.
– Disparates! A noite ainda é uma criança e estou a divertir-me imenso. A casa de Mrs. Burton é muito mais divertida do que as festas a que a minha tia insiste que
eu vá.
Ambury olhou para Cassandra, que revirou os olhos. Esta regressou ao lugar que ocupara atrás de Lydia e apertou o ombro da amiga com firmeza.
– Está na hora de irmos. Estou muito cansada.
Lydia sacudiu a mão mais uma vez.
– Então vá, se tem mesmo de ir. Tenho a certeza de que ficarei em segurança.
Gesticulou ao dealer para que lhe desse mais uma carta.
O jogador que se encontrava ao lado de Lydia saiu nessa altura. Yates esperou para ver se Cassandra ocupava a cadeira. Mas foi um homem que, saindo do círculo de
espectadores, se sentou. Lydia não reparou nele, mas Yates sim. Assim como Cassandra. Assim como as outras três pessoas que estavam sentadas nas outras cadeiras.
Penthurst destacava-se dos outros pelas roupas e pela postura. A trança escura e comprida distinguia-o, assim como o colete de brocado, que era de longe mais rico
e mais antiquado do que as roupas que os outros homens traziam naquela noite. Aquelas marcas de distinção assentavam-lhe bem. Conseguia fazer os outros sentirem-se
deslocados. A sua postura dizia que nunca poderia ser o contrário.
Yates tinha de admirar o aprumo com que ele se apresentava. O aspeto antiquado era afetação, evidentemente. Uma forma de dizer que alguns homens eram escravos da
moda e das opiniões alheias, mas que os melhores dos melhores não se ocupavam de tais trivialidades.
O dealer fez uma vénia ao recém-chegado.
– Vossa senhoria.
Lydia voltou-se e deparou com o belo nobre cujo ombro roçara o seu. Sentiu-se corar.
O duque de Penthurst reconheceu o cumprimento do homem com um aceno quase implícito de cabeça. Dirigiu um outro a Lydia e demais jogadores. Por fim, os olhos castanho-claros
fixaram-se na mesa.
Jogou-se mais uma rodada. Lydia ganhou outra vez. Alegremente, recolheu os proveitos e colocou-os no saco.
– A sorte parece estar do seu lado esta noite – comentou Penthurst, com uma voz grave e tranquila que se ouviu surpreendentemente bem apesar do barulho da sala de
visitas.
– Assim parece.
– Não deve desperdiçar tão boa sorte em apostas pequenas como esta. – Gesticulou para o dealer. – Um baralho, se não se importa.
O dealer entregou ao duque um baralho de cartas e afastou-se. Não haveria mais vinte-e-um a partir daquele momento, ou assim parecia. Como se tivessem sido dispensados
por um rei, os outros jogadores deixaram as cadeiras.
Penthurst colocou o baralho à sua frente na mesa.
– Agrada-lhe o risco, Lady Lydia? Considera excitante, o jogo?
– Tanto quanto as outras pessoas, imagino.
– Tem quase oitocentas libras aí dentro. E se eu apostasse dez mil contra as suas oitocentas e tirássemos cartas à sorte? Aceitava a aposta?
– As minhas oitocentas contra as suas dez mil? Arrisca-se a perder muito mais do que terá a ganhar. É uma aposta muito peculiar.
– Parece-me que as suas oitocentas significam mais para si do que as minhas dez mil para mim, por isso o maior risco, assim como a maior emoção, continuam a ser
seus.
– Seria uma tolice da minha parte não aceitar a aposta, uma vez que poderei ganhar tanto dinheiro.
– É isso o que os jogadores pensam sempre. Contudo, preciso que arrisque algo além das oitocentas libras, para ganhar as minhas dez mil, para que ambos joguemos
por um prémio compensador.
Inclinou-se um pouco e voltou a falar, tão baixo que só Lydia poderia ouvi-lo.
Lydia franziu a testa ao escutá-lo, como se procurasse decifrar uma língua estrangeira. Depois arregalou os olhos. Olhou para ele, chocada. O velho distanciamento
tomou-lhe conta do semblante. Levantou-se abruptamente e afastou-se da mesa.
Cassandra ficou a vê-la partir e depois olhou para a mesa. Tudo o que Lydia ganhara continuava lá. Começou a recolher os proveitos.
Penthurst ajudou-a a guardar tudo na bolsa.
– A presença dela aqui foi obra sua, não foi? – perguntou ele.
– Acredite no que quiser, vossa senhoria, mas ela não é nenhuma criança e é capaz de tomar as suas próprias decisões.
Posto isto, Cassandra apressou-se a partir em busca da amiga.
Penthurst procurou Yates com o olhar.
– Ela vai deixá-lo levá-la a casa não tarda nada, Ambury. Seria bom dizer ao Southwaite que fique de olho nela. É uma mulher inquieta à procura de aventura e eu
consegui frustrar-lhe as intenções, durante umas duas semanas, na melhor das hipóteses.
– O que é que ele lhe disse? – inquiriu Cassandra.
– Não quero falar nisso. Bolas, deixei lá o dinheiro todo.
– Tenho-o aqui – anunciou Cassandra, batendo na bolsa.
Ressentia-se por Penthurst a culpar tão prontamente pelo comportamento de Lydia. Ambury também o fizera. Southwaite também o faria. Não era justo, pois a Lydia só
lhe faltara chantageá-la para que a acompanhasse.
– Estragou-me a noite e parece que veio para ficar – declarou Lydia. – Nunca gostei dele, mesmo quando era amigo do meu irmão. Sempre gostou de mandar em toda a
gente e falava comigo como se eu fosse uma criança.
– Foi isso que ele fez agora? Ralhou-lhe como se faz a uma criança?
Lydia ficou vermelha.
– Não.
Ambury abria caminho até elas, com uma expressão no rosto que anunciava a Cassandra que deveria ficar quieta até ele chegar.
– Vim a pé até cá – disse, quando as alcançou. – No entanto, disse à porta, ao lacaio, que chamasse uma carruagem. Vou acompanhá-las a casa.
– Não quero partir imediatamente – reclamou Lydia. – Se o fizer, o Penthurst vai julgar que me escorraçou e eu recuso-me a permiti-lo. Vou ficar a ver os jogos de
dados durante um bocado. E a seguir vou-me embora.
– Oh, Lydia, por favor...
– Não vou jogar, Cassandra. Prometo. Vou só ficar a ver.
Antes de Cassandra ou Ambury poderem protestar, Lydia arrancou convicta em direção à zona dos dados. No vinte-e-um, Penthurst viu-a passar.
– Damos-lhe um quarto de hora, a bem da preservação do seu orgulho, Ambury. Vou ter consigo às mesas nessa altura. Depois disso, arrasto-a pelos cabelos se tiver
de ser – concluiu Cassandra.
Pediu licença e retirou-se, em busca de menos barulho e um pouco de ar fresco. A multidão que ocupava a sala de Mrs. Burton aquecera o ambiente de forma desagradável.
Tentou a biblioteca, mas deparou com um núcleo de senhoras na bisbilhotice. Encontrou uma saleta que estava deserta. Abriu a janela e subiu o cabelo para arrefecer
o pescoço.
Uma mão segurou-lhe nos caracóis. A segunda retirou-lhe o leque da mão. Sentia uma brisa maravilhosa no pescoço, graças ao leque que abanava atrás de si.
– Podíamos descer à varanda – sugeriu Ambury. – Está muito agradável lá fora.
– Não sou tonta ao ponto de me enfiar numa varanda escura consigo.
Estar sozinha com ele naquela saleta também não era mais inteligente. Conseguia ouvir o burburinho das mulheres entregues à coscuvilhice na biblioteca próxima.
– Tem receio de que volte a beijá-la?
Ela voltou-se para ele. Pegou no leque.
– Você não me assusta.
– Minimamente? Não me faça tamanha ofensa.
Ele tratara aquilo com humor, mas o luar mostrava-lhe que não acreditava nela. Nem ela dizia a verdade. Os beijos dele tinham sido tentadores e ela corria o grande
risco de fazer algo estúpido se voltasse a permiti-los. Pior, ele assustava-a por razões que nada tinham a ver com beijos ou com prazer.
Ele estava a tramar alguma coisa com aqueles brincos. Tinha quase a certeza disso. Começara a suspeitar de que a informação era o que verdadeiramente lhe importava,
e que não se importava de todo com as joias.
– A minha tia e eu partimos em breve para o estrangeiro – disse ela, procurando novamente a janela. – Ela considera que o Continente está demasiado instável. Propus-lhe
a América. O que lhe parece?
– Parece-me que não será feliz em nenhum dos dois.
A voz dele surgiu mesmo por trás. Tinha a cabeça a um milímetro da sua. Ela sentiu-o ali, muito próximo de si, contemplando, como ela, a cidade banhada pelo luar.
– Já estive no Continente e fui bastante feliz. Fui para lá com a minha tia a seguir à minha primeira temporada.
Fora depois de se ter recusado a casar com Lakewood. O lamentável episódio causaria tanto escândalo que não haveria uma segunda temporada. Não havia razão para ficar
em Inglaterra, portanto viajara com Sophie para Viena e São Petersburgo, e outras capitais. Quando voltara, era uma mulher e já não uma rapariga. Uma mulher do mundo,
como a apelidara Ambury.
– Foi temporário – replicou ele. – Não foi para sempre.
– Estivemos fora durante três anos. Tenho experiência em conhecer pessoas novas e criar raízes rapidamente, portanto esta viagem, muito mais longa, não me assusta.
Preocupa-me, porém, que a minha tia ache a América demasiado diferente. Demasiado rústica.
– Dizem que as cidades não são assim tão diferentes. De qualquer forma, iria para a América sem conhecer ninguém. Ficaria longe dos seus amigos e da sua família
para sempre.
– Talvez seja bom.
Teria saudades de Emma, e de Lydia, e de mais algumas pessoas, claro. Da mãe também, mas era um laço que perdera grande força nos últimos anos e, depois daquela
noite, Southwaite poderia decretar que Emma e Lydia deixariam de fazer parte das relações dela.
– Porque me diz que está de partida? É essa, supostamente, a razão pela qual não me permite beijá-la?
Brincava, mais uma vez, mas ela notou um toque de seriedade na pergunta.
Estou a dizer-lhe isto para que deixe a minha tia em paz, se julga que ela fez alguma coisa de mal. Tenho esperança de que, sabendo que a minha tia vai partir, deixe
de se importar com o que quer que seja que ela possa ter feito. Desejou poder dizer aquilo. Só que ele não dera qualquer indicação de que julgava que a tia Sophie
tivesse feito alguma coisa de mal. Era ela a única que se preocupava com aquela possibilidade.
Uma mão levantou-lhe os caracóis, fazendo-a sobressaltar-se. Novamente uma aragem a roçar-lhe o pescoço. Quente, de hálito humano. Uma leve pressão, firme mas igualmente
suave, deixou-a tensa. O beijo dele desencadeou arrepios que lhe desceram em arabescos pelo corpo. Ínfimos prazeres tentadores acordaram a sua sensualidade.
Fechou os olhos para notar cada estímulo e o resultado que produzia em si. O beijo afetuoso no pescoço que lhe tirou o fôlego, os seios que se intumesceram quando
a boca dele passou ao ombro. Aquela languidez era muito tentadora, mas nunca seria apenas uma questão de prazer com aquele homem.
– Surpreende-me, Ambury. Não é o tipo de homem que corteje uma mulher que não lhe desperta o interesse. Sacrifica-se, a bem de me tornar influenciável, por algum
motivo?
As mãos dele pousaram nos ombros dela, descendo-lhe numa carícia pelos braços.
– Se julga que não a desejo, está muito enganada.
Soprou-lhe aquilo ao ouvido e sentir a respiração dele, fê-la suster a sua.
– Eu disse que não se interessa por mim, não que não me deseja. Todos os homens desejam todas as mulheres, se formos ao cerne da questão.
– Não desta forma. Há anos que a desejo.
Aquilo tocou-a, embora não devesse permiti-lo. No mais profundo de si, a sua essência tremeu. Seria bom se fosse verdade. Comoveu-a que alguém pudesse ter pensado
nela nos últimos anos por outro motivo que não a parvoíce das más-línguas.
Voltou-se, por receio de se render completamente. Só que assim, ficou cara a cara com ele, à luz do luar, muito próxima. Ele estava insuportavelmente belo. Ela queria
desesperadamente acreditar que ele não desejava apenas divertir-se com ela, nem manipulá-la ou simplesmente fazer dela mais uma conquista, mas não se atrevia.
– Anos? Demorou um tempo descomunal para me dizer. Não lhe é reconhecida timidez nos seus avanços, pelo que me parece muito estranho. – Ergueu o queixo e fitou-o
diretamente nos olhos. – Sente liberdade para agir agora por ele estar morto? Ou porque decidiu que sou de facto uma mulher do mundo e que estaria inclinada a permiti-lo?
Contava que a provocação o fizesse recuar. Que o irritasse. Que lhe recordasse a razão pela qual ela tinha a reputação que tinha e ele a evitava há seis anos. Uma
nova profundidade intensificou-lhe o olhar e ela preparou-se para a desistência dele.
Em vez disso, para choque de Cassandra, ele tomou-lhe o rosto entre as mãos. Roçou os lábios nos dela.
– Incitou-me a passar à ação com a conversa de sair de Inglaterra. Se não for agora, posso não voltar a ter oportunidade de o fazer. – Beijou-a novamente. – E o
arrependimento perseguir-me-ia até à sepultura.
Que despropósito. Ainda assim, permitiu que ele a beijasse mais uma vez e saboreou a agradável titilação mais do que deveria. Então, cobriu as mãos dele com as suas
e tirou-as de cima do rosto.
– Devo procurar a Lydia para a levar para casa – disse.
Ele parecia inclinado a não a deixar partir. Ela acalentou a esperança de que não o fizesse. Hesitando, ele afastou-se. Ela saiu sozinha da saleta, discreta e silenciosa,
sem ser notada. Quando entrou na sala de visitas, ele encontrava-se a uma distância discreta.
– Abra a bolsa – disse Cassandra a Lydia. – Preciso de transferir o dinheiro da minha para a sua.
– Guarde-o. Não o quero.
Cassandra ficou especada a olhar para o perfil obscurecido de Lydia, apesar do luar que entrava pelas janelas da carruagem. Depois de tudo o que acontecera naquela
noite, aquela indiferença de Lydia ao dinheiro pôs à prova a sua paciência.
– Não posso aceitar. Agora, abra a bolsa!
Lydia olhava pela janela. O distanciamento que se abatera sobre ela na mesa do vinte-e-um não dispersara.
Cassandra não estava com paciência para a aturar. Tirou-lhe a bolsa e entregou-a a Ambury, sentando-se no banco à frente deste.
– Abra-me isto, por favor.
Os dois terminaram de transferir os proveitos da noite da bolsa de Cassandra para a bolsa da legítima proprietária no momento exato em que a carruagem parou diante
da casa de Southwaite.
Ambury saltou e ajudou Lydia a sair.
– Levo-a à porta. Se o Southwaite descobrir, dizemos-lhe que nos encontrámos na mesma festa.
– Ele não vai descobrir. Os criados não irão denunciar-me e o meu irmão há horas que está na cama. É só o que faz à noite. Ir para a cama com a Emma. – Voltou-se
para Cassandra. – Julgo que ele é insaciável. É comum?
– Inicialmente, penso que talvez sim – informou Cassandra pela janela.
– Não me parece que fosse gostar de um marido insaciável – declarou Lydia, abanando a cabeça. – Pobre Emma.
Não era tanto a conversa em si que deixava Yates desconfortável, mas sim o marido alvo dos comentários, e as senhoras que os faziam.
Assim que Lydia ficou entregue, regressou à carruagem, onde Cassandra o observava pela janela. Quando fez menção de abrir a porta, ela deu-lhe uma pequena pancada
nos dedos com o leque, detendo-o.
– Permito-lhe que volte a entrar se prometer mostrar bom comportamento.
Ele apoiou-se na janela.
– Como deseja que eu me porte?
– Você sabe o que estou a dizer. Tem sido demasiado atrevido.
– Ai tenho? Pensei que era sofisticada de mais para se entregar a cortes longas e palavras vazias. Presumi que vivia como a sua tia, liberta de preocupações com
as opiniões dos outros e aberta a experiências que tornam os avanços que fiz até agora quase inocentes. Se errei, então será simplesmente uma mulher temerária, necessitada
apenas de uma mão firme.
Com aquilo, contava receber dela uma réplica bem-humorada ou total exasperação. Em vez disso, Cassandra limitou-se a olhar para ele, com olhos inexpressivos.
– Uma mão firme?
Disse-o de forma curiosa, como se nunca antes tivesse ouvido aquele som.
– Foi o meu irmão que o convenceu a fazer isto, Ambury?
A pergunta deixou-o desconcertado. Aproveitando a desvantagem, ela esticou o braço e bateu com o leque na parte de fora da carruagem.
O condutor estalou as rédeas. Partiram, deixando Yates regressar sozinho a casa.
CAPÍTULO 9
Yates entrou no Brooks’s e analisou os grupos constituídos. À esquerda, Pitt dissertava com voz grave para uma assembleia de ministros e pares do reino de expressões
arrebatadas. Procedia-se, presumivelmente, à dissecação da guerra com a França, ou talvez da situação na Irlanda.
Um dos indivíduos desviou o olhar do primeiro-ministro. Penthurst reparou na chegada de Yates e inclinou muito ligeiramente a cabeça. Este seguiu instintivamente
a direção indicada e deparou com Kendale e Southwaite sentados a vários metros de distância.
– Fico surpreendido por o ver – disse Yates a Southwaite, ocupando uma cadeira ao lado deles. – Tinha ouvido dizer que regressara à cidade, mas o dever não requer
a sua presença nos clubes habituais.
– Retomo os hábitos quotidianos por insistência da minha mulher.
– Anda a abusar da generosidade dela na cama, julgo eu – avançou Kendale. – No entanto, não tem dito grande coisa desde que chegou, por isso julgo que ficou com
a cabeça no sítio onde o corpo não pôde ficar.
– Não andei a abusar da generosidade de ninguém – declarou o outro, sem deixar margem para dúvidas. – No entanto, o resto das suspeitas confirma-se. Como é que sabia?
– Foi esse seu sorriso de satisfação que o denunciou – disse Kendale.
– Todos nós ansiamos pelo dia em que o veremos sorrir assim, Kendale – rematou Yates.
Na verdade, todos ansiavam por ver Kendale sorrir mais do que uma vez por semana. Antes do desaparecimento prematuro do irmão mais velho, Kendale servira no exército,
como era comum entre os filhos segundos do pariato. Só que, em vez de um jovial regimento de Horse Guards, insistira numa missão na frente da batalha. Acabou o tempo
de serviço muito mais sério do que quando iniciara.
– Esperem sentados. Não tenho uma pinga de sangue romântico no corpo e nunca ficarei tão inebriado por uma mulher como aqui o nosso amigo está pela dele.
Southwaite ergueu o copo de brandy num brinde.
– Que possa nunca se perder de amores, pois a queda será tão grande que fará estremecer a terra.
– Oh, vai perder-se – declarou Yates. – É demasiado orgulhoso para atentar aos nossos exemplos e praticar as habilidades necessárias a um homem determinado a permanecer
livre.
– Que belos exemplos me saíram, que tão bem lhe serviram – devolveu Kendale, espetando o polegar na direção de Southwaite.
– Ele não foi apanhado desprevenido, como você será. Na próxima temporada, uma doce rapariga, com a conivência da sua perspicaz progenitora, deixá-lo-á completamente
de rastos. Só perceberá o que lhe aconteceu quando já não puder fazer mais nada.
– Está louco! – murmurou Kendale. – Mas sinta-se à vontade para continuar. Ao contrário dele, você até tem graça.
– Ele está a aborrecê-lo? Southwaite, porque não segue o rumo dos seus pensamentos e vai para casa? Tem toda a vida para retomar os seus hábitos e, com toda a probabilidade,
apenas mais uma ou duas semanas de apaixonado interesse por parte da sua jovem mulher.
Southwaite franziu a testa.
– Se alguém sabe da razão que me trouxe aqui é você, Ambury.
– Sei?
– Já se esqueceu do mensageiro que me enviou? Disse que queria falar-me de um assunto pessoal muito importante. Parecia urgente. Sabia que poderia encontrá-lo aqui
hoje à noite. – Juntou as mãos e aguardou. – Espero bem que valha a pena, especialmente depois do aviso sobre as duas semanas.
Yates não enviara mensageiro nenhum. Julgava saber quem o tinha feito, porém. Voltou-se, procurando Penthurst, que dizia algo a Pitt e ao grupo deste.
Era mesmo próprio daquele homem dar uma ordem e a seguir tomar providências para se certificar de que era cumprida.
– Pode considerar que, com o que tenho para lhe dizer, interfiro em algo que não me diz respeito. Pensei duas vezes se deveria fazê-lo. Três, na verdade.
A sobriedade de Southwaite transformou-se em preocupação.
– Basta tê-lo inquietado uma vez para ser melhor dizer-me. Sei que não é próprio de si ser leviano com assuntos destes.
Kendale observava com manifesto interesse. A expressão de Southwaite deixava bem claro que não seria possível recuar.
– Tem a ver com a sua irmã. Estava em casa de Mrs. Burton. Uma destas noites. A jogar.
Kendale assobiou por entre os dentes.
Southwaite fechou os olhos.
– Quanto é que ela perdeu?
– Nada. Ganhou.
Os olhos de Southwaite abriram-se.
– Ganhou?
– Setecentas libras, julgo eu. Pelo menos.
– E isso são más notícias? – perguntou Kendale. – Por favor dê-me umas assim más amanhã, Ambury.
– Na próxima vez, pode não ganhar – cortou Yates. – Estava ébria de entusiasmo, também. – Pigarreou. – Pelo menos um dos presentes comentou comigo que ela andava
à procura de aventura. Considerei a descrição ajustada e pareceu-me que devia informá-lo.
– Ainda bem que o fez. Isso tem de parar, claro. Cortar-se o mal pela raiz. Embora, confesso, tivesse gostado de a ver animada com alguma coisa. Com qualquer coisa.
– Southwaite abanou a cabeça. – Levou-a, para ela ter alguém que velasse por ela? Se assim foi, tem a minha gratidão.
– Encontrei-a lá. Levei-a a casa, contudo.
– Por favor diga-me que ela não foi imprudente ao ponto de ir para lá sozinha.
– Não, não me parece.
– Levou-a um homem? Quem é ele? Dê-me o nome do canalha. Juro que...
– Foi com outra mulher, julgo eu.
Bastaram três segundos, não mais, para tanto Southwaite como Kendale adivinharem quem tinha sido a mulher.
Kendale olhou para ele com um olhar de «eu bem lhe disse». Southwaite fechou os olhos, procurando novamente apaziguar-se.
– Obrigado, Ambury. Tratarei imediatamente disto.
– Como? – perguntou Kendale. – Deixa a sua mulher ser amiga daquela mulher. Como é que explica à sua irmã que ela não pode sê-lo?
A lógica inegável da pergunta ficou a pairar no ar. Southwaite franziu a testa enquanto todos se dedicaram a destrinçar o imbróglio. Beberam mais brandy para olear
a engrenagem.
– Só há uma solução que se me afigura – avançou Kendale. – Se não vai proibir ambas de manter a amizade com Cassandra Vernham...
– Se o fizer, vão ser os quinze dias de prazer mais curtos que algum homem terá vivido – discorreu Yates.
– E não vai permitir que a sua irmã seja amiga de uma mulher com a reputação dela...
– Não se trata apenas disso – interrompeu Southwaite.
– Não temos a certeza de nada. Suspeitamos de que esteja na base daquele duelo – prosseguiu Yates. – Mas ainda que tenha estado, a questão da equidade mantém-se,
em relação à sua mulher.
– Suponho que assim seja, por um lado.
– Como eu estava a dizer, se essas duas hipóteses estão fora de questão, só existe mais uma. Tenho tanta antipatia por essa mulher que hesito em assinalá-la, mas
é necessário encontrar uma forma de reabilitar a reputação de Lady Cassandra, para que a amizade dela não se reflita de forma negativa na sua irmã nem na sua mulher.
– Kendale, a sua visão do mundo é deliciosamente simples, se bem que algo desorientada – declarou Yates.
– Eu julgo que ele está a raciocinar bem – declarou Southwaite. – Ainda há alguma esperança para ela. Não foi completamente ostracizada pela alta sociedade. Há pessoas
que a recebem e a convidam para festas. Quem pode dizer que aqueles rumores são verdadeiros? No geral, não têm passado de alusões a possíveis ligações com homens
não identificados. Basta-lhe casar e...
– Tenho a certeza de que a família já lhe apresentou essa possibilidade vezes suficientes, sem sucesso.
O cérebro de Southwaite continuou a trabalhar.
– Esse seria o caminho mais fácil, mas não é a única possibilidade. Estou a ter uma ideia. Mas preciso de falar com a Emma. –Ergueu-se. – Julgo que vou para casa
discutir a situação com ela.
Penthurst reparou em Southwaite quando este saiu. Dirigiu um olhar a Yates. Um breve aceno de cabeça reconhecia que o dever estava cumprido.
– Ele não tem nenhuma ideia para debater com a mulher – comentou Kendale. – Só quer voltar a enfiar-se na cama.
– Tem razão e não tem. Ele precisa de abordar um assunto delicado com a noiva. As conversas com as mulheres correm sempre melhor depois de um momento de prazer.
Pense nisto como mais uma sábia informação que deve ter em conta, caso venha a chegar o dia em que se digne cortejar alguma.
*
Cassandra recebeu a carta no dia seguinte, com o correio do meio da manhã. «Venha ter comigo a Hyde Park à uma hora. Emma.» Parecia ter sido escrevinhada à pressa
e a caligrafia transmitia urgência. Preocupada, Cassandra vestiu-se e preparou-se para obedecer.
Deparou com Emma a andar de um lado para o outro, mesmo junto à entrada do canto.
– O que a deixou tão perturbada? – perguntou. – As joias de Marielle não vão ser entregues à Fairbourne’s?
– As joias? Deus me livre... não é disso que quero falar. Preciso de conversar sobre um assunto completamente diferente.
Cassandra entrelaçou o braço no de Emma e começou a andar.
– De qualquer forma, vai fazer um leilão em setembro?
– Estou a contar com isso.
– Que bom. Poderei ter um outro lote para levar.
– Ótimo – murmurou Emma.
– A sua cabeça está noutro lado, vejo. O seu irmão está pior?
– Tem saúde e condições para sair da cidade e andar aos tiros no Yorkshire. Comporta-se como se a Fairbourne’s se gerisse a si própria.
Fez um gesto de reprovação, rejeitando o tópico.
– É melhor ele não estar do que estorvar. Tampouco me importa quando volta. Já tenho com que me preocupar, sem me pôr agora a pensar no rumo que ele toma ou no mérito
que tem.
– O que é que a pôs nesse estado, então?
– Vai rir-se quando ouvir. Não lhe vai parecer nada de dramático. O Darius sugeriu que déssemos um jantar. – Olhou Cassandra com atenção e continuou: – Nunca dei
uma festa para a alta sociedade. Nem a festa será apenas para amigos. Ele quer receber alguns lordes que estão na cidade, assim como as mulheres deles, e as tias
dele, e... – desabafou, baixando os braços num gesto de impotência.
– Não passou muito tempo desde o vosso casamento.
– Foi o que pensei!
– Há muito pouco para fazer em sociedade nesta altura, por isso tenho a certeza de que o jantar será bem-vindo.
– Foi isso que ele disse.
– Não deixam de ser preocupações acrescidas.
– Também foi o que pensei.
– Por outro lado, se adiar, poderá entretanto ficar grávida, o que só vem tornar a tarefa mais onerosa.
– Foram exatamente as palavras dele.
Cassandra riu-se.
– A Emma pensou muito, mas foi ele quem disse tudo. Não é muito de si, reservar as suas opiniões.
– Foi sobretudo depois de ele falar que eu pensei. Uma hora depois, tinha os argumentos todos alinhados, mas já era tarde de mais.
– Ele começou a querer mandar em si, como se fosse seu dono e senhor? Foi isso que não a deixou pensar devidamente?
Southwaite tinha tendência para decretar ordens e presumir que detinha a melhor resposta para todas as coisas. Cassandra acalentava a esperança de que ele conseguisse
controlar-se durante pelo menos um ano, para Emma ter tempo de se preparar para lhe responder na mesma moeda.
– Por assim dizer, mas não é o que pensa.
Emma ficou muito vermelha, e não era mulher de corar facilmente.
– Foi muito cuidadoso a apresentar a ideia. Encantador, mesmo. O momento que escolheu para a abordar, porém... deixou-me em desvantagem.
– E não estava capaz de pensar devidamente, pareceu-me ouvi-la dizer.
– Sim.
– Tinha a cabeça ocupada.
– Exatamente.
– Posso então presumir que se sentia inclinada a acreditar que o mundo é um sítio feliz e luminoso quando o assunto foi abordado?
Emma anuiu.
– E foi grande a desvantagem que ele tratou de estabelecer?
– Bastante grande.
O patife.
– Terei todo o prazer em a ajudar, se é esta a razão que a levou a procurar-me. Com a ajuda dos seus criados, acredite que não será tão complicado como pode parecer-lhe
agora. Contudo, tem de lhes dizer para começarem a limpar imediatamente. No verão, as janelas abertas deixam entrar muito pó.
– Obrigada. Fico grata pela sua ajuda e aconselhamento. No entanto, não é esta a razão que me levou a pedir-lhe para nos encontrarmos hoje.
Emma parou de andar. Cassandra preparou-se para ouvir a verdadeira razão que as levara a encontrarem-se. Provavelmente Southwaite ficara a saber da passagem de Lydia
pelo salão de Mrs. Burton e encarregara Emma de dizer a Cassandra para cortar com a amizade.
– A Cassandra será convidada – declarou Emma. – Queria que soubesse. Ele não só acedeu a permitir a nossa amizade como também decidiu recebê-la de forma adequada
daqui em diante.
Foi uma notícia bastante inesperada.
– Fico sensibilizada. E muito aliviada por nós as duas, mas sobretudo por mim.
– Quer dizer que irá, então? Fico felicíssima. A sua tia tem de ir, também. O Darius fez muita questão disso.
– Parece-me pouco provável que a minha tia vá.
– Pode convencê-la? O Darius deseja que faça companhia às tias dele. Por favor tente convencê-la. Só desta vez.
– Vou tentar, mas duvido das minhas possibilidades de sucesso. Quando terá lugar o ilustre acontecimento?
– Daqui a cinco dias. O secretário do Darius está a enviar os convites neste momento.
– Não me dá muito tempo para a convencer.
– Provavelmente seria melhor se ela aceitasse. Ainda há uma parte que não lhe contei.
Cassandra detetou uma ponta de receio na voz da amiga.
– Não vou gostar nada desta parte, pois não? Fale à vontade Emma, tal como se orgulha de fazer.
– A lista de convidados ficou muito maior depois de o Darius acrescentar os dele. Há uma pessoa que, receio, não gostará de encontrar.
A memória dos beijos que recebera no pescoço e nos ombros tornou-se prontamente real, assim como a voz lânguida ao seu ouvido.
– Deve estar a referir-se ao Ambury. Não se incomode com isso. Não sou tão influenciável como ele possa pensar.
– O Ambury? Porque é que ele vem ao caso? Refiro-me a alguém que lhe é muito mais avesso do que ele. O Darius vai convidar o seu irmão para o jantar.
– O Gerald? – Não eram boas notícias. – Vai ficar mais desagradado por me ver no jantar do que eu a ele. Continua a esperar que a sociedade trate de me empurrar
para as margens.
– É por essa razão que tem de vir. Parece-me que o Darius pretende dar-lhe espaço para abandonar as margens. Acredito que espera proporcionar-lhe uma oportunidade
para resgatar um lugar que não aquele que lhe é destinado pelos pasquins.
Seria aquele o objetivo de Southwaite? Se assim fosse, era o bem de Emma que ele procurava. Tendo Cassandra uma reputação menos duvidosa, a amizade de Emma seria
menos embaraçosa. E a de Lydia também.
Cassandra tinha dificuldade em acreditar que Southwaite montava um qualquer esquema para resgatar a sua reputação, mas não deixava de ser um resultado possível,
do que quer que fosse que ele andasse a engendrar.
Aquela possibilidade revelava-se ser-lhe mais cara do que ela julgaria. Ficara a saber o preço de se manter fiel a si própria quando recusara Lakewood seis anos
atrás. Era sem queixas que o pagava. Acostumara-se a ser alimento para a voragem dos rumores e desenvolvera até um certo orgulho em se bastar a si própria, certa
de saber quem era, independentemente do que os outros pudessem pensar. Agora, porém, que a possibilidade de salvação cintilava no horizonte, admitia sentir-se cansada
de carregar o peso daquela reputação exagerada.
– Eu consigo lidar com o Gerald, Emma. Há anos que o faço. Não deve inquietar-se por estarmos os dois presentes.
– É um alívio ouvi-la dizer isso, Cassandra. Tenho estado angustiada desde que vi a lista, a seguir ao pequeno-almoço.
Entrelaçou o braço no de Cassandra e as duas retomaram a marcha.
– Agora, antes de me ir embora, tem de me explicar o que tinha em mente quando disse que o Ambury a julgava... Que palavra é que usou mesmo? – Olhou para a amiga
com alguma malícia. – Estou a lembrar-me: influenciável.
– Não me lembro de qual foi o penhorista, querida. Foi há muitos anos.
A tia Sophie deu imediatamente por concluída a resposta, dedicando-se então a observar da cadeira onde estava sentada, perto da banca da cozinha, a azáfama da cozinheira.
– Um pouco mais de sal, signora.
A Signora Paolini, mulher muito magra de olhos de lince, a cozinheira que Sophie trouxera de Nápoles no regresso de uma das suas visitas, continuava de costas voltadas
para a senhora da casa. Tirou uma pitada de sal e atirou-a para a sopa com um gesto muito elucidativo sobre a opinião que tinha da ordem dada.
– Era importante para mim que se tentasse lembrar, ainda assim – declarou Cassandra.
– Está muito curiosa acerca desses brincos, agora que os vendeu, apesar de não mostrar interesse nenhum quando estavam na sua posse.
Cassandra ponderou se deveria explicar a razão de todo aquele interesse, agora. Sophie iria ser compreensiva ou sentir-se insultada? Era improvável que as implicações
das suspeitas de Ambury escapassem a Sophie.
Decidiu admitir uma parte.
– A pessoa que os comprou no leilão está curiosa sobre a história deles. São antigos, não há dúvida. Penso que se espera que pertençam às joias da coroa de algum
país que tenha visitado.
A última não era propriamente uma mentira. Não. Muito bem, era, mas fazia-o pelas melhores razões.
– Vai ter de a dissuadir desse tipo de especulações – disse Sophie esticando-se para ver o que a signora fazia no fogão. – Nunca daria as joias da coroa que me foram
presenteadas pela realeza.
– Ainda as tem consigo ou estão entre aquelas que me deu?
– Não tape o coelho ainda, signora. Vai guisar em vez de alourar como deve ser.
Virou-se novamente para Cassandra.
– As melhores foram devolvidas recentemente. Lembra-se da primavera passada, quando devolvi o colar do Alexis ao agente que ele enviou. Pode haver ainda uma peça
ou duas das coleções de países pequenos.
Alexis enviara o agente a Inglaterra para leiloar uma coleção de arte. A Fairbourne’s efetuara o serviço, para triunfo de Emma. O agente, Herr Werner, fora o único
visitante que Sophie recebera durante o ano inteiro, e é certo que Cassandra tivera de retirar um item dos lotes que destinara ao leilão, para Sophie poder devolvê-lo
a ele.
– E sobre o tal penhorista...
– A sério, querida, na minha idade, a cabeça começa a livrar-se dos pormenores insignificantes. Mesmo assim, vou tentar recordar-me – cedeu, fechando os olhos. –
Deixe-me ver... Consigo lembrar-me de sensações, mais do que nomes ou edifícios. Parece - e, tenho quase a certeza, de que o estabelecimento do penhorista ficava
a poucas portas da Strand. Nessa altura, a porta da loja era azul. Tenho a certeza de que era azul.
Abriu os olhos e sacudiu os ombros para descontrair.
– É tudo de que consigo lembrar-me. Diga ao comprador para cravar outra vez as joias se está preocupado com a história delas.
Sophie levantou-se e foi até ao fogão. Espreitou a panela da sopa e a seguir o coelho que crepitava na caçarola. A Signora Paolini aguardava que a inspeção diária
terminasse. Agarrou numa colher de pau como se não se importasse de a usar para outro propósito que não a cozinha.
– Venha, Cassandra, deixemos a signora à sua arte. É melhor não interferirmos.
Quando subia a escada atrás da tia, Cassandra espreitou para trás. Signora abanava a colher na direção delas.
– Todos os dias interfere, tia Sophie. Devia deixá-la em paz. A senhora não é cozinheira – comentou, quando se instalaram na biblioteca.
– Seria uma desfaçatez. Ela depende das minhas idas lá a baixo. Sou a única amiga que a signora tem. Mas agora quero dizer-lhe que aconteceu uma coisa estranhíssima.
Recebi um convite para uma festa, da parte de Lord e Lady Southwaite. Nem sequer sabia que existia uma Lady Southwaite. Quem será que baixou a crista àquele orgulhoso?
Graças a Deus que Gerald não estava presente.
– É a minha amiga Emma. Lembra-se... Fui ao casamento há duas semanas e estive fora durante vários dias.
– Aquele no Kent? A filha do Fairbourne? Porque não me disse que ela ia casar-se com o Southwaite? Então ele casou-se com a filha de um comerciante? Muito bem...
Imagino que a tenha engravidado e decidido portar-se com nobreza.
– Ela ainda não está grávida.
– Um casamento por amor? Que estranho que o mundo ficou, quando um homem desses se casa com uma mulheres dessas só por amor. Na minha altura fazia-se de forma muito
diferente.
– Eu também fui convidada. Podemos ir juntas.
– Não me parece.
– O Gerald vai lá estar, julgo eu. Se viesse e ficasse evidente para todos que está ótima, se aparecesse em público e todos os presentes pudessem testemunhar a sua
boa saúde, ele teria mais dificuldade em tentar concretizar as ameaças dele.
Sophie ponderou consideravelmente aquela afirmação. Pelo menos Cassandra esperava que fosse isso o que a preocupava, ali sentada no divã, a olhar para coisa nenhuma.
– O que diz é verdade, Cassandra. Esta festa seria uma oportunidade de colocar o Gerald no lugar dele. Eu podia ir, mostrar-me inteligente e espirituosa, e ele teria
de retirar imediatamente as ameaças que fez e de parar de insinuar que o meu juízo anda a falhar.
– Então vem? Também será uma espécie de ressurreição para mim, e confesso que vou sentir-me melhor se for.
Sophie deu uma palmadinha no divã, ao seu lado. Cassandra foi sentar-se ao lado da tia.
– Julgo que é melhor a menina ir sozinha. É perfeitamente possível que conseguisse conquistar a minha absolvição. Quero pensar que sim. Contudo, vamos ser honestas
e admitir que pode correr de maneira muito diferente.
Pegou na mão de Cassandra e segurou-a na sua.
– Não finja que não reparou. Se eu for, sabemos ambas que estarei a brincar com o fogo. E em vez de mostrar que o seu irmão está errado, posso dizer alguma coisa
que lhe dê, e ao mundo inteiro, a prova de que tem razão.
Cassandra agarrou na mão da tia e confessou:
– Reparei um bocadinho. Não muito.
– É só um bocadinho. Não é muito. Mas é o bastante para cumprir os propósitos dele.
Sophie esticou o braço e afastou um caracol do rosto de Cassandra num gesto maternal.
– Basta uma memória, um cheiro ou até um objeto. De repente, o passado é real de formas que não deveria. As memórias tentam levar-me a melhor. Nunca me esqueci de
onde estou. Tenho estado consciente de tudo. Mas é como se as barreiras se derrubassem e o tempo circulasse em ambas as direções sem limites.
– Seguramente que é normal. Se tem consciência do que está a acontecer, e continua a ter uma âncora no presente, o que é que interessa que se deixe transportar para
o passado?
– Imagino que ninguém se importe muito, na maior parte dos casos.
Só que a tia Sophie não era um caso qualquer.
– É por culpa minha que ele anda a fazer isto – disse Cassandra tentando preservar a compostura frágil à custa da expressão veemente da raiva. As lágrimas que engolia
queimavam-lhe a garganta. – Não vou deixá-lo conseguir o que quer.
Abraçou a tia.
– Vai ver. Vou tomar conta de si tal como tomou conta de mim. Terá toda a segurança e toda a liberdade. Custe o que custar, eu própria me certificarei disso.
A tia não resistiu ao abraço, nem tentou de forma nenhuma corresponder-lhe. No entanto, a cabeça dela deixou-se pousar no ombro de Cassandra e a mão não deixou a
da sobrinha.
CAPÍTULO 10
Cassandra vasculhava as joias que a tia Sophie lhe dera, procurando um colar discreto mas belo que não tivesse bilhetinhos a avisar que não devia ser alardeado em
Londres. Decidiu que uma corrente simples de ouro, de onde pendia um grupo de pequenas pérolas, serviria, especialmente porque as restrições à sua utilização se
concentravam em São Petersburgo.
A criada apertou-o de forma que as pérolas povoassem a pele exposta pelo decote do vestido azul. Um turbante estampado a azul, dourado e vermelho, amarrado ao estilo
largo e artístico privilegiado no Continente, dava ao conjunto que escolhera um toque dramático. Olhou a imagem no espelho e esperou que a sua aparência refletisse
naquela noite a determinação que sentia em cooperar, mas até certo ponto.
Merriweather surgiu no espelho de repente, imprimindo com a touca uma mancha branca berrante acima da profundidade exótica do turbante.
– Uma visita, senhora.
Cassandra pegou no cartão e no bilhete correspondente.
Permita-me acompanhá-la, a si e à sua tia, para as duas não entrarem na cova do leão sozinhas e desprotegidas. Ambury.
Teria decidido aparecer em sua casa por capricho, a caminho do jantar? Era contra as regras alguém surgir assim e oferecer boleia em cima da hora.
Claro, ela também não seguia as regras e talvez por isso ele tenha considerado supérfluo fazer cerimónia. Ou talvez aqueles beijos o tivessem levado a presumir que
as breves intimidades entre os dois haviam dispensado qualquer requisito de formalidade.
Esforçara-se afincadamente por evitar pensar no toque da boca dele na sua pele e das mãos dele no seu corpo. Aquela memória provocava-lhe reações despropositadas.
O efeito que tinha de reavivar os arrepios e as palpitações que ela experimentara àquela janela ainda era o menos. Quando Ambury beijava uma mulher, tornava-se muito
fácil para esta esquecer a insensatez que seria voltar a permitir-lhe aquelas liberdades no futuro.
Tornava-se muito tentador acreditar que estava mesmo interessado nela e que não havia histórias antigas a obscurecer as suas motivações ou a colorir a ideia que
dela fazia. Ele estava bem versado em usar o prazer e a adulação para derrubar a prudência feminina.
Ponderou dizer a Merriweather para lhe comunicar que não seria necessário que ele as acompanhasse. Só que ela não tinha mesmo vontade nenhuma de ir sozinha. O grupo
reunido naquela noite ia ser mais difícil de abordar do que o do casamento, e já o outro exigira uma grande dose de coragem. Naquela noite, as rejeições não seriam
subtis. Nem ela teria colocado a hipótese de ir, se o convite não tivesse partido de Emma.
Em vez de ditar uma mensagem a Merriweather para transmitir no piso de baixo, agarrou na bolsa e no agasalho e desceu.
Deparou com Ambury na pequena divisão que precedia a porta e que servia de vestíbulo. Ficava tremendamente belo à luz do pequeno candelabro que Merriweather deixara
com ele. O brilho dourado realçava a beleza dos seus traços e a cor profunda dos seus olhos. A surpresa tomou conta da expressão dele por um instante quando ela
entrou e logo os seus olhos a observaram dos pés à cabeça, com uma minúcia impressionante.
– Alguma coisa errada? – perguntou ela, já incomodada pelo rubor que lhe assolava o rosto. – Será que a minha criada se esqueceu da escova enfiada no meu cabelo?
– Estou a admirar a forma como se veste com roupas que lhe caem tão bem.
– É por essa razão que contrato uma modista. Para as minhas roupas me caírem bem.
– Não estava a falar da forma como se ajustam ao seu corpo, mas ao seu estilo. Embora... – Mais uma vez, o olhar dele percorreu-lhe detidamente o vestido. – ...também
essa pareça perfeita.
O pequeno compartimento ficou ainda mais pequeno. A sua sensualidade vibrou. Não podia dar outro nome àquela sensação, à excitação que se revelava de forma tão evidente.
Começou a repensar a decisão de ir com ele.
– A minha tia não comparecerá.
– Que infelicidade. Espero que não esteja doente.
– De todo. Apenas escolheu não estar presente. Uma vez que ela não irá connosco, vou chamar uma carruagem.
– Estou encantado com as tentativas que faz para se esconder a pretexto da etiqueta. Quase se julgaria que nunca tinha sido beijada.
– Só se se fosse muito estúpido. Não estou a esconder-me. Estou a tentar poupá-lo a boatos desnecessários.
– Os boatos perseguem-me tanto quanto a si. Temos isso em comum. Depois dos primeiros cinco rumores escandalosos, deixamos de nos importar. Não concorda?
A réplica sagaz morreu-lhe nos lábios. Ele sabia, compreendeu. E suspeitava de que a maior parte dos boatos não era verdade.
– O jantar é a poucas ruas daqui – retomou ele. – Não vou seduzi-la no pouco tempo necessário para lá chegar.
Ofereceu-lhe o braço.
– Vamos?
*
– Parece-me que está a correr bem – sussurrou Emma.
Foi com toda a gravidade que parou ao lado da cadeira de Cassandra para umas breves palavras, mas o seu olhar percorria desenfreadamente a sala de visitas, precavendo
um desastre iminente.
– Eu disse-lhe que seria menos trabalhoso do que planear uma das grandiosas exposições da Fairbourne’s. Menos pessoas. Movimentação mais organizada. Para não falar
no exército de criados que tem à sua disposição.
– Contei com a sua ajuda, Cassandra. As suas sugestões para o menu foram perfeitas.
Pousou uma mão no braço de Cassandra.
– Por favor, diga-me que está a ser suportável para si. Tentei convencer o Darius a riscar o seu irmão da lista, mas ele foi inabalável no desejo de o manter.
– Estou a ter uma noite agradabilíssima. Não se preocupe com o Gerald. Ele e eu conseguimos comer à mesma mesa e passar algumas horas debaixo do mesmo teto. O seu
marido teve, sem dúvida, razões políticas para o convidar, tal como acontecerá com a maior parte dos homens aqui presentes.
Os homens em questão chegariam da sala de jantar, onde permaneceram a seguir à refeição. Cassandra pensava com os seus botões como correriam as coisas com Gerald
depois de os rituais da noite abrandarem.
Provavelmente tão bem como corriam com as tias de Southwaite.
As duas mulheres, de cabelo cor de platina e altura invejável, vinham agora na sua direção. Nenhuma delas se dirigira a Cassandra durante a maior parte da noite,
a não ser da maneira mais formal, mas parece que tinha sido tomada a decisão de encetar uma conversa.
Emma não a abandonou, permanecendo ao lado da sua cadeira. Hortense e Amelia sentaram-se noutras que estavam por perto.
– Tem um chapéu esplêndido – disse Cassandra a Amelia, que era a mais tímida das duas e que corou com o cumprimento, ao mesmo tempo que dava palmadinhas no turbante
verde que tinha no alto da cabeça. – Posso perguntar-lhe que chapelaria o fez?
Falaram de chapéus e de moda durante alguns minutos. As duas tias pareceram gratas por ter sido providenciado um tópico. Com o esmorecer da conversa, porém, Hortense
voltava a ficar com um ar formidável. Com os lábios franzidos e um olhar surpreendentemente afetuoso, inclinou-se em confidência.
– Tenho saudades da sua tia, Cassandra. A Sophie era sempre tão espirituosa. A presença dela animava qualquer festa e esperava vê-la aqui, esta noite. Como é que
ela está?
– Está muito bem. Dir-lhe-ei que perguntou por ela.
– Ela não recebe quaisquer visitas, é o que se diz.
– Muito raramente.
– Nem sequer vai passear no parque.
– Prefere o jardim dela.
Amelia franziu o sobrolho.
– Deixou-a vender as joias dela. É bastante inusitado. Ela sempre adorou as joias.
– Deu-mas, quando se retirou da vida social.
Hortense olhou para Amelia. Ambas olharam para a porta.
– O seu irmão confiou-nos os receios dele antes de a menina chegar. Exprimiu dúvidas de que ela arriscasse sair, por não estar bem. Não pudemos contradizer, pois
não a vemos há muitos meses. Tínhamos esperança de que...
Tomada pela raiva, Cassandra sentiu-se ficar tensa. Emma, que continuava ao seu lado, apertou-lhe suavemente o ombro com uma mão apaziguadora.
– Eu já a vi – declarou. – Quando visito a Cassandra, a tia costuma estar lá. E têm muita razão. A presença dela é sempre uma lufada de ar fresco, e a visão inconfundível
que tem da vida é inteligente e revigorante.
Cassandra agradeceu a mentira de Emma com todo o seu coração.
– Além disso, eu vejo-a todos os dias – prosseguiu, com um grande sorriso. – O meu irmão não. O Gerald nunca esteve à vontade com as escolhas de vida que a minha
tia fez, por isso não é muito provável que compreenda as mais recentes.
Inclinou-se mais e dirigiu um olhar conhecedor a Hortense.
– Sabe bem o que é a vaidade de um homem. Qualquer mulher que não lhe alimente a sensação de importância tem de estar doente. O discernimento do meu irmão está pendente
da recusa da minha tia em o receber, tal como faz com toda a gente. Nada mais.
Hortense e Amelia fizeram um sorriso de conspiradoras. Contudo, Cassandra não conseguiu perceber se tinham ficado aliviadas ou desiludidas por saber que tudo estava
bem com Sophie. Amaldiçoando mentalmente Gerald, começou a engendrar uma forma de lidar com os rumores que poderiam espalhar-se depois da festa.
Quando o fazia, a porta abriu-se e os homens chegaram. Gerald parecia embrenhado numa conversa com Southwaite, que ouvia educadamente. Emma deixou o posto ao lado
de Cassandra e avançou para receber os convidados.
As pessoas espalharam-se. Começaram a conversar. Alguns convidados dedicaram-se a jogar whist. Cassandra observava Gerald, perguntando-se se escaparia a uma conversa
com ele?
Ambury aproximou-se e sentou-se numa cadeira que colocou ao lado dela.
– Parece irritada. Alguém foi grosseiro?
Ainda tinha Gerald em mente, e à sua frente, quando respondeu:
– Ninguém foi grosseiro. Se pareço irritada é porque esta noite fiquei a saber de uma coisa que desconhecia. Estou irritada comigo própria por ser ingénua, embora
deseje acreditar que a minha confiança na natureza humana abona a meu favor.
– E qual é essa grande descoberta?
– Que as matronas da sociedade fazem vista grossa a muita coisa quando sou recebida numa casa de bem.
Era outra mentira. Sempre soubera que não seria necessário muito para resgatar a respeitabilidade total. Se tivesse sido condenada, aquelas mulheres teriam preferido
faltar ao casamento de Emma a ser vistas na mesma sala com ela. As rejeições não teriam sido subtis mas diretas e Southwaite nunca teria permitido que a amizade
com Emma sobrevivesse.
Não, a descoberta daquele dia tinha sido muito mais devastadora, tanto que o seu coração se despedaçou. Sempre pensara que os boatos que se espalhavam sobre ela
eram fruto da especulação ociosa de mentes entediadas. Nunca suspeitara de que pudesse tratar-se do resultado de um esforço concertado feito por alguém para a humilhar.
Olhou para Gerald. Ele tinha os olhos do pai. Os olhos de Sophie. Só que parecia estar sempre a escrutinar o mundo inteiro e isso matava-lhes toda a doçura. Afetava-lhe
todo o semblante. Não era um rosto desagradável no seu conjunto, mas não tinha um pingo de afabilidade. A postura e o corpo dele possuíam uma rigidez que o tornava
pouco atraente.
Seria obra dele? Seria aquele jogo com Sophie uma nova tática, depois de a antiga não ter funcionado tão bem como ele desejava? Estaria ele a certificar-se de que
a sua reputação de temerária e de demasiado independente traria as piores consequências possíveis? Não perdera tempo, naquela noite, a falar mal da tia Sophie. Talvez
espalhar rumores fosse uma sua ocupação de anos.
Aparentava ser um homem capaz de o fazer. Até os seus sorrisos pareciam ter o condão de cortar pedra. E a atitude dele... Cassandra recordou um rapaz de rosto redondo
com queda para travessuras. Agora olhava para um aristocrata severo que com grande probabilidade daria uma vergastada a esse mesmo rapaz, se deparasse com ele.
Gerald notou que ela o observava. Para horror de Cassandra, começou a caminhar na sua direção.
– Parece indisposta – comentou Ambury. – Talvez fosse melhor ir até ao terraço apanhar um pouco de ar.
Escapar pareceu-lhe extremamente apelativo. Só que era demasiado tarde. No instante seguinte, Gerald apresentava-se à sua frente, olhando-a com sobranceria, como
um pai olha um filho malcomportado.
– Está muito bonita, Cassandra.
– Estava a pensar precisamente o mesmo – disse Ambury, o que obrigou Gerald a reconhecê-lo e a incluí-lo na conversa.
– Contudo, o turbante é um pouco dramático – declarou Gerald. – Não consigo decidir se pelo estilo, o tecido ou o facto de a fazer parecer uma sibila do Próximo
Oriente, de tempos idos.
– Um pouco de drama nunca fez mal ao mundo, Barrowmore. É indelicado elogiar uma mulher passando a insultá-la logo em seguida, mesmo quando se trata da sua irmã.
Cassandra sentiu o coração encher-se de gratidão por Ambury a defender. Portava-se com cortesia e descontração, mas a postura do seu corpo possuía uma prontidão
que indicava que, caso fossem precisas, as armas estavam afiadas.
Talvez Emma tivesse voltado a solicitar a sua ajuda para servir de apoio à amiga. Se assim fosse, ela nunca teria podido prever que a parte pior da noite seria da
responsabilidade de Gerald.
Gerald devia ter ignorado a reprimenda de Ambury, mas, sendo quem era, não conseguia.
– Porque é minha irmã, Ambury, e porque tudo aquilo que faz, e é, se reflete em mim e na minha família, é meu dever corrigi-la se vir que é necessário.
– Funcionou tão bem no passado, Barrowmore, que, como é evidente, deseja continuar. Mas, ainda assim, por um chapéu? Sente necessidade de a corrigir relativamente
a um chapéu? O mundo está em guerra, os franceses transpuseram as nossas fronteiras, a economia está de mal a pior e o Gerald preocupa-se com o turbante da sua irmã.
Gerald corou até à ponta das orelhas.
– Simboliza muito mais coisas.
– Ai é? Quem diria... Deve dizer o mesmo à tia de Southwaite. Ela também traz um turbante e duvido que saiba o significado que lhe corresponde. Quando lhe falar
do assunto, que explicação dará do seu simbolismo?
Os olhos de Gerald semicerraram-se fitando Ambury, depois a ela.
– Ele é o mais recente? Ou só está na fila?
Cassandra ficou horrorizada por o ouvir dizer uma coisa daquelas na sala de visitas de Emma. Além disso, a conversa atraíra as atenções. Via pelo canto do olho que
outros lhes lançavam olhares.
O sorriso de Ambury não se desmanchou, mas só um idiota não perceberia o seu estado de espírito.
– Ao continuar a insultar a sua irmã, acaba de me envolver a mim. Mostra-se imperdoavelmente grosseiro com o seu anfitrião e a sua anfitriã ao abusar da sua hospitalidade
com questiúnculas familiares.
– Questiúnculas? As suas discussões com o seu pai é que eram questiúnculas familiares. Entre mim e a Cassandra há mais coisas em jogo.
Cassandra sentiu uma pancada no peito à menção do pai de Ambury. Um perigo real cintilou no olhar deste ao ouvir aquilo, mas comportou-se como se Gerald simplesmente
o aborrecesse.
– Se há mais coisas em jogo, então tanto mais razão para evitar ter conversas destas em público, Barrowmore.
– Ouça lá. Não me parece que você possa dar-me conselhos sobre a forma de me comportar.
– Ai não? Talvez deva voltar à sua vida antes que ultrapasse todos os limites.
– É com satisfação que deixarei a sua companhia. Necessito, contudo, de falar com a minha irmã primeiro. Em privado.
Ambury olhou em redor.
– Diria que privacidade será algo impossível de obter neste jantar.
– Aqui, sim. Consigo a escutar, sim. Contudo, Cassandra, estou à sua espera no terraço.
Sem mais, Gerald deu meia-volta e prosseguiu em passo decidido.
– Não vá – interveio Ambury. – Eu irritei-o, e ele parece ser do tipo de descarregar em si.
Ela levantou-se.
– Não seria sensato recusar-me a ouvir o que ele tem para dizer, ou arriscar-me a ter uma discussão aqui e a envergonhar a Emma. Quanto a ser alvo da raiva dele,
é um preço que estou disposta a pagar pelo facto de o ter visto a si fazê-lo cair do cavalo.
Gerald aguardava a um canto do terraço, com os braços atrás das costas e a rigidez de quem engolira um garfo. As sombras obscureciam os detalhes, mas ela sabia que
aquela postura não era bom augúrio. Exalava indignação por todos os poros. Cassandra perguntou-se se os convidados que também lá se encontravam teriam reparado que
o estado de espírito dele arruinara uma noite maravilhosa.
– Aqui estou, Gerald.
– De facto, aqui está. Por agora, enquanto o ardor da paixão ainda é novidade para o nosso anfitrião. Southwaite não demorará a ganhar juízo e a deixar de permitir
que aquela plebeia faça o que quer dele, nomeadamente tolerar a amizade entre as duas e a sua presença à mesma mesa à qual se sentam ministros.
– Eu disse à Emma que iria ficar perplexo. Que nunca compreenderia. Ela ia tirá-lo da lista para evitar espetáculos, mas eu convenci-a a deixá-lo vir também.
Era a terceira mentira da noite, mas que bem que lhe soube.
Ele considerou a ideia de ele, não ela, poder ter sido excluído, tão escandalosa que se agitou. Escondeu a reação cruzando os braços e perscrutando a noite, naquele
que, presumia ela, seria o mais grave dos olhares, se pudesse vê-lo.
– Disseram-me que a tia Sophie também foi convidada. Estava na expectativa de a ver.
– Ela decidiu não estar presente.
– Teve receio de que a condição dela fosse demasiado visível, se tivesse de passar horas na companhia de outras pessoas?
Ela detestou-o por colocar aquilo em palavras.
– Ela não receia a companhia de ninguém. Apenas deixou de se interessar pelas superficialidades da vida social. Pessoas como você tornam as festas demasiado aborrecidas
para espíritos luminosos como ela.
– Ouça lá...
– Vou-me embora imediatamente se se põe todo emproado e maçador. Quis falar comigo, portanto fale. Não precisava de privacidade para me perguntar sobre o paradeiro
da nossa tia.
Ele não falou. Não de imediato. Descruzou os braços e começou a tamborilar no muro baixo que tinha ao lado. Olhava para os dedos como se quisesse certificar-se de
que tocava a melodia certa.
– A mãe quer que vá a Anseln Abbey – disse.
– Diga-lhe que vou vê-la quando ela regressar à cidade, no mês que vem. Ela faz sempre uma visita no outono, pelo menos, para ir ao teatro e visitar as modistas.
– Eu também quero que vá. Devo insistir. Mando a minha carruagem buscá-la, e à tia Sophie. Só precisa de ficar uma semana, se preferir.
Aquilo parecia tão razoável que até se diria uma conversa perfeitamente normal entre um irmão e uma irmã que gostam de estar juntos. Contudo, a mente de Cassandra
deu sinal de alarme.
– A tia Sophie nunca irá concordar.
– Penso que consegue convencê-la.
– Tenho a certeza de que não.
Os dentes dele brilharam no escuro quando sorriu.
– Então venha sozinha, se é assim que tem de ser.
– Porque é que quer que vá?
– A mãe...
– A mãe sabe que, se quer que eu vá, um convite da parte dela tem mais hipóteses. Mas vem da sua. Sendo assim, porque é que quer que eu vá?
Um novo tamborilar. Uma melodia nova. Mais rápida.
– Preciso que conheça uma pessoa.
– Oh, Gerald. Por favor, não. Quem é desta vez? Algum filho segundo necessitado de um dote, que está disposto a tirar-lhe de cima dos ombros a sua escandalosa irmã?
– Já está mais do que na altura de se casar. A mãe concorda. Se não fosse a tia Sophie...
– Se não fosse a tia Sophie, você e a mãe já me tinham coagido a casar com Lakewood, e eu não teria perdoado a nenhum dos dois. Quanto ao momento presente, não é
a tia Sophie que nos separa. Ela não tem nada a ver com isto.
– Ela tem tudo a ver com isto, só não da forma que eu pensava.
– O que quer dizer?
– Presumo que ela tenha exercido uma má influência sobre si. Que se tenha pronunciado contra o casamento, uma vez que nunca casou. Que tenha advogado certas... liberdades
de natureza vergonhosa porque, segundo dizem, usufruiu delas. O seu comportamento deixa entrever o mesmo.
– Percebeu que estava errado? Estou comovida, Gerald.
– Ela influenciou-a, mas não foi obra dela. Foi sua. Nem foi essa a razão pela qual recusou todas as propostas de casamento que lhe foram apresentadas nos últimos
anos.
– Aí, está correto. As minhas recusas foram inteiramente da minha responsabilidade, influenciadas apenas pelo facto de os cavalheiros a que se refere serem desinteressantes,
e, na verdade, desinteressados.
– Não me parece.
– Querem um dote e ligações, mas não a mim, e nem sequer tiveram a esperteza de o fingir, por educação que fosse.
– Bem, uma mulher com a sua história não pode ser demasiado esquisita. Mas julgo que, na realidade, se recusa a casar porque ela precisa de si. Precisa dos seus
cuidados. Protegeu-a, e agora você quer protegê-la. Não se atreve a deixá-la viver sozinha. Provavelmente preocupa-se quando tem de a deixar durante alguns dias,
ou para algum serão.
Ele estava terrivelmente perto da verdade. Tão perto que a assustava.
– Só diz disparates. Ela vai enterrar-nos aos dois e tem a cabeça duas vezes melhor do que a da mãe. Não tem necessidade nenhuma de que eu dedique a minha vida a
proteger a dela.
– Tenho absoluta certeza do que digo – disparou ele inclinando a cabeça e aproximando o rosto do de Cassandra. – Não vou aceitar, Cassandra.
Um arrepio desceu-lhe pela espinha.
– Deixe-a em paz, Gerald. É cruel e ignóbil da sua parte envolvê-la nos planos que me destina.
– Não planeio envolvê-la. Planeio retirá-la, para próprio bem dela, como dita o meu dever de familiar mais próximo. Encontrei-lhe um lar. Não fica muito longe de
Anseln Abbey e é dirigido por um médico que é auxiliado pelas duas irmãs. É...
– Não se atreva!
– Baixe a voz. Está a dar espetáculo. Então, como explicava...
Aquela voz untuosa papagueou-lhe confidências ao ouvido. Ela reprimiu o impulso de dar um espetáculo e tanto. Queria bater em Gerald, arranhar-lhe a cara. Queria
dizer-lhe o quanto era intragável. Na sua mente, vituperava-o com as palavras mais fortes que sabia ao mesmo tempo que se deixava ficar, muda e impotente.
Imaginou a tia Sophie a ler em casa, alheia ao enorme progresso do esquema de Gerald. Ela prometera proteger a tia, mas o irmão não lhe deixava muito tempo para
o fazer.
– Concluímos o assunto dentro de quinze dias – repetiu. – Escreva-me e diga-me se tem as coisas dela arrumadas e preparadas ou se devo enviar criados.
– Não faça isso. É injusto.
– É necessário. E é pelo melhor. Constatará isso mesmo, assim que as suas emoções se acalmarem – concluiu, afastando-se do muro do terraço, para voltar à festa.
– Não lho permitirei.
As lágrimas puseram-lhe um nó na garganta e ela mal conseguiu pronunciar as palavras a tempo de ele as ouvir.
Ele parou. A luz de um candeeiro revelou o seu rosto e o sorriso de presunção.
– Sou Barrowmore. Você é a minha irmã rebelde e desobediente. Ninguém se importa com aquilo que julga permitir ou não.
Yates não deixou de olhar para as portas do terraço enquanto conversava com Southwaite. Cassandra e o irmão já estavam lá fora há bastante tempo. O que quer que
ele estivesse a dizer-lhe fora fonte de maior discussão do que seria de esperar entre irmãos que se encontravam de relações cortadas.
– Julgo que está tudo em ordem – comentou Southwaite, passeando o olhar pelos convidados.
– A sua senhora saiu-se muito bem – acedeu Kendale.
O olhar de Southwaite foi amistoso, mas não sem uma nota de impaciência.
– Tem feito muito mais do que isto ao longo dos anos. Não havia qualquer dúvida de que se sairia bem no papel de anfitriã. Referia-me a outras coisas.
– Ele está a falar de Lady Cassandra, Kendale – cortou Yates. – Os convidados foram muito recetivos à presença dela.
– Não tinham outra escolha, a não ser que desejassem insultar o Southwaite e o Barrowmore, assim como à senhora em questão.
– Não tinham de vir – assinalou Southwaite. – Alguns esperavam, sem dúvida, testemunhar o desconforto entre Cassandra e o irmão, mas, na realidade parece que se
desenha uma aproximação no terraço. A notícia vai espalhar-se na primeira entrega do correio.
Southwaite parecia muito satisfeito com os esforços que envidara para assegurar a melhor reputação de Cassandra, a bem da amizade de Emma. Yates olhava para a outra
senhora a quem seria permitido desfrutar da companhia de Cassandra assim que a coscuvilhice distribuísse as suas bênçãos.
Lydia estava sentada à mesa das cartas, em frente à sua tia Hortense. Esta só recentemente se juntara ao jogo, mas Lydia ocupava a cadeira há mais de uma hora.
– Parece que a sua irmã ficou a gostar de whist.
– Com a Hortense como parceira, não deve sair-se muito mal para novata.
– Na verdade, tem estado a ganhar a noite toda – informou Kendale.
Os três ficaram a ver o jogo de longe.
– Estão a apostar? – perguntou Southwaite, semicerrando os olhos.
– Não faz sentido nenhum jogar se não se apostar – disse Kendale. – São apenas pennies.
– Não parece ser de pennies, o monte que está à frente da minha irmã.
– Xelins, então. Não vai ninguém parar ao asilo dos pobres – voltou Kendale.
Southwaite pousou o copo numa mesa.
– Não é a quantia que a atrai, mas o desafio. Parece-me que seria melhor que aquele monte encolhesse um bocado. Ambury, venha comigo. Vamos desafiá-la e à Hortense
para garantirmos que a minha irmã experimenta o desespero da derrota que acompanha inevitavelmente o jogo.
Nesse preciso momento, abriu-se a porta do terraço.
Barrowmore entrou. Tudo naquele homem, desde a postura até ao brilho nos olhos, declarava que acabava de se congratular mais do que a decência permitia com a derrota
de algum adversário.
– Leve Kendale, se quer dar-lhe uma lição. Eu não tenho coragem para tanto.
Estava quase a chegar à porta do terraço quando as últimas palavras lhe saíram da boca.
CAPÍTULO 11
Cassandra ocupava um canto afastado do terraço, perto do murete que delimitava o lado com vista sobre o jardim. Não a alcançava a luz de nenhum candeeiro, mas a
sua silhueta era visível.
Ela não se mexeu no tempo que ele passou a observá-la. Permaneceu ali, voltada para as flores. A sua postura e a imobilidade do seu corpo indicavam que estaria a
refletir sobre alguma coisa e que não via os pontos brancos que, no meio das flores, resplandeciam tanto quanto ela.
Aguardou que se recompusesse, se era aquilo que estava a fazer. No entanto, aconteceu precisamente o oposto. As luvas finas e claras ergueram-se e ela afundou o
rosto nas mãos.
Ele aproximou-se, fazendo questão de posicionar o corpo entre o dela e o das duas mulheres que conversavam perto do meio do muro.
– Sente-se indisposta? – perguntou ele, em voz baixa.
Ela abanou a cabeça, mas as mãos não deixaram o rosto.
Com uma fungadela que fez parar a conversa que decorria atrás dele, ela recompôs-se. As mãos caíram. Minúsculas estrelas brilharam-lhe no rosto quando o luar se
espelhou nas lágrimas.
– Vou para casa – sussurrou. – Não aguento voltar ali dentro. Se volto a vê-lo, faço alguma coisa que proporcionará finalmente factos para alimentar os boatos, em
vez de suposições.
Abrindo a bolsa, tirou um lenço e secou o rosto.
– Por favor, diga à Emma que lhe explico tudo amanhã. Eu escrevo-lhe.
– Eu chamo a carruagem e...
Mas ela já se pusera a caminho. Desceu as compridas escadas de pedra que partiam daquele canto do terraço. Foi engolida pelas sombras do jardim.
Yates regressou à sala de visitas. Não viu Emma. Na mesa de whist, Southwaite olhava as cartas com ardor. Lydia jogou uma das dela e sorriu abertamente face à consternação
que a sua jogada provocou em Kendale.
– Por favor, diga à sua mulher que Lady Cassandra decidiu regressar a casa – informou Yates ao ouvido de Southwaite.
Southwaite assentiu com a cabeça, mal o ouvindo, meio perdido na tarefa de escolher uma carta. Enquanto se afastava, Yates reparou que o monte de xelins de Lydia
não diminuíra em nada. Antes pelo contrário.
O ar da noite mitigou-lhe o ardor do rosto, mas a sua carícia tranquilizadora não lhe chegou ao coração. Amaldiçoava Gerald em murmúrios que só lhe aumentavam a
agitação. Incitava a própria raiva com impropérios, pois debaixo dela um vazio desolador ameaçava engoli-la.
Estava por sua própria conta há seis anos, mas nunca se sentira tão sozinha como naquele momento em que pesava a sua fragilidade face ao poder do irmão.
Tinham sido próximos em crianças. Companheiros de brincadeiras e confidentes. Quando é que Gerald se tornara tão mau? Provavelmente na altura em que herdara o título.
Ela estivera tão absorvida pela iminência da sua primeira temporada que não reparara muito nele naquela altura. Contudo, uma grande formalidade surgira nele desde
a morte do pai.
Atribuíra aquela postura às suas novas responsabilidades. Com certeza que quando estivesse confortável no papel de conde regressaria ao normal. Só que ele nunca
voltara a ser o irmão que ela conhecia. Em vez disso, tornara-se mais cheio de si próprio a cada dia, e mais desagradável para ela.
Agora planeava executar a ameaça anunciada. Ela sentia a cabeça a rebentar, pela indignação de saber que ele seria bem-sucedido. Quem o impediria? A mãe? Talvez
a mãe nem sequer soubesse.
Agarrou-se àquela ideia. A sua mãe e Sophie tinham sido muito próximas quando eram mais novas. A tia Sophie até fora com ela para o campo para aguardar o nascimento
de Gerald. Assim que chegasse a casa, escreveria à mãe e contar-lhe-ia tudo, pedindo-lhe que envergonhasse Gerald com os seus planos e o fizesse desistir.
Ter um plano próprio deu-lhe algum alívio. Sentiu a cabeça mais leve e o coração desacelerou até um ritmo mais normal. Foi aqui que ouviu os passos atrás de si,
aproximando-se rapidamente.
O pânico tomou conta de si, dizendo-lhe que fugisse. Fora muito estúpido regressar a pé para casa, mesmo sendo mais rápido do que esperar que um criado fosse buscar
uma carruagem. Céus, se fosse assaltada por um ladrão de estradas, Gerald provavelmente enfiava-a naquele lar juntamente com a tia Sophie.
– Espere. Não fuja.
A voz soou no momento em que levantava a saia para correr. Conhecia aquela voz. Deixou cair a saia e voltou-se. Ambury venceu a distância que ainda os separava.
– Chamei a minha carruagem. Não devia ir a pé – disse este.
– Não estou doente. Quero andar. Se tiver de me sentar em algum lado, vou começar a gritar.
Deu meia-volta e continuou a andar.
Ele alcançou-a.
– Então eu acompanho-a, para ter a certeza de que não lhe acontecerá nada de mal.
Levou a mão à boca e um assobio estridente cortou o silêncio. Ela voltou-se e viu o candeeiro de uma carruagem que lentamente aumentava de tamanho. O som sincopado
de cascos de cavalos subia a travessa.
Não teve força para se opor, nem nenhuma boa razão além da vontade de estar sozinha. Depois de os alcançar, a carruagem abrandou e seguiu-os a uma distância discreta.
– O que é que ele disse para a fazer chorar? – perguntou Ambury.
– Nada de grosseiro, se é o que está a pensar. Não me repreendeu pelo meu comportamento nem tampouco me atirou à cara os boatos mais recentes, tratando-os como factos.
Inspirou profundamente e continuou: – Não me rebaixou dizendo que desonrei a família e parti o coração à minha mãe. Não evocou a memória do meu pai nem falou do
quanto ele ficaria perturbado se estivesse vivo e me visse por casar e com uma independência tão suspeitosa.
Desfiou a litania das habituais reprimendas de Gerald com amargura.
– Contudo, deixou-a em lágrimas.
A parte pior da fúria insatisfeita abandonou-a, deixando apenas o pesar e uma sensação de desastre iminente. E, por trás de tudo, a exaustão de lutar contra o mundo
sozinha.
– Quer que eu vá visitar a minha mãe. E que também conheça um homem qualquer com quem decidiu que eu devo casar.
– Não pode ser a primeira vez que tenta arranjar-lhe casamento.
– É tão previsível como o nascer do Sol. É o pior que a temporada tem. Depois os fulanos vêm para a cidade e ele deixa de estar limitado pela necessidade de me atrair
para o campo. Na última temporada, de cada vez que me virava para trás, encontrava um, apresentado por uma amiga, pela minha mãe ou um qualquer parente. Mas eu sabia
que o Gerald tinha combinado tudo.
Inclinou a cabeça e olhou para o céu.
– Um homem devia ter um objetivo de vida maior do que casar a irmã solteirona, julgo eu.
– Pode apenas querer o que pensa ser o melhor para si.
– Acredita nisso? Considera que o Gerald é um bom irmão que tenta fazer o dever dele tal como o vê?
Ambury deteve-se uns momentos a pensar.
– Julgo que decidiu que é o melhor para ele.
– Receio que até essa razão seja benevolente quanto à racionalidade dele. Há homens para os quais sair vencedores em qualquer disputa é de importância fundamental.
Penso que ele é desse tipo de homem e que fará tudo para alcançar essa vitória, mesmo tratando-se de uma mulher, e sua irmã. É triste, e não abona a favor dele,
mas é isto que concluo.
– Sejam quais forem as motivações dele, o objetivo não é muito diferente do de Southwaite para esta noite: resgatá-la às franjas da sociedade, para que não seja
objeto de rumores simplesmente porque se recusa a obedecer às regras.
Ela quis explicar-lhe que era mais do que isso, só que não sabia em quê, de facto.
O comportamento de Gerald parecia normal aos olhos da maior parte das pessoas. As suposições de Ambury acerca do objetivo faziam todo o sentido. Contudo, não explicava
a intensidade obstinada da insistência do irmão em que ela se submetesse aos planos dele, com todos os seus pormenores. Não explicava a prontidão para sacrificar
a tia Sophie para alcançar os seus intentos.
– Não é só ao casamento que ele deseja destinar-me. É ao casamento com o homem escolhido por ele – disse ela, dando voz a um entendimento que lhe surgiu de repente.
– Nunca me perdoou por ter recusado o Lakewood, por exemplo. Não esteve muito longe de me bater quando recusei a minha primeira proposta.
– Mas não o fez, espero.
– Não. Engendrou outra forma de gerir o assunto. Que garantisse que a escolha nunca me pertenceria.
Haviam chegado à casa da tia Sophie. A carruagem parou ao fundo da rua.
– Obrigada, Ambury. Embora não nos tenhamos cruzado com mais ninguém pelo caminho, provavelmente foi boa ideia eu não ter vindo sozinha.
Subiu os degraus e abriu a porta. Merriweather deixara uma lâmpada a arder no vestíbulo, no cómodo à esquerda, que lhe permitia orientar-se. Para sua surpresa, uma
mão agarrou na porta, impedindo-a de a fechar.
Ambury entrou na casa. A luz da lâmpada incidiu nele e revelou uma expressão de atenta curiosidade.
– O que quer dizer com isso de garantir que a escolha nunca lhe pertenceria?
A pergunta dele assustou-a. A sua mente procurou desenfreadamente a melhor forma de recuar de uma posição para a qual divergira por descuido.
– O Lakewood era seu amigo – declarou.
Aquilo não ia acabar bem, independentemente das palavras que escolhesse.
– Durante anos foi um bom amigo.
– Então seria sensato se nos abstivéssemos de falar sobre o assunto. Lamento que as emoções suscitadas pelo meu irmão me tenham levado a usar de demasiada familiaridade
e a fazer-lhe confidências acerca dele. Seria melhor se nós...
– O que quis dizer com isso?
Ambury deu dois passos largos até ficar mesmo à frente dela.
Estava tão próximo que ela tinha de erguer os olhos para lhe ver a expressão. A luz difusa da lâmpada cinzelava-lhe ângulos duros no rosto. Concentrava-se nos olhos,
que pareciam duas safiras. Brilhantes e facetados, estes focavam-se nela e nas suas palavras imprudentes.
Ela nunca falara a ninguém daquele dia horrendo com Lakewood. Deixara as pessoas pensarem o que escolhessem pensar. Agora Ambury insistia em saber, mas na verdade
queria pensar aquilo que escolhesse pensar.
Ela podia explicar tudo, mas ele não acreditaria. Quando tudo se resumisse entre aceitar a verdade das palavras dela ou defender a honra de um amigo falecido, escolheria
a última para preservar as memórias.
Ele esperou, grave, rígido e inabalável. Ela tentou contar-lhe apenas parte da história porque, toda, ele nunca iria acreditar.
– Ele pedira a minha mão e eu recusara. Tenho razões para acreditar que o Gerald incentivou o Lakewood a comprometer-me de maneira a garantir a aceitação do seu
pedido quando o apresentasse novamente, dessa vez para fazer a coisa certa e me poupar ao escândalo.
Ela viu a indignação dele. Sentiu-a.
– É uma acusação intragável.
Ela sabia que ele não acreditaria, mas esperara... Talvez esperasse que ele já tivesse adivinhado.
– Acreditará no que quiser, tal como toda a gente. Contudo, exigiu saber o que eu queria dizer. Agora sabe.
– Aquilo em que toda a gente acredita é que uma rapariga rebelde e voluntariosa manchou o nome dela e o nome de um homem bom que tentou poupá-los aos dois, maldição!
Céus, o homem não era melhor do que qualquer uma daquelas matronas cinzentas que abanavam a cabeça ao comportamento dela. Bem, se ele via o mundo pelas páginas dos
pasquins, então que assim fosse.
Envergou a expressão que usava em público. Com que enfrentava o mundo. Naquela noite, enfrentava apenas um homem, o que devia ser mais fácil. Não era.
– O casamento com ele ter-me-ia poupado a muito, é verdade, mas decidi que o custo era demasiado alto. De qualquer forma, preferia de longe a vida que tinha. Ter
uma reputação algo duvidosa tem os seus benefícios.
Os olhos dele estreitaram-se.
– Acha mesmo?
– Decididamente.
– Também tem o seu risco.
Ela não perguntou a que risco é que ele se referia, porque de repente este preencheu a sala quando a raiva de Ambury adquiriu uma textura de sensualidade.
A expressão dele alterou-se de forma subtil. Ainda crispada. Ainda intensa, mas o olhar perdera o brilho de fúria. Ficara mais próximo, diferente, não perdendo,
contudo, em frontalidade nem em perigo.
– Não sei se aconteceu da forma como diz que aconteceu – declarou. – E digo isto porque um pensamento se sobrepõe a todos os outros quando me olha dessa maneira.
A cabeça inclinou-se e os lábios roçaram nos dela, surpreendendo-a. Ambury inspirou profundamente.
– Provo-a e dou por mim alegre por não se ter casado com ele, seja por que razão for, o que faz de mim um fraco amigo.
– Há quem me desdenhe por isso e que considere que me devia ter enclausurado de vergonha.
– Eu não. Que desperdício seria.
Os lábios dele voltaram a roçar os seus. Quentes. Sedutores. De uma doçura impossível.
– Quando vejo a sua boca, tenho de a beijar – ciciou. – Porque é macia e rubra e porque transmite desafios aos quais é impossível um homem não responder.
O beijo seguinte, de tão suave, foi mais sedutor do que o toque mais erótico. Aplacava a tristeza que ela trouxera da festa. Distraía-a dos problemas e dos perigos
do amanhã.
Um pensamento se sobrepõe a todos os outros. Ela sabia em que consistiam alguns dos outros, cuja natureza a incitava a pôr um fim àquele jogo amoroso. Mas ele segurou-lhe
o rosto entre mãos fortes, que a recebiam com tanto cuidado e que subjugavam as suas emoções maltratadas com sensações refrescantes, trazendo-lhe uma alegria inesperada.
– Mas são os seus olhos que me desarmam de verdade, Cassandra, e me fazem não responder por mim. Instigam o melhor de mim, e o pior. Não paro de os imaginar a olhar
para mim, redondos e brilhantes, refletindo o seu prazer, enquanto a possuo.
Beijou-a mais intensamente. Eu não. Não, ele não a desprezava, pelo menos não para aqueles beijos. As liberdades que ele tomava e que pretendia ter não insultavam
a mulher que sabia ter à sua frente. Era um homem do mundo que se comprazia por ela ser uma mulher do mundo, também. Nada mais.
A sua mente soprava-lhe contínuas advertências, praticamente inaudíveis, enquanto ele a desconcertava com tentadoras mordidas nos lábios. Desdobravam-se numa litania
de alertas e avisos sussurrados. Queriam interferir com a melodia que a animava. Noutra altura, pensou. Mais logo eu faço uma lista de todas as evidências de que
não é apenas uma paixão honesta que o move. Naquele instante conseguia suspender a solidão e o temor, bastando não pensar em nada.
O abraço dele cercou-a. Braços fortes puxaram-na para perto, erguendo-a de modo a conceder acesso ao pescoço, ao peito, e a regressar aos lábios. Ela permitiu-se
ceder ao amparo dele. Entregava-se às reações que ele provocava e às alterações do corpo e da pele. Não sentia os braços de um homem há mais tempo do que Ambury
julgaria, e nunca um com tanta perícia.
Não poderia continuar a ser um jogo doce e aprazível. Ele era um homem que beijava e acariciava uma mulher que não oferecia resistência. Ela não poderia mostrar
surpresa quando ele se sentasse e a puxasse para o colo.
Menos tentadoras agora, as carícias dele comunicavam pressupostos que só uma tonta ignoraria. O beijo tornou-se invasor, insinuando as intimidades que o norteavam.
O prazer já a arrebatara, porém, e o anseio da proximidade, do abraço que pusesse fim ao seu isolamento, calou o último dos avisos sussurrados. Ela perdia-se com
mais intensidade do que, suspeitava, ele se perdia. Imagens e desejos escandalosos ocupavam também o seu espírito, daquilo que ele poderia fazer-lhe e daquilo que
ela poderia sentir, na expectativa de um prazer tão incrível que justificava qualquer condenação.
Ele acariciou-lhe o peito, correspondendo ao apelo silencioso dela, que gemeu com a intensidade da sensação. Era inúmeras vezes mais delicioso e intenso do que ela
recordava. Ele tocava-a de formas que a deixavam sem fôlego, e desejosa de que não parasse. Não tentou evitar que o corpo fletisse ao sabor da necessidade que a
impelia para junto das coxas dele, a anca contra o seu membro duro.
Em resposta, os beijos dele aqueceram-lhe a parte exposta dos seios enquanto uma mão se atarefava nas costas dela. O vestido soltou-se, concedendo ao corpo uma almejada
liberdade. Ele parou de a beijar e fez deslizar o corpete. Por baixo ela trazia apenas uma anágua, e, então, também esta deslizou.
Os dedos dele percorreram lentamente os seios expostos. Ela olhou para a mão dele sobre o seu peito e mordeu a ponta da língua para evitar gritar de tão bem que
sabia. O prazer feito tortura que sentia entre as coxas tornou-se insistente, pulsante e insatisfeito. Os dedos dele roçaram-lhe os mamilos eretos e ela mal conseguiu
conter o efeito que aquilo surtia. Os peitos avolumavam-se ainda mais à medida que o toque subtil a deixava louca de desejo. Ela quase lhe suplicou que usasse a
boca.
Não teve de o fazer. A língua dele, expedita, ocupou-se de um mamilo enquanto a palma da mão roçava o outro. A névoa de delírio sensual envolveu-a. Tentou abafar
os gritos no ombro dele, mas estes escaparam travestidos em sons de impaciência e assombro.
A boca dele fechou-se sobre o peito com mais vigor. Sentiu prazeres mais intensos nas suas partes mais íntimas. As carícias subiram-lhe pelas meias, por baixo do
vestido, até ela sentir o calor da mão dele na coxa.
O toque íntimo absorveu-a por inteiro, corpo e mente. Desejou que ele procurasse a ânsia funda para o qual convergia todo o seu alucinante tormento. De saia arregaçada
e corpete descido, meio nua agora à luz suave da vela, mudou a posição em que se sentava e deixou cair uma perna para facilitar.
Ele beijou-lhe o rosto e ela sentiu o sorriso dele. O braço que a segurava inclinou-a para facilitar ainda mais. A mão que lhe acariciava o interior da coxa estacou,
para então subir e a agarrar. A pressão soltou-lhe as amarras e ela replicou-a em busca de alívio. Mas, em vez disso, a carícia que lhe abriu a fenda estilhaçou
o que restava do seu autocontrolo.
– Cassandra? É você, querida?
A voz que a chamou das escadas ecoou-lhe nas profundezas da mente. A princípio pareceu-lhe muito distante, depois assemelhou-se a uma trombeta no silêncio da noite.
– Cassandra?
Desta vez a tia parecia preocupada.
Ela sentou-se direita.
– Sou eu, tia Sophie. Acabo de voltar da festa. Está tudo bem.
Rezou para que a resposta não tivesse saído tão estrangulada como parecia.
– Que bom. Tranque a porta, está bem, querida?
Ficou atenta aos sons que indicariam que a tia subia a escada. Depressa ouviu no soalho o ruído surdo de passos delicados.
Tentou ajustar-se ao mundo à sua volta, muito à semelhança do que acontecia quando acordava de um sonho. A saia caiu e tapou-lhe grande parte das pernas. Ambury
levantou-lhe a anágua para lhe tapar os seios.
Ficaram ali sentados, quais frustrados sibaritas, resistindo à evidência de que, naquela noite, nem um nem outro seriam satisfeitos.
– Receio que tenhamos feito demasiado barulho, se a acordámos – disse ela por fim.
Ele beijou-lhe a face.
Ela levantou-se e voltou-se de costas.
– É melhor ajudar-me a compor o vestido, para o caso de ela estar acordada quando eu subir.
Ele apertou-lhe os colchetes e depois fê-la virar-se.
– Se eu fosse um cavalariço e a Cassandra uma criada de cozinha, sugeriria sair e trepar até à janela do seu quarto.
– Então é uma pena que sejamos ambos filhos de condes.
Tentou dizê-lo com leveza, mas as intimidades físicas ainda os afetavam e deram origem a uma envolvência entre os dois que, de alguma forma, necessitava de ser reconhecida.
De que forma, estava sem saber e, provavelmente ele também. Ambury beijou-a com decisão, profundamente, como se apresentasse a promessa de que voltariam a viver
aquilo. Depois dirigiu-se para a porta. Ela trancou-a depois de ele sair.
Ainda entorpecida de sensualidade, subiu os degraus e dirigiu-se para os aposentos principais, nas traseiras da casa. A porta da tia Sophie estava aberta, mas não
viu nenhuma lâmpada acesa. Encontrou a tia sentada na cama, completamente acordada, com a touca branca refletindo o brilho da Lua que entrava por uma frincha nas
cortinas.
– Quem era? – perguntou a tia.
– Como é que sabe que havia alguém?
– Vi-o. Estava envolvida de mais para reparar, mas desci até lá baixo e espreitei.
– Foi discreto da sua parte fingir que não tinha visto. Obrigada pela sua consideração. – Sentou-se na beira da cama e confessou: – Era o Ambury.
– Bem, tem a absolvição. É tão atraente como o pai era e sempre encantador. Até quando era rapaz se notava. Qualquer mulher ficaria suscetível. – Inclinou a cabeça
e perguntou: – É tão hábil como o rosto e a postura dele deixam suspeitar?
– Tia Sophie!
– Há poucas coisas tão desoladoras como um homem que parece saber o que faz e depois uma mulher descobrir que ele não compreende as subtilezas. Seria um tal desperdício
se, depois de toda a prática que teve, Ambury fosse um homem assim.
As subtilezas presentes no repto da tia não escaparam a Cassandra, nem a advertência de que Ambury tinha reputação de libertino.
– Não me parece que a tenha desperdiçado.
– São deveras boas notícias. E ele já a visitou pelo menos uma vez, por isso não é que tentasse seduzi-la hoje por não conseguir pensar em nada melhor para fazer
com o tempo dele.
Não tão subtil, desta vez.
– Está a repreender-me? Ou, talvez, a avisar-me?
– Não sou hipócrita para a repreender. Se ouve uma advertência, não é porque questione o seu gosto no que a homens diz respeito. Contudo, a paixão saciada no tapete
de um vestíbulo, pois era aí que ia chegar, nunca acabará bem. Peço desculpa se julga que eu não devia ter interferido.
– Neste momento, é verdade que preferia que não o tivesse feito.
– Se de manhã tiver a mesma preferência, então tire partido dele, querida. Mas leve-o para o seu quarto e goze de algum conforto. Prometo dormir muito bem.
Cassandra pensou para si própria se de manhã continuaria a ter a mesma visão, depois de o sono dissipar o prazer e de pensar sobre Ambury e tudo o que se passara
nas últimas vezes em que se encontraram.
– Como foi a festa? – retomou a tia Sophie.
– Sentimos a sua falta. Quem dera que tivesse ido.
– E o Gerald? Portou-se bem?
Cassandra cerrou os dentes em reação à raiva e à angústia que o nome do irmão evocava.
– Ele e eu falámos um bocado. Os outros provavelmente pensaram que tivemos uma conversa agradável e que tudo está perdoado entre nós.
– Mas, pelo seu tom, não está.
– O Gerald é o Gerald, não é?
Só ela saberia em que medida Gerald fora ele próprio naquela noite.
– Se se espalhar a notícia de que tudo está perdoado, saberá – disse Sophie. – Receberá convites das anfitriãs que não os enviaram durante os últimos anos. Diga-me,
se isso acontecer.
Cassandra levantou-se. Inclinou-se e beijou a tia.
– Devia dormir, e eu também.
– Tente não sonhar com ele a noite inteira – replicou Sophie com um risinho.
Cassandra tomou a decisão de não deixar Ambury invadir os seus sonhos. A tia Sophie definira de forma exata o que representara o momento de paixão no vestíbulo:
não fora nem sequer o início de uma relação romântica, mas meramente o prazer impulsivo entre duas pessoas que não obedeciam às regras.
CAPÍTULO 12
Duas manhãs depois, a névoa que se instalara em Hyde Park durante a noite recusava-se a levantar. O famoso fog de Londres continuava bem baixo, ainda às onze horas
da manhã, altura em que Yates seguia no seu cavalo, ao lado de Southwaite e de Kendale, para o local onde se encontrariam com outros dois cavalheiros que tinham
vindo da costa para passar alguns dias.
Uma tropa civil exercitava-se ao lado do Serpentine, com uniformes vermelhos que inflamavam a luz parda. Tornara-se impossível visitar o parque naquela altura sem
avistar um grupo ou outro a preparar-se para a imensa invasão que nunca chegava. As dificuldades na Irlanda tinham vindo duplicar os esforços.
Yates não considerava a invasão provável. Acarretava demasiados riscos, e os franceses haviam expandido aquela guerra em tantas direções que um tal esforço envolveria
recursos que não os considerava capazes de mobilizar. O facto de a considerar improvável não significava, contudo, que pensasse que os preparativos não devessem
ter lugar. A lógica dizia que não seriam necessários, mas nunca se sabia se o inimigo abdicaria da lógica.
Os companheiros cavalgavam em silêncio, absortos quiçá, tal como ele, nas questões maiores que assolavam o mundo. Iam encontrar-se com homens que traziam um relatório
da rede de vigilantes que haviam organizado na costa. Aquilo provavelmente explicava a seriedade de Kendale, que analisou a tropa civil à sua passagem, avaliando
a formação com o olho de militar.
A seriedade de Southwaite era menos expectável.
Subitamente, Kendale parou o cavalo.
– Não consigo fazer isto, Southwaite. Sei que me pediu para fingir que nada tinha mudado, mas é mentira, e não pense que vou fazer de conta que nada aconteceu para
continuar com esta farsa.
Yates voltou o cavalo para o amigo encolerizado.
Southwaite também parou e respondeu:
– Não virá nada de bom daqui. Um amigo sabe quando manter o silêncio.
– Parece-me a mim que um amigo fala abertamente, para que não proliferem ressentimentos calados – ofereceu Yates.
Southwaite fechou os olhos num esforço de contenção.
– Muito filosófico da sua parte, Ambury. Sem dúvida que a minha mulher iria concordar, uma vez que também ela prefere a franqueza. Infelizmente, a franqueza de Kendale
é ainda mais franca do que a dela, e do tipo que cria mais problemas do que os evita.
Yates não discordou, mas pensou que dizer aquilo à frente de Kendale era mais franqueza do que o necessário.
O semblante de Kendale endureceu.
– Então devo deixar passar tudo em branco porque convém aos seus propósitos e ao prazer dele?
Yates tentou aligeirar uma conversa que, de súbito, passara a ser mordaz.
– Seja quem for este amigo, será de deixar passar se for uma coisa pequena. Se virem que pode prejudicar a amizade, falar pode ser a melhor opção.
Southwaite semicerrou os olhos.
– Longe de mim tentar rebater um conselho tão sensato vindo de um homem adepto de manter a sua amabilidade mesmo quando talvez fosse melhor não o fazer.
– E o que pretende isso dizer?
– Pretende dizer que há alturas para se ser solícito e convivial, e alturas para se ser comedido e discreto.
Confuso, Yates olhou para um e para outro. Ambos lhe devolveram o olhar. Durante um momento, simplesmente se olharam. Os olhares cúmplices trocados entre Kendale
e Southwaite fizeram Yates suspeitar pela primeira vez do que se passava.
Kendale desviou o olhar e passou as mãos pelo cabelo.
– Maldição! Já é suficientemente mau que ela seja convidada para jantar em casa do Southwaite.
– Já expliquei isso. Condene-me se desejar, mas quando coloco lado a lado insultos e lealdades antigos e a felicidade de Emma, só há uma decisão possível.
– Ele não é casado e não tem novas lealdades para lhe fazer esquecer as antigas – cuspiu Kendale.
Yates percebeu que era ele o amigo que estava no centro da disputa, sobretudo porque Kendale apontou um dedo na sua direção.
– De que é que estão a falar? Eu não vos fui desleal.
– A mim não.
Southwaite ergueu uma mão, comunicando a Kendale que não dissesse mais nada. Depois, voltou-se para Yates.
– Foi visto.
Falavam de Cassandra, claro, e agora a razão daquele silêncio e daqueles olhares fazia sentido.
– Visto? – repetiu, fingindo uma inocência que não sentia.
– No terraço, por alguns. Que seguiu no encalço dela foi notado por outros. O facto de chegarem juntos ganhou um novo significado – prosseguiu Southwaite.
– Também foi visto a sair do raio de casa dela a meio da noite, caramba – acrescentou Kendale.
Gaita! A primeira parte podia explicar facilmente. Mas se tinha sido visto a sair de casa dela...
Consultou a memória. Pareceu-lhe recordar sons indistintos de uma carruagem a descer a rua, quando saiu de casa de Cassandra. Não conseguia ter a certeza. A única
coisa de que se lembrava daquela retirada coerciva era uma frustração sexual desumana e insuportável.
– Visto por quem?
– Importa por quem? – replicou Kendale.
– Pode apostar que sim.
Kendale voltou-se para Southwaite.
– Você e a conversa de «as más-línguas não tornam realidade coisa nenhuma». Eu disse-lhe que era verdade. Ele anda a fornicar a mulherzinha.
Yates permitiu-se expor a irritação que sentia no olhar que dirigiu a Kendale.
– Primeiro, não deve falar dela dessa maneira. Nunca mais. Segundo, por sinal, não é verdade. Juro pela minha honra de cavalheiro. Não tomei Lady Cassandra Vernham.
Aquilo apanhou Kendale desprevenido, que rapidamente ficou sem saber o que fazer e se mostrou acabrunhado.
– Peço desculpa. Eu deveria saber que você não... Quer dizer, era ainda mais amigo do Lakewood do que eu, o que significa que nunca teria nada com ela.
A expressão de Southwaite permaneceu cuidadosamente neutra. Um olhar de esguelha a Yates mostrava que um dos amigos não estava assim tão convencido das intenções
em jogo, embora aceitasse a corajosa declaração de falta de sucesso.
– A minha lealdade ao Lakewood não implica condenar uma mulher por algo que é apenas uma suspeita – declarou Yates. – E apresento isto como sendo uma questão diferente
das acusações que fez há duas noites.
Kendale mostrou-se novamente desconfiado.
– Agora inventa-lhe desculpas.
– Estou a dizer que não tenho a certeza de qual foi a pessoa que motivou aquele duelo e que temos errado em a culpar sem o sabermos. Visto que o Southwaite a recebeu,
e permite que a mulher e a irmã sejam amigas dela, está na altura de admitir que as suspeitas que recaem sobre esse duelo são apenas isso, e delas não faz prova
coisa nenhuma a não ser a nossa noção pouco exata das mulheres presentes na vida do Lakewood.
– Está a inventar-lhe desculpas.
– O que ele diz é verdade. Cheguei à mesma conclusão por mim próprio – declarou Southwaite. – Eu fui o padrinho do Lakewood naquele duelo e ele nunca me disse o
nome da mulher que o levou a desafiar o Penthurst.
A expressão de Kendale indicou desagrado por ver abrir-se aquela nova frente de forma inesperada na guerra que travavam os três.
– Ele só tinha uma mulher na cabeça. Ao contrário daqui do Ambury, que tem ligações às dúzias, o Lakewood amou uma vez e amou para sempre.
Era uma visão espantosamente romântica de Lakewood, ou de qualquer homem, para se ser exato. Era surpreendente, vinda da parte de Kendale que, Yates juraria, não
tinha a mínima experiência com amor, e que sempre dera provas de uma visão muito cínica das relações amorosas.
Sentiu-se culpado por colocar em causa uma ilusão.
– Nenhum de nós sabe realmente, é só isso que digo. Seis anos é muito tempo para um homem se consumir por uma mulher, quanto mais esperar a hora de morrer por ela.
Ninguém disse mais nada durante vários minutos. Depois, continuaram o seu percurso lado a lado. Mais à frente, dois vultos emergiram do nevoeiro, também eles montados.
Um homem saudou-os e os dois grupos começaram a convergir.
– Nenhum de nós sabe ao certo que o duelo não foi travado por ela – disse Kendale, proferindo a última palavra imediatamente antes de alcançarem os outros.
Yates não podia discordar, por mais que quisesse.
*
Na manhã seguinte, Cassandra não acordou com pena de que a tia Sophie os tivesse interrompido. Antes, viu chegar a madrugada muda de espanto com a sua precipitação
e passou o dia a calcular a verdadeira amplitude da sua estupidez.
Afinal, tratava-se do homem que investigava os brincos. O homem que, sem sombra de dúvida, comprara aqueles brincos para os oferecer de presente a uma mulher que
era muito mais importante para ele do que ela.
Ele era a pessoa responsável pela demora do dinheiro que lhe permitiria fugir com a tia Sophie. Presumira que o atraso de um mês em concluir a venda das joias não
importaria. Enganara-se.
Tampouco ele a absolvera com relação a Lakewood. Mesmo tendo-a beijado, a questão ficara em aberto. Apesar de ter passado anos com dúvidas acerca daquela história
comprometedora, quando a fizera render-se ao prazer ainda não aceitara a verdade dos factos.
Quero-a, dissera ele na casa de Mrs. Burton. Não era especial, ele querê-la. Os homens rapidamente se perdiam de desejo por uma mulher e ela estava acostumada a
ser desejada daquela forma. Também ele, suspeitou.
Estes pensamentos desanimadores davam voltas na sua cabeça. Não desculpavam o que acontecera e tampouco o embelezavam. Tivera o comportamento temerário que todos
os rumores lhe atribuíam. Se não fosse a oportuna interferência da tia Sophie, seria finalmente merecedora de todas as viperinas condenações.
Dois dias depois do jantar, ainda a ruminar aquela paixão e tentando arduamente convencer-se de que não se comprouvera tanto assim, dirigiu-se para a Strand. Já
estava mais do que na altura de procurar encontrar o penhorista ao qual Sophie relatara ter comprado as joias.
O penhorista reconheceria seguramente aquelas joias tão elegantes pelo desenho que ela trouxera. De certeza que se recordaria da pessoa de quem obtivera artigos
tão distintos, mesmo tendo o episódio ocorrido há vários anos. Sem dúvida que tinha sido alguém de uma boa família cuja integridade era inquestionável. Teria toda
a informação para dar a Ambury e este dar-lhe-ia finalmente o dinheiro. Ela e a tia Sophie estariam de partida antes do final da semana.
Era aquele o plano, pelo menos.
Três horas depois, fora encaminhada para quatro penhoristas diferentes cujos estabelecimentos poderiam ser descritos como ficando a poucas portas da Strand. Nenhum
tinha a porta azul, mas as portas podiam ser pintadas de cores diferentes ao longo do tempo. Os primeiros três proprietários não conseguiram ajudá-la de forma alguma.
O quarto ficou a olhar durante muito tempo para o desenho que ela fizera, o que a deixou esperançosa.
– Já as teve? – perguntou. – Foi há muitos anos.
Ele abanou a cabeça. Tinha o cabelo escuro apanhado numa trança, atrás, mas a careca descobria-lhe a maior parte da cabeça. Os olhos escuros fizeram-na pensar num
falcão.
Apontou para o desenho.
– É um diamante. Pode ter pensado que eram imitações.
– Eu sei a diferença. Não sobreviveria há tanto tempo se não soubesse.
– Parece reconhecê-los.
– Não é reconhecê-los. Nunca os vi. – Entregou-lhe o desenho e acrescentou: – Só não é a primeira a perguntar por eles. Descreveram-me uns brincos muito parecidos
com estes recentemente, por isso o seu desenho apanhou-me de surpresa.
Com aquilo, regressou à tarefa de pesar a colher de prata que estava na balança quando ela entrara. Ela repôs o desenho na bolsa.
– Quem mais veio perguntar acerca deles?
O penhorista empilhou alguns pesos para pesar a colher.
– Seria indiscreto da minha parte dizer-lhe. A minha profissão requer sigilo. Se andasse a dizer quem me entra pela porta, rapidamente ninguém com objetos de valor
voltaria a fazê-lo.
– Pensei que esta pessoa apenas lhe tivesse feito perguntas.
– Verdade. Tal como a menina. Devo dizer a toda a gente que veio cá com um desenho e fez perguntas?
Ele deve ter percebido o quanto a ideia lhe desagradava, pois sorriu e deixou cair mais um minúsculo peso no prato da balança.
– Seja como for, não sei quem era. Um cavalheiro, talvez.
– Um cavalheiro idoso?
Ele ficou um momento a pensar e abanou os ombros.
– Idoso não. Ainda não era grisalho. E não tinha... – concluiu, com umas palmadinhas na careca.
– Ele era...
O penhorista ergueu uma mão.
– É tudo o que sei e mais do que devia ter dito. Agora, tem de me desculpar, a não ser que haja alguma coisa que deseje penhorar.
Ela contrariou a curiosidade que sentia, mas era difícil não insistir com ele para que lhe contasse mais. Era lindo de morrer? Veio numa boa carruagem puxada por
uma parelha de cavalos brancos? Os seus olhos eram mais azuis do que as melhores safiras? Tinha um sorriso capaz de encantar serpentes?
O penhorista não lhe diria mais nada. Partiu para ir ter com Emma como tinham combinado, segura de já ter respostas para as suas perguntas. Ambury não ficara à espera
dela para descobrir a história dos brincos. Procurava-a pelos seus próprios meios.
Emma abriu o depósito da leiloeira, revelando doze quadros dispostos contra a parede.
– O meu irmão tem-se saído muito bem num dos deveres deste negócio – declarou. – Mostra-se muito competente em passar tempo considerável em sítios onde costumam
reunir-se proprietários de coisas raras. O nome e a reputação do meu pai proporcionam que seja recebido de forma que a maior parte dos homens que negoceia nunca
seria, e está a aproveitar ao máximo.
– Está a revelar-se capaz no restante dessa parte do ofício? – perguntou Cassandra. – Estes quadros estão consignados à Fairbourne’s como resultado dos seus esforços?
Emma inclinou um dos quadros para trás de forma a poder examinar o que tinha por baixo.
– Estão. Três são cópias de velhos mestres. Duas são medianas, mas uma é bastante boa. Os restantes foram pintados por artistas respeitáveis, sobretudo holandeses
e ingleses. Ele quer começar a fazer leilões regulares de periodicidade semanal a partir de outubro. Eu disse-lhe que, para o conseguir, não poderá continuar à espera
de que os consignadores venham ter com ele em festas, somente. Terá de procurar conquistar patronos e clientes. Olhou por cima do ombro e acrescentou o comentário:
– Não é tão divertido como dedicar-se a visitas matinais e ir a assembleias.
– Ainda espera abrir a época em meados de setembro?
– Penso que sim. A Marielle prometeu-me aquelas joias, assim como os camafeus que me trouxe na primavera passada. Propuseram-nos uma biblioteca, também, e a tia
Hortense diz que quer vender alguns dos seus objets d’art. O meu irmão torce-lhe o nariz, pois deseja leiloar apenas arte, mas nem o meu pai tinha conseguido alcançar
essa consistência ainda, e é improvável que o façamos tão cedo, especialmente se começarmos com leilões semanais.
– Precisa de agentes que socializem mais do que o seu irmão.
– Como você? Não me esqueci de que os melhores quadros do nosso último leilão nos chegaram através de si.
– Através da minha tia, se formos rigorosos com os pormenores. Se Herr Werner não tivesse vindo pedir a devolução do colar, eu nunca teria oportunidade de o encaminhar
para si, para consignar a coleção do conde Alexis.
Emma devolveu o quadro ao seu lugar.
– Como está a sua tia? Não a vejo há tanto tempo.
– Está muito bem. Porque pergunta?
Cassandra arrependeu-se do tom áspero assim que as palavras lhe saíram da boca.
Emma não se melindrava facilmente. Pela sua expressão, também não se deixava desencorajar facilmente.
– No jantar, o seu irmão referiu que ela não está bem. Ouviu a Hortense tal como eu. Procurei apenas ser educada quando perguntei por ela, Cassandra.
– Não tenho dúvida de que o Gerald exprimiu preocupação da forma mais solícita. Não tenho dúvida de que toda a gente pensa que é um sobrinho extremamente generoso
e diligente.
Emma abriu a porta, e entraram ambas para a cavernosa sala de exibições.
– Pelas suas palavras e expressão, depreendo que os rumores da reconciliação ocorrida durante a festa estarão muito exagerados.
– Por agora, deixe os rumores prevalecer, Emma. Deixe o seu marido pensar que conseguiu o que tantos falharam. No entanto, além de não ter havido reconciliação,
houve quase uma discussão estrondosa no terraço. Ele encontrou outro homem com o qual deseja casar-me e procura separar-me da minha tia para incentivar a minha anuência.
Emma pegou-lhe nas mãos e apertou-as.
– Lamento ouvir isso. Não por mim, mas por si. Esperava que ele já não se mostrasse tão austero.
– Não falemos disso. Prefiro de longe ajudá-la a pensar no futuro da Fairbourne’s. Se tiver oportunidade de lhe encaminhar consignadores, fá-lo-ei. Também não sou
a única a achar utilidade na percentagem do agente.
Emma assentiu com a cabeça enquanto vistoriava as paredes cinzentas do amplo salão.
– Provavelmente está certa. Agora ajude-me a decidir uma coisa. Parece-me que devíamos pintar este sítio. O que acha?
– Não ficou muito entusiasmada com a minha ideia. Eu julgo que é brilhante. Com algumas diligências discretas, coloca dez pares de olhos a avaliar os quadros das
quintas rurais que visitam. No mínimo, devia recrutar o Ambury, que seria discreto. As expectativas dele podem ser altas, mas o pai continua a apertar-lhe as contas.
Emma observava as paredes de olhos semicerrados.
– Ele já encontrou uma forma de suplementar aquela mesada miserável, portanto não é uma boa escolha.
– Ser seu agente é mais seguro do que arriscar a sorte às mesas.
– Não é às mesas – disse Emma, ainda absorta com as paredes. – Azul, parece-me. Mas não um tom demasiado escuro nem demasiado claro. Teria de ser o tom perfeito.
– Assim seja. Como é que ele anda a suplementar a mesada, se não é ao jogo?
A pergunta deixou Emma confusa por um momento, até conseguir retomar a linha de pensamento.
– Refere-se ao Ambury? O Darius diz que ele efetua missões de investigação para pessoas, de forma muito reservada. Começou por o fazer de favor a um amigo e mostrou
ter o talento e a apetência necessários. Agora é procurado, e são-lhe oferecidas contrapartidas muito discretas pelos seus serviços. Não deve contar a ninguém, Cassandra.
Prometa-me que não o fará.
Cassandra olhou naquele momento para as paredes, mas a única cor que viu foi vermelho. Não reprimiu a raiva que surgia porque esta continha uma outra emoção que,
amarga e densa, lhe pesava por dentro.
O patife. Não estava simplesmente curioso acerca da história dos brincos. Não queria apenas certificar-se de que não haveria constrangimentos se ele as desse a alguém.
Estava a investigar a história deles, o que era um assunto totalmente diferente. Esmiuçava o seu passado para alguém que lhe havia dito que provavelmente haviam
sido roubados. Provavelmente fora contratado para encontrar o ladrão.
Fora por essa razão que também ele visitara o penhorista. Não admirava que se mostrasse tão inflexível com o assunto. Ela fora uma idiota em não ter prestado mais
atenção à estranheza que a determinação dele lhe provocara inicialmente.
Até os beijos dele faziam parte do esquema. Ele confundira-a desde o início com a sua sedução.
Fora igualmente intencional a necessidade de confirmar que os brincos provinham da tia Sophie. O que queria dizer que agora estava a investigá-la.
O pensamento era tenebroso. Julgou que ia vomitar. Se Ambury fazia aquilo por dinheiro, qualquer pessoa podia contratá-lo.
Até Gerald.
– Pergunto-me se uma cor mais próxima do amarelo-claro não ficaria melhor do que azul – disse Emma, batendo ao de leve no queixo, com ar pensativo. – O que lhe parece?
– Amarelo-claro ficaria ótimo. É a escolha perfeita. Agora, poderíamos ir sentar-nos no jardim? Há um favor que tenho de lhe pedir. É grande, receio.
A convocatória chegou nesse final de tarde. Havia meses que Yates não era formalmente notificado da necessidade da sua presença junto do pai, por isso a mensagem
do lacaio surpreendeu-o.
Pousou o mapa com o qual planeava a visita ao disputado território da costa sul. Não tinha feito grandes progressos. Quando estava entregue aos seus pensamentos,
eles divergiam para Cassandra vezes de mais. Então, facilmente perdia uma hora entre memórias daqueles seios firmes e brancos nas suas mãos e na sua boca, e da forma
adorável e excitante como ela tentara, em vão, reprimir os sons do prazer.
Desde o dia em que Kendale e Southwaite o tinham alertado de que fora visto a sair de casa dela, não houvera mais desenvolvimentos, o que não queria dizer que a
história não se tivesse espalhado. O escândalo poderia prosseguir silenciosamente por um círculo ou outro durante muito tempo antes de vir ao de cima como espetáculo
público.
Fora loucura da sua parte tentar possuí-la. Tão imprudente como inoportuno. Inconsiderado e ignóbil a diversos títulos.
Ela acusara Lakewood de comportamento desonroso.
Poderia o desejo tê-lo levado a agarrar a oportunidade de pensar o pior? Poderia ter usado aquelas dúvidas como desculpa para ter forma de a possuir? A sua raiva
manifestara-se apenas um instante, convertendo-se numa fúria diferente e sucumbindo à ânsia de conquistar a voz e a pessoa que acabara de colocar em perigo memórias
de metade de uma vida. O facto de desejar Cassandra há praticamente o mesmo tempo dificilmente o absolveria.
Não se coibia de seduzir uma mulher, mas normalmente planeava o ato com mais cerimónia. Desta vez, não houvera qualquer projeto, somente o impulso de obter o que
desejava e o instinto de saber que havia probabilidade de o conseguir.
Devia uma desculpa a Cassandra, a não ser que pretendesse ver transformado num insulto o ocorrido entre os dois, o que não era nem sua intenção nem sua vontade.
Antes de corresponder ao chamado do pai, garatujou um bilhete e deu-o ao lacaio para ser entregue.
CAPÍTULO 13
Cassandra deparou com a tia na pequena biblioteca da casa com o rosto afundado num voluptuoso conjunto de flores que sobrecarregavam o vaso que os sustinha.
– Divinal – suspirou Sophie. – Rosas e hidrângeas. Que encantadora e inesperada combinação!
– Onde as arranjou?
– Um lacaio entregou-as. A Merriweather estava a colocá-las neste vaso quando desci a seguir à ceia. Isto vinha com elas.
Cassandra pegou no papel dobrado para o qual a tia apontava. Pretendo visitá-la amanhã. Por favor, receba-me. Ambury.
A tia Sophie lançou-lhe um olhar cheio de malícia.
– Graças a Deus que ele não vai fingir que não aconteceu. Os homens que o fazem são tão irritantes. Ninguém deveria pecar, se não está disposto a reclamar o pecado.
– Seria melhor se fingisse. Não penso que lhe pese a consciência, mas o simples senso comum deveria desaconselhá-lo de me visitar.
– Que disparate. As flores mudam tudo. Absolvem todas as presunções. Ter fingido que nada acontecera seria insulto merecedor de duelo. Se tivesse um familiar do
sexo masculino suficientemente corajoso e honrado para o fazer, claro está.
Coisa que ela não tinha. Talvez Sophie estivesse certa e as flores absolvessem qualquer atrevimento ou insulto que aquela noite pudesse fazer supor. Contudo, não
mitigavam verdadeiramente qualquer dos dois.
Não mitigara em medida alguma as suspeitas que sentia em relação a Ambury, e ela desejava realmente que ele não tivesse enviado as flores.
– Tem de o receber. Seria mais fácil se eu também estivesse? – perguntou a tia Sophie. – Posso fazer-lhe companhia quando ele chegar, e ficar durante alguns minutos.
A proposta deixou Cassandra espantada. Abraçou a querida mulher que abdicaria da segurança do seu recolhimento para tornar a tarefa de receber Ambury menos constrangedora.
Segurou Sophie nos braços durante um momento, sentindo-lhe o cheiro a lavanda do cabelo. Beijou o rosto da tia.
– Consigo tratar do Ambury sozinha. Obrigada pelo amor que demonstra essa proposta. Vou recebê-lo como me aconselha, só desta vez.
A tia deu-lhe uma palmadinha no rosto em sinal de aprovação e voltou a mergulhar o rosto no ramo de flores. Depois, pegou num cesto e rumou ao jardim para tratar
das suas próprias plantas.
Quando um homem vê uma mulher nua, nunca mais olha para ela da mesma forma.
Ambury constatou a verdade daquele velho adágio quando entrou na sala de visitas de Cassandra.
Ela apresentou-se discreta, respeitável, até recatada ao seu cumprimento. Se fosse Pitt a visitá-la, não se apresentaria mais formal. Viu, contudo, nos olhos dela,
a mesma familiaridade que ele sentia, e soube que a persistente sensação de intimidade entre os dois era mútua.
Continuaram a fingir que não era. Ele sorria e falava como faria se estivesse de visita à mulher de Southwaite. Mas, de forma constante, na sua mente, as roupas
de Cassandra deslizavam-lhe pelo corpo até ela ficar sentada na poltrona de espaldar reto, completamente nua, com os mamilos túrgidos a implorar que ele os lambesse
até gritar de prazer.
– Obrigada por me receber – disse. – Vou precisar de sair da cidade e queria vê-la antes de o fazer.
– Mais obrigações para com as propriedades do seu pai?
– Sim. Uma disputa de limites entre rendeiros a norte. Disse-me que quer que eu trate pessoalmente do assunto. Julga que acostumará os rendeiros a aceitar a minha
autoridade.
– Como é que ele está?
– Houve uma pequena recuperação que acalenta alguma esperança. É subtil mas é visível.
– São boas notícias. – Entrelaçou distraidamente o dedo num anel de cabelo que lhe descia sobre o ombro. – Se veio saber se descobri mais alguma coisa sobre os brincos,
receio não ter nada para lhe dar. Tenho tentado averiguar, mas sem sucesso. Julgo que o mês terminará sem obter mais informações para lhe dar.
– Não é essa a razão por que vim.
Ela sabia que não tinha sido. Acabava, contudo, de lhe transmitir que se interrogava se as duas coisas – o interesse dele pelos brincos e o seu interesse em a seduzir
– estariam interligados de alguma forma.
Fitou-o com aqueles olhos azuis, à espera. Parecia desafiá-lo a falar do assunto e adverti-lo simultaneamente para não o fazer.
– Preciso de me desculpar por a ter importunado naquela noite. Foi impulsivo e precipitado, o que tampouco me redime.
Pronto. Estava feito.
Ela reviu as palavras dele como se pesasse cada uma.
– Então pensava ficar-se por um beijo ou dois? Nunca pensou em me seduzir, apesar da declaração tão direta que fez na tarde do casamento de Emma?
– Vejo que decidiu não me facilitar as coisas. Como cavalheiro, devo evidentemente arcar com a responsabilidade, seja qual for a forma como escolha interpretar as
minhas ações e intenções.
– Mesmo que não se sinta totalmente responsável. Sente?
A voz dela desafiava-o como se procurasse uma boa discussão.
– Não me envolvo em jogos de culpa nestas coisas – declarou ele. – Se o faz, permita-me aceitá-la por inteiro.
Ela observou-o como se tentasse decidir alguma coisa importante. Talvez se perguntasse apenas se ele o diria com alguma sinceridade.
– Aceito o seu pedido de desculpas – replicou simplesmente. – Não tornemos a falar do assunto.
– Poderá não ser possível. Há quem fale acerca de nós. Ainda ninguém lhe disse?
O semblante de Cassandra endureceu. Um fio de pânico assomou-lhe ao olhar, mas desapareceu após um instante.
– Não. No entanto, a única pessoa que vi foi a Emma, e ela ainda não faz parte dos círculos onde rumores desses seriam iniciados.
– São vagos. Quase inexistentes. Tenho expectativa de que não deem em nada.
– Não me preocupa assim tanto. Enfrentarei o que tiver de enfrentar, como tenho feito.
Ela estava a lidar muito bem com tudo aquilo. Surpreendentemente bem.
– Não permitirei que corram por aí mentiras sobre si – garantiu ele, erguendo-se para se despedir. – Venho visitá-la quando regressar. Veremos como as coisas estão
nessa altura.
– Só precisa de escrever. Não tem de vir cá.
– Venho cá visitá-la, de qualquer forma.
Para surpresa dele, ela acompanhou-o à porta. Ficaram ali parados, a escassos passos do local onde a paixão tão recentemente prevalecera sobre o bom senso.
Ela olhou para Ambury depois de este ter feito a sua vénia. Nem os olhos nem a expressão dela mostravam a ironia que tão amiúde empregava como escudo.
– Dê-me um beijo, Ambury, para nos despedirmos como amigos.
Era a primeira vez que ela reconhecia a intimidade que os ligava agora. As primeiras palavras que não primavam pela indiferença e pela sobranceria de uma mulher
que falava como se aceitasse de ânimo leve a sua reputação duvidosa.
Ele ergueu-lhe o queixo e roçou os lábios dela com os seus. Demorou-se, porque naquela noite não se tratara totalmente de um impulso momentâneo, e agora separavam-se
como mais do que simples amigos.
– Vá agora – disse ela, recuando. – O dever aguarda e não devemos negar-nos a ele.
Ambury abriu a porta e olhou para ela. Cassandra ficou na sombra, protegida da luz que entrava. Dirigiu-lhe um sorriso triste e incerto, e fechou a porta atrás dele.
– Aqui está a carta para o Ambury – disse Cassandra. – Aqui está a do advogado, Mr. Prebles, que tem as joias à sua guarda. E esta é para si, e tem a minha permissão
para voltar a colocar os brincos em leilão se eu ficar em Anseln Abbey mais tempo do que o inicialmente previsto.
Emma pegou nas três cartas lacradas e pousou-as no canto da secretária.
– Por favor, permita que lhe dê simplesmente o dinheiro.
– É melhor assim.
– Não compreendo porquê. Mas também não compreendo porque é que o Ambury ainda não pagou por elas. Disse-lhe a si depois do leilão que o Darius se ofereceu para
cobrir o lance se precisasse imediatamente dos fundos. Claro que ele não esperava que o Ambury demorasse meses a pagar, tal como você não esperava.
– Não fique com má impressão dele por causa da demora. Tem sido muito solicitado por assuntos familiares.
Não sabia porque defendera Ambury. Fosse por que ponta lhe pegasse, tratava-se de um atraso enorme. Visto que ele licitara os brincos e investigava a sua história
para outra pessoa, como seu agente, nem sequer tinha a desculpa da doença do pai.
Defende-lo pela doçura do último beijo dele, e porque ele prometeu defendê-la. Bem poderia revelar-se um canalha no fim de tudo, mas naquele momento, enquanto organizava
os meios para fugir de Londres, sentia-se vulnerável a sentimentos nostálgicos.
Aquela emoção era mais um reflexo de uma tristeza que não a largava. Devia partir, claro. Devia levar a tia Sophie para longe dali. Os bilhetes para o navio já tinham
sido comprados com o dinheiro dado por Emma, que nem lhe perguntara pelo propósito do empréstimo antes de concordar em lho conceder.
O combinado relativamente às joias também estava tratado. Quando o mês terminasse, como Ambury não teria mais informação, Emma dar-lhe-ia a carta para o relembrar
do pacto. Enviaria a Prebles, o advogado, a carta a exigir que as joias fossem disponibilizadas. Então, Emma adicionaria os brincos ao primeiro leilão e far-se-ia
pagar com a receita.
Emma segurou a última carta.
– Era desnecessário. Não preciso de uma promessa assinada da sua parte por causa do empréstimo, se é que insiste que seja um empréstimo.
– Prefiro fazer desta forma. Tenho a certeza de que o seu marido também o preferiria, se soubesse. Ele sabe?
Emma corou. Tal como Cassandra presumira, Southwaite não sabia.
– Quando é que vai visitar a propriedade da sua família?
– Amanhã.
Decidira visitar a mãe uma última vez. Seria surpresa, e só durante alguns dias. Gerald estava na cidade, por isso a mãe e ela podiam passar algum tempo juntas,
em privado. Quando regressasse, viajaria com Sophie numa carruagem alugada até Liverpool, e ir-se-iam embora dali.
Olhou para Emma e sentiu uma dor no peito. Lembrou-se da primeira vez que se encontraram, em frente a um quadro numa exposição da Royal Academy. Tinham discutido
se o artista merecia o prémio que ganhara. Mais tarde, não houvera qualquer alteração na postura franca de Emma, quando esta soubera que falava com a filha de um
conde. A conversa convertera-se num longo passeio e, com o tempo, numa amizade profunda. A única amizade próxima que Cassandra tinha.
Havia uma quarta carta, além das três que se encontravam agora pousadas na secretária. Seria enviada de Liverpool no dia em que ela e a tia Sophie partissem. Esperava
que Emma, que nunca a culpara ou julgara, que aceitara as visões rebeldes de uma amiga, mesmo quando não eram as dela, compreendesse que não poderia haver mais despedida
além da que tinha lugar naquele momento, cuja existência ela desconhecia.
Emma pegou num relógio delicado que tinha pousado na secretária.
– Espero que fique um bocadinho, ainda. Estou à espera de uma consignação muito importante, que deve chegar a qualquer momento, e gostaria que a visse.
– É o seu irmão que a traz?
– Ele ainda não sabe de nada, mas vai ficar encantado, se for tão boa como estou à espera que seja.
Pousou o relógio, levantou-se e foi até à porta espreitar o salão com impaciência.
Cassandra foi ao seu encontro. Homens atarefavam-se a pintar as paredes, nos preparativos para os leilões outonais. Mr. Nightingale, o singularmente belo gerente
do salão de exposições, dirigia-os. Mesmo em mangas de camisa e colete, a sua perfeição e beleza pareciam irreais. Repreendeu um pintor por aplicar pinceladas que
mostrariam riscos de tinta quando a luz incidisse sobre elas de determinado ângulo.
A porta que dava para Albemarle Street abriu-se. O olhar de Emma voou de expectativa. Mostrou deceção quando viu o seu leiloeiro, o pequeno, discreto e grisalho
Obediah Riggles, que cumprimentou Cassandra com uma vénia, a caminho do depósito, ao lado do escritório.
Emma inquietou-se.
– Afinal talvez não venha hoje.
– Deve ser uma coleção muito boa, se está assim tão empolgada.
– Tem reputação de o ser. Precisarei de ver os quadros por mim própria antes de ter a certeza.
– Vêm da parte de quem?
– Não disse? É a Marielle que os traz.
– Que estranho ela encontrar-lhe quadros. Joias e camafeus, e mesmo desenhos e livros, não são difíceis de transportar pelos emigrados, mas quadros não cabem facilmente
nos barcos que usam para atravessar o canal.
– Estes são muito pequenos. São muito raros, diz-me ela. Não faça um ar tão cético. Ela jurou que a proveniência está estabelecida e que o proprietário... Ah! Ali
está ela!
Uma jovem encantadora, com um vestido há duas décadas fora de moda, entrou. O sol iluminou-lhe o cabelo castanho-claro antes de a porta se fechar. Cassandra pensava
sempre na injustiça que era Marielle Lyon ter aquele aspeto elegante e delicado vestida com seda remendada ornada de renda rasgada.
Saudou Emma com um aceno de mão. Na outra, transportava um painel emoldurado não muito maior do que o espelho de um quarto de vestir.
– Os outros estão lá fora, na carruagem – disse para Emma, entregando-lhe aquele. – Talvez aquele homem bonito possa trazê-los para dentro. O cocheiro também quer
ser pago.
Emma tirou uma moeda da bolsa e deu-a a Mr. Nightingale, que agraciou Marielle com um sorriso cintilante e se prestou a ir buscar os quadros.
Marielle atirou os longos caracóis por cima do ombro enquanto Emma avaliava o quadro. Era de cores brilhantes e mostrava uma deposição da cruz primitiva. As figuras
tinham um aspeto anguloso e descarnado, muito diferente das figuras mais cheias e realistas que se viam na arte renascentista mais cara aos colecionadores.
– É estranho, não é? – disse Marielle. – Não me pareceu que tivesse assim tanto valor, mas o proprietário disse que é muito antigo e raro. Talvez algum nobre inglês
o compre por algumas libras.
– Um colecionador sofisticado vai considerá-lo muito interessante – reagiu Emma.
Era óbvio que ela própria o considerava.
– Aqui estão os outros. Gosto mais deste.
Marielle tirou um quadro a Mr. Nightingale, segurando-o à frente do corpo, voltado para Emma. Mostrava o interior de uma casa velha, e um jardim ao fundo. Um homem
e uma mulher estavam sentados a uma mesa, e tudo tinha um aspeto tão real que quase parecia ser possível tirar pedaços da madeira retratada.
– Este é muito mais recente – disse Emma. – Século XVII. É holandês. Vai sair por muito bom preço.
– Os mesmos termos, certo? – perguntou Marielle.
– Claro!
Emma disse a Mr. Nightingale para colocar os outros quadros no escritório e seguiu-o para os contemplar à luz que entrava pela janela.
Marielle admirava a nova cor da parede. Mr. Nightingale voltou e admirou Marielle. Cassandra passou furtivamente ao lado dos dois.
– São muitos quadros para serem trazidos clandestinamente de França.
Marielle encolheu os ombros.
– As pessoas são engenhosas quando necessitam de o ser.
Cassandra sempre considerara aquela filha de França demasiado misteriosa. Ela própria era emigrada, e sobrinha de um conde, e havia pessoas entre os seus que a consideravam
uma charlatã. Cassandra ainda não chegara a nenhuma conclusão, mas havia pelo menos um emigrado que lhe confidenciara não acreditar que ela fosse sequer francesa.
Emma por vezes conseguia ser demasiado crédula. Se gostasse de alguém, como gostava de Marielle, a sua perspicácia natural podia abandoná-la.
– Sabe que a Emma agora é casada com o conde de Southwaite, não sabe? – comentou Cassandra. – Foi há algumas semanas. Parece surpreendida. Foi anunciado em todos
os jornais de Londres.
– São notícias alegres. Sabia que estavam noivos, mas pensei que demoraria algum tempo.
– Tenho a certeza de que a Emma passará a contar-lhe tudo o que se passa na Fairbourne’s. Temos de nos certificar de que todos os itens que lhe trazemos estão impecavelmente
legais.
Marielle acenou que sim.
– D’accord. – Fitou Cassandra diretamente nos olhos e acrescentou: – Ambas temos de ser cuidadosas no futuro. Especialmente no que diz respeito a joias, julgo eu.
N’est-ce pas?
Cassandra tentou não deixar que aquele olhar direto a deixasse desconfortável. Marielle advertia-a tal como ela advertira Marielle.
– Vou, agora – anunciou Marielle. – Diga à Emma que lhe trago o proprietário dos quadros em breve.
Cassandra voltou para o escritório. Emma estava sentada à secretária, com o quadro pequeno à frente, inclinado de forma a receber a luz da janela. Cassandra ficou
a observá-la por um minuto, gravando na memória a figura de Emma a praticar as técnicas que lhe foram ensinadas pelo pai, a utilizar o seu olhar treinado para ver
mais do que a maior parte das pessoas veria numa obra de arte.
– A Marielle foi-se embora – disse.
Emma ergueu os olhos.
– Tão cedo?
– Eu também tenho de ir. Assim, pode examinar os quadros ao seu ritmo, centímetro a centímetro.
– Admito que quero fazê-lo. Nunca vi nada como este pequeno. Estimo que tenha pelo menos quatrocentos anos.
Esforçando-se por controlar as emoções que ameaçavam inundá-la, Cassandra deu a volta à secretária. Curvou-se e abraçou Emma. Deixou que o abraço durasse um pouco
mais do que o habitual, depois endireitou-se e deu-lhe um beijo na face.
Emma ergueu os olhos com alguma desconfiança.
– Passa-se alguma coisa, Cassandra?
– De todo. Se não lhe pareço muito contente, é porque penso já nas críticas que a minha mãe me fará ouvir.
– Vejo-a quando regressar, querida amiga. Que corra bem, esta pequena viagem.