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CAPÍTULO 14
Cassandra observou a mãe, sentada do outro lado da mesa que os criados tinham posto no terraço. Prata e cristal cintilavam ao sol por cima da toalha que as separava.
As bebidas chegaram: café para ela, cacau para a mãe.
Beberam em silêncio, enquanto as abelhas se entretinham com as flores que cresciam num canteiro próximo. Visto que passava a maior parte do tempo na cidade, Cassandra
considerava o silêncio do campo estranhamente vazio. O facto de ouvir abelhas apenas lhe recordava o quão pouco acontecia ali.
– Imagino que em Londres não se fale de outra coisa a não ser da invasão.
A mãe disse-o como se os franceses desembarcassem na Irlanda apenas para proporcionar uma desculpa para a política ser um aborrecimento durante semanas a fio.
– Não diria isso. A vitória de Nelson no Nilo ainda é objeto de conversa e há sempre um boato ou outro para animar as coisas, até no verão.
– Alguém que eu conheça?
Alguém que ela conhecia muito bem.
– Não me parece.
Mais silêncio. Mais abelhas a zunir. Se se concentrasse mesmo muito, tinha a certeza de que conseguiria ouvir ratos a andar e formigas a correr.
– Planeio ir à cidade daqui a duas semanas, durante alguns dias, para tratar do guarda-roupa. Podia voltar comigo.
– Só vim por três dias, como lhe disse. Devo partir amanhã.
– Três dias. Porque se dá ao trabalho, sequer?
– Dei-me ao trabalho para a ver, mãe. Por que mais?
A mãe corou. Desviou o olhar. Os últimos anos haviam-lhe dado um aspeto roliço. Com frequência, isto suavizava a expressão das mulheres mais velhas e conferia-lhes
um aspeto amigável, mas tinha acontecido o contrário com a mãe.
Quando é que se haviam tornado umas estranhas? Quando é que o silêncio viera de bom grado tomar o lugar das conversas? A sua origem podia provavelmente reportar-se
ao mesmo episódio que tantas coisas mudara na sua vida. A mãe ainda fora mais dura do que Gerald, quando Cassandra recusara Lakewood.
– Também quero falar-lhe acerca da tia Sophie – retomou.
– A Sophie tornou-se um fardo, Cassandra. É muito injusto da parte dela.
– Não incomoda ninguém. Não faz visitas, nem recebe. Cuida do jardim dela, lê os livros dela e atenaza a cozinheira. Como é que pode ser um fardo para si?
– Vejo que a influência que exerce sobre si não diminuiu. Já era suficientemente mau ela ser tão imprudente com a vida e a reputação dela. É imperdoável que a tenha
levado a fazer o mesmo.
Era uma discussão antiga e, naquele dia, Cassandra não desejava alimentar nenhuma discussão.
– Não é sobre a vida ou o passado dela que quero falar, mas sobre o futuro. Pode não saber das intenções do Gerald, mas acredito que devo partilhá-las consigo. Ele
tornou-se demasiado duro, e receio que só a mãe o possa dissuadir.
A mãe não lhe pareceu ficar confusa nem curiosa com o pequeno discurso. Nem sequer olhou para ela para demonstrar atenção. Em vez disso, concentrou-se em vincar
o guardanapo, alisando cada dobra com as mãos.
– Estou ciente das preocupações dele em relação a ela. E dos seus planos.
– Tem de o deter. É errado ele fazer isto, e muito injusto.
– Injusto? Injusto? A Sophie afastou-a de mim, e a menina considera que o seu irmão é injusto?
– Ela não me afastou. Apenas me deu uma casa quando esta se tornou inóspita.
– Ela andou consigo a reboque por todo o Continente e expô-la ao comportamento mais infame. Encorajou a sua desobediência e a sua rebelião. Não espere de mim que
arrisque o desagrado do Barrowmore por a defender. Não faço ideia sequer do que poderia dizer.
– Ela era sua amiga, mãe. Isso não conta para nada? Conheceu o pai por causa dela e ela incentivou o irmão a concretizar o casamento.
Esticou o braço e tomou a mão da mãe.
– Esteve ao seu lado quando o Gerald nasceu. Esqueceu aquele verão que passou com ela? Ela não. Anos de amizade e de amor não contam para nada?
A compostura da mãe sucumbiu. Voltou a cabeça e fechou os olhos. A sua expressão tornou-se apagada e, finalmente, suave.
Cassandra aguardou, esperando que a mostra de emoção significasse que granjeara uma aliada. Por fim, a mãe abanou impercetivelmente a cabeça.
– O Barrowmore não me dará ouvidos, Cassandra. Está decidido a forçar a vossa separação. Está muito determinado. Quer o melhor, ainda que os meios possam ser severos.
– Então não me ajuda? Nem a ela?
– Não posso ajudar. Nem se trata sequer de si, ou dela.
A mãe olhou-a com tristeza.
– A menina nunca compreendeu, mas isto está para além disso. Trata-se da honra de Barrowmore.
– Se eu represento uma mancha assim tão grande nessa honra, ele pode deserdar-me, e eu deixo de interessar. Não tem de ameaçar fazer mal à tia Sophie.
A mãe desviou os olhos humedecidos.
– Não compreende.
– Se não quer ou não pode detê-lo, eu levo-a daqui. Tanto ela como eu saímos da vida dele.
A atenção da mãe intensificou-se.
– Ele disse que esse era o seu plano. Eu não acreditei nele. Significamos tão pouco para si, agora, que consiga abandonar-nos? É por isso que está aqui? Para se
despedir? Ou nem isso tencionava fazer antes de partir?
– Estou aqui, não estou? Não pode significar assim tão pouco estar aqui para a ver.
Uma sensação de enjoo alojara-se no estômago de Cassandra ao ouvir as primeiras palavras da mãe.
– Quando é que ele lhe disse que tinha adivinhado os meus planos?
– Antes de ir para a cidade desta última vez – respondeu a mãe, com um aspeto culpado, como se tivesse dito o que não devia. – Não tenho a certeza, mas não parece
que ele tencione permitir-lhe que a leve embora.
Cassandra sentiu uma onda de pânico. Gerald falara em quinze dias, antes de ir buscar Sophie, mas já tinha definido os seus planos. Se ele adivinhasse que ela poderia
fugir... Se os rumores sobre Ambury o tivessem irritado...
Fora uma idiota. Uma perfeita idiota. Deixara Sophie sozinha com Merriweather. Nenhuma das duas poderia fazer frente a Gerald. Talvez ela também não pudesse, mas
pelo menos tentaria.
Levantou-se.
– Tenho de regressar à cidade. Imediatamente. Ele pode estar a engendrar alguma coisa. Por favor empreste-me uma das carruagens e um cocheiro. Se alguma vez foi
amiga da Sophie, ajude-me a regressar sem demora.
– É tarde de mais. Ele escreveu ontem dizendo que regressaria hoje. Sabe que a menina está de visita e ordenou que a retivesse.
– Como é que ele sabe? Escreveu-lhe a dizer?
– Sabe, porque não a encontrou na casa da Sophie. – Culpa misturada com resignação tingiu a voz da mãe ao concluir: – Está feito, Cassandra.
Yates lançou o cavalo a galope pela terra que flanqueava a estrada que saía de Londres.
Passou a voar pela comprida fila de charretes, grandes carroças e carruagens que jorrava das portas da cidade em direção ao campo. Manteve o andamento até se distanciar
bastante das concentrações de veículos que circulavam devagar pela estrada poeirenta.
Do outro lado da estrada, Kendale acompanhava-lhe o ritmo. Fariam companhia um ao outro até Kendale rumar à sua propriedade de Buckinghamshire.
Quando os cavalos mostraram cansaço, a estrada já estava desimpedida. Os dois juntaram-se no centro e continuaram num ritmo mais sossegado.
– Então, vai para a Irlanda? – perguntou Yates.
A experiência no exército e o título de Kendale permitiam-lhe obter uma patente se o quisesse.
– Não.
– Surpreende-me. Acaba de me custar cem libras.
– Apostou?
– Julguei que fosse uma forma segura de ficar cem libras mais rico. Não julguei que conseguisse resistir, sobretudo porque o inimigo teve a audácia de desembarcar
em território britânico.
– Se fosse lutar apenas com franceses, não hesitaria.
– Os outros são rebeldes. Traidores.
– Não sou necessário nesta campanha. Tornou-se evidente que não sou necessário em nenhuma.
Yates não esperava que Kendale se resignasse a deixar o exército quando o irmão morreu. Aquela nova aceitação surpreendeu-o.
– Está um dia bonito. Já cheira a outono – comentou Kendale. – Não falemos de guerra nem de invasões. Vou sair de Londres porque estou farto das conversas que se
ouvem.
– Julgo que está apenas farto de conversas. Não quer falar de política, investimentos ou da sociedade. Nunca participou em conversas sobre ciências naturais, filosofia
ou literatura. Agora que penso no assunto, foi uma tolice sugerir-lhe que viajássemos juntos, pois dificilmente ajudará o tempo a passar.
– Isso não é verdade. Há muitos tópicos que discutirei com vontade.
– Escolha um.
Kendale pôs-se a pensar. Contando que nada mais se dissesse durante vários quilómetros, Yates deixou-se levar pelos seus próprios pensamentos.
Como era comum ultimamente, aqueles rumaram em direção a Cassandra com muita rapidez.
Ela mostrara-se muito calma quando ele a visitara. Talvez ele tivesse sido imbecil ao presumir que se sentira insultada. Se isso acontecera, não demorara a recuperar.
Durante o tempo que passaram sentados a conversar, uma linguagem invisível e inaudível passou entre os dois, porém. As memórias do prazer criavam amarras, como também
o próprio desejo. Poderiam ambos negar o seu poder. Poderiam concordar que tinham sido precipitados. Poderiam decidir voltar a relacionar-se como antigamente, até
mesmo como antes do casamento. Nada daquilo alterava a verdade de que a intimidade havia destruído a maior parte das barreiras que existia entre os dois de maneiras
que nem a distância nem o tempo reporiam totalmente.
– Lady Cassandra Vernham.
Yates sobressaltou-se ao ouvir ser pronunciado o nome da mulher que lhe ocupava os pensamentos. Olhou para Kendale em cima do cavalo, costas direitas e perfil inflexível.
– O que tem ela? – perguntou Yates.
– É um assunto sobre que poderei conversar. Disse-me para escolher um.
– Isso foi há dez minutos.
– Era uma lista comprida. Ela não estava no topo, mas rejeitei os anteriores por os considerar demasiado entediantes.
– Apeteceu-lhe iniciar-se nas más-línguas, agora? É isso que faz dela um tópico menos entediante?
– Não estou interessado nas más-línguas, mas nos factos da situação. O que está a fazer é comum no exército. Nem tanto no nosso, embora haja episódios que são conhecidos,
mas não abordados. É muito comum no Continente. Os franceses são seus adeptos, entre outros. É tão antigo como a própria guerra, suponho.
– De que diabo é que está a falar?
– De tratar as mulheres como despojos de guerra. De afirmar a vitória reclamando a posse de uma mulher. Ela derrotou o Lakewood, e agora você conquista-a para o
vingar e erguer a bandeira.
– Não faz sentido nenhum. Não me resolvi a conquistá-la.
Só que resolvera. Tratava-se apenas de uma guerra diferente, mais antiga ainda do que os conflitos militares.
– Perdoe a minha escolha de palavras. Está a conquistá-la. A seduzi-la. A cativá-la. Está...
– O Lakewood também não tem nada a ver com isso.
– Não tem? Como pode não ter? No calor da paixão, ele pode estar longe dos seus pensamentos, mas a vingança é a única explicação para o seu interesse nela. Há pouco
na mulher que seja atrativo, e muito que não é.
– É louco? Feito de pedra? Cego? Ela é linda! Céus! Aqueles olhos... aquela boca. Como pode dizer tamanhos disparates?
Kendale olhou para ele como se ele fosse louco.
– Se vocês os dois a consideravam tão deslumbrante, terei de aceitar que alguns homens são assim. Eu próprio, não vejo nada disso. Quanto à vingança, é a explicação
implícita e eu não vejo forma de dissuadir o mundo disso.
Estar em cima de um cavalo de repente tornou-se um inconveniente àquela conversa.
– Pare. Agora. Aqui mesmo.
Kendale fez o cavalo parar.
– O que quer dizer com «explicação implícita»? – indagou Yates. – Porque pensa uma coisa dessas?
– Ouvi-os falar disso. Há dois dias, no Brook’s, vários membros analisavam a questão. Ontem à noite jantei com amigos no Horse Guards, e foi mencionado. Diabos,
quando estava a amarrar o cavalo em Oxford Street, ouvi duas mulheres que passavam falarem do assunto.
– Pensei que ignorasse as más-línguas.
– Eu disse que não me interessavam as más-línguas. Seria impossível ignorá-las, no ponto em que estão. Não sabia?
– Não.
Passara o tempo sequestrado no raio do escritório a examinar o raio dos arrendamentos para preparar o raio da viagem.
– Não vi as nuvens a juntar-se, mas a tempestade começou à hora mais concorrida, há dois dias – informou Kendale.
Se até Kendale ouvia a precipitação, então devia estar um dilúvio a caminho.
Deu a volta ao cavalo.
– Onde vai?
– Vou voltar para a cidade.
Não podia deixar Cassandra afogar-se sozinha.
CAPÍTULO 15
Anseln Abbey mostrava todos os sinais de ser a morada de uma família detentora de mais dinheiro do que prestígio. Barrowmore era um título antigo, e Yates presumira
que a terra entrara na família no reinado de Henrique I, quando tantos mosteiros foram incorporados pelo pariato.
Há um ano, ele poderia não ter notado os sinais de falhas na manutenção, mas a experiência com a propriedade de Highburton afinara-lhe a visão. À medida que se aproximava
do amontoado de beirais e paredes, ia listando mentalmente a evidente falta de melhorias e o prejuízo que isso causava à casa.
Uma caleira antiga anunciava um sótão húmido e a argamassa que envolvia as pedras precisava de cuidados. Pelo menos uma chaminé precisava de ser refeita e outra
só aguentaria mais alguns anos.
O irmão de Cassandra não deveria ter desejado que ela se casasse com Lakewood, que possuía pouca fortuna própria. Embora o atrativo até pudesse ter sido esse mesmo
se, por acaso, Barrowmore visse com bons olhos aquele casamento. Poderia tornar as exigências de Lakewood muito menores do que as de outro homem no que dizia respeito
ao dote, pois tinha pouco para oferecer do seu próprio lado.
Desejou verdadeiramente que aquele velho amigo não lhe invadisse os pensamentos. Queria acreditar que se reconciliara com todas as ambiguidades à volta da morte
de Lakewood e com a dúvida que subsistia sobre o envolvimento do nome ou da pessoa de Cassandra. Gostava de pensar que tinha sistematizado uma visão filosófica e
posto fim a quaisquer ressentimentos. Continuaria a interrogar-se durante algum tempo, imaginava. Confiava que chegaria o dia em que já não o fizesse.
Apresentou o cartão e pediu para falar com Lady Cassandra, quase esperando o comunicado de que esta não se encontrava em casa. A intenção dela era sair do país,
e a ausência inesperada de Londres podia indicar que acontecera isso mesmo, apresar do que dissera a Emma.
O criado levou o cartão. Um outro veio cinco minutos depois, que o acompanhou à sala de visitas. Via-se que a divisão pertencera à abadia original, e que fora talvez
o refeitório, a julgar pelo tamanho. As obras de redecoração ao longo dos anos haviam-lhe atribuído um teto e um chão dignos desse nome, mas notava-se o carácter
medieval nas janelas de batente e nas paredes irregulares.
Aguardou com alguma expectativa a altura de a ver. Queria a prova de que ela ainda se encontrava no país e não num qualquer navio rumo à América. Desejava também
que a vitalidade de Cassandra viesse conferir um interesse àquele dia como os seus já não tinham há algum tempo, exceto quando ela os visitava.
Sorriu para si próprio. Não era amor, mas pelo menos estava fascinado de um modo que lhe acontecia com menos frequência naqueles últimos anos. Graças a Deus.
Assim que Cassandra entrou no compartimento, ele soube que algo se passava. Ela sorria alegremente e os seus olhos cintilavam, mas ostentava a postura como uma máscara
de cera que derreteria se o sol brilhasse com demasiada força. Não foi Cassandra que o recebeu, mas uma atriz que desempenhava um papel de há muitos anos estudado.
– Veio felicitar-me, Ambury?
– Se houver que dar parabéns, dou-os alegremente. Seria simpático saber a razão.
– O mundo inteiro ficará a saber dentro de dias. Notícias deste tipo correm depressa, mesmo no final do verão. Pensei que já se sabia. – Estendeu os braços num gesto
de incredulidade e anunciou: – Vou casar-me! Consegue acreditar? É um homem íntegro de Northumberland. Ou será de Cumbria? De um desses condados no fim do mundo.
Dizem-me que é bastante atraente e bastante bondoso, e depois de casarmos imagino que deva ficar bastante rico, pois a minha reputação requereu um dote bastante
avultado. Ele e eu vamos envelhecer juntos, a criar ovelhas.
– Parece idílico. Deve estar radiante.
– Era precisamente a vida que desejava para mim própria,
à noite, em sonhos. Foi pena Mr. Treedle... ou será Tweedly... não ter aparecido há alguns anos. Assim eu não teria desperdiçado tanto tempo na cidade, dizendo
a mim própria que estava a divertir-me.
– Parece que bastou um homem com uma propriedade cheia de ovelhas para a conquistar. Se o mundo soubesse, podia até ter-se encontrado um homem desses no Sussex ou
no Kent, e não tão longe daqui. Seguramente que existem alguns Mr. Treedle-Tweedlys no sul.
– Não mais do que uns quatro mil, ou à volta disso, segundo dizem.
– Então, uma simples indagação teria dado conta do assunto, e evitado todo esse sofrimento.
A máscara caiu revelando a verdadeira Cassandra, num dia tão fora do comum. Os olhos dela faiscavam de raiva.
– Não vai facilitar-me a vida, pois não? Vai rir-se à minha custa. Eu sabia que sim. No preciso momento em que aceitava o casamento, pensei: Ah, o Ambury, o Kendale
e o Southwaite vão adorar isto.
– Não me atrai muito rir à custa de ninguém. Estou mais interessado em ouvir a história que está por trás dessa notícia peculiar.
– Estou a ser uma irmã dedicada, o que não é peculiar, mas esperado. Sei ser assim, apesar do que as pessoas possam julgar.
– É estranho vê-la aceitar a vontade de um homem em quem não confia, independentemente daquilo que o sangue una.
Avançou até estar em frente a ela e ser capaz de ver além do brilho do olhar, fosse este de humor, raiva ou falsa alegria.
– O que é que ele fez para a obrigar a concordar com isto, Cassandra? Não consigo imaginar. Teria apostado que nem que ele lhe batesse tal coisa seria possível.
Ela suportou o escrutínio dele durante alguns momentos, mas depois voltou-se abruptamente. Apertou as mãos. Voltou a olhar para ele, de forma desafiadora, como se
ele tivesse a culpa do que quer que estivesse a perturbá-la. Então, a expressão desfez-se e lágrimas humedeceram-lhe os olhos.
– Ele tem-na. À minha tia. Foi buscá-la e deixou-a na casa de um médico qualquer, com lunáticos. Terminará ali os seus dias a não ser que eu faça o que ele me ordena.
Claro que aceitei.
Só para ela é que aquilo seria tão evidente. Muitas jovens teriam escrito algumas cartas animadoras à tia e prosseguido com as suas vidas.
Barrowmore era um canalha.
– Tem a certeza de que ela poderá viver livremente se a Cassandra levar a cabo este casamento?
– Ele prometeu... Disse que a autorizará a viver na sua casa, em Londres, com uma companhia adequada que saiba tratar das pessoas que... das pessoas cujas mentes
começam a falhar. Não confio totalmente nele, mas tenho de arriscar, para que a Sophie possa regressar a casa e ter algum tipo de dignidade.
Parecia desesperada, e muito triste.
Ambury viu novamente uma certa culpabilização nos olhos dela. Se ele tivesse concluído o pagamento dos brincos, nada daquilo teria acontecido. Ela e a tia provavelmente
teriam fugido de Londres antes de Barrowmore executar o seu plano.
Ela recompôs-se e voltou a colocar a máscara para desempenhar o papel da Cassandra que o mundo esperava ver.
– Então, o que o traz cá, se não é para me apresentar os parabéns pela minha boa sorte?
– Vim ver o seu irmão.
– Assuntos do governo, imagino. É estranho que Pitt lhe peça para ser mensageiro se precisam do Gerald para alguma coisa menor.
– Outros assuntos.
Ambury gesticulou para o lacaio que se encontrava à porta e entregou-lhe um cartão.
– Diga ao conde que estou aqui.
– Por favor, não diga nada acerca do que lhe contei – suplicou Cassandra quando o lacaio regressou para o buscar. – Usar da sua sagacidade com ele só irá irritá-lo,
e poderá tornar tudo ainda mais difícil.
– Não tenciono dizer uma palavra acerca do seu noivado iminente com Mr. Treedle, a não ser que ele próprio o mencione.
Barrowmore recebeu-o na biblioteca. Mal Yates entrou, deparou com o ar presunçoso do conde, o ar de um homem que fizera, mais uma vez, valer a sua posição num assunto
de enorme importância para si próprio.
– Passava por perto, Ambury? Caso contrário, não estaria à espera de uma visita sua. Se procura alojamento e refeição por uma noite, claro que teremos o prazer de
o receber.
– Estou aqui especificamente para o ver, relativamente a um assunto de importância considerável para os dois.
A expressão de Barrowmore alterou-se de forma curiosíssima. Os olhos mostraram um brilho cauteloso. Yates perguntou-se o que poderia ter causado aquela reação, visto
que os dois tinham poucas ligações e pouco contacto. Com exceção de Cassandra. E de Lakewood, claro.
Sentaram-se e fingiram estar à vontade um com o outro.
– Vim pedir a mão da sua irmã em casamento – disse Yates. – Já tem idade para decidir por ela própria, mas julguei melhor observar os formalismos.
A expressão de Barrowmore assumiu contornos de estupefação. Dir-se-ia que Yates anunciara a invasão francesa.
– Só pode estar a brincar, Ambury.
– De todo.
Mais espanto.
– Santo Deus. Santo Deus! Porquê?
– Adequa-se a mim.
Não ficava bem a Barrowmore exprimir tal incredulidade, como se o merecimento da irmã não fosse além de um Mr. Treedle.
Barrowmore tentou recompor-se, mas falhou. Pôs-se em pé e afastou-se. Por fim, as costas endireitaram-se e a cabeça ergueu-se. Deu meia-volta.
– Lamento dizer que é demasiado tarde. Ela já está comprometida.
– Maldição! Que inconveniência. Quem é o sortudo? Imagino que esteja por cá, para acontecer tudo tão depressa! Gostaria de o conhecer e apresentar as minhas felicitações
de adversário derrotado.
– Ele não está, por isso não é possível. Nem me parece que ele gostasse de conhecer um dos... seus anteriores cavalheiros.
– Ah, ouviu os boatos.
– Já andavam a circular quando saí da cidade. É por isso que está aqui, não é? Para fazer a coisa certa por ela. Mas, tal como disse, é demasiado tarde.
– Tal como muitos rumores, não é verdade nos particulares, mas claro que ninguém se importa. Por isso, sim, é uma das razões pelas quais estou aqui. Se o pretendente
dela não está, e a decisão é tão recente, é-me impossível não me perguntar se ela estará de facto comprometida ou simplesmente prometida. Se se tratar da última
hipótese, seria uma idiotice menosprezar a minha proposta. Suspeito que seja a melhor.
– Prefiro a dele.
– Nas circunstâncias presentes, ambos sabemos que não estou em grande posição para esperar um grande dote, enquanto este sujeito lhe terá praticamente apontado uma
arma à cabeça para obter tanto dinheiro quanto possível em troca de lha levar daqui. E também sou um par do reino. Porque preferiria a oferta dele à minha?
– Desde logo, porque não gosto de si. Depois, um casamento dela consigo provavelmente só traria mais escândalo a esta família. Na verdade, penso que preferia vê-la
morta do que casada consigo.
Yates refreou a raiva crescente. Não era afronta o que experimentava, embora Barrowmore não se tivesse coibido de o insultar. Experimentava, sim, uma indignação
imensa pela atitude de Barrowmore em relação à irmã. O irmão queria castigá-la com aquele casamento. Queria-a isolada e invisível. Não se importava que ela ficasse
infeliz e presa a um homem que, com toda a probabilidade, a desprezava.
Queria dar uma sova a Barrowmore. Em vez disso, levantou-se.
– Fiz o meu dever e tentei retificar as consequências do meu comportamento. Visto que isso não lhe diz nada, despeço-me, considerando concluído aquilo que me levou
a falar-lhe.
Saiu, ignorando a tentativa do criado para o acompanhar, e voltou à sala de visitas.
Cassandra esforçava-se por manter a compostura. Ver Ambury tinha sido simultaneamente um horror e um alívio. Um horror porque a presença dele lhe recordava a ironia
da sua situação e também a interferência que ele acabara por ter nas expectativas que ela alimentara de salvar a tia. Um alívio porque necessitava de alguém com
quem falar e a quem contar da crueldade do irmão.
Felizmente, ele não se demorara, ou ela acabaria a lamentar-se do seu destino. Teria sido constrangedor, especialmente porque, com toda a probabilidade, ele não
iria mostrar-se muito solidário. Poderia até pensar que havia justiça no casamento dela com Mr. Treedle, ou fosse lá qual fosse o nome dele. Ela recusara um barão,
vivera a desafiar o escândalo e agora simplesmente colhia aquilo que semeara. Tanto quanto esperava, seria a visão de toda a gente.
Fechou os olhos e tentou encontrar um intervalo de serenidade para o caos que lhe tumultuava a cabeça e o coração. Perguntou-se como estaria a tia Sophie na casa
do doutor. Esperava que as cuidadoras de Sophie percebessem que ela não pertencia àquele lugar e que a tratassem como uma amiga e não como a uma reclusa. Esperava
que a deixassem trabalhar no jardim...
Experimentou algum descanso, o primeiro que tinha em dois dias. Era delicioso suspender a infelicidade por um momento. Se conseguisse fazer aquilo durante algumas
horas, talvez encontrasse uma forma de travar aquela batalha com Gerald, em vez de se render simplesmente.
– Venha comigo – ordenou uma voz.
Uma mão firme agarrou-lhe no pulso e fê-la levantar-se.
Despertou com o sobressalto. Ambury começou a andar, arrastando-a com ele. Cassandra seguia aos tropeções atrás dele, em direção à porta que abria para a varanda.
– Precisamos de privacidade – disse. – Mostre-me um sítio no jardim que não se consiga ver da casa.
Surpreendida e completamente aturdida, ela apontou para um arbusto, à esquerda, a meio caminho do jardim. Ambury dirigiu-se para lá, arrastando-a.
Largou-a quando se viram ocultados pelos arbustos. Ela sentou-se num banco de pedra e lembrou-se de que ela e Gerald costumavam brincar naquele canto abrigado do
jardim quando eram crianças.
Ambury pôs a mão no bolso do casaco e tirou um pergaminho. Deixou-o cair no colo dela.
– É uma licença especial. Pedi a sua mão ao seu irmão ainda agora. Ele recusou-se a aceitá-la. No entanto, a aprovação dele não é necessária, e julgo que você e
eu só temos de sair pelo pórtico do jardim e...
Ela ergueu as mãos, interrompendo-o:
– Pare, por favor. Se não se importa, uma notícia chocante de cada vez.
Sentia nele impaciência e irritação. A primeira era da responsabilidade dela, supunha. A segunda, provavelmente devia-se ao tratamento insultuoso do irmão.
Enfiou um dedo no documento que tinha no colo.
– Veio cá com uma licença especial e com a intenção de me pedir em casamento?
– Vim.
– Suponho que isso signifique que as más-línguas acerca de nós não cessaram.
– Não.
– Pobre Ambury. Tenho a certeza de que é uma ironia cruel ver-se escravo da honra com relação a mim.
– Vim aqui para cumprir o que a honra me pede, é verdade. Não levei menos a sério a minha obrigação, nem a lamentei, por se tratar de si.
Não deixava de ser uma galanteria. Ele quase indicara que a ideia não o horrorizava assim tanto.
– Agora não há necessidade, claro – disse ela. – Mr. Treedle vai resolver tudo. Devia ser um alívio para si.
– Mr. Treedle é um idiota.
– Nem sequer o conhece.
– Nem você. Nem sequer sabe se o nome dele é Mr. Treedle.
– Céus, você não parece nada aliviado. Está irritado pelo estúpido do meu irmão preferir o Sr. Seja Quem For a si?
– Não estou irritado. Estou perplexo. A minha proposta devia ser preferível em todos os aspetos.
– Seria uma inconsciência deixar o orgulho levá-lo a cometer uma tolice. Pode estar perplexo, mas foi poupado a um casamento indesejado.
Ambury sentou-se ao lado dela.
– Ouça-me, não estou a brincar. Acho que devíamos fugir e deixar o seu irmão lidar com isso. Não sou nenhum exemplo de virtude, mas também não tenho fama de seduzir
jovens casadoiras. Mr. Treedle não chega para limpar o seu nome. Só eu posso fazê-lo.
Ele falava a sério. Era um querido. E ela ficou sensibilizada.
– Esquece-se da razão pela qual concordei com o plano. A minha tia. O Gerald nunca a deixará partir se eu fugir consigo. Para o resultado ser esse, mais vale não
me casar.
Ele começou a andar para trás e para a frente, com o rosto carregado de exasperação pela relutância dela.
– Digamos que eu encontro uma forma de salvarmos a sua tia.
– O preço desse salvamento seria a minha aceitação deste casamento? De outra forma, não o faria?
– Seria inútil fazê-lo, se assim não fosse. O seu irmão iria resgatá-la e eu não teria qualquer legitimidade para fazer nada. Se você e eu estivermos casados, posso
oferecer-lhe proteção. No mínimo, posso agitar as águas. Agiria em seu nome, mas as minhas ações e palavras teriam muito mais peso do que as suas.
– É verdade que teriam pelo menos tanto peso como as dele – cogitou ela, apreciando a ideia com mais clareza e prevendo possíveis desafios. – Mais, uma vez que tanto
as suas palavras como a sua pessoa são mais valorizadas.
Afinal sempre existia. Uma espécie de escolha. Sem ser propriamente uma, a não ser que desejasse ser enterrada em vida. Sem ser uma escolha de todo, se queria proteger
a tia Sophie. E, contudo...
Ambury parecia tão sério, apresentando as suas alegações a favor de um casamento que nunca procurara, com uma mulher que não amava. Havia tantos não ditos entre
eles, sobre a tia Sophie e a procura de informação por parte dele relativamente aos brincos. Sobre Lakewood.
Talvez Mr. Treedle fosse a melhor escolha, se pensasse nos anos que os aguardavam.
– Dá-me a sua palavra em como ela pode viver comigo e que nunca tentará fazer o que o Gerald fez, mesmo se ela ficar um pouco tolinha?
– Se algum dia ela precisar de cuidado especial, será em sua casa, mais nenhuma.
– Quero que me dê a sua palavra em como vai protegê-la, independentemente do que acontecer.
Ele sorriu com pesar.
– Nunca faço um juramento por algo tão ambíguo como independentemente do que acontecer, Cassandra. Prometo, no entanto, protegê-la, independentemente do que acontecer,
desde que não comprometa a minha honra.
Ela dificilmente poderia dizer que não era o suficiente, embora pudesse não o ser.
Desejou ter a possibilidade de pedir algum tempo para pensar sobre o assunto. Parecia que tinha a cabeça cheia de algodão e uma manada de emoções aos pulos dentro
de si. Não era justo ter de fazer aquilo agora.
– Cassandra, é bom pensar na sua tia. Está na altura de pensar em si, também. Eu fui visto a sair de sua casa, naquela noite. O escândalo grassa por toda a Londres,
enquanto nós estamos aqui. Desta vez, há um nome associado, e é o meu. Não vai sobreviver a isto como sobreviveu aos rumores do passado. Ficará totalmente arruinada
e a minha honra será impugnada. Devo insistir que me permita fazer a coisa certa.
– É toda uma vida, Ambury.
– De qualquer forma, a vida que conhecia terminou.
Era duro. Verdadeiro, mas duro. Tampouco versava a vida que se seguiria.
– Como diria a minha querida Emma, falemos francamente. Você não gosta sequer de mim, Ambury. Não confia em mim. Culpa-me pela reputação manchada do seu amigo. Suspeito
mesmo de que me culpe pela morte dele.
– Gosto o suficiente de si. Quanto ao resto, não falemos nisso. Foi há muito tempo.
Pelo tom de voz dele, ela depreendeu que o «não falemos nisso» começava já ali. Talvez fosse sensato. Talvez pudessem simplesmente encerrar o tópico num roupeiro.
Depois de alguns anos, o fantasma de Lakewood talvez deixasse de arranhar a porta, exigindo atenção.
– Os seus pais não ficarão chocados por se casar com uma mulher de reputação tão colorida?
– Esperam que me comporte com honra e é isso que estou a fazer. Contudo, é verdade que preciso de saber, tanto por eles como por mim, se teve alguma ligação recentemente.
– Ah! Então sempre quer saber a verdade sobre o meu passado.
Ele ponderou e abanou a cabeça.
– Só o passado recente.
– A única ocorrência recente que pode ser apelidada de ligação terminou em fevereiro último. Era um emigrado francês. Precisa de saber se eu estava apaixonada por
ele?
– Não.
Claro que não. Não se tratava de romance, de amor ou de ciúme. Ambury não se importava se ela se tinha dado a outro homem, ou até a muitos outros, desde que não
houvesse nenhuma criança a nascer cedo de mais.
– A sucessão dos Highburton não está em perigo – declarou.
– Nem poderá estar no futuro.
Assim de repente, passaram a negociações significativas.
– Eu sei. Sou filha de um conde. Contudo, depois de assegurada a sucessão, presumo, irá conceder-me a minha liberdade, como é habitual.
Uma nova e pensativa pausa. Bastante longa.
– Vou ponderar.
Ela esperou que ele se mostrasse razoável, mas não saberia até esse dia chegar.
– E você, Ambury? Há alguém a quem este precipitado casamento por obrigação deixará destroçado? Não gosta da pergunta, estou a ver. Talvez todos os rumores que giram
à sua volta sejam mais um assunto de que não falaremos.
– Poderá ser melhor.
De qualquer forma, a vida que conhecia terminou. A medida dessa diferença e da sua impotência preocupavam-na. Sentiu-se invadir pelo pânico. Agarrou-se à coisa que
sabia poder ver concretizada naquilo tudo.
– Como tenciona encontrar a minha tia? Temos de agir rapidamente, se queremos ter oportunidade de o fazer.
– Vou indagar junto do cocheiro e dos cavalariços, para saber onde o seu irmão foi.
– Podem não lhe dizer.
– Se ele a trata mal, trata-os a eles pior, pode ter a certeza. Suborno, se necessário for, mas espero obter deles o rumo que ele seguiu, pelo menos.
– Vou ver se a minha mãe sabe alguma coisa.
Ele pegou-lhe na mão e perguntou:
– Então estamos decididos?
Dizê-lo era difícil. Depois de ter escapado àquele tipo de casamento uma vez, nunca esperaria ver-se noutro. Poderia estar a dar o seu acordo a um erro terrível.
Não era dela que se tratava, contudo. Não podia confiar que Gerald cumprisse as promessas que fizera. Ambury, se o prometera, iria salvar e proteger a tia Sophie.
Ela acreditava nisso e, naquela altura, nada mais lhe importava.
– Sim, estamos decididos.
Então, ele surpreendeu-a. Depois daquela conversa tão prática, beijou-a. Mas não foi um beijo doce para selar um compromisso. Beijou-a inteiramente, com sensualidade,
como se tivesse esperado pelo momento de o fazer. Segurou-lhe a cabeça, abraçou-lhe o corpo e puxou-a para si, para a envolver por inteiro. Beijou-a até surgirem
sensações que a distraíram das preocupações com Sophie.
As implicações carnais daquele casamento tornaram-se explícitas. Ocorreu-lhe então que também aquilo podia ser horrível, se uma pessoa se casasse com o homem errado.
Não lhe restava senão esperar que não fosse.
Quando ele parou de a beijar, olhou para ela, com as pontas dos dedos pousadas nos seus lábios. A mão desceu, deslizando pelo queixo, o pescoço e o peito. Por fim,
libertou-a.
– Vá. Venha ter aqui comigo dentro de três horas.
CAPÍTULO 16
Fazer a Coisa Certa era muito semelhante a arrancar um dente. Se tivéssemos escolha, não o faríamos mas, por necessidade, devíamos suportá-lo.
Ocorreu a Yates, enquanto atravessava a propriedade em direção à cocheira e aos estábulos, que o seu humor devia estar em pior estado. Se não estava, devia-se em
grande parte à perspetiva de possuir Cassandra muito em breve. Pensar em levá-la para a cama colocava praticamente tudo a uma nova luz.
A oportunidade de aplicar os seus dotes de investigador também explicava em parte o seu bom humor. Não se envolvera na atividade com a intenção de fazer algumas
libras. Era a busca que achava interessante, excitante, e o dinheiro acontecia quase que por acidente.
Aproximou-se da cocheira com disposição de investigador, em que metade da sua mente se dedicava a selecionar as perguntas que faria aos criados. A outra metade analisava
com igual naturalidade o potencial de dor que existia na extração daquele dente em particular.
Correria inegável risco ao casar-se com Cassandra. Ela poderia ser ainda mais licenciosa do que os piores rumores davam a entender. Poderia ser-lhe infiel no espaço
de duas semanas. Podia tornar a sua vida privada um inferno se assim o escolhesse. Ele poderia ficar a saber que ela ainda se encontrava com o amante francês. Poderia
descobrir que ela não era merecedora de confiança.
Poderia descobrir provas de que trazia uma ladra para a família.
Quero que me dê a sua palavra em como vai protegê-la, independentemente do que acontecer. Cassandra adivinhara as suas suspeitas. Aquilo a que o pai aludira. Talvez
ela sempre tivesse sabido, mas era possível que as perguntas que lhe fizera acerca dos brincos a tivesse levado a rever o passado com outros olhos.
Até recentemente, a tia de Cassandra havia levado uma vida colorida com viagens frequentes e aventuras amorosas. Todos partiam do princípio de que as suas famosas
joias tinham sido presente dos seus vários amantes. Depois de considerar a possibilidade, porém, ele vira como era fácil, para uma mulher que frequentava grandiosas
casas como Sophie, deitar a mão a uma pedra ou duas, especialmente nas mansões dos tais amantes. Se o Conde Pinga - mor ou o Cavaleiro Pinga-Amor desse pela ausência
de uma joia, como é que poderia provar que não a dera à sua amada de livre e espontânea vontade?
Cassandra há seis anos que era companheira de Sophie. Onde quer que Sophie fosse, Cassandra ia também. Podia ter visto coisas que, retrospetivamente, adquiriam um
novo sentido.
Com jeito, ela até poderia ter ajudado, ou seguido as pisadas da tia. Se a tia Sophie teve oportunidade de roubar joias, Cassandra teve-a igualmente.
O seu pensamento chegou àquela conclusão por sua própria iniciativa. A ideia encadeou-se nas outras, muito à semelhança da forma como os seus passos seguiam a lógica
do ritmo. Estes detiveram-se assim que a sua mente deparou com aquele local em particular.
Ambury contemplou a cocheira que tinha à sua frente e que estava necessitada de um novo telhado de colmo. Reparou no jovem que, numa sombra do exterior, cuidava
de algum material. Enquanto traçava os seus planos, tentou descartar, por absurda, a noção da cumplicidade de Cassandra.
O impulso de lhe desculpar o comportamento não provinha de nenhuma opinião confirmada do seu carácter, nem sequer da nova realidade de ela brevemente se tornar sua
mulher. Tinha mais a ver com uma boca grande e vermelha, e olhos azuis que tinham o condão de parecer, ao mesmo tempo, inocentes e escandalosamente prevaricadores.
Derivava também dos seus instintos. A luxúria e a sensibilidade dificilmente seriam bases sólidas para qualquer opinião.
Seguiu em frente, tentando não pensar nas implicações. Não se demorou naquela que sugeria que Lady Cassandra Vernham, ao aceder a casar com ele, granjeava para si
a melhor proteção do mundo contra possíveis pecados passados.
Yates encontrou o cocheiro a beber cerveja a uma mesa na parte de trás da cocheira. As janelas abertas davam entrada a uma brisa que pouco conseguia secar o suor
que manchava a camisa do homem. Viam-se os casacos vistosos em pregos próximos, prontos para sair. Ele ainda se encontrava de botas, lenço e peruca. A pequena barrica
da qual enchera o copo estava pousada a um canto.
Sobressaltou-se quando Yates entrou e carregou o sobrolho. O seu olhar rapidamente desceu pela figura do intruso, absorvendo os pormenores. Levantou-se.
– Milord! – exclamou, procurando um casaco. – Ninguém me disse que viria, senhor. Vou imediatamente tratar da sua carruagem e ocupantes.
– Não se vista – cortou Yates. – Está muito quente e não preciso dos seus serviços. Não vim de carruagem.
Aquilo deixou o cocheiro ainda mais intrigado. Aguardou que lhe dissessem o que, não sendo os seus serviços, era pretendido.
Yates espreitou pela porta para as carruagens.
– Lady Cassandra deseja levar o cabriolé esta tarde. Como vinha dar uma volta, disse que o informaria.
– Será entregue.
– Na verdade, ela virá até cá. Que esteja pronto daqui a duas horas.
O cocheiro assentiu com a cabeça.
– E vai desejar um lacaio?
– Não.
Ao ouvir a resposta, o cocheiro lançou-lhe um olhar de esguelha, dissimulado.
– Estará pronto.
Yates deu uma volta ao aposento. Havia três camas contra as paredes, mas sem vestígios de uso em duas delas. Olhou a peruca e as calças do criado.
– Deve permanecer de libré o dia inteiro?
– Milord prefere. Há sempre a possibilidade de precisar de uma carruagem. Não gosta de esperar.
Não era invulgar, mas normalmente uma propriedade daquelas tinha mais criados na cocheira do que aqueles que parecia haver.
– Deve ser difícil manter a libré limpa, se tem também de limpar as carruagens e as reparar.
– Isso é feito à noite, por mim e um rapaz.
– E quando a carruagem fica fora até muito tarde, como há três noites?
– Aí é feito antes de o dia nascer, por mim só.
– Melhor ir por uma estrada mais rápida e saber que dorme alguma coisa.
O sujeito travou uma risada trocista.
– Vou pela estrada que me dizem para tomar, mesmo sabendo que são mais quatro horas de jornada e conte duas noites em que não durmo quando venho de Londres, não
uma.
– Eu julgaria que o caminho mais rápido a partir de Londres é óbvio para qualquer um, mesmo para o Barrowmore.
A irreverência não passou despercebida ao cocheiro, que se permitiu abrir um sorriso mínimo.
– Ele conhece o percurso tão bem como qualquer cavalheiro. Houve necessidade de passar por Hertford. A tia acompanhava-o e tivemos de a levar até casa dos amigos,
perto de St. Albans.
– Ela deve ter-se sentido agradecida por o sobrinho se ter dado ao trabalho de a ajudar.
O cocheiro corou.
– Não sei. Os lacaios ajudaram-na com as coisas dela quando lá chegámos. Eu fiquei com a carruagem. E com Milord.
Então Barrowmore nem sequer tivera a decência de entregar Sophie ao carcereiro. Ficara sentado na carruagem enquanto os criados a levavam. Yates sentiu-se tentado
a perguntar se Sophie se tinha debatido. Se assim fosse, não os teria atrasado muito. Era tão pequena que um criado teria pegado nela sem esforço.
O rosto do homem não tinha perdido o forte rubor. Fosse por ter revelado assuntos do amo ou por memórias daquele desvio, Yates não sabia dizer.
Enfiou a mão no bolso à procura de alguns xelins. Se fossem demasiados, o seu informador ficaria preocupado com as mais recentes indiscrições. Se fossem insuficientes,
o seu silêncio futuro poderia não ser comprado. O último era mais importante, por isso pecou por excesso.
– Lady Cassandra pediu-me para lhe dar isto, por pedir que prepare o cabriolé tão tarde. É seu desejo que seja discreto quanto à saída dela. Está cansada da companhia
atual e deseja procurar ares diferentes. Seria melhor prender o cabriolé lá fora e continuar aqui dentro quando ela vier.
O homem espreitou os xelins. Ocultou quaisquer pensamentos que pudesse ter a respeito de Cassandra sair sozinha com um cavalheiro desconhecido de presença inesperada.
– Nunca me foi instruído que informasse das idas e vindas da família. Não vejo razão para começar agora por inspiração própria.
– Foi fácil – soprou Cassandra, quando o cabriolé descia a estrada com o cavalo de Ambury a reboque. – Tem talento para engendrar fugas, Ambury.
– Tivemos sorte por o cocheiro ser cooperante. Caso contrário, deambularíamos pelos campos até eu encontrar uma carruagem para alugar.
Cassandra duvidou de que aquilo chegasse a acontecer. Ambury era um homem que organizava as coisas ao seu gosto. O berço, o encanto pessoal e a postura granjeavam
a cooperação de toda a gente.
– Espero ser elogiada por me ter lembrado de esconder o seu cavalo, para não levantar suspeitas da sua presença na propriedade.
Ele inclinou-se e beijou-lhe o rosto.
– É brilhante.
A tarde declinava e o ar arrefecia. A excitação da corrida para a cocheira e a fuga rápida tinham-na deixado de boa disposição. Imaginou o irmão a explicar a Mr.
Treedle que as coisas tinham dado para o torto e que não ia haver casamento, nem, tampouco, o chorudo dote.
Não a fazia sentir-se mal, pensar em Mr. Treedle. Que tipo de homem concordava com um acordo daqueles sem sequer conhecer a mulher? Tinha de ser muito ganancioso.
– A minha mãe recusou-se a dizer-me onde a minha tia está, mas tenho a certeza de que sabe.
– O que descobri é bastante para a encontrar. Contudo, só amanhã conseguiremos tirá-la de lá. Está mais perto de Londres do que de Anseln Abbey.
– Sabe aonde ir? Afinal, o brilhante aqui é você.
– Não aonde ir, para ser exato. Contudo, sei o suficiente. Bastam-nos algumas perguntas para descobrir o resto. Qualquer médico que receba doentes em casa será conhecido
na área onde mora.
Ele parecia confiante. Cassandra permitiu-se sentir alívio e deliciar-se com a ideia de que, no dia seguinte, àquela hora, teria libertado Sophie.
– Vamos viajar a noite inteira? Não me importo – mencionou ela.
– Não há luar suficiente. Esta noite, fazemo-nos convidados em casa do Kendale. A propriedade dele fica no próximo condado, não muito longe.
Aquilo desanimou-a. Kendale iria estragar a aventura. Muito provavelmente apresentaria vários argumentos contra a fuga deles. Tentaria convencer Ambury a devolvê-la
a Gerald e a deixar a tia Sophie entregue à sorte dela.
– Não podemos ficar numa estalagem?
– Se a preocupa que eu tenha planos para a seduzir esta noite e não quer tais intimidades debaixo do teto dele, deixe-me tranquilizá-la e dizer-lhe que decidi esperar
até depois de casarmos.
– Não é isso. De todos vós, ele é quem mais me odeia.
– Eu não a odeio, Cassandra. Nem ele.
Talvez odiar fosse a palavra errada, mas ela tinha a certeza de que ele sabia o que pretendia dizer. Tal como sabia a razão pela qual a dissera.
– Será mais confortável para si ficar em casa dele, e o pastor da propriedade pode concretizar o casamento de manhã. Prometo que o Kendale não será grosseiro e que
tanto ele como os criados se certificarão de que o seu irmão não tentará interferir.
A lógica de ficarem em casa de Kendale mal deixou marca. Estava demasiado perplexa com a descoberta de que Ambury planeava casar-se com ela logo de manhã.
– Tenciona fazer os votos tão rápido?
– Quando se solicita uma licença especial e se foge de forma clandestina, é costume fazer os votos o mais cedo possível.
Ela olhou a paisagem que corria ao seu lado enquanto tentava aceitar a rapidez com que a sua vida, tal como a conhecia, iria terminar.
Ambury incitou os cavalos.
– Então a perspetiva de intimidade debaixo do teto dele não a preocupa?
A pergunta dele arrancou-a aos pensamentos. Era mesmo de homem, lembrar-se, de toda a conversa, precisamente daquela resposta.
– De todo. Estou a contar que o seu desempenho não deixe sequer lugar a lembrar-me de onde estou.
– Maldição! Agora estou a arrepender-me da minha decisão de esperar.
– Se esperar significa que salvamos a tia Sophie primeiro, não me parece que se arrependa.
Aproximou a anca da dele e inclinou-se para lhe mordiscar a orelha. A menção da intimidade recordou-lhe um dos possíveis benefícios daquele casamento, cujas implicações
não a deixavam de todo indiferente. Endiabrada, acariciou-lhe o joelho.
Ele aguentou as provocações durante uns minutos.
– Diabos!
Freou o cavalo. Segurou as rédeas na mão esquerda e agarrou nela com a direita, puxando-a para um beijo selvagem. A mão passou-lhe por detrás das costas e abarcou-lhe
um seio.
Ficaram ali parados no meio do caminho, deixando uma pequena tempestade tomar conta deles. A excitação não dava tréguas a Cassandra, que tudo envidava, com as carícias
que fazia na coxa dele, para o deixar igualmente desconfortável. Chegou a um ponto em que teriam ou de parar ou de amarrar o cavalo e rumar para o meio do campo.
Ele interrompeu um beijo no meio da paixão. Com a testa contra a dela, o olhar preso no seu.
– Amanhã à noite, estejamos onde estivermos, quero-a nua. Sem roupões, sem cerimónias, sem fingimentos. Quando for ter consigo, quero ver-lhe os seios e as pernas
e o seu desejo de prazer.
Soltou-a e pegou novamente nas rédeas. Ela ficou junto a ele e pousou a cabeça no seu ombro enquanto se deixava levar pela recordação de umas costas e nádegas definidas
a entrar no mar.
Os cães começaram a ladrar ainda a quase um quilómetro da casa. Pelo menos uma dúzia deles acompanharam o cabriolé durante a última centena de metros e puseram-se
a pular à sua volta quando este parou na alameda escura.
Cassandra aproximou-se de Yates, que mantinha o chicote a postos, caso os cães de Kendale mostrassem a mesma apetência social do dono.
A porta abriu-se e um vulto alto e escuro converteu-se numa silhueta por meio da luz que saía do edifício. Após ficar um tempo parado a olhar, o vulto avançou.
– Que diabo está a fazer aqui, Ambury? E numa carruagem tão elementar?
– Busco refúgio.
Yates saltou do veículo e foi ao encontro de Kendale. Os cães seguiram-no, mordiscando-lhe as botas e cheirando-lhe as pernas. Kendale deu duas ordens secas que
logo os dispersaram.
Kendale olhou para trás do amigo, para a carruagem.
– Aquela é Lady Cassandra?
– É.
– Devo dar-me ao trabalho de dizer que os dois se arriscam a um escândalo irreversível ao viajarem juntos e sozinhos a esta hora no meio do campo?
– Não desperdice o seu fôlego.
Kendale suspirou.
– Muito bem. Traga-a para dentro. Não há aqui ninguém que possa ser corrompido pela vossa ousadia. Devo dizer aos criados que precisam de um quarto ou de dois?
– Dois, claro.
Kendale achou graça àquilo.
– Vá buscá-la. Ou devo ir fazer-lhe uma receção calorosa? Sim, imagino que deva.
Prosseguiu até lá e mostrou-se bastante efusivo na receção, pedindo desculpa pela natureza rústica da hospedagem e a falta de confortos femininos. Yates ficou impressionado.
Nunca ouvira Kendale combinar tantas palavras de uma só vez em nome da cordialidade. A expressão cética de Cassandra cedeu.
Yates ajudou Cassandra a descer. Já dentro de casa, Kendale entregou-a a uma velha governanta.
– Ela fica no primeiro quarto ao cimo das escadas, no segundo andar, caso queira procurá-la mais tarde – informou Kendale depois de ela sair.
Yates não se importaria de a procurar no quarto dela naquela mesma noite. Depois do que acontecera na estrada, sentia-se fortemente inclinado a fazê-lo. Não o faria,
decidiu, embora não soubesse ao certo porquê. Seguiu Kendale até à biblioteca, onde o amigo os serviu aos dois de brandy.
– O que quis dizer, com «buscar refúgio»?
– Há a possibilidade de o irmão dela tentar interferir. Poderá aparecer aqui se conseguir seguir-nos.
– Que diabo, deixe-o vir. Metade dos meus criados são a minha ex-patrulha. Se precisássemos, aguentávamos um cerco.
– Assim me parecia. Foi por isso que viemos para cá. Agora sente-se, que eu explico tudo. Ah, antes de o fazer... Há um pastor na propriedade, não há?
Kendale precisou de um bom momento para compreender o que a pergunta implicava. Atirou um olhar fulminante a Yates e voltou a pegar no brandy.
Ocasionalmente, embora não nos últimos tempos, Cassandra imaginara um casamento que a tinha a ela por noiva. Apesar de a fantasia se distinguir em alguns aspetos
particulares, não era invulgar no seu desenvolvimento geral. Nunca incluíra um vestido de casamento que pouco mais fosse do que um prático vestido de musselina,
próprio para usar no campo ou num dia quente de verão.
Não incluíra, decididamente, como testemunhas, uma governanta idosa com cara de poucos amigos nem um Lord Kendale de ar severo.
O pastor, um primo segundo de Kendale, que se iniciava nas suas lides, ficou perplexo e alvoroçado por ser chamado para um tal dever. Foi necessário garantir-lhe
que a licença especial era autêntica, antes de ele assumir a sua posição na sala de visitas.
No momento em que se dava início à cerimónia, uma tempestade estalou. Cassandra observou o aguaceiro pelo canto do olho. O canto oposto do outro olho reparou que
Ambury parecia ser a pessoa mais tranquila daquela sala.
Seria um partido e tanto, em circunstâncias normais. Qualquer mulher sentiria uma satisfação pessoal tremenda se ele lhe tivesse pedido a mão de livre vontade, e
se não houvesse vários assuntos por resolver que poderiam não se revelar benéficos para o futuro em conjunto. Não falariam neles, decidira ele. No entanto, aquilo
não os faria desaparecer.
Chegou a altura da aliança e, para sua surpresa, o casaco de Ambury continha uma. Perguntou-se onde ele a teria conseguido. O gesto e o simbolismo tornaram subitamente
a cerimónia muito real. Categoricamente. Todo o nervosismo de que uma mulher poderia padecer durante todo o seu noivado assaltou Cassandra num único momento, quando
aquele anel veio na sua direção. A mão tremia-lhe tanto que Ambury lhe teve de agarrar no pulso, para conseguir passar pelo dedo o círculo dourado.
E depois, terminou. Estava feito. Ninguém se mexeu durante um bom bocado. Ninguém falou. O pastor parecia petrificado, irradiando um sorriso esperançoso e prudente
na sua direção.
Finalmente, Ambury pousou as mãos no rosto de Cassandra e beijou-a com cuidado, como se adivinhasse o terror que lhe ia no coração.
– Prometo tomar conta de si – disse baixinho.
Não era a declaração de amor da sua fantasia de infância, mas era mais do que muitas mulheres recebiam.
– E eu prometo garantir que não se torna rígido e austero como os seus antepassados – declarou ela.
Ele riu-se, e o som derrubou o constrangimento. As pessoas mexeram-se. O pastor apresentou as felicitações. Ambury ofereceu o braço a Cassandra e rumaram ambos com
o minúsculo e festivo grupo até à sala de jantar para o pequeno-almoço.
*
– Não me parece que possamos recompensar o Kendale pela ajuda que nos deu – comentou Cassandra quando a carruagem entrou em St. Albans.
– Não temos de o recompensar por nada. É meu amigo.
Ambury estava mais interessado nos arredores da povoação do que no comentário dela.
Kendale mostrara-se melhor amigo do que muitos. Não só fizera em sua casa o casamento deles como lhes emprestara aquela carruagem sem ele sequer lha pedir. Para
um homem que vivia uma masculina indiferença às exigências da sociedade, Kendale mostrara um entendimento inesperado, como revelava o comentário em que referira
que seria muito estranho para Ambury levar Cassandra para Londres num cabriolé de um só cavalo, roubado.
Um cabriolé com a tia Sophie no banco de trás seria ainda mais peculiar. Cassandra decidiu que faria saber a Kendale o quão grata estava por este ter previsto as
necessidades práticas. O empréstimo de dois lacaios e de um cocheiro poderia vir a revelar-se igualmente útil, antes de o dia findar. Não duvidava de que Ambury
conseguiria intimidar qualquer médico e garantir a libertação de Sophie quando chegasse a altura, mas não seria mau poder contar com alguns homens fortes ao seu
lado.
– Espere aqui – disse Ambury.
Deu ordem de paragem à carruagem e saiu ainda antes de esta se deter completamente. Ela espreitou pela janela e viu-o entrar numa taberna.
Esperou um quarto de hora até ele regressar e voltar a subir.
– Penso que o sítio que procuramos fica numa travessa lateral a cinco quilómetros da povoação. O médico que lá vive é discreto, mas há relatos de que tem diversos
hóspedes permanentes.
Cassandra crispou-se de tensão e medo.
– Já decidiu como vamos fazer isto? Talvez deva dizer que o meu irmão lhe pediu que a fosse buscar em nome dele.
– Não vou mentir, claro. No entanto, poderei dizer que fui enviado pela família. Como a Cassandra é familiar dela...
Ela esperou que fosse o suficiente. Enquanto a carruagem os levava, imaginou o desenrolar da situação.
A casa que ficava na rua lateral não aparentava ser nada mais do que uma moradia de boa dimensão. Quando se aproximaram não havia nada que indicasse o seu propósito.
Contudo, o barulho que eles provocaram trouxe uma mudança. Logo, rostos pálidos assomaram às janelas no segundo piso e nas águas-furtadas. Cassandra olhava de janela
em janela, procurando Sophie. Via apenas presenças e olhos fantasmagóricos. Olhos confusos. Loucos. Vazios.
– Tenho de ir consigo – disse.
– Nem pensar!
– Ela não acreditará que está cá para a ajudar. Pode pensar que veio a mando do Gerald, para a levar para um sítio ainda mais inóspito. Entramos juntos e, se o médico
tentar impedi-la de vir, então eu saio e você pode regressar com os criados musculosos.
Ele ponderou.
– Vamos tentar o que diz. Mas...
Esticou o braço e tirou a pistola da caixa montada na parede da carruagem.
– Ele também pode ter criados musculosos, e eu não coloco em risco a sua segurança.
Os ocupantes da casa estavam à espera de que eles batessem. A porta abriu-se imediatamente. Um cavalheiro de rosto corado com uma peruca antiquada e calças e casaco
beges saudou-os. Atrás dele encontrava-se um criado, bastante musculado, por sinal.
Ambury apresentou o cartão.
– Viemos visitar Lady Sophie Vernham.
Uns olhos velados debruçaram-se sobre o cartão, depois sobre Ambury, depois sobre Cassandra.
– Não me disseram que iria ter visitas.
– E quem é o senhor, se posso perguntar? – inquiriu Ambury.
O sujeito endireitou-se.
– Doutor Harold Wakely, médico. Esta é a minha casa e o meu hospital privado.
– Oh, céus! Ela está doente? – perguntou Cassandra. – Graças a Deus que decidi fazer este desvio para a ver. É mesmo típico do Barrowmore, tentar poupar-me.
O Dr. Wakely não sabia o que fazer, por isso decidiu-se pela etiqueta. Cassandra aceitou o convite para entrar.
– Se me indicar onde ela está, ficar-lhe-ia muito agradecida – declarou ela.
No entanto, o Dr. Wakely indicou-lhes a sala de estar.
– Receio que tenha piorado desde que aqui está. Agora, a memória absorve-a de formas desditosas durante quase o dia inteiro. Foi por essa razão que o seu irmão ma
trouxe. Está a perder o controlo das suas faculdades mentais.
– Oh, meu Deus! – Cassandra olhou para Ambury com ar aflito. – Tenho de a ver, mesmo assim.
– Ela pode não a conhecer – advertiu o Dr. Wakely.
– Vamos arriscar – disse Ambury. – A minha mulher era muito próxima da tia e sente necessidade de a reconfortar, se puder.
– A sua mulher? A tia dela?
O Dr. Wakely olhou para Cassandra com surpresa.
– As minhas desculpas, viscondessa. Não sabia que eram da família. Sim, claro que pode vê-la. Se quiser seguir-me.
Atravessou a casa, até uma porta nas traseiras que dava para o jardim.
– Ela gosta das flores. Passa a maior parte do dia aqui, se o tempo estiver bom. Ao contrário de alguns dos nossos convidados, não representa qualquer problema.
Não está louca, claro. Apenas começa a viver a segunda infância.
Cassandra viu a tia sentada num banco debaixo de uma árvore a meio do caminho principal.
– Obrigada. Gostaria de ter alguma privacidade com ela.
O Dr. Wakely recuou.
– Eu estarei lá dentro.
Cassandra e Ambury aproximaram-se da tia Sophie. Cassandra reparou que a tia não se mexia e que não olhava verdadeiramente para nada. Tinha a mente noutro sítio
qualquer, como por vezes acontecia nos últimos tempos.
Sentiu uma enorme apreensão. Sophie poderia ter piorado desde a chegada àquele lugar. Seria possível, em apenas alguns dias? Talvez, encontrando-se numa casa cheia
de pessoas mentalmente doentes, uma pessoa escapasse para dentro da própria mente.
Estavam muito próximos quando Sophie atentou à presença deles. Espreitou-os, com aquela ausência no olhar que anunciava a presença demasiado vívida de imagens antigas.
– Ah, Anthony, é você. Sabia que alguém viria salvar-me, mas não esperava um paladino tão nobre quanto o Highburton.
Ambury pegou-lhe na mão e inclinou-se para a beijar.
– Não sou o Anthony, mas o filho dele. Somos muito parecidos, assim me dizem.
Sophie piscou duas vezes os olhos, que cintilaram, acompanhados de um sorriso perspicaz.
– É-o, deveras. É muito parecido com ele quando era novo.
Aceitou o abraço de Cassandra.
– Como é que me encontrou? Espero que o filho do Highburton tenha arrancado o meu paradeiro ao Gerald. O canalha raptou-me da minha própria casa. Consegue acreditar?
Yates observou Cassandra examinar cuidadosamente a tia. Naquele momento, Sophie parecia bastante normal, mas há escassos minutos encontrava-se indubitavelmente perdida
nos seus pensamentos. Confundira-o de facto com o pai, o que indicava que se entregava àquelas memórias de forma bastante intensa, por vezes.
– Conta-me tudo assim que a tirarmos daqui – declarou Cassandra. – O Ambury e eu vamos levá-la para casa connosco. O Gerald não poderá aproximar-se novamente de
si, e se tentar fazê-lo outra vez, vamos para os tribunais impedi-lo.
Sophie desviou o olhar de Cassandra para Ambury, confusa. Então, o seu olhar pousou na mão da primeira, pousada no seu ombro. Viu o anel.
– Está casada? – Observou atentamente Cassandra, depois Ambury e confirmou: – Consigo?
– Sim. Esta mesma manhã – disse Ambury. – Além do meu amigo visconde Kendale, é a primeira a saber.
– Mas que bem. O Gerald não vai gostar nada disso. Na verdade, pode até tirar-lhe a vontade de me aborrecer.
Ergueu-se.
– Tenho muito poucos bens pessoais aqui e não deve ser demorado arrumá-los. Sugeriria que saíssemos simplesmente por um dos portões do jardim, mas verifiquei no
primeiro dia e estão todos fechados. O Dr. Wakely dispõe de dois criados muito grandes para o ajudar com as pobres almas que precisam verdadeiramente da sua hospitalidade,
por isso espero que tenha trazido uma pistola, senhor.
– Trouxe, mas tenho a certeza de que não precisarei dela.
– Então tem mais fé no bom senso dos outros do que eu.
Majestosa, envelhecida, mas ainda bela, parecia estar muito alerta ao mundo à sua volta.
– Vamos, então? Atrevo-me a dizer que qualquer pessoa sã não continuará a sê-lo se ficar aqui tempo de mais.
O Dr. Wakely aguardava-os precisamente do outro lado da porta de trás. Parecia satisfeito por ver a tia Sophie tão consciente.
– É evidente que a sua visita ajudou muito, hoje, viscondessa. Sente-se melhor, Lady Sophie?
– Estou em perfeita forma, meu bom homem. Assim como estive o dia todo de hoje, o de ontem e o de anteontem. Na realidade, já lhe disse várias vezes que não pertenço
a este lugar.
– Claro, claro – arrulhou o Dr. Wakely.
– Vou levar Lady Sophie connosco – comunicou Ambury. – A minha mulher atenderá a qualquer cuidado de que ela necessite no futuro.
Aquilo sobressaltou o doutor.
– Ela foi deixada ao meu cuidado, senhor. Sou obrigado a...
– Não tem quaisquer obrigações. A família mudou de ideias relativamente ao cuidado a prestar. É, sem dúvida, algo que acontece por vezes.
Wakely franziu o sobrolho. Moveu-se de forma a bloquear o caminho para a porta. O criado grande assomou ao fundo do corredor.
– Dei a minha palavra, senhor.
– Não estará a voltar atrás com ela de sua própria vontade.
– O pagamento...
– É seu, julgo eu. Claro que quanto mais tempo Barrowmore for alheio a esta alteração, maior a probabilidade de realmente o ser.
O criado recuou alguns passos. O rosto de Wakely ficou vermelho, e tapou-lhes o caminho de forma mais óbvia.
– Não posso permitir isto. É extremamente irregular e de legalidade duvidosa.
Yates mexeu o casaco de forma a mostrar a pistola. Imobilizou Wakely com um olhar inabalável.
– Não me fale de legalidade. O senhor tomou parte num rapto. Barrowmore não detém qualquer autoridade sobre Lady Sophie e o senhor não tinha nada que aceitar prendê-la
aqui contra a vontade dela, sem provas de que a custódia lhe tinha sido dada. Ela escolhe ir-se embora connosco e eu certificar-me-ei de que o faz. Agora chame o
seu homem e saia da nossa frente.
Wakely manteve-se firme durante mais dez segundos. Então, o braço ergueu-se num gesto para o criado e ele próprio saiu do caminho.
Quando Yates conduzia Sophie e Cassandra para fora da casa, Sophie inclinou a cabeça para junto da sobrinha.
– Vê, querida? Não lhe disse que ele era delicioso?
CAPÍTULO 17
Yates não demorou a perceber que Lady Sophie, na posse de todas as suas faculdades mentais, era uma mulher que não podia ser ignorada.
Depois de se afastarem uns quinze quilómetros do lar de Wakely, pararam numa estalagem de beira de estrada para uma refeição. Yates decidira que deviam seguir em
frente, mesmo que tal significasse chegar a Londres depois de escurecer. As senhoras aceitaram. O que não aceitaram foi o plano que traçou para o que aconteceria
quando chegassem a Londres.
Ele tencionava levar ambas para a casa da sua família, pelo menos durante alguns dias, enquanto diligenciava para alugar uma própria. Lá, Sophie estaria em segurança
e Cassandra teria alguma privacidade e conforto.
– Preferiria regressar à minha própria casa – declarou Sophie. – Recuso-me a ser um fardo para os seus pais, e sentir-me-ia muito embaraçada por me saber convidada
deles sem o seu conhecimento.
– Eles não se importarão, posso garantir-lhe. É uma situação excecional e não sabemos a que expedientes o Barrowmore pode recorrer. Se ficar sozinha em casa, arriscamo-nos
a que volte a desaparecer.
Ele presumia que ela reconhecesse a lógica do seu plano.
– Podemos resolver o problema do Gerald com relativa facilidade. Deixe estes lacaios comigo e dê-lhes ordens para escorraçar qualquer pessoa que tente entrar em
minha casa.
– São criados do Kendale, não meus. É necessário que voltem para junto dele, juntamente com esta carruagem.
– Lord Kendale não se importará que os conserve durante alguns dias, tenho a certeza.
– Se nem sequer o conhece, como é que pode ter a certeza?
A voz dele deve ter revelado a sua exasperação crescente, pois Cassandra, cuja mão estava debaixo da dele, virou a sua para apertar ligeiramente a dele.
– Tenho a certeza, porque ele é um cavalheiro, e a Cassandra disse-me que é oficial. Ao envolver-se na sua escaramuça, nunca retiraria as tropas ao saber que ainda
eram precisas. Escreva-lhe e explique-lhe. Vai ver que tenho razão.
Foi assim que Yates depositou Sophie e dois lacaios na casa de Adams Street. Cassandra aproveitou a oportunidade para preparar uma mala antes de se juntar a ele
na carruagem que prosseguiu para a residência familiar.
– Planeia dar explicações acerca de nós os dois hoje à noite? – questionou Cassandra quando olhou para a fachada escura.
Viam-se luzes suficientes no interior para concluir que os habitantes ainda não se tinham retirado.
– Seria melhor.
– Tenho de ir consigo?
– Eu trato disto sozinho.
– Parece-me sensato. – Ela aceitou a companhia dele até à porta. – De todas as coisas que enfrentei ao longo dos anos, julgo que esta estranha receção é provavelmente
a mais difícil.
– Será a próxima condessa de Highburton, Cassandra. Todas as pessoas desta casa a tratarão como tal.
– A sua mãe...
– Especialmente a minha mãe.
Um criado estava de serviço à porta àquela hora, mas o mordomo não demorou a dispensá-lo. Yates explicou que iriam ficar alguns dias.
– Instale-nos no apartamento do terceiro piso que dá para o jardim. Diga a Mrs. Anderson para enviar lá alguém para ajudar a senhora. Envie recado ao meu apartamento,
dizendo ao Higgins para vir também.
O mordomo começou a dar ordens. Yates chamou Cassandra de parte.
– Devo falar com o meu pai agora. Espero que esteja acordado. Não faz sentido os criados ficarem a saber primeiro.
– Claro. Guardo o meu agradecimento pelo dia de hoje para quando voltar a vê-lo.
O sorriso endiabrado que ela lhe dirigiu foi muito eficaz em o distrair momentaneamente da conversa que o aguardava. A sua mente começou a pensar que o pai provavelmente
não estaria acordado e que aquilo tudo poderia esperar pela manhã ou mesmo pela tarde seguinte. Pôs a ideia de parte e começou a subir a escada, imaginando o pior
para aquela reunião.
O pai tinha sido colocado na cama. A mãe estava sentada numa cadeira próxima, a ler-lhe. Yates lamentou significar a interrupção da pacífica cena.
A mãe pousou o livro quando ele se aproximou.
– Pode esperar pela manhã, Yates. Ele está quase a dormir.
– Estou acordado o bastante – murmurou o pai.
Tentou levantar-se. Yates foi colocar-lhe duas almofadas atrás das costas.
– Então o que o traz aqui a esta hora? – perguntou o pai. – Julguei que tivesse saído da cidade.
– Acabo de voltar. Há uma coisa que devo dizer-lhe, e que não podia esperar.
A mãe fez menção de se levantar, para os deixar a sós.
– Fique, mãe – interrompeu Yates. – Foi uma sorte encontrá-los juntos.
Fitando-o com ar de reserva, a mãe voltou a sentar-se.
– Perdeu muito dinheiro ao jogo?
– Não é isso. Embora vá precisar de algum dinheiro na mesma. Casei-me hoje de manhã, por licença especial. Com Cassandra Vernham.
Os pais ficaram a olhar para ele. Ninguém falou nem se mexeu. Dos dois, o pai era quem parecia mais chocado. Yates esperou que fosse só espanto e que não lhe afetasse
a saúde.
O silêncio persistia de forma confrangedora.
– Trouxe-a para cá. O meu apartamento não é adequado.
– Penso o mesmo – declarou a mãe. – Claro que tinha de a trazer para aqui.
– Claro – acompanhou o pai.
A mãe e o pai trocaram um olhar. Uma comunicação silenciosa passou entre os dois.
– Uma licença especial – repetiu o pai. – Foi uma fuga? A família dela não aprovava?
– O irmão dela não ficou nada satisfeito com o meu pedido.
– Imagino que não. – Por alguma razão, o pai achou aquilo divertido. – Bom, está feito, por isso não vale a pena discutir a sensatez da decisão – concluiu, deixando
a cabeça regressar às almofadas. – Traga-ma aqui amanhã, para lhe dar as boas-vindas.
A seguir, pareceu adormecer.
– Venha comigo – disse a mãe. – Ele pode não ter mais nada para lhe dizer, mas eu tenho.
Yates seguiu-a até ao quarto de vestir dos aposentos. Assim que ele fechou a porta, ela virou-se para ele e fez-lhe ver o estado de choque em que estava.
– Francamente! É o tipo de coisa com que nos preocupávamos nos seus vinte anos, não agora. O que é que tinha na cabeça?
– Tenho a certeza de que ouviu o falatório, portanto é uma pergunta peculiar.
– Claro que ouvi. Há anos que se ouve falar de um e de outro, portanto não há nada de novo nas histórias mais recentes.
– O que é novo é as histórias serem sobre nós os dois juntos.
– Teve um caso, e daí? Não foi o seu primeiro, nem é o primeiro dela. – Deixou-se cair numa cadeira e abanou a cabeça. – Cassandra Vernham. De todas as mulheres
de Inglaterra, tinha de se ter enrolado com ela.
– Na verdade, não tivemos nada, mas o nome dela ficou comprometido na mesma. Sei dos rumores passados que sempre a acompanharam, mas neste caso é diferente. Há provas
mais específicas e o meu nome surgiu. Teria sido a ruína dela. Ela nunca se casou...
– Por sua própria escolha. Quanto a arruiná-la, já estava bem encaminhada. Não vejo porque teve de se sacrificar em prol dela.
– Não posso permitir-lhe que fale assim dela. Por favor, não volte a fazê-lo.
Para sua surpresa, a mãe começou a chorar. Não lhe parecia que alguma vez a tivesse visto chorar.
– O pai compreende, ainda que a mãe não. Sei que não está feliz. Havia provavelmente toda uma série de possibilidades para mim que a mãe preferia.
– Dúzias. Centenas.
– Eu conheço-a melhor do que a mãe e penso que se adequa muito bem a mim. Agora é minha mulher. Tenho a certeza de que a receberá tão bem como o pai.
Ela limpou os olhos e recompôs-se.
– Claro. Não há nada mais a fazer. Imagino que tenham ocupado o aposento grande do terceiro andar.
– Até encontrar uma casa para nós.
– Vou dizer ao seu pai que lhe dê dinheiro suficiente para montar uma casa. Já está mais do que na altura, e, de qualquer forma, apertar-lhe os cordões à bolsa não
fez diferença nenhuma.
Ele curvou-se e deu-lhe um beijo no rosto. Ela não pareceu importar-se, embora fosse algo que ele não fazia há anos. Tal como as palmadinhas que ela lhe deu no rosto
enquanto o olhava profundamente com olhos humedecidos.
– Vou ser simpática com ela, prometo.
Ele despediu-se. Foi até à biblioteca e serviu-se de porto. Bebeu-o à janela, contemplando os candeeiros que pontuavam a escuridão.
Correra melhor do que ele esperara, com o conde, e pior do que previra, com a mãe.
A lembrança de Cassandra rapidamente afastou quaisquer memórias daquelas conversas. Resistiu à inclinação de subir a passo largo as escadas e de possuí-la imediatamente.
Ficou, pois, a acabar o porto, consumido pelo desejo. A seguir, conseguiu esperar mais uns quinze minutos, para ela ter tempo de se acomodar.
Depois não aguentou mais a espera.
A criada segurava uma grande toalha branca quando Cassandra saiu do banho frio. Declinar a água quente deixara-lhe tempo para relaxar antes de se lavar e, quando
se envolveu na toalha, sentia-se revigorada.
Sentou-se à escrivaninha, deixando a criada entregar-se à tarefa de lhe tirar os ganchos do cabelo. Enquanto isso, escreveu à pressa uma mensagem para Emma.
Casei-me com o Ambury hoje de manhã. Explico tudo quando a vir da próxima vez.
Depois de selar a carta, dirigiu-se para o quarto de vestir, para lhe escovarem o cabelo. Dispensou, então, a mulher e abriu o guarda-vestidos, no qual as suas poucas
peças de roupa tinham sido colocadas. Tentou decidir o que vestir. Os aposentos tinham dois quartos e quando Ambury atravessasse a estreita passagem que os ligava,
Cassandra presumia que o faria por uma única razão. O prazer sexual seria o único benefício que ele retiraria daquele casamento, além da preservação da honra masculina.
Tampouco estava a contar que ele fizesse grandes cerimónias. Não teria necessidade de seduzir nenhuma virgem, não era? Nada que o obrigasse a fingir amor, nem sequer
muita afeição. Um homem que faz o que está certo é um homem coagido pelas regras da sociedade. Se ela fosse inocente, ele poderia pelo menos ter tentado ser meigo,
mas uma mulher do mundo não necessitava desse tipo de cuidados.
Quero-a nua. Levá-lo à letra implicaria um início vulgar. Nem sequer as amantes o receberiam totalmente nuas. Desfiou as camisas de noite e os robes, e escolheu
uma peça que talvez servisse. Dispensou a toalha e vestiu-a.
Não fazia ideia do tempo que ele demoraria com a família. Era possível que houvesse lugar a discussões consideráveis devido ao casamento inesperado. Seria agradável
encontrar alguma coisa com que se distrair, mas duvidava de que ele gostasse de a ver a ler um livro quando entrasse.
Regressou ao quarto dela. A mulher abrira a cama de um lado. Aparentemente, os criados não sabiam que ela e Ambury estavam casados. Abriu-a do outro. A noite estava
quente, e os cobertores não seriam necessários.
Finalmente, tudo estava mais do que preparado. Exceto ela.
Estava na sua noite de núpcias, cujos rituais lhe anunciavam o quanto a sua vida havia mudado. Não se trataria de nenhuma paixão impetuosa e descontrolada. Ambury
não se disporia a conquistar a sua anuência com beijos e prazer. Não havia quaisquer fantasias de amor nas quais pudesse resguardar-se.
Em lugar disso, aquela noite tratava da concessão de direitos e da aceitação de deveres. Não poderia ser nada mais do que isso. Talvez fosse até fria e sumária.
Ou não.
Sentou-se à espera, com o coração a bater com força e todos os sentidos em perfeito estado de alerta, perguntando-se se teria alguma voz no decorrer das coisas.
Talvez sim. Ambury presumia que ela era uma mulher do mundo. Talvez fosse sensato comportar-se como tal, em vez de parecer uma galinha assustada.
Regressou ao quarto de vestir e tirou a camisa que escolhera, enfiando-se num roupão translúcido. De volta ao quarto, deitou-se no centro da cama.
A espera excitou-a. O tecido que lhe encobria o corpo friccionava levemente a pele que a expectativa estimulava. Memórias do prazer usufruído nos abraços e beijos
anteriores vieram provocá-la.
Quando escutava com atenção, conseguia ouvir ruídos ténues vindos de outros aposentos, que indicavam que alguém se movimentava. Podia ser apenas o criado pessoal
dele, mas cada som abafado adicionava excitação ao nervosismo que sentia.
Subitamente, ouviu sons diferentes. Mais próximos. Espreitou e viu-o no quarto dela, parado na escuridão. Um prisma de luz prateada que raiava de uma cortina próxima
revelava-lhe o rosto e a parte superior do corpo. Trazia um robe verde de seda que lhe pendia largo do corpo. Ela duvidava de que tivesse alguma coisa por baixo.
Recordou a visão daquele corpo ao entrar no mar. A imagem acordou-lhe o desejo num frémito surdo.
Ele veio para a cama. Tocou na seda fina e transparente da bainha do roupão dela, o que fez com que os dois lados se separassem até uma das pernas se revelar até
à coxa.
– É elegante – disse ele.
– Julguei que fosse arrojado.
Os dedos dele subiram pela seda que lhe cobria o tronco até roçarem na auréola escura que se entrevia. A leve carícia sobressaltou-a. Os seus seios avolumaram-se
ainda mais. O mamilo ficou mais duro ao toque dele.
– Também é arrojado.
Com um novo puxão, o tecido escorregou, deixando-lhe metade do corpo completamente nu.
A forma como ele a olhou desencadeou formigueiros deliciosos. Ela retirou a outra metade do roupão para o olhar dele a excitar ainda mais.
– É linda, Cassandra. Sempre pensei que era deliciosamente apetecível.
Ele tirou o robe.
Não tinha nada por baixo, acertara. Comprovava também que não haveria cerimónia. Ele não fez qualquer esforço para se tapar ou para se esgueirar rapidamente para
dentro da cama, de forma a não ferir as suas delicadas sensibilidades. Deixou-se ficar parado, excitado e nu, enquanto o robe caía ao chão.
Ela mal conseguia falar.
– Deliciosamente apetecível? Tomo isso como uma promessa.
Ele ajoelhou-se na cama e debruçou-se sobre ela.
– Decididamente arrojado. Assim que estiver habituada a mim, espero pela retribuição daquilo que receber.
Segurou-lhe nos ombros e juntou-lhe o cabelo, devolvendo-o à almofada, por cima da cabeça.
– Estou curioso por descobrir quão experiente é de facto.
Não o bastante. Não se sentiu sequer sofisticada quando a anca dele assentou entre as suas coxas e os ombros dele se agigantaram à sua frente. Nada blasée, quando
sentiu a prova do desejo dele contra ela e o viu na gravidade que a paixão lhe conferia.
Teve de se obrigar a pensar no que fazer. O acolhimento que lhe proporcionou foi hesitante. O calor e a fisicalidade dele sobressaltavam-na. O corpo firme que ela
admirara a entrar no mar tornava-a a ela numa figura pequena e vulnerável. A mistura de nervos e excitação retirava-lhe a capacidade de dissipar o seu temor por
meio de conversa ou humor. Só conseguia sentir espanto quando ele começou a brindar-lhe o corpo com carícias que a faziam ofegar. Não era a primeira vez que estava
com um homem, mas era a primeira vez que estava com um homem que procurava deliberadamente enlouquecê-la.
Ele sabia como o fazer. Com beijos que reclamavam posse e carícias que emitiam comandos, derrotou qualquer pensamento inteligente que tentasse formar-se. O corpo
dela apreciava demasiadamente a mestria dele. A pele saboreava-lhe o calor áspero da palma da mão e a exigência apaixonada da boca. Abriu os lábios à sua exploração
e arquejou quando ele acometeu com a língua e a boca devastadoras sobre os seus seios, originando um crescendo de prazer deliciosamente insuportável.
Ele conseguiu, então, vencer o parco domínio que ela ainda exercia sobre si mesma. Nada além do corpo que pulsava de fome voraz importava. Ela arqueou as costas,
atirando os seios de encontro a ele. Numa carícia desajeitada, desceu-lhe o peito até ao sítio onde os corpos se encontravam. Ele mexeu-se para ela chegar mais abaixo
e ela fechou a mão sobre a sua masculinidade. Todo ele endureceu ainda mais, a tensão ansiosa do desejo urgindo para se libertar da prisão do corpo.
Os dentes dele fecharam-se, cuidadosos mas certeiros, sobre um mamilo, fazendo disparar profundamente dentro dela uma sensação aguda, que a fez estremecer em vagas
sucessivas. A seguir a isto, não pensou em mais nada a não ser naquele vazio que queria que ele preenchesse e naquele ardor carnal que clamava desenfreadamente por
alívio.
Quando finalmente ele a tocou, ela quase chorou de alívio. Usou a sua própria mão com mais agressividade para ele não parar. Afastou as pernas de forma despudorada
para ele entrar mais profunda e livremente. Um prazer torturante ressoou-lhe sem trégua ao redor da vulva, até toda ela sucumbir, num grito.
Os gritos de prazer de Cassandra ecoaram na cabeça de Yates como uma melodia feminina em contraste com o duro staccato da sua própria fome desenfreada. Era ínfimo
o pensamento que mediava entre os dois. Que, afinal, ela era exuberante e bela e audaciosa o bastante. Mas não verdadeiramente experiente, talvez. Não muito.
Tentou não reparar nas evidências, mas elas existiam. Estivera na cama com mulheres suficientes para saber a diferença.
O corpo dele estava impaciente. A paixão que sentia não podia ser mais ardente. Pôs-se em cima dela e começou a acariciar-lhe os seios. O falo inchava e endurecia
cada vez mais, antecipando o resto.
De repente, ocorreu-lhe o pensamento de que não deveria ter tomado como um convite a reação que vira nela enquanto ele se despia, mas decidiu ignorá-lo. Era tarde
de mais para parar, e tampouco o desejava.
Desceu-lhe pelo corpo com beijos. A respiração dela acelerava a cada centímetro de caminho. Ela sabia o que ele estava a tramar, tinha a certeza. Bastava aquilo
para não sentir necessidade de reservas. Parou apenas o tempo suficiente para usar os dedos para a acariciar até a nova tensão que sentia nela desaparecer e ela
estar pronta para ele.
Usou a língua com brandura, no início, inflamando-a ao mesmo tempo que tentava manter algum controlo. Então, perdeu-se no cheiro e no sabor dela, entregando-se ao
prazer primitivo que o consumia por inteiro.
Ela atingiu o êxtase arfando em gemidos. A própria libertação dele não seria negada muito tempo mais. Colocou-se sobre ela e introduziu-se devagar. Quando deixou
de sentir resistência, acometeu profundamente e refreou a ânsia de a possuir desenfreadamente.
Segurou-se acima dela e começou a mexer-se. Viu erguerem-se as sobrancelhas definidas de Cassandra, que o observou, com olhos repletos do fogo da paixão e suspiros
que acompanhavam o ritmo da união repetida dos seus corpos.
Mesmo perfeitamente saciada, Cassandra continuava perplexa. Conhecera o prazer antes, mas não um prazer tão livre. Havia que dizer-se algo em abonação de não termos
de nos preocupar com estarmos a fazer algo errado ou com a possibilidade de engravidar fora do casamento.
Este era um dos pensamentos inacabados que lhe ocorriam enquanto saboreava aquela paz deliciosa de languidez. Mal dava conta do peso de Ambury em cima de si. A respiração
profunda deste parecia encorajar o tempo a permanecer invulgarmente lento.
Ele desocupou a posição, o que dissipou a magia. Pouco a pouco, ela regressou ao seu corpo e à existência do tempo e do espaço físico.
Ele não a deixou, como ela esperara que fizesse. Em vez disso, deitou-se de costas com um braço por baixo da cabeça. Tinha os olhos fechados e a boca ligeiramente
entreaberta. Parecia satisfeito, embora, com um segundo olhar ao perfil, lhe parecesse notar uma ligeiríssima ruga na testa.
Talvez tivesse sido demasiado arrojada? Era possível ele julgar que devia ter-se mostrado menos agradada com aquilo que ele tinha feito. Os homens conseguiam ter
pensamentos daqueles. Nem sempre eram justos na forma como julgavam aquelas coisas. Eram capazes de se entregar à completa idiotice, mesmo não sendo sequer no seu
melhor interesse.
Aqueles surpreendentes beijos nas partes íntimas tinham-na deixado espantada, mas uma outra coisa fora ainda mais surpreendente. Tentou decidir se deveria falar
naquele estranho momento que necessitava agora de ver esclarecido. Tê-lo-ia ignorado, se ele não estivesse com um ar tão contemplativo, e se ela não suspeitasse
de que os seus pensamentos adquiriam contornos muito masculinos, na sua aceção menos lógica.
– Parece-me que, no que respeita a noites de núpcias, esta foi melhor do que cabe esperar à maioria das mulheres – declarou.
A expressão dele suavizou-se.
– À maioria dos homens também, especialmente porque a maioria das noivas não costuma incomodar-se em elogiá-los a seguir.
– É porque, na sua maioria, as noivas são virgens, e é pouco o prazer que conhecem na noite de núpcias. Eu não era, como é evidente.
Silêncio.
Oh, sim, estava a pensar como um homem. Quem o esperaria, quando, de entre todas as mulheres, se tratava dela?
– Você não tinha a certeza, parece-me – prosseguiu. – Foi surpreendentemente cuidadoso. Muito atencioso da sua parte.
Voltou a não receber qualquer resposta. Não falariam no assunto, tal como ele prometera no jardim. Ele não lhe fizera qualquer pergunta sobre o seu passado nessa
altura, e agora também não. Ele não queria verdadeiramente saber. Que joia de marido. Verdadeiramente notável.
– Quem foi?
Nem tanto.
A pergunta não a aborreceu. Desejou apenas que ele se tivesse disposto àquela conversa quando ela a introduziu, antes de se casarem.
– Não foi ele.
Não queria dizer mais, mas agradou-lhe ser explícita relativamente a Lakewood. Talvez Ambury ficasse com melhor opinião dela, agora que sabia que nada que obrigasse
ao casamento acontecera naquele dia, há seis anos.
– Se não foi ele, quem foi?
– Disse que não queria saber a minha história.
– Há um dia não queria, e daqui a um dia talvez não volte a querer. Hoje dou por mim muito curioso.
Virou-se de lado e apoiou-se num braço.
– Não é tão vivida como os rumores dão a entender. Audaciosa não é o mesmo que experiente ou cínica.
– Não me dei conta de que me avaliava tão cuidadosamente, e que formava os seus julgamentos.
– Não são julgamentos. Apenas perguntas.
Aguardou como se ela lhe devesse respostas. Que irritante.
– Ao que parece, você também não é tão vivido como eu pensava – provocou ela –, se se ocupa com coisas destas.
– Nestas circunstâncias, é verdade, e é uma descoberta surpreendente. Se fosse minha amante, e não minha mulher, sem dúvida que não me importaria minimamente.
– Poderá ser sensato pensar em termos da primeira, então.
– Esta noite, pelo menos, é impossível.
Ela desejou que ele não estivesse à espera de desculpas e lágrimas, e de uma confissão dramática. Ela nunca o iludira.
– Quando voltei da viagem pela Europa com a minha tia, travei conhecimento com um oficial do exército. Era arrebatador. Impressionou-me por não se importar com o
escândalo com o Lakewood. Um dia, ele veio visitar-me, e a minha tia, que ainda não se tinha retirado do convívio social, não estava em casa. Roubou-me um beijo,
e uma coisa levou a outra.
– O canalha abandonou-a depois de ter conseguido o que queria?
– É muito rápido a pensar mal dele.
– Só sou porque ele lhe pediu a mão, você acedeu, e ele seduziu-a, mas não casou consigo.
– Tentou casar comigo. O meu irmão negou-nos a bênção e depois ameaçou arruinar a carreira do oficial se ele, mesmo assim, se casasse comigo. Foi o fim.
– Pensei que o seu irmão quisesse vê-la casada. Devia ter ficado satisfeito com o pedido do oficial.
– Não ficou com o seu, mesmo sendo muito melhor do que o de um oficial do exército. O meu oficial não se encaixava no plano, fosse ele qual fosse.
– Ele parece ser um homem necessitado de ocupação. Ou de distração. – Esticou o braço e pousou a mão na barriga dela. – Ele devia casar-se. Dava-lhe alguma coisa
para ocupar o tempo, agora que já não pode congeminar contra si.
– É uma ideia esplêndida. Parece-me que lhe vou procurar uma noiva. Uma rapariga que mostre inclinação para se tornar uma megera.
Ele riu-se e deitou-se de costas, mas a seguir ergueu-se para se sentar contra a cabeceira.
– Enquanto a procura, pode virar a mesa e apresentá-lo a uma dúzia de inocentes e às respetivas mães durante todas as semanas da próxima temporada. Certifique-se
de que nenhuma tem uma fortuna avultada, se quer que ele se sinta miserável. Não pode dar-se ao luxo de casar por amor.
Ela inclinou a cabeça para olhar para ele.
– Porque diz isso?
– Anseln Abbey está a precisar de um bom investimento. Ele adiou de mais. Presumo que haja escassez de recursos.
Ambury notara evidências que ela não vira, mas ela pouco sabia acerca da manutenção de uma propriedade. Gerald não lhe dera nada nos últimos anos, mas a mãe parecia
continuar a comprar nas modistas o mesmo que sempre comprara, e nada se ouvira sobre dificuldades financeiras.
Uma carícia no seu rosto arrancou-a aos pensamentos. Ambury afastou-lhe cuidadosamente o cabelo desalinhado do rosto. Ela ergueu os olhos e viu nos dele a razão
pela qual não saíra da cama.
Ele pegou na mão dela e incitou-a a subir.
– Venha cá.
Yates nunca fora um amante ciumento. Um punhado de mulheres dissera-lhe que era um dos seus predicados mais cativantes. Muitas outras se ressentiram disso. Contudo,
ele tinha orgulho nesse aspeto do seu carácter. Os ciúmes faziam dos homens autênticos asnos.
Ainda assim, dava por si a perguntar-se sobre Cassandra. Só depois de a colocar de frente para si, de joelhos dobrados e pernas abertas sobre as suas ancas, é que
a curiosidade esmoreceu um pouco.
Acariciou-lhe aquelas pernas e as linhas sinuosas do corpo, até segurar os seios nas mãos. Há um dia, quando dissera que não tinha necessidade de saber a história
dela, falara a sério. Mas, há um dia, não era casado. Ela agora pertencia-lhe, e ele não gostava da ideia de outros a terem visto assim, nua e bela, com um brilho
estonteante de desejo no olhar.
Não fora ele. Já era alguma coisa, pelo menos. Não gostava da ideia de que tivesse sido Lakewood. Não sabia porquê. Só sabia que se Lakewood a tivesse possuído primeiro
iria complicar muitas coisas.
Ela chegou-se mais para perto, aproximando-se o mais possível da prova evidente da virilidade dele. Não estava dentro dela, mas, tirando isso, mais perto não podiam
estar. Sentia um pulsar de sensualidade na carne insuportavelmente tenra que se encostava à sua. Ela retrocedeu e fez deslizar as mãos suaves e quentes em carícias
delicadas sobre o peito dele que o provocavam como penas.
Audaz, mas nem tanto. Ser-lhe-ia perdoado pensar que toda a experiência dela lhe fora conferida por meros rumores. Naquele preciso momento, ela parecia fascinada
com a audácia de se ver a fazer o que fazia. Quando ele a provara, sentira e ouvira a surpresa dela, ainda que nenhuma objeção. Na altura em que pensara que ela
falava mais do que fazia, já não havia retorno.
Tocou-lhe nos seios leitosos. Redondos e altos, os mamilos escuros espetavam-se eroticamente. Ela fechou os olhos, mas ele viu-lhe na expressão que estava excitada,
o sorriso incerto que a titilação a fazia abrir e a leve tensão de desejo que as suas carícias provocavam.
Ele brincou com ela até a ânsia a demover do controlo. Começou com um balanço sensual que brindava numa carícia incrível o sítio onde se uniam. Por fim, ela abraçou-lhe
o pescoço e parou, enchendo com os seios as mãos dele. Ele certificou-se de que o prazer a deixava completamente rendida.
Ela tremeu quando ele entrou nela e moveu as ancas para o absorver completamente. Ele próprio se alheou de tudo, a não ser do prazer que o cingia mais completamente
a cada vez que ela subia para descer sobre ele.
Ficou frenética, como se nada fosse suficiente e o alívio não chegasse. Mexia-se de forma agressiva, vigorosa, procurando a ligação que pudesse satisfazê-lo. Ele
intumesceu ainda mais até a preencher por completo e a sua própria libertação o inundar. «Sim, sim», sussurrou ela repetidamente, cavalgando o duro membro e recebendo
as suas estocadas.
CAPÍTULO 18
O lacaio levantou-se de um salto assim que Cassandra entrou na sala do pequeno-almoço, em casa da tia.
Cassandra inclinou-se para beijar Sophie. Quando o fez, reparou na chávena e no prato adicionais que se encontravam em cima da mesa e olhou para o lacaio. Era um
tipo agradável e atraente, com um vigor rústico, trigueiro. Na casa dos trinta, calculou. Ele pôs-se a olhar para o ar.
Ela disse-lhe para se ir embora. Sophie acenou-lhe um adeus e sorriu-lhe como uma menina.
– Tia Sophie, não está a ter familiaridade a mais com os criados de Lord Kendale?
– Depende do que considera familiaridade a mais.
Cassandra indicou a chávena e o prato extras.
– Admito que pedi ao Sean que se sentasse comigo enquanto tomava o meu pequeno-almoço, mas mais nada.
– Sean?
– É o nome da obra-prima escocesa que acaba de dispensar.
Não era claro se Sophie pedira apenas a Sean para lhe fazer companhia ao pequeno-almoço ou se admitiria apenas isso.
Seria melhor ignorar aquele pormenor, ao invés de tentar clarificá-lo.
– Espero que não se tenha afeiçoado demasiado a ele. Tanto ele como os outros criados do Kendale ir-se-ão embora hoje à tarde, com a carruagem, e virão os criados
do Highburton substituí-los.
– Que pena. Gosto bastante do Sean e do seu sotaque. Imagino que o Highburton não tenha nenhum criado escocês. Surgiu-me uma apreciação particular por eles, de repente,
como por vezes me surpreendo a suspirar por maçapão, quando menos espero. Normalmente, não ligo tanto assim a maçapão.
– Não sei se algum deles é escocês. Nem poderia perguntar. O que diria? Desculpe, Ambury, mas seria muito simpático da sua parte enviar os escoceses que tivesse
em casa, para a minha tia poder entregar-se ao seu desejo de... maçapão?
– Não vejo porque não. Se se tiver saído bem ontem à noite, ainda que minimamente, hoje ele não deveria recusar-lhe nada, muito menos um criado escocês.
Ter-se-ia saído bem? Ele ficara na cama dela durante a maior parte da noite, por isso supunha que talvez tivesse. Só que dificilmente tinha sido ela a deslumbrá-lo
a ele, tal como Sophie parecia querer implicar.
Sophie observou-a por cima da chávena enquanto bebia o seu café.
– Como correu a sua noite de núpcias, querida?
Cassandra sentiu-se corar. Sophie riu-se.
– Graças a Deus, Cassandra. Rezei para que ele soubesse lidar com uma mulher melhor do que aquele francês arrogante do inverno passado. Qual era o nome dele? Jean?
– Jacques. Não desejo defendê-lo, mas tem muitas opiniões para alguém que nem sequer estava presente.
– Tirei-lhe a pinta. Parecia ser o tipo de homem que só pensa em si próprio. Ontem à noite rezei para que o Ambury tivesse pelo menos alguma consideração, tendo
em conta que está casada com ele. Uma vida inteira é muito tempo para se ter na cama um homem que não seja generoso.
– Foi atencioso da sua parte.
– As minhas preces foram atendidas?
Tinham sido tão bem atendidas que Cassandra nem sequer queria falar no assunto. Podia tirar-lhe a magia.
– Adequa-se a mim pelo menos nesse particular, se quer saber.
– São boas notícias.
Sophie levantou-se e pegou no chapéu.
– Vou para o jardim. Vem comigo?
– Tenho de visitar a Emma, que está tão estupefacta que deve precisar de sais. A carta dela desta manhã estava ilegível. Vim avisá-la do render da guarda e assegurar-lhe
que a sua segurança está a ser salvaguardada, tal como prometido. Devo dizer-lhe que não deve sair, se lhe surgir algum interesse súbito em o fazer. O Ambury diz
que será muito mais difícil protegê-la do Gerald se estiver na cidade.
– Eu nunca saio. Sabe disso. Julgo, porém, que ter belos criados aqui a cuidar de mim é uma ideia brilhante. Pergunto-me porque nunca pensei nisso antes.
Quando entrou na sala de visitas de Southwaite, Cassandra contou com a receção de Emma, mas também a do próprio conde. Era evidente que Southwaite não fazia tenção
de esperar para ouvir os detalhes da boca da sua mulher, e muito menos de Ambury ao final do dia. Os homens conseguiam ser bisbilhoteiros insaciáveis, embora nunca
admitissem tal coisa.
– A sua carta deixou-nos espantados – disse Emma. – Mal consegui segurar numa caneta para responder. Tem de nos dizer o que aconteceu.
Dirigiu um olhar ao marido e a seguir trocou olhares com Cassandra. Omita o que quiser enquanto ele cá está, mas depois quero ouvir tudo.
Cassandra comunicou a história da forma mais simples que conseguiu. Fez questão de exprimir a gratidão que sentia por Ambury se ter mostrado tão nobre e honrado.
Southwaite escutou tudo e no fim comentou:
– Tenho a certeza de que não será necessário dizer-lhe o significado disto, nem o que é esperado de si agora.
Ela queria portar-se bem. A sério que queria. Mas aquele homem tendia a suscitar o pior de si quando empregava aquele tom arrogante.
– Fique descansado, pois não será necessário explicar-me os meus deveres. A minha mãe fez as honras há longos anos. Não só tive uma educação completa, como o meu
marido e eu revimos as lições muito recentemente. – Procurou o relógio e, lançando-lhe um olhar, completou: – Na verdade, fui instruída pela última vez há apenas
quatro horas. E foi memorável, na verdade.
Southwaite corou. Parecia estar a ponto de explicar que se referia a deveres diferentes daqueles.
Emma deu um risinho. Southwaite corou ainda mais.
– Não será necessário fazer nenhum desenho – declarou ele. – Se for necessária alguma avaliação, deixo-a nas mãos do Ambury.
Assim que ele saiu, Emma desatou a rir.
– Ele raramente é tão indecente como no último comentário, Cassandra. Estou ansiosa por lhe fazer perguntas, e espero respostas detalhadas.
– Desconfio que não devem ser demasiado detalhadas no que respeita à minha mais recente lição. O Southwaite teria uma apoplexia. Ou estamos autorizadas a ser indecentes,
agora que também sou casada?
– Julgo que é mais aceitável, pelo menos. Vamos salvaguardar essa parte, mas, de resto, tem de me contar tudo. Ouvi finalmente os boatos acerca de vocês os dois,
e presumi que iria ultrapassá-los, como sempre ultrapassou. O que é que a induziu a aceder a casar com ele? Ele não tinha outra escolha a não ser propor-se, mas...
– Ou era o Ambury ou passar a minha vida inteira a contar ovelhas na fronteira escocesa. Pior, deixei a minha tia ficar mal de todas as formas possíveis. O meu irmão
levou-me a melhor e era a única forma de a colocar a salvo dele.
Descreveu o drama a Emma, incluindo a maior parte das cenas. Terminava, quando a porta se abriu e Lydia entrou.
– Estava a caminho de sua casa quando o mordomo me disse que estava aqui – principiou ela. – A minha criada disse que ouviu um boato incrível, de que tinha casado.
Tem de me dizer que não é verdade.
– Mas é, e o Ambury revelou-se um homem à altura – declarou Emma.
Lydia atirou-se para uma cadeira e fechou os olhos.
– Não posso acreditar. Não só há casamento, depois destes anos todos, como, para mais, um previsível. Que desilusão me saiu, Cassandra. Se tivesse sido um ator ou
um salteador, um escritor, até, teria a consolação de uma escolha extraordinária, mas o Ambury... Que monotonia, a filha de um conde a casar com o herdeiro de outro.
– O Ambury não é monótono – declarou Cassandra.
– Está a ser muito grosseira – acrescentou Emma. – Pelo menos alegre-se por agora não ficar privada da amizade dela. Este casamento monótono e previsível deve ter
o efeito previsto em termos de reputação. Ninguém se atreverá a fazer frente ao Ambury. Ele resgatou-a da beira do precipício, por assim dizer.
Lydia abriu os olhos, que se animaram ao reconhecer a visão positiva de Emma.
– É verdade, suponho. Continuamos a poder sair juntas à noite. Ele vai permiti-lo, não vai? Não tratará uma mulher madura da sua fama e experiência como uma criança,
espero.
– Espero ter a mesma liberdade de movimentos do passado.
Não sabia realmente se teria. Descuidara-se em negociar aquela parte com Ambury antes de aceitar a proposta dele. Ela estava em desvantagem, e ele sabia-o.
– Sendo assim, espero conseguir adaptar-me. Ainda me sinto desiludida, mas conseguirei recuperar.
– Que boas notícias – afirmou Cassandra.
Emma fez um risinho, mas o tom de secura escapou a Lydia.
– Espero que ele se mostre bom amante – declarou. – Um casamento por obrigação provavelmente é muito menos horrível se o noivo for competente nessa área.
Lydia, agora calma, brincava ociosamente com as fitas do chapéu.
– E também tem um físico muito bonito quando está nu, portanto é um ponto a favor dele. Agora pode apreciar o traseiro dele sempre que quiser, Cassandra.
Uma quietude tumular tomou conta da sala. Cassandra inspirou, mas não conseguia expirar. Sentiu Emma transformar-se numa estátua imóvel ao seu lado. Lydia brincava
com as fitas, alheia ao erro sério que acabava de cometer.
– Lydia, querida – disse Emma, com a voz densa. – Como é que sabe tanto sobre físicos ao natural, traseiros e amantes competentes?
– Como mulheres experientes, sabemos tudo sobre essas coisas. Não sabemos, Cassandra?
Cassandra conseguiu suspirar. Envergonhadíssima, olhou de soslaio para Emma. Esta pareceu observar Lydia com bastante severidade.
– Penso, Cassandra, que este seu casamento aconteceu mesmo a tempo de prevenir a desgraça completa – sussurrou Emma.
– Eu podia ter lidado com isso. Se não fosse a situação da tia Sophie com o Gerald, podia.
– Não estou a falar da sua desgraça, mas sim a daquela sua cúmplice.
O som puro penetrou o silêncio. O isolamento, a limpidez e a precisão erguiam muros e escadas invisíveis. Yates entregava-se à paz da música, formando estruturas,
nas quais os pensamentos se organizavam sem esforço.
O arco movia-se. As notas encadeavam-se. Algo semelhante a alegria iluminava-o. Era raro, e quase estranho. Nunca fora uma questão de prazer.
Apesar de tudo, padrões mentais formavam-se e dispunham-se. Relações inesperadas apresentavam-se como pedaços de sonhos. Como sempre, algumas desconcertavam-no,
mas ele sabia já que não devia menosprezar o inesperado.
Deixou a mente divagar por uma direção que nunca visitara, curioso por ver onde iria dar. Muito à semelhança da própria melodia, nasciam variações de factos que
lhe eram extremamente familiares.
As possibilidades fascinavam-no. Tentou extrair mais delas, mas, subitamente, a nuvem na qual existia abriu-se ao meio como se se partisse uma porcelana. Parou de
tocar e olhou ao redor. A porta do seu quarto de vestir que dava para a passagem estava aberta.
Pousou o instrumento. Agarrou no casaco que tinha atirado e andou até aos aposentos de Cassandra.
A criada atarefava-se com o cabelo dela no quarto de vestir.
– Estou quase pronta – disse Cassandra. – Esta manhã, o chapéu que usei estragou-me mais o penteado do que o normal.
– Não sabia que ia sair.
– Fui visitar a Emma. Chegou uma carta bem cedo a suplicar uma explicação, e ela insistiu que eu não fizesse a cerimónia de esperar pela tarde.
Ele perguntou-se como teria corrido a explicação a Emma. Fui vencida pelas circunstâncias e agora tenho de viver isto o melhor possível.
– Precisou de mim para alguma coisa? Se sim, peço desculpa – acrescentou, dispensando a criada com um aceno de mão.
– Apenas da sua companhia ao pequeno-almoço.
Ela olhou para o espelho uma vez mais e levantou-se.
– Só isso? Então tenho a certeza de que não se importou com a minha ausência.
Importara-se mais do que seria de esperar. Quando dissera a Cassandra na noite anterior que iriam ver o pai durante a tarde, não contara que ela desaparecesse durante
a manhã inteira. Ela suspendera a intimidade deles mais depressa do que ele, parecera-lhe, e prosseguira com o seu dia com uma indiferença bastante prática aos acontecimentos
da noite.
– Estou bem? – perguntou, contemplando o vestido de musselina.
O vestido pendia como uma coluna branca da faixa azul que cingia a cintura alta. Um tecido diáfano preenchia a área acima do decote, resguardando a parte de cima
dos seios. Não obstante, ele conseguia vê-los na sua mente, em toda a sua completude, subidos pelas costas arqueadas e...
– Ele vai achá-la adorável, porque o é.
– O que devo dizer-lhe? Ele não me aprova a mim nem ao casamento.
– Eu não disse que ele não aprovava.
– Tampouco me disse se correu tudo bem quando lhe contou, ontem à noite. – Assumiu uma postura mais firme e declarou: – Vamos, então, antes que eu perca a coragem.
Ele pegou-lhe na mão e juntos desceram as escadas em direção aos aposentos do conde.
– Atravessou a passagem enquanto eu estava a tocar?
– Estava à espera da criada, e pensei dizer-lhe da minha visita à Emma. Não tive intenção de interromper. Ficarei do meu lado dos aposentos, no futuro.
– Não é necessário.
– É gentil da sua parte dizê-lo, mas talvez seja melhor. Especialmente quando toca, parece-me. Vi que é uma experiência privada, Ambury. Não tinha compreendido isso
antes.
Chegaram à porta que se abria para os aposentos do conde. Ela concentrou-se nos painéis de madeira. Mordeu o lábio inferior.
– Fica comigo durante esta provação, ou devo ficar sozinha com ele?
Ambury apertou-lhe a mão.
– Eu fico consigo.
*
Cassandra há anos que não via o conde de Highburton de perto. A saúde débil do conde restringia a sua vida pública há já algum tempo e, de qualquer forma, ela nunca
se movimentara nos círculos dele. Agora, aproximava-se dele com Ambury ao lado. Os nervos interferiam com o seu autodomínio. Só o treino de uma vida lhe permitia
permanecer serena e apresentável.
O conde estava sentado num cadeirão grande, perto de uma janela. A condessa não se encontrava à vista. Percebia-se um criado de quarto ao fundo, na sombra. Um volumoso
robe em seda grená envolvia o conde. Um lenço agasalhava-lhe o pescoço e, por baixo, notava-se uma camisa impecavelmente branca. O cabelo, cortado de forma elegante
para um homem da sua idade, ainda não era branco. De facto, as madeixas pretas e cinzentas davam-lhe um aspeto mais jovem.
O conde voltou-se quando eles se aproximaram. Nem a doença nem os anos lhe tiravam a beleza daqueles olhos azuis e das feições regulares. A semelhança entre pai
e filho chamou-lhe imediatamente a atenção. Dali a uns vinte anos, o seu marido iria parecer-se muito com o homem que ali os aguardava.
Ambury continuou e abriu a janela. Depois apresentou-a como sua mulher. O conde olhou-a demoradamente, dos pés à cabeça.
– Pode deixá-la comigo, Yates. Desejo falar com a minha nora em privado para ficar a conhecê-la.
– Julgo que desta vez vou ficar. Os dois podem conversar em privado noutros dias.
O rosto descontente do conde refletia o que pensava do filho desobediente. Não discutiu e concentrou-se em Cassandra.
– Provavelmente julga que estou escandalizado por o meu filho se ter casado consigo.
– Passou-me pela cabeça que pudesse estar, senhor.
– Nem tanto. A minha mulher contou-me acerca dos rumores. Eu sabia que ele faria o que era devido, por pouco convencionais que sejam as suas ideias. Provavelmente
o facto de ser uma mulher muito bonita ajudou.
Ela não conseguiu pensar numa resposta para lhe dar.
– Conheci o seu pai. Éramos amigos quando ele era novo. Na altura em que morreu, já estávamos afastados, mas chorei a morte dele. Era um bom homem, de carácter generoso.
Um ataque de tosse interrompeu-o. O criado apareceu ao lado do conde, de lenço pronto na mão. Depois de alguns minutos, o conde acalmou-se, e o criado esfumou-se
no ar.
– E a irmã dele? Como é que está?
Falou num tom de voz distante, como se a tosse lhe tivesse roubado a vivacidade.
– Floresce, senhor.
– Com que então, floresce? É uma palavra boa para ela. É bom saber que continua a florescer.
Uma nota de crítica assomou ao olhar ausente.
– Como próxima condessa de Highburton, seria melhor que não florescesse com tanta exuberância quanto ela, claro.
Finalmente, ali estava, a reprimenda que toda a gente se sentia na obrigação de lhe dar, como se pensassem que ela era estúpida ao ponto de ignorar o que era esperado
dela. É melhor não se descuidar da sua reputação no futuro, minha jovem.
– Ao mesmo tempo, ninguém deseja que a boa disposição de Cassandra a abandone, tenho a certeza – disse Ambury. – É a sua qualidade mais cativante, que não desejo
que perca nunca.
Ela desejou dar-lhe um beijo por ele a defender e falar bem dela naquele momento. O sorriso firme que dirigiu ao pai pode até ter contribuído ainda mais para o abreviar
de quaisquer lições posteriores.
– A sua mãe diz que deve ter a sua própria casa de agora em diante – disse o conde a Ambury. – Esta será sua tão brevemente que parece desnecessário montar outra
apenas por alguns meses.
– Não me parece que sejam apenas alguns meses. Nem o pai devia presumir isso.
– Talvez. Talvez. O que diz, Cassandra? Quer ter a sua própria casa? Não será tão grande e elegante como esta, isso é certo. Se gostar de luxo, faria melhor em ficar
aqui.
– Deixo essa questão ao critério do meu marido. Ficarei satisfeita com o que ele preferir.
O conde abafou uma risada.
– É bastante inteligente, Yates. Concedo-lhe isso. Esperta, encantadora e filha de um bom homem. Podia ter escolhido pior, suponho. Deus sabe que julguei que o faria.
Ergueu a mão e chamou-a.
– Venha dar-me um beijo, menina, que eu abençoo este casamento tal como é.
Ela aproximou-se, inclinou-se e beijou-o no rosto.
– Precisa de a levar a Elmswood Manor com a maior brevidade – disse o conde. – Para que os vizinhos a conheçam.
Os olhos do conde fecharam-se e Yates indicou-lhe que saíssem. Quando o faziam, o criado apareceu e esticou o braço para a maçaneta da janela.
– Deixe-a aberta – interrompeu Yates.
– O médico, senhor...
– O dia está bom, a brisa suave, e o médico é um idiota. Deixe-a aberta.
Já fora do aposento, Cassandra deixou-se encostar à parede, aliviada.
– Preferia defrontar-me com todas as patronas do Almack’s1 simultaneamente a ter de voltar a fazer aquilo.
Ambury puxou-a para si.
– Então, não foi assim tão mau.
– Só porque ele foi simpático. Não tinha de ter sido, e eu não podia contar que fosse. Por conseguinte, sei que a aceitação dele é apenas resignação por estar perante
um fait accompli.
– Não interessa a razão por que aceita, desde que o faça. –Deu-lhe um beijo. – Esperta, encantadora e alegre. O que ele disse é verdade. Poderia ter-me saído muito
pior.
Era simpático da parte dele dizer aquilo. O abraço e o beijo evocavam ecos da noite passada. A proximidade acordava os delicados laços emocionais que se haviam formado,
como se fossem entidades vivas adormecidas ao erguer da aurora aguardando apenas uma evocação para se fazerem novamente ativas.
Cassandra percebeu que tinha as costas contra a parede e o rosto entre as mãos dele. Ele beijou-a de forma diferente. Mais profunda.
– Obrigada por ficar comigo, para eu não ter de enfrentar tudo sozinha – disse.
– Estamos juntos nisto. Hoje à tarde damos um passeio no parque e deixamos o mundo ver-nos assim. O comunicado sairá amanhã nos jornais, mas já corre a notícia.
– O que fazemos até sairmos?
A forma como o corpo dele pressionava o dela comunicava-lhe que ele tinha uma resposta para lhe dar. Porém, o beijo seguinte não foi muito apaixonado. Foi a desculpar-se,
isso sim.
– Sei como gostaria de passar o tempo. Infelizmente, tem mais uma visita para fazer hoje, na qual a minha companhia não seria tolerada.
– Outra visita? A quem?
– À minha mãe.
1 Um dos primeiros clubes londrinos a admitir tanto homens como mulheres. Aberto entre 1765 e 1871, era dirigido por senhoras influentes dos círculos mais elevados.
(N. da T.)
CONTINUA
CAPÍTULO 14
Cassandra observou a mãe, sentada do outro lado da mesa que os criados tinham posto no terraço. Prata e cristal cintilavam ao sol por cima da toalha que as separava.
As bebidas chegaram: café para ela, cacau para a mãe.
Beberam em silêncio, enquanto as abelhas se entretinham com as flores que cresciam num canteiro próximo. Visto que passava a maior parte do tempo na cidade, Cassandra
considerava o silêncio do campo estranhamente vazio. O facto de ouvir abelhas apenas lhe recordava o quão pouco acontecia ali.
– Imagino que em Londres não se fale de outra coisa a não ser da invasão.
A mãe disse-o como se os franceses desembarcassem na Irlanda apenas para proporcionar uma desculpa para a política ser um aborrecimento durante semanas a fio.
– Não diria isso. A vitória de Nelson no Nilo ainda é objeto de conversa e há sempre um boato ou outro para animar as coisas, até no verão.
– Alguém que eu conheça?
Alguém que ela conhecia muito bem.
– Não me parece.
Mais silêncio. Mais abelhas a zunir. Se se concentrasse mesmo muito, tinha a certeza de que conseguiria ouvir ratos a andar e formigas a correr.
– Planeio ir à cidade daqui a duas semanas, durante alguns dias, para tratar do guarda-roupa. Podia voltar comigo.
– Só vim por três dias, como lhe disse. Devo partir amanhã.
– Três dias. Porque se dá ao trabalho, sequer?
– Dei-me ao trabalho para a ver, mãe. Por que mais?
A mãe corou. Desviou o olhar. Os últimos anos haviam-lhe dado um aspeto roliço. Com frequência, isto suavizava a expressão das mulheres mais velhas e conferia-lhes
um aspeto amigável, mas tinha acontecido o contrário com a mãe.
Quando é que se haviam tornado umas estranhas? Quando é que o silêncio viera de bom grado tomar o lugar das conversas? A sua origem podia provavelmente reportar-se
ao mesmo episódio que tantas coisas mudara na sua vida. A mãe ainda fora mais dura do que Gerald, quando Cassandra recusara Lakewood.
– Também quero falar-lhe acerca da tia Sophie – retomou.
– A Sophie tornou-se um fardo, Cassandra. É muito injusto da parte dela.
– Não incomoda ninguém. Não faz visitas, nem recebe. Cuida do jardim dela, lê os livros dela e atenaza a cozinheira. Como é que pode ser um fardo para si?
– Vejo que a influência que exerce sobre si não diminuiu. Já era suficientemente mau ela ser tão imprudente com a vida e a reputação dela. É imperdoável que a tenha
levado a fazer o mesmo.
Era uma discussão antiga e, naquele dia, Cassandra não desejava alimentar nenhuma discussão.
– Não é sobre a vida ou o passado dela que quero falar, mas sobre o futuro. Pode não saber das intenções do Gerald, mas acredito que devo partilhá-las consigo. Ele
tornou-se demasiado duro, e receio que só a mãe o possa dissuadir.
A mãe não lhe pareceu ficar confusa nem curiosa com o pequeno discurso. Nem sequer olhou para ela para demonstrar atenção. Em vez disso, concentrou-se em vincar
o guardanapo, alisando cada dobra com as mãos.
– Estou ciente das preocupações dele em relação a ela. E dos seus planos.
– Tem de o deter. É errado ele fazer isto, e muito injusto.
– Injusto? Injusto? A Sophie afastou-a de mim, e a menina considera que o seu irmão é injusto?
– Ela não me afastou. Apenas me deu uma casa quando esta se tornou inóspita.
– Ela andou consigo a reboque por todo o Continente e expô-la ao comportamento mais infame. Encorajou a sua desobediência e a sua rebelião. Não espere de mim que
arrisque o desagrado do Barrowmore por a defender. Não faço ideia sequer do que poderia dizer.
– Ela era sua amiga, mãe. Isso não conta para nada? Conheceu o pai por causa dela e ela incentivou o irmão a concretizar o casamento.
Esticou o braço e tomou a mão da mãe.
– Esteve ao seu lado quando o Gerald nasceu. Esqueceu aquele verão que passou com ela? Ela não. Anos de amizade e de amor não contam para nada?
A compostura da mãe sucumbiu. Voltou a cabeça e fechou os olhos. A sua expressão tornou-se apagada e, finalmente, suave.
Cassandra aguardou, esperando que a mostra de emoção significasse que granjeara uma aliada. Por fim, a mãe abanou impercetivelmente a cabeça.
– O Barrowmore não me dará ouvidos, Cassandra. Está decidido a forçar a vossa separação. Está muito determinado. Quer o melhor, ainda que os meios possam ser severos.
– Então não me ajuda? Nem a ela?
– Não posso ajudar. Nem se trata sequer de si, ou dela.
A mãe olhou-a com tristeza.
– A menina nunca compreendeu, mas isto está para além disso. Trata-se da honra de Barrowmore.
– Se eu represento uma mancha assim tão grande nessa honra, ele pode deserdar-me, e eu deixo de interessar. Não tem de ameaçar fazer mal à tia Sophie.
A mãe desviou os olhos humedecidos.
– Não compreende.
– Se não quer ou não pode detê-lo, eu levo-a daqui. Tanto ela como eu saímos da vida dele.
A atenção da mãe intensificou-se.
– Ele disse que esse era o seu plano. Eu não acreditei nele. Significamos tão pouco para si, agora, que consiga abandonar-nos? É por isso que está aqui? Para se
despedir? Ou nem isso tencionava fazer antes de partir?
– Estou aqui, não estou? Não pode significar assim tão pouco estar aqui para a ver.
Uma sensação de enjoo alojara-se no estômago de Cassandra ao ouvir as primeiras palavras da mãe.
– Quando é que ele lhe disse que tinha adivinhado os meus planos?
– Antes de ir para a cidade desta última vez – respondeu a mãe, com um aspeto culpado, como se tivesse dito o que não devia. – Não tenho a certeza, mas não parece
que ele tencione permitir-lhe que a leve embora.
Cassandra sentiu uma onda de pânico. Gerald falara em quinze dias, antes de ir buscar Sophie, mas já tinha definido os seus planos. Se ele adivinhasse que ela poderia
fugir... Se os rumores sobre Ambury o tivessem irritado...
Fora uma idiota. Uma perfeita idiota. Deixara Sophie sozinha com Merriweather. Nenhuma das duas poderia fazer frente a Gerald. Talvez ela também não pudesse, mas
pelo menos tentaria.
Levantou-se.
– Tenho de regressar à cidade. Imediatamente. Ele pode estar a engendrar alguma coisa. Por favor empreste-me uma das carruagens e um cocheiro. Se alguma vez foi
amiga da Sophie, ajude-me a regressar sem demora.
– É tarde de mais. Ele escreveu ontem dizendo que regressaria hoje. Sabe que a menina está de visita e ordenou que a retivesse.
– Como é que ele sabe? Escreveu-lhe a dizer?
– Sabe, porque não a encontrou na casa da Sophie. – Culpa misturada com resignação tingiu a voz da mãe ao concluir: – Está feito, Cassandra.
Yates lançou o cavalo a galope pela terra que flanqueava a estrada que saía de Londres.
Passou a voar pela comprida fila de charretes, grandes carroças e carruagens que jorrava das portas da cidade em direção ao campo. Manteve o andamento até se distanciar
bastante das concentrações de veículos que circulavam devagar pela estrada poeirenta.
Do outro lado da estrada, Kendale acompanhava-lhe o ritmo. Fariam companhia um ao outro até Kendale rumar à sua propriedade de Buckinghamshire.
Quando os cavalos mostraram cansaço, a estrada já estava desimpedida. Os dois juntaram-se no centro e continuaram num ritmo mais sossegado.
– Então, vai para a Irlanda? – perguntou Yates.
A experiência no exército e o título de Kendale permitiam-lhe obter uma patente se o quisesse.
– Não.
– Surpreende-me. Acaba de me custar cem libras.
– Apostou?
– Julguei que fosse uma forma segura de ficar cem libras mais rico. Não julguei que conseguisse resistir, sobretudo porque o inimigo teve a audácia de desembarcar
em território britânico.
– Se fosse lutar apenas com franceses, não hesitaria.
– Os outros são rebeldes. Traidores.
– Não sou necessário nesta campanha. Tornou-se evidente que não sou necessário em nenhuma.
Yates não esperava que Kendale se resignasse a deixar o exército quando o irmão morreu. Aquela nova aceitação surpreendeu-o.
– Está um dia bonito. Já cheira a outono – comentou Kendale. – Não falemos de guerra nem de invasões. Vou sair de Londres porque estou farto das conversas que se
ouvem.
– Julgo que está apenas farto de conversas. Não quer falar de política, investimentos ou da sociedade. Nunca participou em conversas sobre ciências naturais, filosofia
ou literatura. Agora que penso no assunto, foi uma tolice sugerir-lhe que viajássemos juntos, pois dificilmente ajudará o tempo a passar.
– Isso não é verdade. Há muitos tópicos que discutirei com vontade.
– Escolha um.
Kendale pôs-se a pensar. Contando que nada mais se dissesse durante vários quilómetros, Yates deixou-se levar pelos seus próprios pensamentos.
Como era comum ultimamente, aqueles rumaram em direção a Cassandra com muita rapidez.
Ela mostrara-se muito calma quando ele a visitara. Talvez ele tivesse sido imbecil ao presumir que se sentira insultada. Se isso acontecera, não demorara a recuperar.
Durante o tempo que passaram sentados a conversar, uma linguagem invisível e inaudível passou entre os dois, porém. As memórias do prazer criavam amarras, como também
o próprio desejo. Poderiam ambos negar o seu poder. Poderiam concordar que tinham sido precipitados. Poderiam decidir voltar a relacionar-se como antigamente, até
mesmo como antes do casamento. Nada daquilo alterava a verdade de que a intimidade havia destruído a maior parte das barreiras que existia entre os dois de maneiras
que nem a distância nem o tempo reporiam totalmente.
– Lady Cassandra Vernham.
Yates sobressaltou-se ao ouvir ser pronunciado o nome da mulher que lhe ocupava os pensamentos. Olhou para Kendale em cima do cavalo, costas direitas e perfil inflexível.
– O que tem ela? – perguntou Yates.
– É um assunto sobre que poderei conversar. Disse-me para escolher um.
– Isso foi há dez minutos.
– Era uma lista comprida. Ela não estava no topo, mas rejeitei os anteriores por os considerar demasiado entediantes.
– Apeteceu-lhe iniciar-se nas más-línguas, agora? É isso que faz dela um tópico menos entediante?
– Não estou interessado nas más-línguas, mas nos factos da situação. O que está a fazer é comum no exército. Nem tanto no nosso, embora haja episódios que são conhecidos,
mas não abordados. É muito comum no Continente. Os franceses são seus adeptos, entre outros. É tão antigo como a própria guerra, suponho.
– De que diabo é que está a falar?
– De tratar as mulheres como despojos de guerra. De afirmar a vitória reclamando a posse de uma mulher. Ela derrotou o Lakewood, e agora você conquista-a para o
vingar e erguer a bandeira.
– Não faz sentido nenhum. Não me resolvi a conquistá-la.
Só que resolvera. Tratava-se apenas de uma guerra diferente, mais antiga ainda do que os conflitos militares.
– Perdoe a minha escolha de palavras. Está a conquistá-la. A seduzi-la. A cativá-la. Está...
– O Lakewood também não tem nada a ver com isso.
– Não tem? Como pode não ter? No calor da paixão, ele pode estar longe dos seus pensamentos, mas a vingança é a única explicação para o seu interesse nela. Há pouco
na mulher que seja atrativo, e muito que não é.
– É louco? Feito de pedra? Cego? Ela é linda! Céus! Aqueles olhos... aquela boca. Como pode dizer tamanhos disparates?
Kendale olhou para ele como se ele fosse louco.
– Se vocês os dois a consideravam tão deslumbrante, terei de aceitar que alguns homens são assim. Eu próprio, não vejo nada disso. Quanto à vingança, é a explicação
implícita e eu não vejo forma de dissuadir o mundo disso.
Estar em cima de um cavalo de repente tornou-se um inconveniente àquela conversa.
– Pare. Agora. Aqui mesmo.
Kendale fez o cavalo parar.
– O que quer dizer com «explicação implícita»? – indagou Yates. – Porque pensa uma coisa dessas?
– Ouvi-os falar disso. Há dois dias, no Brook’s, vários membros analisavam a questão. Ontem à noite jantei com amigos no Horse Guards, e foi mencionado. Diabos,
quando estava a amarrar o cavalo em Oxford Street, ouvi duas mulheres que passavam falarem do assunto.
– Pensei que ignorasse as más-línguas.
– Eu disse que não me interessavam as más-línguas. Seria impossível ignorá-las, no ponto em que estão. Não sabia?
– Não.
Passara o tempo sequestrado no raio do escritório a examinar o raio dos arrendamentos para preparar o raio da viagem.
– Não vi as nuvens a juntar-se, mas a tempestade começou à hora mais concorrida, há dois dias – informou Kendale.
Se até Kendale ouvia a precipitação, então devia estar um dilúvio a caminho.
Deu a volta ao cavalo.
– Onde vai?
– Vou voltar para a cidade.
Não podia deixar Cassandra afogar-se sozinha.
CAPÍTULO 15
Anseln Abbey mostrava todos os sinais de ser a morada de uma família detentora de mais dinheiro do que prestígio. Barrowmore era um título antigo, e Yates presumira
que a terra entrara na família no reinado de Henrique I, quando tantos mosteiros foram incorporados pelo pariato.
Há um ano, ele poderia não ter notado os sinais de falhas na manutenção, mas a experiência com a propriedade de Highburton afinara-lhe a visão. À medida que se aproximava
do amontoado de beirais e paredes, ia listando mentalmente a evidente falta de melhorias e o prejuízo que isso causava à casa.
Uma caleira antiga anunciava um sótão húmido e a argamassa que envolvia as pedras precisava de cuidados. Pelo menos uma chaminé precisava de ser refeita e outra
só aguentaria mais alguns anos.
O irmão de Cassandra não deveria ter desejado que ela se casasse com Lakewood, que possuía pouca fortuna própria. Embora o atrativo até pudesse ter sido esse mesmo
se, por acaso, Barrowmore visse com bons olhos aquele casamento. Poderia tornar as exigências de Lakewood muito menores do que as de outro homem no que dizia respeito
ao dote, pois tinha pouco para oferecer do seu próprio lado.
Desejou verdadeiramente que aquele velho amigo não lhe invadisse os pensamentos. Queria acreditar que se reconciliara com todas as ambiguidades à volta da morte
de Lakewood e com a dúvida que subsistia sobre o envolvimento do nome ou da pessoa de Cassandra. Gostava de pensar que tinha sistematizado uma visão filosófica e
posto fim a quaisquer ressentimentos. Continuaria a interrogar-se durante algum tempo, imaginava. Confiava que chegaria o dia em que já não o fizesse.
Apresentou o cartão e pediu para falar com Lady Cassandra, quase esperando o comunicado de que esta não se encontrava em casa. A intenção dela era sair do país,
e a ausência inesperada de Londres podia indicar que acontecera isso mesmo, apresar do que dissera a Emma.
O criado levou o cartão. Um outro veio cinco minutos depois, que o acompanhou à sala de visitas. Via-se que a divisão pertencera à abadia original, e que fora talvez
o refeitório, a julgar pelo tamanho. As obras de redecoração ao longo dos anos haviam-lhe atribuído um teto e um chão dignos desse nome, mas notava-se o carácter
medieval nas janelas de batente e nas paredes irregulares.
Aguardou com alguma expectativa a altura de a ver. Queria a prova de que ela ainda se encontrava no país e não num qualquer navio rumo à América. Desejava também
que a vitalidade de Cassandra viesse conferir um interesse àquele dia como os seus já não tinham há algum tempo, exceto quando ela os visitava.
Sorriu para si próprio. Não era amor, mas pelo menos estava fascinado de um modo que lhe acontecia com menos frequência naqueles últimos anos. Graças a Deus.
Assim que Cassandra entrou no compartimento, ele soube que algo se passava. Ela sorria alegremente e os seus olhos cintilavam, mas ostentava a postura como uma máscara
de cera que derreteria se o sol brilhasse com demasiada força. Não foi Cassandra que o recebeu, mas uma atriz que desempenhava um papel de há muitos anos estudado.
– Veio felicitar-me, Ambury?
– Se houver que dar parabéns, dou-os alegremente. Seria simpático saber a razão.
– O mundo inteiro ficará a saber dentro de dias. Notícias deste tipo correm depressa, mesmo no final do verão. Pensei que já se sabia. – Estendeu os braços num gesto
de incredulidade e anunciou: – Vou casar-me! Consegue acreditar? É um homem íntegro de Northumberland. Ou será de Cumbria? De um desses condados no fim do mundo.
Dizem-me que é bastante atraente e bastante bondoso, e depois de casarmos imagino que deva ficar bastante rico, pois a minha reputação requereu um dote bastante
avultado. Ele e eu vamos envelhecer juntos, a criar ovelhas.
– Parece idílico. Deve estar radiante.
– Era precisamente a vida que desejava para mim própria,
à noite, em sonhos. Foi pena Mr. Treedle... ou será Tweedly... não ter aparecido há alguns anos. Assim eu não teria desperdiçado tanto tempo na cidade, dizendo
a mim própria que estava a divertir-me.
– Parece que bastou um homem com uma propriedade cheia de ovelhas para a conquistar. Se o mundo soubesse, podia até ter-se encontrado um homem desses no Sussex ou
no Kent, e não tão longe daqui. Seguramente que existem alguns Mr. Treedle-Tweedlys no sul.
– Não mais do que uns quatro mil, ou à volta disso, segundo dizem.
– Então, uma simples indagação teria dado conta do assunto, e evitado todo esse sofrimento.
A máscara caiu revelando a verdadeira Cassandra, num dia tão fora do comum. Os olhos dela faiscavam de raiva.
– Não vai facilitar-me a vida, pois não? Vai rir-se à minha custa. Eu sabia que sim. No preciso momento em que aceitava o casamento, pensei: Ah, o Ambury, o Kendale
e o Southwaite vão adorar isto.
– Não me atrai muito rir à custa de ninguém. Estou mais interessado em ouvir a história que está por trás dessa notícia peculiar.
– Estou a ser uma irmã dedicada, o que não é peculiar, mas esperado. Sei ser assim, apesar do que as pessoas possam julgar.
– É estranho vê-la aceitar a vontade de um homem em quem não confia, independentemente daquilo que o sangue una.
Avançou até estar em frente a ela e ser capaz de ver além do brilho do olhar, fosse este de humor, raiva ou falsa alegria.
– O que é que ele fez para a obrigar a concordar com isto, Cassandra? Não consigo imaginar. Teria apostado que nem que ele lhe batesse tal coisa seria possível.
Ela suportou o escrutínio dele durante alguns momentos, mas depois voltou-se abruptamente. Apertou as mãos. Voltou a olhar para ele, de forma desafiadora, como se
ele tivesse a culpa do que quer que estivesse a perturbá-la. Então, a expressão desfez-se e lágrimas humedeceram-lhe os olhos.
– Ele tem-na. À minha tia. Foi buscá-la e deixou-a na casa de um médico qualquer, com lunáticos. Terminará ali os seus dias a não ser que eu faça o que ele me ordena.
Claro que aceitei.
Só para ela é que aquilo seria tão evidente. Muitas jovens teriam escrito algumas cartas animadoras à tia e prosseguido com as suas vidas.
Barrowmore era um canalha.
– Tem a certeza de que ela poderá viver livremente se a Cassandra levar a cabo este casamento?
– Ele prometeu... Disse que a autorizará a viver na sua casa, em Londres, com uma companhia adequada que saiba tratar das pessoas que... das pessoas cujas mentes
começam a falhar. Não confio totalmente nele, mas tenho de arriscar, para que a Sophie possa regressar a casa e ter algum tipo de dignidade.
Parecia desesperada, e muito triste.
Ambury viu novamente uma certa culpabilização nos olhos dela. Se ele tivesse concluído o pagamento dos brincos, nada daquilo teria acontecido. Ela e a tia provavelmente
teriam fugido de Londres antes de Barrowmore executar o seu plano.
Ela recompôs-se e voltou a colocar a máscara para desempenhar o papel da Cassandra que o mundo esperava ver.
– Então, o que o traz cá, se não é para me apresentar os parabéns pela minha boa sorte?
– Vim ver o seu irmão.
– Assuntos do governo, imagino. É estranho que Pitt lhe peça para ser mensageiro se precisam do Gerald para alguma coisa menor.
– Outros assuntos.
Ambury gesticulou para o lacaio que se encontrava à porta e entregou-lhe um cartão.
– Diga ao conde que estou aqui.
– Por favor, não diga nada acerca do que lhe contei – suplicou Cassandra quando o lacaio regressou para o buscar. – Usar da sua sagacidade com ele só irá irritá-lo,
e poderá tornar tudo ainda mais difícil.
– Não tenciono dizer uma palavra acerca do seu noivado iminente com Mr. Treedle, a não ser que ele próprio o mencione.
Barrowmore recebeu-o na biblioteca. Mal Yates entrou, deparou com o ar presunçoso do conde, o ar de um homem que fizera, mais uma vez, valer a sua posição num assunto
de enorme importância para si próprio.
– Passava por perto, Ambury? Caso contrário, não estaria à espera de uma visita sua. Se procura alojamento e refeição por uma noite, claro que teremos o prazer de
o receber.
– Estou aqui especificamente para o ver, relativamente a um assunto de importância considerável para os dois.
A expressão de Barrowmore alterou-se de forma curiosíssima. Os olhos mostraram um brilho cauteloso. Yates perguntou-se o que poderia ter causado aquela reação, visto
que os dois tinham poucas ligações e pouco contacto. Com exceção de Cassandra. E de Lakewood, claro.
Sentaram-se e fingiram estar à vontade um com o outro.
– Vim pedir a mão da sua irmã em casamento – disse Yates. – Já tem idade para decidir por ela própria, mas julguei melhor observar os formalismos.
A expressão de Barrowmore assumiu contornos de estupefação. Dir-se-ia que Yates anunciara a invasão francesa.
– Só pode estar a brincar, Ambury.
– De todo.
Mais espanto.
– Santo Deus. Santo Deus! Porquê?
– Adequa-se a mim.
Não ficava bem a Barrowmore exprimir tal incredulidade, como se o merecimento da irmã não fosse além de um Mr. Treedle.
Barrowmore tentou recompor-se, mas falhou. Pôs-se em pé e afastou-se. Por fim, as costas endireitaram-se e a cabeça ergueu-se. Deu meia-volta.
– Lamento dizer que é demasiado tarde. Ela já está comprometida.
– Maldição! Que inconveniência. Quem é o sortudo? Imagino que esteja por cá, para acontecer tudo tão depressa! Gostaria de o conhecer e apresentar as minhas felicitações
de adversário derrotado.
– Ele não está, por isso não é possível. Nem me parece que ele gostasse de conhecer um dos... seus anteriores cavalheiros.
– Ah, ouviu os boatos.
– Já andavam a circular quando saí da cidade. É por isso que está aqui, não é? Para fazer a coisa certa por ela. Mas, tal como disse, é demasiado tarde.
– Tal como muitos rumores, não é verdade nos particulares, mas claro que ninguém se importa. Por isso, sim, é uma das razões pelas quais estou aqui. Se o pretendente
dela não está, e a decisão é tão recente, é-me impossível não me perguntar se ela estará de facto comprometida ou simplesmente prometida. Se se tratar da última
hipótese, seria uma idiotice menosprezar a minha proposta. Suspeito que seja a melhor.
– Prefiro a dele.
– Nas circunstâncias presentes, ambos sabemos que não estou em grande posição para esperar um grande dote, enquanto este sujeito lhe terá praticamente apontado uma
arma à cabeça para obter tanto dinheiro quanto possível em troca de lha levar daqui. E também sou um par do reino. Porque preferiria a oferta dele à minha?
– Desde logo, porque não gosto de si. Depois, um casamento dela consigo provavelmente só traria mais escândalo a esta família. Na verdade, penso que preferia vê-la
morta do que casada consigo.
Yates refreou a raiva crescente. Não era afronta o que experimentava, embora Barrowmore não se tivesse coibido de o insultar. Experimentava, sim, uma indignação
imensa pela atitude de Barrowmore em relação à irmã. O irmão queria castigá-la com aquele casamento. Queria-a isolada e invisível. Não se importava que ela ficasse
infeliz e presa a um homem que, com toda a probabilidade, a desprezava.
Queria dar uma sova a Barrowmore. Em vez disso, levantou-se.
– Fiz o meu dever e tentei retificar as consequências do meu comportamento. Visto que isso não lhe diz nada, despeço-me, considerando concluído aquilo que me levou
a falar-lhe.
Saiu, ignorando a tentativa do criado para o acompanhar, e voltou à sala de visitas.
Cassandra esforçava-se por manter a compostura. Ver Ambury tinha sido simultaneamente um horror e um alívio. Um horror porque a presença dele lhe recordava a ironia
da sua situação e também a interferência que ele acabara por ter nas expectativas que ela alimentara de salvar a tia. Um alívio porque necessitava de alguém com
quem falar e a quem contar da crueldade do irmão.
Felizmente, ele não se demorara, ou ela acabaria a lamentar-se do seu destino. Teria sido constrangedor, especialmente porque, com toda a probabilidade, ele não
iria mostrar-se muito solidário. Poderia até pensar que havia justiça no casamento dela com Mr. Treedle, ou fosse lá qual fosse o nome dele. Ela recusara um barão,
vivera a desafiar o escândalo e agora simplesmente colhia aquilo que semeara. Tanto quanto esperava, seria a visão de toda a gente.
Fechou os olhos e tentou encontrar um intervalo de serenidade para o caos que lhe tumultuava a cabeça e o coração. Perguntou-se como estaria a tia Sophie na casa
do doutor. Esperava que as cuidadoras de Sophie percebessem que ela não pertencia àquele lugar e que a tratassem como uma amiga e não como a uma reclusa. Esperava
que a deixassem trabalhar no jardim...
Experimentou algum descanso, o primeiro que tinha em dois dias. Era delicioso suspender a infelicidade por um momento. Se conseguisse fazer aquilo durante algumas
horas, talvez encontrasse uma forma de travar aquela batalha com Gerald, em vez de se render simplesmente.
– Venha comigo – ordenou uma voz.
Uma mão firme agarrou-lhe no pulso e fê-la levantar-se.
Despertou com o sobressalto. Ambury começou a andar, arrastando-a com ele. Cassandra seguia aos tropeções atrás dele, em direção à porta que abria para a varanda.
– Precisamos de privacidade – disse. – Mostre-me um sítio no jardim que não se consiga ver da casa.
Surpreendida e completamente aturdida, ela apontou para um arbusto, à esquerda, a meio caminho do jardim. Ambury dirigiu-se para lá, arrastando-a.
Largou-a quando se viram ocultados pelos arbustos. Ela sentou-se num banco de pedra e lembrou-se de que ela e Gerald costumavam brincar naquele canto abrigado do
jardim quando eram crianças.
Ambury pôs a mão no bolso do casaco e tirou um pergaminho. Deixou-o cair no colo dela.
– É uma licença especial. Pedi a sua mão ao seu irmão ainda agora. Ele recusou-se a aceitá-la. No entanto, a aprovação dele não é necessária, e julgo que você e
eu só temos de sair pelo pórtico do jardim e...
Ela ergueu as mãos, interrompendo-o:
– Pare, por favor. Se não se importa, uma notícia chocante de cada vez.
Sentia nele impaciência e irritação. A primeira era da responsabilidade dela, supunha. A segunda, provavelmente devia-se ao tratamento insultuoso do irmão.
Enfiou um dedo no documento que tinha no colo.
– Veio cá com uma licença especial e com a intenção de me pedir em casamento?
– Vim.
– Suponho que isso signifique que as más-línguas acerca de nós não cessaram.
– Não.
– Pobre Ambury. Tenho a certeza de que é uma ironia cruel ver-se escravo da honra com relação a mim.
– Vim aqui para cumprir o que a honra me pede, é verdade. Não levei menos a sério a minha obrigação, nem a lamentei, por se tratar de si.
Não deixava de ser uma galanteria. Ele quase indicara que a ideia não o horrorizava assim tanto.
– Agora não há necessidade, claro – disse ela. – Mr. Treedle vai resolver tudo. Devia ser um alívio para si.
– Mr. Treedle é um idiota.
– Nem sequer o conhece.
– Nem você. Nem sequer sabe se o nome dele é Mr. Treedle.
– Céus, você não parece nada aliviado. Está irritado pelo estúpido do meu irmão preferir o Sr. Seja Quem For a si?
– Não estou irritado. Estou perplexo. A minha proposta devia ser preferível em todos os aspetos.
– Seria uma inconsciência deixar o orgulho levá-lo a cometer uma tolice. Pode estar perplexo, mas foi poupado a um casamento indesejado.
Ambury sentou-se ao lado dela.
– Ouça-me, não estou a brincar. Acho que devíamos fugir e deixar o seu irmão lidar com isso. Não sou nenhum exemplo de virtude, mas também não tenho fama de seduzir
jovens casadoiras. Mr. Treedle não chega para limpar o seu nome. Só eu posso fazê-lo.
Ele falava a sério. Era um querido. E ela ficou sensibilizada.
– Esquece-se da razão pela qual concordei com o plano. A minha tia. O Gerald nunca a deixará partir se eu fugir consigo. Para o resultado ser esse, mais vale não
me casar.
Ele começou a andar para trás e para a frente, com o rosto carregado de exasperação pela relutância dela.
– Digamos que eu encontro uma forma de salvarmos a sua tia.
– O preço desse salvamento seria a minha aceitação deste casamento? De outra forma, não o faria?
– Seria inútil fazê-lo, se assim não fosse. O seu irmão iria resgatá-la e eu não teria qualquer legitimidade para fazer nada. Se você e eu estivermos casados, posso
oferecer-lhe proteção. No mínimo, posso agitar as águas. Agiria em seu nome, mas as minhas ações e palavras teriam muito mais peso do que as suas.
– É verdade que teriam pelo menos tanto peso como as dele – cogitou ela, apreciando a ideia com mais clareza e prevendo possíveis desafios. – Mais, uma vez que tanto
as suas palavras como a sua pessoa são mais valorizadas.
Afinal sempre existia. Uma espécie de escolha. Sem ser propriamente uma, a não ser que desejasse ser enterrada em vida. Sem ser uma escolha de todo, se queria proteger
a tia Sophie. E, contudo...
Ambury parecia tão sério, apresentando as suas alegações a favor de um casamento que nunca procurara, com uma mulher que não amava. Havia tantos não ditos entre
eles, sobre a tia Sophie e a procura de informação por parte dele relativamente aos brincos. Sobre Lakewood.
Talvez Mr. Treedle fosse a melhor escolha, se pensasse nos anos que os aguardavam.
– Dá-me a sua palavra em como ela pode viver comigo e que nunca tentará fazer o que o Gerald fez, mesmo se ela ficar um pouco tolinha?
– Se algum dia ela precisar de cuidado especial, será em sua casa, mais nenhuma.
– Quero que me dê a sua palavra em como vai protegê-la, independentemente do que acontecer.
Ele sorriu com pesar.
– Nunca faço um juramento por algo tão ambíguo como independentemente do que acontecer, Cassandra. Prometo, no entanto, protegê-la, independentemente do que acontecer,
desde que não comprometa a minha honra.
Ela dificilmente poderia dizer que não era o suficiente, embora pudesse não o ser.
Desejou ter a possibilidade de pedir algum tempo para pensar sobre o assunto. Parecia que tinha a cabeça cheia de algodão e uma manada de emoções aos pulos dentro
de si. Não era justo ter de fazer aquilo agora.
– Cassandra, é bom pensar na sua tia. Está na altura de pensar em si, também. Eu fui visto a sair de sua casa, naquela noite. O escândalo grassa por toda a Londres,
enquanto nós estamos aqui. Desta vez, há um nome associado, e é o meu. Não vai sobreviver a isto como sobreviveu aos rumores do passado. Ficará totalmente arruinada
e a minha honra será impugnada. Devo insistir que me permita fazer a coisa certa.
– É toda uma vida, Ambury.
– De qualquer forma, a vida que conhecia terminou.
Era duro. Verdadeiro, mas duro. Tampouco versava a vida que se seguiria.
– Como diria a minha querida Emma, falemos francamente. Você não gosta sequer de mim, Ambury. Não confia em mim. Culpa-me pela reputação manchada do seu amigo. Suspeito
mesmo de que me culpe pela morte dele.
– Gosto o suficiente de si. Quanto ao resto, não falemos nisso. Foi há muito tempo.
Pelo tom de voz dele, ela depreendeu que o «não falemos nisso» começava já ali. Talvez fosse sensato. Talvez pudessem simplesmente encerrar o tópico num roupeiro.
Depois de alguns anos, o fantasma de Lakewood talvez deixasse de arranhar a porta, exigindo atenção.
– Os seus pais não ficarão chocados por se casar com uma mulher de reputação tão colorida?
– Esperam que me comporte com honra e é isso que estou a fazer. Contudo, é verdade que preciso de saber, tanto por eles como por mim, se teve alguma ligação recentemente.
– Ah! Então sempre quer saber a verdade sobre o meu passado.
Ele ponderou e abanou a cabeça.
– Só o passado recente.
– A única ocorrência recente que pode ser apelidada de ligação terminou em fevereiro último. Era um emigrado francês. Precisa de saber se eu estava apaixonada por
ele?
– Não.
Claro que não. Não se tratava de romance, de amor ou de ciúme. Ambury não se importava se ela se tinha dado a outro homem, ou até a muitos outros, desde que não
houvesse nenhuma criança a nascer cedo de mais.
– A sucessão dos Highburton não está em perigo – declarou.
– Nem poderá estar no futuro.
Assim de repente, passaram a negociações significativas.
– Eu sei. Sou filha de um conde. Contudo, depois de assegurada a sucessão, presumo, irá conceder-me a minha liberdade, como é habitual.
Uma nova e pensativa pausa. Bastante longa.
– Vou ponderar.
Ela esperou que ele se mostrasse razoável, mas não saberia até esse dia chegar.
– E você, Ambury? Há alguém a quem este precipitado casamento por obrigação deixará destroçado? Não gosta da pergunta, estou a ver. Talvez todos os rumores que giram
à sua volta sejam mais um assunto de que não falaremos.
– Poderá ser melhor.
De qualquer forma, a vida que conhecia terminou. A medida dessa diferença e da sua impotência preocupavam-na. Sentiu-se invadir pelo pânico. Agarrou-se à coisa que
sabia poder ver concretizada naquilo tudo.
– Como tenciona encontrar a minha tia? Temos de agir rapidamente, se queremos ter oportunidade de o fazer.
– Vou indagar junto do cocheiro e dos cavalariços, para saber onde o seu irmão foi.
– Podem não lhe dizer.
– Se ele a trata mal, trata-os a eles pior, pode ter a certeza. Suborno, se necessário for, mas espero obter deles o rumo que ele seguiu, pelo menos.
– Vou ver se a minha mãe sabe alguma coisa.
Ele pegou-lhe na mão e perguntou:
– Então estamos decididos?
Dizê-lo era difícil. Depois de ter escapado àquele tipo de casamento uma vez, nunca esperaria ver-se noutro. Poderia estar a dar o seu acordo a um erro terrível.
Não era dela que se tratava, contudo. Não podia confiar que Gerald cumprisse as promessas que fizera. Ambury, se o prometera, iria salvar e proteger a tia Sophie.
Ela acreditava nisso e, naquela altura, nada mais lhe importava.
– Sim, estamos decididos.
Então, ele surpreendeu-a. Depois daquela conversa tão prática, beijou-a. Mas não foi um beijo doce para selar um compromisso. Beijou-a inteiramente, com sensualidade,
como se tivesse esperado pelo momento de o fazer. Segurou-lhe a cabeça, abraçou-lhe o corpo e puxou-a para si, para a envolver por inteiro. Beijou-a até surgirem
sensações que a distraíram das preocupações com Sophie.
As implicações carnais daquele casamento tornaram-se explícitas. Ocorreu-lhe então que também aquilo podia ser horrível, se uma pessoa se casasse com o homem errado.
Não lhe restava senão esperar que não fosse.
Quando ele parou de a beijar, olhou para ela, com as pontas dos dedos pousadas nos seus lábios. A mão desceu, deslizando pelo queixo, o pescoço e o peito. Por fim,
libertou-a.
– Vá. Venha ter aqui comigo dentro de três horas.
CAPÍTULO 16
Fazer a Coisa Certa era muito semelhante a arrancar um dente. Se tivéssemos escolha, não o faríamos mas, por necessidade, devíamos suportá-lo.
Ocorreu a Yates, enquanto atravessava a propriedade em direção à cocheira e aos estábulos, que o seu humor devia estar em pior estado. Se não estava, devia-se em
grande parte à perspetiva de possuir Cassandra muito em breve. Pensar em levá-la para a cama colocava praticamente tudo a uma nova luz.
A oportunidade de aplicar os seus dotes de investigador também explicava em parte o seu bom humor. Não se envolvera na atividade com a intenção de fazer algumas
libras. Era a busca que achava interessante, excitante, e o dinheiro acontecia quase que por acidente.
Aproximou-se da cocheira com disposição de investigador, em que metade da sua mente se dedicava a selecionar as perguntas que faria aos criados. A outra metade analisava
com igual naturalidade o potencial de dor que existia na extração daquele dente em particular.
Correria inegável risco ao casar-se com Cassandra. Ela poderia ser ainda mais licenciosa do que os piores rumores davam a entender. Poderia ser-lhe infiel no espaço
de duas semanas. Podia tornar a sua vida privada um inferno se assim o escolhesse. Ele poderia ficar a saber que ela ainda se encontrava com o amante francês. Poderia
descobrir que ela não era merecedora de confiança.
Poderia descobrir provas de que trazia uma ladra para a família.
Quero que me dê a sua palavra em como vai protegê-la, independentemente do que acontecer. Cassandra adivinhara as suas suspeitas. Aquilo a que o pai aludira. Talvez
ela sempre tivesse sabido, mas era possível que as perguntas que lhe fizera acerca dos brincos a tivesse levado a rever o passado com outros olhos.
Até recentemente, a tia de Cassandra havia levado uma vida colorida com viagens frequentes e aventuras amorosas. Todos partiam do princípio de que as suas famosas
joias tinham sido presente dos seus vários amantes. Depois de considerar a possibilidade, porém, ele vira como era fácil, para uma mulher que frequentava grandiosas
casas como Sophie, deitar a mão a uma pedra ou duas, especialmente nas mansões dos tais amantes. Se o Conde Pinga - mor ou o Cavaleiro Pinga-Amor desse pela ausência
de uma joia, como é que poderia provar que não a dera à sua amada de livre e espontânea vontade?
Cassandra há seis anos que era companheira de Sophie. Onde quer que Sophie fosse, Cassandra ia também. Podia ter visto coisas que, retrospetivamente, adquiriam um
novo sentido.
Com jeito, ela até poderia ter ajudado, ou seguido as pisadas da tia. Se a tia Sophie teve oportunidade de roubar joias, Cassandra teve-a igualmente.
O seu pensamento chegou àquela conclusão por sua própria iniciativa. A ideia encadeou-se nas outras, muito à semelhança da forma como os seus passos seguiam a lógica
do ritmo. Estes detiveram-se assim que a sua mente deparou com aquele local em particular.
Ambury contemplou a cocheira que tinha à sua frente e que estava necessitada de um novo telhado de colmo. Reparou no jovem que, numa sombra do exterior, cuidava
de algum material. Enquanto traçava os seus planos, tentou descartar, por absurda, a noção da cumplicidade de Cassandra.
O impulso de lhe desculpar o comportamento não provinha de nenhuma opinião confirmada do seu carácter, nem sequer da nova realidade de ela brevemente se tornar sua
mulher. Tinha mais a ver com uma boca grande e vermelha, e olhos azuis que tinham o condão de parecer, ao mesmo tempo, inocentes e escandalosamente prevaricadores.
Derivava também dos seus instintos. A luxúria e a sensibilidade dificilmente seriam bases sólidas para qualquer opinião.
Seguiu em frente, tentando não pensar nas implicações. Não se demorou naquela que sugeria que Lady Cassandra Vernham, ao aceder a casar com ele, granjeava para si
a melhor proteção do mundo contra possíveis pecados passados.
Yates encontrou o cocheiro a beber cerveja a uma mesa na parte de trás da cocheira. As janelas abertas davam entrada a uma brisa que pouco conseguia secar o suor
que manchava a camisa do homem. Viam-se os casacos vistosos em pregos próximos, prontos para sair. Ele ainda se encontrava de botas, lenço e peruca. A pequena barrica
da qual enchera o copo estava pousada a um canto.
Sobressaltou-se quando Yates entrou e carregou o sobrolho. O seu olhar rapidamente desceu pela figura do intruso, absorvendo os pormenores. Levantou-se.
– Milord! – exclamou, procurando um casaco. – Ninguém me disse que viria, senhor. Vou imediatamente tratar da sua carruagem e ocupantes.
– Não se vista – cortou Yates. – Está muito quente e não preciso dos seus serviços. Não vim de carruagem.
Aquilo deixou o cocheiro ainda mais intrigado. Aguardou que lhe dissessem o que, não sendo os seus serviços, era pretendido.
Yates espreitou pela porta para as carruagens.
– Lady Cassandra deseja levar o cabriolé esta tarde. Como vinha dar uma volta, disse que o informaria.
– Será entregue.
– Na verdade, ela virá até cá. Que esteja pronto daqui a duas horas.
O cocheiro assentiu com a cabeça.
– E vai desejar um lacaio?
– Não.
Ao ouvir a resposta, o cocheiro lançou-lhe um olhar de esguelha, dissimulado.
– Estará pronto.
Yates deu uma volta ao aposento. Havia três camas contra as paredes, mas sem vestígios de uso em duas delas. Olhou a peruca e as calças do criado.
– Deve permanecer de libré o dia inteiro?
– Milord prefere. Há sempre a possibilidade de precisar de uma carruagem. Não gosta de esperar.
Não era invulgar, mas normalmente uma propriedade daquelas tinha mais criados na cocheira do que aqueles que parecia haver.
– Deve ser difícil manter a libré limpa, se tem também de limpar as carruagens e as reparar.
– Isso é feito à noite, por mim e um rapaz.
– E quando a carruagem fica fora até muito tarde, como há três noites?
– Aí é feito antes de o dia nascer, por mim só.
– Melhor ir por uma estrada mais rápida e saber que dorme alguma coisa.
O sujeito travou uma risada trocista.
– Vou pela estrada que me dizem para tomar, mesmo sabendo que são mais quatro horas de jornada e conte duas noites em que não durmo quando venho de Londres, não
uma.
– Eu julgaria que o caminho mais rápido a partir de Londres é óbvio para qualquer um, mesmo para o Barrowmore.
A irreverência não passou despercebida ao cocheiro, que se permitiu abrir um sorriso mínimo.
– Ele conhece o percurso tão bem como qualquer cavalheiro. Houve necessidade de passar por Hertford. A tia acompanhava-o e tivemos de a levar até casa dos amigos,
perto de St. Albans.
– Ela deve ter-se sentido agradecida por o sobrinho se ter dado ao trabalho de a ajudar.
O cocheiro corou.
– Não sei. Os lacaios ajudaram-na com as coisas dela quando lá chegámos. Eu fiquei com a carruagem. E com Milord.
Então Barrowmore nem sequer tivera a decência de entregar Sophie ao carcereiro. Ficara sentado na carruagem enquanto os criados a levavam. Yates sentiu-se tentado
a perguntar se Sophie se tinha debatido. Se assim fosse, não os teria atrasado muito. Era tão pequena que um criado teria pegado nela sem esforço.
O rosto do homem não tinha perdido o forte rubor. Fosse por ter revelado assuntos do amo ou por memórias daquele desvio, Yates não sabia dizer.
Enfiou a mão no bolso à procura de alguns xelins. Se fossem demasiados, o seu informador ficaria preocupado com as mais recentes indiscrições. Se fossem insuficientes,
o seu silêncio futuro poderia não ser comprado. O último era mais importante, por isso pecou por excesso.
– Lady Cassandra pediu-me para lhe dar isto, por pedir que prepare o cabriolé tão tarde. É seu desejo que seja discreto quanto à saída dela. Está cansada da companhia
atual e deseja procurar ares diferentes. Seria melhor prender o cabriolé lá fora e continuar aqui dentro quando ela vier.
O homem espreitou os xelins. Ocultou quaisquer pensamentos que pudesse ter a respeito de Cassandra sair sozinha com um cavalheiro desconhecido de presença inesperada.
– Nunca me foi instruído que informasse das idas e vindas da família. Não vejo razão para começar agora por inspiração própria.
– Foi fácil – soprou Cassandra, quando o cabriolé descia a estrada com o cavalo de Ambury a reboque. – Tem talento para engendrar fugas, Ambury.
– Tivemos sorte por o cocheiro ser cooperante. Caso contrário, deambularíamos pelos campos até eu encontrar uma carruagem para alugar.
Cassandra duvidou de que aquilo chegasse a acontecer. Ambury era um homem que organizava as coisas ao seu gosto. O berço, o encanto pessoal e a postura granjeavam
a cooperação de toda a gente.
– Espero ser elogiada por me ter lembrado de esconder o seu cavalo, para não levantar suspeitas da sua presença na propriedade.
Ele inclinou-se e beijou-lhe o rosto.
– É brilhante.
A tarde declinava e o ar arrefecia. A excitação da corrida para a cocheira e a fuga rápida tinham-na deixado de boa disposição. Imaginou o irmão a explicar a Mr.
Treedle que as coisas tinham dado para o torto e que não ia haver casamento, nem, tampouco, o chorudo dote.
Não a fazia sentir-se mal, pensar em Mr. Treedle. Que tipo de homem concordava com um acordo daqueles sem sequer conhecer a mulher? Tinha de ser muito ganancioso.
– A minha mãe recusou-se a dizer-me onde a minha tia está, mas tenho a certeza de que sabe.
– O que descobri é bastante para a encontrar. Contudo, só amanhã conseguiremos tirá-la de lá. Está mais perto de Londres do que de Anseln Abbey.
– Sabe aonde ir? Afinal, o brilhante aqui é você.
– Não aonde ir, para ser exato. Contudo, sei o suficiente. Bastam-nos algumas perguntas para descobrir o resto. Qualquer médico que receba doentes em casa será conhecido
na área onde mora.
Ele parecia confiante. Cassandra permitiu-se sentir alívio e deliciar-se com a ideia de que, no dia seguinte, àquela hora, teria libertado Sophie.
– Vamos viajar a noite inteira? Não me importo – mencionou ela.
– Não há luar suficiente. Esta noite, fazemo-nos convidados em casa do Kendale. A propriedade dele fica no próximo condado, não muito longe.
Aquilo desanimou-a. Kendale iria estragar a aventura. Muito provavelmente apresentaria vários argumentos contra a fuga deles. Tentaria convencer Ambury a devolvê-la
a Gerald e a deixar a tia Sophie entregue à sorte dela.
– Não podemos ficar numa estalagem?
– Se a preocupa que eu tenha planos para a seduzir esta noite e não quer tais intimidades debaixo do teto dele, deixe-me tranquilizá-la e dizer-lhe que decidi esperar
até depois de casarmos.
– Não é isso. De todos vós, ele é quem mais me odeia.
– Eu não a odeio, Cassandra. Nem ele.
Talvez odiar fosse a palavra errada, mas ela tinha a certeza de que ele sabia o que pretendia dizer. Tal como sabia a razão pela qual a dissera.
– Será mais confortável para si ficar em casa dele, e o pastor da propriedade pode concretizar o casamento de manhã. Prometo que o Kendale não será grosseiro e que
tanto ele como os criados se certificarão de que o seu irmão não tentará interferir.
A lógica de ficarem em casa de Kendale mal deixou marca. Estava demasiado perplexa com a descoberta de que Ambury planeava casar-se com ela logo de manhã.
– Tenciona fazer os votos tão rápido?
– Quando se solicita uma licença especial e se foge de forma clandestina, é costume fazer os votos o mais cedo possível.
Ela olhou a paisagem que corria ao seu lado enquanto tentava aceitar a rapidez com que a sua vida, tal como a conhecia, iria terminar.
Ambury incitou os cavalos.
– Então a perspetiva de intimidade debaixo do teto dele não a preocupa?
A pergunta dele arrancou-a aos pensamentos. Era mesmo de homem, lembrar-se, de toda a conversa, precisamente daquela resposta.
– De todo. Estou a contar que o seu desempenho não deixe sequer lugar a lembrar-me de onde estou.
– Maldição! Agora estou a arrepender-me da minha decisão de esperar.
– Se esperar significa que salvamos a tia Sophie primeiro, não me parece que se arrependa.
Aproximou a anca da dele e inclinou-se para lhe mordiscar a orelha. A menção da intimidade recordou-lhe um dos possíveis benefícios daquele casamento, cujas implicações
não a deixavam de todo indiferente. Endiabrada, acariciou-lhe o joelho.
Ele aguentou as provocações durante uns minutos.
– Diabos!
Freou o cavalo. Segurou as rédeas na mão esquerda e agarrou nela com a direita, puxando-a para um beijo selvagem. A mão passou-lhe por detrás das costas e abarcou-lhe
um seio.
Ficaram ali parados no meio do caminho, deixando uma pequena tempestade tomar conta deles. A excitação não dava tréguas a Cassandra, que tudo envidava, com as carícias
que fazia na coxa dele, para o deixar igualmente desconfortável. Chegou a um ponto em que teriam ou de parar ou de amarrar o cavalo e rumar para o meio do campo.
Ele interrompeu um beijo no meio da paixão. Com a testa contra a dela, o olhar preso no seu.
– Amanhã à noite, estejamos onde estivermos, quero-a nua. Sem roupões, sem cerimónias, sem fingimentos. Quando for ter consigo, quero ver-lhe os seios e as pernas
e o seu desejo de prazer.
Soltou-a e pegou novamente nas rédeas. Ela ficou junto a ele e pousou a cabeça no seu ombro enquanto se deixava levar pela recordação de umas costas e nádegas definidas
a entrar no mar.
Os cães começaram a ladrar ainda a quase um quilómetro da casa. Pelo menos uma dúzia deles acompanharam o cabriolé durante a última centena de metros e puseram-se
a pular à sua volta quando este parou na alameda escura.
Cassandra aproximou-se de Yates, que mantinha o chicote a postos, caso os cães de Kendale mostrassem a mesma apetência social do dono.
A porta abriu-se e um vulto alto e escuro converteu-se numa silhueta por meio da luz que saía do edifício. Após ficar um tempo parado a olhar, o vulto avançou.
– Que diabo está a fazer aqui, Ambury? E numa carruagem tão elementar?
– Busco refúgio.
Yates saltou do veículo e foi ao encontro de Kendale. Os cães seguiram-no, mordiscando-lhe as botas e cheirando-lhe as pernas. Kendale deu duas ordens secas que
logo os dispersaram.
Kendale olhou para trás do amigo, para a carruagem.
– Aquela é Lady Cassandra?
– É.
– Devo dar-me ao trabalho de dizer que os dois se arriscam a um escândalo irreversível ao viajarem juntos e sozinhos a esta hora no meio do campo?
– Não desperdice o seu fôlego.
Kendale suspirou.
– Muito bem. Traga-a para dentro. Não há aqui ninguém que possa ser corrompido pela vossa ousadia. Devo dizer aos criados que precisam de um quarto ou de dois?
– Dois, claro.
Kendale achou graça àquilo.
– Vá buscá-la. Ou devo ir fazer-lhe uma receção calorosa? Sim, imagino que deva.
Prosseguiu até lá e mostrou-se bastante efusivo na receção, pedindo desculpa pela natureza rústica da hospedagem e a falta de confortos femininos. Yates ficou impressionado.
Nunca ouvira Kendale combinar tantas palavras de uma só vez em nome da cordialidade. A expressão cética de Cassandra cedeu.
Yates ajudou Cassandra a descer. Já dentro de casa, Kendale entregou-a a uma velha governanta.
– Ela fica no primeiro quarto ao cimo das escadas, no segundo andar, caso queira procurá-la mais tarde – informou Kendale depois de ela sair.
Yates não se importaria de a procurar no quarto dela naquela mesma noite. Depois do que acontecera na estrada, sentia-se fortemente inclinado a fazê-lo. Não o faria,
decidiu, embora não soubesse ao certo porquê. Seguiu Kendale até à biblioteca, onde o amigo os serviu aos dois de brandy.
– O que quis dizer, com «buscar refúgio»?
– Há a possibilidade de o irmão dela tentar interferir. Poderá aparecer aqui se conseguir seguir-nos.
– Que diabo, deixe-o vir. Metade dos meus criados são a minha ex-patrulha. Se precisássemos, aguentávamos um cerco.
– Assim me parecia. Foi por isso que viemos para cá. Agora sente-se, que eu explico tudo. Ah, antes de o fazer... Há um pastor na propriedade, não há?
Kendale precisou de um bom momento para compreender o que a pergunta implicava. Atirou um olhar fulminante a Yates e voltou a pegar no brandy.
Ocasionalmente, embora não nos últimos tempos, Cassandra imaginara um casamento que a tinha a ela por noiva. Apesar de a fantasia se distinguir em alguns aspetos
particulares, não era invulgar no seu desenvolvimento geral. Nunca incluíra um vestido de casamento que pouco mais fosse do que um prático vestido de musselina,
próprio para usar no campo ou num dia quente de verão.
Não incluíra, decididamente, como testemunhas, uma governanta idosa com cara de poucos amigos nem um Lord Kendale de ar severo.
O pastor, um primo segundo de Kendale, que se iniciava nas suas lides, ficou perplexo e alvoroçado por ser chamado para um tal dever. Foi necessário garantir-lhe
que a licença especial era autêntica, antes de ele assumir a sua posição na sala de visitas.
No momento em que se dava início à cerimónia, uma tempestade estalou. Cassandra observou o aguaceiro pelo canto do olho. O canto oposto do outro olho reparou que
Ambury parecia ser a pessoa mais tranquila daquela sala.
Seria um partido e tanto, em circunstâncias normais. Qualquer mulher sentiria uma satisfação pessoal tremenda se ele lhe tivesse pedido a mão de livre vontade, e
se não houvesse vários assuntos por resolver que poderiam não se revelar benéficos para o futuro em conjunto. Não falariam neles, decidira ele. No entanto, aquilo
não os faria desaparecer.
Chegou a altura da aliança e, para sua surpresa, o casaco de Ambury continha uma. Perguntou-se onde ele a teria conseguido. O gesto e o simbolismo tornaram subitamente
a cerimónia muito real. Categoricamente. Todo o nervosismo de que uma mulher poderia padecer durante todo o seu noivado assaltou Cassandra num único momento, quando
aquele anel veio na sua direção. A mão tremia-lhe tanto que Ambury lhe teve de agarrar no pulso, para conseguir passar pelo dedo o círculo dourado.
E depois, terminou. Estava feito. Ninguém se mexeu durante um bom bocado. Ninguém falou. O pastor parecia petrificado, irradiando um sorriso esperançoso e prudente
na sua direção.
Finalmente, Ambury pousou as mãos no rosto de Cassandra e beijou-a com cuidado, como se adivinhasse o terror que lhe ia no coração.
– Prometo tomar conta de si – disse baixinho.
Não era a declaração de amor da sua fantasia de infância, mas era mais do que muitas mulheres recebiam.
– E eu prometo garantir que não se torna rígido e austero como os seus antepassados – declarou ela.
Ele riu-se, e o som derrubou o constrangimento. As pessoas mexeram-se. O pastor apresentou as felicitações. Ambury ofereceu o braço a Cassandra e rumaram ambos com
o minúsculo e festivo grupo até à sala de jantar para o pequeno-almoço.
*
– Não me parece que possamos recompensar o Kendale pela ajuda que nos deu – comentou Cassandra quando a carruagem entrou em St. Albans.
– Não temos de o recompensar por nada. É meu amigo.
Ambury estava mais interessado nos arredores da povoação do que no comentário dela.
Kendale mostrara-se melhor amigo do que muitos. Não só fizera em sua casa o casamento deles como lhes emprestara aquela carruagem sem ele sequer lha pedir. Para
um homem que vivia uma masculina indiferença às exigências da sociedade, Kendale mostrara um entendimento inesperado, como revelava o comentário em que referira
que seria muito estranho para Ambury levar Cassandra para Londres num cabriolé de um só cavalo, roubado.
Um cabriolé com a tia Sophie no banco de trás seria ainda mais peculiar. Cassandra decidiu que faria saber a Kendale o quão grata estava por este ter previsto as
necessidades práticas. O empréstimo de dois lacaios e de um cocheiro poderia vir a revelar-se igualmente útil, antes de o dia findar. Não duvidava de que Ambury
conseguiria intimidar qualquer médico e garantir a libertação de Sophie quando chegasse a altura, mas não seria mau poder contar com alguns homens fortes ao seu
lado.
– Espere aqui – disse Ambury.
Deu ordem de paragem à carruagem e saiu ainda antes de esta se deter completamente. Ela espreitou pela janela e viu-o entrar numa taberna.
Esperou um quarto de hora até ele regressar e voltar a subir.
– Penso que o sítio que procuramos fica numa travessa lateral a cinco quilómetros da povoação. O médico que lá vive é discreto, mas há relatos de que tem diversos
hóspedes permanentes.
Cassandra crispou-se de tensão e medo.
– Já decidiu como vamos fazer isto? Talvez deva dizer que o meu irmão lhe pediu que a fosse buscar em nome dele.
– Não vou mentir, claro. No entanto, poderei dizer que fui enviado pela família. Como a Cassandra é familiar dela...
Ela esperou que fosse o suficiente. Enquanto a carruagem os levava, imaginou o desenrolar da situação.
A casa que ficava na rua lateral não aparentava ser nada mais do que uma moradia de boa dimensão. Quando se aproximaram não havia nada que indicasse o seu propósito.
Contudo, o barulho que eles provocaram trouxe uma mudança. Logo, rostos pálidos assomaram às janelas no segundo piso e nas águas-furtadas. Cassandra olhava de janela
em janela, procurando Sophie. Via apenas presenças e olhos fantasmagóricos. Olhos confusos. Loucos. Vazios.
– Tenho de ir consigo – disse.
– Nem pensar!
– Ela não acreditará que está cá para a ajudar. Pode pensar que veio a mando do Gerald, para a levar para um sítio ainda mais inóspito. Entramos juntos e, se o médico
tentar impedi-la de vir, então eu saio e você pode regressar com os criados musculosos.
Ele ponderou.
– Vamos tentar o que diz. Mas...
Esticou o braço e tirou a pistola da caixa montada na parede da carruagem.
– Ele também pode ter criados musculosos, e eu não coloco em risco a sua segurança.
Os ocupantes da casa estavam à espera de que eles batessem. A porta abriu-se imediatamente. Um cavalheiro de rosto corado com uma peruca antiquada e calças e casaco
beges saudou-os. Atrás dele encontrava-se um criado, bastante musculado, por sinal.
Ambury apresentou o cartão.
– Viemos visitar Lady Sophie Vernham.
Uns olhos velados debruçaram-se sobre o cartão, depois sobre Ambury, depois sobre Cassandra.
– Não me disseram que iria ter visitas.
– E quem é o senhor, se posso perguntar? – inquiriu Ambury.
O sujeito endireitou-se.
– Doutor Harold Wakely, médico. Esta é a minha casa e o meu hospital privado.
– Oh, céus! Ela está doente? – perguntou Cassandra. – Graças a Deus que decidi fazer este desvio para a ver. É mesmo típico do Barrowmore, tentar poupar-me.
O Dr. Wakely não sabia o que fazer, por isso decidiu-se pela etiqueta. Cassandra aceitou o convite para entrar.
– Se me indicar onde ela está, ficar-lhe-ia muito agradecida – declarou ela.
No entanto, o Dr. Wakely indicou-lhes a sala de estar.
– Receio que tenha piorado desde que aqui está. Agora, a memória absorve-a de formas desditosas durante quase o dia inteiro. Foi por essa razão que o seu irmão ma
trouxe. Está a perder o controlo das suas faculdades mentais.
– Oh, meu Deus! – Cassandra olhou para Ambury com ar aflito. – Tenho de a ver, mesmo assim.
– Ela pode não a conhecer – advertiu o Dr. Wakely.
– Vamos arriscar – disse Ambury. – A minha mulher era muito próxima da tia e sente necessidade de a reconfortar, se puder.
– A sua mulher? A tia dela?
O Dr. Wakely olhou para Cassandra com surpresa.
– As minhas desculpas, viscondessa. Não sabia que eram da família. Sim, claro que pode vê-la. Se quiser seguir-me.
Atravessou a casa, até uma porta nas traseiras que dava para o jardim.
– Ela gosta das flores. Passa a maior parte do dia aqui, se o tempo estiver bom. Ao contrário de alguns dos nossos convidados, não representa qualquer problema.
Não está louca, claro. Apenas começa a viver a segunda infância.
Cassandra viu a tia sentada num banco debaixo de uma árvore a meio do caminho principal.
– Obrigada. Gostaria de ter alguma privacidade com ela.
O Dr. Wakely recuou.
– Eu estarei lá dentro.
Cassandra e Ambury aproximaram-se da tia Sophie. Cassandra reparou que a tia não se mexia e que não olhava verdadeiramente para nada. Tinha a mente noutro sítio
qualquer, como por vezes acontecia nos últimos tempos.
Sentiu uma enorme apreensão. Sophie poderia ter piorado desde a chegada àquele lugar. Seria possível, em apenas alguns dias? Talvez, encontrando-se numa casa cheia
de pessoas mentalmente doentes, uma pessoa escapasse para dentro da própria mente.
Estavam muito próximos quando Sophie atentou à presença deles. Espreitou-os, com aquela ausência no olhar que anunciava a presença demasiado vívida de imagens antigas.
– Ah, Anthony, é você. Sabia que alguém viria salvar-me, mas não esperava um paladino tão nobre quanto o Highburton.
Ambury pegou-lhe na mão e inclinou-se para a beijar.
– Não sou o Anthony, mas o filho dele. Somos muito parecidos, assim me dizem.
Sophie piscou duas vezes os olhos, que cintilaram, acompanhados de um sorriso perspicaz.
– É-o, deveras. É muito parecido com ele quando era novo.
Aceitou o abraço de Cassandra.
– Como é que me encontrou? Espero que o filho do Highburton tenha arrancado o meu paradeiro ao Gerald. O canalha raptou-me da minha própria casa. Consegue acreditar?
Yates observou Cassandra examinar cuidadosamente a tia. Naquele momento, Sophie parecia bastante normal, mas há escassos minutos encontrava-se indubitavelmente perdida
nos seus pensamentos. Confundira-o de facto com o pai, o que indicava que se entregava àquelas memórias de forma bastante intensa, por vezes.
– Conta-me tudo assim que a tirarmos daqui – declarou Cassandra. – O Ambury e eu vamos levá-la para casa connosco. O Gerald não poderá aproximar-se novamente de
si, e se tentar fazê-lo outra vez, vamos para os tribunais impedi-lo.
Sophie desviou o olhar de Cassandra para Ambury, confusa. Então, o seu olhar pousou na mão da primeira, pousada no seu ombro. Viu o anel.
– Está casada? – Observou atentamente Cassandra, depois Ambury e confirmou: – Consigo?
– Sim. Esta mesma manhã – disse Ambury. – Além do meu amigo visconde Kendale, é a primeira a saber.
– Mas que bem. O Gerald não vai gostar nada disso. Na verdade, pode até tirar-lhe a vontade de me aborrecer.
Ergueu-se.
– Tenho muito poucos bens pessoais aqui e não deve ser demorado arrumá-los. Sugeriria que saíssemos simplesmente por um dos portões do jardim, mas verifiquei no
primeiro dia e estão todos fechados. O Dr. Wakely dispõe de dois criados muito grandes para o ajudar com as pobres almas que precisam verdadeiramente da sua hospitalidade,
por isso espero que tenha trazido uma pistola, senhor.
– Trouxe, mas tenho a certeza de que não precisarei dela.
– Então tem mais fé no bom senso dos outros do que eu.
Majestosa, envelhecida, mas ainda bela, parecia estar muito alerta ao mundo à sua volta.
– Vamos, então? Atrevo-me a dizer que qualquer pessoa sã não continuará a sê-lo se ficar aqui tempo de mais.
O Dr. Wakely aguardava-os precisamente do outro lado da porta de trás. Parecia satisfeito por ver a tia Sophie tão consciente.
– É evidente que a sua visita ajudou muito, hoje, viscondessa. Sente-se melhor, Lady Sophie?
– Estou em perfeita forma, meu bom homem. Assim como estive o dia todo de hoje, o de ontem e o de anteontem. Na realidade, já lhe disse várias vezes que não pertenço
a este lugar.
– Claro, claro – arrulhou o Dr. Wakely.
– Vou levar Lady Sophie connosco – comunicou Ambury. – A minha mulher atenderá a qualquer cuidado de que ela necessite no futuro.
Aquilo sobressaltou o doutor.
– Ela foi deixada ao meu cuidado, senhor. Sou obrigado a...
– Não tem quaisquer obrigações. A família mudou de ideias relativamente ao cuidado a prestar. É, sem dúvida, algo que acontece por vezes.
Wakely franziu o sobrolho. Moveu-se de forma a bloquear o caminho para a porta. O criado grande assomou ao fundo do corredor.
– Dei a minha palavra, senhor.
– Não estará a voltar atrás com ela de sua própria vontade.
– O pagamento...
– É seu, julgo eu. Claro que quanto mais tempo Barrowmore for alheio a esta alteração, maior a probabilidade de realmente o ser.
O criado recuou alguns passos. O rosto de Wakely ficou vermelho, e tapou-lhes o caminho de forma mais óbvia.
– Não posso permitir isto. É extremamente irregular e de legalidade duvidosa.
Yates mexeu o casaco de forma a mostrar a pistola. Imobilizou Wakely com um olhar inabalável.
– Não me fale de legalidade. O senhor tomou parte num rapto. Barrowmore não detém qualquer autoridade sobre Lady Sophie e o senhor não tinha nada que aceitar prendê-la
aqui contra a vontade dela, sem provas de que a custódia lhe tinha sido dada. Ela escolhe ir-se embora connosco e eu certificar-me-ei de que o faz. Agora chame o
seu homem e saia da nossa frente.
Wakely manteve-se firme durante mais dez segundos. Então, o braço ergueu-se num gesto para o criado e ele próprio saiu do caminho.
Quando Yates conduzia Sophie e Cassandra para fora da casa, Sophie inclinou a cabeça para junto da sobrinha.
– Vê, querida? Não lhe disse que ele era delicioso?
CAPÍTULO 17
Yates não demorou a perceber que Lady Sophie, na posse de todas as suas faculdades mentais, era uma mulher que não podia ser ignorada.
Depois de se afastarem uns quinze quilómetros do lar de Wakely, pararam numa estalagem de beira de estrada para uma refeição. Yates decidira que deviam seguir em
frente, mesmo que tal significasse chegar a Londres depois de escurecer. As senhoras aceitaram. O que não aceitaram foi o plano que traçou para o que aconteceria
quando chegassem a Londres.
Ele tencionava levar ambas para a casa da sua família, pelo menos durante alguns dias, enquanto diligenciava para alugar uma própria. Lá, Sophie estaria em segurança
e Cassandra teria alguma privacidade e conforto.
– Preferiria regressar à minha própria casa – declarou Sophie. – Recuso-me a ser um fardo para os seus pais, e sentir-me-ia muito embaraçada por me saber convidada
deles sem o seu conhecimento.
– Eles não se importarão, posso garantir-lhe. É uma situação excecional e não sabemos a que expedientes o Barrowmore pode recorrer. Se ficar sozinha em casa, arriscamo-nos
a que volte a desaparecer.
Ele presumia que ela reconhecesse a lógica do seu plano.
– Podemos resolver o problema do Gerald com relativa facilidade. Deixe estes lacaios comigo e dê-lhes ordens para escorraçar qualquer pessoa que tente entrar em
minha casa.
– São criados do Kendale, não meus. É necessário que voltem para junto dele, juntamente com esta carruagem.
– Lord Kendale não se importará que os conserve durante alguns dias, tenho a certeza.
– Se nem sequer o conhece, como é que pode ter a certeza?
A voz dele deve ter revelado a sua exasperação crescente, pois Cassandra, cuja mão estava debaixo da dele, virou a sua para apertar ligeiramente a dele.
– Tenho a certeza, porque ele é um cavalheiro, e a Cassandra disse-me que é oficial. Ao envolver-se na sua escaramuça, nunca retiraria as tropas ao saber que ainda
eram precisas. Escreva-lhe e explique-lhe. Vai ver que tenho razão.
Foi assim que Yates depositou Sophie e dois lacaios na casa de Adams Street. Cassandra aproveitou a oportunidade para preparar uma mala antes de se juntar a ele
na carruagem que prosseguiu para a residência familiar.
– Planeia dar explicações acerca de nós os dois hoje à noite? – questionou Cassandra quando olhou para a fachada escura.
Viam-se luzes suficientes no interior para concluir que os habitantes ainda não se tinham retirado.
– Seria melhor.
– Tenho de ir consigo?
– Eu trato disto sozinho.
– Parece-me sensato. – Ela aceitou a companhia dele até à porta. – De todas as coisas que enfrentei ao longo dos anos, julgo que esta estranha receção é provavelmente
a mais difícil.
– Será a próxima condessa de Highburton, Cassandra. Todas as pessoas desta casa a tratarão como tal.
– A sua mãe...
– Especialmente a minha mãe.
Um criado estava de serviço à porta àquela hora, mas o mordomo não demorou a dispensá-lo. Yates explicou que iriam ficar alguns dias.
– Instale-nos no apartamento do terceiro piso que dá para o jardim. Diga a Mrs. Anderson para enviar lá alguém para ajudar a senhora. Envie recado ao meu apartamento,
dizendo ao Higgins para vir também.
O mordomo começou a dar ordens. Yates chamou Cassandra de parte.
– Devo falar com o meu pai agora. Espero que esteja acordado. Não faz sentido os criados ficarem a saber primeiro.
– Claro. Guardo o meu agradecimento pelo dia de hoje para quando voltar a vê-lo.
O sorriso endiabrado que ela lhe dirigiu foi muito eficaz em o distrair momentaneamente da conversa que o aguardava. A sua mente começou a pensar que o pai provavelmente
não estaria acordado e que aquilo tudo poderia esperar pela manhã ou mesmo pela tarde seguinte. Pôs a ideia de parte e começou a subir a escada, imaginando o pior
para aquela reunião.
O pai tinha sido colocado na cama. A mãe estava sentada numa cadeira próxima, a ler-lhe. Yates lamentou significar a interrupção da pacífica cena.
A mãe pousou o livro quando ele se aproximou.
– Pode esperar pela manhã, Yates. Ele está quase a dormir.
– Estou acordado o bastante – murmurou o pai.
Tentou levantar-se. Yates foi colocar-lhe duas almofadas atrás das costas.
– Então o que o traz aqui a esta hora? – perguntou o pai. – Julguei que tivesse saído da cidade.
– Acabo de voltar. Há uma coisa que devo dizer-lhe, e que não podia esperar.
A mãe fez menção de se levantar, para os deixar a sós.
– Fique, mãe – interrompeu Yates. – Foi uma sorte encontrá-los juntos.
Fitando-o com ar de reserva, a mãe voltou a sentar-se.
– Perdeu muito dinheiro ao jogo?
– Não é isso. Embora vá precisar de algum dinheiro na mesma. Casei-me hoje de manhã, por licença especial. Com Cassandra Vernham.
Os pais ficaram a olhar para ele. Ninguém falou nem se mexeu. Dos dois, o pai era quem parecia mais chocado. Yates esperou que fosse só espanto e que não lhe afetasse
a saúde.
O silêncio persistia de forma confrangedora.
– Trouxe-a para cá. O meu apartamento não é adequado.
– Penso o mesmo – declarou a mãe. – Claro que tinha de a trazer para aqui.
– Claro – acompanhou o pai.
A mãe e o pai trocaram um olhar. Uma comunicação silenciosa passou entre os dois.
– Uma licença especial – repetiu o pai. – Foi uma fuga? A família dela não aprovava?
– O irmão dela não ficou nada satisfeito com o meu pedido.
– Imagino que não. – Por alguma razão, o pai achou aquilo divertido. – Bom, está feito, por isso não vale a pena discutir a sensatez da decisão – concluiu, deixando
a cabeça regressar às almofadas. – Traga-ma aqui amanhã, para lhe dar as boas-vindas.
A seguir, pareceu adormecer.
– Venha comigo – disse a mãe. – Ele pode não ter mais nada para lhe dizer, mas eu tenho.
Yates seguiu-a até ao quarto de vestir dos aposentos. Assim que ele fechou a porta, ela virou-se para ele e fez-lhe ver o estado de choque em que estava.
– Francamente! É o tipo de coisa com que nos preocupávamos nos seus vinte anos, não agora. O que é que tinha na cabeça?
– Tenho a certeza de que ouviu o falatório, portanto é uma pergunta peculiar.
– Claro que ouvi. Há anos que se ouve falar de um e de outro, portanto não há nada de novo nas histórias mais recentes.
– O que é novo é as histórias serem sobre nós os dois juntos.
– Teve um caso, e daí? Não foi o seu primeiro, nem é o primeiro dela. – Deixou-se cair numa cadeira e abanou a cabeça. – Cassandra Vernham. De todas as mulheres
de Inglaterra, tinha de se ter enrolado com ela.
– Na verdade, não tivemos nada, mas o nome dela ficou comprometido na mesma. Sei dos rumores passados que sempre a acompanharam, mas neste caso é diferente. Há provas
mais específicas e o meu nome surgiu. Teria sido a ruína dela. Ela nunca se casou...
– Por sua própria escolha. Quanto a arruiná-la, já estava bem encaminhada. Não vejo porque teve de se sacrificar em prol dela.
– Não posso permitir-lhe que fale assim dela. Por favor, não volte a fazê-lo.
Para sua surpresa, a mãe começou a chorar. Não lhe parecia que alguma vez a tivesse visto chorar.
– O pai compreende, ainda que a mãe não. Sei que não está feliz. Havia provavelmente toda uma série de possibilidades para mim que a mãe preferia.
– Dúzias. Centenas.
– Eu conheço-a melhor do que a mãe e penso que se adequa muito bem a mim. Agora é minha mulher. Tenho a certeza de que a receberá tão bem como o pai.
Ela limpou os olhos e recompôs-se.
– Claro. Não há nada mais a fazer. Imagino que tenham ocupado o aposento grande do terceiro andar.
– Até encontrar uma casa para nós.
– Vou dizer ao seu pai que lhe dê dinheiro suficiente para montar uma casa. Já está mais do que na altura, e, de qualquer forma, apertar-lhe os cordões à bolsa não
fez diferença nenhuma.
Ele curvou-se e deu-lhe um beijo no rosto. Ela não pareceu importar-se, embora fosse algo que ele não fazia há anos. Tal como as palmadinhas que ela lhe deu no rosto
enquanto o olhava profundamente com olhos humedecidos.
– Vou ser simpática com ela, prometo.
Ele despediu-se. Foi até à biblioteca e serviu-se de porto. Bebeu-o à janela, contemplando os candeeiros que pontuavam a escuridão.
Correra melhor do que ele esperara, com o conde, e pior do que previra, com a mãe.
A lembrança de Cassandra rapidamente afastou quaisquer memórias daquelas conversas. Resistiu à inclinação de subir a passo largo as escadas e de possuí-la imediatamente.
Ficou, pois, a acabar o porto, consumido pelo desejo. A seguir, conseguiu esperar mais uns quinze minutos, para ela ter tempo de se acomodar.
Depois não aguentou mais a espera.
A criada segurava uma grande toalha branca quando Cassandra saiu do banho frio. Declinar a água quente deixara-lhe tempo para relaxar antes de se lavar e, quando
se envolveu na toalha, sentia-se revigorada.
Sentou-se à escrivaninha, deixando a criada entregar-se à tarefa de lhe tirar os ganchos do cabelo. Enquanto isso, escreveu à pressa uma mensagem para Emma.
Casei-me com o Ambury hoje de manhã. Explico tudo quando a vir da próxima vez.
Depois de selar a carta, dirigiu-se para o quarto de vestir, para lhe escovarem o cabelo. Dispensou, então, a mulher e abriu o guarda-vestidos, no qual as suas poucas
peças de roupa tinham sido colocadas. Tentou decidir o que vestir. Os aposentos tinham dois quartos e quando Ambury atravessasse a estreita passagem que os ligava,
Cassandra presumia que o faria por uma única razão. O prazer sexual seria o único benefício que ele retiraria daquele casamento, além da preservação da honra masculina.
Tampouco estava a contar que ele fizesse grandes cerimónias. Não teria necessidade de seduzir nenhuma virgem, não era? Nada que o obrigasse a fingir amor, nem sequer
muita afeição. Um homem que faz o que está certo é um homem coagido pelas regras da sociedade. Se ela fosse inocente, ele poderia pelo menos ter tentado ser meigo,
mas uma mulher do mundo não necessitava desse tipo de cuidados.
Quero-a nua. Levá-lo à letra implicaria um início vulgar. Nem sequer as amantes o receberiam totalmente nuas. Desfiou as camisas de noite e os robes, e escolheu
uma peça que talvez servisse. Dispensou a toalha e vestiu-a.
Não fazia ideia do tempo que ele demoraria com a família. Era possível que houvesse lugar a discussões consideráveis devido ao casamento inesperado. Seria agradável
encontrar alguma coisa com que se distrair, mas duvidava de que ele gostasse de a ver a ler um livro quando entrasse.
Regressou ao quarto dela. A mulher abrira a cama de um lado. Aparentemente, os criados não sabiam que ela e Ambury estavam casados. Abriu-a do outro. A noite estava
quente, e os cobertores não seriam necessários.
Finalmente, tudo estava mais do que preparado. Exceto ela.
Estava na sua noite de núpcias, cujos rituais lhe anunciavam o quanto a sua vida havia mudado. Não se trataria de nenhuma paixão impetuosa e descontrolada. Ambury
não se disporia a conquistar a sua anuência com beijos e prazer. Não havia quaisquer fantasias de amor nas quais pudesse resguardar-se.
Em lugar disso, aquela noite tratava da concessão de direitos e da aceitação de deveres. Não poderia ser nada mais do que isso. Talvez fosse até fria e sumária.
Ou não.
Sentou-se à espera, com o coração a bater com força e todos os sentidos em perfeito estado de alerta, perguntando-se se teria alguma voz no decorrer das coisas.
Talvez sim. Ambury presumia que ela era uma mulher do mundo. Talvez fosse sensato comportar-se como tal, em vez de parecer uma galinha assustada.
Regressou ao quarto de vestir e tirou a camisa que escolhera, enfiando-se num roupão translúcido. De volta ao quarto, deitou-se no centro da cama.
A espera excitou-a. O tecido que lhe encobria o corpo friccionava levemente a pele que a expectativa estimulava. Memórias do prazer usufruído nos abraços e beijos
anteriores vieram provocá-la.
Quando escutava com atenção, conseguia ouvir ruídos ténues vindos de outros aposentos, que indicavam que alguém se movimentava. Podia ser apenas o criado pessoal
dele, mas cada som abafado adicionava excitação ao nervosismo que sentia.
Subitamente, ouviu sons diferentes. Mais próximos. Espreitou e viu-o no quarto dela, parado na escuridão. Um prisma de luz prateada que raiava de uma cortina próxima
revelava-lhe o rosto e a parte superior do corpo. Trazia um robe verde de seda que lhe pendia largo do corpo. Ela duvidava de que tivesse alguma coisa por baixo.
Recordou a visão daquele corpo ao entrar no mar. A imagem acordou-lhe o desejo num frémito surdo.
Ele veio para a cama. Tocou na seda fina e transparente da bainha do roupão dela, o que fez com que os dois lados se separassem até uma das pernas se revelar até
à coxa.
– É elegante – disse ele.
– Julguei que fosse arrojado.
Os dedos dele subiram pela seda que lhe cobria o tronco até roçarem na auréola escura que se entrevia. A leve carícia sobressaltou-a. Os seus seios avolumaram-se
ainda mais. O mamilo ficou mais duro ao toque dele.
– Também é arrojado.
Com um novo puxão, o tecido escorregou, deixando-lhe metade do corpo completamente nu.
A forma como ele a olhou desencadeou formigueiros deliciosos. Ela retirou a outra metade do roupão para o olhar dele a excitar ainda mais.
– É linda, Cassandra. Sempre pensei que era deliciosamente apetecível.
Ele tirou o robe.
Não tinha nada por baixo, acertara. Comprovava também que não haveria cerimónia. Ele não fez qualquer esforço para se tapar ou para se esgueirar rapidamente para
dentro da cama, de forma a não ferir as suas delicadas sensibilidades. Deixou-se ficar parado, excitado e nu, enquanto o robe caía ao chão.
Ela mal conseguia falar.
– Deliciosamente apetecível? Tomo isso como uma promessa.
Ele ajoelhou-se na cama e debruçou-se sobre ela.
– Decididamente arrojado. Assim que estiver habituada a mim, espero pela retribuição daquilo que receber.
Segurou-lhe nos ombros e juntou-lhe o cabelo, devolvendo-o à almofada, por cima da cabeça.
– Estou curioso por descobrir quão experiente é de facto.
Não o bastante. Não se sentiu sequer sofisticada quando a anca dele assentou entre as suas coxas e os ombros dele se agigantaram à sua frente. Nada blasée, quando
sentiu a prova do desejo dele contra ela e o viu na gravidade que a paixão lhe conferia.
Teve de se obrigar a pensar no que fazer. O acolhimento que lhe proporcionou foi hesitante. O calor e a fisicalidade dele sobressaltavam-na. O corpo firme que ela
admirara a entrar no mar tornava-a a ela numa figura pequena e vulnerável. A mistura de nervos e excitação retirava-lhe a capacidade de dissipar o seu temor por
meio de conversa ou humor. Só conseguia sentir espanto quando ele começou a brindar-lhe o corpo com carícias que a faziam ofegar. Não era a primeira vez que estava
com um homem, mas era a primeira vez que estava com um homem que procurava deliberadamente enlouquecê-la.
Ele sabia como o fazer. Com beijos que reclamavam posse e carícias que emitiam comandos, derrotou qualquer pensamento inteligente que tentasse formar-se. O corpo
dela apreciava demasiadamente a mestria dele. A pele saboreava-lhe o calor áspero da palma da mão e a exigência apaixonada da boca. Abriu os lábios à sua exploração
e arquejou quando ele acometeu com a língua e a boca devastadoras sobre os seus seios, originando um crescendo de prazer deliciosamente insuportável.
Ele conseguiu, então, vencer o parco domínio que ela ainda exercia sobre si mesma. Nada além do corpo que pulsava de fome voraz importava. Ela arqueou as costas,
atirando os seios de encontro a ele. Numa carícia desajeitada, desceu-lhe o peito até ao sítio onde os corpos se encontravam. Ele mexeu-se para ela chegar mais abaixo
e ela fechou a mão sobre a sua masculinidade. Todo ele endureceu ainda mais, a tensão ansiosa do desejo urgindo para se libertar da prisão do corpo.
Os dentes dele fecharam-se, cuidadosos mas certeiros, sobre um mamilo, fazendo disparar profundamente dentro dela uma sensação aguda, que a fez estremecer em vagas
sucessivas. A seguir a isto, não pensou em mais nada a não ser naquele vazio que queria que ele preenchesse e naquele ardor carnal que clamava desenfreadamente por
alívio.
Quando finalmente ele a tocou, ela quase chorou de alívio. Usou a sua própria mão com mais agressividade para ele não parar. Afastou as pernas de forma despudorada
para ele entrar mais profunda e livremente. Um prazer torturante ressoou-lhe sem trégua ao redor da vulva, até toda ela sucumbir, num grito.
Os gritos de prazer de Cassandra ecoaram na cabeça de Yates como uma melodia feminina em contraste com o duro staccato da sua própria fome desenfreada. Era ínfimo
o pensamento que mediava entre os dois. Que, afinal, ela era exuberante e bela e audaciosa o bastante. Mas não verdadeiramente experiente, talvez. Não muito.
Tentou não reparar nas evidências, mas elas existiam. Estivera na cama com mulheres suficientes para saber a diferença.
O corpo dele estava impaciente. A paixão que sentia não podia ser mais ardente. Pôs-se em cima dela e começou a acariciar-lhe os seios. O falo inchava e endurecia
cada vez mais, antecipando o resto.
De repente, ocorreu-lhe o pensamento de que não deveria ter tomado como um convite a reação que vira nela enquanto ele se despia, mas decidiu ignorá-lo. Era tarde
de mais para parar, e tampouco o desejava.
Desceu-lhe pelo corpo com beijos. A respiração dela acelerava a cada centímetro de caminho. Ela sabia o que ele estava a tramar, tinha a certeza. Bastava aquilo
para não sentir necessidade de reservas. Parou apenas o tempo suficiente para usar os dedos para a acariciar até a nova tensão que sentia nela desaparecer e ela
estar pronta para ele.
Usou a língua com brandura, no início, inflamando-a ao mesmo tempo que tentava manter algum controlo. Então, perdeu-se no cheiro e no sabor dela, entregando-se ao
prazer primitivo que o consumia por inteiro.
Ela atingiu o êxtase arfando em gemidos. A própria libertação dele não seria negada muito tempo mais. Colocou-se sobre ela e introduziu-se devagar. Quando deixou
de sentir resistência, acometeu profundamente e refreou a ânsia de a possuir desenfreadamente.
Segurou-se acima dela e começou a mexer-se. Viu erguerem-se as sobrancelhas definidas de Cassandra, que o observou, com olhos repletos do fogo da paixão e suspiros
que acompanhavam o ritmo da união repetida dos seus corpos.
Mesmo perfeitamente saciada, Cassandra continuava perplexa. Conhecera o prazer antes, mas não um prazer tão livre. Havia que dizer-se algo em abonação de não termos
de nos preocupar com estarmos a fazer algo errado ou com a possibilidade de engravidar fora do casamento.
Este era um dos pensamentos inacabados que lhe ocorriam enquanto saboreava aquela paz deliciosa de languidez. Mal dava conta do peso de Ambury em cima de si. A respiração
profunda deste parecia encorajar o tempo a permanecer invulgarmente lento.
Ele desocupou a posição, o que dissipou a magia. Pouco a pouco, ela regressou ao seu corpo e à existência do tempo e do espaço físico.
Ele não a deixou, como ela esperara que fizesse. Em vez disso, deitou-se de costas com um braço por baixo da cabeça. Tinha os olhos fechados e a boca ligeiramente
entreaberta. Parecia satisfeito, embora, com um segundo olhar ao perfil, lhe parecesse notar uma ligeiríssima ruga na testa.
Talvez tivesse sido demasiado arrojada? Era possível ele julgar que devia ter-se mostrado menos agradada com aquilo que ele tinha feito. Os homens conseguiam ter
pensamentos daqueles. Nem sempre eram justos na forma como julgavam aquelas coisas. Eram capazes de se entregar à completa idiotice, mesmo não sendo sequer no seu
melhor interesse.
Aqueles surpreendentes beijos nas partes íntimas tinham-na deixado espantada, mas uma outra coisa fora ainda mais surpreendente. Tentou decidir se deveria falar
naquele estranho momento que necessitava agora de ver esclarecido. Tê-lo-ia ignorado, se ele não estivesse com um ar tão contemplativo, e se ela não suspeitasse
de que os seus pensamentos adquiriam contornos muito masculinos, na sua aceção menos lógica.
– Parece-me que, no que respeita a noites de núpcias, esta foi melhor do que cabe esperar à maioria das mulheres – declarou.
A expressão dele suavizou-se.
– À maioria dos homens também, especialmente porque a maioria das noivas não costuma incomodar-se em elogiá-los a seguir.
– É porque, na sua maioria, as noivas são virgens, e é pouco o prazer que conhecem na noite de núpcias. Eu não era, como é evidente.
Silêncio.
Oh, sim, estava a pensar como um homem. Quem o esperaria, quando, de entre todas as mulheres, se tratava dela?
– Você não tinha a certeza, parece-me – prosseguiu. – Foi surpreendentemente cuidadoso. Muito atencioso da sua parte.
Voltou a não receber qualquer resposta. Não falariam no assunto, tal como ele prometera no jardim. Ele não lhe fizera qualquer pergunta sobre o seu passado nessa
altura, e agora também não. Ele não queria verdadeiramente saber. Que joia de marido. Verdadeiramente notável.
– Quem foi?
Nem tanto.
A pergunta não a aborreceu. Desejou apenas que ele se tivesse disposto àquela conversa quando ela a introduziu, antes de se casarem.
– Não foi ele.
Não queria dizer mais, mas agradou-lhe ser explícita relativamente a Lakewood. Talvez Ambury ficasse com melhor opinião dela, agora que sabia que nada que obrigasse
ao casamento acontecera naquele dia, há seis anos.
– Se não foi ele, quem foi?
– Disse que não queria saber a minha história.
– Há um dia não queria, e daqui a um dia talvez não volte a querer. Hoje dou por mim muito curioso.
Virou-se de lado e apoiou-se num braço.
– Não é tão vivida como os rumores dão a entender. Audaciosa não é o mesmo que experiente ou cínica.
– Não me dei conta de que me avaliava tão cuidadosamente, e que formava os seus julgamentos.
– Não são julgamentos. Apenas perguntas.
Aguardou como se ela lhe devesse respostas. Que irritante.
– Ao que parece, você também não é tão vivido como eu pensava – provocou ela –, se se ocupa com coisas destas.
– Nestas circunstâncias, é verdade, e é uma descoberta surpreendente. Se fosse minha amante, e não minha mulher, sem dúvida que não me importaria minimamente.
– Poderá ser sensato pensar em termos da primeira, então.
– Esta noite, pelo menos, é impossível.
Ela desejou que ele não estivesse à espera de desculpas e lágrimas, e de uma confissão dramática. Ela nunca o iludira.
– Quando voltei da viagem pela Europa com a minha tia, travei conhecimento com um oficial do exército. Era arrebatador. Impressionou-me por não se importar com o
escândalo com o Lakewood. Um dia, ele veio visitar-me, e a minha tia, que ainda não se tinha retirado do convívio social, não estava em casa. Roubou-me um beijo,
e uma coisa levou a outra.
– O canalha abandonou-a depois de ter conseguido o que queria?
– É muito rápido a pensar mal dele.
– Só sou porque ele lhe pediu a mão, você acedeu, e ele seduziu-a, mas não casou consigo.
– Tentou casar comigo. O meu irmão negou-nos a bênção e depois ameaçou arruinar a carreira do oficial se ele, mesmo assim, se casasse comigo. Foi o fim.
– Pensei que o seu irmão quisesse vê-la casada. Devia ter ficado satisfeito com o pedido do oficial.
– Não ficou com o seu, mesmo sendo muito melhor do que o de um oficial do exército. O meu oficial não se encaixava no plano, fosse ele qual fosse.
– Ele parece ser um homem necessitado de ocupação. Ou de distração. – Esticou o braço e pousou a mão na barriga dela. – Ele devia casar-se. Dava-lhe alguma coisa
para ocupar o tempo, agora que já não pode congeminar contra si.
– É uma ideia esplêndida. Parece-me que lhe vou procurar uma noiva. Uma rapariga que mostre inclinação para se tornar uma megera.
Ele riu-se e deitou-se de costas, mas a seguir ergueu-se para se sentar contra a cabeceira.
– Enquanto a procura, pode virar a mesa e apresentá-lo a uma dúzia de inocentes e às respetivas mães durante todas as semanas da próxima temporada. Certifique-se
de que nenhuma tem uma fortuna avultada, se quer que ele se sinta miserável. Não pode dar-se ao luxo de casar por amor.
Ela inclinou a cabeça para olhar para ele.
– Porque diz isso?
– Anseln Abbey está a precisar de um bom investimento. Ele adiou de mais. Presumo que haja escassez de recursos.
Ambury notara evidências que ela não vira, mas ela pouco sabia acerca da manutenção de uma propriedade. Gerald não lhe dera nada nos últimos anos, mas a mãe parecia
continuar a comprar nas modistas o mesmo que sempre comprara, e nada se ouvira sobre dificuldades financeiras.
Uma carícia no seu rosto arrancou-a aos pensamentos. Ambury afastou-lhe cuidadosamente o cabelo desalinhado do rosto. Ela ergueu os olhos e viu nos dele a razão
pela qual não saíra da cama.
Ele pegou na mão dela e incitou-a a subir.
– Venha cá.
Yates nunca fora um amante ciumento. Um punhado de mulheres dissera-lhe que era um dos seus predicados mais cativantes. Muitas outras se ressentiram disso. Contudo,
ele tinha orgulho nesse aspeto do seu carácter. Os ciúmes faziam dos homens autênticos asnos.
Ainda assim, dava por si a perguntar-se sobre Cassandra. Só depois de a colocar de frente para si, de joelhos dobrados e pernas abertas sobre as suas ancas, é que
a curiosidade esmoreceu um pouco.
Acariciou-lhe aquelas pernas e as linhas sinuosas do corpo, até segurar os seios nas mãos. Há um dia, quando dissera que não tinha necessidade de saber a história
dela, falara a sério. Mas, há um dia, não era casado. Ela agora pertencia-lhe, e ele não gostava da ideia de outros a terem visto assim, nua e bela, com um brilho
estonteante de desejo no olhar.
Não fora ele. Já era alguma coisa, pelo menos. Não gostava da ideia de que tivesse sido Lakewood. Não sabia porquê. Só sabia que se Lakewood a tivesse possuído primeiro
iria complicar muitas coisas.
Ela chegou-se mais para perto, aproximando-se o mais possível da prova evidente da virilidade dele. Não estava dentro dela, mas, tirando isso, mais perto não podiam
estar. Sentia um pulsar de sensualidade na carne insuportavelmente tenra que se encostava à sua. Ela retrocedeu e fez deslizar as mãos suaves e quentes em carícias
delicadas sobre o peito dele que o provocavam como penas.
Audaz, mas nem tanto. Ser-lhe-ia perdoado pensar que toda a experiência dela lhe fora conferida por meros rumores. Naquele preciso momento, ela parecia fascinada
com a audácia de se ver a fazer o que fazia. Quando ele a provara, sentira e ouvira a surpresa dela, ainda que nenhuma objeção. Na altura em que pensara que ela
falava mais do que fazia, já não havia retorno.
Tocou-lhe nos seios leitosos. Redondos e altos, os mamilos escuros espetavam-se eroticamente. Ela fechou os olhos, mas ele viu-lhe na expressão que estava excitada,
o sorriso incerto que a titilação a fazia abrir e a leve tensão de desejo que as suas carícias provocavam.
Ele brincou com ela até a ânsia a demover do controlo. Começou com um balanço sensual que brindava numa carícia incrível o sítio onde se uniam. Por fim, ela abraçou-lhe
o pescoço e parou, enchendo com os seios as mãos dele. Ele certificou-se de que o prazer a deixava completamente rendida.
Ela tremeu quando ele entrou nela e moveu as ancas para o absorver completamente. Ele próprio se alheou de tudo, a não ser do prazer que o cingia mais completamente
a cada vez que ela subia para descer sobre ele.
Ficou frenética, como se nada fosse suficiente e o alívio não chegasse. Mexia-se de forma agressiva, vigorosa, procurando a ligação que pudesse satisfazê-lo. Ele
intumesceu ainda mais até a preencher por completo e a sua própria libertação o inundar. «Sim, sim», sussurrou ela repetidamente, cavalgando o duro membro e recebendo
as suas estocadas.
CAPÍTULO 18
O lacaio levantou-se de um salto assim que Cassandra entrou na sala do pequeno-almoço, em casa da tia.
Cassandra inclinou-se para beijar Sophie. Quando o fez, reparou na chávena e no prato adicionais que se encontravam em cima da mesa e olhou para o lacaio. Era um
tipo agradável e atraente, com um vigor rústico, trigueiro. Na casa dos trinta, calculou. Ele pôs-se a olhar para o ar.
Ela disse-lhe para se ir embora. Sophie acenou-lhe um adeus e sorriu-lhe como uma menina.
– Tia Sophie, não está a ter familiaridade a mais com os criados de Lord Kendale?
– Depende do que considera familiaridade a mais.
Cassandra indicou a chávena e o prato extras.
– Admito que pedi ao Sean que se sentasse comigo enquanto tomava o meu pequeno-almoço, mas mais nada.
– Sean?
– É o nome da obra-prima escocesa que acaba de dispensar.
Não era claro se Sophie pedira apenas a Sean para lhe fazer companhia ao pequeno-almoço ou se admitiria apenas isso.
Seria melhor ignorar aquele pormenor, ao invés de tentar clarificá-lo.
– Espero que não se tenha afeiçoado demasiado a ele. Tanto ele como os outros criados do Kendale ir-se-ão embora hoje à tarde, com a carruagem, e virão os criados
do Highburton substituí-los.
– Que pena. Gosto bastante do Sean e do seu sotaque. Imagino que o Highburton não tenha nenhum criado escocês. Surgiu-me uma apreciação particular por eles, de repente,
como por vezes me surpreendo a suspirar por maçapão, quando menos espero. Normalmente, não ligo tanto assim a maçapão.
– Não sei se algum deles é escocês. Nem poderia perguntar. O que diria? Desculpe, Ambury, mas seria muito simpático da sua parte enviar os escoceses que tivesse
em casa, para a minha tia poder entregar-se ao seu desejo de... maçapão?
– Não vejo porque não. Se se tiver saído bem ontem à noite, ainda que minimamente, hoje ele não deveria recusar-lhe nada, muito menos um criado escocês.
Ter-se-ia saído bem? Ele ficara na cama dela durante a maior parte da noite, por isso supunha que talvez tivesse. Só que dificilmente tinha sido ela a deslumbrá-lo
a ele, tal como Sophie parecia querer implicar.
Sophie observou-a por cima da chávena enquanto bebia o seu café.
– Como correu a sua noite de núpcias, querida?
Cassandra sentiu-se corar. Sophie riu-se.
– Graças a Deus, Cassandra. Rezei para que ele soubesse lidar com uma mulher melhor do que aquele francês arrogante do inverno passado. Qual era o nome dele? Jean?
– Jacques. Não desejo defendê-lo, mas tem muitas opiniões para alguém que nem sequer estava presente.
– Tirei-lhe a pinta. Parecia ser o tipo de homem que só pensa em si próprio. Ontem à noite rezei para que o Ambury tivesse pelo menos alguma consideração, tendo
em conta que está casada com ele. Uma vida inteira é muito tempo para se ter na cama um homem que não seja generoso.
– Foi atencioso da sua parte.
– As minhas preces foram atendidas?
Tinham sido tão bem atendidas que Cassandra nem sequer queria falar no assunto. Podia tirar-lhe a magia.
– Adequa-se a mim pelo menos nesse particular, se quer saber.
– São boas notícias.
Sophie levantou-se e pegou no chapéu.
– Vou para o jardim. Vem comigo?
– Tenho de visitar a Emma, que está tão estupefacta que deve precisar de sais. A carta dela desta manhã estava ilegível. Vim avisá-la do render da guarda e assegurar-lhe
que a sua segurança está a ser salvaguardada, tal como prometido. Devo dizer-lhe que não deve sair, se lhe surgir algum interesse súbito em o fazer. O Ambury diz
que será muito mais difícil protegê-la do Gerald se estiver na cidade.
– Eu nunca saio. Sabe disso. Julgo, porém, que ter belos criados aqui a cuidar de mim é uma ideia brilhante. Pergunto-me porque nunca pensei nisso antes.
Quando entrou na sala de visitas de Southwaite, Cassandra contou com a receção de Emma, mas também a do próprio conde. Era evidente que Southwaite não fazia tenção
de esperar para ouvir os detalhes da boca da sua mulher, e muito menos de Ambury ao final do dia. Os homens conseguiam ser bisbilhoteiros insaciáveis, embora nunca
admitissem tal coisa.
– A sua carta deixou-nos espantados – disse Emma. – Mal consegui segurar numa caneta para responder. Tem de nos dizer o que aconteceu.
Dirigiu um olhar ao marido e a seguir trocou olhares com Cassandra. Omita o que quiser enquanto ele cá está, mas depois quero ouvir tudo.
Cassandra comunicou a história da forma mais simples que conseguiu. Fez questão de exprimir a gratidão que sentia por Ambury se ter mostrado tão nobre e honrado.
Southwaite escutou tudo e no fim comentou:
– Tenho a certeza de que não será necessário dizer-lhe o significado disto, nem o que é esperado de si agora.
Ela queria portar-se bem. A sério que queria. Mas aquele homem tendia a suscitar o pior de si quando empregava aquele tom arrogante.
– Fique descansado, pois não será necessário explicar-me os meus deveres. A minha mãe fez as honras há longos anos. Não só tive uma educação completa, como o meu
marido e eu revimos as lições muito recentemente. – Procurou o relógio e, lançando-lhe um olhar, completou: – Na verdade, fui instruída pela última vez há apenas
quatro horas. E foi memorável, na verdade.
Southwaite corou. Parecia estar a ponto de explicar que se referia a deveres diferentes daqueles.
Emma deu um risinho. Southwaite corou ainda mais.
– Não será necessário fazer nenhum desenho – declarou ele. – Se for necessária alguma avaliação, deixo-a nas mãos do Ambury.
Assim que ele saiu, Emma desatou a rir.
– Ele raramente é tão indecente como no último comentário, Cassandra. Estou ansiosa por lhe fazer perguntas, e espero respostas detalhadas.
– Desconfio que não devem ser demasiado detalhadas no que respeita à minha mais recente lição. O Southwaite teria uma apoplexia. Ou estamos autorizadas a ser indecentes,
agora que também sou casada?
– Julgo que é mais aceitável, pelo menos. Vamos salvaguardar essa parte, mas, de resto, tem de me contar tudo. Ouvi finalmente os boatos acerca de vocês os dois,
e presumi que iria ultrapassá-los, como sempre ultrapassou. O que é que a induziu a aceder a casar com ele? Ele não tinha outra escolha a não ser propor-se, mas...
– Ou era o Ambury ou passar a minha vida inteira a contar ovelhas na fronteira escocesa. Pior, deixei a minha tia ficar mal de todas as formas possíveis. O meu irmão
levou-me a melhor e era a única forma de a colocar a salvo dele.
Descreveu o drama a Emma, incluindo a maior parte das cenas. Terminava, quando a porta se abriu e Lydia entrou.
– Estava a caminho de sua casa quando o mordomo me disse que estava aqui – principiou ela. – A minha criada disse que ouviu um boato incrível, de que tinha casado.
Tem de me dizer que não é verdade.
– Mas é, e o Ambury revelou-se um homem à altura – declarou Emma.
Lydia atirou-se para uma cadeira e fechou os olhos.
– Não posso acreditar. Não só há casamento, depois destes anos todos, como, para mais, um previsível. Que desilusão me saiu, Cassandra. Se tivesse sido um ator ou
um salteador, um escritor, até, teria a consolação de uma escolha extraordinária, mas o Ambury... Que monotonia, a filha de um conde a casar com o herdeiro de outro.
– O Ambury não é monótono – declarou Cassandra.
– Está a ser muito grosseira – acrescentou Emma. – Pelo menos alegre-se por agora não ficar privada da amizade dela. Este casamento monótono e previsível deve ter
o efeito previsto em termos de reputação. Ninguém se atreverá a fazer frente ao Ambury. Ele resgatou-a da beira do precipício, por assim dizer.
Lydia abriu os olhos, que se animaram ao reconhecer a visão positiva de Emma.
– É verdade, suponho. Continuamos a poder sair juntas à noite. Ele vai permiti-lo, não vai? Não tratará uma mulher madura da sua fama e experiência como uma criança,
espero.
– Espero ter a mesma liberdade de movimentos do passado.
Não sabia realmente se teria. Descuidara-se em negociar aquela parte com Ambury antes de aceitar a proposta dele. Ela estava em desvantagem, e ele sabia-o.
– Sendo assim, espero conseguir adaptar-me. Ainda me sinto desiludida, mas conseguirei recuperar.
– Que boas notícias – afirmou Cassandra.
Emma fez um risinho, mas o tom de secura escapou a Lydia.
– Espero que ele se mostre bom amante – declarou. – Um casamento por obrigação provavelmente é muito menos horrível se o noivo for competente nessa área.
Lydia, agora calma, brincava ociosamente com as fitas do chapéu.
– E também tem um físico muito bonito quando está nu, portanto é um ponto a favor dele. Agora pode apreciar o traseiro dele sempre que quiser, Cassandra.
Uma quietude tumular tomou conta da sala. Cassandra inspirou, mas não conseguia expirar. Sentiu Emma transformar-se numa estátua imóvel ao seu lado. Lydia brincava
com as fitas, alheia ao erro sério que acabava de cometer.
– Lydia, querida – disse Emma, com a voz densa. – Como é que sabe tanto sobre físicos ao natural, traseiros e amantes competentes?
– Como mulheres experientes, sabemos tudo sobre essas coisas. Não sabemos, Cassandra?
Cassandra conseguiu suspirar. Envergonhadíssima, olhou de soslaio para Emma. Esta pareceu observar Lydia com bastante severidade.
– Penso, Cassandra, que este seu casamento aconteceu mesmo a tempo de prevenir a desgraça completa – sussurrou Emma.
– Eu podia ter lidado com isso. Se não fosse a situação da tia Sophie com o Gerald, podia.
– Não estou a falar da sua desgraça, mas sim a daquela sua cúmplice.
O som puro penetrou o silêncio. O isolamento, a limpidez e a precisão erguiam muros e escadas invisíveis. Yates entregava-se à paz da música, formando estruturas,
nas quais os pensamentos se organizavam sem esforço.
O arco movia-se. As notas encadeavam-se. Algo semelhante a alegria iluminava-o. Era raro, e quase estranho. Nunca fora uma questão de prazer.
Apesar de tudo, padrões mentais formavam-se e dispunham-se. Relações inesperadas apresentavam-se como pedaços de sonhos. Como sempre, algumas desconcertavam-no,
mas ele sabia já que não devia menosprezar o inesperado.
Deixou a mente divagar por uma direção que nunca visitara, curioso por ver onde iria dar. Muito à semelhança da própria melodia, nasciam variações de factos que
lhe eram extremamente familiares.
As possibilidades fascinavam-no. Tentou extrair mais delas, mas, subitamente, a nuvem na qual existia abriu-se ao meio como se se partisse uma porcelana. Parou de
tocar e olhou ao redor. A porta do seu quarto de vestir que dava para a passagem estava aberta.
Pousou o instrumento. Agarrou no casaco que tinha atirado e andou até aos aposentos de Cassandra.
A criada atarefava-se com o cabelo dela no quarto de vestir.
– Estou quase pronta – disse Cassandra. – Esta manhã, o chapéu que usei estragou-me mais o penteado do que o normal.
– Não sabia que ia sair.
– Fui visitar a Emma. Chegou uma carta bem cedo a suplicar uma explicação, e ela insistiu que eu não fizesse a cerimónia de esperar pela tarde.
Ele perguntou-se como teria corrido a explicação a Emma. Fui vencida pelas circunstâncias e agora tenho de viver isto o melhor possível.
– Precisou de mim para alguma coisa? Se sim, peço desculpa – acrescentou, dispensando a criada com um aceno de mão.
– Apenas da sua companhia ao pequeno-almoço.
Ela olhou para o espelho uma vez mais e levantou-se.
– Só isso? Então tenho a certeza de que não se importou com a minha ausência.
Importara-se mais do que seria de esperar. Quando dissera a Cassandra na noite anterior que iriam ver o pai durante a tarde, não contara que ela desaparecesse durante
a manhã inteira. Ela suspendera a intimidade deles mais depressa do que ele, parecera-lhe, e prosseguira com o seu dia com uma indiferença bastante prática aos acontecimentos
da noite.
– Estou bem? – perguntou, contemplando o vestido de musselina.
O vestido pendia como uma coluna branca da faixa azul que cingia a cintura alta. Um tecido diáfano preenchia a área acima do decote, resguardando a parte de cima
dos seios. Não obstante, ele conseguia vê-los na sua mente, em toda a sua completude, subidos pelas costas arqueadas e...
– Ele vai achá-la adorável, porque o é.
– O que devo dizer-lhe? Ele não me aprova a mim nem ao casamento.
– Eu não disse que ele não aprovava.
– Tampouco me disse se correu tudo bem quando lhe contou, ontem à noite. – Assumiu uma postura mais firme e declarou: – Vamos, então, antes que eu perca a coragem.
Ele pegou-lhe na mão e juntos desceram as escadas em direção aos aposentos do conde.
– Atravessou a passagem enquanto eu estava a tocar?
– Estava à espera da criada, e pensei dizer-lhe da minha visita à Emma. Não tive intenção de interromper. Ficarei do meu lado dos aposentos, no futuro.
– Não é necessário.
– É gentil da sua parte dizê-lo, mas talvez seja melhor. Especialmente quando toca, parece-me. Vi que é uma experiência privada, Ambury. Não tinha compreendido isso
antes.
Chegaram à porta que se abria para os aposentos do conde. Ela concentrou-se nos painéis de madeira. Mordeu o lábio inferior.
– Fica comigo durante esta provação, ou devo ficar sozinha com ele?
Ambury apertou-lhe a mão.
– Eu fico consigo.
*
Cassandra há anos que não via o conde de Highburton de perto. A saúde débil do conde restringia a sua vida pública há já algum tempo e, de qualquer forma, ela nunca
se movimentara nos círculos dele. Agora, aproximava-se dele com Ambury ao lado. Os nervos interferiam com o seu autodomínio. Só o treino de uma vida lhe permitia
permanecer serena e apresentável.
O conde estava sentado num cadeirão grande, perto de uma janela. A condessa não se encontrava à vista. Percebia-se um criado de quarto ao fundo, na sombra. Um volumoso
robe em seda grená envolvia o conde. Um lenço agasalhava-lhe o pescoço e, por baixo, notava-se uma camisa impecavelmente branca. O cabelo, cortado de forma elegante
para um homem da sua idade, ainda não era branco. De facto, as madeixas pretas e cinzentas davam-lhe um aspeto mais jovem.
O conde voltou-se quando eles se aproximaram. Nem a doença nem os anos lhe tiravam a beleza daqueles olhos azuis e das feições regulares. A semelhança entre pai
e filho chamou-lhe imediatamente a atenção. Dali a uns vinte anos, o seu marido iria parecer-se muito com o homem que ali os aguardava.
Ambury continuou e abriu a janela. Depois apresentou-a como sua mulher. O conde olhou-a demoradamente, dos pés à cabeça.
– Pode deixá-la comigo, Yates. Desejo falar com a minha nora em privado para ficar a conhecê-la.
– Julgo que desta vez vou ficar. Os dois podem conversar em privado noutros dias.
O rosto descontente do conde refletia o que pensava do filho desobediente. Não discutiu e concentrou-se em Cassandra.
– Provavelmente julga que estou escandalizado por o meu filho se ter casado consigo.
– Passou-me pela cabeça que pudesse estar, senhor.
– Nem tanto. A minha mulher contou-me acerca dos rumores. Eu sabia que ele faria o que era devido, por pouco convencionais que sejam as suas ideias. Provavelmente
o facto de ser uma mulher muito bonita ajudou.
Ela não conseguiu pensar numa resposta para lhe dar.
– Conheci o seu pai. Éramos amigos quando ele era novo. Na altura em que morreu, já estávamos afastados, mas chorei a morte dele. Era um bom homem, de carácter generoso.
Um ataque de tosse interrompeu-o. O criado apareceu ao lado do conde, de lenço pronto na mão. Depois de alguns minutos, o conde acalmou-se, e o criado esfumou-se
no ar.
– E a irmã dele? Como é que está?
Falou num tom de voz distante, como se a tosse lhe tivesse roubado a vivacidade.
– Floresce, senhor.
– Com que então, floresce? É uma palavra boa para ela. É bom saber que continua a florescer.
Uma nota de crítica assomou ao olhar ausente.
– Como próxima condessa de Highburton, seria melhor que não florescesse com tanta exuberância quanto ela, claro.
Finalmente, ali estava, a reprimenda que toda a gente se sentia na obrigação de lhe dar, como se pensassem que ela era estúpida ao ponto de ignorar o que era esperado
dela. É melhor não se descuidar da sua reputação no futuro, minha jovem.
– Ao mesmo tempo, ninguém deseja que a boa disposição de Cassandra a abandone, tenho a certeza – disse Ambury. – É a sua qualidade mais cativante, que não desejo
que perca nunca.
Ela desejou dar-lhe um beijo por ele a defender e falar bem dela naquele momento. O sorriso firme que dirigiu ao pai pode até ter contribuído ainda mais para o abreviar
de quaisquer lições posteriores.
– A sua mãe diz que deve ter a sua própria casa de agora em diante – disse o conde a Ambury. – Esta será sua tão brevemente que parece desnecessário montar outra
apenas por alguns meses.
– Não me parece que sejam apenas alguns meses. Nem o pai devia presumir isso.
– Talvez. Talvez. O que diz, Cassandra? Quer ter a sua própria casa? Não será tão grande e elegante como esta, isso é certo. Se gostar de luxo, faria melhor em ficar
aqui.
– Deixo essa questão ao critério do meu marido. Ficarei satisfeita com o que ele preferir.
O conde abafou uma risada.
– É bastante inteligente, Yates. Concedo-lhe isso. Esperta, encantadora e filha de um bom homem. Podia ter escolhido pior, suponho. Deus sabe que julguei que o faria.
Ergueu a mão e chamou-a.
– Venha dar-me um beijo, menina, que eu abençoo este casamento tal como é.
Ela aproximou-se, inclinou-se e beijou-o no rosto.
– Precisa de a levar a Elmswood Manor com a maior brevidade – disse o conde. – Para que os vizinhos a conheçam.
Os olhos do conde fecharam-se e Yates indicou-lhe que saíssem. Quando o faziam, o criado apareceu e esticou o braço para a maçaneta da janela.
– Deixe-a aberta – interrompeu Yates.
– O médico, senhor...
– O dia está bom, a brisa suave, e o médico é um idiota. Deixe-a aberta.
Já fora do aposento, Cassandra deixou-se encostar à parede, aliviada.
– Preferia defrontar-me com todas as patronas do Almack’s1 simultaneamente a ter de voltar a fazer aquilo.
Ambury puxou-a para si.
– Então, não foi assim tão mau.
– Só porque ele foi simpático. Não tinha de ter sido, e eu não podia contar que fosse. Por conseguinte, sei que a aceitação dele é apenas resignação por estar perante
um fait accompli.
– Não interessa a razão por que aceita, desde que o faça. –Deu-lhe um beijo. – Esperta, encantadora e alegre. O que ele disse é verdade. Poderia ter-me saído muito
pior.
Era simpático da parte dele dizer aquilo. O abraço e o beijo evocavam ecos da noite passada. A proximidade acordava os delicados laços emocionais que se haviam formado,
como se fossem entidades vivas adormecidas ao erguer da aurora aguardando apenas uma evocação para se fazerem novamente ativas.
Cassandra percebeu que tinha as costas contra a parede e o rosto entre as mãos dele. Ele beijou-a de forma diferente. Mais profunda.
– Obrigada por ficar comigo, para eu não ter de enfrentar tudo sozinha – disse.
– Estamos juntos nisto. Hoje à tarde damos um passeio no parque e deixamos o mundo ver-nos assim. O comunicado sairá amanhã nos jornais, mas já corre a notícia.
– O que fazemos até sairmos?
A forma como o corpo dele pressionava o dela comunicava-lhe que ele tinha uma resposta para lhe dar. Porém, o beijo seguinte não foi muito apaixonado. Foi a desculpar-se,
isso sim.
– Sei como gostaria de passar o tempo. Infelizmente, tem mais uma visita para fazer hoje, na qual a minha companhia não seria tolerada.
– Outra visita? A quem?
– À minha mãe.
1 Um dos primeiros clubes londrinos a admitir tanto homens como mulheres. Aberto entre 1765 e 1871, era dirigido por senhoras influentes dos círculos mais elevados.
(N. da T.)
CONTINUA
CAPÍTULO 14
Cassandra observou a mãe, sentada do outro lado da mesa que os criados tinham posto no terraço. Prata e cristal cintilavam ao sol por cima da toalha que as separava.
As bebidas chegaram: café para ela, cacau para a mãe.
Beberam em silêncio, enquanto as abelhas se entretinham com as flores que cresciam num canteiro próximo. Visto que passava a maior parte do tempo na cidade, Cassandra
considerava o silêncio do campo estranhamente vazio. O facto de ouvir abelhas apenas lhe recordava o quão pouco acontecia ali.
– Imagino que em Londres não se fale de outra coisa a não ser da invasão.
A mãe disse-o como se os franceses desembarcassem na Irlanda apenas para proporcionar uma desculpa para a política ser um aborrecimento durante semanas a fio.
– Não diria isso. A vitória de Nelson no Nilo ainda é objeto de conversa e há sempre um boato ou outro para animar as coisas, até no verão.
– Alguém que eu conheça?
Alguém que ela conhecia muito bem.
– Não me parece.
Mais silêncio. Mais abelhas a zunir. Se se concentrasse mesmo muito, tinha a certeza de que conseguiria ouvir ratos a andar e formigas a correr.
– Planeio ir à cidade daqui a duas semanas, durante alguns dias, para tratar do guarda-roupa. Podia voltar comigo.
– Só vim por três dias, como lhe disse. Devo partir amanhã.
– Três dias. Porque se dá ao trabalho, sequer?
– Dei-me ao trabalho para a ver, mãe. Por que mais?
A mãe corou. Desviou o olhar. Os últimos anos haviam-lhe dado um aspeto roliço. Com frequência, isto suavizava a expressão das mulheres mais velhas e conferia-lhes
um aspeto amigável, mas tinha acontecido o contrário com a mãe.
Quando é que se haviam tornado umas estranhas? Quando é que o silêncio viera de bom grado tomar o lugar das conversas? A sua origem podia provavelmente reportar-se
ao mesmo episódio que tantas coisas mudara na sua vida. A mãe ainda fora mais dura do que Gerald, quando Cassandra recusara Lakewood.
– Também quero falar-lhe acerca da tia Sophie – retomou.
– A Sophie tornou-se um fardo, Cassandra. É muito injusto da parte dela.
– Não incomoda ninguém. Não faz visitas, nem recebe. Cuida do jardim dela, lê os livros dela e atenaza a cozinheira. Como é que pode ser um fardo para si?
– Vejo que a influência que exerce sobre si não diminuiu. Já era suficientemente mau ela ser tão imprudente com a vida e a reputação dela. É imperdoável que a tenha
levado a fazer o mesmo.
Era uma discussão antiga e, naquele dia, Cassandra não desejava alimentar nenhuma discussão.
– Não é sobre a vida ou o passado dela que quero falar, mas sobre o futuro. Pode não saber das intenções do Gerald, mas acredito que devo partilhá-las consigo. Ele
tornou-se demasiado duro, e receio que só a mãe o possa dissuadir.
A mãe não lhe pareceu ficar confusa nem curiosa com o pequeno discurso. Nem sequer olhou para ela para demonstrar atenção. Em vez disso, concentrou-se em vincar
o guardanapo, alisando cada dobra com as mãos.
– Estou ciente das preocupações dele em relação a ela. E dos seus planos.
– Tem de o deter. É errado ele fazer isto, e muito injusto.
– Injusto? Injusto? A Sophie afastou-a de mim, e a menina considera que o seu irmão é injusto?
– Ela não me afastou. Apenas me deu uma casa quando esta se tornou inóspita.
– Ela andou consigo a reboque por todo o Continente e expô-la ao comportamento mais infame. Encorajou a sua desobediência e a sua rebelião. Não espere de mim que
arrisque o desagrado do Barrowmore por a defender. Não faço ideia sequer do que poderia dizer.
– Ela era sua amiga, mãe. Isso não conta para nada? Conheceu o pai por causa dela e ela incentivou o irmão a concretizar o casamento.
Esticou o braço e tomou a mão da mãe.
– Esteve ao seu lado quando o Gerald nasceu. Esqueceu aquele verão que passou com ela? Ela não. Anos de amizade e de amor não contam para nada?
A compostura da mãe sucumbiu. Voltou a cabeça e fechou os olhos. A sua expressão tornou-se apagada e, finalmente, suave.
Cassandra aguardou, esperando que a mostra de emoção significasse que granjeara uma aliada. Por fim, a mãe abanou impercetivelmente a cabeça.
– O Barrowmore não me dará ouvidos, Cassandra. Está decidido a forçar a vossa separação. Está muito determinado. Quer o melhor, ainda que os meios possam ser severos.
– Então não me ajuda? Nem a ela?
– Não posso ajudar. Nem se trata sequer de si, ou dela.
A mãe olhou-a com tristeza.
– A menina nunca compreendeu, mas isto está para além disso. Trata-se da honra de Barrowmore.
– Se eu represento uma mancha assim tão grande nessa honra, ele pode deserdar-me, e eu deixo de interessar. Não tem de ameaçar fazer mal à tia Sophie.
A mãe desviou os olhos humedecidos.
– Não compreende.
– Se não quer ou não pode detê-lo, eu levo-a daqui. Tanto ela como eu saímos da vida dele.
A atenção da mãe intensificou-se.
– Ele disse que esse era o seu plano. Eu não acreditei nele. Significamos tão pouco para si, agora, que consiga abandonar-nos? É por isso que está aqui? Para se
despedir? Ou nem isso tencionava fazer antes de partir?
– Estou aqui, não estou? Não pode significar assim tão pouco estar aqui para a ver.
Uma sensação de enjoo alojara-se no estômago de Cassandra ao ouvir as primeiras palavras da mãe.
– Quando é que ele lhe disse que tinha adivinhado os meus planos?
– Antes de ir para a cidade desta última vez – respondeu a mãe, com um aspeto culpado, como se tivesse dito o que não devia. – Não tenho a certeza, mas não parece
que ele tencione permitir-lhe que a leve embora.
Cassandra sentiu uma onda de pânico. Gerald falara em quinze dias, antes de ir buscar Sophie, mas já tinha definido os seus planos. Se ele adivinhasse que ela poderia
fugir... Se os rumores sobre Ambury o tivessem irritado...
Fora uma idiota. Uma perfeita idiota. Deixara Sophie sozinha com Merriweather. Nenhuma das duas poderia fazer frente a Gerald. Talvez ela também não pudesse, mas
pelo menos tentaria.
Levantou-se.
– Tenho de regressar à cidade. Imediatamente. Ele pode estar a engendrar alguma coisa. Por favor empreste-me uma das carruagens e um cocheiro. Se alguma vez foi
amiga da Sophie, ajude-me a regressar sem demora.
– É tarde de mais. Ele escreveu ontem dizendo que regressaria hoje. Sabe que a menina está de visita e ordenou que a retivesse.
– Como é que ele sabe? Escreveu-lhe a dizer?
– Sabe, porque não a encontrou na casa da Sophie. – Culpa misturada com resignação tingiu a voz da mãe ao concluir: – Está feito, Cassandra.
Yates lançou o cavalo a galope pela terra que flanqueava a estrada que saía de Londres.
Passou a voar pela comprida fila de charretes, grandes carroças e carruagens que jorrava das portas da cidade em direção ao campo. Manteve o andamento até se distanciar
bastante das concentrações de veículos que circulavam devagar pela estrada poeirenta.
Do outro lado da estrada, Kendale acompanhava-lhe o ritmo. Fariam companhia um ao outro até Kendale rumar à sua propriedade de Buckinghamshire.
Quando os cavalos mostraram cansaço, a estrada já estava desimpedida. Os dois juntaram-se no centro e continuaram num ritmo mais sossegado.
– Então, vai para a Irlanda? – perguntou Yates.
A experiência no exército e o título de Kendale permitiam-lhe obter uma patente se o quisesse.
– Não.
– Surpreende-me. Acaba de me custar cem libras.
– Apostou?
– Julguei que fosse uma forma segura de ficar cem libras mais rico. Não julguei que conseguisse resistir, sobretudo porque o inimigo teve a audácia de desembarcar
em território britânico.
– Se fosse lutar apenas com franceses, não hesitaria.
– Os outros são rebeldes. Traidores.
– Não sou necessário nesta campanha. Tornou-se evidente que não sou necessário em nenhuma.
Yates não esperava que Kendale se resignasse a deixar o exército quando o irmão morreu. Aquela nova aceitação surpreendeu-o.
– Está um dia bonito. Já cheira a outono – comentou Kendale. – Não falemos de guerra nem de invasões. Vou sair de Londres porque estou farto das conversas que se
ouvem.
– Julgo que está apenas farto de conversas. Não quer falar de política, investimentos ou da sociedade. Nunca participou em conversas sobre ciências naturais, filosofia
ou literatura. Agora que penso no assunto, foi uma tolice sugerir-lhe que viajássemos juntos, pois dificilmente ajudará o tempo a passar.
– Isso não é verdade. Há muitos tópicos que discutirei com vontade.
– Escolha um.
Kendale pôs-se a pensar. Contando que nada mais se dissesse durante vários quilómetros, Yates deixou-se levar pelos seus próprios pensamentos.
Como era comum ultimamente, aqueles rumaram em direção a Cassandra com muita rapidez.
Ela mostrara-se muito calma quando ele a visitara. Talvez ele tivesse sido imbecil ao presumir que se sentira insultada. Se isso acontecera, não demorara a recuperar.
Durante o tempo que passaram sentados a conversar, uma linguagem invisível e inaudível passou entre os dois, porém. As memórias do prazer criavam amarras, como também
o próprio desejo. Poderiam ambos negar o seu poder. Poderiam concordar que tinham sido precipitados. Poderiam decidir voltar a relacionar-se como antigamente, até
mesmo como antes do casamento. Nada daquilo alterava a verdade de que a intimidade havia destruído a maior parte das barreiras que existia entre os dois de maneiras
que nem a distância nem o tempo reporiam totalmente.
– Lady Cassandra Vernham.
Yates sobressaltou-se ao ouvir ser pronunciado o nome da mulher que lhe ocupava os pensamentos. Olhou para Kendale em cima do cavalo, costas direitas e perfil inflexível.
– O que tem ela? – perguntou Yates.
– É um assunto sobre que poderei conversar. Disse-me para escolher um.
– Isso foi há dez minutos.
– Era uma lista comprida. Ela não estava no topo, mas rejeitei os anteriores por os considerar demasiado entediantes.
– Apeteceu-lhe iniciar-se nas más-línguas, agora? É isso que faz dela um tópico menos entediante?
– Não estou interessado nas más-línguas, mas nos factos da situação. O que está a fazer é comum no exército. Nem tanto no nosso, embora haja episódios que são conhecidos,
mas não abordados. É muito comum no Continente. Os franceses são seus adeptos, entre outros. É tão antigo como a própria guerra, suponho.
– De que diabo é que está a falar?
– De tratar as mulheres como despojos de guerra. De afirmar a vitória reclamando a posse de uma mulher. Ela derrotou o Lakewood, e agora você conquista-a para o
vingar e erguer a bandeira.
– Não faz sentido nenhum. Não me resolvi a conquistá-la.
Só que resolvera. Tratava-se apenas de uma guerra diferente, mais antiga ainda do que os conflitos militares.
– Perdoe a minha escolha de palavras. Está a conquistá-la. A seduzi-la. A cativá-la. Está...
– O Lakewood também não tem nada a ver com isso.
– Não tem? Como pode não ter? No calor da paixão, ele pode estar longe dos seus pensamentos, mas a vingança é a única explicação para o seu interesse nela. Há pouco
na mulher que seja atrativo, e muito que não é.
– É louco? Feito de pedra? Cego? Ela é linda! Céus! Aqueles olhos... aquela boca. Como pode dizer tamanhos disparates?
Kendale olhou para ele como se ele fosse louco.
– Se vocês os dois a consideravam tão deslumbrante, terei de aceitar que alguns homens são assim. Eu próprio, não vejo nada disso. Quanto à vingança, é a explicação
implícita e eu não vejo forma de dissuadir o mundo disso.
Estar em cima de um cavalo de repente tornou-se um inconveniente àquela conversa.
– Pare. Agora. Aqui mesmo.
Kendale fez o cavalo parar.
– O que quer dizer com «explicação implícita»? – indagou Yates. – Porque pensa uma coisa dessas?
– Ouvi-os falar disso. Há dois dias, no Brook’s, vários membros analisavam a questão. Ontem à noite jantei com amigos no Horse Guards, e foi mencionado. Diabos,
quando estava a amarrar o cavalo em Oxford Street, ouvi duas mulheres que passavam falarem do assunto.
– Pensei que ignorasse as más-línguas.
– Eu disse que não me interessavam as más-línguas. Seria impossível ignorá-las, no ponto em que estão. Não sabia?
– Não.
Passara o tempo sequestrado no raio do escritório a examinar o raio dos arrendamentos para preparar o raio da viagem.
– Não vi as nuvens a juntar-se, mas a tempestade começou à hora mais concorrida, há dois dias – informou Kendale.
Se até Kendale ouvia a precipitação, então devia estar um dilúvio a caminho.
Deu a volta ao cavalo.
– Onde vai?
– Vou voltar para a cidade.
Não podia deixar Cassandra afogar-se sozinha.
CAPÍTULO 15
Anseln Abbey mostrava todos os sinais de ser a morada de uma família detentora de mais dinheiro do que prestígio. Barrowmore era um título antigo, e Yates presumira
que a terra entrara na família no reinado de Henrique I, quando tantos mosteiros foram incorporados pelo pariato.
Há um ano, ele poderia não ter notado os sinais de falhas na manutenção, mas a experiência com a propriedade de Highburton afinara-lhe a visão. À medida que se aproximava
do amontoado de beirais e paredes, ia listando mentalmente a evidente falta de melhorias e o prejuízo que isso causava à casa.
Uma caleira antiga anunciava um sótão húmido e a argamassa que envolvia as pedras precisava de cuidados. Pelo menos uma chaminé precisava de ser refeita e outra
só aguentaria mais alguns anos.
O irmão de Cassandra não deveria ter desejado que ela se casasse com Lakewood, que possuía pouca fortuna própria. Embora o atrativo até pudesse ter sido esse mesmo
se, por acaso, Barrowmore visse com bons olhos aquele casamento. Poderia tornar as exigências de Lakewood muito menores do que as de outro homem no que dizia respeito
ao dote, pois tinha pouco para oferecer do seu próprio lado.
Desejou verdadeiramente que aquele velho amigo não lhe invadisse os pensamentos. Queria acreditar que se reconciliara com todas as ambiguidades à volta da morte
de Lakewood e com a dúvida que subsistia sobre o envolvimento do nome ou da pessoa de Cassandra. Gostava de pensar que tinha sistematizado uma visão filosófica e
posto fim a quaisquer ressentimentos. Continuaria a interrogar-se durante algum tempo, imaginava. Confiava que chegaria o dia em que já não o fizesse.
Apresentou o cartão e pediu para falar com Lady Cassandra, quase esperando o comunicado de que esta não se encontrava em casa. A intenção dela era sair do país,
e a ausência inesperada de Londres podia indicar que acontecera isso mesmo, apresar do que dissera a Emma.
O criado levou o cartão. Um outro veio cinco minutos depois, que o acompanhou à sala de visitas. Via-se que a divisão pertencera à abadia original, e que fora talvez
o refeitório, a julgar pelo tamanho. As obras de redecoração ao longo dos anos haviam-lhe atribuído um teto e um chão dignos desse nome, mas notava-se o carácter
medieval nas janelas de batente e nas paredes irregulares.
Aguardou com alguma expectativa a altura de a ver. Queria a prova de que ela ainda se encontrava no país e não num qualquer navio rumo à América. Desejava também
que a vitalidade de Cassandra viesse conferir um interesse àquele dia como os seus já não tinham há algum tempo, exceto quando ela os visitava.
Sorriu para si próprio. Não era amor, mas pelo menos estava fascinado de um modo que lhe acontecia com menos frequência naqueles últimos anos. Graças a Deus.
Assim que Cassandra entrou no compartimento, ele soube que algo se passava. Ela sorria alegremente e os seus olhos cintilavam, mas ostentava a postura como uma máscara
de cera que derreteria se o sol brilhasse com demasiada força. Não foi Cassandra que o recebeu, mas uma atriz que desempenhava um papel de há muitos anos estudado.
– Veio felicitar-me, Ambury?
– Se houver que dar parabéns, dou-os alegremente. Seria simpático saber a razão.
– O mundo inteiro ficará a saber dentro de dias. Notícias deste tipo correm depressa, mesmo no final do verão. Pensei que já se sabia. – Estendeu os braços num gesto
de incredulidade e anunciou: – Vou casar-me! Consegue acreditar? É um homem íntegro de Northumberland. Ou será de Cumbria? De um desses condados no fim do mundo.
Dizem-me que é bastante atraente e bastante bondoso, e depois de casarmos imagino que deva ficar bastante rico, pois a minha reputação requereu um dote bastante
avultado. Ele e eu vamos envelhecer juntos, a criar ovelhas.
– Parece idílico. Deve estar radiante.
– Era precisamente a vida que desejava para mim própria,
à noite, em sonhos. Foi pena Mr. Treedle... ou será Tweedly... não ter aparecido há alguns anos. Assim eu não teria desperdiçado tanto tempo na cidade, dizendo
a mim própria que estava a divertir-me.
– Parece que bastou um homem com uma propriedade cheia de ovelhas para a conquistar. Se o mundo soubesse, podia até ter-se encontrado um homem desses no Sussex ou
no Kent, e não tão longe daqui. Seguramente que existem alguns Mr. Treedle-Tweedlys no sul.
– Não mais do que uns quatro mil, ou à volta disso, segundo dizem.
– Então, uma simples indagação teria dado conta do assunto, e evitado todo esse sofrimento.
A máscara caiu revelando a verdadeira Cassandra, num dia tão fora do comum. Os olhos dela faiscavam de raiva.
– Não vai facilitar-me a vida, pois não? Vai rir-se à minha custa. Eu sabia que sim. No preciso momento em que aceitava o casamento, pensei: Ah, o Ambury, o Kendale
e o Southwaite vão adorar isto.
– Não me atrai muito rir à custa de ninguém. Estou mais interessado em ouvir a história que está por trás dessa notícia peculiar.
– Estou a ser uma irmã dedicada, o que não é peculiar, mas esperado. Sei ser assim, apesar do que as pessoas possam julgar.
– É estranho vê-la aceitar a vontade de um homem em quem não confia, independentemente daquilo que o sangue una.
Avançou até estar em frente a ela e ser capaz de ver além do brilho do olhar, fosse este de humor, raiva ou falsa alegria.
– O que é que ele fez para a obrigar a concordar com isto, Cassandra? Não consigo imaginar. Teria apostado que nem que ele lhe batesse tal coisa seria possível.
Ela suportou o escrutínio dele durante alguns momentos, mas depois voltou-se abruptamente. Apertou as mãos. Voltou a olhar para ele, de forma desafiadora, como se
ele tivesse a culpa do que quer que estivesse a perturbá-la. Então, a expressão desfez-se e lágrimas humedeceram-lhe os olhos.
– Ele tem-na. À minha tia. Foi buscá-la e deixou-a na casa de um médico qualquer, com lunáticos. Terminará ali os seus dias a não ser que eu faça o que ele me ordena.
Claro que aceitei.
Só para ela é que aquilo seria tão evidente. Muitas jovens teriam escrito algumas cartas animadoras à tia e prosseguido com as suas vidas.
Barrowmore era um canalha.
– Tem a certeza de que ela poderá viver livremente se a Cassandra levar a cabo este casamento?
– Ele prometeu... Disse que a autorizará a viver na sua casa, em Londres, com uma companhia adequada que saiba tratar das pessoas que... das pessoas cujas mentes
começam a falhar. Não confio totalmente nele, mas tenho de arriscar, para que a Sophie possa regressar a casa e ter algum tipo de dignidade.
Parecia desesperada, e muito triste.
Ambury viu novamente uma certa culpabilização nos olhos dela. Se ele tivesse concluído o pagamento dos brincos, nada daquilo teria acontecido. Ela e a tia provavelmente
teriam fugido de Londres antes de Barrowmore executar o seu plano.
Ela recompôs-se e voltou a colocar a máscara para desempenhar o papel da Cassandra que o mundo esperava ver.
– Então, o que o traz cá, se não é para me apresentar os parabéns pela minha boa sorte?
– Vim ver o seu irmão.
– Assuntos do governo, imagino. É estranho que Pitt lhe peça para ser mensageiro se precisam do Gerald para alguma coisa menor.
– Outros assuntos.
Ambury gesticulou para o lacaio que se encontrava à porta e entregou-lhe um cartão.
– Diga ao conde que estou aqui.
– Por favor, não diga nada acerca do que lhe contei – suplicou Cassandra quando o lacaio regressou para o buscar. – Usar da sua sagacidade com ele só irá irritá-lo,
e poderá tornar tudo ainda mais difícil.
– Não tenciono dizer uma palavra acerca do seu noivado iminente com Mr. Treedle, a não ser que ele próprio o mencione.
Barrowmore recebeu-o na biblioteca. Mal Yates entrou, deparou com o ar presunçoso do conde, o ar de um homem que fizera, mais uma vez, valer a sua posição num assunto
de enorme importância para si próprio.
– Passava por perto, Ambury? Caso contrário, não estaria à espera de uma visita sua. Se procura alojamento e refeição por uma noite, claro que teremos o prazer de
o receber.
– Estou aqui especificamente para o ver, relativamente a um assunto de importância considerável para os dois.
A expressão de Barrowmore alterou-se de forma curiosíssima. Os olhos mostraram um brilho cauteloso. Yates perguntou-se o que poderia ter causado aquela reação, visto
que os dois tinham poucas ligações e pouco contacto. Com exceção de Cassandra. E de Lakewood, claro.
Sentaram-se e fingiram estar à vontade um com o outro.
– Vim pedir a mão da sua irmã em casamento – disse Yates. – Já tem idade para decidir por ela própria, mas julguei melhor observar os formalismos.
A expressão de Barrowmore assumiu contornos de estupefação. Dir-se-ia que Yates anunciara a invasão francesa.
– Só pode estar a brincar, Ambury.
– De todo.
Mais espanto.
– Santo Deus. Santo Deus! Porquê?
– Adequa-se a mim.
Não ficava bem a Barrowmore exprimir tal incredulidade, como se o merecimento da irmã não fosse além de um Mr. Treedle.
Barrowmore tentou recompor-se, mas falhou. Pôs-se em pé e afastou-se. Por fim, as costas endireitaram-se e a cabeça ergueu-se. Deu meia-volta.
– Lamento dizer que é demasiado tarde. Ela já está comprometida.
– Maldição! Que inconveniência. Quem é o sortudo? Imagino que esteja por cá, para acontecer tudo tão depressa! Gostaria de o conhecer e apresentar as minhas felicitações
de adversário derrotado.
– Ele não está, por isso não é possível. Nem me parece que ele gostasse de conhecer um dos... seus anteriores cavalheiros.
– Ah, ouviu os boatos.
– Já andavam a circular quando saí da cidade. É por isso que está aqui, não é? Para fazer a coisa certa por ela. Mas, tal como disse, é demasiado tarde.
– Tal como muitos rumores, não é verdade nos particulares, mas claro que ninguém se importa. Por isso, sim, é uma das razões pelas quais estou aqui. Se o pretendente
dela não está, e a decisão é tão recente, é-me impossível não me perguntar se ela estará de facto comprometida ou simplesmente prometida. Se se tratar da última
hipótese, seria uma idiotice menosprezar a minha proposta. Suspeito que seja a melhor.
– Prefiro a dele.
– Nas circunstâncias presentes, ambos sabemos que não estou em grande posição para esperar um grande dote, enquanto este sujeito lhe terá praticamente apontado uma
arma à cabeça para obter tanto dinheiro quanto possível em troca de lha levar daqui. E também sou um par do reino. Porque preferiria a oferta dele à minha?
– Desde logo, porque não gosto de si. Depois, um casamento dela consigo provavelmente só traria mais escândalo a esta família. Na verdade, penso que preferia vê-la
morta do que casada consigo.
Yates refreou a raiva crescente. Não era afronta o que experimentava, embora Barrowmore não se tivesse coibido de o insultar. Experimentava, sim, uma indignação
imensa pela atitude de Barrowmore em relação à irmã. O irmão queria castigá-la com aquele casamento. Queria-a isolada e invisível. Não se importava que ela ficasse
infeliz e presa a um homem que, com toda a probabilidade, a desprezava.
Queria dar uma sova a Barrowmore. Em vez disso, levantou-se.
– Fiz o meu dever e tentei retificar as consequências do meu comportamento. Visto que isso não lhe diz nada, despeço-me, considerando concluído aquilo que me levou
a falar-lhe.
Saiu, ignorando a tentativa do criado para o acompanhar, e voltou à sala de visitas.
Cassandra esforçava-se por manter a compostura. Ver Ambury tinha sido simultaneamente um horror e um alívio. Um horror porque a presença dele lhe recordava a ironia
da sua situação e também a interferência que ele acabara por ter nas expectativas que ela alimentara de salvar a tia. Um alívio porque necessitava de alguém com
quem falar e a quem contar da crueldade do irmão.
Felizmente, ele não se demorara, ou ela acabaria a lamentar-se do seu destino. Teria sido constrangedor, especialmente porque, com toda a probabilidade, ele não
iria mostrar-se muito solidário. Poderia até pensar que havia justiça no casamento dela com Mr. Treedle, ou fosse lá qual fosse o nome dele. Ela recusara um barão,
vivera a desafiar o escândalo e agora simplesmente colhia aquilo que semeara. Tanto quanto esperava, seria a visão de toda a gente.
Fechou os olhos e tentou encontrar um intervalo de serenidade para o caos que lhe tumultuava a cabeça e o coração. Perguntou-se como estaria a tia Sophie na casa
do doutor. Esperava que as cuidadoras de Sophie percebessem que ela não pertencia àquele lugar e que a tratassem como uma amiga e não como a uma reclusa. Esperava
que a deixassem trabalhar no jardim...
Experimentou algum descanso, o primeiro que tinha em dois dias. Era delicioso suspender a infelicidade por um momento. Se conseguisse fazer aquilo durante algumas
horas, talvez encontrasse uma forma de travar aquela batalha com Gerald, em vez de se render simplesmente.
– Venha comigo – ordenou uma voz.
Uma mão firme agarrou-lhe no pulso e fê-la levantar-se.
Despertou com o sobressalto. Ambury começou a andar, arrastando-a com ele. Cassandra seguia aos tropeções atrás dele, em direção à porta que abria para a varanda.
– Precisamos de privacidade – disse. – Mostre-me um sítio no jardim que não se consiga ver da casa.
Surpreendida e completamente aturdida, ela apontou para um arbusto, à esquerda, a meio caminho do jardim. Ambury dirigiu-se para lá, arrastando-a.
Largou-a quando se viram ocultados pelos arbustos. Ela sentou-se num banco de pedra e lembrou-se de que ela e Gerald costumavam brincar naquele canto abrigado do
jardim quando eram crianças.
Ambury pôs a mão no bolso do casaco e tirou um pergaminho. Deixou-o cair no colo dela.
– É uma licença especial. Pedi a sua mão ao seu irmão ainda agora. Ele recusou-se a aceitá-la. No entanto, a aprovação dele não é necessária, e julgo que você e
eu só temos de sair pelo pórtico do jardim e...
Ela ergueu as mãos, interrompendo-o:
– Pare, por favor. Se não se importa, uma notícia chocante de cada vez.
Sentia nele impaciência e irritação. A primeira era da responsabilidade dela, supunha. A segunda, provavelmente devia-se ao tratamento insultuoso do irmão.
Enfiou um dedo no documento que tinha no colo.
– Veio cá com uma licença especial e com a intenção de me pedir em casamento?
– Vim.
– Suponho que isso signifique que as más-línguas acerca de nós não cessaram.
– Não.
– Pobre Ambury. Tenho a certeza de que é uma ironia cruel ver-se escravo da honra com relação a mim.
– Vim aqui para cumprir o que a honra me pede, é verdade. Não levei menos a sério a minha obrigação, nem a lamentei, por se tratar de si.
Não deixava de ser uma galanteria. Ele quase indicara que a ideia não o horrorizava assim tanto.
– Agora não há necessidade, claro – disse ela. – Mr. Treedle vai resolver tudo. Devia ser um alívio para si.
– Mr. Treedle é um idiota.
– Nem sequer o conhece.
– Nem você. Nem sequer sabe se o nome dele é Mr. Treedle.
– Céus, você não parece nada aliviado. Está irritado pelo estúpido do meu irmão preferir o Sr. Seja Quem For a si?
– Não estou irritado. Estou perplexo. A minha proposta devia ser preferível em todos os aspetos.
– Seria uma inconsciência deixar o orgulho levá-lo a cometer uma tolice. Pode estar perplexo, mas foi poupado a um casamento indesejado.
Ambury sentou-se ao lado dela.
– Ouça-me, não estou a brincar. Acho que devíamos fugir e deixar o seu irmão lidar com isso. Não sou nenhum exemplo de virtude, mas também não tenho fama de seduzir
jovens casadoiras. Mr. Treedle não chega para limpar o seu nome. Só eu posso fazê-lo.
Ele falava a sério. Era um querido. E ela ficou sensibilizada.
– Esquece-se da razão pela qual concordei com o plano. A minha tia. O Gerald nunca a deixará partir se eu fugir consigo. Para o resultado ser esse, mais vale não
me casar.
Ele começou a andar para trás e para a frente, com o rosto carregado de exasperação pela relutância dela.
– Digamos que eu encontro uma forma de salvarmos a sua tia.
– O preço desse salvamento seria a minha aceitação deste casamento? De outra forma, não o faria?
– Seria inútil fazê-lo, se assim não fosse. O seu irmão iria resgatá-la e eu não teria qualquer legitimidade para fazer nada. Se você e eu estivermos casados, posso
oferecer-lhe proteção. No mínimo, posso agitar as águas. Agiria em seu nome, mas as minhas ações e palavras teriam muito mais peso do que as suas.
– É verdade que teriam pelo menos tanto peso como as dele – cogitou ela, apreciando a ideia com mais clareza e prevendo possíveis desafios. – Mais, uma vez que tanto
as suas palavras como a sua pessoa são mais valorizadas.
Afinal sempre existia. Uma espécie de escolha. Sem ser propriamente uma, a não ser que desejasse ser enterrada em vida. Sem ser uma escolha de todo, se queria proteger
a tia Sophie. E, contudo...
Ambury parecia tão sério, apresentando as suas alegações a favor de um casamento que nunca procurara, com uma mulher que não amava. Havia tantos não ditos entre
eles, sobre a tia Sophie e a procura de informação por parte dele relativamente aos brincos. Sobre Lakewood.
Talvez Mr. Treedle fosse a melhor escolha, se pensasse nos anos que os aguardavam.
– Dá-me a sua palavra em como ela pode viver comigo e que nunca tentará fazer o que o Gerald fez, mesmo se ela ficar um pouco tolinha?
– Se algum dia ela precisar de cuidado especial, será em sua casa, mais nenhuma.
– Quero que me dê a sua palavra em como vai protegê-la, independentemente do que acontecer.
Ele sorriu com pesar.
– Nunca faço um juramento por algo tão ambíguo como independentemente do que acontecer, Cassandra. Prometo, no entanto, protegê-la, independentemente do que acontecer,
desde que não comprometa a minha honra.
Ela dificilmente poderia dizer que não era o suficiente, embora pudesse não o ser.
Desejou ter a possibilidade de pedir algum tempo para pensar sobre o assunto. Parecia que tinha a cabeça cheia de algodão e uma manada de emoções aos pulos dentro
de si. Não era justo ter de fazer aquilo agora.
– Cassandra, é bom pensar na sua tia. Está na altura de pensar em si, também. Eu fui visto a sair de sua casa, naquela noite. O escândalo grassa por toda a Londres,
enquanto nós estamos aqui. Desta vez, há um nome associado, e é o meu. Não vai sobreviver a isto como sobreviveu aos rumores do passado. Ficará totalmente arruinada
e a minha honra será impugnada. Devo insistir que me permita fazer a coisa certa.
– É toda uma vida, Ambury.
– De qualquer forma, a vida que conhecia terminou.
Era duro. Verdadeiro, mas duro. Tampouco versava a vida que se seguiria.
– Como diria a minha querida Emma, falemos francamente. Você não gosta sequer de mim, Ambury. Não confia em mim. Culpa-me pela reputação manchada do seu amigo. Suspeito
mesmo de que me culpe pela morte dele.
– Gosto o suficiente de si. Quanto ao resto, não falemos nisso. Foi há muito tempo.
Pelo tom de voz dele, ela depreendeu que o «não falemos nisso» começava já ali. Talvez fosse sensato. Talvez pudessem simplesmente encerrar o tópico num roupeiro.
Depois de alguns anos, o fantasma de Lakewood talvez deixasse de arranhar a porta, exigindo atenção.
– Os seus pais não ficarão chocados por se casar com uma mulher de reputação tão colorida?
– Esperam que me comporte com honra e é isso que estou a fazer. Contudo, é verdade que preciso de saber, tanto por eles como por mim, se teve alguma ligação recentemente.
– Ah! Então sempre quer saber a verdade sobre o meu passado.
Ele ponderou e abanou a cabeça.
– Só o passado recente.
– A única ocorrência recente que pode ser apelidada de ligação terminou em fevereiro último. Era um emigrado francês. Precisa de saber se eu estava apaixonada por
ele?
– Não.
Claro que não. Não se tratava de romance, de amor ou de ciúme. Ambury não se importava se ela se tinha dado a outro homem, ou até a muitos outros, desde que não
houvesse nenhuma criança a nascer cedo de mais.
– A sucessão dos Highburton não está em perigo – declarou.
– Nem poderá estar no futuro.
Assim de repente, passaram a negociações significativas.
– Eu sei. Sou filha de um conde. Contudo, depois de assegurada a sucessão, presumo, irá conceder-me a minha liberdade, como é habitual.
Uma nova e pensativa pausa. Bastante longa.
– Vou ponderar.
Ela esperou que ele se mostrasse razoável, mas não saberia até esse dia chegar.
– E você, Ambury? Há alguém a quem este precipitado casamento por obrigação deixará destroçado? Não gosta da pergunta, estou a ver. Talvez todos os rumores que giram
à sua volta sejam mais um assunto de que não falaremos.
– Poderá ser melhor.
De qualquer forma, a vida que conhecia terminou. A medida dessa diferença e da sua impotência preocupavam-na. Sentiu-se invadir pelo pânico. Agarrou-se à coisa que
sabia poder ver concretizada naquilo tudo.
– Como tenciona encontrar a minha tia? Temos de agir rapidamente, se queremos ter oportunidade de o fazer.
– Vou indagar junto do cocheiro e dos cavalariços, para saber onde o seu irmão foi.
– Podem não lhe dizer.
– Se ele a trata mal, trata-os a eles pior, pode ter a certeza. Suborno, se necessário for, mas espero obter deles o rumo que ele seguiu, pelo menos.
– Vou ver se a minha mãe sabe alguma coisa.
Ele pegou-lhe na mão e perguntou:
– Então estamos decididos?
Dizê-lo era difícil. Depois de ter escapado àquele tipo de casamento uma vez, nunca esperaria ver-se noutro. Poderia estar a dar o seu acordo a um erro terrível.
Não era dela que se tratava, contudo. Não podia confiar que Gerald cumprisse as promessas que fizera. Ambury, se o prometera, iria salvar e proteger a tia Sophie.
Ela acreditava nisso e, naquela altura, nada mais lhe importava.
– Sim, estamos decididos.
Então, ele surpreendeu-a. Depois daquela conversa tão prática, beijou-a. Mas não foi um beijo doce para selar um compromisso. Beijou-a inteiramente, com sensualidade,
como se tivesse esperado pelo momento de o fazer. Segurou-lhe a cabeça, abraçou-lhe o corpo e puxou-a para si, para a envolver por inteiro. Beijou-a até surgirem
sensações que a distraíram das preocupações com Sophie.
As implicações carnais daquele casamento tornaram-se explícitas. Ocorreu-lhe então que também aquilo podia ser horrível, se uma pessoa se casasse com o homem errado.
Não lhe restava senão esperar que não fosse.
Quando ele parou de a beijar, olhou para ela, com as pontas dos dedos pousadas nos seus lábios. A mão desceu, deslizando pelo queixo, o pescoço e o peito. Por fim,
libertou-a.
– Vá. Venha ter aqui comigo dentro de três horas.
CAPÍTULO 16
Fazer a Coisa Certa era muito semelhante a arrancar um dente. Se tivéssemos escolha, não o faríamos mas, por necessidade, devíamos suportá-lo.
Ocorreu a Yates, enquanto atravessava a propriedade em direção à cocheira e aos estábulos, que o seu humor devia estar em pior estado. Se não estava, devia-se em
grande parte à perspetiva de possuir Cassandra muito em breve. Pensar em levá-la para a cama colocava praticamente tudo a uma nova luz.
A oportunidade de aplicar os seus dotes de investigador também explicava em parte o seu bom humor. Não se envolvera na atividade com a intenção de fazer algumas
libras. Era a busca que achava interessante, excitante, e o dinheiro acontecia quase que por acidente.
Aproximou-se da cocheira com disposição de investigador, em que metade da sua mente se dedicava a selecionar as perguntas que faria aos criados. A outra metade analisava
com igual naturalidade o potencial de dor que existia na extração daquele dente em particular.
Correria inegável risco ao casar-se com Cassandra. Ela poderia ser ainda mais licenciosa do que os piores rumores davam a entender. Poderia ser-lhe infiel no espaço
de duas semanas. Podia tornar a sua vida privada um inferno se assim o escolhesse. Ele poderia ficar a saber que ela ainda se encontrava com o amante francês. Poderia
descobrir que ela não era merecedora de confiança.
Poderia descobrir provas de que trazia uma ladra para a família.
Quero que me dê a sua palavra em como vai protegê-la, independentemente do que acontecer. Cassandra adivinhara as suas suspeitas. Aquilo a que o pai aludira. Talvez
ela sempre tivesse sabido, mas era possível que as perguntas que lhe fizera acerca dos brincos a tivesse levado a rever o passado com outros olhos.
Até recentemente, a tia de Cassandra havia levado uma vida colorida com viagens frequentes e aventuras amorosas. Todos partiam do princípio de que as suas famosas
joias tinham sido presente dos seus vários amantes. Depois de considerar a possibilidade, porém, ele vira como era fácil, para uma mulher que frequentava grandiosas
casas como Sophie, deitar a mão a uma pedra ou duas, especialmente nas mansões dos tais amantes. Se o Conde Pinga - mor ou o Cavaleiro Pinga-Amor desse pela ausência
de uma joia, como é que poderia provar que não a dera à sua amada de livre e espontânea vontade?
Cassandra há seis anos que era companheira de Sophie. Onde quer que Sophie fosse, Cassandra ia também. Podia ter visto coisas que, retrospetivamente, adquiriam um
novo sentido.
Com jeito, ela até poderia ter ajudado, ou seguido as pisadas da tia. Se a tia Sophie teve oportunidade de roubar joias, Cassandra teve-a igualmente.
O seu pensamento chegou àquela conclusão por sua própria iniciativa. A ideia encadeou-se nas outras, muito à semelhança da forma como os seus passos seguiam a lógica
do ritmo. Estes detiveram-se assim que a sua mente deparou com aquele local em particular.
Ambury contemplou a cocheira que tinha à sua frente e que estava necessitada de um novo telhado de colmo. Reparou no jovem que, numa sombra do exterior, cuidava
de algum material. Enquanto traçava os seus planos, tentou descartar, por absurda, a noção da cumplicidade de Cassandra.
O impulso de lhe desculpar o comportamento não provinha de nenhuma opinião confirmada do seu carácter, nem sequer da nova realidade de ela brevemente se tornar sua
mulher. Tinha mais a ver com uma boca grande e vermelha, e olhos azuis que tinham o condão de parecer, ao mesmo tempo, inocentes e escandalosamente prevaricadores.
Derivava também dos seus instintos. A luxúria e a sensibilidade dificilmente seriam bases sólidas para qualquer opinião.
Seguiu em frente, tentando não pensar nas implicações. Não se demorou naquela que sugeria que Lady Cassandra Vernham, ao aceder a casar com ele, granjeava para si
a melhor proteção do mundo contra possíveis pecados passados.
Yates encontrou o cocheiro a beber cerveja a uma mesa na parte de trás da cocheira. As janelas abertas davam entrada a uma brisa que pouco conseguia secar o suor
que manchava a camisa do homem. Viam-se os casacos vistosos em pregos próximos, prontos para sair. Ele ainda se encontrava de botas, lenço e peruca. A pequena barrica
da qual enchera o copo estava pousada a um canto.
Sobressaltou-se quando Yates entrou e carregou o sobrolho. O seu olhar rapidamente desceu pela figura do intruso, absorvendo os pormenores. Levantou-se.
– Milord! – exclamou, procurando um casaco. – Ninguém me disse que viria, senhor. Vou imediatamente tratar da sua carruagem e ocupantes.
– Não se vista – cortou Yates. – Está muito quente e não preciso dos seus serviços. Não vim de carruagem.
Aquilo deixou o cocheiro ainda mais intrigado. Aguardou que lhe dissessem o que, não sendo os seus serviços, era pretendido.
Yates espreitou pela porta para as carruagens.
– Lady Cassandra deseja levar o cabriolé esta tarde. Como vinha dar uma volta, disse que o informaria.
– Será entregue.
– Na verdade, ela virá até cá. Que esteja pronto daqui a duas horas.
O cocheiro assentiu com a cabeça.
– E vai desejar um lacaio?
– Não.
Ao ouvir a resposta, o cocheiro lançou-lhe um olhar de esguelha, dissimulado.
– Estará pronto.
Yates deu uma volta ao aposento. Havia três camas contra as paredes, mas sem vestígios de uso em duas delas. Olhou a peruca e as calças do criado.
– Deve permanecer de libré o dia inteiro?
– Milord prefere. Há sempre a possibilidade de precisar de uma carruagem. Não gosta de esperar.
Não era invulgar, mas normalmente uma propriedade daquelas tinha mais criados na cocheira do que aqueles que parecia haver.
– Deve ser difícil manter a libré limpa, se tem também de limpar as carruagens e as reparar.
– Isso é feito à noite, por mim e um rapaz.
– E quando a carruagem fica fora até muito tarde, como há três noites?
– Aí é feito antes de o dia nascer, por mim só.
– Melhor ir por uma estrada mais rápida e saber que dorme alguma coisa.
O sujeito travou uma risada trocista.
– Vou pela estrada que me dizem para tomar, mesmo sabendo que são mais quatro horas de jornada e conte duas noites em que não durmo quando venho de Londres, não
uma.
– Eu julgaria que o caminho mais rápido a partir de Londres é óbvio para qualquer um, mesmo para o Barrowmore.
A irreverência não passou despercebida ao cocheiro, que se permitiu abrir um sorriso mínimo.
– Ele conhece o percurso tão bem como qualquer cavalheiro. Houve necessidade de passar por Hertford. A tia acompanhava-o e tivemos de a levar até casa dos amigos,
perto de St. Albans.
– Ela deve ter-se sentido agradecida por o sobrinho se ter dado ao trabalho de a ajudar.
O cocheiro corou.
– Não sei. Os lacaios ajudaram-na com as coisas dela quando lá chegámos. Eu fiquei com a carruagem. E com Milord.
Então Barrowmore nem sequer tivera a decência de entregar Sophie ao carcereiro. Ficara sentado na carruagem enquanto os criados a levavam. Yates sentiu-se tentado
a perguntar se Sophie se tinha debatido. Se assim fosse, não os teria atrasado muito. Era tão pequena que um criado teria pegado nela sem esforço.
O rosto do homem não tinha perdido o forte rubor. Fosse por ter revelado assuntos do amo ou por memórias daquele desvio, Yates não sabia dizer.
Enfiou a mão no bolso à procura de alguns xelins. Se fossem demasiados, o seu informador ficaria preocupado com as mais recentes indiscrições. Se fossem insuficientes,
o seu silêncio futuro poderia não ser comprado. O último era mais importante, por isso pecou por excesso.
– Lady Cassandra pediu-me para lhe dar isto, por pedir que prepare o cabriolé tão tarde. É seu desejo que seja discreto quanto à saída dela. Está cansada da companhia
atual e deseja procurar ares diferentes. Seria melhor prender o cabriolé lá fora e continuar aqui dentro quando ela vier.
O homem espreitou os xelins. Ocultou quaisquer pensamentos que pudesse ter a respeito de Cassandra sair sozinha com um cavalheiro desconhecido de presença inesperada.
– Nunca me foi instruído que informasse das idas e vindas da família. Não vejo razão para começar agora por inspiração própria.
– Foi fácil – soprou Cassandra, quando o cabriolé descia a estrada com o cavalo de Ambury a reboque. – Tem talento para engendrar fugas, Ambury.
– Tivemos sorte por o cocheiro ser cooperante. Caso contrário, deambularíamos pelos campos até eu encontrar uma carruagem para alugar.
Cassandra duvidou de que aquilo chegasse a acontecer. Ambury era um homem que organizava as coisas ao seu gosto. O berço, o encanto pessoal e a postura granjeavam
a cooperação de toda a gente.
– Espero ser elogiada por me ter lembrado de esconder o seu cavalo, para não levantar suspeitas da sua presença na propriedade.
Ele inclinou-se e beijou-lhe o rosto.
– É brilhante.
A tarde declinava e o ar arrefecia. A excitação da corrida para a cocheira e a fuga rápida tinham-na deixado de boa disposição. Imaginou o irmão a explicar a Mr.
Treedle que as coisas tinham dado para o torto e que não ia haver casamento, nem, tampouco, o chorudo dote.
Não a fazia sentir-se mal, pensar em Mr. Treedle. Que tipo de homem concordava com um acordo daqueles sem sequer conhecer a mulher? Tinha de ser muito ganancioso.
– A minha mãe recusou-se a dizer-me onde a minha tia está, mas tenho a certeza de que sabe.
– O que descobri é bastante para a encontrar. Contudo, só amanhã conseguiremos tirá-la de lá. Está mais perto de Londres do que de Anseln Abbey.
– Sabe aonde ir? Afinal, o brilhante aqui é você.
– Não aonde ir, para ser exato. Contudo, sei o suficiente. Bastam-nos algumas perguntas para descobrir o resto. Qualquer médico que receba doentes em casa será conhecido
na área onde mora.
Ele parecia confiante. Cassandra permitiu-se sentir alívio e deliciar-se com a ideia de que, no dia seguinte, àquela hora, teria libertado Sophie.
– Vamos viajar a noite inteira? Não me importo – mencionou ela.
– Não há luar suficiente. Esta noite, fazemo-nos convidados em casa do Kendale. A propriedade dele fica no próximo condado, não muito longe.
Aquilo desanimou-a. Kendale iria estragar a aventura. Muito provavelmente apresentaria vários argumentos contra a fuga deles. Tentaria convencer Ambury a devolvê-la
a Gerald e a deixar a tia Sophie entregue à sorte dela.
– Não podemos ficar numa estalagem?
– Se a preocupa que eu tenha planos para a seduzir esta noite e não quer tais intimidades debaixo do teto dele, deixe-me tranquilizá-la e dizer-lhe que decidi esperar
até depois de casarmos.
– Não é isso. De todos vós, ele é quem mais me odeia.
– Eu não a odeio, Cassandra. Nem ele.
Talvez odiar fosse a palavra errada, mas ela tinha a certeza de que ele sabia o que pretendia dizer. Tal como sabia a razão pela qual a dissera.
– Será mais confortável para si ficar em casa dele, e o pastor da propriedade pode concretizar o casamento de manhã. Prometo que o Kendale não será grosseiro e que
tanto ele como os criados se certificarão de que o seu irmão não tentará interferir.
A lógica de ficarem em casa de Kendale mal deixou marca. Estava demasiado perplexa com a descoberta de que Ambury planeava casar-se com ela logo de manhã.
– Tenciona fazer os votos tão rápido?
– Quando se solicita uma licença especial e se foge de forma clandestina, é costume fazer os votos o mais cedo possível.
Ela olhou a paisagem que corria ao seu lado enquanto tentava aceitar a rapidez com que a sua vida, tal como a conhecia, iria terminar.
Ambury incitou os cavalos.
– Então a perspetiva de intimidade debaixo do teto dele não a preocupa?
A pergunta dele arrancou-a aos pensamentos. Era mesmo de homem, lembrar-se, de toda a conversa, precisamente daquela resposta.
– De todo. Estou a contar que o seu desempenho não deixe sequer lugar a lembrar-me de onde estou.
– Maldição! Agora estou a arrepender-me da minha decisão de esperar.
– Se esperar significa que salvamos a tia Sophie primeiro, não me parece que se arrependa.
Aproximou a anca da dele e inclinou-se para lhe mordiscar a orelha. A menção da intimidade recordou-lhe um dos possíveis benefícios daquele casamento, cujas implicações
não a deixavam de todo indiferente. Endiabrada, acariciou-lhe o joelho.
Ele aguentou as provocações durante uns minutos.
– Diabos!
Freou o cavalo. Segurou as rédeas na mão esquerda e agarrou nela com a direita, puxando-a para um beijo selvagem. A mão passou-lhe por detrás das costas e abarcou-lhe
um seio.
Ficaram ali parados no meio do caminho, deixando uma pequena tempestade tomar conta deles. A excitação não dava tréguas a Cassandra, que tudo envidava, com as carícias
que fazia na coxa dele, para o deixar igualmente desconfortável. Chegou a um ponto em que teriam ou de parar ou de amarrar o cavalo e rumar para o meio do campo.
Ele interrompeu um beijo no meio da paixão. Com a testa contra a dela, o olhar preso no seu.
– Amanhã à noite, estejamos onde estivermos, quero-a nua. Sem roupões, sem cerimónias, sem fingimentos. Quando for ter consigo, quero ver-lhe os seios e as pernas
e o seu desejo de prazer.
Soltou-a e pegou novamente nas rédeas. Ela ficou junto a ele e pousou a cabeça no seu ombro enquanto se deixava levar pela recordação de umas costas e nádegas definidas
a entrar no mar.
Os cães começaram a ladrar ainda a quase um quilómetro da casa. Pelo menos uma dúzia deles acompanharam o cabriolé durante a última centena de metros e puseram-se
a pular à sua volta quando este parou na alameda escura.
Cassandra aproximou-se de Yates, que mantinha o chicote a postos, caso os cães de Kendale mostrassem a mesma apetência social do dono.
A porta abriu-se e um vulto alto e escuro converteu-se numa silhueta por meio da luz que saía do edifício. Após ficar um tempo parado a olhar, o vulto avançou.
– Que diabo está a fazer aqui, Ambury? E numa carruagem tão elementar?
– Busco refúgio.
Yates saltou do veículo e foi ao encontro de Kendale. Os cães seguiram-no, mordiscando-lhe as botas e cheirando-lhe as pernas. Kendale deu duas ordens secas que
logo os dispersaram.
Kendale olhou para trás do amigo, para a carruagem.
– Aquela é Lady Cassandra?
– É.
– Devo dar-me ao trabalho de dizer que os dois se arriscam a um escândalo irreversível ao viajarem juntos e sozinhos a esta hora no meio do campo?
– Não desperdice o seu fôlego.
Kendale suspirou.
– Muito bem. Traga-a para dentro. Não há aqui ninguém que possa ser corrompido pela vossa ousadia. Devo dizer aos criados que precisam de um quarto ou de dois?
– Dois, claro.
Kendale achou graça àquilo.
– Vá buscá-la. Ou devo ir fazer-lhe uma receção calorosa? Sim, imagino que deva.
Prosseguiu até lá e mostrou-se bastante efusivo na receção, pedindo desculpa pela natureza rústica da hospedagem e a falta de confortos femininos. Yates ficou impressionado.
Nunca ouvira Kendale combinar tantas palavras de uma só vez em nome da cordialidade. A expressão cética de Cassandra cedeu.
Yates ajudou Cassandra a descer. Já dentro de casa, Kendale entregou-a a uma velha governanta.
– Ela fica no primeiro quarto ao cimo das escadas, no segundo andar, caso queira procurá-la mais tarde – informou Kendale depois de ela sair.
Yates não se importaria de a procurar no quarto dela naquela mesma noite. Depois do que acontecera na estrada, sentia-se fortemente inclinado a fazê-lo. Não o faria,
decidiu, embora não soubesse ao certo porquê. Seguiu Kendale até à biblioteca, onde o amigo os serviu aos dois de brandy.
– O que quis dizer, com «buscar refúgio»?
– Há a possibilidade de o irmão dela tentar interferir. Poderá aparecer aqui se conseguir seguir-nos.
– Que diabo, deixe-o vir. Metade dos meus criados são a minha ex-patrulha. Se precisássemos, aguentávamos um cerco.
– Assim me parecia. Foi por isso que viemos para cá. Agora sente-se, que eu explico tudo. Ah, antes de o fazer... Há um pastor na propriedade, não há?
Kendale precisou de um bom momento para compreender o que a pergunta implicava. Atirou um olhar fulminante a Yates e voltou a pegar no brandy.
Ocasionalmente, embora não nos últimos tempos, Cassandra imaginara um casamento que a tinha a ela por noiva. Apesar de a fantasia se distinguir em alguns aspetos
particulares, não era invulgar no seu desenvolvimento geral. Nunca incluíra um vestido de casamento que pouco mais fosse do que um prático vestido de musselina,
próprio para usar no campo ou num dia quente de verão.
Não incluíra, decididamente, como testemunhas, uma governanta idosa com cara de poucos amigos nem um Lord Kendale de ar severo.
O pastor, um primo segundo de Kendale, que se iniciava nas suas lides, ficou perplexo e alvoroçado por ser chamado para um tal dever. Foi necessário garantir-lhe
que a licença especial era autêntica, antes de ele assumir a sua posição na sala de visitas.
No momento em que se dava início à cerimónia, uma tempestade estalou. Cassandra observou o aguaceiro pelo canto do olho. O canto oposto do outro olho reparou que
Ambury parecia ser a pessoa mais tranquila daquela sala.
Seria um partido e tanto, em circunstâncias normais. Qualquer mulher sentiria uma satisfação pessoal tremenda se ele lhe tivesse pedido a mão de livre vontade, e
se não houvesse vários assuntos por resolver que poderiam não se revelar benéficos para o futuro em conjunto. Não falariam neles, decidira ele. No entanto, aquilo
não os faria desaparecer.
Chegou a altura da aliança e, para sua surpresa, o casaco de Ambury continha uma. Perguntou-se onde ele a teria conseguido. O gesto e o simbolismo tornaram subitamente
a cerimónia muito real. Categoricamente. Todo o nervosismo de que uma mulher poderia padecer durante todo o seu noivado assaltou Cassandra num único momento, quando
aquele anel veio na sua direção. A mão tremia-lhe tanto que Ambury lhe teve de agarrar no pulso, para conseguir passar pelo dedo o círculo dourado.
E depois, terminou. Estava feito. Ninguém se mexeu durante um bom bocado. Ninguém falou. O pastor parecia petrificado, irradiando um sorriso esperançoso e prudente
na sua direção.
Finalmente, Ambury pousou as mãos no rosto de Cassandra e beijou-a com cuidado, como se adivinhasse o terror que lhe ia no coração.
– Prometo tomar conta de si – disse baixinho.
Não era a declaração de amor da sua fantasia de infância, mas era mais do que muitas mulheres recebiam.
– E eu prometo garantir que não se torna rígido e austero como os seus antepassados – declarou ela.
Ele riu-se, e o som derrubou o constrangimento. As pessoas mexeram-se. O pastor apresentou as felicitações. Ambury ofereceu o braço a Cassandra e rumaram ambos com
o minúsculo e festivo grupo até à sala de jantar para o pequeno-almoço.
*
– Não me parece que possamos recompensar o Kendale pela ajuda que nos deu – comentou Cassandra quando a carruagem entrou em St. Albans.
– Não temos de o recompensar por nada. É meu amigo.
Ambury estava mais interessado nos arredores da povoação do que no comentário dela.
Kendale mostrara-se melhor amigo do que muitos. Não só fizera em sua casa o casamento deles como lhes emprestara aquela carruagem sem ele sequer lha pedir. Para
um homem que vivia uma masculina indiferença às exigências da sociedade, Kendale mostrara um entendimento inesperado, como revelava o comentário em que referira
que seria muito estranho para Ambury levar Cassandra para Londres num cabriolé de um só cavalo, roubado.
Um cabriolé com a tia Sophie no banco de trás seria ainda mais peculiar. Cassandra decidiu que faria saber a Kendale o quão grata estava por este ter previsto as
necessidades práticas. O empréstimo de dois lacaios e de um cocheiro poderia vir a revelar-se igualmente útil, antes de o dia findar. Não duvidava de que Ambury
conseguiria intimidar qualquer médico e garantir a libertação de Sophie quando chegasse a altura, mas não seria mau poder contar com alguns homens fortes ao seu
lado.
– Espere aqui – disse Ambury.
Deu ordem de paragem à carruagem e saiu ainda antes de esta se deter completamente. Ela espreitou pela janela e viu-o entrar numa taberna.
Esperou um quarto de hora até ele regressar e voltar a subir.
– Penso que o sítio que procuramos fica numa travessa lateral a cinco quilómetros da povoação. O médico que lá vive é discreto, mas há relatos de que tem diversos
hóspedes permanentes.
Cassandra crispou-se de tensão e medo.
– Já decidiu como vamos fazer isto? Talvez deva dizer que o meu irmão lhe pediu que a fosse buscar em nome dele.
– Não vou mentir, claro. No entanto, poderei dizer que fui enviado pela família. Como a Cassandra é familiar dela...
Ela esperou que fosse o suficiente. Enquanto a carruagem os levava, imaginou o desenrolar da situação.
A casa que ficava na rua lateral não aparentava ser nada mais do que uma moradia de boa dimensão. Quando se aproximaram não havia nada que indicasse o seu propósito.
Contudo, o barulho que eles provocaram trouxe uma mudança. Logo, rostos pálidos assomaram às janelas no segundo piso e nas águas-furtadas. Cassandra olhava de janela
em janela, procurando Sophie. Via apenas presenças e olhos fantasmagóricos. Olhos confusos. Loucos. Vazios.
– Tenho de ir consigo – disse.
– Nem pensar!
– Ela não acreditará que está cá para a ajudar. Pode pensar que veio a mando do Gerald, para a levar para um sítio ainda mais inóspito. Entramos juntos e, se o médico
tentar impedi-la de vir, então eu saio e você pode regressar com os criados musculosos.
Ele ponderou.
– Vamos tentar o que diz. Mas...
Esticou o braço e tirou a pistola da caixa montada na parede da carruagem.
– Ele também pode ter criados musculosos, e eu não coloco em risco a sua segurança.
Os ocupantes da casa estavam à espera de que eles batessem. A porta abriu-se imediatamente. Um cavalheiro de rosto corado com uma peruca antiquada e calças e casaco
beges saudou-os. Atrás dele encontrava-se um criado, bastante musculado, por sinal.
Ambury apresentou o cartão.
– Viemos visitar Lady Sophie Vernham.
Uns olhos velados debruçaram-se sobre o cartão, depois sobre Ambury, depois sobre Cassandra.
– Não me disseram que iria ter visitas.
– E quem é o senhor, se posso perguntar? – inquiriu Ambury.
O sujeito endireitou-se.
– Doutor Harold Wakely, médico. Esta é a minha casa e o meu hospital privado.
– Oh, céus! Ela está doente? – perguntou Cassandra. – Graças a Deus que decidi fazer este desvio para a ver. É mesmo típico do Barrowmore, tentar poupar-me.
O Dr. Wakely não sabia o que fazer, por isso decidiu-se pela etiqueta. Cassandra aceitou o convite para entrar.
– Se me indicar onde ela está, ficar-lhe-ia muito agradecida – declarou ela.
No entanto, o Dr. Wakely indicou-lhes a sala de estar.
– Receio que tenha piorado desde que aqui está. Agora, a memória absorve-a de formas desditosas durante quase o dia inteiro. Foi por essa razão que o seu irmão ma
trouxe. Está a perder o controlo das suas faculdades mentais.
– Oh, meu Deus! – Cassandra olhou para Ambury com ar aflito. – Tenho de a ver, mesmo assim.
– Ela pode não a conhecer – advertiu o Dr. Wakely.
– Vamos arriscar – disse Ambury. – A minha mulher era muito próxima da tia e sente necessidade de a reconfortar, se puder.
– A sua mulher? A tia dela?
O Dr. Wakely olhou para Cassandra com surpresa.
– As minhas desculpas, viscondessa. Não sabia que eram da família. Sim, claro que pode vê-la. Se quiser seguir-me.
Atravessou a casa, até uma porta nas traseiras que dava para o jardim.
– Ela gosta das flores. Passa a maior parte do dia aqui, se o tempo estiver bom. Ao contrário de alguns dos nossos convidados, não representa qualquer problema.
Não está louca, claro. Apenas começa a viver a segunda infância.
Cassandra viu a tia sentada num banco debaixo de uma árvore a meio do caminho principal.
– Obrigada. Gostaria de ter alguma privacidade com ela.
O Dr. Wakely recuou.
– Eu estarei lá dentro.
Cassandra e Ambury aproximaram-se da tia Sophie. Cassandra reparou que a tia não se mexia e que não olhava verdadeiramente para nada. Tinha a mente noutro sítio
qualquer, como por vezes acontecia nos últimos tempos.
Sentiu uma enorme apreensão. Sophie poderia ter piorado desde a chegada àquele lugar. Seria possível, em apenas alguns dias? Talvez, encontrando-se numa casa cheia
de pessoas mentalmente doentes, uma pessoa escapasse para dentro da própria mente.
Estavam muito próximos quando Sophie atentou à presença deles. Espreitou-os, com aquela ausência no olhar que anunciava a presença demasiado vívida de imagens antigas.
– Ah, Anthony, é você. Sabia que alguém viria salvar-me, mas não esperava um paladino tão nobre quanto o Highburton.
Ambury pegou-lhe na mão e inclinou-se para a beijar.
– Não sou o Anthony, mas o filho dele. Somos muito parecidos, assim me dizem.
Sophie piscou duas vezes os olhos, que cintilaram, acompanhados de um sorriso perspicaz.
– É-o, deveras. É muito parecido com ele quando era novo.
Aceitou o abraço de Cassandra.
– Como é que me encontrou? Espero que o filho do Highburton tenha arrancado o meu paradeiro ao Gerald. O canalha raptou-me da minha própria casa. Consegue acreditar?
Yates observou Cassandra examinar cuidadosamente a tia. Naquele momento, Sophie parecia bastante normal, mas há escassos minutos encontrava-se indubitavelmente perdida
nos seus pensamentos. Confundira-o de facto com o pai, o que indicava que se entregava àquelas memórias de forma bastante intensa, por vezes.
– Conta-me tudo assim que a tirarmos daqui – declarou Cassandra. – O Ambury e eu vamos levá-la para casa connosco. O Gerald não poderá aproximar-se novamente de
si, e se tentar fazê-lo outra vez, vamos para os tribunais impedi-lo.
Sophie desviou o olhar de Cassandra para Ambury, confusa. Então, o seu olhar pousou na mão da primeira, pousada no seu ombro. Viu o anel.
– Está casada? – Observou atentamente Cassandra, depois Ambury e confirmou: – Consigo?
– Sim. Esta mesma manhã – disse Ambury. – Além do meu amigo visconde Kendale, é a primeira a saber.
– Mas que bem. O Gerald não vai gostar nada disso. Na verdade, pode até tirar-lhe a vontade de me aborrecer.
Ergueu-se.
– Tenho muito poucos bens pessoais aqui e não deve ser demorado arrumá-los. Sugeriria que saíssemos simplesmente por um dos portões do jardim, mas verifiquei no
primeiro dia e estão todos fechados. O Dr. Wakely dispõe de dois criados muito grandes para o ajudar com as pobres almas que precisam verdadeiramente da sua hospitalidade,
por isso espero que tenha trazido uma pistola, senhor.
– Trouxe, mas tenho a certeza de que não precisarei dela.
– Então tem mais fé no bom senso dos outros do que eu.
Majestosa, envelhecida, mas ainda bela, parecia estar muito alerta ao mundo à sua volta.
– Vamos, então? Atrevo-me a dizer que qualquer pessoa sã não continuará a sê-lo se ficar aqui tempo de mais.
O Dr. Wakely aguardava-os precisamente do outro lado da porta de trás. Parecia satisfeito por ver a tia Sophie tão consciente.
– É evidente que a sua visita ajudou muito, hoje, viscondessa. Sente-se melhor, Lady Sophie?
– Estou em perfeita forma, meu bom homem. Assim como estive o dia todo de hoje, o de ontem e o de anteontem. Na realidade, já lhe disse várias vezes que não pertenço
a este lugar.
– Claro, claro – arrulhou o Dr. Wakely.
– Vou levar Lady Sophie connosco – comunicou Ambury. – A minha mulher atenderá a qualquer cuidado de que ela necessite no futuro.
Aquilo sobressaltou o doutor.
– Ela foi deixada ao meu cuidado, senhor. Sou obrigado a...
– Não tem quaisquer obrigações. A família mudou de ideias relativamente ao cuidado a prestar. É, sem dúvida, algo que acontece por vezes.
Wakely franziu o sobrolho. Moveu-se de forma a bloquear o caminho para a porta. O criado grande assomou ao fundo do corredor.
– Dei a minha palavra, senhor.
– Não estará a voltar atrás com ela de sua própria vontade.
– O pagamento...
– É seu, julgo eu. Claro que quanto mais tempo Barrowmore for alheio a esta alteração, maior a probabilidade de realmente o ser.
O criado recuou alguns passos. O rosto de Wakely ficou vermelho, e tapou-lhes o caminho de forma mais óbvia.
– Não posso permitir isto. É extremamente irregular e de legalidade duvidosa.
Yates mexeu o casaco de forma a mostrar a pistola. Imobilizou Wakely com um olhar inabalável.
– Não me fale de legalidade. O senhor tomou parte num rapto. Barrowmore não detém qualquer autoridade sobre Lady Sophie e o senhor não tinha nada que aceitar prendê-la
aqui contra a vontade dela, sem provas de que a custódia lhe tinha sido dada. Ela escolhe ir-se embora connosco e eu certificar-me-ei de que o faz. Agora chame o
seu homem e saia da nossa frente.
Wakely manteve-se firme durante mais dez segundos. Então, o braço ergueu-se num gesto para o criado e ele próprio saiu do caminho.
Quando Yates conduzia Sophie e Cassandra para fora da casa, Sophie inclinou a cabeça para junto da sobrinha.
– Vê, querida? Não lhe disse que ele era delicioso?
CAPÍTULO 17
Yates não demorou a perceber que Lady Sophie, na posse de todas as suas faculdades mentais, era uma mulher que não podia ser ignorada.
Depois de se afastarem uns quinze quilómetros do lar de Wakely, pararam numa estalagem de beira de estrada para uma refeição. Yates decidira que deviam seguir em
frente, mesmo que tal significasse chegar a Londres depois de escurecer. As senhoras aceitaram. O que não aceitaram foi o plano que traçou para o que aconteceria
quando chegassem a Londres.
Ele tencionava levar ambas para a casa da sua família, pelo menos durante alguns dias, enquanto diligenciava para alugar uma própria. Lá, Sophie estaria em segurança
e Cassandra teria alguma privacidade e conforto.
– Preferiria regressar à minha própria casa – declarou Sophie. – Recuso-me a ser um fardo para os seus pais, e sentir-me-ia muito embaraçada por me saber convidada
deles sem o seu conhecimento.
– Eles não se importarão, posso garantir-lhe. É uma situação excecional e não sabemos a que expedientes o Barrowmore pode recorrer. Se ficar sozinha em casa, arriscamo-nos
a que volte a desaparecer.
Ele presumia que ela reconhecesse a lógica do seu plano.
– Podemos resolver o problema do Gerald com relativa facilidade. Deixe estes lacaios comigo e dê-lhes ordens para escorraçar qualquer pessoa que tente entrar em
minha casa.
– São criados do Kendale, não meus. É necessário que voltem para junto dele, juntamente com esta carruagem.
– Lord Kendale não se importará que os conserve durante alguns dias, tenho a certeza.
– Se nem sequer o conhece, como é que pode ter a certeza?
A voz dele deve ter revelado a sua exasperação crescente, pois Cassandra, cuja mão estava debaixo da dele, virou a sua para apertar ligeiramente a dele.
– Tenho a certeza, porque ele é um cavalheiro, e a Cassandra disse-me que é oficial. Ao envolver-se na sua escaramuça, nunca retiraria as tropas ao saber que ainda
eram precisas. Escreva-lhe e explique-lhe. Vai ver que tenho razão.
Foi assim que Yates depositou Sophie e dois lacaios na casa de Adams Street. Cassandra aproveitou a oportunidade para preparar uma mala antes de se juntar a ele
na carruagem que prosseguiu para a residência familiar.
– Planeia dar explicações acerca de nós os dois hoje à noite? – questionou Cassandra quando olhou para a fachada escura.
Viam-se luzes suficientes no interior para concluir que os habitantes ainda não se tinham retirado.
– Seria melhor.
– Tenho de ir consigo?
– Eu trato disto sozinho.
– Parece-me sensato. – Ela aceitou a companhia dele até à porta. – De todas as coisas que enfrentei ao longo dos anos, julgo que esta estranha receção é provavelmente
a mais difícil.
– Será a próxima condessa de Highburton, Cassandra. Todas as pessoas desta casa a tratarão como tal.
– A sua mãe...
– Especialmente a minha mãe.
Um criado estava de serviço à porta àquela hora, mas o mordomo não demorou a dispensá-lo. Yates explicou que iriam ficar alguns dias.
– Instale-nos no apartamento do terceiro piso que dá para o jardim. Diga a Mrs. Anderson para enviar lá alguém para ajudar a senhora. Envie recado ao meu apartamento,
dizendo ao Higgins para vir também.
O mordomo começou a dar ordens. Yates chamou Cassandra de parte.
– Devo falar com o meu pai agora. Espero que esteja acordado. Não faz sentido os criados ficarem a saber primeiro.
– Claro. Guardo o meu agradecimento pelo dia de hoje para quando voltar a vê-lo.
O sorriso endiabrado que ela lhe dirigiu foi muito eficaz em o distrair momentaneamente da conversa que o aguardava. A sua mente começou a pensar que o pai provavelmente
não estaria acordado e que aquilo tudo poderia esperar pela manhã ou mesmo pela tarde seguinte. Pôs a ideia de parte e começou a subir a escada, imaginando o pior
para aquela reunião.
O pai tinha sido colocado na cama. A mãe estava sentada numa cadeira próxima, a ler-lhe. Yates lamentou significar a interrupção da pacífica cena.
A mãe pousou o livro quando ele se aproximou.
– Pode esperar pela manhã, Yates. Ele está quase a dormir.
– Estou acordado o bastante – murmurou o pai.
Tentou levantar-se. Yates foi colocar-lhe duas almofadas atrás das costas.
– Então o que o traz aqui a esta hora? – perguntou o pai. – Julguei que tivesse saído da cidade.
– Acabo de voltar. Há uma coisa que devo dizer-lhe, e que não podia esperar.
A mãe fez menção de se levantar, para os deixar a sós.
– Fique, mãe – interrompeu Yates. – Foi uma sorte encontrá-los juntos.
Fitando-o com ar de reserva, a mãe voltou a sentar-se.
– Perdeu muito dinheiro ao jogo?
– Não é isso. Embora vá precisar de algum dinheiro na mesma. Casei-me hoje de manhã, por licença especial. Com Cassandra Vernham.
Os pais ficaram a olhar para ele. Ninguém falou nem se mexeu. Dos dois, o pai era quem parecia mais chocado. Yates esperou que fosse só espanto e que não lhe afetasse
a saúde.
O silêncio persistia de forma confrangedora.
– Trouxe-a para cá. O meu apartamento não é adequado.
– Penso o mesmo – declarou a mãe. – Claro que tinha de a trazer para aqui.
– Claro – acompanhou o pai.
A mãe e o pai trocaram um olhar. Uma comunicação silenciosa passou entre os dois.
– Uma licença especial – repetiu o pai. – Foi uma fuga? A família dela não aprovava?
– O irmão dela não ficou nada satisfeito com o meu pedido.
– Imagino que não. – Por alguma razão, o pai achou aquilo divertido. – Bom, está feito, por isso não vale a pena discutir a sensatez da decisão – concluiu, deixando
a cabeça regressar às almofadas. – Traga-ma aqui amanhã, para lhe dar as boas-vindas.
A seguir, pareceu adormecer.
– Venha comigo – disse a mãe. – Ele pode não ter mais nada para lhe dizer, mas eu tenho.
Yates seguiu-a até ao quarto de vestir dos aposentos. Assim que ele fechou a porta, ela virou-se para ele e fez-lhe ver o estado de choque em que estava.
– Francamente! É o tipo de coisa com que nos preocupávamos nos seus vinte anos, não agora. O que é que tinha na cabeça?
– Tenho a certeza de que ouviu o falatório, portanto é uma pergunta peculiar.
– Claro que ouvi. Há anos que se ouve falar de um e de outro, portanto não há nada de novo nas histórias mais recentes.
– O que é novo é as histórias serem sobre nós os dois juntos.
– Teve um caso, e daí? Não foi o seu primeiro, nem é o primeiro dela. – Deixou-se cair numa cadeira e abanou a cabeça. – Cassandra Vernham. De todas as mulheres
de Inglaterra, tinha de se ter enrolado com ela.
– Na verdade, não tivemos nada, mas o nome dela ficou comprometido na mesma. Sei dos rumores passados que sempre a acompanharam, mas neste caso é diferente. Há provas
mais específicas e o meu nome surgiu. Teria sido a ruína dela. Ela nunca se casou...
– Por sua própria escolha. Quanto a arruiná-la, já estava bem encaminhada. Não vejo porque teve de se sacrificar em prol dela.
– Não posso permitir-lhe que fale assim dela. Por favor, não volte a fazê-lo.
Para sua surpresa, a mãe começou a chorar. Não lhe parecia que alguma vez a tivesse visto chorar.
– O pai compreende, ainda que a mãe não. Sei que não está feliz. Havia provavelmente toda uma série de possibilidades para mim que a mãe preferia.
– Dúzias. Centenas.
– Eu conheço-a melhor do que a mãe e penso que se adequa muito bem a mim. Agora é minha mulher. Tenho a certeza de que a receberá tão bem como o pai.
Ela limpou os olhos e recompôs-se.
– Claro. Não há nada mais a fazer. Imagino que tenham ocupado o aposento grande do terceiro andar.
– Até encontrar uma casa para nós.
– Vou dizer ao seu pai que lhe dê dinheiro suficiente para montar uma casa. Já está mais do que na altura, e, de qualquer forma, apertar-lhe os cordões à bolsa não
fez diferença nenhuma.
Ele curvou-se e deu-lhe um beijo no rosto. Ela não pareceu importar-se, embora fosse algo que ele não fazia há anos. Tal como as palmadinhas que ela lhe deu no rosto
enquanto o olhava profundamente com olhos humedecidos.
– Vou ser simpática com ela, prometo.
Ele despediu-se. Foi até à biblioteca e serviu-se de porto. Bebeu-o à janela, contemplando os candeeiros que pontuavam a escuridão.
Correra melhor do que ele esperara, com o conde, e pior do que previra, com a mãe.
A lembrança de Cassandra rapidamente afastou quaisquer memórias daquelas conversas. Resistiu à inclinação de subir a passo largo as escadas e de possuí-la imediatamente.
Ficou, pois, a acabar o porto, consumido pelo desejo. A seguir, conseguiu esperar mais uns quinze minutos, para ela ter tempo de se acomodar.
Depois não aguentou mais a espera.
A criada segurava uma grande toalha branca quando Cassandra saiu do banho frio. Declinar a água quente deixara-lhe tempo para relaxar antes de se lavar e, quando
se envolveu na toalha, sentia-se revigorada.
Sentou-se à escrivaninha, deixando a criada entregar-se à tarefa de lhe tirar os ganchos do cabelo. Enquanto isso, escreveu à pressa uma mensagem para Emma.
Casei-me com o Ambury hoje de manhã. Explico tudo quando a vir da próxima vez.
Depois de selar a carta, dirigiu-se para o quarto de vestir, para lhe escovarem o cabelo. Dispensou, então, a mulher e abriu o guarda-vestidos, no qual as suas poucas
peças de roupa tinham sido colocadas. Tentou decidir o que vestir. Os aposentos tinham dois quartos e quando Ambury atravessasse a estreita passagem que os ligava,
Cassandra presumia que o faria por uma única razão. O prazer sexual seria o único benefício que ele retiraria daquele casamento, além da preservação da honra masculina.
Tampouco estava a contar que ele fizesse grandes cerimónias. Não teria necessidade de seduzir nenhuma virgem, não era? Nada que o obrigasse a fingir amor, nem sequer
muita afeição. Um homem que faz o que está certo é um homem coagido pelas regras da sociedade. Se ela fosse inocente, ele poderia pelo menos ter tentado ser meigo,
mas uma mulher do mundo não necessitava desse tipo de cuidados.
Quero-a nua. Levá-lo à letra implicaria um início vulgar. Nem sequer as amantes o receberiam totalmente nuas. Desfiou as camisas de noite e os robes, e escolheu
uma peça que talvez servisse. Dispensou a toalha e vestiu-a.
Não fazia ideia do tempo que ele demoraria com a família. Era possível que houvesse lugar a discussões consideráveis devido ao casamento inesperado. Seria agradável
encontrar alguma coisa com que se distrair, mas duvidava de que ele gostasse de a ver a ler um livro quando entrasse.
Regressou ao quarto dela. A mulher abrira a cama de um lado. Aparentemente, os criados não sabiam que ela e Ambury estavam casados. Abriu-a do outro. A noite estava
quente, e os cobertores não seriam necessários.
Finalmente, tudo estava mais do que preparado. Exceto ela.
Estava na sua noite de núpcias, cujos rituais lhe anunciavam o quanto a sua vida havia mudado. Não se trataria de nenhuma paixão impetuosa e descontrolada. Ambury
não se disporia a conquistar a sua anuência com beijos e prazer. Não havia quaisquer fantasias de amor nas quais pudesse resguardar-se.
Em lugar disso, aquela noite tratava da concessão de direitos e da aceitação de deveres. Não poderia ser nada mais do que isso. Talvez fosse até fria e sumária.
Ou não.
Sentou-se à espera, com o coração a bater com força e todos os sentidos em perfeito estado de alerta, perguntando-se se teria alguma voz no decorrer das coisas.
Talvez sim. Ambury presumia que ela era uma mulher do mundo. Talvez fosse sensato comportar-se como tal, em vez de parecer uma galinha assustada.
Regressou ao quarto de vestir e tirou a camisa que escolhera, enfiando-se num roupão translúcido. De volta ao quarto, deitou-se no centro da cama.
A espera excitou-a. O tecido que lhe encobria o corpo friccionava levemente a pele que a expectativa estimulava. Memórias do prazer usufruído nos abraços e beijos
anteriores vieram provocá-la.
Quando escutava com atenção, conseguia ouvir ruídos ténues vindos de outros aposentos, que indicavam que alguém se movimentava. Podia ser apenas o criado pessoal
dele, mas cada som abafado adicionava excitação ao nervosismo que sentia.
Subitamente, ouviu sons diferentes. Mais próximos. Espreitou e viu-o no quarto dela, parado na escuridão. Um prisma de luz prateada que raiava de uma cortina próxima
revelava-lhe o rosto e a parte superior do corpo. Trazia um robe verde de seda que lhe pendia largo do corpo. Ela duvidava de que tivesse alguma coisa por baixo.
Recordou a visão daquele corpo ao entrar no mar. A imagem acordou-lhe o desejo num frémito surdo.
Ele veio para a cama. Tocou na seda fina e transparente da bainha do roupão dela, o que fez com que os dois lados se separassem até uma das pernas se revelar até
à coxa.
– É elegante – disse ele.
– Julguei que fosse arrojado.
Os dedos dele subiram pela seda que lhe cobria o tronco até roçarem na auréola escura que se entrevia. A leve carícia sobressaltou-a. Os seus seios avolumaram-se
ainda mais. O mamilo ficou mais duro ao toque dele.
– Também é arrojado.
Com um novo puxão, o tecido escorregou, deixando-lhe metade do corpo completamente nu.
A forma como ele a olhou desencadeou formigueiros deliciosos. Ela retirou a outra metade do roupão para o olhar dele a excitar ainda mais.
– É linda, Cassandra. Sempre pensei que era deliciosamente apetecível.
Ele tirou o robe.
Não tinha nada por baixo, acertara. Comprovava também que não haveria cerimónia. Ele não fez qualquer esforço para se tapar ou para se esgueirar rapidamente para
dentro da cama, de forma a não ferir as suas delicadas sensibilidades. Deixou-se ficar parado, excitado e nu, enquanto o robe caía ao chão.
Ela mal conseguia falar.
– Deliciosamente apetecível? Tomo isso como uma promessa.
Ele ajoelhou-se na cama e debruçou-se sobre ela.
– Decididamente arrojado. Assim que estiver habituada a mim, espero pela retribuição daquilo que receber.
Segurou-lhe nos ombros e juntou-lhe o cabelo, devolvendo-o à almofada, por cima da cabeça.
– Estou curioso por descobrir quão experiente é de facto.
Não o bastante. Não se sentiu sequer sofisticada quando a anca dele assentou entre as suas coxas e os ombros dele se agigantaram à sua frente. Nada blasée, quando
sentiu a prova do desejo dele contra ela e o viu na gravidade que a paixão lhe conferia.
Teve de se obrigar a pensar no que fazer. O acolhimento que lhe proporcionou foi hesitante. O calor e a fisicalidade dele sobressaltavam-na. O corpo firme que ela
admirara a entrar no mar tornava-a a ela numa figura pequena e vulnerável. A mistura de nervos e excitação retirava-lhe a capacidade de dissipar o seu temor por
meio de conversa ou humor. Só conseguia sentir espanto quando ele começou a brindar-lhe o corpo com carícias que a faziam ofegar. Não era a primeira vez que estava
com um homem, mas era a primeira vez que estava com um homem que procurava deliberadamente enlouquecê-la.
Ele sabia como o fazer. Com beijos que reclamavam posse e carícias que emitiam comandos, derrotou qualquer pensamento inteligente que tentasse formar-se. O corpo
dela apreciava demasiadamente a mestria dele. A pele saboreava-lhe o calor áspero da palma da mão e a exigência apaixonada da boca. Abriu os lábios à sua exploração
e arquejou quando ele acometeu com a língua e a boca devastadoras sobre os seus seios, originando um crescendo de prazer deliciosamente insuportável.
Ele conseguiu, então, vencer o parco domínio que ela ainda exercia sobre si mesma. Nada além do corpo que pulsava de fome voraz importava. Ela arqueou as costas,
atirando os seios de encontro a ele. Numa carícia desajeitada, desceu-lhe o peito até ao sítio onde os corpos se encontravam. Ele mexeu-se para ela chegar mais abaixo
e ela fechou a mão sobre a sua masculinidade. Todo ele endureceu ainda mais, a tensão ansiosa do desejo urgindo para se libertar da prisão do corpo.
Os dentes dele fecharam-se, cuidadosos mas certeiros, sobre um mamilo, fazendo disparar profundamente dentro dela uma sensação aguda, que a fez estremecer em vagas
sucessivas. A seguir a isto, não pensou em mais nada a não ser naquele vazio que queria que ele preenchesse e naquele ardor carnal que clamava desenfreadamente por
alívio.
Quando finalmente ele a tocou, ela quase chorou de alívio. Usou a sua própria mão com mais agressividade para ele não parar. Afastou as pernas de forma despudorada
para ele entrar mais profunda e livremente. Um prazer torturante ressoou-lhe sem trégua ao redor da vulva, até toda ela sucumbir, num grito.
Os gritos de prazer de Cassandra ecoaram na cabeça de Yates como uma melodia feminina em contraste com o duro staccato da sua própria fome desenfreada. Era ínfimo
o pensamento que mediava entre os dois. Que, afinal, ela era exuberante e bela e audaciosa o bastante. Mas não verdadeiramente experiente, talvez. Não muito.
Tentou não reparar nas evidências, mas elas existiam. Estivera na cama com mulheres suficientes para saber a diferença.
O corpo dele estava impaciente. A paixão que sentia não podia ser mais ardente. Pôs-se em cima dela e começou a acariciar-lhe os seios. O falo inchava e endurecia
cada vez mais, antecipando o resto.
De repente, ocorreu-lhe o pensamento de que não deveria ter tomado como um convite a reação que vira nela enquanto ele se despia, mas decidiu ignorá-lo. Era tarde
de mais para parar, e tampouco o desejava.
Desceu-lhe pelo corpo com beijos. A respiração dela acelerava a cada centímetro de caminho. Ela sabia o que ele estava a tramar, tinha a certeza. Bastava aquilo
para não sentir necessidade de reservas. Parou apenas o tempo suficiente para usar os dedos para a acariciar até a nova tensão que sentia nela desaparecer e ela
estar pronta para ele.
Usou a língua com brandura, no início, inflamando-a ao mesmo tempo que tentava manter algum controlo. Então, perdeu-se no cheiro e no sabor dela, entregando-se ao
prazer primitivo que o consumia por inteiro.
Ela atingiu o êxtase arfando em gemidos. A própria libertação dele não seria negada muito tempo mais. Colocou-se sobre ela e introduziu-se devagar. Quando deixou
de sentir resistência, acometeu profundamente e refreou a ânsia de a possuir desenfreadamente.
Segurou-se acima dela e começou a mexer-se. Viu erguerem-se as sobrancelhas definidas de Cassandra, que o observou, com olhos repletos do fogo da paixão e suspiros
que acompanhavam o ritmo da união repetida dos seus corpos.
Mesmo perfeitamente saciada, Cassandra continuava perplexa. Conhecera o prazer antes, mas não um prazer tão livre. Havia que dizer-se algo em abonação de não termos
de nos preocupar com estarmos a fazer algo errado ou com a possibilidade de engravidar fora do casamento.
Este era um dos pensamentos inacabados que lhe ocorriam enquanto saboreava aquela paz deliciosa de languidez. Mal dava conta do peso de Ambury em cima de si. A respiração
profunda deste parecia encorajar o tempo a permanecer invulgarmente lento.
Ele desocupou a posição, o que dissipou a magia. Pouco a pouco, ela regressou ao seu corpo e à existência do tempo e do espaço físico.
Ele não a deixou, como ela esperara que fizesse. Em vez disso, deitou-se de costas com um braço por baixo da cabeça. Tinha os olhos fechados e a boca ligeiramente
entreaberta. Parecia satisfeito, embora, com um segundo olhar ao perfil, lhe parecesse notar uma ligeiríssima ruga na testa.
Talvez tivesse sido demasiado arrojada? Era possível ele julgar que devia ter-se mostrado menos agradada com aquilo que ele tinha feito. Os homens conseguiam ter
pensamentos daqueles. Nem sempre eram justos na forma como julgavam aquelas coisas. Eram capazes de se entregar à completa idiotice, mesmo não sendo sequer no seu
melhor interesse.
Aqueles surpreendentes beijos nas partes íntimas tinham-na deixado espantada, mas uma outra coisa fora ainda mais surpreendente. Tentou decidir se deveria falar
naquele estranho momento que necessitava agora de ver esclarecido. Tê-lo-ia ignorado, se ele não estivesse com um ar tão contemplativo, e se ela não suspeitasse
de que os seus pensamentos adquiriam contornos muito masculinos, na sua aceção menos lógica.
– Parece-me que, no que respeita a noites de núpcias, esta foi melhor do que cabe esperar à maioria das mulheres – declarou.
A expressão dele suavizou-se.
– À maioria dos homens também, especialmente porque a maioria das noivas não costuma incomodar-se em elogiá-los a seguir.
– É porque, na sua maioria, as noivas são virgens, e é pouco o prazer que conhecem na noite de núpcias. Eu não era, como é evidente.
Silêncio.
Oh, sim, estava a pensar como um homem. Quem o esperaria, quando, de entre todas as mulheres, se tratava dela?
– Você não tinha a certeza, parece-me – prosseguiu. – Foi surpreendentemente cuidadoso. Muito atencioso da sua parte.
Voltou a não receber qualquer resposta. Não falariam no assunto, tal como ele prometera no jardim. Ele não lhe fizera qualquer pergunta sobre o seu passado nessa
altura, e agora também não. Ele não queria verdadeiramente saber. Que joia de marido. Verdadeiramente notável.
– Quem foi?
Nem tanto.
A pergunta não a aborreceu. Desejou apenas que ele se tivesse disposto àquela conversa quando ela a introduziu, antes de se casarem.
– Não foi ele.
Não queria dizer mais, mas agradou-lhe ser explícita relativamente a Lakewood. Talvez Ambury ficasse com melhor opinião dela, agora que sabia que nada que obrigasse
ao casamento acontecera naquele dia, há seis anos.
– Se não foi ele, quem foi?
– Disse que não queria saber a minha história.
– Há um dia não queria, e daqui a um dia talvez não volte a querer. Hoje dou por mim muito curioso.
Virou-se de lado e apoiou-se num braço.
– Não é tão vivida como os rumores dão a entender. Audaciosa não é o mesmo que experiente ou cínica.
– Não me dei conta de que me avaliava tão cuidadosamente, e que formava os seus julgamentos.
– Não são julgamentos. Apenas perguntas.
Aguardou como se ela lhe devesse respostas. Que irritante.
– Ao que parece, você também não é tão vivido como eu pensava – provocou ela –, se se ocupa com coisas destas.
– Nestas circunstâncias, é verdade, e é uma descoberta surpreendente. Se fosse minha amante, e não minha mulher, sem dúvida que não me importaria minimamente.
– Poderá ser sensato pensar em termos da primeira, então.
– Esta noite, pelo menos, é impossível.
Ela desejou que ele não estivesse à espera de desculpas e lágrimas, e de uma confissão dramática. Ela nunca o iludira.
– Quando voltei da viagem pela Europa com a minha tia, travei conhecimento com um oficial do exército. Era arrebatador. Impressionou-me por não se importar com o
escândalo com o Lakewood. Um dia, ele veio visitar-me, e a minha tia, que ainda não se tinha retirado do convívio social, não estava em casa. Roubou-me um beijo,
e uma coisa levou a outra.
– O canalha abandonou-a depois de ter conseguido o que queria?
– É muito rápido a pensar mal dele.
– Só sou porque ele lhe pediu a mão, você acedeu, e ele seduziu-a, mas não casou consigo.
– Tentou casar comigo. O meu irmão negou-nos a bênção e depois ameaçou arruinar a carreira do oficial se ele, mesmo assim, se casasse comigo. Foi o fim.
– Pensei que o seu irmão quisesse vê-la casada. Devia ter ficado satisfeito com o pedido do oficial.
– Não ficou com o seu, mesmo sendo muito melhor do que o de um oficial do exército. O meu oficial não se encaixava no plano, fosse ele qual fosse.
– Ele parece ser um homem necessitado de ocupação. Ou de distração. – Esticou o braço e pousou a mão na barriga dela. – Ele devia casar-se. Dava-lhe alguma coisa
para ocupar o tempo, agora que já não pode congeminar contra si.
– É uma ideia esplêndida. Parece-me que lhe vou procurar uma noiva. Uma rapariga que mostre inclinação para se tornar uma megera.
Ele riu-se e deitou-se de costas, mas a seguir ergueu-se para se sentar contra a cabeceira.
– Enquanto a procura, pode virar a mesa e apresentá-lo a uma dúzia de inocentes e às respetivas mães durante todas as semanas da próxima temporada. Certifique-se
de que nenhuma tem uma fortuna avultada, se quer que ele se sinta miserável. Não pode dar-se ao luxo de casar por amor.
Ela inclinou a cabeça para olhar para ele.
– Porque diz isso?
– Anseln Abbey está a precisar de um bom investimento. Ele adiou de mais. Presumo que haja escassez de recursos.
Ambury notara evidências que ela não vira, mas ela pouco sabia acerca da manutenção de uma propriedade. Gerald não lhe dera nada nos últimos anos, mas a mãe parecia
continuar a comprar nas modistas o mesmo que sempre comprara, e nada se ouvira sobre dificuldades financeiras.
Uma carícia no seu rosto arrancou-a aos pensamentos. Ambury afastou-lhe cuidadosamente o cabelo desalinhado do rosto. Ela ergueu os olhos e viu nos dele a razão
pela qual não saíra da cama.
Ele pegou na mão dela e incitou-a a subir.
– Venha cá.
Yates nunca fora um amante ciumento. Um punhado de mulheres dissera-lhe que era um dos seus predicados mais cativantes. Muitas outras se ressentiram disso. Contudo,
ele tinha orgulho nesse aspeto do seu carácter. Os ciúmes faziam dos homens autênticos asnos.
Ainda assim, dava por si a perguntar-se sobre Cassandra. Só depois de a colocar de frente para si, de joelhos dobrados e pernas abertas sobre as suas ancas, é que
a curiosidade esmoreceu um pouco.
Acariciou-lhe aquelas pernas e as linhas sinuosas do corpo, até segurar os seios nas mãos. Há um dia, quando dissera que não tinha necessidade de saber a história
dela, falara a sério. Mas, há um dia, não era casado. Ela agora pertencia-lhe, e ele não gostava da ideia de outros a terem visto assim, nua e bela, com um brilho
estonteante de desejo no olhar.
Não fora ele. Já era alguma coisa, pelo menos. Não gostava da ideia de que tivesse sido Lakewood. Não sabia porquê. Só sabia que se Lakewood a tivesse possuído primeiro
iria complicar muitas coisas.
Ela chegou-se mais para perto, aproximando-se o mais possível da prova evidente da virilidade dele. Não estava dentro dela, mas, tirando isso, mais perto não podiam
estar. Sentia um pulsar de sensualidade na carne insuportavelmente tenra que se encostava à sua. Ela retrocedeu e fez deslizar as mãos suaves e quentes em carícias
delicadas sobre o peito dele que o provocavam como penas.
Audaz, mas nem tanto. Ser-lhe-ia perdoado pensar que toda a experiência dela lhe fora conferida por meros rumores. Naquele preciso momento, ela parecia fascinada
com a audácia de se ver a fazer o que fazia. Quando ele a provara, sentira e ouvira a surpresa dela, ainda que nenhuma objeção. Na altura em que pensara que ela
falava mais do que fazia, já não havia retorno.
Tocou-lhe nos seios leitosos. Redondos e altos, os mamilos escuros espetavam-se eroticamente. Ela fechou os olhos, mas ele viu-lhe na expressão que estava excitada,
o sorriso incerto que a titilação a fazia abrir e a leve tensão de desejo que as suas carícias provocavam.
Ele brincou com ela até a ânsia a demover do controlo. Começou com um balanço sensual que brindava numa carícia incrível o sítio onde se uniam. Por fim, ela abraçou-lhe
o pescoço e parou, enchendo com os seios as mãos dele. Ele certificou-se de que o prazer a deixava completamente rendida.
Ela tremeu quando ele entrou nela e moveu as ancas para o absorver completamente. Ele próprio se alheou de tudo, a não ser do prazer que o cingia mais completamente
a cada vez que ela subia para descer sobre ele.
Ficou frenética, como se nada fosse suficiente e o alívio não chegasse. Mexia-se de forma agressiva, vigorosa, procurando a ligação que pudesse satisfazê-lo. Ele
intumesceu ainda mais até a preencher por completo e a sua própria libertação o inundar. «Sim, sim», sussurrou ela repetidamente, cavalgando o duro membro e recebendo
as suas estocadas.
CAPÍTULO 18
O lacaio levantou-se de um salto assim que Cassandra entrou na sala do pequeno-almoço, em casa da tia.
Cassandra inclinou-se para beijar Sophie. Quando o fez, reparou na chávena e no prato adicionais que se encontravam em cima da mesa e olhou para o lacaio. Era um
tipo agradável e atraente, com um vigor rústico, trigueiro. Na casa dos trinta, calculou. Ele pôs-se a olhar para o ar.
Ela disse-lhe para se ir embora. Sophie acenou-lhe um adeus e sorriu-lhe como uma menina.
– Tia Sophie, não está a ter familiaridade a mais com os criados de Lord Kendale?
– Depende do que considera familiaridade a mais.
Cassandra indicou a chávena e o prato extras.
– Admito que pedi ao Sean que se sentasse comigo enquanto tomava o meu pequeno-almoço, mas mais nada.
– Sean?
– É o nome da obra-prima escocesa que acaba de dispensar.
Não era claro se Sophie pedira apenas a Sean para lhe fazer companhia ao pequeno-almoço ou se admitiria apenas isso.
Seria melhor ignorar aquele pormenor, ao invés de tentar clarificá-lo.
– Espero que não se tenha afeiçoado demasiado a ele. Tanto ele como os outros criados do Kendale ir-se-ão embora hoje à tarde, com a carruagem, e virão os criados
do Highburton substituí-los.
– Que pena. Gosto bastante do Sean e do seu sotaque. Imagino que o Highburton não tenha nenhum criado escocês. Surgiu-me uma apreciação particular por eles, de repente,
como por vezes me surpreendo a suspirar por maçapão, quando menos espero. Normalmente, não ligo tanto assim a maçapão.
– Não sei se algum deles é escocês. Nem poderia perguntar. O que diria? Desculpe, Ambury, mas seria muito simpático da sua parte enviar os escoceses que tivesse
em casa, para a minha tia poder entregar-se ao seu desejo de... maçapão?
– Não vejo porque não. Se se tiver saído bem ontem à noite, ainda que minimamente, hoje ele não deveria recusar-lhe nada, muito menos um criado escocês.
Ter-se-ia saído bem? Ele ficara na cama dela durante a maior parte da noite, por isso supunha que talvez tivesse. Só que dificilmente tinha sido ela a deslumbrá-lo
a ele, tal como Sophie parecia querer implicar.
Sophie observou-a por cima da chávena enquanto bebia o seu café.
– Como correu a sua noite de núpcias, querida?
Cassandra sentiu-se corar. Sophie riu-se.
– Graças a Deus, Cassandra. Rezei para que ele soubesse lidar com uma mulher melhor do que aquele francês arrogante do inverno passado. Qual era o nome dele? Jean?
– Jacques. Não desejo defendê-lo, mas tem muitas opiniões para alguém que nem sequer estava presente.
– Tirei-lhe a pinta. Parecia ser o tipo de homem que só pensa em si próprio. Ontem à noite rezei para que o Ambury tivesse pelo menos alguma consideração, tendo
em conta que está casada com ele. Uma vida inteira é muito tempo para se ter na cama um homem que não seja generoso.
– Foi atencioso da sua parte.
– As minhas preces foram atendidas?
Tinham sido tão bem atendidas que Cassandra nem sequer queria falar no assunto. Podia tirar-lhe a magia.
– Adequa-se a mim pelo menos nesse particular, se quer saber.
– São boas notícias.
Sophie levantou-se e pegou no chapéu.
– Vou para o jardim. Vem comigo?
– Tenho de visitar a Emma, que está tão estupefacta que deve precisar de sais. A carta dela desta manhã estava ilegível. Vim avisá-la do render da guarda e assegurar-lhe
que a sua segurança está a ser salvaguardada, tal como prometido. Devo dizer-lhe que não deve sair, se lhe surgir algum interesse súbito em o fazer. O Ambury diz
que será muito mais difícil protegê-la do Gerald se estiver na cidade.
– Eu nunca saio. Sabe disso. Julgo, porém, que ter belos criados aqui a cuidar de mim é uma ideia brilhante. Pergunto-me porque nunca pensei nisso antes.
Quando entrou na sala de visitas de Southwaite, Cassandra contou com a receção de Emma, mas também a do próprio conde. Era evidente que Southwaite não fazia tenção
de esperar para ouvir os detalhes da boca da sua mulher, e muito menos de Ambury ao final do dia. Os homens conseguiam ser bisbilhoteiros insaciáveis, embora nunca
admitissem tal coisa.
– A sua carta deixou-nos espantados – disse Emma. – Mal consegui segurar numa caneta para responder. Tem de nos dizer o que aconteceu.
Dirigiu um olhar ao marido e a seguir trocou olhares com Cassandra. Omita o que quiser enquanto ele cá está, mas depois quero ouvir tudo.
Cassandra comunicou a história da forma mais simples que conseguiu. Fez questão de exprimir a gratidão que sentia por Ambury se ter mostrado tão nobre e honrado.
Southwaite escutou tudo e no fim comentou:
– Tenho a certeza de que não será necessário dizer-lhe o significado disto, nem o que é esperado de si agora.
Ela queria portar-se bem. A sério que queria. Mas aquele homem tendia a suscitar o pior de si quando empregava aquele tom arrogante.
– Fique descansado, pois não será necessário explicar-me os meus deveres. A minha mãe fez as honras há longos anos. Não só tive uma educação completa, como o meu
marido e eu revimos as lições muito recentemente. – Procurou o relógio e, lançando-lhe um olhar, completou: – Na verdade, fui instruída pela última vez há apenas
quatro horas. E foi memorável, na verdade.
Southwaite corou. Parecia estar a ponto de explicar que se referia a deveres diferentes daqueles.
Emma deu um risinho. Southwaite corou ainda mais.
– Não será necessário fazer nenhum desenho – declarou ele. – Se for necessária alguma avaliação, deixo-a nas mãos do Ambury.
Assim que ele saiu, Emma desatou a rir.
– Ele raramente é tão indecente como no último comentário, Cassandra. Estou ansiosa por lhe fazer perguntas, e espero respostas detalhadas.
– Desconfio que não devem ser demasiado detalhadas no que respeita à minha mais recente lição. O Southwaite teria uma apoplexia. Ou estamos autorizadas a ser indecentes,
agora que também sou casada?
– Julgo que é mais aceitável, pelo menos. Vamos salvaguardar essa parte, mas, de resto, tem de me contar tudo. Ouvi finalmente os boatos acerca de vocês os dois,
e presumi que iria ultrapassá-los, como sempre ultrapassou. O que é que a induziu a aceder a casar com ele? Ele não tinha outra escolha a não ser propor-se, mas...
– Ou era o Ambury ou passar a minha vida inteira a contar ovelhas na fronteira escocesa. Pior, deixei a minha tia ficar mal de todas as formas possíveis. O meu irmão
levou-me a melhor e era a única forma de a colocar a salvo dele.
Descreveu o drama a Emma, incluindo a maior parte das cenas. Terminava, quando a porta se abriu e Lydia entrou.
– Estava a caminho de sua casa quando o mordomo me disse que estava aqui – principiou ela. – A minha criada disse que ouviu um boato incrível, de que tinha casado.
Tem de me dizer que não é verdade.
– Mas é, e o Ambury revelou-se um homem à altura – declarou Emma.
Lydia atirou-se para uma cadeira e fechou os olhos.
– Não posso acreditar. Não só há casamento, depois destes anos todos, como, para mais, um previsível. Que desilusão me saiu, Cassandra. Se tivesse sido um ator ou
um salteador, um escritor, até, teria a consolação de uma escolha extraordinária, mas o Ambury... Que monotonia, a filha de um conde a casar com o herdeiro de outro.
– O Ambury não é monótono – declarou Cassandra.
– Está a ser muito grosseira – acrescentou Emma. – Pelo menos alegre-se por agora não ficar privada da amizade dela. Este casamento monótono e previsível deve ter
o efeito previsto em termos de reputação. Ninguém se atreverá a fazer frente ao Ambury. Ele resgatou-a da beira do precipício, por assim dizer.
Lydia abriu os olhos, que se animaram ao reconhecer a visão positiva de Emma.
– É verdade, suponho. Continuamos a poder sair juntas à noite. Ele vai permiti-lo, não vai? Não tratará uma mulher madura da sua fama e experiência como uma criança,
espero.
– Espero ter a mesma liberdade de movimentos do passado.
Não sabia realmente se teria. Descuidara-se em negociar aquela parte com Ambury antes de aceitar a proposta dele. Ela estava em desvantagem, e ele sabia-o.
– Sendo assim, espero conseguir adaptar-me. Ainda me sinto desiludida, mas conseguirei recuperar.
– Que boas notícias – afirmou Cassandra.
Emma fez um risinho, mas o tom de secura escapou a Lydia.
– Espero que ele se mostre bom amante – declarou. – Um casamento por obrigação provavelmente é muito menos horrível se o noivo for competente nessa área.
Lydia, agora calma, brincava ociosamente com as fitas do chapéu.
– E também tem um físico muito bonito quando está nu, portanto é um ponto a favor dele. Agora pode apreciar o traseiro dele sempre que quiser, Cassandra.
Uma quietude tumular tomou conta da sala. Cassandra inspirou, mas não conseguia expirar. Sentiu Emma transformar-se numa estátua imóvel ao seu lado. Lydia brincava
com as fitas, alheia ao erro sério que acabava de cometer.
– Lydia, querida – disse Emma, com a voz densa. – Como é que sabe tanto sobre físicos ao natural, traseiros e amantes competentes?
– Como mulheres experientes, sabemos tudo sobre essas coisas. Não sabemos, Cassandra?
Cassandra conseguiu suspirar. Envergonhadíssima, olhou de soslaio para Emma. Esta pareceu observar Lydia com bastante severidade.
– Penso, Cassandra, que este seu casamento aconteceu mesmo a tempo de prevenir a desgraça completa – sussurrou Emma.
– Eu podia ter lidado com isso. Se não fosse a situação da tia Sophie com o Gerald, podia.
– Não estou a falar da sua desgraça, mas sim a daquela sua cúmplice.
O som puro penetrou o silêncio. O isolamento, a limpidez e a precisão erguiam muros e escadas invisíveis. Yates entregava-se à paz da música, formando estruturas,
nas quais os pensamentos se organizavam sem esforço.
O arco movia-se. As notas encadeavam-se. Algo semelhante a alegria iluminava-o. Era raro, e quase estranho. Nunca fora uma questão de prazer.
Apesar de tudo, padrões mentais formavam-se e dispunham-se. Relações inesperadas apresentavam-se como pedaços de sonhos. Como sempre, algumas desconcertavam-no,
mas ele sabia já que não devia menosprezar o inesperado.
Deixou a mente divagar por uma direção que nunca visitara, curioso por ver onde iria dar. Muito à semelhança da própria melodia, nasciam variações de factos que
lhe eram extremamente familiares.
As possibilidades fascinavam-no. Tentou extrair mais delas, mas, subitamente, a nuvem na qual existia abriu-se ao meio como se se partisse uma porcelana. Parou de
tocar e olhou ao redor. A porta do seu quarto de vestir que dava para a passagem estava aberta.
Pousou o instrumento. Agarrou no casaco que tinha atirado e andou até aos aposentos de Cassandra.
A criada atarefava-se com o cabelo dela no quarto de vestir.
– Estou quase pronta – disse Cassandra. – Esta manhã, o chapéu que usei estragou-me mais o penteado do que o normal.
– Não sabia que ia sair.
– Fui visitar a Emma. Chegou uma carta bem cedo a suplicar uma explicação, e ela insistiu que eu não fizesse a cerimónia de esperar pela tarde.
Ele perguntou-se como teria corrido a explicação a Emma. Fui vencida pelas circunstâncias e agora tenho de viver isto o melhor possível.
– Precisou de mim para alguma coisa? Se sim, peço desculpa – acrescentou, dispensando a criada com um aceno de mão.
– Apenas da sua companhia ao pequeno-almoço.
Ela olhou para o espelho uma vez mais e levantou-se.
– Só isso? Então tenho a certeza de que não se importou com a minha ausência.
Importara-se mais do que seria de esperar. Quando dissera a Cassandra na noite anterior que iriam ver o pai durante a tarde, não contara que ela desaparecesse durante
a manhã inteira. Ela suspendera a intimidade deles mais depressa do que ele, parecera-lhe, e prosseguira com o seu dia com uma indiferença bastante prática aos acontecimentos
da noite.
– Estou bem? – perguntou, contemplando o vestido de musselina.
O vestido pendia como uma coluna branca da faixa azul que cingia a cintura alta. Um tecido diáfano preenchia a área acima do decote, resguardando a parte de cima
dos seios. Não obstante, ele conseguia vê-los na sua mente, em toda a sua completude, subidos pelas costas arqueadas e...
– Ele vai achá-la adorável, porque o é.
– O que devo dizer-lhe? Ele não me aprova a mim nem ao casamento.
– Eu não disse que ele não aprovava.
– Tampouco me disse se correu tudo bem quando lhe contou, ontem à noite. – Assumiu uma postura mais firme e declarou: – Vamos, então, antes que eu perca a coragem.
Ele pegou-lhe na mão e juntos desceram as escadas em direção aos aposentos do conde.
– Atravessou a passagem enquanto eu estava a tocar?
– Estava à espera da criada, e pensei dizer-lhe da minha visita à Emma. Não tive intenção de interromper. Ficarei do meu lado dos aposentos, no futuro.
– Não é necessário.
– É gentil da sua parte dizê-lo, mas talvez seja melhor. Especialmente quando toca, parece-me. Vi que é uma experiência privada, Ambury. Não tinha compreendido isso
antes.
Chegaram à porta que se abria para os aposentos do conde. Ela concentrou-se nos painéis de madeira. Mordeu o lábio inferior.
– Fica comigo durante esta provação, ou devo ficar sozinha com ele?
Ambury apertou-lhe a mão.
– Eu fico consigo.
*
Cassandra há anos que não via o conde de Highburton de perto. A saúde débil do conde restringia a sua vida pública há já algum tempo e, de qualquer forma, ela nunca
se movimentara nos círculos dele. Agora, aproximava-se dele com Ambury ao lado. Os nervos interferiam com o seu autodomínio. Só o treino de uma vida lhe permitia
permanecer serena e apresentável.
O conde estava sentado num cadeirão grande, perto de uma janela. A condessa não se encontrava à vista. Percebia-se um criado de quarto ao fundo, na sombra. Um volumoso
robe em seda grená envolvia o conde. Um lenço agasalhava-lhe o pescoço e, por baixo, notava-se uma camisa impecavelmente branca. O cabelo, cortado de forma elegante
para um homem da sua idade, ainda não era branco. De facto, as madeixas pretas e cinzentas davam-lhe um aspeto mais jovem.
O conde voltou-se quando eles se aproximaram. Nem a doença nem os anos lhe tiravam a beleza daqueles olhos azuis e das feições regulares. A semelhança entre pai
e filho chamou-lhe imediatamente a atenção. Dali a uns vinte anos, o seu marido iria parecer-se muito com o homem que ali os aguardava.
Ambury continuou e abriu a janela. Depois apresentou-a como sua mulher. O conde olhou-a demoradamente, dos pés à cabeça.
– Pode deixá-la comigo, Yates. Desejo falar com a minha nora em privado para ficar a conhecê-la.
– Julgo que desta vez vou ficar. Os dois podem conversar em privado noutros dias.
O rosto descontente do conde refletia o que pensava do filho desobediente. Não discutiu e concentrou-se em Cassandra.
– Provavelmente julga que estou escandalizado por o meu filho se ter casado consigo.
– Passou-me pela cabeça que pudesse estar, senhor.
– Nem tanto. A minha mulher contou-me acerca dos rumores. Eu sabia que ele faria o que era devido, por pouco convencionais que sejam as suas ideias. Provavelmente
o facto de ser uma mulher muito bonita ajudou.
Ela não conseguiu pensar numa resposta para lhe dar.
– Conheci o seu pai. Éramos amigos quando ele era novo. Na altura em que morreu, já estávamos afastados, mas chorei a morte dele. Era um bom homem, de carácter generoso.
Um ataque de tosse interrompeu-o. O criado apareceu ao lado do conde, de lenço pronto na mão. Depois de alguns minutos, o conde acalmou-se, e o criado esfumou-se
no ar.
– E a irmã dele? Como é que está?
Falou num tom de voz distante, como se a tosse lhe tivesse roubado a vivacidade.
– Floresce, senhor.
– Com que então, floresce? É uma palavra boa para ela. É bom saber que continua a florescer.
Uma nota de crítica assomou ao olhar ausente.
– Como próxima condessa de Highburton, seria melhor que não florescesse com tanta exuberância quanto ela, claro.
Finalmente, ali estava, a reprimenda que toda a gente se sentia na obrigação de lhe dar, como se pensassem que ela era estúpida ao ponto de ignorar o que era esperado
dela. É melhor não se descuidar da sua reputação no futuro, minha jovem.
– Ao mesmo tempo, ninguém deseja que a boa disposição de Cassandra a abandone, tenho a certeza – disse Ambury. – É a sua qualidade mais cativante, que não desejo
que perca nunca.
Ela desejou dar-lhe um beijo por ele a defender e falar bem dela naquele momento. O sorriso firme que dirigiu ao pai pode até ter contribuído ainda mais para o abreviar
de quaisquer lições posteriores.
– A sua mãe diz que deve ter a sua própria casa de agora em diante – disse o conde a Ambury. – Esta será sua tão brevemente que parece desnecessário montar outra
apenas por alguns meses.
– Não me parece que sejam apenas alguns meses. Nem o pai devia presumir isso.
– Talvez. Talvez. O que diz, Cassandra? Quer ter a sua própria casa? Não será tão grande e elegante como esta, isso é certo. Se gostar de luxo, faria melhor em ficar
aqui.
– Deixo essa questão ao critério do meu marido. Ficarei satisfeita com o que ele preferir.
O conde abafou uma risada.
– É bastante inteligente, Yates. Concedo-lhe isso. Esperta, encantadora e filha de um bom homem. Podia ter escolhido pior, suponho. Deus sabe que julguei que o faria.
Ergueu a mão e chamou-a.
– Venha dar-me um beijo, menina, que eu abençoo este casamento tal como é.
Ela aproximou-se, inclinou-se e beijou-o no rosto.
– Precisa de a levar a Elmswood Manor com a maior brevidade – disse o conde. – Para que os vizinhos a conheçam.
Os olhos do conde fecharam-se e Yates indicou-lhe que saíssem. Quando o faziam, o criado apareceu e esticou o braço para a maçaneta da janela.
– Deixe-a aberta – interrompeu Yates.
– O médico, senhor...
– O dia está bom, a brisa suave, e o médico é um idiota. Deixe-a aberta.
Já fora do aposento, Cassandra deixou-se encostar à parede, aliviada.
– Preferia defrontar-me com todas as patronas do Almack’s1 simultaneamente a ter de voltar a fazer aquilo.
Ambury puxou-a para si.
– Então, não foi assim tão mau.
– Só porque ele foi simpático. Não tinha de ter sido, e eu não podia contar que fosse. Por conseguinte, sei que a aceitação dele é apenas resignação por estar perante
um fait accompli.
– Não interessa a razão por que aceita, desde que o faça. –Deu-lhe um beijo. – Esperta, encantadora e alegre. O que ele disse é verdade. Poderia ter-me saído muito
pior.
Era simpático da parte dele dizer aquilo. O abraço e o beijo evocavam ecos da noite passada. A proximidade acordava os delicados laços emocionais que se haviam formado,
como se fossem entidades vivas adormecidas ao erguer da aurora aguardando apenas uma evocação para se fazerem novamente ativas.
Cassandra percebeu que tinha as costas contra a parede e o rosto entre as mãos dele. Ele beijou-a de forma diferente. Mais profunda.
– Obrigada por ficar comigo, para eu não ter de enfrentar tudo sozinha – disse.
– Estamos juntos nisto. Hoje à tarde damos um passeio no parque e deixamos o mundo ver-nos assim. O comunicado sairá amanhã nos jornais, mas já corre a notícia.
– O que fazemos até sairmos?
A forma como o corpo dele pressionava o dela comunicava-lhe que ele tinha uma resposta para lhe dar. Porém, o beijo seguinte não foi muito apaixonado. Foi a desculpar-se,
isso sim.
– Sei como gostaria de passar o tempo. Infelizmente, tem mais uma visita para fazer hoje, na qual a minha companhia não seria tolerada.
– Outra visita? A quem?
– À minha mãe.
1 Um dos primeiros clubes londrinos a admitir tanto homens como mulheres. Aberto entre 1765 e 1871, era dirigido por senhoras influentes dos círculos mais elevados.
(N. da T.)