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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DESEJO DE MARY / Dama Beltrán
O DESEJO DE MARY / Dama Beltrán

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Londres, 28 de outubro de 1882, residência Moore.
Sophia observou pela janela como a carruagem em que estava seu marido se afastava de casa. Deveria estar acostumada que Randall saísse na metade da noite, mas naquele momento teria dado tudo o que tinha para que não saísse do seu lado. Se abraçou e tentou acalmar o calafrio que surgiu ao se sentir tão sozinha. A casa ficou em silêncio, demais para o seu gosto. Desde que suas filhas nasceram, sempre havia ruído pela casa, correndo pelos corredores. No entanto, desde que três delas saíram, aquilo não parecia uma casa, mas uma das bibliotecas que Mary costumava visitar. Fixou seus olhos na lareira, já apagada, e suspirou fundo. Como se encontravam suas meninas? O visconde iria atendê-las com o respeito que mereciam? Esperava que assim fosse e que as três se comportassem adequadamente. O único que não suportaria seria que, depois da saudade que sofria por não poder estar com elas, voltariam com uma infinidade de escândalos em suas costas. Desviou o olhar para as cadeiras que haviam ao redor da mesa da sala de jantar e notou como sua dor aumentava ao observá-las vazias. Em noites como aquela, Anne e Josephine deixavam seus quartos e desciam para acompanhá-la. Costumavam conversar sobre qualquer assunto até o amanhecer e quando o resto de suas filhas aparecia, tomavam o desjejum conversando sobre o que haviam planejado fazer o resto do dia.
Apoiou as costas na janela e suspirou. Sentia falta dos gritos que oferecia a Josephine por ter perfurado outra janela ou por terminar com a valiosa porcelana de Randall. Sentia falta de pedir a Elizabeth que deveria mudar seu comportamento inadequado e sentia falta de aparecer na sala de pintura de Anne para admirar seu novo trabalho. Quantas vezes suplicou que dessem a ela algumas horas de tranquilidade? Muitas! No entanto, agora não queria, pois as usava para pensar em como se encontravam. A pequena soldado se adaptaria a uma vida repleta de protocolos femininos ou talvez o visconde permitisse continuar com seus habituais comportamentos masculinos? Seguiria as instruções Randall? Porque se fosse assim, tinha receio que dormiria e se banharia com a nova arma que lhe comprou. Só esperava que o visconde se mantivesse afastado de Anne para que não desse a Josephine a oportunidade de cumprir as ordens que seu pai lhe dera. E Elizabeth? Agiria de maneira adequada ou continuaria mostrando atrevimento? E Anne? Continuaria sonhando com ele? Se apaixonaria por esse homem?
Eram só perguntas e para seu desespero não encontrava uma única resposta. Somente as encontraria quando voltassem e para que isso acontecesse faltava pouco mais de três semanas.

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma pontada no estômago a fez apertar as mãos sobre aquela região do corpo. Continuava sem ter certeza de ter agido corretamente. Talvez devesse encontrar uma forma de romper o acordo com o visconde e não desistir tão rapidamente. Mas... que fez? Nada, porque os sonhos de Anne avisavam que não podia impedir aquilo que já estava previsto. No entanto, a dúvida sobre a escolha feita pelo fogo a assaltava a cada momento. Como poderia ser o visconde o homem destinado para Anne? Qual seria o motivo pelo qual Morgana mostrava a Anne que ele era o escolhido? A maldição de Jovenka era muito clara: o sangue contaminado voltaria a ser puro. Que tipo de pureza se referia? Teria entendido errado o juramento? Não, não tinha feito desde que os dois pretendentes de sua filha morreram, tal como sua avó anunciou. Então... porque o visconde, um homem de sangue azul, destruiria a maldição que sua filha suportava desde que nasceu? O que os Bennett escondiam? O que lhes aconteceu? Naquele momento lembrou uma notícia em que afirmavam que os marqueses, dezessete anos depois, reconheciam um jovem como filho legitimo. Segundo o jornal, foi roubado logo após o nascimento e não denunciaram o desaparecimento para não criar um escândalo social. Como poderiam manter em segredo semelhante atrocidade? A aristocracia era tão frívola? Como a marquesa foi capaz de suportar uma dor tão cruel? Sophia franziu a testa e suspirou profundamente. Nenhuma mãe aceitaria uma situação semelhante a menos que não fosse filho dela. Talvez essa fosse a verdadeira razão e não o sequestro. Era mais lógico deduzir que o falecido marquês de Riderland, com uma reconhecida reputação de libertino, mantivesse um idílio com uma mulher, talvez uma cigana, e o visconde era fruto desse romance. Quando a mulher anunciara ao seu amante que teve um filho dele, ele seria rejeitado pelo pai, como todos os bastardos que sua avó Jovenka teve, e o menino vivera com a mãe durante aqueles dezessete anos. O que os fez mudar de ideia? O acidente que sofreu a esposa do seu único filho vivo os incentivou a finalmente reconhecê-lo? Isso seria uma dedução bastante comum entre a aristocracia, pois eram incapazes de se separar do título de nobreza que haviam mantido por gerações. Talvez fosse essa a razão pela qual o falecido marques decidiu assumir a paternidade. Embora ainda houvesse uma questão não resolvida... por que a marquesa, que todo mundo descrevia como uma mulher frívola, aceitou a decisão de seu marido? Se sentira obrigada? Queria evitar uma humilhação social dessa maneira? O que quer que aconteça com a família Bennett, não importava mais, o único de deveria se preocupar era o motivo pelo qual sua mãe criadora provocou uma aproximação entre o visconde e sua filha.

Decidiu voltar para o seu quarto. Ainda podia aproveitar algumas horas de sono antes que Madeleine e Mary decidissem se levantar. Além disso, naquela mesma manhã se propôs a visitar Vianey para falar pessoalmente sobre a viagem de suas filhas com o visconde. Se queria evitar qualquer rumor inadequado sobre sua família, a baronesa era a pessoa ideal. Ela compreenderia melhor que ninguém e ajudaria a proteger a honra de suas filhas porque, se começavam a fofocar sobre a honra de suas meninas, mesmo que o visconde quebrasse a maldição, nenhum homem decente apareceria em sua casa para se comprometer com alguma delas.

O pensamento de vê-las casadas a fez sorrir. Que marido seria apropriado para a destemida Josh? Quem poderia conviver com uma mulher como Mary? Algum cavalheiro seria capaz de eliminar o orgulho de Elizabeth? E o que aconteceria com Madeleine? De acordo com sua visão, ela também encontraria o homem que a amaria tanto que faria desaparecer sua timidez excessiva. Como conseguiria? Quem seria? E, realmente existiam esses valiosos maridos? Porque de uma coisa tinha certeza; suas filhas eram muito especiais e não aceitariam qualquer homem.

Colocou a mão esquerda sobre o corrimão de madeira, pisou no primeiro degrau e prendeu a respiração quando ouviu fortes batidas que vinham da porta da frente. No mesmo instante, voltou até a entrada e permaneceu em silêncio para se certificar que tinha ouvido bem. Estava certa. Alguém tinha aparecido em sua residência e batia na porta com a aldrava. Sophia se olhou de cima a baixo. Não se vestia apropriadamente para receber ninguém àquela hora da noite. Além disso, se a razão pela qual tinha vindo a sua casa era seu marido, não podia fazer nada, pois não voltaria até o dia seguinte. Embora a pessoa que se encontrava fora batesse novamente, tomou a decisão de ignorá-la. Se fosse muito urgente, poderia recorrer a residência do doutor Flatman. Olhou para as escadas e suspirou. Por mais que desejasse, um estranho pressentimento a impedia de avançar e insistia que devia aceitar a visita. Mas... por quê? Quem seria?

?Tem alguém aí? ?Uma voz feminina finalmente perguntou. ?Vejo luz através das janelas. Por favor, preciso de ajuda. Sou a Sra. Reform e estou procurando pelo doutor ?insistiu.

Sophia, ao ouvir a voz de uma mulher virou-se e caminhou para ficar atrás da porta, mas não a abriu até ter certeza de que não era uma farsa para entrar na casa e assaltá-la. Quantas vezes os de seu sangue agiam no meio da noite? Centenas! Eram como vermes. Esperavam pacientemente que a casa de algum Sr. rico permanecesse desprotegida para assaltá-la. Sua própria avó agia nesses roubos como uma reivindicação.

?O doutor não se encontra nesse momento, precisou sair ?Sophia respondeu com cautela.

?Sabe quando volta? Vim até aqui porque um dos meus irmãos precisa de atendimento médico e tenho entendido que o Sr. Moore é o melhor médico que temos em Londres ?Valeria insistiu olhando para a porta e sem dar um só passo para trás.

Não estava disposta a sair sem uma pessoa que pudesse ajudá-la. Philip jamais esteve tão doente, nem prostrado em sua cama por mais de um dia. Isso indicava que sua convalescença não tinha nada a ver com uma ingestão soberana de álcool. Pela primeira vez em sua vida, ele realmente adoecera.

?Amanhã. Talvez possa encontrá-lo ao meio-dia... ?respondeu, revendo mentalmente o tom de voz que a mulher usou para falar com ela. Parecia desesperada, agitada e sincera. Mas... isso seria suficiente para confiar nela?

?Eu imploro. Meu irmão está muito doente e não sei a quem recorrer ?insistiu a Sra. Reform. ?Pode perguntar a Sra. Moore se pode me atender?

?Sou a Sra. Moore ?revelou ?garanto-lhe que deixarei meu marido saber que veio. Se tiver a gentileza de me explicar quem é o doente e onde mora, prometo que irá o mais breve possível ?Sophia sugeriu.

?Sua casa é a Kleyton House localizada na Mount Row. Ele se chama Philip Giesler ?Valeria esclareceu depois de um longo suspiro.

Ao ouvir o nome, Sophia arregalou os olhos e prendeu a respiração novamente. Seria a mesma pessoa que acompanhou o visconde dias atrás? Aquele que foi agredido por suas filhas na entrada? Quantos Philips Giesler poderia residir em Londres? E por que, tendo tantos médicos na cidade, aquela mulher aparecia na frente de sua porta?

?Por que escolheu meu marido se há outros médicos na cidade que podem atendê-la? ?Perguntou, depois de supor que o próprio Giesler lhe dissera para vir e procurá-la como pagamento pelo sofrimento que sofrera devido ao mau comportamento de suas filhas.

?Pode abrir? Não quero gritar, por favor. Além disso, seus vizinhos podem espreitar nas janelas e supor que estamos discutindo ?Valeria explicou com um pouco de serenidade.

?Sra. Reform, não estou apresentável. Como compreenderá, não esperava visita e...

?Estou sozinha, Sra. Moore. Não há homem ao meu redor e o cocheiro ainda continua no seu lugar ?informou. ?Só quero que me ajude. Conhece todos os médicos da cidade e, se explicar os sintomas que meu irmão sofre, poderá me indicar que médico é o mais adequado para curá-lo o quanto antes ?insistiu?. Suplico, tenha compaixão. Prometo-lhe que se me ajudar estarei eternamente agradecida e...

Valeria ficou em silêncio ao ouvir como a Sra. Moore começou a mover o ferrolho. Talvez nem tudo estivesse perdido. Talvez houvesse uma chance de descobrir por que Philip, em seus delírios, nunca deixava de mencionar um nome feminino e o sobrenome do médico.

?Entre, conversaremos aqui dentro ?convidou Sophia, vendo que, na verdade, seu rosto mostrava a mesma angústia que sua voz expressava.

Valeria aceitou o convite e entrou na residência. Mas não se moveu da entrada, embora a esposa do médico, depois de fechar a porta, entendeu a mão até o corredor da esquerda. Estava com pressa para voltar. Se o doutor Moore não podia atendê-lo, precisava com urgência descobrir quem o faria e isso atrasaria muito a sua volta.

?Sra. Moore, por favor, quem acha que posso pedir ajuda?

?É assim tão grave? ?Sophia a olhou com relutância. Talvez tenha entendido mal quando ouviu o parentesco que a unia com lorde Giesler, pois os dois eram muito diferentes. Onde o cavalheiro usava uma cabeleira tão loura como os raios do sol, o da mulher era tão escuro quanto os dela. Sem contar a tonalidade de seus olhos. Não havia nada que pudesse se assemelhar a ele. Estaria enganando-a? Seria na realidade sua amante desesperada?

?Sim ?Valeria respondeu apertando as mãos com força. ?Está há vários dias na cama. No começo pensei que sua última saída terminou pior do que esperava. Se é que me entende... Um homem solteiro, sem responsabilidades familiares e amantes da liberdade... Mas depois que apareci em sua casa, depois de ser informada pelos criados, para repreendê-lo, como uma irmã preocupada faria, descobri que não se tratava de uma embriagues soberana. Ele estava realmente doente.

?Como já lhe disse, meu marido não estará de volta até o meio-dia. O único que posso aconselhar é que vá à casa do Sr. Flatman. Certamente que o encontrará em sua casa, pois nunca comparece a uma emergência, a menos que seja exigido pela nobreza. ?Sophia apontou como alternativa.

?Mas o meu irmão não quer. Ele disse o seu nome ?revelou a Sra. Reform.

?Meu nome? ?Ela estranhou.

?Não, o de seu marido. Quando a febre aumenta muito e provoca delírios, murmura o sobrenome do seu marido. Por isso estou aqui. Acredito que ele deseja que o seu marido o visite.

Não podia contar a verdade porque parecia estranho até para ela. Quando Philip delirava, as únicas palavras que saíam de sua boca eram Mary e o sobrenome Moore. Como era lógico, perguntou sobre isso. Finalmente, depois de varias horas perguntando a conhecidos, descobriu que se tratava do sobrenome de um médico de Londres que morava fora da cidade, que era pai de cinco meninas e que uma delas se chamava Mary. Então deduziu que em sua inconsciência tinha se confundido, portanto tinha que ter mencionado o nome de Randall Moore em vez de se referir a uma de suas filhas.

Sophia confirmou sua suspeita ao ouvir a declaração. Já não tinha dúvidas que lorde Giesler queria que seu marido pagasse o trágico encontro que teve na manhã em que apareceu com o visconde. Talvez pensasse que, depois de ser atendido por ele, ouviria o que aconteceu e manteria em segredo o comportamento inapropriado de suas filhas, mas... o que poderia fazer se Ronald não estava?

?Prometo que meu marido irá à casa do seu irmão assim que voltar. Enquanto isso, para baixar a febre, aconselho que coloque panos mergulhados na água fria. Isso o acalmará...

Sophia ficou em silêncio quando ouviu um pequeno ruído no alto da escada. Olhou para cima e quando viu a camisola de Mary se escondendo atrás da parede, franziu a testa. Por que tinha levantado? Continuaria lendo apesar do castigo que lhe impôs? Será que nunca atendia suas ordens? Como podia fazê-la ouvir a razão? Que tipo de reprimenda seria adequado para uma menina como ela? Havia algo no mundo que a mortificaria tanto que a fizesse ver a razão? Que vingança seria apropriada? De repente, um sorriso maligno se desenhou em sua boca. Era uma ideia excessivamente maligna até para ela, mas... não queria dar-lhe uma lição? Mary jamais se negaria a atender um doente e se não confessasse quem era o paciente, desceria as escadas agarrando sua maleta sem se dar conta que vestia uma camisola. Seu sorriso perverso se alargou ainda mais ao lembrar a profecia de Madeleine: «Tinha visto Mary apaixonada, embora tentará deter os sentimentos que esse homem lhe provocará desde o momento em que se encontrem pela primeira vez». O que poderia perder? Se aquele homem não era o escolhido para Mary, pelo menos aproveitaria com a vingança. No entanto, a dúvida sobre o comportamento de sua filha a invadiu. O que aconteceria quando Mary descobrisse que o cavalheiro que deveria curar era o mesmo que não afastou seus olhos dela, mesmo que Josephine lhe apontasse com a arma? Possivelmente o envenenaria, ou o curaria primeiro para matá-lo depois. No entanto, se o destino voltava a cruzá-los... quem era ela para impedir?

Olhou para a Sra. Reform e adotou uma postura seria e tranquila. Se oferecesse a sua filha, precisava adotar uma atitude decidida, pois não poderia colocar em perigo a honra dela, mas também a reputação de seu próprio marido estava em perigo.

?Existe uma opção possível. Se estivesse em seu lugar, aceitaria sem duvidar um só segundo ?manifestou sem vacilar.

?Farei qualquer coisa, Sra. Moore! ?Valeria exclamou desesperada. ?Diga-me o que pensou e juro que não demorarei nem um só segundo.

?Mas deve me prometer que ela não permanecerá em nenhum momento sozinha com ele ?Sophia prosseguiu.

?Ela? ?Valeria perguntou arregalando os olhos.

?Sim, uma de minhas filhas, Mary. Ela acompanha meu marido em todas as suas visitas médicas. Ela curou muitos doentes e garanto que é tão habilidosa em medicina quanto seu pai. Ela descobrirá, se você considerar apropriado, o que acontece com seu irmão e atribuirá um tratamento enquanto meu marido volta.

?Tem certeza? ?E ali estava a resposta para sua pergunta! Seu irmão não estava perturbado pela febre, somente gritava o nome da pessoa que desejava ter ao seu lado. Como diabos sabia que a filha do médico poderia ajudar-lhe? Se conheciam? De onde? Quando?

?Tenho. Tudo que preciso saber é se você admite que uma mulher aja como médica sem importar...

?Pelo amor de Deus! Não vê que sou uma mulher? Acha que rejeitaria a ajuda de alguém, ou que seria capaz de menosprezar seu trabalho por não ser homem? ?Valeria retrucou ofendida. ?Te garanto que meu marido não seria quem é hoje se não tivesse casado comigo.

?Está certo, tudo bem que a chame?

?Com certeza!

?E me promete que zelara por sua honra? Tenha em mente que estamos falando de uma jovem solteira que permanecerá na casa de um homem solteiro e isso poderá causar problemas sem fim no futuro ?Sophia concluiu desconfiada.

?Sra. Moore, meu irmão precisa de um médico, não uma esposa ?Valeria garantiu com aparente indignação.

?Sendo assim, espere dez minutos. Subirei ao seu quarto e perguntarei se está disposta a...

?Sim! ?Mary exclamou do alto da escada. ?Vou! Coloco um vestido e desço em menos de cinco minutos ?acrescentou feliz.

?Mary Moore! Quantas vezes tenho que dizer que não deve espiar? ?A mãe gritou repreendendo-a.

?Milhares! ?Respondeu enquanto voltava correndo até seu quarto.

?Filhas... ?bufou Sophia. ?Por mais que cresçam, sempre serão crianças pequenas. Tinha esperança de que quando ficassem mais velhas mudariam de atitude, mas como pôde comprovar, não fizeram isso ?afirmou fingindo pesar.

?Eu tenho quatro e se forem como seu pai, teriam quarenta anos e continuariam sendo umas meninas extravagantes e teimosas ?apontou a Sra. Reform um pouco mais calma.

Enquanto esperavam a presença de Mary, Sophia fez uma investigação à Sra. Reform. Descobriu que era filha de uma espanhola e um alemão. Que tinham chegado à Londres fugindo da família do pai. Que tinha dois irmãos muito diferentes fisicamente e que tinha se casado anos atrás com Trevor Reform, o antigo dono do clube de cavalheiros Reform. Então, ela informou que lorde Giesler tinha chamado seu marido e Valeria contou-lhe a história do baronato que seu irmão devia ocupar na Alemanha.

?Mas como bem comentou, nunca crescem como se deseja e meu irmão é incapaz de aceitar o título ?Valeria comentou com pesar. ?Tentei de tudo... ?suspirou ?no entanto, essa atitude alemã que possui o impede de salvar o seu orgulho e assumir o que um dia herdará por direito.

Isso acalmaria a mãe? Por que não tinha parado de lhe fazer perguntas. Obviamente, tinha respondido todas. Não queria que pensasse que Mary se encontraria com pessoas sem escrúpulos. Precisava deixar claro que sua família era muito respeitável e que protegeria sua filha como se fosse uma das suas.

?Não se preocupe, certeza que em breve terá que desistir. Os homens são, por natureza, muito teimosos e tem que encontrar um incentivo para avançar esse passo que ambos se recusam a dar ?Sophia comentou, à alusão do baronato, com falso tom sereno e calmo.

Giesler era um barão alemão? Por isso seu marido fez referência ao tratamento de lorde? Os barões alemães possuíam as mesmas conotações que os ingleses? Tinha que assimilar muitas coisas depois dessa informação. Além disso, se a premonição de Madeleine estava certa, se lorde Giesler era o homem destinado para Mary... se tornaria uma baronesa inglesa ou alemã? Como agiria se alcançasse essa posição social? O que aconteceria com todos aqueles homens que a humilharam no passado? Se esqueceria deles ou encontraria uma maneira de se vingar? Um frio repentino fez com que os pelos do seu corpo se arrepiassem. Se isso acontecesse, a melhor opção era que partisse para a Alemanha, porque se ela ficasse, os cavalheiros que a desprezaram estariam em grave perigo...

?Já estou aqui! ?Mary gritou descendo as escadas.

Sophia a olhou de cima a baixo. Não podia repreendê-la porque não estava mais usando a camisola, mas usava o vestido azul que tinha colocado no dia anterior. Um que lhe dava a aparência de uma governanta, mas por causa da maneira como o tecido se agarrava ao seu corpo, não havia dúvida de que ela não tinha colocado o espartilho ou as anáguas. Mantinha o cabelo em um coque desastroso e em sua mão direita segurava a maleta que Randall a presenteou ao completar dezoito anos. Levaria dentro um frasco de cicuta? Porque se fosse assim, temia que gastasse essa mesma noite quando descobrisse a identidade do doente.

?Lembra querida, o que sempre comentei com seu pai ?ela disse suavemente enquanto a ajudava a vestir o casaco que tirara do armário.

?Boa noite ?primeiro saudou a mulher e logo se voltou até sua mãe com um olhar interrogativo. ?O pai me disse muitas coisas, pode ser mais especifica...

?Que não importa o paciente que precisa de atendimento, tem que fazer um bom trabalho ?lembrou antes de lhe dar um beijo na bochecha.

?Não sei por que diz essas coisas ?resmungou, corando rapidamente. ?Jamais me neguei a atender alguém.

?Espero que também não faça nesta ocasião ?Sophia insistiu puxando-a até a saída.

?Tem algum tipo de preconceito, Srta. Moore? ?Valeria interveio um pouco desconfortável ao ouvir as estranhas palavras da esposa do médico.

?Nem um pouco! ?Mary respondeu rapidamente, se colocando ao lado da Sra. Reform. ?É muito comum minha mãe me lembrar de que eu não devo ser descortês com as pessoas.

?Enquanto possa salvá-lo, não me importa o caráter que possua ?Valeria afirmou. ?Sra. Moore, boa noite. Garanto que sua filha estará em boas mãos.

?Obrigada, Sra. Reform, embora neste momento não tema por Mary, mas pelo doente ?Sophia garantiu.

?Mas mãe! ?Ela respondeu com raiva. ?Por favor, não vamos perder mais tempo. Preciso ver o paciente o quanto antes. Se não se importa, Sra. Reform, durante o caminho, me explica os sintomas que tem, essa conversa será mais que ouvir os lembretes morais da minha mãe. ?Boa noite, mãe.

?Boa noite, filha.

Assim que se despediram de Sophia, a duas andaram até a carruagem. A Sra. Moore permaneceu na porta até o veículo sair de seus domínios. Fechou a porta e suspirou fundo. A vida de sua segunda filha mudaria, a única coisa que podia garantir era se ela estava preparada para assumir essa mudança...

Mary se acomodou no assento e observou de canto de olho a sua acompanhante. Parecia tão preocupada que queria lhe dizer algo que pudesse acalmá-la. No entanto, ela não tinha o dom de tranquilizar as pessoas, mas de curá-las.

?Desculpe-me por tê-la tirado de sua casa a esta hora tão inapropriada, mas sua mãe, depois de lhe explicar o que aconteceu, insistiu que você é a mulher adequada para atendê-lo.

?Não foi problema nenhum, pelo contrário, sinto-me muito honrada por poder ajudá-la ?Mary respondeu, acrescentando um leve movimento com a mão enluvada ao comentário. ?Ficarei feliz em descobrir que doença seu marido tem e indicar-lhe o tratamento adequado.

?Meu marido? ?Espetou Valeria arregalando os olhos. ?Não é meu marido que está doente, mas meu irmão.

?Desculpe, devo ter entendido errado. De lá, não consegui ouvir bem suas palavras ?Mary comentou, ruborizando no mesmo instante. ?Às vezes, quando fico empolgada, não presto muita atenção.

?Não se preocupe, isso geralmente acontece comigo também. Acho que é muito comum mulheres inteligentes selecionarem o que as interessa.

Diante desse comentário, Mary relaxou e soltou uma gargalhada. Quando se recuperou, voltou a olhar a Sra. Reform e esperou que lhe revelasse o nome do seu irmão, mas ela se manteve em silêncio.

?E, a quem devo atender? ?Finalmente perguntou.

?Talvez o conheça, Srta. Moore.

?Mary, por favor, me chame de Mary.

?Obrigada, bem, o que disse Mary, possivelmente tenha ouvido falar sobre ele, porque é um homem bem conhecido nesta cidade. Trabalhou na Scotland Yard durante alguns anos, mas quando estava prestes a conseguir um cargo importante, se recusou a fazê-lo e decidiu se tornar um marinheiro ?declarou com pesar enquanto observava como Mary continuava negando com a cabeça.

?Confesso que sou uma mulher antissocial. Mal saio de minha casa e quando o faço não tenho entre os meus objetivos me relacionar com as pessoas que conheço, exceto se tiver que curá-las ?acrescentou espirituosamente.

?Entendo... ?Valeria apontou ainda mais intrigada. Se a moça não o conhecia, por que seu irmão não parava de chamá-la quando lhe subia a febre? Espalhou a saia do vestido para que não enrugasse, depois colocou as duas mãos no colo e olhou para a jovem sem piscar. ?Mas acredito que sim, que conhece meu irmão ?insistiu.

?Se me disser o nome, posso responder com mais certeza ?Mary declarou com a voz cansada.

Para que tanto mistério? Por que proteger sua identidade? Teria que atender um criminoso fugitivo da justiça? Seria um parente direto do próprio Gilles de Rais?[1]

?Meu irmão é Philip Giesler ?Valeria finalmente declarou.

Naquele exato momento, Mary sentiu o queixo cair e ouviu uma voz em sua cabeça gritar que preferia enfrentar um depravado como o Barão de Rais do que salvar o homem que a chamou de bruxa.


Capítulo I


?Sabe de quem estou falando? ?Valeria lhe perguntou ao observar o sorriso de desagrado que mostrou em seu rosto. ?O conhece?

?Vagamente... ?Mary murmurou.

Por isso sua mãe a recordou que devia atendê-lo como mais um? Ela sabia de quem se tratava? «Por todos os diabos!», gritou mentalmente. Quando voltasse falaria muito seriamente com ela e lhe deixaria bem claro que jamais atenderia, mesmo que estivesse a ponto de morrer, imbecis como lorde Giesler.

?De onde? ?Valeria insistiu, apesar do mau humor que a jovem demonstrava e do tom áspero que usou ao respondê-la.

?Há alguns dias, seis para ser exata, seu irmão apareceu em nossa casa junto com o visconde de Devon ?respondeu sem diminuir sua aspereza. ?Nós dois tivemos a oportunidade de nos conhecermos e conversar por um curto período de tempo...

Pouco, mas o suficiente para odiá-lo e desejar que apodrecesse no inferno. No entanto, essa parte da história não era apropriada para expor naquele momento. Para o bem dela e de seu futuro paciente, deveria se acalmar e mostrar um caráter afável, tal como seu pai insistia: «Pode ser a mulher mais inteligente do mundo, mas ninguém a respeitará se continuar se comportando de maneira tão irascível».

?Entendo... ?a Sra. Reform sussurrou fixando seu olhar na janela.

?Disse que está doente há quanto tempo? Que sintomas têm apresentado? ?Mary perguntou para tentar esquecer o ódio que sentia pelo paciente e se concentrar em descobrir a possível doença. Porque se tudo fosse uma mentira, se a fez sair de sua casa para continuar zombando dela, antes de três horas passadas, seu sofrimento seria real, assim como a terrível dor que apareceria em sua virilha.

?Dois dias. A febre não diminui. Tem tanto calor que saíram bolhas na sua pele. Delira, tem suores, não para de vomitar e faz movimentos involuntários muito bruscos. Antes de pedir ajuda na sua casa, seus olhos estavam em branco por causa do novo aumento de temperatura, por isso disse a vários criados que preparassem um banho de água fria. Espero que com isso acalme...

?Realmente ordenou tal insensatez? ?Mary disse horrorizada. ?Que absurdo!

?Desculpe? ?Valeria retrucou com uma mistura de surpresa e assombro com a súbita mudança de atitude. Estava chamando-a de estúpida por ter mandado fazer uma coisa tão frequente em estados febris? ?O que quer dizer com essas palavras Srta. Moore? ?Resmungou, adotando novamente uma atitude distante.

?Como lhe ocorreu tal incoerência? Uma pessoa com febre alta não pode entrar em uma banheira com água fria, mas morna e, uma vez que seu corpo se adapte a essa breve mudança de temperatura, se acrescenta gradativamente gelo, mas nunca de uma vez! ?Falou irritada.

?Bem, agora entendo porque sua vida social é tão escassa... ?murmurou em voz alta. ?Espero que os servos tenham sido mais sensatos do que eu e não o congelem antes da sua chegada.

?-Isso espero! ?Mary disse, cruzando os braços sobre o peito.

A conversa entre as duas mulheres cessou naquele momento. O silêncio reinou dentro da carruagem, embora ocasionalmente se ouvisse os grunhidos exasperados de Mary. Valeria não podia afastar o olhar dela e de se perguntar se seu irmão era consciente do verdadeiro caráter da mulher que ele invocou inconscientemente. Talvez quando se conheceram, a jovem em idade de casar, contemplou um homem tão bonito e galã, tirou todas as suas armas de sedução para apanhá-lo. Só esperava que, ao tratá-lo novamente, Philip entenderia que os escorpiões tinham menos veneno no ferrão do que ela em sua língua.

Uma vez que a carruagem estacionou na entrada da residência, o cocheiro abriu a porta para ajudar em primeiro lugar a Sra. Reform, no entanto, a filha dos Moore se esqueceu do bom protocolo e, depois de um movimento brusco, saltou para o chão sem observar a cara de espanto do empregado.

?Onde disse que se encontra seu irmão? ?Mary perguntou, agarrando a pasta com força.

?Não lhe disse ?Valeria garantiu mal humorada. ?Mas imagino que continua em seu quarto, onde o deixei antes de procurar por seu pai.

?Não há tempo a perder! Devemos impedir esse absurdo congelamento! ?afirmou, caminhando até a entrada sem esperá-la. Assim que chegou à porta, Mary pegou a aldrava e bateu até que um mordomo a abriu. ?Diga-me agora mesmo, onde se encontra o doente ?lhe perguntou assim que o viu. Entrou na casa sem ser convidada, rapidamente tirou o casaco, jogou no mordomo e olhou em volta tentando descobrir em qual lugar da casa deveria avançar.

Shals, o criado principal, fixou seus olhos cinzentos na Sra. Reform, quem apareceu depois na estranha, e perguntou-lhe com aquele olhar se deveria responder a sua exigência. Quando ela assentiu, respondeu:

?Em cima, terceira porta a direita. Se desejar que a acompanhe...

Não conseguiu terminar a frase porque Mary ergueu o vestido com a mão esquerda e subiu as escadas tão rápido que, antes de piscar duas vezes, já estava no andar de cima.

?Sra... ?disse a Valeria ?Quem é essa moça? Não será uma das amigas do Sr. certo? Já sabe que estamos proibidos de aceitar a entrada de mulheres de moral duvidosa.

?Não se preocupe. Não acredito que meu irmão a declare como amiga e tampouco é de moral duvidosa. Além disso, imagino que nem saiba o que essas duas palavras podem significar ?respondeu, oferecendo-lhe o casaco. ?É uma das filhas do doutor Moore que veio em seu lugar. Segundo me informou a esposa do médico, ela tem experiência suficiente para descobrir o que acontece com Philip e o atenderá até que seu pai apareça.

?Como disse? ?Retrucou Shals mais espantando se possível. ?Uma mulher médica? Tem certeza? Seu comportamento não me pareceu...

?Também não a achei muito adequada, mas se é capaz de descobrir o que acontece com Philip, esquecerei esse comportamento grosseiro e insolente que exibe com tanto orgulho. A propósito, sabe se poderiam colocá-lo na banheira?

?Acabaram de subir vários criados para levantá-lo da cama. Como bem sabe, as dimensões do Sr. são...

?Nem pense nisso! Deixem-no novamente sobre esse maldito colchão, bando de inúteis! ?Mary gritou com tanta força que Valeria e Shals a ouviram como se ela ainda estivesse no corredor.

?Meu Deus! ?O mordomo exclamou horrorizado. ?Continua dizendo que esta mulher é a certa para salvá-lo?

?Não ?garantiu antes de levantar o vestido com as duas mãos e subir os degraus o mais rápido que podia.

Quando chegou ao quarto, Valeria se apoiou no batente da porta para tomar ar. Enquanto sua respiração normalizava, seus olhos se cravaram dentro do quarto. Os três criados, quem tinham tentando mover o corpo de seu irmão, estavam ao pé da cama e olhavam para Mary como se ela fosse louca, pois nenhuma mulher sensata gritaria em uma casa desconhecida nem permaneceria em frente a um homem nu, embora o lençol escondesse a parte inferior de seu irmão. No entanto, Valeria ficou perplexa pela atitude fria da Srta. A filha do médico não o contemplava como uma mulher faria, mas como um médico que procurava a origem da doença que padecia seu paciente. Depois de tocar a testa, continuou com o peito. Suas mãos apalparam o peito de Philip sem nenhum tipo de sensualidade. Sensualidade? Aquela mulher não sabia o que era isso! Mas os olhos de Valeria se arregalaram e os três servos exclamaram horrorizados quando ela baixou os lençóis até os quadris. Os pelos loiros encaracolados de seu irmão ficaram descobertos. Colocou as mãos no rosto e deus graças a Deus que estava inconsciente, porque só culparia ela de tê-la levado ao seu quarto e que ela tomou certas liberdades inadequadas enquanto ele não podia se defender.

Sem afastar os olhos de Mary, notou como seus dedos largos se concentraram na parte da virilha direita. Com uma suavidade improvável apalpou durante um bom tempo, logo as afastou, andou para trás, levantou o rosto, olhou para os servos espantados e lhes perguntou:

?Onde estão os vômitos do seu Sr.? ?Como ninguém era capaz de respondê-la, pois não podiam falar por causa de seu espanto, ela começou a procurar o recipiente embaixo da cama. Quando o encontrou, pegou-o e levou até a luz da cabeceira. ?Desde quando está assim?

?Faz um dia ?Valeria respondeu entrando lentamente. ?Primeiro foram as febres e depois os...

?Se queixou de dor abdominal? ?Mary insistiu voltando para a cama com a bacia nas mãos.

Depositou-a no chão. Depois, apesar dos olhares reprovadores dos servos, colocou as palmas das mãos novamente na região da virilha afetada e justo quando seus dedos pressionaram essa parte com mais força, Giesler, que estava inconsciente até agora, gritou de dor.

?Parece que sim, se queixa... ?Valeria comentou sarcástica ao observar como seu irmão finalmente abria os olhos e agarrava com força a mão direita da jovem.

?Acalme-se, lorde Giesler. Sou Mary Moore ?começou a falar com ele ao descobrir que a olhava assombrado, como se achasse que estava vivendo uma alucinação. ?Sua irmã apareceu em minha casa para pedir ajuda ao meu pai. Como ele não se encontrava, vim no seu lugar. ?Puxou a mão, dirigiu-se a sua maleta e procurou pelo estetoscópio. Uma vez que o encontrou, voltou até o doente, colocou a campainha larga em seu abdômen e ouviu atentamente.

?Mary... ?Giesler sussurrou, apoiando novamente a cabeça sobre o travesseiro e incapaz de afastar os olhos dela.

?Chist! Preciso de silencio ?ordenou.

Philip observou-a atordoado até que Valeria se acomodou ao seu lado. Não querendo fazer nem um mísero barulho, para não desobedecer a ordem da mulher feroz, lentamente virou a cabeça até seu irmão. Ela encolheu os ombros e o olhou com simpatia, como se estivesse pedindo perdão por tê-la levado. No entanto, apesar do estado atordoado que Philip estava e da dor que percorria seu grande corpo, ele sorriu antes de desmaiar de novo.

?Acredito que ele tem a fossa ilíaca direita inflamada ?Mary comentou depositando o instrumento na maleta.

?E? —Valeria perguntou, pegando o pano que estava em uma mesa de cabeceira para limpar suavemente o rosto suado de Philip.

?Tem que fazer uma incisão nessa parte do corpo, cortar e extrair a fossa afetada, limpar bem o interior, cauterizar e costurar ?explicou, como se estivesse descrevendo uma tarefa tão simples quanto encher um copo de água embaixo da torneira.

?Como podemos aliviar a dor enquanto seu pai não chega? ?Valeria apontou, terminando a tarefa que estava fazendo.

?Não deveríamos esperar tanto. Se a fossa não estiver perfurada, há muita possibilidade que sobreviva, mas se estiver... aconselho-lhe que realize todos os preparativos pertinentes para um próximo funeral ?declarou com grosseria.

?Como ousa falar dessa forma, Srta Moore? Está se referindo ao meu irmão! Por acaso não tem compaixão? ?Clamou horrorizada por sua falta de tato.

?Sou uma mulher racional e sincera, Sra. Reform. Esclareço o que há e enfatizo que, se não agirmos rapidamente, a vida do seu irmão terminará em apenas três dias. ?Colocou as mãos na cintura e olhou com frieza. ?Não concorda com meu diagnóstico? Bem... corra! Procure o doutor Flatman para que verifique minha conclusão! Talvez seja muito tarde para ele... ?insistiu com mais crueldade do que deveria mostrar.

Por acaso estava desesperada para salvar a vida do homem que a chamara de bruxa? Por quê? Teria mudado de ideia ao ver como seus olhos azuis a observavam como se a idolatrasse? Havia em seu coração um pouquinho de piedade? Ou queria salvá-lo para depois lhe recordar que tinha um divida de vida com ela? O que quer que fosse, era a primeira vez que misturava sentimentos e trabalho...

?Está me dizendo que a vida do meu irmão está em minhas mãos? ?Valeria enfatizou se levantando do colchão.

?Não. A vida do seu irmão está nas minhas, porque serei eu quem realiza a intervenção. Você deve dar seu consentimento. Embora também possa esbofetear lorde Giesler até que aceite minha decisão ?afirmou virando até o paciente como se tivesse a intenção de lhe bater.

?Não se atreva a tocá-lo! ?Valeria explodiu andando até ela. ?Se fizer isso, garanto-lhe que não ficará um único fio de cabelo na sua cabeça.

?Não me importa ficar careca, Sra. Reform, caso não saiba, em menos de um ano vou usar outra linda cabeleira, mas se não operar seu irmão imediatamente, ele estará no subsolo, decompondo e alimentando todos os tipos de microorga...

?Maldita seja! ?Valeria gritou desesperada. ?O que quer que faça?

?Que consinta o que vou fazer ?Mary disse satisfeita.

?E se morrer durante a intervenção?

?Morrerá de qualquer maneira ?disse sem hesitar nem um único segundo.

?Está bem! Que todo mundo siga as instruções da Srta Moore! ?Valeria finalmente decidiu. ?Espero que não morra em suas mãos...

?Ele não vai ?Mary determinou antes de se colocar na frente de sua maleta e preparar todos os instrumentos que precisava para aquela operação apressada.


***

Valeria não podia acreditar no que via. Era tão improvável que mais de uma vez acreditou viver um pesadelo. Depois que a Srta. Moore ordenou acender todas as luzes que havia no quarto e que fechasse as janelas, pediu aos servos que colocassem duas mesas grandes em frente à lareira. Foi nela onde colocaram Philip. Então os obrigou a lavarem suas mãos em sete recipientes que havia cheio de água e sabão. Mas não se conformou com essa exaustiva limpeza, também os obrigou a borrifar suas palmas com um liquido que chamava desinfetante. Os lacaios fizeram isso sem questionar, porque ficou muito claro o caráter azedo e autoritário da mulher. Dois deles, que a olhavam como se fosse o próprio diabo, foram encarregados de limpar o sangue que caia no chão e de avivar o fogo. Quando tudo estava pronto, começou a trabalhar. Se até esse momento havia pensando que era uma pessoa única, o comportamento que manteve depois, confirmou. Enquanto que ela não podia permanecer de pé nem dois minutos ao presenciar a pequena incisão que fez no corpo de Philip, Mary nem piscou. Parecia que tudo ao redor deixou de existir para ela, embora falasse sem parar sobre certas descobertas cientificas sobre a operação que realizava. A jovem se concentrou no trabalho com tanta segurança e precisão que ficou fascinada. Nem em seus partos o médico que a atendeu foi tão firme e profissional! Não havia dúvidas, Mary tinha um dom e, por muito estranho que lhe parecesse, Philip sabia. Talvez por essa razão ele murmurasse tantas vezes seu nome. Mas... como e quando a descobriu? Falaram sobre medicina nesse primeiro encontro? Não, essa opção estava descartada, desde que seu irmão não tinha conhecimento sobre esse assunto. Além disso, a filha do médico não lhe agradou lembrar aquele momento, como se tivesse sido o pior de sua vida... Por que Philip sabia da incrível capacidade da mulher? Perguntaria sobre ela depois daquele dia? Por qual motivo? Esperava que, se ele se salvasse, respondesse a todas as suas perguntas, porque era a primeira vez que Philip lhe ocultava algo sobre mulheres e isso a fazia suspeitar que talvez esse encontro fora mais importante para ele que para ela.

Durante as quatro horas seguintes, Mary não foi capaz de afastar o olhar do corpo de seu paciente. Depois de sedá-lo, para o que teve que usar quase todo o clorofórmio que tinha, porque não tinha levado em conta as dimensões do paciente até que o ouviu gritar depois de apertar a ponta da escarpa em sua pele, fez a incisão na região e procurou a fossa ilíaca. Tal como pensou, pelo inchaço que apresentava a olho nu, não estava perfurada, os resíduos continuavam armazenados no pequeno apêndice vermiforme. Enquanto removia e cauterizava a borda com uma faca em brasa, falava com a desconfortável Sra. Reform sobre os descobrimentos egípcios e como registraram essa doença nas mumificações. Então mencionou os estudos que Lorenz Heriste realizou, um discípulo de Herman Boerhaave, e finalizou o monólogo cientifico com as pesquisas realizadas por Reginald H. Fitz, um famoso professor de anatomia patológica da Universidade de Harvard. Mas a única coisa que saía da boca da irmã o tempo todo era «que não morra», de modo que Mary deduziu que ela não ouviu uma única palavra de sua ampla e contundente exposição científica sobre a descoberta do apêndice inflamado.

?Agulha e linha ?pediu, uma vez que finalizou a limpeza por dentro.

?Aqui está ?respondeu o criado que havia permanecido ao seu lado em todo o momento.

?Desinfetou isto? ?Perguntou depois de segurá-lo e esticar o fio para que não tivesse nós.

?Sim, fiz tal como indicou ?informou, afastando-se rapidamente dela.

?Lavou as mãos antes de fazê-lo? Porque, mesmo que não seja visto a olho nu, nossa pele pode estar contaminada por...

?Garanto, Srta. Moore, que jamais tive minhas mãos tão limpas ?interrompeu a criada com relutância, repetindo todas as ordens sete vezes, como se não pudessem entendê-la a princípio.

Com um sorriso que cruzava o rosto, Mary começou a fechar a abertura enquanto a Sra. Reform finalmente se levantava da cadeira em que havia permanecido durante a intervenção. Quando finalizou a sutura, pegou o bisturi, cortou o fio em excesso e colocou-o na bandeja onde estava o pedaço de intestino removido.

?Agora só precisa de muito repouso. Deve tomar o remédio que deixarei sobre a mesa de cabeceira. Os banhos frios acabaram durante uma boa temporada. Recomendo que limpe seu corpo com panos em água quente e se aparecerem algumas crostas brancas em volta da ferida, tem que...

?Vai embora? Pretende deixa-lo assim? ?Valeria espetou chocada olhando para o corpo convalescente de Philip.

Reconhecia que a atitude da filha dos Moore fosse sublime e que a Sra. Moore tinha razão ao recomendá-la. No entanto, não permitiria que saísse tão cedo. Precisava que ficasse durante a noite. Ela, melhor do que ninguém, poderia atendê-lo quando acordasse.

?Meu trabalho acabou Sra. Reform. Agora cabe a vocês cuidarem do doente. Se seguir minhas instruções, em dois dias poderá se levantar e dez dias depois continuará com seu estilo de vida habitual ?respondeu retirando o suor da testa com a manga direita do vestido. ?Além disso, meu pai aparecerá em algumas horas para verificar seu estado. Se tiver alguma dúvida sobre...

?Você fica! ?Garantiu a irmã. Ao perceber que não havia usado o tom adequado para falar, pois as rugas em sua testa indicavam que jamais admitiria uma imposição, suavizou a voz. ?Srta. Moore, Mary, peço-lhe que não saia até ele abrir os olhos. Já descobriu que sou incapaz de me manter firme quando vejo sangue e se tenho que trocar o curativo ou limpar...

?A troca de curativo pode ser feita pelo meu pai dentro de alguns dias, e lembro que não é apropriado que permaneça desnecessariamente. Não tenho dúvidas de que seu irmão melhorará se seguir minhas instruções... ?Mary comentou visivelmente sufocada.

Não queria estar presente quando aquele titã loiro abrisse os olhos, preferia se manter distante do homem que a chamara de bruxa. Além disso, não podia perder tempo cuidando da pessoa que odiava. Era verdade que o salvara de uma morte certa, que tinha abrandado ao ver como ele a olhava, mas até aí chegava a sua benevolência. Quanto antes saísse daquela casa, antes poderia esquecer que o conhecia e que havia contemplado aquele imenso corpo nu. Como era possível que suas pupilas se fixassem em certas regiões indecorosas? Havia atendido muitos homens doentes, mas ele era diferente de todos eles. A largura de seu torso, de seus braços, a magnitude e a força de suas pernas... toda aquela aparência dignificava-o. Qualquer mulher, que desejasse ter filhos robustos e saudáveis, procuraria um marido como ele. Mas ela não seria essa futura esposa. Tudo o que queria era colocar alguma distância entre os dois e que sua mente esquecesse tudo o que havia observado.

?Se teme por sua honra, lhe garanto que ninguém desta casa falará sobre sua visita ?Valeria afirmou se aproximando dela.

?Honra? ?Mary perguntou divertida. ?Nunca me interessei por esse tipo de besteira! Sou a pessoa mais honrada do planeta, por isso ninguém é capaz de me suportar. Não se trata disso, Sra. Reform, está mais para privacidade. Seu irmão e você precisam de privacidade para realizar os cuidados apropriados. O que seu irmão pensaria quando me visse em seu quarto?

?Que salvou a sua vida. Só isso. E estará tão agradecido como eu estou.

?Mas não é adequado que uma mulher permaneça sozinha no dormitório de um homem ?Mary insistiu, limpando o sangue de suas mãos na bacia que um dos empregados aproximou.

?É puritana, Mary? Depois do que fez, tenta me convencer de que é uma mulher recatada? Porque se fosse, eu não teria suportado as quatro horas que a intervenção durou com tanta solenidade ?Valeria insistiu.

?Está recriminando mina atitude? Porque tenho que lembrá-la de que acabei de salvar-lhe a vida ?concluiu, assinalando Giesler com um dedo de sua mão direita.

?Não interprete mal minhas palavras, por favor. Estou e serei eternamente agradecida. Tudo que eu quero é que permaneça ao seu lado esta noite. Estou tão cansada, depois desses dias, não sei se posso agir corretamente. É por isso que suplico que me ajude. Sabe como me sentiria se depois de seu brilhante trabalho ele não se recuperar por minha causa? ?Valeria retrucou visivelmente preocupada.

?Aceitarei esse pedido como um elogio... ?Mary respondeu cruzando os braços sobre o peito. ?Mas insisto que não sou a pessoa adequada para cuidar do seu irmão.

?Pedirei a um criado para acompanhá-la em todos os momentos. Assim nunca estará sozinha e será capaz de lhe dizer tudo o que quiser ?Valeria informou-a um pouco mais calma. ?Se amanhã, quando seu pai aparecer, decidir que não deve continuar na residência, procuraremos outra pessoa para assumir o seu lugar.

?Não se trata de ficar sozinha com ele, mas sobre a reação que terá quando abrir os olhos e me encontrar ao seu lado ?Mary explicou estendendo os braços para o chão. Então voltou para onde Philip estava, coberto até o peito com um lençol que um dos servos havia colocado, e o observou em silencio. Faria a coisa certa ficando aquela noite? O que poderia acontecer? A princípio, depois de usar tanto clorofórmio, não acordaria até a chegada do novo dia, momento em que seu pai poderia se ocupar dele. Mas... e se acordasse? O que faria quando a visse? Olharia novamente para ela com ternura ou gritaria para que saísse?

?Meu irmão não vai julgá-la, Mary. Depois do que fez por ele, por que acha que reagirá negativamente? ?Valeria insistiu se aproximando dela.

?Lembra-se de uma das perguntas que me fez na carruagem? ?Mary continuou deixando Giesler para encontrar a Sra. Reform no meio do quarto.

?Agradeceria se fosse mais especifica, porque tudo que eu pensava antes de sua atitude, foi apagado da minha mente ?disse com sinceridade. Não mentia. Tudo aquilo que pensava sobre Mary desapareceu de sua cabeça ao vê-la agir.

?Me perguntou se nos conhecemos e eu lhe disse brevemente. Bem, garanto-lhe que o nosso encontro foi suficiente para eliminar qualquer amizade cordial entre os nós dois. ?Mary olhou de lado para Philip e suspirou. Parecia tão dócil naquela situação, que até ela duvidava que fosse um ogro, mas era.

?Tenho certeza que meu irmão esquecerá qualquer incidente que tiveram no passado quando descobrir que você salvou sua vida ?Valeria esclareceu indicando com a mão a saída, para que ambas saíssem juntas.

?Não estou muito convencida disso... ?murmurou caminhando até a porta. ?Você seria capaz de perdoar a pessoa que tentou matá-la?

?O que disse? ?Valeria retrucou arregalando os olhos e parando atrás dela. ?Queria matá-lo. Por quê?

?Porque me chamou de bruxa ?Mary explicou avançando rapidamente. Se a irmã começasse a gritar, era melhor que o fizesse fora do quarto para não despertá-lo antes do previsto.

?Faria sem pensar. Em defesa do meu irmão, tenho que lhe dizer que ele é muito atencioso com as mulheres, muito para meu bom entendimento... ?Valeria esclareceu, tomando novamente o caminho para fora. Ao fechar a porta, se colocou ao lado de Mary e a olhou por um momento. Por que a chamou de bruxa? O que aconteceu entre eles? Se quisesse conhecer a verdade e descobrir o motivo pelo qual seu irmão havia chamando-a dessa forma e porque sorriu ao descobrir que ela estava ao seu lado, tinha que se esforçar o suficiente para que entre elas duas crescesse uma pequena amizade. ?Me daria a honra de tomar um chá? Depois de tantas horas sem comer, estou faminta.

?Não gosto de chá, prefiro o café e se acrescentar a isso uns ovos mexidos e torradas, estarei encantada em acompanhá-la ?Mary disse parando no alto da escada.

?Vejo que não sou a única que tem fome ?Valeria afirmou sorrindo. ?Não se preocupe, o serviço é incapaz de dormir desde que meu irmão ficou doente e certamente a cozinheira ficará feliz em preparar tudo o que quisermos. ?Enlaçou o braço direito com o esquerdo de Mary e desceram as escadas juntas. ?Sabe? Philip é incapaz de sair de seu quarto sem primeiro tomar duas xícaras de café. Segundo me explicou, as pessoas que o tomam são mais inteligentes e ativas. E depois do que fez, penso que tem razão. E você é uma mulher muito lúcida e perspicaz.

?Tentando me elogiar, Valeria? Não pareço mais uma mulher tão horrível? Esqueceu meu mau caráter? Porque posso lhe garantir que não será a primeira ou a última vez que me comportarei de maneira tão grosseira. Como bem sabe, minhas habilidades sociais são bastante escassas, o que não me preocupa em nada.

Diante dessa afirmação, a Sra. Reform soltou uma risada alta, apertou Mary com mais força em direção a ela e avançaram até que pisaram no corredor.

?Depois de sua atitude, tenho que lhe dizer que possui mais qualidades positivas que negativas, embora tema que não está acostumada a esse tipo de bajulação em relação a sua pessoa, estou errada?

?Não sei muito bem o que responder a isso porque acho mais fácil enfrentar críticas do que elogios ?respondeu com sua habitual sinceridade.

?Então se acostume com isso, Mary. Se realmente salvou a vida do meu irmão, ele se transformará em seu fiel protetor e eu em sua principal admiradora. Acha que qualquer um de nós permitirá que voltem a menosprezá-la por realizar um trabalho que até agora só realizavam homens? Ninguém será tão tolo em lidar com a protegida de Giesler ?garantiu enquanto a dirigia para a cozinha.

?Se você diz... ?Mary declarou um pouco desconcertada.


Capítulo II


Tinha que admitir que a conversa que manteve com a Sra. Reform se mostrou muito agradável. Além das numerosas atenções afetuosas, que lhe fizeram desconfortável mais de uma vez por não estar a costumada a tanta cortesia, a conversa foi muito reveladora para ela. Descobriu que os Giesler procediam de uma casta de barões alemães, que o pai se apaixonou por uma cigana espanhola e que ambos saíram da Alemanha para viverem seu romance. Uma bela história que terminou com três filhos: Valeria, Philip e Martin. Este último não o conhecia pessoalmente, mas tinha ouvido falar dele pelo excelente trabalho como professor de matemática avançada na Universidade de Oxford. Aparentemente, era uma celebridade, apesar de ser tão jovem. Isso só aconteceu porque tinha nascido homem...

Pegou o vestido com as duas mãos e subiu novamente as escadas. Nesta ocasião não foi acompanhada pela Sra. Reform, pois lhe insistiu que fosse a sua casa para descansar. Tal como Valeria garantiu com autoridade, só ela poderia ajudar o paciente se ele piorasse. A princípio se negou a deixá-la sozinha, pois fez uma promessa a sua mãe. No entanto, depois de uma intensa discussão, concordaram que Shals, o principal mordomo de lorde Giesler, permaneceria ao seu lado durante toda a noite. Mary sorriu novamente ao lembrar o memento em que o servo entrou na cozinha e ouviu a decisão de Valeria. Se naquele momento Anne estivesse junto para contemplar aquele rosto, tê-lo-ia pintado entre gargalhadas. Jamais admirou olhos tão abertos e uma boca tão grande. Na verdade, não pretendia que agradecesse por ter salvo a vida do homem que pagava o seu salário, mas tampouco esperava que reagisse com tanto medo e surpresa, como se estivesse em frente ao próprio Lúcifer. O fiel empregado acreditava que, no meio da noite, ela mudaria de ideia e, depois de pegar seu bisturi, retalharia seu senhor da cintura até a garganta? Embora essa ideia parecesse agradável na manhã em que o conheceu, havia mudado de opinião. Talvez o fato de saber que suas mães tinham algo em comum ou descobrir que não era tão invencível como lhe pareceu naquele dia, suavizou seu temperamento. Quem teria imaginado que um homem com esse aspecto se encontraria apertando a mão da morte? Possivelmente seu sangue espanhol, o único legado da mãe, porque não tinha dúvida de que Lorde Giesler herdara o físico de seu pai, que o mantivera vivo até sua chegada. Ambos os pais haviam passado por situações muito parecidas: a mãe fugiu dos ciganos para se casar com um médico e a cigana espanhola com um barão alemão. Sem dúvida alguma, ambas as mulheres tiveram a sorte de encontrar os homens que as amariam e respeitariam até a morte.

Quando chegou ao patamar no primeiro andar, caminhou lentamente até o quarto onde passaria as próximas horas. Só tinha que respirar fundo e agir com naturalidade até que seu pai chegasse. Uma vez que ele confirmasse que o paciente estava bem e que evoluiria normalmente, sairia de lá sem olhar para trás. Não era bom para ela permanecer ao lado de um homem que havia desejado odiar depois de lhe salvar a vida e descobrir que tinham muitas coisas em comum.

Colocou a mão na maçaneta e virou-a devagar, para não fazer muito barulho. Os criados, exceto Shals, haviam se retirado para descansar e não queria tirá-los de seus quartos se perguntando o que havia feito desta vez a filha do médico. Ao abrir a porta, ao olhar para dentro do quarto, levou as duas mãos até a boca e a pressionou com força para que seu grito não se ouvisse. Por que diabos fizeram tal coisa? Se não falhava a memória, jurava que os havia ordenado que não movessem o recém operado até que acordasse? Bem, eles a ignoraram! Os lacaios, aqueles a quem lavara as mãos tanto que pôde observar como alguns pedaços de pele morta caíram no chão, ergueram o grande corpo de seu paciente para colocá-lo no confortável colchão. Por acaso estava trabalhando com um bando de teimosos? Não eram capazes de entender suas palavras? Bem, terminariam compreendendo cada letra! No dia seguinte, assim que a Sra. Reform aparecesse, pediria que convocasse uma reunião com os servos. Uma vez que todos estivessem em silencio e atentos as suas palavras, escolheria uma linguagem muito simples para que pudessem compreender melhor as ordens.

Obrigou-se a se concentrar no bem estar de seu paciente. Andou pelo quarto pisando com força e não parou até se posicionar ao lado direito da cama. «Verdammt![2]», exclamou horrorizada ao descobrir que seus dedos, por mais que esticasse seus braços, de onde estava não alcançava o curativo, porque o haviam deitado exatamente no centro da imensa cama. Mas como podiam ser tão inúteis? Não deduziram que ela tinha que subir no colchão para tocar sua testa ou para verificar se a ferida não havia sido aberta ao deslocá-lo? Não! Como poderiam calcular uma lógica tão simples? O único que desejavam era que seu senhor acordasse confortavelmente em sua cama enorme, sem se importar com a inconveniência que a pessoa que salvara sua vida encontraria durante a noite. Por acaso não podia proteger sua honra? O fato de que Valeria mostrasse que sua presença deveria ser mantida em segredo para o bem de todos, não lhes dava o direito de tratá-la como se ela não estivesse. Depois de bufar como um cavalo ao final de uma interminável corrida, seguiu em direção a lareira, onde se encontrava um caldeirão com água limpa e quente. Colocou as mãos e tirou rapidamente ao sentir como sua pele queimava. Olhou com raiva para o paciente, como se estivesse rindo dela e voltou a resmungar. Sim, essa reunião com os empregados deveria se realizar o quanto antes e quem não acatasse suas ordens, ela mesma expulsaria a patadas da residência.

Irritada com a inépcia dos lacaios, ela voltou para a cama para garantir que o paciente não sangrasse. Só faltava que depois do que aconteceu nesse dia, lorde Giesler morresse depois da sua intervenção. O que comentariam aqueles que sempre zombaram da sua inteligência e capacidade? Não suportaria uma humilhação semelhante e seu pai teria que procurar outro capitão de navio que não levasse somente Anne a França, mas ela também. Olhou para a porta, que ainda permanecia fechada, e deixou de respirar, para aguçar o sentido da audição. Depois de comprovar que não havia ruído ao seu redor, subiu com muito cuidado na cama, se ajoelhou sobre o colchão, afastou rapidamente o lençol do corpo de Giesler e cravou seus olhos no curativo. Tinha várias manchas de sangue nele, mas eram normais depois de uma operação desse tipo. Talvez aqueles que o moveram foram mais atentos do que pensou. Assim que confirmou que o curativo continuava firme na cintura, apoiou a mão direita sobre a cama para descer. No entanto, seus olhos seguiam fixos no imenso e forte peito de Giesler. Como havia deduzido antes, era um homem bastante robusto e bonito. Poderia classificá-lo até como atraente, embora naquele momento precisasse de um bom banho para eliminar o suor que tinha emanado do seu corpo. Sua mata de cabelos loiros, que cobria desde seu peito até a cintura, possuía uma tonalidade mais escura que a de seu cabelo, permanecia preso à pele pela transpiração. Então reviu seus ombros, admitindo que o volume deles permanecia de acordo com a solidez de seus braços. Valeria não tinha dito que acompanhava o visconde em suas viagens? Bem, a cor de sua pele e a musculatura confirmavam que não passava as longas viagens protegido em um camarote. Sem dúvida alguma, se transformaria em um corsário vulgar uma vez que zarpassem. Pela diferença de tom entre o peito e a cintura, não tinha dúvidas de que lorde Giesler mostrava seu grande peito sem pudor, fazendo com que o sol e a brisa marinha alcançassem sua pele. Entendia o motivo pelo qual a cigana espanhola se apaixonou pelo barão alemão a primeira vista. Se seu filho tivesse herdado o físico paterno, tal como Valeria disse, não haveria mulher que resistisse a um homem tão atraente. Exceto ela, claro. Pois era imune a sedução masculina. Afastou o olhar do peito e fixou em seu rosto. Seus traços viris se acentuavam com a barba loira que cresceu desde que adoeceu. Seria grosseiro como o caráter que ofereceu no dia que se conheceram ou seria tão suave quanto o toque do lençol? Intrigada para descobrir que sensação tinha, levou os dedos de sua mão direita até o rosto de Philip e o acariciou lentamente. Surpreendentemente, ele virou a cabeça para a palma da sua mão quando sentiu o contato e, embora tivesse que retirá-la rapidamente, para o caso de ele acordar, a manteve até que ouviu a porta abrir.

?Srta Moore... ?disse Shals ao encontrá-la naquela posição tão pouco adequada. ?O que está fazendo? O senhor está acordado?

Dissimulando o espanto que lhe causou ser descoberta dessa maneira tão afetuosa, esticou o lençol para cobrir o pescoço e saiu da cama com menos delicadeza do que quando subiu.

?Estava confirmando que, ao movê-lo, a ferida não se abriu ?explicou com uma serenidade fingida. Colocou os pés no chão e deu vários passos para trás.

?E fez isso? ?Perguntou o mordomo entrando no quarto com uma enorme poltrona em suas mãos.

?Por sorte não. Mas foi imprudente movê-lo tão depressa ?Mary respondeu, se afastando o suficiente para que o criado colocasse a pesada poltrona ao seu dela. ?Para quem é isto? ?Perguntou curiosa.

?A Sra. Reform, antes de sair, me pediu que subisse a poltrona mais confortável que nosso senhor tem em seu escritório ?respondeu depois de deixá-la no chão e colocar as mãos nas costas, como se tivesse se machucado ao transportá-la.

?Dói? ?Mary disse se aproximando dele. ?Não deveria tê-la trazido sozinho. Deveria pedir ajuda a outro lacaio. ?Antes de ouvir a resposta de Shals, andou até o caldeirão quente que estava em frente à lareira, mergulhou um pano e, aguentando a alta temperatura, voltou para onde o empregado estava. ?Tire seu casaco e suba a camisa, por favor. Isto acalmará a dor.

?Mas... mas... ?ele gaguejou.

?Ou faz por vontade própria ou lhe garanto que não me importará tirá-la eu mes...

?Está bem. Farei o que me pede ?desistiu. Apesar do desconforto que sentiu, não só se separando de seu traje na frente de uma mulher, mas também pela indisposição em sua cintura, tirou o paletó e levantou a camisa para o meio das costas. Shals fechou os olhos quando notou um leve alívio quando Mary colocou o pano em sua pele.

?Não quero que você interprete mal minhas palavras, mas você está velho demais para fazer semelhante esforço ?alegou pressionando o pano úmido sobre a pele.

?Sempre fala dessa forma, Srta Moore? ?Shals estalou olhando por cima do ombro. Vendo que ela estava sorrindo, como se não se importasse com a pergunta mordaz, ele também sorriu.

?Como disse a Sra. Reform, sou uma pessoa muito racional e sincera. –Com a mão direita pegou a do mordomo e a colocou sobre o pano, então fez o mesmo com a outra. ?Aguente por mais alguns minutos. Se ainda continuar doendo, posso te dar um analgésico que tenho na maleta.

?Obrigado, com isto será o suficiente ?Shals respondeu depois de se virar para ela. —Posso fazer-lhe uma pergunta?

?Pode fazê-la, mas não prometo que a responda ?disse antes de circundar a cama, se aproximando de Giesler novamente, alongando seu corpo até que pudesse pegar seu pulso e confirmar que era adequado.

?Como aprendeu tudo o que sabe? ?Perguntou sem poder afastar o olhar dela. ?Seu pai a ensinou como se fosse um homem?

O sorriso que havia mostrado até esse momento, desapareceu. Levantou o queixo e olhou para o criado como se quisesse fuzilá-lo.

?Por acaso acredita que as mulheres nasceram sem cérebro e que a função dos homens é criá-las a sua conveniência? ?Disse levantando a voz.

?Não! Não! Por favor, Srta Moore, não interprete mal minhas palavras ?declarou Shals em voz baixa. ?Juro que não quero magoá-la ?argumentou, afastando o pano de suas costas.

?Disse para não tirá-lo ?repreendeu quando viu que, devido ao nervosismo, ele havia desobedecido a sua ordem.

?Sinto muito... outra vez ?Shals declarou acatando a ordem de Mary enquanto abaixava a cabeça, envergonhado.

?Tem filhos? ?Mary continuou falando enquanto voltava a poltrona que havia trazido. Se sentou e levantou o queixo para continuar observando o mordomo.

?Não.

?Então deduzo que é absurdo explicar as decisões que meu pai tomou depois de ser pai de cinco filhas ?se recostou na poltrona, cruzou os braços e encarou o paciente, que ainda estava descansando tranquilamente.

?Tenho sobrinhas, se isso lhe serve de algo ?Shals explicou passando atrás da poltrona para chegar até a lareira.

Se o pano quente acalmava um pouco a sua dor, imaginou que estar em frente ao fogo, faria desaparecer. Além disso, aquele lugar era ideal se a Srta Moore sofria outro ataque de raiva por seus comentários inapropriados.

?Como seus pais se comportam com elas? ?Mary perguntou, virando na poltrona o suficiente para observar o servo.

?Nascemos em uma família que sempre se dedicou a servir, Srta Moore. Pode concluir que minha irmã e meu cunhado as instruem para continuar essa tradição ?explicou com cautela.

?Felizmente para nós, nossos pais têm uma visão mais precisa do futuro de suas filhas ?Mary suspirou.

E ela também agradecia ao bom senso que ambos possuíam. Nem sua mãe nem seu pai teriam educando-as para se tornarem as futuras esposas de senhores odiosos que não as valorizassem. Único objetivo para jovens burguesas ou aristocratas. No entanto, graças a uma educação tão liberal, as cinco puderam desfrutar de algo que poucas mulheres possuíam: a felicidade. Como seriam suas vidas se tivessem sido instruídas sob a absurda opressão social? Tediosa, com certeza, e todas tinham lutado para conseguir a liberdade que precisavam.

?Fico feliz por você ?Shals comentou ocupando finalmente uma poltrona sem encosto que estava do seu lado direito. ?É muito estranho descobrir que alguns pais não são influenciados pelos costumes que nos cercam.

?Meu pai sempre teve uma visão diferente da vida ?Mary continuou um pouco mais relaxada. ?Desde que éramos meninas, nos ensinou a cuidar de nós mesmas e aceitou o caráter com o qual nascemos.

?Em seu caso, o amor pela medicina, certo? ?Shals insistiu e devido à calma de sua dor e ao tom suave da mulher, começou a relaxar.

?Não pense que foi fácil admitir meus interesses. No começo ele estava relutante em me ensinar tudo o que sabia, mas com o tempo lhe mostrei que minhas habilidades são adequadas para tal função ?explicou com orgulho.

?E afirmo-o ?o mordomo garantiu, fixando seus olhos em Giesler. ?Confesso que estou impressionado.

?Pela operação? ?Mary retrucou rindo. ?Não foi nada... Um corte longo, um mais curto, remover, limpar e cauterizar.

?Diz isso com tanta normalidade que dá a sensação que qualquer um pode fazê-lo e não é assim. Srta Moore, tem que compreender que fez algo maravilhoso e incrível. Tenho certeza que nenhum médico poderia ter realizado uma intervenção urgente com a serenidade que você manteve em todo o momento. Graças a Deus, a Sra. Reform, depois de ouvir as palavras que o senhor pronunciou em seus delírios, foi buscá-la.

?O que disse? ?Mary perguntou se inclinando para frente, para observar melhor a expressão no rosto de Shals.

?A senhora não lhe disse? ?O mordomo respondeu com certa inquietação ao deduzir que havia cometido um grande erro.

?A senhora falou em procurar meu pai, Randall Moore, mas não me disse que Lorde Giesler mencionou meu nome em seus delírios febris ?declarou com surpresa.

?Não! Não! Não me referia ao seu nome ?Shals mentiu ?mas seu sobrenome. Meu senhor, não parava de repetir o sobrenome de seu pai. Por isso a senhora foi a sua busca.

?Já percebi... ?comentou enquanto voltava a se recostar na poltrona e fixava seus olhos no paciente. Não lhe teria ocorrido falar sobre ela, certo? Porque se fosse assim, esperaria que se curasse para deixá-lo doente de novo.

?Como descobriu, tão rapidamente, a doença do meu senhor? ?Shals, ao confirmar que suas palavras a haviam relaxado novamente, mudou de assunto. Não desejava se envolver em um problema em que se confrontaria com o caráter daquela moça e do homem ao qual servia há vários anos, porque a única coisa que conseguiria seria uma demissão iminente.

?Conto a versão entendida, que abrange desde a época egípcia ou se conforma com o momento em que apalpei meus dedos na inflamação? ?Mary disse divertida.

?Com queira. Lembre que temos que permanecer acordados toda a noite e minha única tarefa é ficar com você neste quarto ?Shals respondeu com o mesmo tom jocoso.

?Sendo assim, começarei com os estudos que se realizaram depois de algumas descobertas em certos túmulos egípcios...

Durante um pouco mais de duas horas, Mary explicou sem parar tudo o que conhecia do assunto: seus descobrimentos, quem os estudou, suas conclusões e como os resolviam durante diferentes séculos. Em várias ocasiões o mordomo se aproximou dela para servir-lhe um copo de água fresca, mas ela não percebeu esse detalhe de cortesia. Mary estava incrivelmente emocionada porque era a primeira vez que alguém a escutava falar sobre medicina com atenção e até fazia perguntas sensatas. Se sentiu tão confortável que terminou confessando tudo o que lhe perguntava sobre sua infância: o dia em que seu pai a descobriu com um livro de medicina, os gritos de Shira ao descobri-la dissecando o corpo de um gato morto, as contínuas ameaças de sua mãe com seus livros, as reuniões de medicina que assistia. Falou tanto e se encontrava tão satisfeita que não reparou em Giesler exceto quando este emitiu um leve gemido. Nesse instante, Shals abandonou rapidamente a banqueta na qual permaneceu e se aproximou dos pés da cama enquanto observava como ela o atendia.

?O que acontece ?perguntou inquieto.

?Nada estranho ?ela respondeu depois de tocar sua testa e verificar que seu estado era normal. ?O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar. ?Deixou a cama, se dirigiu até a mesa de cabeceira onde havia deixado o copo que Shals enchia continuamente e voltou até Philip.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo... ?enfiou os dedos da mão direita dentro do copo, molhou-os e, depois de levantá-los, colocou-os sobre a boca de Giesler.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

?A Sra. Cheap tem um unguento a base de gordura animal que usa para que as mãos não rachem. Se quiser, posso pedir-lhe para...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaico. Terá mais que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção ?comentou com certo tom de amargura.

?Srta Moore, não me interprete mal, te suplico. Só desejo facilitar em tudo que possa seu excelente trabalho. Imagino que seja um pouco incomodo subir na cama do meu senhor, se ajoelhar ao seu lado e se inclinar até sua boca para umedecê-la com seus próprios dedos ?Shals explicou surpreso ao descobrir que ela era tão inocente que não era cuidadosa com a imagem que oferecia. Mais que um médico hidratando os lábios de um doente, parecia uma concubina fazendo alguma brincadeira erótica no seu cliente.

?Olhando a partir dessa perspectiva, parece que estou fazendo uma coisa horrível e tudo que pretendo é...

Mary ficou muda ao sentir uns dedos apertando em torno de seu pulso direito. Continuava olhando Shals, que já não expressava assombro, mas pavor. Tampouco fixava seus olhos nela, mas os dirigia até o lugar do colchão onde se encontrava lorde Giesler. Mary tragou a saliva e virou lentamente sua cabeça em direção ao rosto do homem que, inexplicavelmente, já havia acordado. Quando seus olhares se cruzaram, o coração paralisou. Aquele homem voltava a olhá-la como no dia em que se conheceram. Não havia ternura sem seus olhos, senão ódio e raiva. Por que diabos não lhe deu mais clorofórmio? E... de todas as maneiras possíveis para encontrá-la, teria que ser dessa maneira? O que passaria por sua cabeça ao vê-la sobre sua cama e ajoelhada ao seu lado? Pensaria que começaria a chorar como uma amante dramática ao ver a vida de seu amor em perigo? Por que Shals não falava? Por que não lhe oferecia o atiçador da lareira para que ela pudesse bater na cabeça dele e deixá-lo inconsciente de novo?

?Senhor... Milorde... ?Shals tentou finalmente dizer ao ver como lorde Giesler olhava a Srta Moore. ?Ela... é...

?Quem lhe salvou a vida ?Mary garantiu antes de fazer um movimento brusco com a mão, para se livrar do aperto, e descer da cama rapidamente.


Capítulo III


Não podia se mexer. Era incapaz de separar os cílios para observar quem se encontrava ao seu lado. Sua mente estava completamente adormecida e seu corpo parecia ter perdido toda a força. Não tentou nem desejou realizar nenhum esforço, pois pressentia que não conseguiria. Com os olhos fechados e imóvel, tentou lembrar o que havia acontecido. Mas não conseguiu nada, exceto que dias atrás se encontrava muito indisposto e que, de repente, seu corpo não se mantinha em pé. Em que dia da semana estava? Tinha perdido também a consciência? Quando? Respirou fundo, aplacando lentamente a angustia que sentia ao se sentir tão fraco. Pelo menos estava em casa, em seu quarto. A maciez característica do seu colchão e o cheiro do seu perfume atestavam isso. Deixando de lado a incerteza do que poderia acontecer, se concentrou nas vozes. A princípio parecia distante, mas com o passar do tempo ficaram mais nítidas e próximas. Duas. Ao seu lado permaneciam duas pessoas. Uma sem dúvida alguma era Shals. Poderia reconhecer sua voz, mesmo que ele estivesse trancado em uma caixa de metal. No entanto, se concentrou na outra. Uma mulher. Sim, aquele tom suave, mas ao mesmo tempo estridente, apenas uma fêmea poderia oferecê-lo. Conteve novamente a respiração, acalmando qualquer som que ele mesmo produzisse, para descobrir de quem poderia ser. Não teria ocorrido a Shals a ideia horrível de levar suas antigas amantes para cuidar dele, certo? Se ele tivesse tomado essa decisão, sua posição estava em perigo.

?Por que pensou em dissecar o pobre animal? ?Ouviu perguntar a estranha que, pela proximidade de sua voz, devia estar muito perto.

?Por curiosidade ?ela respondeu antes de soltar um sorriso suave. ?Precisava ver com meus próprios olhos o que escondia embaixo do pelo e da gordura. Além disso, estudar um coração na imagem de um livro não é o mesmo que tê-lo em suas mãos.

?Descobriu?

?Sim, até que Shira gritou horrorizada. ?Ela se divertiu ao lembrar aquele episódio de sua vida. —De acordo com ela, estava cometendo uma barbárie, então fui forçada a deixar o corpo e correr sem parar até chegar ao meu quarto.

?Imagino que sua mãe a castigou ?Shals deduziu.

?Somente até meu pai chegar. Quando expliquei a razão pela qual fiz isso e mostrei a ele todas as anotações que havia feito em um caderno pequeno, a punição acabou imediatamente. Daquele dia em diante, ele me ajudou a satisfazer minha curiosidade científica. Mas não me permitiu, até que completasse dezoito anos e depois de me presentear com a maleta que trouxe hoje, acompanhá-lo em suas consultas médicas.

?Atendeu aos doentes nessa idade tão jovem? ?Shals perguntou surpreso.

?Não. Eu apenas observava a atitude do meu pai e ouvia com atenção todas as suas explicações. No entanto, tenho que lhe assegurar que a grande maioria dos conhecimentos que possuo, consegui através dos livros que tenho lido sobre medicina.

?Você é uma mulher muito especial, Srta Moore.

?Obrigada ?ela respondeu, aceitando o elogio com prazer.

«Srta Moore...» Philip sentiu como seu peito se comprimia ao ouvir aquelas palavras. Seria ela? A bruxa de cabelos escuros tinha ido a sua casa para curá-lo? Por quê? Quem lhe havia pedido ajuda? Porque aceitou o pedido depois do terrível episódio que viveram dias atrás? Tentou se levantar para confirmar que não era uma alucinação, que sua mente distorcida não o enganava, mas continuava fraco, muito até mesmo para levantar um dedo. Assumindo que a única coisa que poderia fazer era ouvir com atenção a conversa da filha erudita do Dr. Moore, se concentrou em não perder nenhuma palavra. No entanto, uma pontada aguda de dor em sua cintura o fez rosnar, chamando a atenção de ambos.

?O que aconteceu? ?Ouviu Shals perguntar.

?Nada de estranho. O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar.

Philip percebeu como o colchão se inclinou ligeiramente para a sua esquerda. Depois disso, uma mão macia e quente tocou sua testa.

Mary...

Ela subiu na cama para confirmar que não estava piorando. Se deixou levar pela sensação de prazer que notou na leve carícia. Nunca se sentiu tão tranquilo e protegido por uma pessoa. Sempre foi ele quem velava pela segurança dos outros. Mas naquele momento, sua figura desamparada estava sob a proteção da mulher a quem ele gritou e admirou, em partes iguais. Ele apertou mais as pálpebras quando percebeu que estava se afastando. Uma estranha frieza percorreu seu corpo, causando um tremor intenso. Até suas vísceras reivindicavam essas carícias tão relaxantes. Não demorou em voltar. Para seu prazer, Mary ficou ao seu lado novamente.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo...

Tudo o que uma vez descreveu como maravilhoso desapareceu de sua mente quando sentiu a suavidade dos dedos molhados tocando seus lábios. Queria gemer de prazer, mas permaneceu quieto e calado. Não queria quebrar um momento tão terno, tão esplêndido. Possivelmente seria o único momento em que ela se comportaria de maneira tão afetuosa porque, uma vez que descobrisse que havia acordado, a mulher árida e gélida retornaria.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

Seu ferimento, o que ela mencionou, não sangraria. O que estava sangrando era sua alma. Porque lá estava ela, a mulher que jogou aqueles rolos de metal, saciando sua sede com os próprios dedos. Esse ato poderia defini-lo como o maior bem-estar que ele poderia sonhar? Talvez ele tivesse morrido e sua visão da vida eterna fosse ter aquela bruxa ao seu lado que ele não podia esquecer desde que a conheceu.

?A Sra. Cheap tem uma pomada à base de gordura animal que ela usa para evitar que as mãos rachem. Se desejar, posso pedir-lhe para que me...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaicos ?interrompeu-o?. Terá mais do que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção.

«Não!» Philip quis gritar com a opção que Shals lhe oferecia. Ele não queria que ela se afastasse dele, ou que seus lábios fossem borrifados com qualquer coisa, menos a água fresca de seus dedos. Ele precisava que ela continuasse com aquele ato íntimo, para tê-la por perto, sentir o perfume que ela exalava e a suavidade de seus dedos molhados.

Shals continuou falando. Ele explicou que não era apropriado que ela adotasse uma certa postura. Que postura seria? Estaria desconfortável? A inquietação tomou conta dele ao pensar que ela sofreria alguma doença por sua culpa. Muito lentamente, ele separou as pálpebras. A princípio, sua visão não era clara. Pelo contrário, parecia ter uma teia de aranha sobre as pupilas. Ele piscou várias vezes até alcançar a nitidez que desejava. Quando a viu, sentiu que não apenas sua alma estava sangrando, mas também seu coração. Mary estava ajoelhada na cama, estendendo a mão para a boca, hidratando-a, tal como explicava a Shals. Lentamente, seus olhos se desviaram para o peito feminino escondido sob um vestido que ele não conseguia distinguir claramente sua cor. Preto... talvez azul. Seus braços longos e delicados estavam nus, porque em algum momento decidiu enrolar as mangas até os cotovelos. A visão daquela pele esbranquiçada parecia requintada, atraente e tremendamente maravilhosa. Se estava morto, não tentaria voltar ao mundo dos vivos, pois o que vivia era ideal para ele. No entanto, justamente quando Shals percebeu que era capaz de observá-los, deduziu que sua situação idílica havia chegado ao fim. Ele lentamente levantou a mão esquerda para o pulso de Mary, agarrou-a e ela parou de falar.

Seus olhos se encontraram e se entreolharam por um momento. Ele queria transmitir através deles a felicidade que sentia ao encontrá-la ao seu lado, para cuida-lo. Mas o medo e a confusão mostrados pelo olhar de Mary o surpreenderam.

?Sr.... milorde... Ela é...

As palavras de seu mordomo ouviram-nas longe, como se não estivesse ao pé da cama, mas a 160 quilômetros de distância. Não quis prestar atenção à desculpa que Shals ofereceria ao encontrá-la em uma postura tão comprometedora. Tudo o que ele desejava era continuar contemplando a imagem perfeita de Mary: ao seu lado, em sua cama, acariciando sua boca com os dedos, saciando sua sede... Esse sentimento de felicidade se tornou em pavor quando percebeu sua mudança abrupta de atitude. Ela voltava a levantar o muro que os separou naquele dia.

?Quem salvou sua vida.

Manifestou em um tom de voz que Philip odiou. Lutou até libertar a mão de seu pulso e se afastou da cama, de seu lado. Continuou a olhá-la. Não podia afastar os olhos dela. Precisava observar todas as expressões que mostrava seu rosto. Surpresa, alegria, tristeza, compaixão? O que seria? Por qual escolher?

?Shals... ?murmurou lentamente. ?A... água... ?terminou de dizer.

O mordomo se aproximou rapidamente da cama, pegou o copo no qual Mary colocara os dedos e, quando ia lhe oferecer, ela gritou de horror.

?Nem pense em fazê-lo!

?Srta Moore, o senhor está me pedindo...

?E lhe dará, mas não dessa. Certamente que está contaminada depois de colocar meus dedos.

?Duvido muito que esteja depois de como foi lavado ?Shals apontou com um pouco de diversão.

Enquanto Mary estava em frente à lareira, onde podia observar claramente o paciente e permanecer distante, a criada esvaziou a água do copo na bacia e voltou a enchê-lo do jarro que havia sobre a mesinha. Se aproximou de lorde Giesler, segurou-lhe a cabeça e com muita delicadeza lhe deu de beber.

?Obrigado... ?ele disse uma vez que saciou sua sede. ?Shals, me ajude a sentar.

?Srta Moore, ?ele começou a dizer olhando para ela com os olhos arregalados ?acha que é uma boa ideia fazê-lo?

?Não. ?Garantiu indulgentemente. ?Precisa ficar deitado mais algumas horas.

O suficiente até que seu pai aparecesse e ela pudesse sair dali. Não podia enfrentar de novo esse olhar ameaçador. Só de pensar que continuava a odiá-la, a amarga e ressentida Mary voltaria para causar outro grande escândalo.

?Ficarei satisfeito se levantar um pouco minha cabeça. Não quero ficar o tempo todo olhando para o teto. ?Philip solicitou, a modo de queixa, a seu empregado, que acabou concordando com esse pedido, apesar de ouvir como a mulher bufava. ?O que aconteceu comigo?

?Um milagre! ?Shals exclamou dando um passo para trás, depois de acomodar o travesseiro.

?Que absurdo! ?Mary comentou, virando-se para não mostrar a raiva que tinha ao ouvir uma palavra tão estúpida para ela.

?Milagre? ?Philip retrucou olhando para a figura feminina. ?O que você quis dizer?

?Milorde, está acamado há pouco mais de dois dias. A Sra. Reform ficou ao seu lado esse tempo todo. Tentou curá-lo, mas, admitindo que precisava da ajuda de um médico, foi procurar o Dr. Moore. No entanto, ele não pôde comparecer e, em vez disso, a Srta Moore veio. Ela... ?Shals respirou fundo, olhou para a jovem e falou com orgulho, como se fosse seu próprio pai. ?Ela descobriu rapidamente que doença sofria e agiu imediatamente. Ela o operou, senhor. Ela salvou sua vida...

Giesler não tirou os olhos dela em nenhum momento. Algo dentro dele cresceu tão intensamente que seu peito expandiu. Felicidade? Agradecimento? Não sabia ao certo em que consistia essa emoção que inclusive lhe proporcionava forças para se levantar. Mas ele ficou parado, olhando-a sem piscar. Se ela descobrisse que estava começando a melhorar, iria embora e não estava disposto a se separar da mulher tão rapidamente que, rudemente, lhe dava as costas.

?Tinha a fossa ilíaca inflamada. ?Mary começou a dizer, olhando para o fogo. ?Tudo o que fiz foi tirá-la do seu corpo antes que fosse tarde demais.

?Pelo amor de Deus! ?Shals exclamou novamente. ?Explica como se fosse uma coisa muito simples e não foi. Sua intervenção durou pouco mais de quatro horas e posso garantir-lhe que, em nenhum momento, a Srta Moore diminuiu sua vontade de salvá-lo.

?Não preciso que me lisonjeie. ?Ela recriminou, ainda de costas para Giesler. ?Qualquer médico teria realizado essa operação com a mesma capacidade e eficiência que eu.

?Mas falamos de uma mulher... ?Shals sussurrou a seu senhor, comentário que fez Philip sorrir. Não só por afirmar algo evidente, mas pela forma temerosa de dizê-lo. Assustava-o? Conhecia o caráter especial da filha do médico?

Sem apagar o sorriso do rosto, ele continuou a admirá-la até seus olhos oferecerem uma imagem que ele nunca esqueceria. Se sua mente nunca parasse de mostrar a ele o momento em que se conheceram, e como o tecido de sua camisola se encaixava em sua figura, o fato de ficar na frente do fogo e que a luz das chamas atravessasse o tecido de seu vestido, concedeu a ele uma nova e esplêndida visão de suas pernas e quadris. Ela não usava anáguas? Por quê?

?Diga-me o que aconteceu ?Philip disse para Shals.

?Desde o início? ?estalou o mordomo se acomodando na cadeira onde Mary havia ficado antes que acordasse.

?Sim ?Giesler garantiu sem desviar o olhar daquela imagem espetacular.

Tal como pediu, Shals contou-lhe com todos os detalhes o que tinha acontecido desde que o encontraram caído no quarto. Os cuidados oferecidos por sua irmã, febre, vômito e convulsões. Evidentemente, ele não fez referência às palavras que evocou durante seus delírios. Mas, para dar uma explicação lógica do motivo pelo qual a Sra. Reform foi procurar o Dr. Moore, indicou que um funcionário havia ouvido que o médico seria o mais adequado para ajudá-lo, dada a fama que adquirira em Londres. Nesse momento Shals advertiu que Mary pegou o atiçador, o levantou e logo moveu as brasas com certa beligerância. Ele não quis perguntar o motivo pelo qual ela estava realizando esse ato brusco, decidiu continuar lhe falando sobre a saída de sua irmã para a residência do doutor e a chegada desta com a Srta. Moore. Explicou como gritou com os funcionários que se propunham a banhá-lo em água fria, como se aproximou dele e o espanto que todos mostraram quando a ouviu explicar que doença estava sofrendo. Narrou de maneira engraçada o momento em que ela forçou os servos a lavar as mãos em caldeirões diferentes e como insistia que fossem borrifados com um líquido que ela guardava na pasta. Philip não sorriu ao escutá-lo. Seu rosto estava rígido e seus olhos estavam fixos nela. Descobrir que havia tomado uma decisão tão importante, apesar de ambos não terem sido cordiais naquele dia, o deixou atordoado. Ele não tinha dúvida de que os rumores sobre seu intelecto eram verdadeiros, assim como afirmou aquilo que concluiu depois de investigá-la: os homens, que zombavam dela e a humilhavam constantemente, agiam dessa maneira porque a temiam. Eles estavam muito conscientes de que ela poderia superá-los, mesmo com os olhos fechados.

E isso que tinha crescido nele, que ainda não podia definir, aumentou.

?Obrigado. ?Lhe disse quando Shals concluiu a história. ?Te devo minha vida, Srta. Moore.

?Bobagem! ?Exclamou finalmente virando-se para ele. ?Não me deve nada. Como disse a seu mordomo, qualquer pessoa em meu lugar teria agido de maneira semelhante.

?Mas você enfrentou com valentia a Sra. Reform ?Shals interveio. Ao observar o rosto desconcertado de seu senhor, esclareceu: ?Sua irmã queria esperar o Sr. Moore, mas a Srta. insistiu em agir rapidamente. Além disso, lhe garantiu que morreria se não intervisse imediatamente.

Mary notou como suas bochechas coravam. Não arderam pelo calor do fogo, mas pelo embaraço que estava sofrendo. Aquele homem, imaginando que estava fazendo um ato de bondade para com ela, a descreveu como uma pessoa obstinada, teimosa e incapaz de aceitar a decisão da irmã do paciente. Outra característica que deveria adicionar à sua extensa lista de defeitos. Era melhor resolver o problema de uma só vez. Não podia suportar, nem por um momento mais, tantos elogios desnecessários ou daquele olhar hermético oferecido pelo homem que lhe salvara de uma morte certa.

?Como observei que está muito melhor e que o seu mordomo pode atendê-lo adequadamente, descerei ao primeiro andar. Já amanheceu há algum tempo e estou certa de que a Sra. Reform aparecerá em breve.

?Não! ?Philip gritou ao observar que ela se dirigia para a porta. Esse ligeiro movimento fez que lhe doesse a ferida. Ele colocou as mãos naquela área do corpo e olhou para ela novamente. ?Por favor... ?Sussurrou.

?Não se preocupe ?comentou Shals?, eu mesmo descerei para recebê-la. Você pode seguir atendendo Lorde Giesler. Agora que acordou, ele mesmo lhe dirá onde lhe dói e poderá lhe administrar o remédio que guarda na maleta.

?Vai me deixar sozinha? Não se lembra da promessa que fez à Sra. Reform? ?Mary insistiu com os olhos arregalados e colocando suas mãos em ambos os lados da cintura.

?Não corre nenhum perigo, Srta. Moore. Como pode ver, meu senhor, é incapaz de lhe fazer mal algum e sobre o escabroso assunto de permanecer a sós com um cavalheiro, não tem por que se preocupar. Ninguém nesta casa falará disso depois de salvar a vida do homem que paga seus honorários, lhe garanto.

?Mas... Mas... ?ela tentou dizer.

Shals parecia ter ficado surdo de repente. Depois de fazer uma leve reverência a Philip, caminhou decidido para a porta, fechou depois de sair e uma vez que já não puderam observá-lo, sorriu.


***

Quanto tempo passou desde que eles ficaram sozinhos? Talvez tenha sido apenas por alguns segundos, mas para Mary pareceu que tinha passado uma eternidade. Durante esse breve período não tinha se movido nem um palmo de onde ficou, antes da abrupta saída de Shals. Ele tentou fixar o olhar na porta, na lareira, no chão, mas acabou olhando para o rosto pálido e doentio. Embora Lorde Giesler não parecesse confortável, pois tampouco desviou o olhar dela. Seus olhos se mantiveram imóveis, como se o clorofórmio que lhe administrou não o deixasse movê-los para nenhuma outra área do quarto. Pegou as mãos e torceu-as com força. O que devia fazer? Faria bem se quebrasse aquele silêncio constrangedor?

?Srta. Moore... ?Philip sussurrou enquanto tentava mover a cabeça.

?Não o faça! ?Mary ordenou-lhe com um grito. ?Você não ouviu o seu mordomo? Acabei de operá-lo! ?Insistiu irritada.

?Sim, mas segundo as suas palavras, a intervenção foi muito simples. Por esse motivo, deduzi que...

?Deduções? A sério? Após a quantidade de anestésico que lhe dei, acha que sua mente é capaz de deduzir algo claramente? ?Continuou irritada. — O que precisa fazer é ficar parado por mais algumas horas.

?Quantas?

?Quantas o quê? ?Retrucou caminhando até ele com relutância.

?Quantas horas você acha que serão apropriadas? ?Esclareceu Philip, imensamente satisfeito ao ver como ela voltava a seu lado.

?Eu imagino que quarenta será mais que suficiente. ?Se Colocou no lado direito da cama, cruzou as mãos pelo peito e o olhou esquiva.

?Estou com calor... ?disse Giesler depois de pensar rapidamente uma alternativa que a obrigasse a tocá-lo de novo.

?Pode afastar o lençol, se desejar ?respondeu sem diminuir essa atitude zangada e distante.

?Mas me disse que não me movesse, que permanecesse quarenta...

Poderia rir? Não. Embora desejasse fazê-lo, não era apropriado, pois Mary acabaria cobrindo o rosto com o lençol para que não o observasse nem falasse mais. Por esse motivo, permaneceu calado, gostando de assistir enquanto pegava o pano com as pontas dos dedos e deslizava lentamente até a cintura.

?Melhor? ?Retrucou voltando a posição anterior.

?Água.

?Quer mais água? ?Perguntou arregalando os olhos.

?E remédios. Segundo declarou Shals, devo tomar...

?Cale-se por um momento! ?Mary exclamou desesperada. ?Não diga nem mais uma palavra. Vou dar-lhe a pílula[3] e esse maldito copo de água.

Fazendo movimentos mais bruscos do que deveria, se virou para a maleta, procurou o frasco onde tinha os comprimidos e pegou o copo de água.

?Não tente se mexer, eu te ajudarei. ?Philip a obedeceu. ?Passarei meu braço direito embaixo da cabeça. Precisa manter uma inclinação adequada para que o medicamento não fique preso na sua garganta. Se fizer isso, poderia morrer de asfixia ?comentou com sarcasmo.

?Sei que não permitiria que me acontecesse uma coisa tão horrível ?apontou Philip antes que lhe colocasse a cápsula na boca.

?Não tenha tanta certeza ?resmungou enquanto lhe dava de beber.

Não havia dúvida. Estava no céu e a mulher que ele chamou de bruxa era seu anjo. Sentir a suavidade da pele desse braço feminino em sua nuca, despertou-lhe uma incrível sensação de prazer e bem-estar. Quantas amantes deslizaram suas mãos pelo seu corpo? Dezenas! Quantas delas lhe causaram tanto prazer? Nenhuma. Aquela harpia de olhos azuis e cabelos escuros lhe provocava, com seu mau humor e seus atritos esquivos, uma satisfação inigualável.

Fechou os olhos quando ela deslizou seu braço para se afastar. Honestamente, nada poderia ser comparar. Talvez fosse um efeito colateral do clorofórmio que ela o fez inalar, ou talvez tudo fosse produto daquele período de castidade que se auto infringiu depois de conhecê-la. Fosse o que fosse, precisava senti-lo milhões de vezes mais.

?Obrigado ?lhe disse em voz baixa, quando Mary voltou a manter certa distância entre eles.

?Como disse? ?Retrucou estreitando os olhos.

?Agradeço, Srta. Moore. Mas entendo que não pode me ouvir claramente porque se afastou demais ?respondeu, dissimulando o estado de frenesi que se apoderou dele ao confirmar que encurtava essa separação bruta.

?O ouço perfeitamente, lorde Giesler. Só queria ouvir seus agradecimentos novamente ?respondeu mordaz. ?É bastante paradoxal que você, o homem que me chamou de bruxa em minha própria casa, me mostre tanta gratidão.

?Me jogou alguns tubos de metal. Queria me machucar com eles ?se defendeu.

?Não fiz isso? ?Retrucou ironicamente. Levantou as sobrancelhas escuras e esboçou um sorriso perverso enquanto colocava as mãos na cintura novamente.

?Não ?respondeu Philip. Se deleitando com aquele rosto maravilhosamente diabólico.

?Uma verdadeira lástima! ?Exclamou divertida antes de estalar a língua. ?Porque meu único objetivo naquele dia era machucá-lo.

?Para quê?

?Para que nunca me esquecesse ?respondeu de forma arrogante.

?Não fiz isso ?garantiu, olhando-a sem piscar.

As palavras e a expressão em seus olhos fizeram Mary se sentir intimidada, algo que geralmente não acontecia com facilidade. Mas aquele titã, com um corpo esbelto, cujo tronco bronzeado se mostrava descaradamente diante dela, começou a quebrar todas as barreiras que ela havia construído contra o sexo masculino. Que diabos tinha de especial? Por que seu coração batia loucamente? Não começaria a brotar seu sangue cigano naquele momento, certo? O que lhe disse Anne antes de partir para a cerimônia de casamento de Natalie Bennett? «Quando o sangue de Arany se libertar da pressão a que o submete, esquecerá tudo o que leu em seus amados livros e se tornará uma mulher apaixonada».

?Posso lhe pedir um favor, Srta. Moore? ?Philip perguntou, ao perceber que o olhar de Mary mostrava mais confusão do que medo.

?Quer mais água? Quer que o cubra novamente com o lençol? ?Respondeu ironicamente.

?Não. Minha sede se acalmou e garanto que estou com muito calor. Se não estivesse ao meu lado, afastaria imediatamente esse maldito lençol ?apontou sinceramente.

Comentário que a ruborizou, porque a fez lembrar o que estava escondendo debaixo do tecido.

?O que deseja? ?Quis saber, caminhando vários passos mais para trás.

Não devia permanecer tão perto. Não podia sentir nada. Seu coração precisava se acalmar de uma vez. Por que sua mente não agia? Onde estava seu autocontrole? E seu raciocínio feroz? Acaso haviam desaparecido? Que sangue possuíam naquele momento suas veias o Moore ou o Arany? Quando diabos seu pai chegaria?

?Vê essa cômoda que há no lado direito da lareira? ?Philip apontou com o queixo.

?Se pensa que vou me tornar sua empregada, está muito equivocado. Como bem sabe, meu único propósito tem sido...

?Srta. Moore, pode acatar, pelo menos uma vez na vida, uma ordem sem replicar? ?Philip resmungou.

?Por que devo fazê-lo?

?Porque não posso me mexer.

?O que me pedirá depois? ?Insistiu, franzindo a testa.

?Nada, juro por minha honra ?ele garantiu.

?Está bem! ?Mary sucumbiu caminhando em direção a cômoda. Uma vez que ficou na frente dela, olhou para ele. ?O que faço agora, Lorde Giesler? ?Acrescentou cantarolando.

?Abra a primeira gaveta e levante o lenço vermelho que encontrará à sua esquerda ?ele indicou. Embora não fosse conveniente para ele se mover, apoiou os cotovelos no colchão e, suportando a tremenda dor que esse esforço lhe causou, se inclinou o suficiente para vê-la. Como agiria? Se surpreenderia ao descobri-lo ou iria lançá-lo novamente? O que pensaria dele? O acusaria de ser louco e sairia correndo de lá? Com os olhos fixos nela, prendeu a respiração enquanto ao observa-la abrir a gaveta. Quando Mary levantou o pano, ficou parada e contemplou silenciosamente o que encontrou. ?Não me disse que sua única intenção era lembrá-la pelo resto da minha vida? Pois aí tem a prova, Mary. Não a esqueci, nem vou...

?Lorde Giesler ?Shals interrompeu depois de bater na porta duas vezes e abri-la ?O Sr. Moore acaba de chegar. Deseja recebê-lo?

?Sim, claro. Estávamos esperando por ele ?Philip respondeu sem desviar o olhar dela, que, ao ouvir o mordomo, bateu a gaveta e pulou para trás.


Capítulo IV


Shals se afastou para deixar o médico passar. Uma vez que este entrou no quarto seu olhar se dirigiu, em primeiro lugar, para ela. Respirou aliviado ao ver que permanecia frente à lareira, afastada do lorde. Que Mary tomara a decisão de operá-lo com urgência, quando era consciente de que podia esperar um pouco mais sem que corresse perigo, não lhe provocou tanto torpor como saber que se encontrava no quarto de um homem sozinha. Mas tudo o que havia imaginado desapareceu de sua cabeça ao vê-la tão afastada do paciente. Mary não era como Elizabeth, que colocava sua honra em risco constante. Sua segunda filha era tão fria quanto um bloco de gelo e, por mais atraente que o homem fosse, jamais o olharia de outra maneira que não fosse o de experimentar com ele alguma teoria médica nova. No entanto, não lhe passou despercebido o estupor que exibia. As bochechas queimavam pela proximidade do fogo ou pela emoção que devia sentir ao operar uma pessoa pela primeira vez sem o seu consentimento? Não ousou perguntar... O melhor era não saber mais, além do que seus velhos olhos cansados observavam. Com um passo lento, ele se aproximou de sua filha e depois de fazer uma breve revisão de suas roupas, confirmando as palavras de sua esposa, a cumprimentou.

?Bom dia, filha.

?Bom dia, pai ?ela respondeu.

Esgotado. Mary percebeu que seu pai estava bastante cansado, apesar de apresentar uma imagem decente e correta. Ela não tinha dúvida de que sua mãe o esperara na porta e antes que ele pudesse dar um pequeno passo dentro de sua casa, lhe teria dado a volta, teria arrumado a gravata e a camisa, enquanto lhe explicava o que tinha acontecido. Tinha certeza que quando ouviu lorde Giesler, Mary, doença e residência na mesma frase, nem mesmo seu cansaço o teria impedido de comparecer. Esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao imaginá-los divagando sobre sua conduta quando descobrisse a identidade do homem que devia salvar. Temeriam por sua vida? Não a sua, senão a do paciente. Se assim fosse, deveriam respirar tranquilos porque, nesse momento, não desejava matar ao presunçoso que a chamou de bruxa antes de lhe atirar uns rolos metálicos. Ao recordar esse dia, voltou a ficar tensa. Por que diabos havia guardado um dos objetos que lhe jogou? Por que o escondia sob um tecido de seda? E, como teve o descaramento de mostrá-lo? Queria humilhá-la ou talvez desejava que visse com seus próprios olhos a prova do delito? ¿ Não pensaria que o impacto do rolo originou sua doença, certo? Se acreditasse naquela hipótese absurda, era mais idiota do que pensava.

Enquanto ela divagava em silêncio, Randall atravessou o quarto para ficar ao lado de Philip, exatamente onde sua filha havia passado a noite. Seus dedos ainda estavam entrelaçados na alça da maleta, como se não quisesse se separar dela. Olhou novamente para Mary, depois contemplou o paciente e falou com sinais visíveis de medo:

?Bom dia, milorde. Desculpe a demora. Garanto-lhe que vim assim que fui informado por minha esposa. Como se encontra?

?Muito melhor, Sr. Moore ?Giesler respondeu um pouco confuso com a atitude distante que o médico lhe ofereceu a sua filha.

Mas claro, ele não sabia que ideias o casal considerou sobre Mary e sua maldade quando descobrisse a verdadeira identidade do paciente.

?Imagino que se encontra muito dolorido ?Randall disse depois de relaxar.

Pelo menos não tinha lhe arrancado a língua. Talvez tivesse adotado o comportamento de um médico e não o de uma mulher desprezada, como Sophia pensava. Ele nunca tinha visto sua esposa tão preocupada com a vida de alguém ou rezando para sua mãe criadora para mantê-lo seguro. Lentamente, ele se virou para a mesa e apoiou a maleta pesada.

?O normal após a intervenção que a Srta. Moore realizou ?respondeu com certo sarcasmo. Esperava que suas palavras eliminassem a possível inquietude do médico, mas não foi assim. A velha figura de Moore ficou tensa como uma corda de violino.

?Vou inspecionar a área ?lhe disse no momento em que suas mãos se libertaram da pesada mala de couro preto. Abriu-a e tirou uma tesoura. ?Tenho que tirar o curativo, milorde.

?Por quê? ?Philip retrucou estreitando os olhos.

?Porque preciso ter certeza do estado em que se encontra ?explicou depois de olhar para Mary rapidamente.

?Respiro, falo coerentemente e percebo facilmente a dor que irradia da ferida. Não tenho mais febre e me sinto muito mais forte do que antes. Isso não são sinais suficientes para confirmar que, graças à sua filha, me encontro bem? ?Apontou mordaz.

?Não se trata disso, Milorde ?comentou Mary se aproximando da cama. Mas parou o passo quando seu pai levantou a mão esquerda para ela.

?Tenho que confirmar que o trabalho que minha filha fez foi correto.

?Foi ?Philip garantiu categórico.

Mary não conseguia abrir mais os olhos diante da surpresa causada pelas palavras de lorde Giesler. O que ele pretendia agindo dessa maneira tão irritante? Recusaria a ajuda de seu pai? Por quê? O clorofórmio o deixou tão atordoado que não conseguia pensar com sensatez?

?Não duvido da capacidade da minha filha ?Randall expôs levantando o peito. ?Acredite quando lhe digo que colocaria a minha vida nas suas mãos sem hesitar. Mas caso não esteja ciente disso, Mary não possui a licença médica que lhe dá o poder de agir como tem feito. Se não trabalhou bem, se cometeu um pequeno erro, as repercussões futuras que teria seriam terríveis. Todo mundo falaria de sua ação impetuosa, o desastre que cometeu e a tragédia que Londres sofreria depois de perder um membro distinto da alta sociedade alemã. Quer que minha filha seja condenada por assassinato quando tudo o que ela fez por você foi um ato de misericórdia?

?Disparates... ?Giesler resmungou. ?Sua filha trabalhou perfeitamente. Ninguém falará sobre o que aconteceu hoje à noite aqui. Mas no caso hipotético de que aconteça, me tornarei seu feroz defensor.

?Não o fará se morrer ?Ela interveio mais espantada do que nunca.

Não havia dúvidas. Mary afirmou, depois de ouvi-lo, que os possíveis efeitos colaterais da anestesia eram horríveis. Todos os pacientes reagiam de maneira diferente: alguns pulavam sobre os colchões como se tivessem percevejos no corpo, outros gritavam como se vivessem no tempo de Neandertal, outros se tornavam crianças pequenas, que se consolavam chupando os dedos. No entanto, o caso de lorde Giesler foi a coisa mais insana que ela já vira. Ele só precisava sair da cama e empunhar uma espada, como se fosse um cavaleiro medieval, para proteger a honra de sua esposa!

?Penso como você, milorde. No entanto, tenho que verificar seu trabalho ?reafirmou veementemente. ?Posso cortar de uma vez os curativos ou deseja continuar essa conversa absurda? ?Acrescentou derramando sobre as tesouras e suas mãos um líquido incolor.

?Faça tudo o que precisa para confirmar o bom trabalho de sua filha ?disse finalmente.

Enquanto observava como rasgava as ataduras, Philip teve que admitir que Mary havia herdado o comportamento ousado de seu pai. Nenhum homem teria se dirigido a ele com insolência por temor a uma possível retaliação de sua parte. No entanto, lá estava ele, cortando o curativo, removendo o tecido de seu corpo e verificando o ferimento sem pestanejar depois de dar a entender que ele não estava em condições de pensar com lucidez.

?Você usou catgut[4] como fio de sutura? ?Randall perguntou sem olhar para ela enquanto sentia em volta do corte, confirmando que não havia deixado espaço ao costurá-lo. Se Sophia tivesse o acompanhado, descobriria que outra das habilidades de Mary era a costura, como ela o costurara com grande habilidade.

?Claro! ?ela exclamou se aproximando até ficar ao lado dele.

?Em que estado a encontrou? ?Perseverou, sem deixar de apalpar os arredores da ferida.

?Prestes a explodir. Felizmente, agi na hora certa. Mais algumas horas e seria tarde demais para ele... ?ela garantiu com firmeza.

?Como descobriu? ?Depois de fazer a pergunta, Randall se levantou, procurou uma pequena gaze na caixa de remédios, borrifou-a com antisséptico e colocou sobre a ferida.

?Os indícios eram evidentes. Mas confirmei ao apalpar-lhe a zona. Estava tão inchada como a do falecido Sr. Skinner. No entanto, Lorde Giesler teve mais sorte ?explicou antes de levantar lentamente o queixo e contemplar o rosto abatido do seu paciente.

?Se certificou de que não havia perfuração? ?Randall continuou perguntando sem se referir à comparação que fez entre pacientes.

Não era apropriado que repetisse tantas vezes que poderia ter morrido. Mas Mary, depois do que aconteceu com o Sr. Skinner, não conseguia pensar em mais nada. Por isso, agia sem pensar nas possíveis consequências.

?Sim. Antes de removê-lo, verifiquei várias vezes, mas não encontrei sujeira na superfície ?continuou explicando. ?Então, quando o coloquei na bandeja, confirmei que não havia poros.

?Como fez? Usou o método de Fizt? ?O pai perseverou enquanto pegava outro curativo para cobrir a ferida.

?Não, me baseei no método Moore ?continuou com diversão. Entendendo que seu pai não se divertia tanto quanto ela, continuou: ?Abri, procurei, encontrei, cortei, limpei, cauterizei e fechei ?Mary garantiu, finalmente endireitando as costas. Quando deduziu que seu pai enrolaria o novo curativo no abdômen do lorde, olhou para o mordomo e lhe perguntou: ?Shals, pode ajudá-lo? Meu pai é tão teimoso que acha que pode fazer isso sozinho.

Comentário que fez Philip sorrir, porque encontrou outra semelhança entre eles.

?Sim ?respondeu o mordomo avançando para eles rapidamente.

Randall deu o curativo à filha, colocou-se à direita e esperou que o empregado colocasse um travesseiro sob as pernas do senhor. Com a ajuda de ambos, as mãos de Mary se moveram agilmente sobre os quadris do paciente. Ao fazê-lo, descobriu que Philip a observava estranhamente. Não era angústia, nem raiva, nem desconforto, mas veneração, o que expressavam aqueles olhos tão azuis como os dela.

?Quanto de clorofórmio deu a ele? ?Ele perguntou depois de confirmar que o curativo se agarrava perfeitamente ao corpo. ?Levou em consideração o tamanho do paciente?

?Não no começo ?respondeu com um largo sorriso. ?Mas depois de ouvi-lo gritar, ao cravar a ponta do bisturi, rapidamente corrigi meu erro. Como pode ver, é a primeira vez que sedei um homem com a mesma compleição que um cavalo.

Esse comentário não agradou a Philip. Nem tampouco gostou de ser comparado a um cavalo. Não havia outro animal mais bonito? Uma águia não era adequada para ela?

?Quanto fenol usou?

?Tudo o que tinha na maleta ?Mary admitiu depois de se afastar de Shals e de seu pai. ?Tive que obrigar os empregados que me ajudarem e pulverizar suas mãos depois de lavá-las com sabão.

?Tenho certeza disto ?Shals comentou sorrindo. ?Graças à ordem da Srta. Moore muitos dos servos descobriu que sob a sujeira possuem uma pele tão branca como a madrepérola.

?Conheço o caráter de minha filha e tenho certeza de que ninguém poderia se aproximar sem seguir suas instruções à risca ?indicou Randall sorrindo pela primeira vez desde que apareceu.

?Quanto tempo levarei para me recuperar? ?Philip perguntou ao médico enquanto Shals pegava o travesseiro das pernas e o colocava sob as costas.

?Deve permanecer pelo menos dez dias em repouso ?respondeu. ?É vital não se mexa durante esse tempo. A sutura está perfeita e seria uma pena que, após um trabalho tão cuidadoso, arruinasse-a ao tentar se mover mais do que deveria. Precisará de ajuda para desempenhar suas funções vitais. Mas eu aconselho que, quando terminar, volte para a cama o mais rápido possível.

?Entendi que me recuperaria em quarenta horas ?Philip comentou olhando para Mary, que rapidamente desviou os olhos dele por não ter a decência de cobrir o peito na frente dela.

?Minha filha, como disse, fez um trabalho sublime, milorde, mas não um milagre ?afirmou enquanto pegava a alça da pasta com os dedos da mão direita e esboçava um sorriso largo. ?Vou visitá-lo todos os dias para observar sua evolução. Se a qualquer momento o vômito, a febre ou um desconforto inesperado retornar, peço que você me notifique imediatamente.

?A Srta. Moore nos indicou que deve tomar certos medicamentos para diminuir sua dor ?Shals apontou o dedo para o frasco de vidro que havia sobre a mesa redonda à sua esquerda.

?Forneceu o suficiente? ?Randall perguntou.

?Tem para três doses durante oito dias ?Mary admitiu.

?Perfeito. Quando terminar, se precisar de mais, eu mesmo os trarei... ?explicou o médico dando um passo atrás.

?Sr. Moore, antes de sair, diga ao meu mordomo o valor dos seus honorários. Penso que... ?Philip tentou dizer, mas quando viu o rosto de horror do médico, ficou calado.

?Não tem nada para me pagar, milorde. Como já esclareci, minha filha não tem a licença necessária para realizar esse tipo de trabalho e não posso, nem quero aceitá-lo.

?Insisto! ?Giesler exclamou tentando colocar os cotovelos novamente no colchão, um movimento que o fez grunhir de dor.

?É um asno! ?Mary trovejou desesperada ao observar a intenção do paciente. ?Meu pai não lhe disse que não pode se mover sozinho?

?Mary Moore Arany! ?Randall gritou ao ouvir como se dirigia ao lorde.

?Arany? ?Philip perguntou levantando a sobrancelha direita e sorrindo enquanto a observava corar.

?Cortesia da minha mãe, milorde ?respondeu franzindo a testa e dando ao pai um olhar carregado de represália.

?Um nome muito apropriado ?Philip sussurrou divertido.

?Deseja me fazer mais alguma pergunta? ?Randall interveio rapidamente quando percebeu que sua filha não continuaria mantendo uma atitude cordial por muito tempo.

?Não ?Giesler respondeu sem tirar os olhos dela.

Volátil. A palavra mais apropriada para descrevê-la era volátil. Tudo o que ele precisava descobrir era quando poderia pegá-la com a guarda baixa, para que não jogasse nada que pudesse usar como uma arma. Mas ele se preocuparia com isso mais tarde, justamente quando pudesse se levantar sem a ajuda de ninguém. Então ele a procuraria e agradecia pessoalmente pelo que havia feito por ele.

?Sendo assim, até amanhã ?Randall cedeu estendendo a mão.

?Até amanhã ?Philip respondeu, apertando a palma com aparente dificuldade.

?Mary... ?seu pai disse uma vez que estava ao seu lado ?vamos. É hora de lorde Giesler descansar com tranquilidade.

?Tenha um bom dia, milorde. ?Ela se despediu com tanta frieza que Philip sentiu sua alma congelar.

?Mais uma vez obrigado, Srta. Moore ?respondeu lentamente.

Mary lhe fez uma ligeira reverência e, sem dizer uma só palavra mais, caminhou atrás de Shals e de seu pai. No entanto, antes de fechar a porta, não pôde deixar de olhá-lo de novo. Esse íntimo cruzamento de olhares a oprimiu. Não entendia o motivo pelo qual sua mente lhe alertava que sua história com o lorde não terminaria naquele momento, senão que acabava de começar. Horrorizada ao pensar que voltaria a encontrá-lo, fechou a porta com rapidez e suspirou.

?Deve estar muito orgulhoso de sua filha ?Shals disse ao médico enquanto ambos caminhavam pelo longo corredor. ?Nunca conheci uma mulher tão valente.

?Valente ou demente? ?Randall respondeu.

?Não pensa que sua filha agiu corretamente? ?Shals insistiu confuso.

?Mary sempre age racionalmente, porém, desta vez não tenho tanta certeza disso. Você sabe que tipo de repercussão teria se tivesse cometido um erro?

?Erro? ?Retrucou Shals parando no patamar do primeiro andar. ?Não houve nenhum, Sr. Moore. Testemunhei o trabalho de muitos médicos e garanto-lhe que nunca vi uma pessoa trabalhar como ela.

?Não percebeu que é uma mulher e que não tem licença médica? ?Moore insistiu, impressionado com o apoio e o respeito que o criado mostrava a Mary.

?E? ?Shals perguntou olhando para ele incrédulo. ?Tenho certeza de que se ela tivesse atendido meu amo anterior, ele ainda continuaria respirando ?comentou antes de estender a mão para as escadas.

?Não lhe importa as opiniões que este ato de suposta valentia pode lhe causar? ?O pai insistiu.

?Não. E sobre esse assunto, como lorde Giesler esclareceu, não deve se preocupar. No entanto, lhe aviso que, após a brilhante atitude de sua filha esta noite, receio que ninguém nesta casa receberá, quando estiver doente, outro médico que não seja a Srta. Moore.

?Ela não é médica.

?Para nós sim, ela é ?Shals disse sem rodeios.

?Não falaria assim se a conhecesse melhor... ?Randall disse descendo o primeiro degrau.

?Acredite em mim quando digo que todos descobrimos o caráter afável da Srta. Moore ?Shals explicou divertido.

?De verdade? O que fez desta vez?

Enquanto desciam as escadas, o mordomo contou a ele o momento em que apareceu batendo na porta da residência. Randall não ficou chocado ao saber que jogou o casaco e que, sem a presença de um criado, foi para o quarto do paciente. Tampouco ficou surpreso quando Shals o informou que chamava os criados que pretendiam banhar seu senhor de bando de inúteis. Se tivesse agido de maneira diferente, o teria confundido. Mas apenas lhe descreveu o caráter típico de sua filha e seu desejo de salvar vidas. O mesmo que o seu. Esse reflexo lhe causou grande tristeza. Não era justo que a sociedade não permitisse que uma mulher desempenhasse o papel de um homem, apesar de ter mais conhecimento e habilidades do que eles.

?Srta. Moore, aqui está o seu casaco ?Shals comentou estendendo a roupa para ela.

Naquele momento, Mary arregalou os olhos e lançou uma maldição em alemão. Se virou rapidamente e, sem ouvir a repreensão que seu pai falou ao ouvi-la blasfemar, levantou o vestido com as duas mãos para voltar ao quarto.

Correu pelo corredor até chegar à porta do lorde. Por um momento duvidou se deveria bater ou não. Não o fez porque imaginou que, uma vez que estivesse sozinho e em silêncio, a morfina o teria entorpecido novamente.

Como deduziu, seus olhos estavam fechados e ele estava respirando calmamente. Não seria um problema se aproximar da mesa e levar sua maleta. Na ponta dos pés, atravessou a sala, ficou ao lado do paciente e sorriu quando viu que estava descansando tranquilamente. Sem fazer o mínimo barulho, se virou para a maleta, fechou-a e, ao se virar novamente, ficou sem fôlego quando descobriu que os olhos do homem se abriram e a olhava com uma intensidade desconhecida para ela.

?Desculpe, esqueci... ?Ficou calada ao ver que ele estendia a mão para ela enquanto balbuciava algo incompreensível.

Assustada, caso tivesse piorado durante o breve período de tempo em que permaneceu sozinho, deixou cair a maleta no chão e estendeu a mão esquerda. Mas esse medo se tornou perplexidade quando ele a puxou com tanta força que seus narizes se tocaram.

?É uma mulher fascinante, Mary Moore ?ele sussurrou. ?Fascinantemente inesquecível ?afirmou antes que seus lábios tocassem os dela suavemente.

A resposta de Mary não demorou a chegar. Se afastou rapidamente dele e, apesar do estado de nervosismo que sentiu quando foi beijada pela primeira vez, levantou a palma da mão direita e lhe deu uma bofetada.

?Você é um grosseiro e espero que fascinantemente me esqueça ?Disse antes de levantar o queixo, pegar a maleta, adotar uma postura arrogante e sair dali a grandes passos.

No entanto, uma vez que Mary fechou a porta, se apoiou nela, levou a mão com a qual lhe bateu no coração e suspirou. Por que deu um tapa nele? Por acaso não sabia que o clorofórmio ainda passeava por suas veias? Milorde ainda não estava lúcido e estava agindo sob os efeitos dos narcóticos. Seria uma tragédia para ela que recordasse o que tinha acontecido. Se fosse assim, seria um problema sério. Compaixão, um sentimento que não tinha desde que entendeu a amargura do mundo ao seu redor, brotou de suas entranhas. Mas desapareceu imediatamente ao ouvir uma grande risada vinda de dentro do quarto.

?Verdammter Schurke![5] ?explodiu antes de descer as escadas tão rapidamente quanto subiu.


***

?Sabe que não deveria se sentir tão orgulhosa pelo que tem feito, certo? ?Randall perguntou à filha quando ambos se acomodaram dentro da carruagem e depositaram as respectivas maletas no assento. ?A intervenção foi um sucesso, mas não deveria ter feito isso sozinha.

?Agi por instinto, pai ?ela respondeu olhando pela janela.

?Por instinto? ?retrucou levantando as sobrancelhas. ?Desde quando se deixa levar por esse tipo de coisas?

?Tinha uma enorme inflamação. Os vômitos que observei...

?Não pôde esperar sete miseráveis horas, Mary Moore Arany? ?o pai insistiu irritado ?Você parou para pensar nas consequências que teria se não tivesse trabalhado corretamente? Estamos falando de um lorde!

?Desde quando faz esse tipo de distinção social, pai? ?Respondeu, virando lentamente sua cabeça para ele para olhá-lo. ?Me ensinou que as doenças não têm piedade daqueles que as sofrem. Observa-se, se faz um diagnóstico, se age e quando tudo termina tal como se deseja, volta para casa satisfeito por ter salvo uma vida ?garantiu com firmeza.

?Nu! ?Randall gritou fora de si. ?Aquele homem estava totalmente nu! Como foi capaz de se manter de pé, Mary? Por isso corou ao me ver entrar? Sentia vergonha por estar diante de um homem nu?

?Ist das ein problem, Vater?[6]

?Sim. Para mim isso é um grande problema, filha ?Moore garantiu.

?Caso você não se lembre, desde que eu o acompanho, tenho visto muitos homens nus ?apontou com desdém ?e seu querido lorde não é diferente dos outros.

?Sabe o que acontecerá se alguém daquela casa espalhar que você operou seu senhor enquanto ele estava nu? Sua mãe nos matará, porque eles não falarão mais sobre o caráter azedo de sua segunda filha, mas sobre sua insolência e falta de decoro.

?Queria que fizesse a intervenção com ele vestido? ?Retrucou com raiva.

?Poderia ter estendido o lençol, como fizemos em muitas ocasiões ?Randall manifestou sem diminuir sua raiva. ?Mas não. Você não pôde pensar em uma coisa tão simples...

?Me preocupava mais com a sua vida do que descobrir sua aparência física ?declarou mordaz. Embora a avaliação obtida pelo corpo forte e robusto do lorde fosse mantida para si. Sem contar com a surpresa que teve ao ver, pela primeira vez, um sexo masculino de verdade. ?Não fiz um bom trabalho? Não lhe salvei a vida?

?Isso parece.

?Melhorará? ?Persistiu tenazmente.

?Espero que sim ?Randall comentou com um suspiro.

?Então... vamos esquecer o resto! ?Apontou séria.

?Acha que será tão fácil para lorde Giesler esquecer que uma mulher o viu nu?

?Oh, bem! ?Exclamou com um leve sorriso. ?Realmente acredita que é a primeira vez que se mostra dessa forma diante de uma mulher? Por acaso não lembra que é o melhor amigo de lorde Bennett? Não ouviu o que dizem sobre eles?

?Mary Moore Arany, não fale comigo com esse tom!

?Pai, não seja ingênuo, por favor. Certamente, dentro de algumas horas, quando o efeito do sedativo tiver passado, seu querido lorde Giesler esquecerá o que aconteceu e se concentrará em aplacar a dor que ele deve suportar. ?Disse antes de cruzar os braços e olhar pela janela novamente.

?E se isso não acontecer?

?O fará ?disse incisiva.

No entanto, ela sabia que não. Aquele homem miserável guardou um rolo seu debaixo de um tecido de seda, olhou-a com veneração, defendeu-a como um justiceiro e, para aumentar a lista de eventos horríveis entre eles, a beijou. Só esperava que o tapa o fizesse entender que era melhor esquecê-la se sonhava em viver mais alguns anos.


Capítulo V


?Não posso acreditar! ?Sophia exclamou horrorizada depois de ouvir a explicação do marido. ?Como pôde ser tão imprudente? Operar? Ela sozinha? Por que o fez?

Felizmente para sua filha, assim que chegou em casa, subiu as escadas e se refugiou em seu quarto. Sabia como sua mãe agiria quando ele lhe contasse tudo o que tinha acontecido e, como mulher inteligente que era, decidiu se refugiar do perigo. Mas ele não podia fugir como Mary...

Randall olhou para a sua esposa, ela estava andando de um lado para o outro da sala. O laço de sua bata branca se soltou com os movimentos bruscos e seus cabelos, geralmente lisos e suaves como a seda, se enrolaram ao não deixar de tocá-lo. Sua raiva era compreensível; Mary agiu impulsivamente, sem parar para pensar nas consequências que seu ato de caridade poderia lhe acarretar no futuro. No entanto, ele se sentia muito orgulhoso do trabalho de sua amada menina. Qualquer outra pessoa em seu lugar esperaria a presença de outro médico para corroborar o primeiro diagnóstico. Mas ela não precisava de uma segunda opinião e procedeu com a paixão que mostrava sempre que alguém precisava de sua ajuda. Era verdade que havia cometido uma grande imprudência, isso não podia discutir com Sophia, mas também deviam elogiar seu bom julgamento.

?O salvou ?disse depois de procurar por palavras tão chocantes que diminuíssem a raiva de sua esposa.

?O que disse? ?Ela retrucou, abrindo tanto os olhos que podia ver claramente a dilatação de suas pupilas.

?Nossa filha salvou sua vida ?respondeu calmamente.

?Randall Moore! Você ficou louco? Porque só assim entenderia sua postura inadequada ?gritou angustiada.

?Apesar da minha primeira impressão, duvido muito que lorde Giesler sobrevivesse a uma doença tão perigosa quanto essa. ?Adicionou sem hesitar.

?Mas... não acaba de me dizer que poderia ter esperado até sua chegada? ?Enfatizou frenética. ?Que posição vai tomar, Randall? Sim ou não? ?Acrescentou, estreitando os olhos e colocando as duas mãos na cintura.

?Na minha opinião, penso, acredito e calculo que...

?Não comece a falar comigo dessa maneira, ou juro por Morgana que dormirá no sofá por um mês inteiro! ?O ameaçou.

?A posição é sim. Apoio fortemente a decisão de Mary. É, sem dúvida, o melhor trabalho que já vi em anos ?assumiu orgulho. ?Você acredita que tive que olhar duas vezes para a sutura que ela fez na incisão? Era perfeita!

?Mary... o costurou? ?Retrucou impressionada. ?Mas se não sabe nem enfiar fio na agulha!

?Bem, te garanto que sabe fazê-lo, e muito bem. ?Recostou-se na cadeira, subiu os óculos pela ponte de seu nariz, sorriu levemente e olhou ternamente para a esposa. ?No fundo, acho que ela estava certa...

?Então, agiu corretamente, certo? Lorde Giesler não retaliará contra ela, correto? ?Sophia insistiu desconcertada. O que devia fazer? Castigá-la durante dois anos em seu quarto ou deixar Madeleine preparar um daqueles bolos de que tanto gostava?

?Como já expliquei várias vezes, este tipo de doença é imprevisível... ?começou a explicar enquanto se levantava do cômodo sofá. ?É verdade que, se a fossa não explodisse por dentro, a intervenção poderia ser adiada até minha chegada. Mas como não podemos saber o que está acontecendo sob a nossa pele, até abrirmos, possivelmente sua predição se cumpriria em minutos. Devo esclarecer que essas inflamações são diferentes em cada paciente. Lorde Giesler sofreu dois dias com dor, febre e vômito. O Sr. Skinner faleceu antes que a febre aparecesse.

?Pelo amor de Morgana! Tinha esquecido o Sr. Skinner! ?Exclamou levando as mãos ao rosto. ?Mary ainda não superou, certo?

?Nunca se esqueça da primeira pessoa que morreu em suas mãos, querida. Sem dúvida, foi o pior momento de sua vida e imagino que foi por isso que ela agiu sem o meu consentimento. Reviveu aquela noite e concluiu que tinha que salvar a vida de lorde Giesler, apesar das consequências que teria no futuro.

?Se certificou de que lhe não tirou nada do corpo, exceto a abençoada fossa? ?Perguntou um pouco mais calma. Se fosse verdade, se a sua filha tivesse acalmado a consciência e descansado em paz depois da sua loucura corajosa, não a castigaria, mas também não a recompensaria. Se elogiasse Mary, estava perdida, porque nunca ouviria um conselho sem lembrá-la de que seus motivos alcançaram um tremendo triunfo. ?Depois do que aconteceu entre eles há alguns dias, poderia ter removido metade do estômago para se vingar.

?Que loucura você disse, querida! ?Randall exclamou com uma risada nervosa. ?Como nossa filha faria esse tipo de bobagem?

Mas a verdade era que não o confirmou e foi um descuido de sua parte. Estava tão preocupado em proteger a imprudência de Mary que não notou os restos que havia na bandeja. Ele esperava que sua filha tivesse esquecido a vingança que jurou realizar contra o homem que a chamara de Medusa e que, como sua esposa disse, não aproveitou o momento para lhe arrancar qualquer órgão vital com suas próprias mãos.

?E, como estava quando entrou no quarto dele? ?Perseverou sua esposa.

?Bastante bem ?admitiu finalmente respirando tranquilamente. Se lhe tivesse faltado algo importante, não teria aberto os olhos. ?Bastante bem ?repetiu para garantir sua própria dedução. ?Eu tenho que confessar que seu estado lúcido me deixou perplexo. Em outros pacientes, a recuperação tem sido muito lenta. No entanto, lorde Giesler estava ciente o tempo todo e raciocinava claramente.

?Suponho que, quando lhe anunciou que foi nossa filha quem lhe realizou a intervenção, gritou horrorizado como fez na manhã em que ela lhe atirou os tubos metálicos ?Sophia comentou olhando-o sem piscar.

?Pois não. O oposto. lorde Giesler a defendeu veementemente.

?A defendeu? ?Sophia perguntou boquiaberta.

?Não só ele, mas também o seu mordomo principal. Juro que pensei que o lacaio jogaria um dos castiçais na minha cabeça quando eu a repreendi na frente deles ?explicou Randall estendendo a mão para a esposa.

Tinha que descansar. Estava exausto demais para enfrentar o dia e, como sua amada esposa se acalmara um pouco, era hora de levá-la para o quarto e que o médico assumisse o papel de doente. O que mais um marido poderia querer depois de uma noite sem descanso e a situação que viveu na residência do lorde? Apenas um: adormecer nos braços de sua esposa.

?Lhe explicou tudo o que acontecerá se descobrir que Mary o atendeu? ?Sophia insistiu, aceitando aquele braço.

?Compreendeu-o rapidamente e isso lhe causou um terrível aborrecimento ?ele indicou, abrindo a porta.

?A quem? Lorde Giesler ou o mordomo? ?Ela insistiu sem esclarecer.

?Para ambos. O servo me avisou que ninguém na residência procuraria outro médico além de nossa filha e lorde Giesler disse que se tornaria um feroz protetor de Mary se alguém ousasse reprovar seu bom trabalho.

?O que ele disse? ?Sophia retrucou, arregalando os olhos novamente.

?Que ele se tornaria seu feroz protetor ?Randall repetiu.

?Quanto clorofórmio Mary lhe forneceu? ?Insistiu sua esposa lhe ajudando a subir o primeiro degrau da longa escadaria.

?Quase um quarto do frasco! Você não acha engraçado? Lorde Giesler permanecerá sedado por uma semana inteira! ?Randall comentou com diversão. ?Talvez, quando seu corpo eliminar toda essa quantidade de soníferos, não se lembre que Mary o operou nu ?acrescentou rindo sem parar.

?Como disse? ?Trovejou Sophia parando abruptamente nas escadas. ?Nossa filha viu aquele homem nu?

?Eu disse isso? Não lembra querida.

?Randall Moore... Fale agora mesmo! ?E no meio daquela escada, Sophia se afastou do marido e cruzou os braços.

?Não esteve sozinha em nenhum momento. A irmã do paciente e mais de dez servos presenciaram tudo ?ele comentou, sem saber se devia correr, como Mary havia feito quando chegou, ou voltar para a sala e se trancar até que a nova raiva de sua esposa passasse. ?Portanto, não pode nem deve pensar que eles tiveram um momento íntimo. Todos ali presentes...

?Nu?! ?Esbravejou. ?Minha filha viu aquele homem nu? E acha que lorde Giesler se esquecerá disso? Que ninguém naquela casa comentará que nossa filha, a quem esperamos casar algum dia, teve a indecência de ver um homem nu? ?Sua garganta ficou tão fina e alongada quanto o pescoço dos patos do lago quando via Josephine aparecer com a arma.

?Sophia... querida... Talvez... eu... ?tentou dizer.

?Mary Moore Arany! Nem pense em dormir! Temos que falar! ?Gritou depois de levantar a camisola e subir as escadas num tropel.

?Graças a Deus... ?suspirou o médico retrocedendo muito lentamente os degraus que tinha subido acompanhando sua esposa.

Depois de olhar para o primeiro andar, voltou ao seu escritório. A escolha mais acertada para ele era descansar em um sofá duro, em vez de suportar a disputa que mãe e filha teriam durante as próximas horas...


***

?Se sente bem, milorde? ?Shals perguntou a Philip quando apareceu novamente no quarto.

?Já foram embora? ?Ele perguntou, fazendo um grande esforço para permanecer um pouco inclinado.

?Sim. O Sr. Randall e sua filha voltaram para casa. Como não tinham carruagem, tomei a liberdade de lhes oferecer uma de sua senhoria ?informou-o enquanto caminhava em sua direção.

?Nesse caso... me sinto horrível! ?Trovejou. Finalmente descansou a cabeça no travesseiro e olhou para o teto. ?Isso dói muito!

Shals, confuso com a mudança radical na saúde de seu mestre, pegou o frasco de comprimidos e retirou o que o médico recomendou.

?Pensei, ao vê-lo se inclinar e conversar com o médico, não estava se sentindo tão mal... ?disse aproximando as cápsulas para a boca de Philip. Ele os colocou na língua e lhe aproximou um copo de água.

?Se lembra da infecção que sofri durante minha primeira viagem às ilhas do Caribe? ?Estalou, depois de engolir o medicamento.

?Sim, milorde. Jamais o vi tão fraco e doente. Devo lhe confessar que pensei que não voltaria a Londres... vivo ?explicou consternado.

?Bem, isso é pior... ?suspirou, jogando de novo sua cabeça sobre o travesseiro.

?Quer que chame o Sr. Moore? Com certeza ele saberá...

?Não! Nem pense em fazê-lo! Não quero que ele se preocupe com nada. Certamente culparia sua filha pelo meu desconforto e não vou consentir que isso aconteça.

?Claro, milorde. Tem toda a razão. Depois de presenciar a repreensão contra a Srta. Moore, tenho muito medo de que ela assuma a responsabilidade por tudo e, se naquele momento acalmei o desejo de lhe acertar a cabeça com um dos castiçais que tem na lareira, não duvidarei da próxima vez. Como ele ousa repreendê-la assim? Aquela menina o salvou! ?Comentou com ira. ?Se o próprio pai não é capaz de apoiá-la, quem o fará? ?Acrescentou.

?O Sr. Moore é um fiel defensor de sua filha, junto com o Sr. Flatman. Mas acho que se assustou ?Philip refletiu. ?Talvez seja a primeira vez que ela agiu sem o seu consentimento.

?Estava em perigo, milorde. Ela agiu prontamente porque deduziu que poderia morrer ?informou. ?Depois de ver os seus vômitos, ela colocou as mãos sobre o seu corpo e foi apalpando lentamente a área em que foi operado.

Tocando? Até que Shals não fez referência a sua nudez, ele não reparou nela. Mary havia tocado seu corpo e ele estava inconsciente naquele momento? Isto era imperdoável! Desde quando não sentia as carícias de uma mulher? Ele teria ficado excitado ao notá-la? Com certeza que sim. Seu membro agia por conta própria, sem a necessidade de uma ordem mental. Teria deixado em um bom lugar? Como ela reagiu? De repente, um sorriso de orgulho cobriu seu rosto cansado. Até agora, nenhuma de suas amantes se queixara de sua aparência física; era mais, elas o exaltavam e o admiravam. Mary teria olhado para ele dessa maneira também? Que conclusão havia chegado? Poderia obter a resposta através de Shals, mas precisava ser cauteloso, se não quisesse na sua, os candelabros que queria jogar na cabeça do pai. Bem, por causa da emoção com que ele falou sobre ela, sua admiração era notável.

?Por que minha irmã a chamou? ?Mesmo sabendo a resposta, decidiu começar do início, para descobrir todos os detalhes.

?A Sra. Reform decidiu aparecer na casa dos Moore após seu último estado febril ?Shals começou a explicar, evitando comentar que ele estava gritando o nome da menina como se não houvesse outra mulher no mundo. ?Como já descobriu, o médico não estava em casa e sua filha apareceu. Devo esclarecer que, quando ela entrou e jogou seu casaco na minha cara, eu queria chutá-la daqui ?explicou. Seus lábios se estenderam para mostrar um sorriso travesso enquanto aceitava o convite de seu amo para se sentar na mesma poltrona onde ela passou a noite toda. ?Mas sua irmã impediu que o fizesse. Sem demora, a jovem subiu as escadas de três em três com a maleta na mão e entrou no quarto sem avisar. Foi então que ela encontrou três dos criados o agarrando. Eles estavam apenas tentando cumprir a ordem da Sra. Reform: dar-lhe um banho gelado. No entanto, foram eles que ficaram congelados quando a Srta. Moore gritou lhes chamando de bando de inúteis.

E naquele momento, Philip soltou uma risada que lhe causou mais mal do que diversão.

?Continua ?encorajou-o enquanto ele respirava fundo e colocava a mão esquerda em direção ao curativo.

?Obrigou-os a colocá-lo de novo sobre a cama. Logo se aproximou e começou a inspecioná-lo, tal como lhe disse. Quando ela anunciou à Sra. Reform que deveria operá-lo, sua irmã não deu crédito a suas palavras. Tentou convencê-la, mas, como entendi, é difícil para a Srta. Moore mudar de ideia sobre algo de que ela tem plena certeza.

?E? ?Giesler perguntou sorrindo com mais cuidado.

?E em menos de uma hora, você estava sobre uma mesa sob o olhar atento da jovem médica. Prometo que o tempo se tornou eterno, mesmo que a menina não tenha parado de falar sobre pesquisas que fizeram sobre a doença que sofria. Senti que ela estava narrando para que a Sra. Reform, que estava sentada na poltrona perto da lareira desde o momento em que o viu sangrar, relaxasse. Mas estávamos todos em tensão até que saiu de suas entranhas, o que o prejudicava. Então ela o costurou e desceu para a cozinha para o café da manhã acompanhada por sua irmã.

?Conseguiu comer alguma coisa depois de ver o que guardo dentro de mim? ?Retrucou estupefato pela frieza de Mary.

?Sim senhor. A Srta. Moore tomou duas xícaras de café, três torradas e um ovo escalfado, enquanto a Sra. Reform não conseguia nem terminar o chá que lhe serviram. ?Apontou com alguma diversão.

?Fascinante! ?Giesler exclamou depois de suspirar e encarar o teto.

?Pode acreditar! ?Shals respondeu se levantando da cadeira. O momento que ele esperava havia chegado e, como sabia que reação seu senhor teria, era melhor se afastar dele, porque, apesar de se sentir tão mal, quando ouvisse o que planejava dizer, conseguiria se levantar e estrangulá-lo. ?É uma lástima que não possamos falar sobre o que aconteceu aqui esta noite, milorde.

?Por quê? ?Ele perguntou, estreitando os olhos.

?Essa menina é um verdadeiro tesouro ?declarou aos pés da cama ?e é uma pena que ninguém saiba como é realmente.

?Por quê? ?Repetiu grosseiro.

?Por que... que homem não gostaria de se casar com uma mulher que o libertaria da morte sem hesitar por um segundo? Se os solteiros desta cidade conhecessem o dom daquela jovem, o Sr. Moore teria, às portas de sua casa, inúmeros pretendentes esperando impacientemente ?comentou com entusiasmo.

?Daqui não sairá nem uma palavra! ?Philip garantiu, se levantando apesar da dor que sentia. ?Dei minha palavra a seu pai e a cumprirei!

?Oh, milorde! Não me interprete mal ?Shals se apressou em responder. ?Juro que ninguém nesta casa comentará nada. Todos entenderam que suas posições estão em risco se não conseguirem manter a boca fechada ?acrescentou com aparente tensão.

?Perfeito... ?manifestou Giesler deitando-se de novo.

?Se a sua senhoria não requer dos meus serviços, irei ao...

?Mais uma coisa antes de sair ?interrompeu.

?Sim? ?Ele perguntou, provando o sabor da vitória.

?Quem, dentre todos os que trabalham para mim, pode fazer um trabalho que exige muita discrição?

?Todos, milorde. Ninguém desta casa...

?Bem, escolha um deles e que vigie a Srta. Moore enquanto eu não posso sair deste maldito quarto ?ordenou bruscamente.

?Pensa que pode estar em perigo? Que alguém pode machucá-la? Não me parece que precisa de proteção, senhor. Ela...

?Não me ouviu bem, Shals? Preciso chamar outro lacaio para executar minha ordem sem questionar? ?Ele insistiu, olhando-o ferozmente. ?Eu disse que alguém a vigie e me conte tudo o que ela faz.

?Com certeza, milorde! Agora mesmo me coloco a isso ?ele respondeu antes de fechar a porta.

Quando seu mestre não pôde olhar para ele, sorriu amplamente. Havia entendido a indireta? Ou melhor, devia defini-la como uma grande direta? O que quer que fosse, o plano começou melhor do que esperava...

«Um marido? Pretendentes?»

Philip cerrou os punhos e bateu no colchão. Maldita fosse a sua doença e a incapacidade de se levantar da cama! Quanto tempo o Sr. Moore havia dito que deveria permanecer deitado? Um mês? Bem, ele se recuperaria na metade do tempo! Depois de esperar que Bennett partisse para sua casa no campo com três das irmãs, depois de perguntar sobre ela e ficar impressionado por esse caráter grosseiro e brilhante intelecto, depois de vê-la com aquela camisola e de guardar um objeto seu, fazendo dele seu amuleto... Permitiria que outro homem aparecesse em sua vida? Não, absolutamente não! Se um homem ousasse aparecer na residência Moore lhe pedindo em casamento... lhe arrancaria a cabeça. Mary Moore Arany era sua Medusa, sua bruxa e lutaria para tê-la, mesmo que tivesse que rastejar como uma minhoca pelas ruas de Londres!


Capítulo VI


Não era justo! Por que ela deveria ficar de castigo por duas semanas por uma coisa tão absurda? Sua mãe esqueceu o prodígio que havia feito: salvar a vida de um homem, e só se concentrou no fato de que ela o vira nu. E como iria operá-lo? Com uma venda nos olhos?

Mary bufou pela décima quinta vez e sentou no parapeito da janela. Ela só estava trancada em sua casa por cinco dias e os primeiros sinais de uma loucura monumental apareceram: ela não havia trocado a camisola, nem escovado os cabelos nem uma vez, sorria sem motivo, andava pelo quarto procurando teias de aranha para soprá-las, passava o dedo pelas paredes, para sentir a aspereza delas. Como poderia suportar tanta crueldade por tanto tempo? Ela olhou para fora e bufou. Nos dias anteriores, não teve vontade de sair de casa, porque a chuva a ajudou a superar sua agonia. Mas naquela manhã, para sua desgraça, as nuvens se dissiparam do céu e o sol, apesar de frio, se mostrou em todo o seu esplendor, temperando levemente a cidade. Ela abraçou as pernas, cujos joelhos tocavam seu peito, e focou os olhos na cama de Anne. Senti falta dela. Ansiava as conversas e presença da mais velha de suas irmãs. Certamente que, se estivesse lá quando sua mãe apareceu no quarto com raiva, rapidamente aplacaria sua ira. No entanto, ela teve que enfrentar sozinha e, por mais que insistisse em que não havia reparado naquele corpo masculino, o olhar reprovador de sua mãe expressava que não acreditava nela.

E estava certa...

Como não admiraria um corpo assim? Se era praticamente perfeito! Como admitiu naquela noite, algo que seu cérebro lembrava como se tivessem passado mil anos, Lorde Giesler merecia ser estudado como um exemplar do Homo sapiens perfeito. Não tinha dúvida alguma de que, se tivesse vivido na pré-história, seria o melhor caçador. Caçador? Não! Ele seria o chefe de alguma tribo! Mas de uma em que haveria apenas mulheres. Sim, tinha certeza de que, antes de abrir os olhos, na chegada de um novo dia, ele teria à sua frente mais de dez quadris levantados, esperando serem usados para gerar novos filhos, novos chefes, novos homens com um físico parecido ao de seu procriador. E se tivesse vivido na era grega! Ah, certamente teria sido a musa de centenas de escultores! E os homens o perseguiram... e as mulheres!

Irritada, por compará-lo em diferentes épocas e em situações semelhantes, enrugou a testa e bufou. Era verdade que ele tinha um físico digno de uma divindade: seus braços, pernas e aquele peito duro e forte lhe davam essa condição. Mas... por que deveria notar tanto algo que para ela era trivial? Sempre pensou que, se encontrasse um homem que estivesse mais do que disposto a suportá-la, seria inteligente, um tanto tímido e muito sensato. Lorde Giesler não era nada disso! Tímido? Hah! O próprio canalha fez um grande esforço, comprometendo seu bom trabalho, para beijá-la! Havia sensatez nesse ato? Não, claro que não! Isso já lhe mostrava que o homem não era nada racional. Se tivesse sido, não a teria beijado nem teria feito um sacrifício desnecessário para obter, como presente, um bom tapa. Essa conclusão a levou a outra característica que não possuía: inteligência. Que pessoa inteligente faz um plano tão absurdo para se aproximar dela e beijá-la?

Mary levou a ponta dos dedos da mão direita para a boca e sorriu. Pensou, em algum momento de sua vida, que o cavalheiro que a beijasse pela primeira vez, receberia em troca o impacto de sua mão? Não. Mas também não achava que alguém se atreveria a fazê-lo. Quem iria desejar uma mulher que pudesse matar com um olhar e com algum outro remédio que carregasse em sua maleta? No entanto, mesmo que não quisesse admitir, gostava de se sentir... fascinantemente inesquecível. Foi isso que lorde Giesler lhe confessou antes que pudesse estar consciente do que estava acontecendo ao seu redor. Talvez não tenha antecipado seu plano selvagem, porque ainda estava perturbada ao encontrar um de seus rolos metálicos armazenados como se fosse um tesouro. Se seu pai não tivesse entrado no quarto naquele momento, ela o teria pegado e o teria jogado de novo, para que não esquecesse quão fascinantemente doloroso poderia ser um impacto semelhante.

Irritada, não apenas pelo castigo, mas por se concentrar novamente em lorde Giesler, ela pulou no chão e se afastando da janela. Não deveria eliminar tudo o que sua mente havia cultivado desde anos atrás para preencher essas lacunas mentais com bobagens sobre os homens. Ela havia determinado, desde que tinha uso da razão, que não aceitaria se casar com um, pois todo seu mundo se tornaria trágico. Que marido permitiria que ela fosse às reuniões médicas? Que marido íntegro aceitaria que sua esposa abandonasse a cama para acompanhar seu pai a uma urgência médica? E, que homem suportaria que sua esposa o substituísse por um bom livro? Nenhum! Não nasceu homem capaz de lhe oferecer a vida que esperava! Por causa disso, não pensava, nem procurava um cônjuge. A decepção destruiria as duas vidas, os problemas apareceriam: discussões, raiva, gritos, mentiras, infidelidade, tristezas, decepção e, após anos e anos sofrendo uma agonia infinita, a morte chegaria. A dele, é claro, porque ela não planejava morrer até os noventa anos, pelo menos...

Nervosa, pela agonia dessa prisão obrigatória, ela começou a andar pelo quarto até fixar o olhar na poltrona ao pé da cama. Como lhe tinha ocorrido uma ideia tão descabelada? Não achou que era suficiente castigá-la sem sair de casa e não permitir que ela lesse um único livro que também lhe impunha uma tarefa tão absurda? Jamais tocaria aquele bastidor, nem passaria o tempo bordando! Mas... como pensou que ela costuraria? Em que momento da sua vida pediu que lhe dessem linhas e agulhas? Colocou as mãos nas têmporas e apertou-as, como se desse modo desaparecesse uma dor de cabeça inexistente.

Era tudo culpa dele! Desde que lorde Giesler apareceu em sua vida, esta havia se transformado. E agora, embora não soubesse nada sobre seu paciente há vários dias, porque sua mãe avisou seu pai que, se ele passasse informações, iria dormir para sempre em seu escritório, continuava incomodando-a.

Estava prestes a pegar o pano comprado para bordar, o que poderia servir de colcha para a cama e fazê-la em farrapos quando ouviu barulho do lado de fora. Madeleine não teria pensado em sair, certo? Como superaria a má sorte de que, embora ela precisasse de sua presença, para que sua loucura não aumentasse, a irmã mais nova de suas irmãs decidisse enfrentar sua timidez saindo para a rua. Desesperada, correu para a janela com tanta pressa que sua testa alcançou o vidro antes que o resto do corpo. Seus lábios desenharam um sorriso enorme, o primeiro que mostrava desde que sua mãe fechou a porta antes de lhe gritar que queimaria seus livros se a desobedecesse. Viria por ela? Havia decidido descobrir o que tinha acontecido para não acompanhar seu pai até a casa do seu irmão? Nesse caso, agradecia a... seja lá o que todos acreditassem, que se apresentasse. Não lhe disse que havia se tornado sua primeira admiradora e que os Giesler a protegeriam? Bem, estava com sérios problemas e precisava dessa proteção... imediatamente!

Sem esperar para saber por que ela apareceu em sua casa, foi ao armário e procurou um de seus vestidos. Embora Shira logo aparecesse, porque sua mãe a obrigaria a chamá-la, para que a Sra. Reform não descobrisse o que havia feito com a filha, ela não desejava demorar nem um minuto.


***

Continuava sem acreditar no que estava fazendo...

Quando um servo de Giesler apareceu em sua casa, às oito horas da manhã, avisando-a de que deveria aparecer na casa de seu irmão o mais rápido possível, quase morreu de um ataque cardíaco. Pensou que tinha piorado, e isso que na tarde anterior confirmou que seu estado de saúde havia melhorado. Preocupada, ela começou a dar ordens a todos os empregados da casa, porque quando ela anunciou ao marido que deveria ficar cuidando dos filhos, ele lhe lembrou que tinha uma reunião importante e que não podia atrasar. Sem Trevor... Teve que procurar outras alternativas e preparar sua casa em uma hora! E para que? Para aparecer no quarto de Philip e descobrir que ele não estava doente, mas que teve uma ideia maluca e que precisava de sua ajuda.

?Preciso que vá vê-la ?disse-lhe assim que entrou.

?A quem? ?Ela perguntou erguendo as sobrancelhas. Se lhe pedisse que falasse com alguma de suas amantes, arrancaria seus olhos naquele momento.

?Mary.

Bem, isso a relaxou muito, tanto que ela caminhou lentamente pelo quarto para se sentar na beira da cama e mostrar um leve sorriso.

?Por quê? ?Insistiu em descobrir.

?Sei que algo aconteceu com ela. O Sr. Moore se recusa a falar sobre ela toda vez que toco no assunto e fico surpreso que, depois do que fez, não esteja interessada em descobrir como estou. ?Philip admitiu com angústia.

?Talvez, apenas talvez, não queira saber nada sobre você. Não pensou nessa possibilidade? ?Valeria afirmou com mordacidade.

Estava brava com o grande ego de seu irmão, odiava que fosse tão vaidoso. Era verdade que, para mulheres solteiras, casadas, viúvas e até idosas, ele era descrito como um homem encantador, elegante e sedutor, e com um porte digno de um deus, mas isso carecia de importância. No entanto, por causa disso, seu irmão não pensava em procurar uma esposa digna de um barão e apenas desejava estar nos braços de amantes desavergonhadas. Valeria estava muito preocupada com seu futuro e essa preocupação aumentou depois de ler a última carta que o advogado de seu avô enviou. Ele informou que sua saúde piorou e pediu que ela chamasse a sabedoria de seu irmão. A recusa de Philip estava começando a ser perigosa. Se ele não reivindicasse o título de família, a alma de seu pai não descansaria em paz...

?Já que não posso fazer outra coisa durante o dia exceto pensar, também ponderei essa ideia ?declarou zangado. ?Mas sei que essa não é a resposta. Uma mulher como ela, tão apaixonada, não se pode esquecer, da noite para o dia, a evolução da pessoa a quem salvou da morte.

?Talvez o pai a mantenha informada e ele precise permanecer em silêncio ?Valeria ofereceu.

Embora temesse muito que essa não fosse a resposta certa também. O pouco que sabia de Mary se assemelhava a conclusão de Philip: era apaixonada por seu trabalho e duvidava muito que desconsiderasse seu estado de saúde facilmente, apesar do fato de que, por causa do rosto que colocou quando lhe anunciou na carruagem seu nome, mostrou mais ódio do que misericórdia.

?Há cinco dias que não sai de casa ?Philip anunciou.

?Como sabe? ?Valeria perguntou, arregalando os olhos.

?Encarreguei a tarefa de protegê-la a um de meus servos ?ele declarou, evitando expressar em seu tom mais ansiedade do que deveria mostrar à irmã. Se descobrisse que tinha algum interesse nela, começaria a planejar um casamento, forçaria-o a recuperar a baronia, iria enviá-lo para a Alemanha e, quando voltasse, se tornaria um homem que não desejava ser.

?Proteger ou espioná-la? ?O sorriso malicioso que seus lábios esboçaram, fez Philip entender que todos os seus esforços para não revelar um interesse especial por Mary eram um fracasso.

?Protegê-la ?resmungou. ?Tenho que velar por sua honra. Depois do que fez por mim, não vejo justo que corra perigo...

?Que perigo poderia ter? ?O interrompeu, se levantando da cama. ?Alguém desejaria matá-la por salvar sua vida? Se essa cidade descobrisse o que fez, seria valorizada tal como merece e eles parariam de vê-la como um pária. Sabe quantos homens estariam interessados nela? ?Insistiu com ele. ?Possivelmente, você não está fazendo nenhum bem em esconder o segredo. Talvez deveria...

?Não! ?Rosnou. Em seguida colocou a mão no curativo e apertou para aliviar a dor. ?Não é isso que quero!

?Bem... Diga-me por que me fez sair de casa a essa hora e ter que fazer o trabalho de um dia inteiro em uma hora ?Valeria murmurou.

?Quero que descubra o que acontece com ela. Preciso saber por que não saiu de casa durante esses dias.

?Não pensou que a chuva tivesse algo a ver? ?Soltou, um pouco brava.

?Mary gosta dos dias chuvosos e nem um dilúvio a impediria de sair de casa para comprar os folhetos científicos que coleciona.

?E você sabe tudo isso por que...

?Porque Logan me pediu ?declarou.

?Bennett está interessado nela? ?A vida poderia dar-lhe um chute mais forte em seu traseiro? Se seu melhor amigo tivesse alguma intenção na mulher, seu irmão não intercederia, mesmo que estivesse apaixonado. Mas... Philip poderia se apaixonar?

?Não ?respondeu com um sorriso. A irmã dele tinha que mascarar melhor tudo o que pensava. Ele ainda não entendia como tinha sido tão boa em jogar cartas com Trevor, quando não era capaz de dissimular o que passava em sua cabeça. Não havia dúvida de que seu cunhado era capaz de fazer qualquer coisa para fazê-la feliz. ?Não, Logan está interessado na primogênita das Moore. Precisava descobrir como poderia se aproximar dela sem a interrupção das outras, então me pediu para descobrir tudo o que podia sobre as Moore.

?E era de vital importância que descobrisse seus gostos... ?Valeria apontou ironicamente. Philip assentiu. ?Então, como choveu, o que ela ama, e seu lacaio lhe disse que ela não saiu de casa, você concluiu que algo sério aconteceu com ela.

?Mary não pode sobreviver sem esses artigos médicos. Somente uma doença, que a obrigue a permanecer em sua casa, pode impedi-la de comprá-los. ?Garantiu preocupado.

?Quer que me apresente na residência Moore e descubra o que aconteceu? ?Philip assentiu. ?A troco de que?

?Vai me chantagear, Valeria? ?Retrucou, sem saber muito bem se estava com raiva ou orgulhoso do sangue cigano materno que corria por suas veias. ?É capaz de impor condições a um irmão que te ama e não pode se defender sozinho?

?Se Martin me pedisse, faria sem pensar um só segundo. Mas você ?ela apontou um dedo ?não é ele. Então, sim, vou chantagear você, é o único idioma que você entende.

?O que quer? ?Ele disse depois de subir o lençol até o pescoço.

Medo, sua irmã lhe dava medo, tanto que ele usou o lençol como escudo. Se não errasse em seu palpite, levaria pouco tempo para lembrá-lo de que deveria...

?Na semana passada, recebi uma carta do advogado do nosso avô. ?Philip rosnou quando a ouviu. ?Ele queria nos avisar sobre sua saúde. Aparentemente, sua doença piora e não demorará muito...

?Não! ?Gritou. ?Esqueça esse absurdo, Valeria! Já te disse mil vezes! Não quero!

?Tem razão ?ela disse cruzando os braços ?você me disse não mil, mas um milhão, mas deve admitir que a situação mudou.

?Por isto? ?Apontou com o queixo para a cintura. ?Isso não mudou nada. Minha cabeça ainda está saudável...

?Se tem algum interesse em Mary, deveria considerar a alternativa de se tornar um barão.

Ela nunca havia chamado sua atenção para o assunto, mas incluir ao nome da mulher na frase, ela o fez.

?Não tenho nenhuma intenção de torná-la mi...

?Então, deixe-me falar sobre o que aconteceu aqui. Quando todo mundo souber que realizou um milagre, porque o rumor se espalhará como pólvora, ninguém duvidará de sua grande habilidade. Será convidada para uma infinidade de festas, terá, antes de descer o último degrau de qualquer salão, o cartão cheio de danças e, talvez em um deles, encontre o homem adequado para se casar com...

?Eu disse que não! Maldita seja, Valeria! Não escuta quando falo com você?

Mas... por que diabos todos estavam pensando em encontrar um marido para Mary? Queriam que se levantasse antes de se recuperar? Ou estavam tirando sarro dele? Mary não estaria com ninguém, ela não dançaria com ninguém e ninguém, absolutamente ninguém, descobriria que adorava sentir as gotas de chuva em seu rosto! Lembrando daquele dia, quando pensava que estava sozinha, que ninguém poderia descobri-la, se estremeceu. Nunca na vida viu um sorriso de um anjo até que Mary, sem perceber sua presença, virou o rosto para ele e sorriu.

?Está me ouvindo? ?Replicou. ?Olha ?começou a dizer se aproximando novamente dele ?se pensou em torná-la uma de suas muitas amantes, acredite-me que não fará isso. Essa moça não consentirá uma humilhação semelhante. Lutou com unhas e dentes contra todos os infortúnios que lhe foram apresentados para aceitar uma coisa tão vil. Por acaso não se informou o que fazem os cavaleiros quando a veem, ou só tem perguntado sobre seus gostos?

?Posso garantir que sei muito bem do que falam. ?E Valeria não duvidou por como sua mandíbula endureceu e como seus olhos, azuis com o céu, ficaram escuros, como uma noite sem estrelas. ?Assim como também tenho que confessar que mais de um imbecil trocará de calçada quando a veja, se quiser manter seus bonitos dentes dentro da boca ?garantiu irritado.

?Você gosta! Tem interesse nela? ?Embora apenas parecesse uma pergunta, não era. ?Então, pense em uma coisa...

?Qual? ?Ele perguntou, erguendo as sobrancelhas loiras.

?O que você vai lhe oferecer Philip, que os outros não podem dar?

?Respeito e admiração ?respondeu sem hesitar.

?Oh, bem! ?Exclamou revirando os olhos. ?E pensa que isso será suficiente para ela?

?Sim ?garantiu com firmeza.

?Pois está equivocado! ?Gritou. ?Uma mulher quer ter ao seu lado um marido compreensivo, certo, mas também um lutador. Precisará de um homem que a apoie e que não lhe coloque obstáculos em seu caminho. Sabe qual é o caminho de Mary Moore?

«Mary Moore Arany», pensou Giesler.

?Qual, de acordo com o seu bom julgamento? ?Murmurou Philip.

?Tornar-se alguém que a sociedade não permite ?berrou. ?Não tem olhos em seu rosto, irmão? Realmente pensa que uma mulher que é capaz de deduzir a doença de uma pessoa apenas tocando nela e que tem a coragem de se envolver em uma operação, como ela fez com você, se conformará com um marido que lhe oferecerá respeito e admiração? Já tem um pai que o faz! Mary precisa de um marido para ajudá-la a alcançar o que ela sozinha não pode e... você conhece o paradoxo de tudo isso? Que, nesta maldita cidade, apenas um nobre pode pavimentar esse futuro. Conhece algum aristocrata que pode lutar nessa batalha social ao seu lado?

Silêncio... Por mais de um minuto, os dois irmãos permaneceram em silêncio. Valeria, entendendo que não havia conseguido nada, nem mesmo uma resposta negativa, se virou para a porta e a abriu de uma vez.

?Verá o que lhe acontece ?Philip pediu-lhe olhando para o teto ?e deixe-me pensar.

?Precisará de muito tempo para fazê-lo, querido irmão, pois até que não tenha adoecido, não foi capaz de fazê-lo.

?Ainda tenho dez dias para sair daqui. Quando o fizer, direi o que decidi ?ele garantiu.

Valeria não respondeu. Fechou a porta atrás dela com um forte estrondo. Não foi muito, mas foi mais do que suficiente. Se Philip tinha interesse em Mary, que disso não havia dúvida sobre a maneira de chamá-la quando a febre se apoderou dele, pensaria em como alcançá-la, porque, como lhe disse, ela não era uma de suas amantes que suspirava ao ver um corpo masculino perfeito.


?Bom dia, o que deseja? ?A voz de uma mulher, que não reconheceu, a fez voltar ao presente.

?Bom dia, sou a Sra. Reform. A Srta. Mary Moore pode me receber? ?Perguntou, oferecendo-lhe um sorriso terno e encantador.

?A Srta. ainda não saiu do seu quarto ?comentou Shira sem especificar em excesso. ?Mas posso anunciar à Sra. Moore que deseja visitá-la.

?Se fizer a gentileza ?comentou, entrando por fim no hall. Ofereceu-lhe o casaco e a empregada o pegou.

Depois que a mulher deixou o casaco no guarda-roupa à direita, ela caminhou para uma sala à esquerda. Enquanto informava a esposa do médico sobre sua presença, Valeria suspirou. Durante o trajeto, pensara na mudança de atitude de Philip. Repassou todos os gestos que seu rosto mostrava ao falar sobre Mary, até avaliou o tom de voz que ele usou nas palavras. Bem, uma coisa era certa; Mary era especial para ele e não suportava a ideia de que ela estivesse com outro homem. Agora tinha que se concentrar em aproximá-los sem levantar suspeitas e procurar um motivo eloquente pelo qual aparecera às onze horas na residência dos Moore.


Capítulo VII


Enquanto esperava a criada retornar, Valeria olhou para o primeiro andar. Se Mary permanecia em sua casa e não estava doente, pode observar, através de alguma janela, a chegada de sua carruagem ou até mesmo quando desceu dela. Se queria vê-la, logo apareceria no topo da escada, como na noite em que a conheceu. No entanto, essa alternativa diminuiu com o passar do tempo... Philip estava certo? Porque havia a possibilidade de que não estivesse em casa. Talvez tivesse que comparecer em outra emergência médica e, por isso, não havia vestígios da jovem. Mas essa ideia desapareceu rapidamente, porque ao entrar no jardim dos Moore, encontrou o servo de seu irmão escondido e sem tirar os olhos da entrada, tal como havia recebido a ordem. Então... o que tinha acontecido? Mary não teria decidido fugir dos Giesler, certo? Não, isso também não parecia certo. Era verdade que elas haviam discutido quando decidiu operá-lo, mas após sua magnífica proeza, as duas conversaram como se tivesse se conhecido há uma vida. E com relação ao irmão... Desejava manter distância? Mary, na realidade, era uma covarde? Não. Não era. Se sua intuição feminina não lhe enganava, a filha dos Moore não se assustaria facilmente. Se ela própria se envolveu numa intervenção deste tipo, seria capaz de lutar contra o mundo, se fosse necessário. Tinha que haver outra razão pela qual Mary não saía de casa, uma que, por incrível que pudesse parecer, lhe causava medo.

Valeria parou de olhar para o fim da escada e começou a andar inquieta pelo hall. Já não lhe importava mais a desculpa que lhe ofereceria à Sra. Moore ao aparecer em sua casa tão cedo, mas a causa pela qual Mary não aparecia. Apesar de tudo, a opção de estar em sério perigo começou a tomar força. Como seu irmão agiria se descobrisse que a jovem estava sob alguma ameaça? Pularia da cama para fazê-la desaparecer, mesmo sabendo que colocaria sua vida em risco! Disso não lhe cabia a menor dúvida...

Assim que focou o olhar na porta da entrada, ponderando todas as alternativas possíveis para esse desaparecimento, ouviu o som fraco de sapatos enquanto pisavam no chão. Se virou rapidamente, esperançosa de que fosse Mary, mas não havia ninguém lá. Resignada, ela respirou fundo para se acalmar e...

?Valeria... Olá! Estou aqui em cima! ?Mary sussurrou se escondendo atrás do parapeito de madeira.

?Mary! ?Exclamou eufórica. ?O que está fazendo aí? Por que não desce? Vim falar com você e...

?Não levante a voz ?lhe disse, acompanhando a sua ordem um leve movimento de suas mãos. ?Não pode saber que estou aqui. Se me descobrire, queimará todos os meus livros ?ela adicionou aterrorizada.

?Quem? ?Retrucou arregalando os olhos. Subiu um degrau, para poder vê-la melhor, mas a recusa de Mary a fez retroceder.

?Minha mãe ?bufou. ?Estou de castigo. ?E a vergonha que sentiu naquele momento em confessar o que estava acontecendo fez suas bochechas corarem.

?De castigo? O que você fez? ?Valeria insistiu em saber.

?Não posso falar, Shira aparecerá em breve e não deve me descobrir ?declarou sem afastar o olhar da porta por onde a empregada tinha entrado. ?Então, veio me ver?

?Sim. Meu irmão me pediu para fazê-lo. Ele sabia, de alguma forma, que você não deixou sua casa desde que saiu da dele e estava preocupado.

?Que atencioso da sua parte! ?Exclamou, revirando os olhos.

Faltava apenas, para que seu castigo aumentasse mil anos mais, que lorde Giesler aparecesse em sua casa perguntando por que sua filha continuava trancada. Sua mãe sofreria uma repentina apoplexia!

?Não pode descer? Preciso falar com você, mas jamais imaginei que deveria fazê-lo desta forma ?disse perplexa. Não tinha irmãs, nem primas, mas filhas e elas agiam da mesma maneira quando alguém era castigada.

Estava prestes a responder quando Shira saiu. Mary amaldiçoou baixinho e franziu a testa. Não seria capaz de executar seu plano? Pela primeira vez havia se arrumado decentemente! Embora essa leve raiva tenha desaparecido quando notou que sua governanta voltou para a sala.

?Minha mãe lhe dará uma desculpa para impedir que desça. Você insista que precisa me ver ?começou a dizer enquanto se levantava e saia do esconderijo. ?Quando eu aparecer confirme tudo o que digo ?acrescentou antes de desaparecer tão rapidamente quanto um fantasma deveria.

Valeria desviou o olhar do topo da escada e suspirou. Por que eles a castigaram? Que tipo de trapaça teria feito para enfurecer a sua mãe? E... como ela iria se intrometer na ordem de uma mãe? Não era sensato! O que aconteceria no futuro quando ela estivesse no lugar da Sra. Moore? Deixaria que uma de suas filhas se livrasse de um castigo quando aparecesse alguma amiga procurando-a? E por que Philip e Mary a colocaram em uma situação tão embaraçosa? Só esperava que, depois de tudo o que estava fazendo, seu irmão aceitasse a baronia ou... o mataria!

?Sra. Reform, se fizer a gentileza de me acompanhar, a Sra. Moore ficará encantada em recebê-la ?Shira a informou.

Sem apagar o sorriso gentil do rosto, Valeria se aproximou da porta, pensando em Mary, Philip, na baronia e os castigos de seus filhos. Ela balançou a cabeça levemente, afastando tudo o que sua mente lhe oferecia. Precisava se concentrar no motivo pelo qual tinha aparecido e, logicamente, não podia confessar a verdade. Outro ponto a discutir com Philip, por que... como poderia pedir aos filhos para não mentirem quando ela foi a primeira a fazê-lo? Irritada, tendo que pular todos os princípios morais que ensinou aos pequenos, ficou em frente à entrada e observou a Sra. Moore. Ela permanecia no centro da sala, usando um lindo vestido esmeralda. Seus cabelos, recolhido em um coque esticado, e aqueles olhos claros a perseguindo sem piscar, indicavam que sua presença não era muito desejada.

?Obrigado por me receber, Sra. Moore ?comentou Valeria apertando as mãos entre as suas.

?Obrigado por ter vindo, Sra. Reform ?disse educadamente. Uma vez que se separaram, Sophia apontou para um assento. ?Shira me disse que quer conversar com Mary, mas ela ainda não desceu para o café da manhã. Imagino que esteve a noite toda lendo algum livro sobre medicina ?tagarelou, enquanto a convidada se sentava. ?Se desejar, enquanto a esperamos, podemos tomar um chá.

?Se não for muito incomodo ?considerou ela. Embora soubesse que não chegaria a tomá-lo. A ansiedade que Mary mostrou indicou-lhe que tinha tramado algo em que não incluía uma conversa amável com sua mãe e um chá.

?Nenhum ?Sophia disse sentando-se ao lado de Valeria. ?Shira, por favor, chame...

E então, como se tivesse surgido uma repentina nevasca, Shira se afastou com rapidez da porta, deixando passagem a uma jovem que corria como um galgo.

?Valeria! ?Mary exclamou, entrando na sala com uma urgência incomum. ?Que alegria vê-la novamente!

De onde veio esse rosnado? A família Moore tinha um cachorro escondido na sala? Porque esse barulho costumava ser emitido por Ricardo, o animal de estimação da família, quando Fiona puxava suas longas orelhas e Charles queria usá-lo de cavalo.

?Bom dia, Mary ?ela disse se levantando rapidamente. Como fez com a Sra. Moore, apertou suas mãos com as de sua amiga e aceitou com prazer os dois beijos que a jovem lhe ofereceu nas bochechas. ?Aqui estou ?acrescentou olhando para ela com os olhos bem abertos, esperando descobrir o que havia tramado.

?Bem, você veio no melhor momento ?Comentou com um leve sorriso. Então observou sua mãe, que franzia o cenho e olhava para ela com advertência, mas não se assustou. Ela preferia ouvir milhares de palavrões e ordens há suportar outro dia em seu quarto... costurando? Nem morta! ?Bom dia, mãe ?disse suavemente. Se aproximou dela e lhe deu dois beijos mantendo uma distância segura. Não colocaria a mão em seu braço se arriscando a ser beliscada até que o sangue corresse por aquela área de sua pele.

?Mary... ?Sophia respondeu com aparente tranquilidade. ?Estava oferecendo um chá à nossa convidada. Como ainda não desceu para o café da manhã, pensei que ainda estava dormindo.

?Que nada! Hoje eu acordei muito cedo. Mas nossa querida Shira me serviu café no quarto quando eu a informei que estava acordada ?declarou com certo sufoco, como se realmente sentisse vergonha da insinuação de sua mãe de tratá-la como preguiçosa.

?Já vejo... ?Sophia apontou para o vestido e o penteado de Mary. Ela não tinha passado os dias em uma camisola e despenteada? Que coincidência oportuna! A Sra. Reform apareceu e usava um vestido para passear...

?Ela realmente lhe ofereceu um chá? ?Perguntou, levando a mão na boca, como se a palavra chá fosse horrenda. Então ela olhou para Valeria, que parecia, além de perplexa, indisposta, já que as bochechas dela estavam pálidas. ?Não lhe disse que pode pôr em perigo a sua saúde se beber infusões?

?Em perigo? ?As duas perguntaram ao mesmo tempo.

?Sim. Outro dia me confessou que não tolera bem as infusões, que lhe produzem flatulências severas ?manifestou adotando a atitude própria de um médico.

?Não queria demonstrar desconsideração pela oferta...

E Valeria voltou a recordar seus filhos, a regra de não mentir e a maldita baronia de Philip, acrescentando a esses pensamentos a inoportuna indisposição de... flatulências? Não poderia explicar algo menos embaraçoso?

?Também temos café ?lhe ofereceu Sophia que, ao ver a cara de espanto da Sra. Reform, não pôde concretizar se era devido ao perigo que esteve a ponto de sofrer ou pela invenção de sua filha. Que ficaria de castigo mais duas semanas se a enganasse.

?Mas... não veio me levar para passear? ?Perguntou com um pequeno soluço. Diante do barulho que ofereceu, sua mãe virou-se para ela para lhe falar: ?Na outra noite, depois da minha horrível decisão de falar com lorde Giesler ?declarou com fingido pesar ?Valeria insistiu em me levar até o Gunter’s e tomar um sorvete de... amoras?

?De limão ?Valeria a corrigiu rapidamente.

Bem, a acidez do sorvete poderia se parecer com o que o estômago estava emitindo naquele momento. O que diabos estava fazendo? Por que agia dessa maneira? Ela teria enlouquecido durante o confinamento?

?De limão ?Mary repetiu esboçando um grande sorriso. ?Imagino que não tenha vindo antes por causa da maldita chuva, estou certa? ?Ela perguntou olhando para sua salvadora com olhos suplicantes.

?Se parece bom para você ?começou a dizer à Sra. Moore, que abria a boca e a fechava como se fosse um peixe fora da água ?adoraria cumprir a promessa ?acrescentou, colocando as mãos atrás das costas para poder cruzar os dedos. Ela pagaria por isso! Deus sabia que Mary pagaria a mentira, o constrangimento e a horrível tristeza que ela estava sofrendo! E, infelizmente para a jovem, ela sabia muito bem como pagaria sua dívida. Ah, se pagaria! ?Além disso, também preparei um pequeno almoço em minha casa. Se bem me lembro ?expôs, pegando uma das mãos de Mary em uma atitude carinhosa e afetuosa ?também me prometeu que visitaria minha casa e faria um exame médico completo em meus seis filhos.

?Seis? ?Mary estalou abrindo tanto seus olhos que eles podiam saltar das órbitas.

?Sim ?afirmou a mãe orgulhosa. ?Candie, Charles, Eleonora, Samantha, Fiona e o pequeno Trevor. Todos, para meu pesar, se contagiaram com um resfriado terrível e desejo que sua filha me garanta que não fiquem com sequelas ?acrescentou, esboçando um sorriso de orelha a orelha.

?Então... quer que leve minha maleta? ?Perguntou perplexa.

?Sim, acho que é o mais conveniente... ?Valeria sugeriu.

Agora sim que estava em apuros. Todo o seu plano tinha sido desperdiçado! Filhos? Seis? E teria que verificá-los um a um? Não lhe disse que eram uns trastes, que se pareciam com o pai? Como lidaria com uma tarde cercada por demônios? Só queria comprar suas revistas e tomar um pouco de ar fresco!

Sophia, que até agora permaneceu calada e duvidando da credibilidade das duas, finalmente deu um grande sorriso. O brilho que ela mostrava em seus olhos expressava tanta diversão, que Mary queria sentar no chão e começar a chorar. Seria um bom castigo, o fato de ter que atender seis filhos, e tinha merecido, por usar a pobre mulher como tábua de salvação. No entanto, não podia dar o braço a torcer tão facilmente. Devia mostrar um pouco de... perseverança?

?Se lhe prometeu que visitaria essas crianças, me parece bom manter sua palavra. Mas tenho que lembrá-la o estado em que está. Se voltar com as mãos cheias de livros, também cumprirei a minha ?afirmou, com aquele tom firme que fez os cabelos de sua filha se arrepiarem. ?Sra. Reform, confio no seu bom senso, como mãe, entenderá que uma filha deve obedecer sem reclamar; depois do sofrimento que padecemos no parto, das noites sem dormir, todas as preocupações que nossas mentes nos oferecem para canalizá-las de um jeito bom, uma filha amada e respeitada deve ser fiel aos padrões da família.

?Claro, Sra. Moore. Entendo. Como lhe disse na noite passada, dedico todo o meu bom trabalho para que meus filhos, tão insuportáveis quanto o pai, cumpram com suas obrigações e ordens.

?Sendo assim... ?olhou para Mary de cima a baixo. Ela ainda não explicou como se vestira tão rápido. Não podia alegar uma desculpa para mandá-la para seu quarto, nem atrasar a saída. Tinha que admitir que era muito esperta. Sua segunda filha, para seu arrependimento, herdara a inteligência de seu marido e a astúcia característica de sua família. Gritava alto e se orgulhava de que nem uma gota do sangue Arany corria em suas veias? Ahh! Mary estava muito errada! Faltava apenas uma coisa para sua transformação em cigana ser completa... Uma que, se não estava errada, era a razão pela qual estava de castigo. ?Comporte-se, Mary. E não faça a Sra. Reform se arrepender de ter liberado você de seu castigo ?finalmente expos.

?Obrigada mãe! ?Exclamou se lançando para ela para lhe dar um forte abraço. ?Garanto-lhe que me comportarei adequadamente!

?Não faça promessas que não pode cumprir ?Sophia a repreendeu, tocando lentamente suas costas.

?Vou cumpri-las ?garantiu com firmeza. ?Vou cumpri-las todas ?confirmou.

?Sendo sim, você pode sair. Certamente os pequeninos estarão ansiosos para ver sua mãe novamente ?Sophia disse estendendo as mãos para Valeria.

?Prometo que sua filha terá o remédio que merece ?lhe sussurrou quando lhe deu dois beijos na bochecha.

?Confio nisso ?a Sra. Moore respondeu da mesma maneira.

?Vamos? ?Interrompeu Mary ansiosamente.

?Sim ?Valeria respondeu caminhando em sua direção.

Depois que Shira lhes ofereceu o casaco e a maleta, que sua mãe guardara em algum lugar da casa, as duas desceram as escadas com os braços entrelaçados, mostrando a imagem de amigas que se conheciam desde a infância. Mary, ao sair de casa, fechou os olhos e deixou o sol tocar suas bochechas. Havia ansiado tanto por essa sensação de bem-estar! Mas finalmente conseguia respirar ar puro, desfrutar de um dia tranquilo e... comprar suas revistas!

?Bem ?Valeria começou a dizer quando as duas se acomodaram na carruagem ?pode me dizer por que te castigou?

?Por uma bobagem... ?Mary expressou enquanto dava um pequeno pontapé na maleta.

?Qual? ?Insistiu a Sra. Reform, a quem não passou despercebido o estupor de sua nova melhor amiga.

?Não lhe pareceu correto que operasse o seu irmão nu... ?declarou, encolhendo os ombros, como se ela não tivesse sido prejudicada por tê-lo visto daquela forma.

?E como pretendia que fizesse isso? ?Soltou Valeria com uma mistura de confusão e surpresa.

?Bem, segundo ela, vestido ou com os olhos vendados. ?Depois de suas palavras, soltou uma grande risada. Quando se acalmou, observou de relance Valeria e advertiu que seu rosto não mostrava a mesma diversão que ela. Moveu-se desconfortável no assento, apaziguou o riso e acrescentou: ?realmente quer que eu veja seus filhos?

?Deseja comprar as revistas que comentou? ?Respondeu, olhando para ela sem piscar.

?Claro! ?Exclamou rapidamente. ?Preciso delas urgentemente!

?Pois as terá. Mas antes faremos uma parada.

Encostou a cabeça na almofada, colocou as mãos nas têmporas e as apertou. Que Deus tivesse misericórdia, que ajudasse seus filhos e não os castigasse pelo que ela faria. Mas, depois de tudo o que havia sofrido, teria que fazê-lo ou sofreria a síncope que pobre Sra. Moore aguentou ao descobrir que sua filha tinha visto o corpo nu do seu irmão.

?Que parada? Para onde vamos? Por que esfrega a cabeça? Dói? Sofre com assiduidade de enxaquecas?

?Em primeiro lugar, não sofro de enxaqueca, mas em breve sofrerei... ?comentou, com um halo de mistério.

?Por quê? ?Mary estalou confusa.

?Porque vou ouvir você gritar ?disse fechando os olhos e se preparando para o pior.

?Por quê? ?Repetiu a moça.

?Porque primeiro vamos visitar meu irmão...

Nesse momento, Mary começou a soltar mil palavrões, a amaldiçoar o destino e a caluniar sua má sorte, fazendo Valeria temer a enxaqueca.


Capítulo VIII


Amiga?! Ninguém podia considerar amiga uma pessoa que lhe estende uma armadilha! Porque, definitivamente, foi isso o que a Sra. Reform fez.

Depois de gritar tudo o que lhe passou pela cabeça, Mary cruzou os braços sobre o peito e rosnou. Desde que Valeria deixou claro qual era seu objetivo, toda a felicidade que ela sentiu quando foi libertada da prisão de sua casa, desapareceu. Não havia mais sorrisos em seu rosto, depois de gritar, seus lábios permaneceram fechados, manteve o olhar para fora, bufou sessenta vezes e amaldiçoou lorde Giesler por mais sessenta.

Lorde Giesler! Esse nome denotava perigo para ela. Por sua culpa, ela foi punida e, por sua culpa, teria que atender seis filhos antes de poder comprar seus preciosos folhetos científicos. Sem contar com o fato de que o veria novamente. Havia punição maior no mundo? Certamente, sua mãe, quando descobrisse que havia aparecido na residência do homem proibido, procuraria uma maneira de superá-lo... E, tudo por quê? Porque imaginou que sua suposta amiga a ajudaria a sair do seu cativeiro e a faria passar um dia esplêndido. Mas é claro, tudo tinha sido distorcido, nada sairia como ela planejou.

?Mary... ?Valeria disse a ela quando a carruagem entrou no jardim de Kleyton House ?Prometo que comprará esses artigos e que não terá que suportar meus filhos.

?Promessas... promessas... ?Mary resmungou.

?Isso aconteceu por sua culpa ?ela a repreendeu, encarando-a. ?Só queria falar com você e descobrir por que não saiu de casa. Mas o meu plano foi frustrado ao me pedir que te ajudasse a se liberar do castigo ?garantiu, com o tom de voz que sua mãe usava quando a repreendia por uma atitude ruim. ?Te prometi que compraria essas revistas; e mais, eu mesma te darei pelo inconveniente que isso possa causar. No entanto, acho justo te pedir, depois de me colocar em uma situação tão comprometedora, que confirme o estado de saúde do meu irmão.

?Meu pai a visita todos os dias e ouvi-o dizer a minha mãe que sua evolução é adequada ?murmurou. Com os braços ainda cruzados sobre o peito, virou suavemente a cabeça na direção dela e a olhou como se estivesse procurando a melhor maneira de jogá-la para fora da carruagem sem ter que abrir a porta.

?E... não sente curiosidade e ter certeza com seus próprios olhos? ?continuou Valeria.

Curiosidade? O que sentia naquele momento era o desejo de subir as escadas e enredar as mãos no pescoço de lorde Giesler para sufocá-lo. Mas não era o momento nem o lugar para proclamar seu desejo em voz alta. A melhor coisa, para salvar pelo menos uma parte do dia, era fingir estar preocupada, vê-lo, sorrir para ele e, depois de confirmar que ainda era um arrogante, petulante e estúpido, retornar à carruagem para visitar a livraria do Sr. Slow antes de fechar.

?A verdade é que sim. Tem razão, Valeria. Estou muito intrigada em saber como o seu estado de saúde evoluiu e se cumpriu tudo aquilo que ordenei. ?Depois disso, sorriu.

A Sra. Reform bufou, como uma de suas meninas, entendendo que ouviriam uma repreensão bastante enfadonha. Realmente pensava que suas palavras pareciam convincentes? Só lhe faltava alongar os lábios um pouco mais, para mostrar a imagem de uma mulher digna de ser trancada no hospital psiquiátrico de Bethlem.

A dúvida sobre o plano que havia idealizado a invadiu. Mary ainda não apreciava seu irmão. Mostrou na primeira noite e continuava expressando naquele momento. Realmente não sentia nada por ele? Nem mesmo alguma admiração? Qualquer mulher, além dela, é claro, levaria mil anos para esquecer um corpo tão bonito quanto o de Philip, e procuraria maneiras de fazê-lo entender que lhe devia um grande favor. Muitas delas até tentariam se tornar suas prometidas, amantes ou... o que fosse! No entanto, Mary era imune à virilidade de seu irmão. Só faltava ela bocejar para acentuar essa indiferença. Se Philip imaginava que ela poderia se apaixonar, estava muito errado. Antes colocaria em sua cama uma égua do que a filha do médico.

Elas continuaram em silêncio até a carruagem parar bem perto da entrada principal da residência. Em homenagem a essa discrição mantida pelos funcionários de seu irmão, o cocheiro abriu a porta depois de se certificar de que não havia ninguém por perto. Em primeiro lugar, e isso deixou Valeria confusa, o funcionário ofereceu a mão para Mary. Embora, pela cara que fez, ela estava tão atordoada quanto sua acompanhante.

?Senhorita Moore ?lhe disse o lacaio quando ela aceitou sua ajuda para descer ?tenha cuidado com este último degrau. Não gostaria que sofresse um acidente.

Os olhos de Mary se arregalaram. Não sabia muito bem como tomar aquela atitude considerada. Estaria tirando sarro dela? Queria lhe dizer algo inapropriado, para que o rosto amável exibido pelo cocheiro desaparecesse, mas não ousou dizer nada. Pela primeira vez em sua vida, identificou, com surpresa, que não havia mordacidade, mas ternura e carinho. A única coisa que ela não conseguia descobrir era a razão dessa estranha cordialidade.

?Senhora Reform.

Quando Mary pousou os dois pés no chão e o homem confirmou que ela não sofreria nenhum tropeço, ele estendeu a mão para Valeria e a ajudou a descer.

As duas mulheres subiram lentamente as escadas que levavam à entrada. Surpreendidas e mudas, pois não sabiam o que dizer. Philip teria imaginado que a levaria e ordenou que os servos a tratassem com toda a gentileza que pudessem demonstrar? Não. Ele não sabia nada sobre seu plano. Isso aconteceu quando ela pediu para sair de casa para passear. Então, o que estava acontecendo?

Com milhares de ideias brotando em sua cabeça, Valeria se adiantou a Mary para bater na porta, mas ela não precisou. Quando as pontas dos dedos tocaram a aldrava, esta se abriu.

?Senhorita Moore! ?Shals exclamou ao encontrá-la. ?Que alegria vê-la novamente!

Os olhos de Mary caíram sobre a senhora Reform e então, muito lentamente, ela os dirigiu para o mordomo.

?Estavam me esperando? ?Ela perguntou com uma mistura de espanto e estupor.

?Oh, não! ?Shals respondeu se afastando o suficiente para deixá-las passar. ?O senhor não nos avisou de sua chegada, mas todos nos perguntávamos quando apareceria ?acrescentou, estendendo as mãos para ajudá-la a tirar o casaco.

?Todos? ?Continuou falando perplexa.

?Sim ?ele respondeu. Depois de pegar seu casaco e o de Valeria, para quem ele mal olhou. Shals fez um leve gesto com o queixo no lado esquerdo do primeiro andar. ?Todos ?repetiu.

Isso era uma comitiva de boas-vindas? Por que diabos todo o serviço de lorde Giesler a esperava? Eles queriam linchá-la, como fariam os aldeões ao declarar uma mulher inocente uma bruxa? Com medo, ela deu alguns passos para trás, tentando tocar na porta de entrada com as costas. Mas encontrou a Sra. Reform, que havia parado de respirar.

?O que é tudo isso, Shals? ?Valeria finalmente falou.

?Senhora... ?comentou o homem um pouco envergonhado. ?Peço-lhe mil desculpas se fizemos algo errado. Mas quando a donzela Phiona viu a Srta. Moore sair da carruagem com a maleta, a notícia se espalhou e, bem, estávamos esperando por ela por que... muitos deles precisam... desejam que...

Mary entendeu imediatamente. O que o pobre mordomo estava tentando dizer à fez se sentir tão orgulhosa e feliz que esqueceu a raiva. Eles estavam esperando por ela! Queria que ela os atendesse! Shals não disse a seu pai que nenhum dos criados pediria ajuda a outro médico além de sua filha? Bem, ele não mentiu. Aquelas pessoas fizeram isso. Eles não se importavam que ela fosse uma mulher, que ela não tinha uma licença ou que ela os obrigou a lavar as mãos mil vezes. Eles haviam determinado que somente ela era a pessoa que poderia atendê-los e lá estavam eles, em perfeita ordem de espera, aguardando sua decisão. O prazer, o bem-estar e a emoção que ela sentiu, embaçaram os olhos. Não pensaria em chorar, certo? Ela nunca chorava! Afogando aquele soluço, fazendo desaparecer o nó na garganta que a impedia de respirar, agarrou a maleta com mais força, olhou para Valeria e disse:

?Lorde Giesler pode esperar.

?Obrigado! Obrigada! ?Ouviu os servos dizerem.

?Claro ?Valeria respondeu, suportando aquele grito de felicidade que ela queria liberar. ?Se não se importa, enquanto os atende, subirei até...

Não terminou a frase, Mary não se importava com o que ela ia dizer. Antes de esclarecer qual era sua intenção, a mulher se voltou para os funcionários e começou a perguntar o que estava acontecendo com eles. O Sr. Shals olhou para Valeria e lhe sorriu.

?Se desejar, posso informá-lo que a Srta. Moore acaba de chegar.

?Quer que saia da cama e desça as escadas três em três? ?Perguntou Valeria zombando.

?Tem razão, senhora. É melhor que não descubra o que está acontecendo aqui até que a Srta. Moore termine os exames médicos ?respondeu sem apagar o sorriso.

?Vou fazer café. Acredito que Mary precisará depois dessa incrível recepção ?apontou enquanto se dirigia para a cozinha.

?Deixe-me ajudá-la, porque, como pode ver, a cozinheira é a primeira da fila ?apontou Shals andando atrás dela.

E Valeria soltou uma risada alta.


***

Não aguentaria nem mais um dia trancado naquele quarto. Seu desespero aumentava a cada minuto. A isso, acrescentou a angústia de não saber nada sobre Mary. Por que não havia saído de sua casa por tanto tempo? O que a segurava? A ideia de que ela estivesse doente permanecia latente em sua cabeça, assim como seu desconforto por não poder se levantar, se arrumar e aparecer na residência dos Moore para descobrir pessoalmente o que havia acontecido com ela. Olhou novamente para o relógio de bolso, que Shals lhe enviou, e bufou. Aquilo só lhe informava que o tempo não corria tão depressa como desejava. As horas pareciam dias e dias... anos. Sentou-se muito lentamente no colchão e procurou o livro que Martin lhe deu quando o visitou dois dias depois de Mary operá-lo. Como havia pensado que a teoria sobre a lei de gravitação universal, de um tal de Isaac Newton, poderia aliviar seu desespero? Realmente imaginou que ele passaria horas procurando o motivo pelo qual dois corpos se atraem? Não era necessário ler esse livro para saber a resposta! Ele havia sido atraído tantas vezes que podia refutar qualquer teoria absurda! Os homens atraíam mulheres, estas buscavam a excitação deles e, finalmente, essa proporcionalidade ao produto das suas massas terminava em um encontro íntimo.

?É um belo princípio matemático ?lhe disse quando ele arregalou os olhos ao descobrir o que significava para seu irmão o melhor presente do mundo. ?Você será cativado pela simplicidade da fórmula gravitacional. É, sem dúvida, a mais bela simplicidade que você pode encontrar na vida. ?E depois disso, ele sorriu de orelha a orelha.

?Você já dormiu com uma mulher, Martin? Ou você prefere ir para a cama com... isto? ?Perguntou bruscamente, apontando um dedo para a capa do livro que jogara na colcha como se estivesse queimando.

?Por que essa pergunta, Philip? ?Retrucou, eliminando o sorriso imediatamente.

?Porque não entendo como pode comparar fórmulas matemáticas com a beleza e as maravilhas da natureza. Para mim, isso não se encaixa nessas descrições. Você já dormiu com uma mulher ou ainda é virgem? ?Continuou.

?Claro que não sou! ?Exclamou envergonhado. ?Tenho minhas fraquezas...

?Carnal ou intelectual? Porque não tenho certeza de que você entende a diferença entre um bom par de seios femininos e duas maneiras de calcular o mesmo resultado ?garantiu, cruzando os braços e franzindo a testa.

?Como se atreve a falar comigo dessa maneira? Não sente remorso nem respeito por uma mulher?

?Sim, respeito todas elas. Pode perguntar as minhas amantes se elas foram respeitadas antes de deixá-las exaustas em suas camas. Mas não desvie o assunto, Martin. Você parou de ser...?

?Não vou te responder. Primeiro de tudo, sou um cavalheiro ?ele respondeu com raiva. ?Se estive com uma mulher ou com várias, isso só importa para mim.

?Ou seja, você evita falar sobre isso porque ainda não sabe o que significa prazer carnal ?afirmou enquanto olhava para ele.

?Valeria me avisou que seu humor havia piorado ?comentou indo em direção à porta?, mas nunca imaginei que você atingiria um nível tão alto de imbecilidade.

?Não é imbecilidade, mas aborrecimento ?indicou, sem poder apagar um sorriso malicioso de seu rosto.

?Nesse caso, espero que deixe de se aborrecer em breve ?declarou antes de bater a porta.

E desde aquele dia, não falou com Martin novamente. Shals informou que ele apareceu na residência para perguntar sobre sua saúde, mas, depois do que aconteceu entre eles, não teve coragem de comparecer diante dele.

Abriu o livro na página em que havia deixado na noite anterior, bufou com o aborrecimento que lhe causava e tentou se concentrar na maldita fórmula da força exercida entre dois corpos. Naquele momento, sua mente se afastou da constante gravitação universal, do valor dessa constante e da massa dos sujeitos, para se concentrar em Mary. Sim, de fato, ela foi o resultado de toda a maldita formulação que o livro comentava. Ela exercia uma força de atração até ele que o deslocava, entorpecia e o deixava vulnerável. Desde que ela jogou aqueles tubos, que para assimilá-lo com a teoria eram as massas de atração, ele não conseguiu pensar em outra coisa senão procurar o contato entre os dois. Eles tiveram, é verdade, mas em primeiro lugar ele estava inconsciente e não se lembrava de nada, e em segundo lugar o beijo não foi suficiente para obter um bom resultado. Que poder suas carícias teria em relação a ele? O que sentiria ao ver como as pontas dos seus dedos acariciavam sua pele? Se excitaria ou se incomodaria? Mary seria uma mulher apaixonada ou mostraria a mesma frieza que exibia ao mundo ao seu redor? Teria observando-o com admiração ou calculou apenas a dose apropriada de sedativo para o seu corpo grande? Philip fechou os olhos e recostou-se nos três travesseiros atrás das costas. A imagem dela apareceu sem fazer esforço. Ele a viu rindo do comentário que fez ao pai quando perguntou sobre a quantidade de clorofórmio que havia lhe dado. Um cavalo? Maldita mulher que o comparou a um cavalo! Não havia comparações mais bonitas? Teria sido suficiente com o fato de que ela evocava sua grande magnitude, que sugeria sua forte musculatura, mas não. Mary não conseguia encontrar um símile que o deixasse orgulhoso. Ele teve que se parecer com um animal de quatro patas. Agradecia a Deus por não tê-lo chamado de porco ou bezerro, mesmo assim, ainda estava descontente. Talvez o poder de sedução que ele dava a outras mulheres fosse imune a ela. Talvez ele não tenha percebido por que... Não! Ele se recusava a pensar sobre isso. Não havia nenhum homem para Mary além dele e isso a deixaria saber assim que ele pudesse deixar sua casa. Toda vez que ela saísse de casa, ele a esperaria na porta. Sempre que ela decidisse aparecer nas reuniões que os médicos realizavam as sextas-feiras, ele ficaria sentado ao lado dela, ouvindo-a atentamente e, é claro, a encontraria em todas as festas que ela decidisse comparecer. Ele pediria que ela dançasse uma, ou duas danças, ou talvez tudo o que ela pudesse suportar. Só para deixar bem claro, aos cavalheiros que a olhassem, que não teriam chance com ela. Quando um Giesler encontrava a mulher de sua vida... ninguém ficava no seu caminho!

Esse pensamento só lhe causou mais inquietação e estresse. O lençol o prendia, a suavidade do colchão o incomodava. Até parecia que os travesseiros macios tinham espinhos! Aturdido e nervoso, ele estendeu a mão esquerda para a mesinha e pegou a sineta que Shals colocou ali na mesma noite em que Mary saiu. Ele franziu a testa, apertou a mandíbula e amaldiçoou sua vida. Tudo começava a girar em torno dela. Até o motivo de tocar uma miserável sineta! Não havia dúvida, ele tinha que sair de lá e aparecer na casa dos Moore para vê-la ou ele ficaria louco.

?Maldito seja, Shals! ?Explodiu quando, depois de tocar a sineta mais de vinte vezes, seu mordomo não apareceu. ?Pode-se saber por que ninguém me responde? Ficaram surdos? ?Continuou gritando. Com raiva, afastou o lençol do corpo. Pelo menos eles tiveram a decência de ajudá-lo a vestir calções. Não seria apropriado aparecer no topo da escada nu e gritando alto que todos estavam demitidos. Sem dúvida, Valeria o levaria para fora de seu quarto, sim, mas para levá-lo diretamente a Bethlem.

?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa ?Mary o ameaçou quando, ao abriu a porta, o encontrou em pé ao lado da cama.


CONTINUA

Londres, 28 de outubro de 1882, residência Moore.
Sophia observou pela janela como a carruagem em que estava seu marido se afastava de casa. Deveria estar acostumada que Randall saísse na metade da noite, mas naquele momento teria dado tudo o que tinha para que não saísse do seu lado. Se abraçou e tentou acalmar o calafrio que surgiu ao se sentir tão sozinha. A casa ficou em silêncio, demais para o seu gosto. Desde que suas filhas nasceram, sempre havia ruído pela casa, correndo pelos corredores. No entanto, desde que três delas saíram, aquilo não parecia uma casa, mas uma das bibliotecas que Mary costumava visitar. Fixou seus olhos na lareira, já apagada, e suspirou fundo. Como se encontravam suas meninas? O visconde iria atendê-las com o respeito que mereciam? Esperava que assim fosse e que as três se comportassem adequadamente. O único que não suportaria seria que, depois da saudade que sofria por não poder estar com elas, voltariam com uma infinidade de escândalos em suas costas. Desviou o olhar para as cadeiras que haviam ao redor da mesa da sala de jantar e notou como sua dor aumentava ao observá-las vazias. Em noites como aquela, Anne e Josephine deixavam seus quartos e desciam para acompanhá-la. Costumavam conversar sobre qualquer assunto até o amanhecer e quando o resto de suas filhas aparecia, tomavam o desjejum conversando sobre o que haviam planejado fazer o resto do dia.
Apoiou as costas na janela e suspirou. Sentia falta dos gritos que oferecia a Josephine por ter perfurado outra janela ou por terminar com a valiosa porcelana de Randall. Sentia falta de pedir a Elizabeth que deveria mudar seu comportamento inadequado e sentia falta de aparecer na sala de pintura de Anne para admirar seu novo trabalho. Quantas vezes suplicou que dessem a ela algumas horas de tranquilidade? Muitas! No entanto, agora não queria, pois as usava para pensar em como se encontravam. A pequena soldado se adaptaria a uma vida repleta de protocolos femininos ou talvez o visconde permitisse continuar com seus habituais comportamentos masculinos? Seguiria as instruções Randall? Porque se fosse assim, tinha receio que dormiria e se banharia com a nova arma que lhe comprou. Só esperava que o visconde se mantivesse afastado de Anne para que não desse a Josephine a oportunidade de cumprir as ordens que seu pai lhe dera. E Elizabeth? Agiria de maneira adequada ou continuaria mostrando atrevimento? E Anne? Continuaria sonhando com ele? Se apaixonaria por esse homem?
Eram só perguntas e para seu desespero não encontrava uma única resposta. Somente as encontraria quando voltassem e para que isso acontecesse faltava pouco mais de três semanas.

 

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Uma pontada no estômago a fez apertar as mãos sobre aquela região do corpo. Continuava sem ter certeza de ter agido corretamente. Talvez devesse encontrar uma forma de romper o acordo com o visconde e não desistir tão rapidamente. Mas... que fez? Nada, porque os sonhos de Anne avisavam que não podia impedir aquilo que já estava previsto. No entanto, a dúvida sobre a escolha feita pelo fogo a assaltava a cada momento. Como poderia ser o visconde o homem destinado para Anne? Qual seria o motivo pelo qual Morgana mostrava a Anne que ele era o escolhido? A maldição de Jovenka era muito clara: o sangue contaminado voltaria a ser puro. Que tipo de pureza se referia? Teria entendido errado o juramento? Não, não tinha feito desde que os dois pretendentes de sua filha morreram, tal como sua avó anunciou. Então... porque o visconde, um homem de sangue azul, destruiria a maldição que sua filha suportava desde que nasceu? O que os Bennett escondiam? O que lhes aconteceu? Naquele momento lembrou uma notícia em que afirmavam que os marqueses, dezessete anos depois, reconheciam um jovem como filho legitimo. Segundo o jornal, foi roubado logo após o nascimento e não denunciaram o desaparecimento para não criar um escândalo social. Como poderiam manter em segredo semelhante atrocidade? A aristocracia era tão frívola? Como a marquesa foi capaz de suportar uma dor tão cruel? Sophia franziu a testa e suspirou profundamente. Nenhuma mãe aceitaria uma situação semelhante a menos que não fosse filho dela. Talvez essa fosse a verdadeira razão e não o sequestro. Era mais lógico deduzir que o falecido marquês de Riderland, com uma reconhecida reputação de libertino, mantivesse um idílio com uma mulher, talvez uma cigana, e o visconde era fruto desse romance. Quando a mulher anunciara ao seu amante que teve um filho dele, ele seria rejeitado pelo pai, como todos os bastardos que sua avó Jovenka teve, e o menino vivera com a mãe durante aqueles dezessete anos. O que os fez mudar de ideia? O acidente que sofreu a esposa do seu único filho vivo os incentivou a finalmente reconhecê-lo? Isso seria uma dedução bastante comum entre a aristocracia, pois eram incapazes de se separar do título de nobreza que haviam mantido por gerações. Talvez fosse essa a razão pela qual o falecido marques decidiu assumir a paternidade. Embora ainda houvesse uma questão não resolvida... por que a marquesa, que todo mundo descrevia como uma mulher frívola, aceitou a decisão de seu marido? Se sentira obrigada? Queria evitar uma humilhação social dessa maneira? O que quer que aconteça com a família Bennett, não importava mais, o único de deveria se preocupar era o motivo pelo qual sua mãe criadora provocou uma aproximação entre o visconde e sua filha.

Decidiu voltar para o seu quarto. Ainda podia aproveitar algumas horas de sono antes que Madeleine e Mary decidissem se levantar. Além disso, naquela mesma manhã se propôs a visitar Vianey para falar pessoalmente sobre a viagem de suas filhas com o visconde. Se queria evitar qualquer rumor inadequado sobre sua família, a baronesa era a pessoa ideal. Ela compreenderia melhor que ninguém e ajudaria a proteger a honra de suas filhas porque, se começavam a fofocar sobre a honra de suas meninas, mesmo que o visconde quebrasse a maldição, nenhum homem decente apareceria em sua casa para se comprometer com alguma delas.

O pensamento de vê-las casadas a fez sorrir. Que marido seria apropriado para a destemida Josh? Quem poderia conviver com uma mulher como Mary? Algum cavalheiro seria capaz de eliminar o orgulho de Elizabeth? E o que aconteceria com Madeleine? De acordo com sua visão, ela também encontraria o homem que a amaria tanto que faria desaparecer sua timidez excessiva. Como conseguiria? Quem seria? E, realmente existiam esses valiosos maridos? Porque de uma coisa tinha certeza; suas filhas eram muito especiais e não aceitariam qualquer homem.

Colocou a mão esquerda sobre o corrimão de madeira, pisou no primeiro degrau e prendeu a respiração quando ouviu fortes batidas que vinham da porta da frente. No mesmo instante, voltou até a entrada e permaneceu em silêncio para se certificar que tinha ouvido bem. Estava certa. Alguém tinha aparecido em sua residência e batia na porta com a aldrava. Sophia se olhou de cima a baixo. Não se vestia apropriadamente para receber ninguém àquela hora da noite. Além disso, se a razão pela qual tinha vindo a sua casa era seu marido, não podia fazer nada, pois não voltaria até o dia seguinte. Embora a pessoa que se encontrava fora batesse novamente, tomou a decisão de ignorá-la. Se fosse muito urgente, poderia recorrer a residência do doutor Flatman. Olhou para as escadas e suspirou. Por mais que desejasse, um estranho pressentimento a impedia de avançar e insistia que devia aceitar a visita. Mas... por quê? Quem seria?

?Tem alguém aí? ?Uma voz feminina finalmente perguntou. ?Vejo luz através das janelas. Por favor, preciso de ajuda. Sou a Sra. Reform e estou procurando pelo doutor ?insistiu.

Sophia, ao ouvir a voz de uma mulher virou-se e caminhou para ficar atrás da porta, mas não a abriu até ter certeza de que não era uma farsa para entrar na casa e assaltá-la. Quantas vezes os de seu sangue agiam no meio da noite? Centenas! Eram como vermes. Esperavam pacientemente que a casa de algum Sr. rico permanecesse desprotegida para assaltá-la. Sua própria avó agia nesses roubos como uma reivindicação.

?O doutor não se encontra nesse momento, precisou sair ?Sophia respondeu com cautela.

?Sabe quando volta? Vim até aqui porque um dos meus irmãos precisa de atendimento médico e tenho entendido que o Sr. Moore é o melhor médico que temos em Londres ?Valeria insistiu olhando para a porta e sem dar um só passo para trás.

Não estava disposta a sair sem uma pessoa que pudesse ajudá-la. Philip jamais esteve tão doente, nem prostrado em sua cama por mais de um dia. Isso indicava que sua convalescença não tinha nada a ver com uma ingestão soberana de álcool. Pela primeira vez em sua vida, ele realmente adoecera.

?Amanhã. Talvez possa encontrá-lo ao meio-dia... ?respondeu, revendo mentalmente o tom de voz que a mulher usou para falar com ela. Parecia desesperada, agitada e sincera. Mas... isso seria suficiente para confiar nela?

?Eu imploro. Meu irmão está muito doente e não sei a quem recorrer ?insistiu a Sra. Reform. ?Pode perguntar a Sra. Moore se pode me atender?

?Sou a Sra. Moore ?revelou ?garanto-lhe que deixarei meu marido saber que veio. Se tiver a gentileza de me explicar quem é o doente e onde mora, prometo que irá o mais breve possível ?Sophia sugeriu.

?Sua casa é a Kleyton House localizada na Mount Row. Ele se chama Philip Giesler ?Valeria esclareceu depois de um longo suspiro.

Ao ouvir o nome, Sophia arregalou os olhos e prendeu a respiração novamente. Seria a mesma pessoa que acompanhou o visconde dias atrás? Aquele que foi agredido por suas filhas na entrada? Quantos Philips Giesler poderia residir em Londres? E por que, tendo tantos médicos na cidade, aquela mulher aparecia na frente de sua porta?

?Por que escolheu meu marido se há outros médicos na cidade que podem atendê-la? ?Perguntou, depois de supor que o próprio Giesler lhe dissera para vir e procurá-la como pagamento pelo sofrimento que sofrera devido ao mau comportamento de suas filhas.

?Pode abrir? Não quero gritar, por favor. Além disso, seus vizinhos podem espreitar nas janelas e supor que estamos discutindo ?Valeria explicou com um pouco de serenidade.

?Sra. Reform, não estou apresentável. Como compreenderá, não esperava visita e...

?Estou sozinha, Sra. Moore. Não há homem ao meu redor e o cocheiro ainda continua no seu lugar ?informou. ?Só quero que me ajude. Conhece todos os médicos da cidade e, se explicar os sintomas que meu irmão sofre, poderá me indicar que médico é o mais adequado para curá-lo o quanto antes ?insistiu?. Suplico, tenha compaixão. Prometo-lhe que se me ajudar estarei eternamente agradecida e...

Valeria ficou em silêncio ao ouvir como a Sra. Moore começou a mover o ferrolho. Talvez nem tudo estivesse perdido. Talvez houvesse uma chance de descobrir por que Philip, em seus delírios, nunca deixava de mencionar um nome feminino e o sobrenome do médico.

?Entre, conversaremos aqui dentro ?convidou Sophia, vendo que, na verdade, seu rosto mostrava a mesma angústia que sua voz expressava.

Valeria aceitou o convite e entrou na residência. Mas não se moveu da entrada, embora a esposa do médico, depois de fechar a porta, entendeu a mão até o corredor da esquerda. Estava com pressa para voltar. Se o doutor Moore não podia atendê-lo, precisava com urgência descobrir quem o faria e isso atrasaria muito a sua volta.

?Sra. Moore, por favor, quem acha que posso pedir ajuda?

?É assim tão grave? ?Sophia a olhou com relutância. Talvez tenha entendido mal quando ouviu o parentesco que a unia com lorde Giesler, pois os dois eram muito diferentes. Onde o cavalheiro usava uma cabeleira tão loura como os raios do sol, o da mulher era tão escuro quanto os dela. Sem contar a tonalidade de seus olhos. Não havia nada que pudesse se assemelhar a ele. Estaria enganando-a? Seria na realidade sua amante desesperada?

?Sim ?Valeria respondeu apertando as mãos com força. ?Está há vários dias na cama. No começo pensei que sua última saída terminou pior do que esperava. Se é que me entende... Um homem solteiro, sem responsabilidades familiares e amantes da liberdade... Mas depois que apareci em sua casa, depois de ser informada pelos criados, para repreendê-lo, como uma irmã preocupada faria, descobri que não se tratava de uma embriagues soberana. Ele estava realmente doente.

?Como já lhe disse, meu marido não estará de volta até o meio-dia. O único que posso aconselhar é que vá à casa do Sr. Flatman. Certamente que o encontrará em sua casa, pois nunca comparece a uma emergência, a menos que seja exigido pela nobreza. ?Sophia apontou como alternativa.

?Mas o meu irmão não quer. Ele disse o seu nome ?revelou a Sra. Reform.

?Meu nome? ?Ela estranhou.

?Não, o de seu marido. Quando a febre aumenta muito e provoca delírios, murmura o sobrenome do seu marido. Por isso estou aqui. Acredito que ele deseja que o seu marido o visite.

Não podia contar a verdade porque parecia estranho até para ela. Quando Philip delirava, as únicas palavras que saíam de sua boca eram Mary e o sobrenome Moore. Como era lógico, perguntou sobre isso. Finalmente, depois de varias horas perguntando a conhecidos, descobriu que se tratava do sobrenome de um médico de Londres que morava fora da cidade, que era pai de cinco meninas e que uma delas se chamava Mary. Então deduziu que em sua inconsciência tinha se confundido, portanto tinha que ter mencionado o nome de Randall Moore em vez de se referir a uma de suas filhas.

Sophia confirmou sua suspeita ao ouvir a declaração. Já não tinha dúvidas que lorde Giesler queria que seu marido pagasse o trágico encontro que teve na manhã em que apareceu com o visconde. Talvez pensasse que, depois de ser atendido por ele, ouviria o que aconteceu e manteria em segredo o comportamento inapropriado de suas filhas, mas... o que poderia fazer se Ronald não estava?

?Prometo que meu marido irá à casa do seu irmão assim que voltar. Enquanto isso, para baixar a febre, aconselho que coloque panos mergulhados na água fria. Isso o acalmará...

Sophia ficou em silêncio quando ouviu um pequeno ruído no alto da escada. Olhou para cima e quando viu a camisola de Mary se escondendo atrás da parede, franziu a testa. Por que tinha levantado? Continuaria lendo apesar do castigo que lhe impôs? Será que nunca atendia suas ordens? Como podia fazê-la ouvir a razão? Que tipo de reprimenda seria adequado para uma menina como ela? Havia algo no mundo que a mortificaria tanto que a fizesse ver a razão? Que vingança seria apropriada? De repente, um sorriso maligno se desenhou em sua boca. Era uma ideia excessivamente maligna até para ela, mas... não queria dar-lhe uma lição? Mary jamais se negaria a atender um doente e se não confessasse quem era o paciente, desceria as escadas agarrando sua maleta sem se dar conta que vestia uma camisola. Seu sorriso perverso se alargou ainda mais ao lembrar a profecia de Madeleine: «Tinha visto Mary apaixonada, embora tentará deter os sentimentos que esse homem lhe provocará desde o momento em que se encontrem pela primeira vez». O que poderia perder? Se aquele homem não era o escolhido para Mary, pelo menos aproveitaria com a vingança. No entanto, a dúvida sobre o comportamento de sua filha a invadiu. O que aconteceria quando Mary descobrisse que o cavalheiro que deveria curar era o mesmo que não afastou seus olhos dela, mesmo que Josephine lhe apontasse com a arma? Possivelmente o envenenaria, ou o curaria primeiro para matá-lo depois. No entanto, se o destino voltava a cruzá-los... quem era ela para impedir?

Olhou para a Sra. Reform e adotou uma postura seria e tranquila. Se oferecesse a sua filha, precisava adotar uma atitude decidida, pois não poderia colocar em perigo a honra dela, mas também a reputação de seu próprio marido estava em perigo.

?Existe uma opção possível. Se estivesse em seu lugar, aceitaria sem duvidar um só segundo ?manifestou sem vacilar.

?Farei qualquer coisa, Sra. Moore! ?Valeria exclamou desesperada. ?Diga-me o que pensou e juro que não demorarei nem um só segundo.

?Mas deve me prometer que ela não permanecerá em nenhum momento sozinha com ele ?Sophia prosseguiu.

?Ela? ?Valeria perguntou arregalando os olhos.

?Sim, uma de minhas filhas, Mary. Ela acompanha meu marido em todas as suas visitas médicas. Ela curou muitos doentes e garanto que é tão habilidosa em medicina quanto seu pai. Ela descobrirá, se você considerar apropriado, o que acontece com seu irmão e atribuirá um tratamento enquanto meu marido volta.

?Tem certeza? ?E ali estava a resposta para sua pergunta! Seu irmão não estava perturbado pela febre, somente gritava o nome da pessoa que desejava ter ao seu lado. Como diabos sabia que a filha do médico poderia ajudar-lhe? Se conheciam? De onde? Quando?

?Tenho. Tudo que preciso saber é se você admite que uma mulher aja como médica sem importar...

?Pelo amor de Deus! Não vê que sou uma mulher? Acha que rejeitaria a ajuda de alguém, ou que seria capaz de menosprezar seu trabalho por não ser homem? ?Valeria retrucou ofendida. ?Te garanto que meu marido não seria quem é hoje se não tivesse casado comigo.

?Está certo, tudo bem que a chame?

?Com certeza!

?E me promete que zelara por sua honra? Tenha em mente que estamos falando de uma jovem solteira que permanecerá na casa de um homem solteiro e isso poderá causar problemas sem fim no futuro ?Sophia concluiu desconfiada.

?Sra. Moore, meu irmão precisa de um médico, não uma esposa ?Valeria garantiu com aparente indignação.

?Sendo assim, espere dez minutos. Subirei ao seu quarto e perguntarei se está disposta a...

?Sim! ?Mary exclamou do alto da escada. ?Vou! Coloco um vestido e desço em menos de cinco minutos ?acrescentou feliz.

?Mary Moore! Quantas vezes tenho que dizer que não deve espiar? ?A mãe gritou repreendendo-a.

?Milhares! ?Respondeu enquanto voltava correndo até seu quarto.

?Filhas... ?bufou Sophia. ?Por mais que cresçam, sempre serão crianças pequenas. Tinha esperança de que quando ficassem mais velhas mudariam de atitude, mas como pôde comprovar, não fizeram isso ?afirmou fingindo pesar.

?Eu tenho quatro e se forem como seu pai, teriam quarenta anos e continuariam sendo umas meninas extravagantes e teimosas ?apontou a Sra. Reform um pouco mais calma.

Enquanto esperavam a presença de Mary, Sophia fez uma investigação à Sra. Reform. Descobriu que era filha de uma espanhola e um alemão. Que tinham chegado à Londres fugindo da família do pai. Que tinha dois irmãos muito diferentes fisicamente e que tinha se casado anos atrás com Trevor Reform, o antigo dono do clube de cavalheiros Reform. Então, ela informou que lorde Giesler tinha chamado seu marido e Valeria contou-lhe a história do baronato que seu irmão devia ocupar na Alemanha.

?Mas como bem comentou, nunca crescem como se deseja e meu irmão é incapaz de aceitar o título ?Valeria comentou com pesar. ?Tentei de tudo... ?suspirou ?no entanto, essa atitude alemã que possui o impede de salvar o seu orgulho e assumir o que um dia herdará por direito.

Isso acalmaria a mãe? Por que não tinha parado de lhe fazer perguntas. Obviamente, tinha respondido todas. Não queria que pensasse que Mary se encontraria com pessoas sem escrúpulos. Precisava deixar claro que sua família era muito respeitável e que protegeria sua filha como se fosse uma das suas.

?Não se preocupe, certeza que em breve terá que desistir. Os homens são, por natureza, muito teimosos e tem que encontrar um incentivo para avançar esse passo que ambos se recusam a dar ?Sophia comentou, à alusão do baronato, com falso tom sereno e calmo.

Giesler era um barão alemão? Por isso seu marido fez referência ao tratamento de lorde? Os barões alemães possuíam as mesmas conotações que os ingleses? Tinha que assimilar muitas coisas depois dessa informação. Além disso, se a premonição de Madeleine estava certa, se lorde Giesler era o homem destinado para Mary... se tornaria uma baronesa inglesa ou alemã? Como agiria se alcançasse essa posição social? O que aconteceria com todos aqueles homens que a humilharam no passado? Se esqueceria deles ou encontraria uma maneira de se vingar? Um frio repentino fez com que os pelos do seu corpo se arrepiassem. Se isso acontecesse, a melhor opção era que partisse para a Alemanha, porque se ela ficasse, os cavalheiros que a desprezaram estariam em grave perigo...

?Já estou aqui! ?Mary gritou descendo as escadas.

Sophia a olhou de cima a baixo. Não podia repreendê-la porque não estava mais usando a camisola, mas usava o vestido azul que tinha colocado no dia anterior. Um que lhe dava a aparência de uma governanta, mas por causa da maneira como o tecido se agarrava ao seu corpo, não havia dúvida de que ela não tinha colocado o espartilho ou as anáguas. Mantinha o cabelo em um coque desastroso e em sua mão direita segurava a maleta que Randall a presenteou ao completar dezoito anos. Levaria dentro um frasco de cicuta? Porque se fosse assim, temia que gastasse essa mesma noite quando descobrisse a identidade do doente.

?Lembra querida, o que sempre comentei com seu pai ?ela disse suavemente enquanto a ajudava a vestir o casaco que tirara do armário.

?Boa noite ?primeiro saudou a mulher e logo se voltou até sua mãe com um olhar interrogativo. ?O pai me disse muitas coisas, pode ser mais especifica...

?Que não importa o paciente que precisa de atendimento, tem que fazer um bom trabalho ?lembrou antes de lhe dar um beijo na bochecha.

?Não sei por que diz essas coisas ?resmungou, corando rapidamente. ?Jamais me neguei a atender alguém.

?Espero que também não faça nesta ocasião ?Sophia insistiu puxando-a até a saída.

?Tem algum tipo de preconceito, Srta. Moore? ?Valeria interveio um pouco desconfortável ao ouvir as estranhas palavras da esposa do médico.

?Nem um pouco! ?Mary respondeu rapidamente, se colocando ao lado da Sra. Reform. ?É muito comum minha mãe me lembrar de que eu não devo ser descortês com as pessoas.

?Enquanto possa salvá-lo, não me importa o caráter que possua ?Valeria afirmou. ?Sra. Moore, boa noite. Garanto que sua filha estará em boas mãos.

?Obrigada, Sra. Reform, embora neste momento não tema por Mary, mas pelo doente ?Sophia garantiu.

?Mas mãe! ?Ela respondeu com raiva. ?Por favor, não vamos perder mais tempo. Preciso ver o paciente o quanto antes. Se não se importa, Sra. Reform, durante o caminho, me explica os sintomas que tem, essa conversa será mais que ouvir os lembretes morais da minha mãe. ?Boa noite, mãe.

?Boa noite, filha.

Assim que se despediram de Sophia, a duas andaram até a carruagem. A Sra. Moore permaneceu na porta até o veículo sair de seus domínios. Fechou a porta e suspirou fundo. A vida de sua segunda filha mudaria, a única coisa que podia garantir era se ela estava preparada para assumir essa mudança...

Mary se acomodou no assento e observou de canto de olho a sua acompanhante. Parecia tão preocupada que queria lhe dizer algo que pudesse acalmá-la. No entanto, ela não tinha o dom de tranquilizar as pessoas, mas de curá-las.

?Desculpe-me por tê-la tirado de sua casa a esta hora tão inapropriada, mas sua mãe, depois de lhe explicar o que aconteceu, insistiu que você é a mulher adequada para atendê-lo.

?Não foi problema nenhum, pelo contrário, sinto-me muito honrada por poder ajudá-la ?Mary respondeu, acrescentando um leve movimento com a mão enluvada ao comentário. ?Ficarei feliz em descobrir que doença seu marido tem e indicar-lhe o tratamento adequado.

?Meu marido? ?Espetou Valeria arregalando os olhos. ?Não é meu marido que está doente, mas meu irmão.

?Desculpe, devo ter entendido errado. De lá, não consegui ouvir bem suas palavras ?Mary comentou, ruborizando no mesmo instante. ?Às vezes, quando fico empolgada, não presto muita atenção.

?Não se preocupe, isso geralmente acontece comigo também. Acho que é muito comum mulheres inteligentes selecionarem o que as interessa.

Diante desse comentário, Mary relaxou e soltou uma gargalhada. Quando se recuperou, voltou a olhar a Sra. Reform e esperou que lhe revelasse o nome do seu irmão, mas ela se manteve em silêncio.

?E, a quem devo atender? ?Finalmente perguntou.

?Talvez o conheça, Srta. Moore.

?Mary, por favor, me chame de Mary.

?Obrigada, bem, o que disse Mary, possivelmente tenha ouvido falar sobre ele, porque é um homem bem conhecido nesta cidade. Trabalhou na Scotland Yard durante alguns anos, mas quando estava prestes a conseguir um cargo importante, se recusou a fazê-lo e decidiu se tornar um marinheiro ?declarou com pesar enquanto observava como Mary continuava negando com a cabeça.

?Confesso que sou uma mulher antissocial. Mal saio de minha casa e quando o faço não tenho entre os meus objetivos me relacionar com as pessoas que conheço, exceto se tiver que curá-las ?acrescentou espirituosamente.

?Entendo... ?Valeria apontou ainda mais intrigada. Se a moça não o conhecia, por que seu irmão não parava de chamá-la quando lhe subia a febre? Espalhou a saia do vestido para que não enrugasse, depois colocou as duas mãos no colo e olhou para a jovem sem piscar. ?Mas acredito que sim, que conhece meu irmão ?insistiu.

?Se me disser o nome, posso responder com mais certeza ?Mary declarou com a voz cansada.

Para que tanto mistério? Por que proteger sua identidade? Teria que atender um criminoso fugitivo da justiça? Seria um parente direto do próprio Gilles de Rais?[1]

?Meu irmão é Philip Giesler ?Valeria finalmente declarou.

Naquele exato momento, Mary sentiu o queixo cair e ouviu uma voz em sua cabeça gritar que preferia enfrentar um depravado como o Barão de Rais do que salvar o homem que a chamou de bruxa.


Capítulo I


?Sabe de quem estou falando? ?Valeria lhe perguntou ao observar o sorriso de desagrado que mostrou em seu rosto. ?O conhece?

?Vagamente... ?Mary murmurou.

Por isso sua mãe a recordou que devia atendê-lo como mais um? Ela sabia de quem se tratava? «Por todos os diabos!», gritou mentalmente. Quando voltasse falaria muito seriamente com ela e lhe deixaria bem claro que jamais atenderia, mesmo que estivesse a ponto de morrer, imbecis como lorde Giesler.

?De onde? ?Valeria insistiu, apesar do mau humor que a jovem demonstrava e do tom áspero que usou ao respondê-la.

?Há alguns dias, seis para ser exata, seu irmão apareceu em nossa casa junto com o visconde de Devon ?respondeu sem diminuir sua aspereza. ?Nós dois tivemos a oportunidade de nos conhecermos e conversar por um curto período de tempo...

Pouco, mas o suficiente para odiá-lo e desejar que apodrecesse no inferno. No entanto, essa parte da história não era apropriada para expor naquele momento. Para o bem dela e de seu futuro paciente, deveria se acalmar e mostrar um caráter afável, tal como seu pai insistia: «Pode ser a mulher mais inteligente do mundo, mas ninguém a respeitará se continuar se comportando de maneira tão irascível».

?Entendo... ?a Sra. Reform sussurrou fixando seu olhar na janela.

?Disse que está doente há quanto tempo? Que sintomas têm apresentado? ?Mary perguntou para tentar esquecer o ódio que sentia pelo paciente e se concentrar em descobrir a possível doença. Porque se tudo fosse uma mentira, se a fez sair de sua casa para continuar zombando dela, antes de três horas passadas, seu sofrimento seria real, assim como a terrível dor que apareceria em sua virilha.

?Dois dias. A febre não diminui. Tem tanto calor que saíram bolhas na sua pele. Delira, tem suores, não para de vomitar e faz movimentos involuntários muito bruscos. Antes de pedir ajuda na sua casa, seus olhos estavam em branco por causa do novo aumento de temperatura, por isso disse a vários criados que preparassem um banho de água fria. Espero que com isso acalme...

?Realmente ordenou tal insensatez? ?Mary disse horrorizada. ?Que absurdo!

?Desculpe? ?Valeria retrucou com uma mistura de surpresa e assombro com a súbita mudança de atitude. Estava chamando-a de estúpida por ter mandado fazer uma coisa tão frequente em estados febris? ?O que quer dizer com essas palavras Srta. Moore? ?Resmungou, adotando novamente uma atitude distante.

?Como lhe ocorreu tal incoerência? Uma pessoa com febre alta não pode entrar em uma banheira com água fria, mas morna e, uma vez que seu corpo se adapte a essa breve mudança de temperatura, se acrescenta gradativamente gelo, mas nunca de uma vez! ?Falou irritada.

?Bem, agora entendo porque sua vida social é tão escassa... ?murmurou em voz alta. ?Espero que os servos tenham sido mais sensatos do que eu e não o congelem antes da sua chegada.

?-Isso espero! ?Mary disse, cruzando os braços sobre o peito.

A conversa entre as duas mulheres cessou naquele momento. O silêncio reinou dentro da carruagem, embora ocasionalmente se ouvisse os grunhidos exasperados de Mary. Valeria não podia afastar o olhar dela e de se perguntar se seu irmão era consciente do verdadeiro caráter da mulher que ele invocou inconscientemente. Talvez quando se conheceram, a jovem em idade de casar, contemplou um homem tão bonito e galã, tirou todas as suas armas de sedução para apanhá-lo. Só esperava que, ao tratá-lo novamente, Philip entenderia que os escorpiões tinham menos veneno no ferrão do que ela em sua língua.

Uma vez que a carruagem estacionou na entrada da residência, o cocheiro abriu a porta para ajudar em primeiro lugar a Sra. Reform, no entanto, a filha dos Moore se esqueceu do bom protocolo e, depois de um movimento brusco, saltou para o chão sem observar a cara de espanto do empregado.

?Onde disse que se encontra seu irmão? ?Mary perguntou, agarrando a pasta com força.

?Não lhe disse ?Valeria garantiu mal humorada. ?Mas imagino que continua em seu quarto, onde o deixei antes de procurar por seu pai.

?Não há tempo a perder! Devemos impedir esse absurdo congelamento! ?afirmou, caminhando até a entrada sem esperá-la. Assim que chegou à porta, Mary pegou a aldrava e bateu até que um mordomo a abriu. ?Diga-me agora mesmo, onde se encontra o doente ?lhe perguntou assim que o viu. Entrou na casa sem ser convidada, rapidamente tirou o casaco, jogou no mordomo e olhou em volta tentando descobrir em qual lugar da casa deveria avançar.

Shals, o criado principal, fixou seus olhos cinzentos na Sra. Reform, quem apareceu depois na estranha, e perguntou-lhe com aquele olhar se deveria responder a sua exigência. Quando ela assentiu, respondeu:

?Em cima, terceira porta a direita. Se desejar que a acompanhe...

Não conseguiu terminar a frase porque Mary ergueu o vestido com a mão esquerda e subiu as escadas tão rápido que, antes de piscar duas vezes, já estava no andar de cima.

?Sra... ?disse a Valeria ?Quem é essa moça? Não será uma das amigas do Sr. certo? Já sabe que estamos proibidos de aceitar a entrada de mulheres de moral duvidosa.

?Não se preocupe. Não acredito que meu irmão a declare como amiga e tampouco é de moral duvidosa. Além disso, imagino que nem saiba o que essas duas palavras podem significar ?respondeu, oferecendo-lhe o casaco. ?É uma das filhas do doutor Moore que veio em seu lugar. Segundo me informou a esposa do médico, ela tem experiência suficiente para descobrir o que acontece com Philip e o atenderá até que seu pai apareça.

?Como disse? ?Retrucou Shals mais espantando se possível. ?Uma mulher médica? Tem certeza? Seu comportamento não me pareceu...

?Também não a achei muito adequada, mas se é capaz de descobrir o que acontece com Philip, esquecerei esse comportamento grosseiro e insolente que exibe com tanto orgulho. A propósito, sabe se poderiam colocá-lo na banheira?

?Acabaram de subir vários criados para levantá-lo da cama. Como bem sabe, as dimensões do Sr. são...

?Nem pense nisso! Deixem-no novamente sobre esse maldito colchão, bando de inúteis! ?Mary gritou com tanta força que Valeria e Shals a ouviram como se ela ainda estivesse no corredor.

?Meu Deus! ?O mordomo exclamou horrorizado. ?Continua dizendo que esta mulher é a certa para salvá-lo?

?Não ?garantiu antes de levantar o vestido com as duas mãos e subir os degraus o mais rápido que podia.

Quando chegou ao quarto, Valeria se apoiou no batente da porta para tomar ar. Enquanto sua respiração normalizava, seus olhos se cravaram dentro do quarto. Os três criados, quem tinham tentando mover o corpo de seu irmão, estavam ao pé da cama e olhavam para Mary como se ela fosse louca, pois nenhuma mulher sensata gritaria em uma casa desconhecida nem permaneceria em frente a um homem nu, embora o lençol escondesse a parte inferior de seu irmão. No entanto, Valeria ficou perplexa pela atitude fria da Srta. A filha do médico não o contemplava como uma mulher faria, mas como um médico que procurava a origem da doença que padecia seu paciente. Depois de tocar a testa, continuou com o peito. Suas mãos apalparam o peito de Philip sem nenhum tipo de sensualidade. Sensualidade? Aquela mulher não sabia o que era isso! Mas os olhos de Valeria se arregalaram e os três servos exclamaram horrorizados quando ela baixou os lençóis até os quadris. Os pelos loiros encaracolados de seu irmão ficaram descobertos. Colocou as mãos no rosto e deus graças a Deus que estava inconsciente, porque só culparia ela de tê-la levado ao seu quarto e que ela tomou certas liberdades inadequadas enquanto ele não podia se defender.

Sem afastar os olhos de Mary, notou como seus dedos largos se concentraram na parte da virilha direita. Com uma suavidade improvável apalpou durante um bom tempo, logo as afastou, andou para trás, levantou o rosto, olhou para os servos espantados e lhes perguntou:

?Onde estão os vômitos do seu Sr.? ?Como ninguém era capaz de respondê-la, pois não podiam falar por causa de seu espanto, ela começou a procurar o recipiente embaixo da cama. Quando o encontrou, pegou-o e levou até a luz da cabeceira. ?Desde quando está assim?

?Faz um dia ?Valeria respondeu entrando lentamente. ?Primeiro foram as febres e depois os...

?Se queixou de dor abdominal? ?Mary insistiu voltando para a cama com a bacia nas mãos.

Depositou-a no chão. Depois, apesar dos olhares reprovadores dos servos, colocou as palmas das mãos novamente na região da virilha afetada e justo quando seus dedos pressionaram essa parte com mais força, Giesler, que estava inconsciente até agora, gritou de dor.

?Parece que sim, se queixa... ?Valeria comentou sarcástica ao observar como seu irmão finalmente abria os olhos e agarrava com força a mão direita da jovem.

?Acalme-se, lorde Giesler. Sou Mary Moore ?começou a falar com ele ao descobrir que a olhava assombrado, como se achasse que estava vivendo uma alucinação. ?Sua irmã apareceu em minha casa para pedir ajuda ao meu pai. Como ele não se encontrava, vim no seu lugar. ?Puxou a mão, dirigiu-se a sua maleta e procurou pelo estetoscópio. Uma vez que o encontrou, voltou até o doente, colocou a campainha larga em seu abdômen e ouviu atentamente.

?Mary... ?Giesler sussurrou, apoiando novamente a cabeça sobre o travesseiro e incapaz de afastar os olhos dela.

?Chist! Preciso de silencio ?ordenou.

Philip observou-a atordoado até que Valeria se acomodou ao seu lado. Não querendo fazer nem um mísero barulho, para não desobedecer a ordem da mulher feroz, lentamente virou a cabeça até seu irmão. Ela encolheu os ombros e o olhou com simpatia, como se estivesse pedindo perdão por tê-la levado. No entanto, apesar do estado atordoado que Philip estava e da dor que percorria seu grande corpo, ele sorriu antes de desmaiar de novo.

?Acredito que ele tem a fossa ilíaca direita inflamada ?Mary comentou depositando o instrumento na maleta.

?E? —Valeria perguntou, pegando o pano que estava em uma mesa de cabeceira para limpar suavemente o rosto suado de Philip.

?Tem que fazer uma incisão nessa parte do corpo, cortar e extrair a fossa afetada, limpar bem o interior, cauterizar e costurar ?explicou, como se estivesse descrevendo uma tarefa tão simples quanto encher um copo de água embaixo da torneira.

?Como podemos aliviar a dor enquanto seu pai não chega? ?Valeria apontou, terminando a tarefa que estava fazendo.

?Não deveríamos esperar tanto. Se a fossa não estiver perfurada, há muita possibilidade que sobreviva, mas se estiver... aconselho-lhe que realize todos os preparativos pertinentes para um próximo funeral ?declarou com grosseria.

?Como ousa falar dessa forma, Srta Moore? Está se referindo ao meu irmão! Por acaso não tem compaixão? ?Clamou horrorizada por sua falta de tato.

?Sou uma mulher racional e sincera, Sra. Reform. Esclareço o que há e enfatizo que, se não agirmos rapidamente, a vida do seu irmão terminará em apenas três dias. ?Colocou as mãos na cintura e olhou com frieza. ?Não concorda com meu diagnóstico? Bem... corra! Procure o doutor Flatman para que verifique minha conclusão! Talvez seja muito tarde para ele... ?insistiu com mais crueldade do que deveria mostrar.

Por acaso estava desesperada para salvar a vida do homem que a chamara de bruxa? Por quê? Teria mudado de ideia ao ver como seus olhos azuis a observavam como se a idolatrasse? Havia em seu coração um pouquinho de piedade? Ou queria salvá-lo para depois lhe recordar que tinha um divida de vida com ela? O que quer que fosse, era a primeira vez que misturava sentimentos e trabalho...

?Está me dizendo que a vida do meu irmão está em minhas mãos? ?Valeria enfatizou se levantando do colchão.

?Não. A vida do seu irmão está nas minhas, porque serei eu quem realiza a intervenção. Você deve dar seu consentimento. Embora também possa esbofetear lorde Giesler até que aceite minha decisão ?afirmou virando até o paciente como se tivesse a intenção de lhe bater.

?Não se atreva a tocá-lo! ?Valeria explodiu andando até ela. ?Se fizer isso, garanto-lhe que não ficará um único fio de cabelo na sua cabeça.

?Não me importa ficar careca, Sra. Reform, caso não saiba, em menos de um ano vou usar outra linda cabeleira, mas se não operar seu irmão imediatamente, ele estará no subsolo, decompondo e alimentando todos os tipos de microorga...

?Maldita seja! ?Valeria gritou desesperada. ?O que quer que faça?

?Que consinta o que vou fazer ?Mary disse satisfeita.

?E se morrer durante a intervenção?

?Morrerá de qualquer maneira ?disse sem hesitar nem um único segundo.

?Está bem! Que todo mundo siga as instruções da Srta Moore! ?Valeria finalmente decidiu. ?Espero que não morra em suas mãos...

?Ele não vai ?Mary determinou antes de se colocar na frente de sua maleta e preparar todos os instrumentos que precisava para aquela operação apressada.


***

Valeria não podia acreditar no que via. Era tão improvável que mais de uma vez acreditou viver um pesadelo. Depois que a Srta. Moore ordenou acender todas as luzes que havia no quarto e que fechasse as janelas, pediu aos servos que colocassem duas mesas grandes em frente à lareira. Foi nela onde colocaram Philip. Então os obrigou a lavarem suas mãos em sete recipientes que havia cheio de água e sabão. Mas não se conformou com essa exaustiva limpeza, também os obrigou a borrifar suas palmas com um liquido que chamava desinfetante. Os lacaios fizeram isso sem questionar, porque ficou muito claro o caráter azedo e autoritário da mulher. Dois deles, que a olhavam como se fosse o próprio diabo, foram encarregados de limpar o sangue que caia no chão e de avivar o fogo. Quando tudo estava pronto, começou a trabalhar. Se até esse momento havia pensando que era uma pessoa única, o comportamento que manteve depois, confirmou. Enquanto que ela não podia permanecer de pé nem dois minutos ao presenciar a pequena incisão que fez no corpo de Philip, Mary nem piscou. Parecia que tudo ao redor deixou de existir para ela, embora falasse sem parar sobre certas descobertas cientificas sobre a operação que realizava. A jovem se concentrou no trabalho com tanta segurança e precisão que ficou fascinada. Nem em seus partos o médico que a atendeu foi tão firme e profissional! Não havia dúvidas, Mary tinha um dom e, por muito estranho que lhe parecesse, Philip sabia. Talvez por essa razão ele murmurasse tantas vezes seu nome. Mas... como e quando a descobriu? Falaram sobre medicina nesse primeiro encontro? Não, essa opção estava descartada, desde que seu irmão não tinha conhecimento sobre esse assunto. Além disso, a filha do médico não lhe agradou lembrar aquele momento, como se tivesse sido o pior de sua vida... Por que Philip sabia da incrível capacidade da mulher? Perguntaria sobre ela depois daquele dia? Por qual motivo? Esperava que, se ele se salvasse, respondesse a todas as suas perguntas, porque era a primeira vez que Philip lhe ocultava algo sobre mulheres e isso a fazia suspeitar que talvez esse encontro fora mais importante para ele que para ela.

Durante as quatro horas seguintes, Mary não foi capaz de afastar o olhar do corpo de seu paciente. Depois de sedá-lo, para o que teve que usar quase todo o clorofórmio que tinha, porque não tinha levado em conta as dimensões do paciente até que o ouviu gritar depois de apertar a ponta da escarpa em sua pele, fez a incisão na região e procurou a fossa ilíaca. Tal como pensou, pelo inchaço que apresentava a olho nu, não estava perfurada, os resíduos continuavam armazenados no pequeno apêndice vermiforme. Enquanto removia e cauterizava a borda com uma faca em brasa, falava com a desconfortável Sra. Reform sobre os descobrimentos egípcios e como registraram essa doença nas mumificações. Então mencionou os estudos que Lorenz Heriste realizou, um discípulo de Herman Boerhaave, e finalizou o monólogo cientifico com as pesquisas realizadas por Reginald H. Fitz, um famoso professor de anatomia patológica da Universidade de Harvard. Mas a única coisa que saía da boca da irmã o tempo todo era «que não morra», de modo que Mary deduziu que ela não ouviu uma única palavra de sua ampla e contundente exposição científica sobre a descoberta do apêndice inflamado.

?Agulha e linha ?pediu, uma vez que finalizou a limpeza por dentro.

?Aqui está ?respondeu o criado que havia permanecido ao seu lado em todo o momento.

?Desinfetou isto? ?Perguntou depois de segurá-lo e esticar o fio para que não tivesse nós.

?Sim, fiz tal como indicou ?informou, afastando-se rapidamente dela.

?Lavou as mãos antes de fazê-lo? Porque, mesmo que não seja visto a olho nu, nossa pele pode estar contaminada por...

?Garanto, Srta. Moore, que jamais tive minhas mãos tão limpas ?interrompeu a criada com relutância, repetindo todas as ordens sete vezes, como se não pudessem entendê-la a princípio.

Com um sorriso que cruzava o rosto, Mary começou a fechar a abertura enquanto a Sra. Reform finalmente se levantava da cadeira em que havia permanecido durante a intervenção. Quando finalizou a sutura, pegou o bisturi, cortou o fio em excesso e colocou-o na bandeja onde estava o pedaço de intestino removido.

?Agora só precisa de muito repouso. Deve tomar o remédio que deixarei sobre a mesa de cabeceira. Os banhos frios acabaram durante uma boa temporada. Recomendo que limpe seu corpo com panos em água quente e se aparecerem algumas crostas brancas em volta da ferida, tem que...

?Vai embora? Pretende deixa-lo assim? ?Valeria espetou chocada olhando para o corpo convalescente de Philip.

Reconhecia que a atitude da filha dos Moore fosse sublime e que a Sra. Moore tinha razão ao recomendá-la. No entanto, não permitiria que saísse tão cedo. Precisava que ficasse durante a noite. Ela, melhor do que ninguém, poderia atendê-lo quando acordasse.

?Meu trabalho acabou Sra. Reform. Agora cabe a vocês cuidarem do doente. Se seguir minhas instruções, em dois dias poderá se levantar e dez dias depois continuará com seu estilo de vida habitual ?respondeu retirando o suor da testa com a manga direita do vestido. ?Além disso, meu pai aparecerá em algumas horas para verificar seu estado. Se tiver alguma dúvida sobre...

?Você fica! ?Garantiu a irmã. Ao perceber que não havia usado o tom adequado para falar, pois as rugas em sua testa indicavam que jamais admitiria uma imposição, suavizou a voz. ?Srta. Moore, Mary, peço-lhe que não saia até ele abrir os olhos. Já descobriu que sou incapaz de me manter firme quando vejo sangue e se tenho que trocar o curativo ou limpar...

?A troca de curativo pode ser feita pelo meu pai dentro de alguns dias, e lembro que não é apropriado que permaneça desnecessariamente. Não tenho dúvidas de que seu irmão melhorará se seguir minhas instruções... ?Mary comentou visivelmente sufocada.

Não queria estar presente quando aquele titã loiro abrisse os olhos, preferia se manter distante do homem que a chamara de bruxa. Além disso, não podia perder tempo cuidando da pessoa que odiava. Era verdade que o salvara de uma morte certa, que tinha abrandado ao ver como ele a olhava, mas até aí chegava a sua benevolência. Quanto antes saísse daquela casa, antes poderia esquecer que o conhecia e que havia contemplado aquele imenso corpo nu. Como era possível que suas pupilas se fixassem em certas regiões indecorosas? Havia atendido muitos homens doentes, mas ele era diferente de todos eles. A largura de seu torso, de seus braços, a magnitude e a força de suas pernas... toda aquela aparência dignificava-o. Qualquer mulher, que desejasse ter filhos robustos e saudáveis, procuraria um marido como ele. Mas ela não seria essa futura esposa. Tudo o que queria era colocar alguma distância entre os dois e que sua mente esquecesse tudo o que havia observado.

?Se teme por sua honra, lhe garanto que ninguém desta casa falará sobre sua visita ?Valeria afirmou se aproximando dela.

?Honra? ?Mary perguntou divertida. ?Nunca me interessei por esse tipo de besteira! Sou a pessoa mais honrada do planeta, por isso ninguém é capaz de me suportar. Não se trata disso, Sra. Reform, está mais para privacidade. Seu irmão e você precisam de privacidade para realizar os cuidados apropriados. O que seu irmão pensaria quando me visse em seu quarto?

?Que salvou a sua vida. Só isso. E estará tão agradecido como eu estou.

?Mas não é adequado que uma mulher permaneça sozinha no dormitório de um homem ?Mary insistiu, limpando o sangue de suas mãos na bacia que um dos empregados aproximou.

?É puritana, Mary? Depois do que fez, tenta me convencer de que é uma mulher recatada? Porque se fosse, eu não teria suportado as quatro horas que a intervenção durou com tanta solenidade ?Valeria insistiu.

?Está recriminando mina atitude? Porque tenho que lembrá-la de que acabei de salvar-lhe a vida ?concluiu, assinalando Giesler com um dedo de sua mão direita.

?Não interprete mal minhas palavras, por favor. Estou e serei eternamente agradecida. Tudo que eu quero é que permaneça ao seu lado esta noite. Estou tão cansada, depois desses dias, não sei se posso agir corretamente. É por isso que suplico que me ajude. Sabe como me sentiria se depois de seu brilhante trabalho ele não se recuperar por minha causa? ?Valeria retrucou visivelmente preocupada.

?Aceitarei esse pedido como um elogio... ?Mary respondeu cruzando os braços sobre o peito. ?Mas insisto que não sou a pessoa adequada para cuidar do seu irmão.

?Pedirei a um criado para acompanhá-la em todos os momentos. Assim nunca estará sozinha e será capaz de lhe dizer tudo o que quiser ?Valeria informou-a um pouco mais calma. ?Se amanhã, quando seu pai aparecer, decidir que não deve continuar na residência, procuraremos outra pessoa para assumir o seu lugar.

?Não se trata de ficar sozinha com ele, mas sobre a reação que terá quando abrir os olhos e me encontrar ao seu lado ?Mary explicou estendendo os braços para o chão. Então voltou para onde Philip estava, coberto até o peito com um lençol que um dos servos havia colocado, e o observou em silencio. Faria a coisa certa ficando aquela noite? O que poderia acontecer? A princípio, depois de usar tanto clorofórmio, não acordaria até a chegada do novo dia, momento em que seu pai poderia se ocupar dele. Mas... e se acordasse? O que faria quando a visse? Olharia novamente para ela com ternura ou gritaria para que saísse?

?Meu irmão não vai julgá-la, Mary. Depois do que fez por ele, por que acha que reagirá negativamente? ?Valeria insistiu se aproximando dela.

?Lembra-se de uma das perguntas que me fez na carruagem? ?Mary continuou deixando Giesler para encontrar a Sra. Reform no meio do quarto.

?Agradeceria se fosse mais especifica, porque tudo que eu pensava antes de sua atitude, foi apagado da minha mente ?disse com sinceridade. Não mentia. Tudo aquilo que pensava sobre Mary desapareceu de sua cabeça ao vê-la agir.

?Me perguntou se nos conhecemos e eu lhe disse brevemente. Bem, garanto-lhe que o nosso encontro foi suficiente para eliminar qualquer amizade cordial entre os nós dois. ?Mary olhou de lado para Philip e suspirou. Parecia tão dócil naquela situação, que até ela duvidava que fosse um ogro, mas era.

?Tenho certeza que meu irmão esquecerá qualquer incidente que tiveram no passado quando descobrir que você salvou sua vida ?Valeria esclareceu indicando com a mão a saída, para que ambas saíssem juntas.

?Não estou muito convencida disso... ?murmurou caminhando até a porta. ?Você seria capaz de perdoar a pessoa que tentou matá-la?

?O que disse? ?Valeria retrucou arregalando os olhos e parando atrás dela. ?Queria matá-lo. Por quê?

?Porque me chamou de bruxa ?Mary explicou avançando rapidamente. Se a irmã começasse a gritar, era melhor que o fizesse fora do quarto para não despertá-lo antes do previsto.

?Faria sem pensar. Em defesa do meu irmão, tenho que lhe dizer que ele é muito atencioso com as mulheres, muito para meu bom entendimento... ?Valeria esclareceu, tomando novamente o caminho para fora. Ao fechar a porta, se colocou ao lado de Mary e a olhou por um momento. Por que a chamou de bruxa? O que aconteceu entre eles? Se quisesse conhecer a verdade e descobrir o motivo pelo qual seu irmão havia chamando-a dessa forma e porque sorriu ao descobrir que ela estava ao seu lado, tinha que se esforçar o suficiente para que entre elas duas crescesse uma pequena amizade. ?Me daria a honra de tomar um chá? Depois de tantas horas sem comer, estou faminta.

?Não gosto de chá, prefiro o café e se acrescentar a isso uns ovos mexidos e torradas, estarei encantada em acompanhá-la ?Mary disse parando no alto da escada.

?Vejo que não sou a única que tem fome ?Valeria afirmou sorrindo. ?Não se preocupe, o serviço é incapaz de dormir desde que meu irmão ficou doente e certamente a cozinheira ficará feliz em preparar tudo o que quisermos. ?Enlaçou o braço direito com o esquerdo de Mary e desceram as escadas juntas. ?Sabe? Philip é incapaz de sair de seu quarto sem primeiro tomar duas xícaras de café. Segundo me explicou, as pessoas que o tomam são mais inteligentes e ativas. E depois do que fez, penso que tem razão. E você é uma mulher muito lúcida e perspicaz.

?Tentando me elogiar, Valeria? Não pareço mais uma mulher tão horrível? Esqueceu meu mau caráter? Porque posso lhe garantir que não será a primeira ou a última vez que me comportarei de maneira tão grosseira. Como bem sabe, minhas habilidades sociais são bastante escassas, o que não me preocupa em nada.

Diante dessa afirmação, a Sra. Reform soltou uma risada alta, apertou Mary com mais força em direção a ela e avançaram até que pisaram no corredor.

?Depois de sua atitude, tenho que lhe dizer que possui mais qualidades positivas que negativas, embora tema que não está acostumada a esse tipo de bajulação em relação a sua pessoa, estou errada?

?Não sei muito bem o que responder a isso porque acho mais fácil enfrentar críticas do que elogios ?respondeu com sua habitual sinceridade.

?Então se acostume com isso, Mary. Se realmente salvou a vida do meu irmão, ele se transformará em seu fiel protetor e eu em sua principal admiradora. Acha que qualquer um de nós permitirá que voltem a menosprezá-la por realizar um trabalho que até agora só realizavam homens? Ninguém será tão tolo em lidar com a protegida de Giesler ?garantiu enquanto a dirigia para a cozinha.

?Se você diz... ?Mary declarou um pouco desconcertada.


Capítulo II


Tinha que admitir que a conversa que manteve com a Sra. Reform se mostrou muito agradável. Além das numerosas atenções afetuosas, que lhe fizeram desconfortável mais de uma vez por não estar a costumada a tanta cortesia, a conversa foi muito reveladora para ela. Descobriu que os Giesler procediam de uma casta de barões alemães, que o pai se apaixonou por uma cigana espanhola e que ambos saíram da Alemanha para viverem seu romance. Uma bela história que terminou com três filhos: Valeria, Philip e Martin. Este último não o conhecia pessoalmente, mas tinha ouvido falar dele pelo excelente trabalho como professor de matemática avançada na Universidade de Oxford. Aparentemente, era uma celebridade, apesar de ser tão jovem. Isso só aconteceu porque tinha nascido homem...

Pegou o vestido com as duas mãos e subiu novamente as escadas. Nesta ocasião não foi acompanhada pela Sra. Reform, pois lhe insistiu que fosse a sua casa para descansar. Tal como Valeria garantiu com autoridade, só ela poderia ajudar o paciente se ele piorasse. A princípio se negou a deixá-la sozinha, pois fez uma promessa a sua mãe. No entanto, depois de uma intensa discussão, concordaram que Shals, o principal mordomo de lorde Giesler, permaneceria ao seu lado durante toda a noite. Mary sorriu novamente ao lembrar o memento em que o servo entrou na cozinha e ouviu a decisão de Valeria. Se naquele momento Anne estivesse junto para contemplar aquele rosto, tê-lo-ia pintado entre gargalhadas. Jamais admirou olhos tão abertos e uma boca tão grande. Na verdade, não pretendia que agradecesse por ter salvo a vida do homem que pagava o seu salário, mas tampouco esperava que reagisse com tanto medo e surpresa, como se estivesse em frente ao próprio Lúcifer. O fiel empregado acreditava que, no meio da noite, ela mudaria de ideia e, depois de pegar seu bisturi, retalharia seu senhor da cintura até a garganta? Embora essa ideia parecesse agradável na manhã em que o conheceu, havia mudado de opinião. Talvez o fato de saber que suas mães tinham algo em comum ou descobrir que não era tão invencível como lhe pareceu naquele dia, suavizou seu temperamento. Quem teria imaginado que um homem com esse aspecto se encontraria apertando a mão da morte? Possivelmente seu sangue espanhol, o único legado da mãe, porque não tinha dúvida de que Lorde Giesler herdara o físico de seu pai, que o mantivera vivo até sua chegada. Ambos os pais haviam passado por situações muito parecidas: a mãe fugiu dos ciganos para se casar com um médico e a cigana espanhola com um barão alemão. Sem dúvida alguma, ambas as mulheres tiveram a sorte de encontrar os homens que as amariam e respeitariam até a morte.

Quando chegou ao patamar no primeiro andar, caminhou lentamente até o quarto onde passaria as próximas horas. Só tinha que respirar fundo e agir com naturalidade até que seu pai chegasse. Uma vez que ele confirmasse que o paciente estava bem e que evoluiria normalmente, sairia de lá sem olhar para trás. Não era bom para ela permanecer ao lado de um homem que havia desejado odiar depois de lhe salvar a vida e descobrir que tinham muitas coisas em comum.

Colocou a mão na maçaneta e virou-a devagar, para não fazer muito barulho. Os criados, exceto Shals, haviam se retirado para descansar e não queria tirá-los de seus quartos se perguntando o que havia feito desta vez a filha do médico. Ao abrir a porta, ao olhar para dentro do quarto, levou as duas mãos até a boca e a pressionou com força para que seu grito não se ouvisse. Por que diabos fizeram tal coisa? Se não falhava a memória, jurava que os havia ordenado que não movessem o recém operado até que acordasse? Bem, eles a ignoraram! Os lacaios, aqueles a quem lavara as mãos tanto que pôde observar como alguns pedaços de pele morta caíram no chão, ergueram o grande corpo de seu paciente para colocá-lo no confortável colchão. Por acaso estava trabalhando com um bando de teimosos? Não eram capazes de entender suas palavras? Bem, terminariam compreendendo cada letra! No dia seguinte, assim que a Sra. Reform aparecesse, pediria que convocasse uma reunião com os servos. Uma vez que todos estivessem em silencio e atentos as suas palavras, escolheria uma linguagem muito simples para que pudessem compreender melhor as ordens.

Obrigou-se a se concentrar no bem estar de seu paciente. Andou pelo quarto pisando com força e não parou até se posicionar ao lado direito da cama. «Verdammt![2]», exclamou horrorizada ao descobrir que seus dedos, por mais que esticasse seus braços, de onde estava não alcançava o curativo, porque o haviam deitado exatamente no centro da imensa cama. Mas como podiam ser tão inúteis? Não deduziram que ela tinha que subir no colchão para tocar sua testa ou para verificar se a ferida não havia sido aberta ao deslocá-lo? Não! Como poderiam calcular uma lógica tão simples? O único que desejavam era que seu senhor acordasse confortavelmente em sua cama enorme, sem se importar com a inconveniência que a pessoa que salvara sua vida encontraria durante a noite. Por acaso não podia proteger sua honra? O fato de que Valeria mostrasse que sua presença deveria ser mantida em segredo para o bem de todos, não lhes dava o direito de tratá-la como se ela não estivesse. Depois de bufar como um cavalo ao final de uma interminável corrida, seguiu em direção a lareira, onde se encontrava um caldeirão com água limpa e quente. Colocou as mãos e tirou rapidamente ao sentir como sua pele queimava. Olhou com raiva para o paciente, como se estivesse rindo dela e voltou a resmungar. Sim, essa reunião com os empregados deveria se realizar o quanto antes e quem não acatasse suas ordens, ela mesma expulsaria a patadas da residência.

Irritada com a inépcia dos lacaios, ela voltou para a cama para garantir que o paciente não sangrasse. Só faltava que depois do que aconteceu nesse dia, lorde Giesler morresse depois da sua intervenção. O que comentariam aqueles que sempre zombaram da sua inteligência e capacidade? Não suportaria uma humilhação semelhante e seu pai teria que procurar outro capitão de navio que não levasse somente Anne a França, mas ela também. Olhou para a porta, que ainda permanecia fechada, e deixou de respirar, para aguçar o sentido da audição. Depois de comprovar que não havia ruído ao seu redor, subiu com muito cuidado na cama, se ajoelhou sobre o colchão, afastou rapidamente o lençol do corpo de Giesler e cravou seus olhos no curativo. Tinha várias manchas de sangue nele, mas eram normais depois de uma operação desse tipo. Talvez aqueles que o moveram foram mais atentos do que pensou. Assim que confirmou que o curativo continuava firme na cintura, apoiou a mão direita sobre a cama para descer. No entanto, seus olhos seguiam fixos no imenso e forte peito de Giesler. Como havia deduzido antes, era um homem bastante robusto e bonito. Poderia classificá-lo até como atraente, embora naquele momento precisasse de um bom banho para eliminar o suor que tinha emanado do seu corpo. Sua mata de cabelos loiros, que cobria desde seu peito até a cintura, possuía uma tonalidade mais escura que a de seu cabelo, permanecia preso à pele pela transpiração. Então reviu seus ombros, admitindo que o volume deles permanecia de acordo com a solidez de seus braços. Valeria não tinha dito que acompanhava o visconde em suas viagens? Bem, a cor de sua pele e a musculatura confirmavam que não passava as longas viagens protegido em um camarote. Sem dúvida alguma, se transformaria em um corsário vulgar uma vez que zarpassem. Pela diferença de tom entre o peito e a cintura, não tinha dúvidas de que lorde Giesler mostrava seu grande peito sem pudor, fazendo com que o sol e a brisa marinha alcançassem sua pele. Entendia o motivo pelo qual a cigana espanhola se apaixonou pelo barão alemão a primeira vista. Se seu filho tivesse herdado o físico paterno, tal como Valeria disse, não haveria mulher que resistisse a um homem tão atraente. Exceto ela, claro. Pois era imune a sedução masculina. Afastou o olhar do peito e fixou em seu rosto. Seus traços viris se acentuavam com a barba loira que cresceu desde que adoeceu. Seria grosseiro como o caráter que ofereceu no dia que se conheceram ou seria tão suave quanto o toque do lençol? Intrigada para descobrir que sensação tinha, levou os dedos de sua mão direita até o rosto de Philip e o acariciou lentamente. Surpreendentemente, ele virou a cabeça para a palma da sua mão quando sentiu o contato e, embora tivesse que retirá-la rapidamente, para o caso de ele acordar, a manteve até que ouviu a porta abrir.

?Srta Moore... ?disse Shals ao encontrá-la naquela posição tão pouco adequada. ?O que está fazendo? O senhor está acordado?

Dissimulando o espanto que lhe causou ser descoberta dessa maneira tão afetuosa, esticou o lençol para cobrir o pescoço e saiu da cama com menos delicadeza do que quando subiu.

?Estava confirmando que, ao movê-lo, a ferida não se abriu ?explicou com uma serenidade fingida. Colocou os pés no chão e deu vários passos para trás.

?E fez isso? ?Perguntou o mordomo entrando no quarto com uma enorme poltrona em suas mãos.

?Por sorte não. Mas foi imprudente movê-lo tão depressa ?Mary respondeu, se afastando o suficiente para que o criado colocasse a pesada poltrona ao seu dela. ?Para quem é isto? ?Perguntou curiosa.

?A Sra. Reform, antes de sair, me pediu que subisse a poltrona mais confortável que nosso senhor tem em seu escritório ?respondeu depois de deixá-la no chão e colocar as mãos nas costas, como se tivesse se machucado ao transportá-la.

?Dói? ?Mary disse se aproximando dele. ?Não deveria tê-la trazido sozinho. Deveria pedir ajuda a outro lacaio. ?Antes de ouvir a resposta de Shals, andou até o caldeirão quente que estava em frente à lareira, mergulhou um pano e, aguentando a alta temperatura, voltou para onde o empregado estava. ?Tire seu casaco e suba a camisa, por favor. Isto acalmará a dor.

?Mas... mas... ?ele gaguejou.

?Ou faz por vontade própria ou lhe garanto que não me importará tirá-la eu mes...

?Está bem. Farei o que me pede ?desistiu. Apesar do desconforto que sentiu, não só se separando de seu traje na frente de uma mulher, mas também pela indisposição em sua cintura, tirou o paletó e levantou a camisa para o meio das costas. Shals fechou os olhos quando notou um leve alívio quando Mary colocou o pano em sua pele.

?Não quero que você interprete mal minhas palavras, mas você está velho demais para fazer semelhante esforço ?alegou pressionando o pano úmido sobre a pele.

?Sempre fala dessa forma, Srta Moore? ?Shals estalou olhando por cima do ombro. Vendo que ela estava sorrindo, como se não se importasse com a pergunta mordaz, ele também sorriu.

?Como disse a Sra. Reform, sou uma pessoa muito racional e sincera. –Com a mão direita pegou a do mordomo e a colocou sobre o pano, então fez o mesmo com a outra. ?Aguente por mais alguns minutos. Se ainda continuar doendo, posso te dar um analgésico que tenho na maleta.

?Obrigado, com isto será o suficiente ?Shals respondeu depois de se virar para ela. —Posso fazer-lhe uma pergunta?

?Pode fazê-la, mas não prometo que a responda ?disse antes de circundar a cama, se aproximando de Giesler novamente, alongando seu corpo até que pudesse pegar seu pulso e confirmar que era adequado.

?Como aprendeu tudo o que sabe? ?Perguntou sem poder afastar o olhar dela. ?Seu pai a ensinou como se fosse um homem?

O sorriso que havia mostrado até esse momento, desapareceu. Levantou o queixo e olhou para o criado como se quisesse fuzilá-lo.

?Por acaso acredita que as mulheres nasceram sem cérebro e que a função dos homens é criá-las a sua conveniência? ?Disse levantando a voz.

?Não! Não! Por favor, Srta Moore, não interprete mal minhas palavras ?declarou Shals em voz baixa. ?Juro que não quero magoá-la ?argumentou, afastando o pano de suas costas.

?Disse para não tirá-lo ?repreendeu quando viu que, devido ao nervosismo, ele havia desobedecido a sua ordem.

?Sinto muito... outra vez ?Shals declarou acatando a ordem de Mary enquanto abaixava a cabeça, envergonhado.

?Tem filhos? ?Mary continuou falando enquanto voltava a poltrona que havia trazido. Se sentou e levantou o queixo para continuar observando o mordomo.

?Não.

?Então deduzo que é absurdo explicar as decisões que meu pai tomou depois de ser pai de cinco filhas ?se recostou na poltrona, cruzou os braços e encarou o paciente, que ainda estava descansando tranquilamente.

?Tenho sobrinhas, se isso lhe serve de algo ?Shals explicou passando atrás da poltrona para chegar até a lareira.

Se o pano quente acalmava um pouco a sua dor, imaginou que estar em frente ao fogo, faria desaparecer. Além disso, aquele lugar era ideal se a Srta Moore sofria outro ataque de raiva por seus comentários inapropriados.

?Como seus pais se comportam com elas? ?Mary perguntou, virando na poltrona o suficiente para observar o servo.

?Nascemos em uma família que sempre se dedicou a servir, Srta Moore. Pode concluir que minha irmã e meu cunhado as instruem para continuar essa tradição ?explicou com cautela.

?Felizmente para nós, nossos pais têm uma visão mais precisa do futuro de suas filhas ?Mary suspirou.

E ela também agradecia ao bom senso que ambos possuíam. Nem sua mãe nem seu pai teriam educando-as para se tornarem as futuras esposas de senhores odiosos que não as valorizassem. Único objetivo para jovens burguesas ou aristocratas. No entanto, graças a uma educação tão liberal, as cinco puderam desfrutar de algo que poucas mulheres possuíam: a felicidade. Como seriam suas vidas se tivessem sido instruídas sob a absurda opressão social? Tediosa, com certeza, e todas tinham lutado para conseguir a liberdade que precisavam.

?Fico feliz por você ?Shals comentou ocupando finalmente uma poltrona sem encosto que estava do seu lado direito. ?É muito estranho descobrir que alguns pais não são influenciados pelos costumes que nos cercam.

?Meu pai sempre teve uma visão diferente da vida ?Mary continuou um pouco mais relaxada. ?Desde que éramos meninas, nos ensinou a cuidar de nós mesmas e aceitou o caráter com o qual nascemos.

?Em seu caso, o amor pela medicina, certo? ?Shals insistiu e devido à calma de sua dor e ao tom suave da mulher, começou a relaxar.

?Não pense que foi fácil admitir meus interesses. No começo ele estava relutante em me ensinar tudo o que sabia, mas com o tempo lhe mostrei que minhas habilidades são adequadas para tal função ?explicou com orgulho.

?E afirmo-o ?o mordomo garantiu, fixando seus olhos em Giesler. ?Confesso que estou impressionado.

?Pela operação? ?Mary retrucou rindo. ?Não foi nada... Um corte longo, um mais curto, remover, limpar e cauterizar.

?Diz isso com tanta normalidade que dá a sensação que qualquer um pode fazê-lo e não é assim. Srta Moore, tem que compreender que fez algo maravilhoso e incrível. Tenho certeza que nenhum médico poderia ter realizado uma intervenção urgente com a serenidade que você manteve em todo o momento. Graças a Deus, a Sra. Reform, depois de ouvir as palavras que o senhor pronunciou em seus delírios, foi buscá-la.

?O que disse? ?Mary perguntou se inclinando para frente, para observar melhor a expressão no rosto de Shals.

?A senhora não lhe disse? ?O mordomo respondeu com certa inquietação ao deduzir que havia cometido um grande erro.

?A senhora falou em procurar meu pai, Randall Moore, mas não me disse que Lorde Giesler mencionou meu nome em seus delírios febris ?declarou com surpresa.

?Não! Não! Não me referia ao seu nome ?Shals mentiu ?mas seu sobrenome. Meu senhor, não parava de repetir o sobrenome de seu pai. Por isso a senhora foi a sua busca.

?Já percebi... ?comentou enquanto voltava a se recostar na poltrona e fixava seus olhos no paciente. Não lhe teria ocorrido falar sobre ela, certo? Porque se fosse assim, esperaria que se curasse para deixá-lo doente de novo.

?Como descobriu, tão rapidamente, a doença do meu senhor? ?Shals, ao confirmar que suas palavras a haviam relaxado novamente, mudou de assunto. Não desejava se envolver em um problema em que se confrontaria com o caráter daquela moça e do homem ao qual servia há vários anos, porque a única coisa que conseguiria seria uma demissão iminente.

?Conto a versão entendida, que abrange desde a época egípcia ou se conforma com o momento em que apalpei meus dedos na inflamação? ?Mary disse divertida.

?Com queira. Lembre que temos que permanecer acordados toda a noite e minha única tarefa é ficar com você neste quarto ?Shals respondeu com o mesmo tom jocoso.

?Sendo assim, começarei com os estudos que se realizaram depois de algumas descobertas em certos túmulos egípcios...

Durante um pouco mais de duas horas, Mary explicou sem parar tudo o que conhecia do assunto: seus descobrimentos, quem os estudou, suas conclusões e como os resolviam durante diferentes séculos. Em várias ocasiões o mordomo se aproximou dela para servir-lhe um copo de água fresca, mas ela não percebeu esse detalhe de cortesia. Mary estava incrivelmente emocionada porque era a primeira vez que alguém a escutava falar sobre medicina com atenção e até fazia perguntas sensatas. Se sentiu tão confortável que terminou confessando tudo o que lhe perguntava sobre sua infância: o dia em que seu pai a descobriu com um livro de medicina, os gritos de Shira ao descobri-la dissecando o corpo de um gato morto, as contínuas ameaças de sua mãe com seus livros, as reuniões de medicina que assistia. Falou tanto e se encontrava tão satisfeita que não reparou em Giesler exceto quando este emitiu um leve gemido. Nesse instante, Shals abandonou rapidamente a banqueta na qual permaneceu e se aproximou dos pés da cama enquanto observava como ela o atendia.

?O que acontece ?perguntou inquieto.

?Nada estranho ?ela respondeu depois de tocar sua testa e verificar que seu estado era normal. ?O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar. ?Deixou a cama, se dirigiu até a mesa de cabeceira onde havia deixado o copo que Shals enchia continuamente e voltou até Philip.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo... ?enfiou os dedos da mão direita dentro do copo, molhou-os e, depois de levantá-los, colocou-os sobre a boca de Giesler.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

?A Sra. Cheap tem um unguento a base de gordura animal que usa para que as mãos não rachem. Se quiser, posso pedir-lhe para...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaico. Terá mais que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção ?comentou com certo tom de amargura.

?Srta Moore, não me interprete mal, te suplico. Só desejo facilitar em tudo que possa seu excelente trabalho. Imagino que seja um pouco incomodo subir na cama do meu senhor, se ajoelhar ao seu lado e se inclinar até sua boca para umedecê-la com seus próprios dedos ?Shals explicou surpreso ao descobrir que ela era tão inocente que não era cuidadosa com a imagem que oferecia. Mais que um médico hidratando os lábios de um doente, parecia uma concubina fazendo alguma brincadeira erótica no seu cliente.

?Olhando a partir dessa perspectiva, parece que estou fazendo uma coisa horrível e tudo que pretendo é...

Mary ficou muda ao sentir uns dedos apertando em torno de seu pulso direito. Continuava olhando Shals, que já não expressava assombro, mas pavor. Tampouco fixava seus olhos nela, mas os dirigia até o lugar do colchão onde se encontrava lorde Giesler. Mary tragou a saliva e virou lentamente sua cabeça em direção ao rosto do homem que, inexplicavelmente, já havia acordado. Quando seus olhares se cruzaram, o coração paralisou. Aquele homem voltava a olhá-la como no dia em que se conheceram. Não havia ternura sem seus olhos, senão ódio e raiva. Por que diabos não lhe deu mais clorofórmio? E... de todas as maneiras possíveis para encontrá-la, teria que ser dessa maneira? O que passaria por sua cabeça ao vê-la sobre sua cama e ajoelhada ao seu lado? Pensaria que começaria a chorar como uma amante dramática ao ver a vida de seu amor em perigo? Por que Shals não falava? Por que não lhe oferecia o atiçador da lareira para que ela pudesse bater na cabeça dele e deixá-lo inconsciente de novo?

?Senhor... Milorde... ?Shals tentou finalmente dizer ao ver como lorde Giesler olhava a Srta Moore. ?Ela... é...

?Quem lhe salvou a vida ?Mary garantiu antes de fazer um movimento brusco com a mão, para se livrar do aperto, e descer da cama rapidamente.


Capítulo III


Não podia se mexer. Era incapaz de separar os cílios para observar quem se encontrava ao seu lado. Sua mente estava completamente adormecida e seu corpo parecia ter perdido toda a força. Não tentou nem desejou realizar nenhum esforço, pois pressentia que não conseguiria. Com os olhos fechados e imóvel, tentou lembrar o que havia acontecido. Mas não conseguiu nada, exceto que dias atrás se encontrava muito indisposto e que, de repente, seu corpo não se mantinha em pé. Em que dia da semana estava? Tinha perdido também a consciência? Quando? Respirou fundo, aplacando lentamente a angustia que sentia ao se sentir tão fraco. Pelo menos estava em casa, em seu quarto. A maciez característica do seu colchão e o cheiro do seu perfume atestavam isso. Deixando de lado a incerteza do que poderia acontecer, se concentrou nas vozes. A princípio parecia distante, mas com o passar do tempo ficaram mais nítidas e próximas. Duas. Ao seu lado permaneciam duas pessoas. Uma sem dúvida alguma era Shals. Poderia reconhecer sua voz, mesmo que ele estivesse trancado em uma caixa de metal. No entanto, se concentrou na outra. Uma mulher. Sim, aquele tom suave, mas ao mesmo tempo estridente, apenas uma fêmea poderia oferecê-lo. Conteve novamente a respiração, acalmando qualquer som que ele mesmo produzisse, para descobrir de quem poderia ser. Não teria ocorrido a Shals a ideia horrível de levar suas antigas amantes para cuidar dele, certo? Se ele tivesse tomado essa decisão, sua posição estava em perigo.

?Por que pensou em dissecar o pobre animal? ?Ouviu perguntar a estranha que, pela proximidade de sua voz, devia estar muito perto.

?Por curiosidade ?ela respondeu antes de soltar um sorriso suave. ?Precisava ver com meus próprios olhos o que escondia embaixo do pelo e da gordura. Além disso, estudar um coração na imagem de um livro não é o mesmo que tê-lo em suas mãos.

?Descobriu?

?Sim, até que Shira gritou horrorizada. ?Ela se divertiu ao lembrar aquele episódio de sua vida. —De acordo com ela, estava cometendo uma barbárie, então fui forçada a deixar o corpo e correr sem parar até chegar ao meu quarto.

?Imagino que sua mãe a castigou ?Shals deduziu.

?Somente até meu pai chegar. Quando expliquei a razão pela qual fiz isso e mostrei a ele todas as anotações que havia feito em um caderno pequeno, a punição acabou imediatamente. Daquele dia em diante, ele me ajudou a satisfazer minha curiosidade científica. Mas não me permitiu, até que completasse dezoito anos e depois de me presentear com a maleta que trouxe hoje, acompanhá-lo em suas consultas médicas.

?Atendeu aos doentes nessa idade tão jovem? ?Shals perguntou surpreso.

?Não. Eu apenas observava a atitude do meu pai e ouvia com atenção todas as suas explicações. No entanto, tenho que lhe assegurar que a grande maioria dos conhecimentos que possuo, consegui através dos livros que tenho lido sobre medicina.

?Você é uma mulher muito especial, Srta Moore.

?Obrigada ?ela respondeu, aceitando o elogio com prazer.

«Srta Moore...» Philip sentiu como seu peito se comprimia ao ouvir aquelas palavras. Seria ela? A bruxa de cabelos escuros tinha ido a sua casa para curá-lo? Por quê? Quem lhe havia pedido ajuda? Porque aceitou o pedido depois do terrível episódio que viveram dias atrás? Tentou se levantar para confirmar que não era uma alucinação, que sua mente distorcida não o enganava, mas continuava fraco, muito até mesmo para levantar um dedo. Assumindo que a única coisa que poderia fazer era ouvir com atenção a conversa da filha erudita do Dr. Moore, se concentrou em não perder nenhuma palavra. No entanto, uma pontada aguda de dor em sua cintura o fez rosnar, chamando a atenção de ambos.

?O que aconteceu? ?Ouviu Shals perguntar.

?Nada de estranho. O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar.

Philip percebeu como o colchão se inclinou ligeiramente para a sua esquerda. Depois disso, uma mão macia e quente tocou sua testa.

Mary...

Ela subiu na cama para confirmar que não estava piorando. Se deixou levar pela sensação de prazer que notou na leve carícia. Nunca se sentiu tão tranquilo e protegido por uma pessoa. Sempre foi ele quem velava pela segurança dos outros. Mas naquele momento, sua figura desamparada estava sob a proteção da mulher a quem ele gritou e admirou, em partes iguais. Ele apertou mais as pálpebras quando percebeu que estava se afastando. Uma estranha frieza percorreu seu corpo, causando um tremor intenso. Até suas vísceras reivindicavam essas carícias tão relaxantes. Não demorou em voltar. Para seu prazer, Mary ficou ao seu lado novamente.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo...

Tudo o que uma vez descreveu como maravilhoso desapareceu de sua mente quando sentiu a suavidade dos dedos molhados tocando seus lábios. Queria gemer de prazer, mas permaneceu quieto e calado. Não queria quebrar um momento tão terno, tão esplêndido. Possivelmente seria o único momento em que ela se comportaria de maneira tão afetuosa porque, uma vez que descobrisse que havia acordado, a mulher árida e gélida retornaria.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

Seu ferimento, o que ela mencionou, não sangraria. O que estava sangrando era sua alma. Porque lá estava ela, a mulher que jogou aqueles rolos de metal, saciando sua sede com os próprios dedos. Esse ato poderia defini-lo como o maior bem-estar que ele poderia sonhar? Talvez ele tivesse morrido e sua visão da vida eterna fosse ter aquela bruxa ao seu lado que ele não podia esquecer desde que a conheceu.

?A Sra. Cheap tem uma pomada à base de gordura animal que ela usa para evitar que as mãos rachem. Se desejar, posso pedir-lhe para que me...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaicos ?interrompeu-o?. Terá mais do que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção.

«Não!» Philip quis gritar com a opção que Shals lhe oferecia. Ele não queria que ela se afastasse dele, ou que seus lábios fossem borrifados com qualquer coisa, menos a água fresca de seus dedos. Ele precisava que ela continuasse com aquele ato íntimo, para tê-la por perto, sentir o perfume que ela exalava e a suavidade de seus dedos molhados.

Shals continuou falando. Ele explicou que não era apropriado que ela adotasse uma certa postura. Que postura seria? Estaria desconfortável? A inquietação tomou conta dele ao pensar que ela sofreria alguma doença por sua culpa. Muito lentamente, ele separou as pálpebras. A princípio, sua visão não era clara. Pelo contrário, parecia ter uma teia de aranha sobre as pupilas. Ele piscou várias vezes até alcançar a nitidez que desejava. Quando a viu, sentiu que não apenas sua alma estava sangrando, mas também seu coração. Mary estava ajoelhada na cama, estendendo a mão para a boca, hidratando-a, tal como explicava a Shals. Lentamente, seus olhos se desviaram para o peito feminino escondido sob um vestido que ele não conseguia distinguir claramente sua cor. Preto... talvez azul. Seus braços longos e delicados estavam nus, porque em algum momento decidiu enrolar as mangas até os cotovelos. A visão daquela pele esbranquiçada parecia requintada, atraente e tremendamente maravilhosa. Se estava morto, não tentaria voltar ao mundo dos vivos, pois o que vivia era ideal para ele. No entanto, justamente quando Shals percebeu que era capaz de observá-los, deduziu que sua situação idílica havia chegado ao fim. Ele lentamente levantou a mão esquerda para o pulso de Mary, agarrou-a e ela parou de falar.

Seus olhos se encontraram e se entreolharam por um momento. Ele queria transmitir através deles a felicidade que sentia ao encontrá-la ao seu lado, para cuida-lo. Mas o medo e a confusão mostrados pelo olhar de Mary o surpreenderam.

?Sr.... milorde... Ela é...

As palavras de seu mordomo ouviram-nas longe, como se não estivesse ao pé da cama, mas a 160 quilômetros de distância. Não quis prestar atenção à desculpa que Shals ofereceria ao encontrá-la em uma postura tão comprometedora. Tudo o que ele desejava era continuar contemplando a imagem perfeita de Mary: ao seu lado, em sua cama, acariciando sua boca com os dedos, saciando sua sede... Esse sentimento de felicidade se tornou em pavor quando percebeu sua mudança abrupta de atitude. Ela voltava a levantar o muro que os separou naquele dia.

?Quem salvou sua vida.

Manifestou em um tom de voz que Philip odiou. Lutou até libertar a mão de seu pulso e se afastou da cama, de seu lado. Continuou a olhá-la. Não podia afastar os olhos dela. Precisava observar todas as expressões que mostrava seu rosto. Surpresa, alegria, tristeza, compaixão? O que seria? Por qual escolher?

?Shals... ?murmurou lentamente. ?A... água... ?terminou de dizer.

O mordomo se aproximou rapidamente da cama, pegou o copo no qual Mary colocara os dedos e, quando ia lhe oferecer, ela gritou de horror.

?Nem pense em fazê-lo!

?Srta Moore, o senhor está me pedindo...

?E lhe dará, mas não dessa. Certamente que está contaminada depois de colocar meus dedos.

?Duvido muito que esteja depois de como foi lavado ?Shals apontou com um pouco de diversão.

Enquanto Mary estava em frente à lareira, onde podia observar claramente o paciente e permanecer distante, a criada esvaziou a água do copo na bacia e voltou a enchê-lo do jarro que havia sobre a mesinha. Se aproximou de lorde Giesler, segurou-lhe a cabeça e com muita delicadeza lhe deu de beber.

?Obrigado... ?ele disse uma vez que saciou sua sede. ?Shals, me ajude a sentar.

?Srta Moore, ?ele começou a dizer olhando para ela com os olhos arregalados ?acha que é uma boa ideia fazê-lo?

?Não. ?Garantiu indulgentemente. ?Precisa ficar deitado mais algumas horas.

O suficiente até que seu pai aparecesse e ela pudesse sair dali. Não podia enfrentar de novo esse olhar ameaçador. Só de pensar que continuava a odiá-la, a amarga e ressentida Mary voltaria para causar outro grande escândalo.

?Ficarei satisfeito se levantar um pouco minha cabeça. Não quero ficar o tempo todo olhando para o teto. ?Philip solicitou, a modo de queixa, a seu empregado, que acabou concordando com esse pedido, apesar de ouvir como a mulher bufava. ?O que aconteceu comigo?

?Um milagre! ?Shals exclamou dando um passo para trás, depois de acomodar o travesseiro.

?Que absurdo! ?Mary comentou, virando-se para não mostrar a raiva que tinha ao ouvir uma palavra tão estúpida para ela.

?Milagre? ?Philip retrucou olhando para a figura feminina. ?O que você quis dizer?

?Milorde, está acamado há pouco mais de dois dias. A Sra. Reform ficou ao seu lado esse tempo todo. Tentou curá-lo, mas, admitindo que precisava da ajuda de um médico, foi procurar o Dr. Moore. No entanto, ele não pôde comparecer e, em vez disso, a Srta Moore veio. Ela... ?Shals respirou fundo, olhou para a jovem e falou com orgulho, como se fosse seu próprio pai. ?Ela descobriu rapidamente que doença sofria e agiu imediatamente. Ela o operou, senhor. Ela salvou sua vida...

Giesler não tirou os olhos dela em nenhum momento. Algo dentro dele cresceu tão intensamente que seu peito expandiu. Felicidade? Agradecimento? Não sabia ao certo em que consistia essa emoção que inclusive lhe proporcionava forças para se levantar. Mas ele ficou parado, olhando-a sem piscar. Se ela descobrisse que estava começando a melhorar, iria embora e não estava disposto a se separar da mulher tão rapidamente que, rudemente, lhe dava as costas.

?Tinha a fossa ilíaca inflamada. ?Mary começou a dizer, olhando para o fogo. ?Tudo o que fiz foi tirá-la do seu corpo antes que fosse tarde demais.

?Pelo amor de Deus! ?Shals exclamou novamente. ?Explica como se fosse uma coisa muito simples e não foi. Sua intervenção durou pouco mais de quatro horas e posso garantir-lhe que, em nenhum momento, a Srta Moore diminuiu sua vontade de salvá-lo.

?Não preciso que me lisonjeie. ?Ela recriminou, ainda de costas para Giesler. ?Qualquer médico teria realizado essa operação com a mesma capacidade e eficiência que eu.

?Mas falamos de uma mulher... ?Shals sussurrou a seu senhor, comentário que fez Philip sorrir. Não só por afirmar algo evidente, mas pela forma temerosa de dizê-lo. Assustava-o? Conhecia o caráter especial da filha do médico?

Sem apagar o sorriso do rosto, ele continuou a admirá-la até seus olhos oferecerem uma imagem que ele nunca esqueceria. Se sua mente nunca parasse de mostrar a ele o momento em que se conheceram, e como o tecido de sua camisola se encaixava em sua figura, o fato de ficar na frente do fogo e que a luz das chamas atravessasse o tecido de seu vestido, concedeu a ele uma nova e esplêndida visão de suas pernas e quadris. Ela não usava anáguas? Por quê?

?Diga-me o que aconteceu ?Philip disse para Shals.

?Desde o início? ?estalou o mordomo se acomodando na cadeira onde Mary havia ficado antes que acordasse.

?Sim ?Giesler garantiu sem desviar o olhar daquela imagem espetacular.

Tal como pediu, Shals contou-lhe com todos os detalhes o que tinha acontecido desde que o encontraram caído no quarto. Os cuidados oferecidos por sua irmã, febre, vômito e convulsões. Evidentemente, ele não fez referência às palavras que evocou durante seus delírios. Mas, para dar uma explicação lógica do motivo pelo qual a Sra. Reform foi procurar o Dr. Moore, indicou que um funcionário havia ouvido que o médico seria o mais adequado para ajudá-lo, dada a fama que adquirira em Londres. Nesse momento Shals advertiu que Mary pegou o atiçador, o levantou e logo moveu as brasas com certa beligerância. Ele não quis perguntar o motivo pelo qual ela estava realizando esse ato brusco, decidiu continuar lhe falando sobre a saída de sua irmã para a residência do doutor e a chegada desta com a Srta. Moore. Explicou como gritou com os funcionários que se propunham a banhá-lo em água fria, como se aproximou dele e o espanto que todos mostraram quando a ouviu explicar que doença estava sofrendo. Narrou de maneira engraçada o momento em que ela forçou os servos a lavar as mãos em caldeirões diferentes e como insistia que fossem borrifados com um líquido que ela guardava na pasta. Philip não sorriu ao escutá-lo. Seu rosto estava rígido e seus olhos estavam fixos nela. Descobrir que havia tomado uma decisão tão importante, apesar de ambos não terem sido cordiais naquele dia, o deixou atordoado. Ele não tinha dúvida de que os rumores sobre seu intelecto eram verdadeiros, assim como afirmou aquilo que concluiu depois de investigá-la: os homens, que zombavam dela e a humilhavam constantemente, agiam dessa maneira porque a temiam. Eles estavam muito conscientes de que ela poderia superá-los, mesmo com os olhos fechados.

E isso que tinha crescido nele, que ainda não podia definir, aumentou.

?Obrigado. ?Lhe disse quando Shals concluiu a história. ?Te devo minha vida, Srta. Moore.

?Bobagem! ?Exclamou finalmente virando-se para ele. ?Não me deve nada. Como disse a seu mordomo, qualquer pessoa em meu lugar teria agido de maneira semelhante.

?Mas você enfrentou com valentia a Sra. Reform ?Shals interveio. Ao observar o rosto desconcertado de seu senhor, esclareceu: ?Sua irmã queria esperar o Sr. Moore, mas a Srta. insistiu em agir rapidamente. Além disso, lhe garantiu que morreria se não intervisse imediatamente.

Mary notou como suas bochechas coravam. Não arderam pelo calor do fogo, mas pelo embaraço que estava sofrendo. Aquele homem, imaginando que estava fazendo um ato de bondade para com ela, a descreveu como uma pessoa obstinada, teimosa e incapaz de aceitar a decisão da irmã do paciente. Outra característica que deveria adicionar à sua extensa lista de defeitos. Era melhor resolver o problema de uma só vez. Não podia suportar, nem por um momento mais, tantos elogios desnecessários ou daquele olhar hermético oferecido pelo homem que lhe salvara de uma morte certa.

?Como observei que está muito melhor e que o seu mordomo pode atendê-lo adequadamente, descerei ao primeiro andar. Já amanheceu há algum tempo e estou certa de que a Sra. Reform aparecerá em breve.

?Não! ?Philip gritou ao observar que ela se dirigia para a porta. Esse ligeiro movimento fez que lhe doesse a ferida. Ele colocou as mãos naquela área do corpo e olhou para ela novamente. ?Por favor... ?Sussurrou.

?Não se preocupe ?comentou Shals?, eu mesmo descerei para recebê-la. Você pode seguir atendendo Lorde Giesler. Agora que acordou, ele mesmo lhe dirá onde lhe dói e poderá lhe administrar o remédio que guarda na maleta.

?Vai me deixar sozinha? Não se lembra da promessa que fez à Sra. Reform? ?Mary insistiu com os olhos arregalados e colocando suas mãos em ambos os lados da cintura.

?Não corre nenhum perigo, Srta. Moore. Como pode ver, meu senhor, é incapaz de lhe fazer mal algum e sobre o escabroso assunto de permanecer a sós com um cavalheiro, não tem por que se preocupar. Ninguém nesta casa falará disso depois de salvar a vida do homem que paga seus honorários, lhe garanto.

?Mas... Mas... ?ela tentou dizer.

Shals parecia ter ficado surdo de repente. Depois de fazer uma leve reverência a Philip, caminhou decidido para a porta, fechou depois de sair e uma vez que já não puderam observá-lo, sorriu.


***

Quanto tempo passou desde que eles ficaram sozinhos? Talvez tenha sido apenas por alguns segundos, mas para Mary pareceu que tinha passado uma eternidade. Durante esse breve período não tinha se movido nem um palmo de onde ficou, antes da abrupta saída de Shals. Ele tentou fixar o olhar na porta, na lareira, no chão, mas acabou olhando para o rosto pálido e doentio. Embora Lorde Giesler não parecesse confortável, pois tampouco desviou o olhar dela. Seus olhos se mantiveram imóveis, como se o clorofórmio que lhe administrou não o deixasse movê-los para nenhuma outra área do quarto. Pegou as mãos e torceu-as com força. O que devia fazer? Faria bem se quebrasse aquele silêncio constrangedor?

?Srta. Moore... ?Philip sussurrou enquanto tentava mover a cabeça.

?Não o faça! ?Mary ordenou-lhe com um grito. ?Você não ouviu o seu mordomo? Acabei de operá-lo! ?Insistiu irritada.

?Sim, mas segundo as suas palavras, a intervenção foi muito simples. Por esse motivo, deduzi que...

?Deduções? A sério? Após a quantidade de anestésico que lhe dei, acha que sua mente é capaz de deduzir algo claramente? ?Continuou irritada. — O que precisa fazer é ficar parado por mais algumas horas.

?Quantas?

?Quantas o quê? ?Retrucou caminhando até ele com relutância.

?Quantas horas você acha que serão apropriadas? ?Esclareceu Philip, imensamente satisfeito ao ver como ela voltava a seu lado.

?Eu imagino que quarenta será mais que suficiente. ?Se Colocou no lado direito da cama, cruzou as mãos pelo peito e o olhou esquiva.

?Estou com calor... ?disse Giesler depois de pensar rapidamente uma alternativa que a obrigasse a tocá-lo de novo.

?Pode afastar o lençol, se desejar ?respondeu sem diminuir essa atitude zangada e distante.

?Mas me disse que não me movesse, que permanecesse quarenta...

Poderia rir? Não. Embora desejasse fazê-lo, não era apropriado, pois Mary acabaria cobrindo o rosto com o lençol para que não o observasse nem falasse mais. Por esse motivo, permaneceu calado, gostando de assistir enquanto pegava o pano com as pontas dos dedos e deslizava lentamente até a cintura.

?Melhor? ?Retrucou voltando a posição anterior.

?Água.

?Quer mais água? ?Perguntou arregalando os olhos.

?E remédios. Segundo declarou Shals, devo tomar...

?Cale-se por um momento! ?Mary exclamou desesperada. ?Não diga nem mais uma palavra. Vou dar-lhe a pílula[3] e esse maldito copo de água.

Fazendo movimentos mais bruscos do que deveria, se virou para a maleta, procurou o frasco onde tinha os comprimidos e pegou o copo de água.

?Não tente se mexer, eu te ajudarei. ?Philip a obedeceu. ?Passarei meu braço direito embaixo da cabeça. Precisa manter uma inclinação adequada para que o medicamento não fique preso na sua garganta. Se fizer isso, poderia morrer de asfixia ?comentou com sarcasmo.

?Sei que não permitiria que me acontecesse uma coisa tão horrível ?apontou Philip antes que lhe colocasse a cápsula na boca.

?Não tenha tanta certeza ?resmungou enquanto lhe dava de beber.

Não havia dúvida. Estava no céu e a mulher que ele chamou de bruxa era seu anjo. Sentir a suavidade da pele desse braço feminino em sua nuca, despertou-lhe uma incrível sensação de prazer e bem-estar. Quantas amantes deslizaram suas mãos pelo seu corpo? Dezenas! Quantas delas lhe causaram tanto prazer? Nenhuma. Aquela harpia de olhos azuis e cabelos escuros lhe provocava, com seu mau humor e seus atritos esquivos, uma satisfação inigualável.

Fechou os olhos quando ela deslizou seu braço para se afastar. Honestamente, nada poderia ser comparar. Talvez fosse um efeito colateral do clorofórmio que ela o fez inalar, ou talvez tudo fosse produto daquele período de castidade que se auto infringiu depois de conhecê-la. Fosse o que fosse, precisava senti-lo milhões de vezes mais.

?Obrigado ?lhe disse em voz baixa, quando Mary voltou a manter certa distância entre eles.

?Como disse? ?Retrucou estreitando os olhos.

?Agradeço, Srta. Moore. Mas entendo que não pode me ouvir claramente porque se afastou demais ?respondeu, dissimulando o estado de frenesi que se apoderou dele ao confirmar que encurtava essa separação bruta.

?O ouço perfeitamente, lorde Giesler. Só queria ouvir seus agradecimentos novamente ?respondeu mordaz. ?É bastante paradoxal que você, o homem que me chamou de bruxa em minha própria casa, me mostre tanta gratidão.

?Me jogou alguns tubos de metal. Queria me machucar com eles ?se defendeu.

?Não fiz isso? ?Retrucou ironicamente. Levantou as sobrancelhas escuras e esboçou um sorriso perverso enquanto colocava as mãos na cintura novamente.

?Não ?respondeu Philip. Se deleitando com aquele rosto maravilhosamente diabólico.

?Uma verdadeira lástima! ?Exclamou divertida antes de estalar a língua. ?Porque meu único objetivo naquele dia era machucá-lo.

?Para quê?

?Para que nunca me esquecesse ?respondeu de forma arrogante.

?Não fiz isso ?garantiu, olhando-a sem piscar.

As palavras e a expressão em seus olhos fizeram Mary se sentir intimidada, algo que geralmente não acontecia com facilidade. Mas aquele titã, com um corpo esbelto, cujo tronco bronzeado se mostrava descaradamente diante dela, começou a quebrar todas as barreiras que ela havia construído contra o sexo masculino. Que diabos tinha de especial? Por que seu coração batia loucamente? Não começaria a brotar seu sangue cigano naquele momento, certo? O que lhe disse Anne antes de partir para a cerimônia de casamento de Natalie Bennett? «Quando o sangue de Arany se libertar da pressão a que o submete, esquecerá tudo o que leu em seus amados livros e se tornará uma mulher apaixonada».

?Posso lhe pedir um favor, Srta. Moore? ?Philip perguntou, ao perceber que o olhar de Mary mostrava mais confusão do que medo.

?Quer mais água? Quer que o cubra novamente com o lençol? ?Respondeu ironicamente.

?Não. Minha sede se acalmou e garanto que estou com muito calor. Se não estivesse ao meu lado, afastaria imediatamente esse maldito lençol ?apontou sinceramente.

Comentário que a ruborizou, porque a fez lembrar o que estava escondendo debaixo do tecido.

?O que deseja? ?Quis saber, caminhando vários passos mais para trás.

Não devia permanecer tão perto. Não podia sentir nada. Seu coração precisava se acalmar de uma vez. Por que sua mente não agia? Onde estava seu autocontrole? E seu raciocínio feroz? Acaso haviam desaparecido? Que sangue possuíam naquele momento suas veias o Moore ou o Arany? Quando diabos seu pai chegaria?

?Vê essa cômoda que há no lado direito da lareira? ?Philip apontou com o queixo.

?Se pensa que vou me tornar sua empregada, está muito equivocado. Como bem sabe, meu único propósito tem sido...

?Srta. Moore, pode acatar, pelo menos uma vez na vida, uma ordem sem replicar? ?Philip resmungou.

?Por que devo fazê-lo?

?Porque não posso me mexer.

?O que me pedirá depois? ?Insistiu, franzindo a testa.

?Nada, juro por minha honra ?ele garantiu.

?Está bem! ?Mary sucumbiu caminhando em direção a cômoda. Uma vez que ficou na frente dela, olhou para ele. ?O que faço agora, Lorde Giesler? ?Acrescentou cantarolando.

?Abra a primeira gaveta e levante o lenço vermelho que encontrará à sua esquerda ?ele indicou. Embora não fosse conveniente para ele se mover, apoiou os cotovelos no colchão e, suportando a tremenda dor que esse esforço lhe causou, se inclinou o suficiente para vê-la. Como agiria? Se surpreenderia ao descobri-lo ou iria lançá-lo novamente? O que pensaria dele? O acusaria de ser louco e sairia correndo de lá? Com os olhos fixos nela, prendeu a respiração enquanto ao observa-la abrir a gaveta. Quando Mary levantou o pano, ficou parada e contemplou silenciosamente o que encontrou. ?Não me disse que sua única intenção era lembrá-la pelo resto da minha vida? Pois aí tem a prova, Mary. Não a esqueci, nem vou...

?Lorde Giesler ?Shals interrompeu depois de bater na porta duas vezes e abri-la ?O Sr. Moore acaba de chegar. Deseja recebê-lo?

?Sim, claro. Estávamos esperando por ele ?Philip respondeu sem desviar o olhar dela, que, ao ouvir o mordomo, bateu a gaveta e pulou para trás.


Capítulo IV


Shals se afastou para deixar o médico passar. Uma vez que este entrou no quarto seu olhar se dirigiu, em primeiro lugar, para ela. Respirou aliviado ao ver que permanecia frente à lareira, afastada do lorde. Que Mary tomara a decisão de operá-lo com urgência, quando era consciente de que podia esperar um pouco mais sem que corresse perigo, não lhe provocou tanto torpor como saber que se encontrava no quarto de um homem sozinha. Mas tudo o que havia imaginado desapareceu de sua cabeça ao vê-la tão afastada do paciente. Mary não era como Elizabeth, que colocava sua honra em risco constante. Sua segunda filha era tão fria quanto um bloco de gelo e, por mais atraente que o homem fosse, jamais o olharia de outra maneira que não fosse o de experimentar com ele alguma teoria médica nova. No entanto, não lhe passou despercebido o estupor que exibia. As bochechas queimavam pela proximidade do fogo ou pela emoção que devia sentir ao operar uma pessoa pela primeira vez sem o seu consentimento? Não ousou perguntar... O melhor era não saber mais, além do que seus velhos olhos cansados observavam. Com um passo lento, ele se aproximou de sua filha e depois de fazer uma breve revisão de suas roupas, confirmando as palavras de sua esposa, a cumprimentou.

?Bom dia, filha.

?Bom dia, pai ?ela respondeu.

Esgotado. Mary percebeu que seu pai estava bastante cansado, apesar de apresentar uma imagem decente e correta. Ela não tinha dúvida de que sua mãe o esperara na porta e antes que ele pudesse dar um pequeno passo dentro de sua casa, lhe teria dado a volta, teria arrumado a gravata e a camisa, enquanto lhe explicava o que tinha acontecido. Tinha certeza que quando ouviu lorde Giesler, Mary, doença e residência na mesma frase, nem mesmo seu cansaço o teria impedido de comparecer. Esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao imaginá-los divagando sobre sua conduta quando descobrisse a identidade do homem que devia salvar. Temeriam por sua vida? Não a sua, senão a do paciente. Se assim fosse, deveriam respirar tranquilos porque, nesse momento, não desejava matar ao presunçoso que a chamou de bruxa antes de lhe atirar uns rolos metálicos. Ao recordar esse dia, voltou a ficar tensa. Por que diabos havia guardado um dos objetos que lhe jogou? Por que o escondia sob um tecido de seda? E, como teve o descaramento de mostrá-lo? Queria humilhá-la ou talvez desejava que visse com seus próprios olhos a prova do delito? ¿ Não pensaria que o impacto do rolo originou sua doença, certo? Se acreditasse naquela hipótese absurda, era mais idiota do que pensava.

Enquanto ela divagava em silêncio, Randall atravessou o quarto para ficar ao lado de Philip, exatamente onde sua filha havia passado a noite. Seus dedos ainda estavam entrelaçados na alça da maleta, como se não quisesse se separar dela. Olhou novamente para Mary, depois contemplou o paciente e falou com sinais visíveis de medo:

?Bom dia, milorde. Desculpe a demora. Garanto-lhe que vim assim que fui informado por minha esposa. Como se encontra?

?Muito melhor, Sr. Moore ?Giesler respondeu um pouco confuso com a atitude distante que o médico lhe ofereceu a sua filha.

Mas claro, ele não sabia que ideias o casal considerou sobre Mary e sua maldade quando descobrisse a verdadeira identidade do paciente.

?Imagino que se encontra muito dolorido ?Randall disse depois de relaxar.

Pelo menos não tinha lhe arrancado a língua. Talvez tivesse adotado o comportamento de um médico e não o de uma mulher desprezada, como Sophia pensava. Ele nunca tinha visto sua esposa tão preocupada com a vida de alguém ou rezando para sua mãe criadora para mantê-lo seguro. Lentamente, ele se virou para a mesa e apoiou a maleta pesada.

?O normal após a intervenção que a Srta. Moore realizou ?respondeu com certo sarcasmo. Esperava que suas palavras eliminassem a possível inquietude do médico, mas não foi assim. A velha figura de Moore ficou tensa como uma corda de violino.

?Vou inspecionar a área ?lhe disse no momento em que suas mãos se libertaram da pesada mala de couro preto. Abriu-a e tirou uma tesoura. ?Tenho que tirar o curativo, milorde.

?Por quê? ?Philip retrucou estreitando os olhos.

?Porque preciso ter certeza do estado em que se encontra ?explicou depois de olhar para Mary rapidamente.

?Respiro, falo coerentemente e percebo facilmente a dor que irradia da ferida. Não tenho mais febre e me sinto muito mais forte do que antes. Isso não são sinais suficientes para confirmar que, graças à sua filha, me encontro bem? ?Apontou mordaz.

?Não se trata disso, Milorde ?comentou Mary se aproximando da cama. Mas parou o passo quando seu pai levantou a mão esquerda para ela.

?Tenho que confirmar que o trabalho que minha filha fez foi correto.

?Foi ?Philip garantiu categórico.

Mary não conseguia abrir mais os olhos diante da surpresa causada pelas palavras de lorde Giesler. O que ele pretendia agindo dessa maneira tão irritante? Recusaria a ajuda de seu pai? Por quê? O clorofórmio o deixou tão atordoado que não conseguia pensar com sensatez?

?Não duvido da capacidade da minha filha ?Randall expôs levantando o peito. ?Acredite quando lhe digo que colocaria a minha vida nas suas mãos sem hesitar. Mas caso não esteja ciente disso, Mary não possui a licença médica que lhe dá o poder de agir como tem feito. Se não trabalhou bem, se cometeu um pequeno erro, as repercussões futuras que teria seriam terríveis. Todo mundo falaria de sua ação impetuosa, o desastre que cometeu e a tragédia que Londres sofreria depois de perder um membro distinto da alta sociedade alemã. Quer que minha filha seja condenada por assassinato quando tudo o que ela fez por você foi um ato de misericórdia?

?Disparates... ?Giesler resmungou. ?Sua filha trabalhou perfeitamente. Ninguém falará sobre o que aconteceu hoje à noite aqui. Mas no caso hipotético de que aconteça, me tornarei seu feroz defensor.

?Não o fará se morrer ?Ela interveio mais espantada do que nunca.

Não havia dúvidas. Mary afirmou, depois de ouvi-lo, que os possíveis efeitos colaterais da anestesia eram horríveis. Todos os pacientes reagiam de maneira diferente: alguns pulavam sobre os colchões como se tivessem percevejos no corpo, outros gritavam como se vivessem no tempo de Neandertal, outros se tornavam crianças pequenas, que se consolavam chupando os dedos. No entanto, o caso de lorde Giesler foi a coisa mais insana que ela já vira. Ele só precisava sair da cama e empunhar uma espada, como se fosse um cavaleiro medieval, para proteger a honra de sua esposa!

?Penso como você, milorde. No entanto, tenho que verificar seu trabalho ?reafirmou veementemente. ?Posso cortar de uma vez os curativos ou deseja continuar essa conversa absurda? ?Acrescentou derramando sobre as tesouras e suas mãos um líquido incolor.

?Faça tudo o que precisa para confirmar o bom trabalho de sua filha ?disse finalmente.

Enquanto observava como rasgava as ataduras, Philip teve que admitir que Mary havia herdado o comportamento ousado de seu pai. Nenhum homem teria se dirigido a ele com insolência por temor a uma possível retaliação de sua parte. No entanto, lá estava ele, cortando o curativo, removendo o tecido de seu corpo e verificando o ferimento sem pestanejar depois de dar a entender que ele não estava em condições de pensar com lucidez.

?Você usou catgut[4] como fio de sutura? ?Randall perguntou sem olhar para ela enquanto sentia em volta do corte, confirmando que não havia deixado espaço ao costurá-lo. Se Sophia tivesse o acompanhado, descobriria que outra das habilidades de Mary era a costura, como ela o costurara com grande habilidade.

?Claro! ?ela exclamou se aproximando até ficar ao lado dele.

?Em que estado a encontrou? ?Perseverou, sem deixar de apalpar os arredores da ferida.

?Prestes a explodir. Felizmente, agi na hora certa. Mais algumas horas e seria tarde demais para ele... ?ela garantiu com firmeza.

?Como descobriu? ?Depois de fazer a pergunta, Randall se levantou, procurou uma pequena gaze na caixa de remédios, borrifou-a com antisséptico e colocou sobre a ferida.

?Os indícios eram evidentes. Mas confirmei ao apalpar-lhe a zona. Estava tão inchada como a do falecido Sr. Skinner. No entanto, Lorde Giesler teve mais sorte ?explicou antes de levantar lentamente o queixo e contemplar o rosto abatido do seu paciente.

?Se certificou de que não havia perfuração? ?Randall continuou perguntando sem se referir à comparação que fez entre pacientes.

Não era apropriado que repetisse tantas vezes que poderia ter morrido. Mas Mary, depois do que aconteceu com o Sr. Skinner, não conseguia pensar em mais nada. Por isso, agia sem pensar nas possíveis consequências.

?Sim. Antes de removê-lo, verifiquei várias vezes, mas não encontrei sujeira na superfície ?continuou explicando. ?Então, quando o coloquei na bandeja, confirmei que não havia poros.

?Como fez? Usou o método de Fizt? ?O pai perseverou enquanto pegava outro curativo para cobrir a ferida.

?Não, me baseei no método Moore ?continuou com diversão. Entendendo que seu pai não se divertia tanto quanto ela, continuou: ?Abri, procurei, encontrei, cortei, limpei, cauterizei e fechei ?Mary garantiu, finalmente endireitando as costas. Quando deduziu que seu pai enrolaria o novo curativo no abdômen do lorde, olhou para o mordomo e lhe perguntou: ?Shals, pode ajudá-lo? Meu pai é tão teimoso que acha que pode fazer isso sozinho.

Comentário que fez Philip sorrir, porque encontrou outra semelhança entre eles.

?Sim ?respondeu o mordomo avançando para eles rapidamente.

Randall deu o curativo à filha, colocou-se à direita e esperou que o empregado colocasse um travesseiro sob as pernas do senhor. Com a ajuda de ambos, as mãos de Mary se moveram agilmente sobre os quadris do paciente. Ao fazê-lo, descobriu que Philip a observava estranhamente. Não era angústia, nem raiva, nem desconforto, mas veneração, o que expressavam aqueles olhos tão azuis como os dela.

?Quanto de clorofórmio deu a ele? ?Ele perguntou depois de confirmar que o curativo se agarrava perfeitamente ao corpo. ?Levou em consideração o tamanho do paciente?

?Não no começo ?respondeu com um largo sorriso. ?Mas depois de ouvi-lo gritar, ao cravar a ponta do bisturi, rapidamente corrigi meu erro. Como pode ver, é a primeira vez que sedei um homem com a mesma compleição que um cavalo.

Esse comentário não agradou a Philip. Nem tampouco gostou de ser comparado a um cavalo. Não havia outro animal mais bonito? Uma águia não era adequada para ela?

?Quanto fenol usou?

?Tudo o que tinha na maleta ?Mary admitiu depois de se afastar de Shals e de seu pai. ?Tive que obrigar os empregados que me ajudarem e pulverizar suas mãos depois de lavá-las com sabão.

?Tenho certeza disto ?Shals comentou sorrindo. ?Graças à ordem da Srta. Moore muitos dos servos descobriu que sob a sujeira possuem uma pele tão branca como a madrepérola.

?Conheço o caráter de minha filha e tenho certeza de que ninguém poderia se aproximar sem seguir suas instruções à risca ?indicou Randall sorrindo pela primeira vez desde que apareceu.

?Quanto tempo levarei para me recuperar? ?Philip perguntou ao médico enquanto Shals pegava o travesseiro das pernas e o colocava sob as costas.

?Deve permanecer pelo menos dez dias em repouso ?respondeu. ?É vital não se mexa durante esse tempo. A sutura está perfeita e seria uma pena que, após um trabalho tão cuidadoso, arruinasse-a ao tentar se mover mais do que deveria. Precisará de ajuda para desempenhar suas funções vitais. Mas eu aconselho que, quando terminar, volte para a cama o mais rápido possível.

?Entendi que me recuperaria em quarenta horas ?Philip comentou olhando para Mary, que rapidamente desviou os olhos dele por não ter a decência de cobrir o peito na frente dela.

?Minha filha, como disse, fez um trabalho sublime, milorde, mas não um milagre ?afirmou enquanto pegava a alça da pasta com os dedos da mão direita e esboçava um sorriso largo. ?Vou visitá-lo todos os dias para observar sua evolução. Se a qualquer momento o vômito, a febre ou um desconforto inesperado retornar, peço que você me notifique imediatamente.

?A Srta. Moore nos indicou que deve tomar certos medicamentos para diminuir sua dor ?Shals apontou o dedo para o frasco de vidro que havia sobre a mesa redonda à sua esquerda.

?Forneceu o suficiente? ?Randall perguntou.

?Tem para três doses durante oito dias ?Mary admitiu.

?Perfeito. Quando terminar, se precisar de mais, eu mesmo os trarei... ?explicou o médico dando um passo atrás.

?Sr. Moore, antes de sair, diga ao meu mordomo o valor dos seus honorários. Penso que... ?Philip tentou dizer, mas quando viu o rosto de horror do médico, ficou calado.

?Não tem nada para me pagar, milorde. Como já esclareci, minha filha não tem a licença necessária para realizar esse tipo de trabalho e não posso, nem quero aceitá-lo.

?Insisto! ?Giesler exclamou tentando colocar os cotovelos novamente no colchão, um movimento que o fez grunhir de dor.

?É um asno! ?Mary trovejou desesperada ao observar a intenção do paciente. ?Meu pai não lhe disse que não pode se mover sozinho?

?Mary Moore Arany! ?Randall gritou ao ouvir como se dirigia ao lorde.

?Arany? ?Philip perguntou levantando a sobrancelha direita e sorrindo enquanto a observava corar.

?Cortesia da minha mãe, milorde ?respondeu franzindo a testa e dando ao pai um olhar carregado de represália.

?Um nome muito apropriado ?Philip sussurrou divertido.

?Deseja me fazer mais alguma pergunta? ?Randall interveio rapidamente quando percebeu que sua filha não continuaria mantendo uma atitude cordial por muito tempo.

?Não ?Giesler respondeu sem tirar os olhos dela.

Volátil. A palavra mais apropriada para descrevê-la era volátil. Tudo o que ele precisava descobrir era quando poderia pegá-la com a guarda baixa, para que não jogasse nada que pudesse usar como uma arma. Mas ele se preocuparia com isso mais tarde, justamente quando pudesse se levantar sem a ajuda de ninguém. Então ele a procuraria e agradecia pessoalmente pelo que havia feito por ele.

?Sendo assim, até amanhã ?Randall cedeu estendendo a mão.

?Até amanhã ?Philip respondeu, apertando a palma com aparente dificuldade.

?Mary... ?seu pai disse uma vez que estava ao seu lado ?vamos. É hora de lorde Giesler descansar com tranquilidade.

?Tenha um bom dia, milorde. ?Ela se despediu com tanta frieza que Philip sentiu sua alma congelar.

?Mais uma vez obrigado, Srta. Moore ?respondeu lentamente.

Mary lhe fez uma ligeira reverência e, sem dizer uma só palavra mais, caminhou atrás de Shals e de seu pai. No entanto, antes de fechar a porta, não pôde deixar de olhá-lo de novo. Esse íntimo cruzamento de olhares a oprimiu. Não entendia o motivo pelo qual sua mente lhe alertava que sua história com o lorde não terminaria naquele momento, senão que acabava de começar. Horrorizada ao pensar que voltaria a encontrá-lo, fechou a porta com rapidez e suspirou.

?Deve estar muito orgulhoso de sua filha ?Shals disse ao médico enquanto ambos caminhavam pelo longo corredor. ?Nunca conheci uma mulher tão valente.

?Valente ou demente? ?Randall respondeu.

?Não pensa que sua filha agiu corretamente? ?Shals insistiu confuso.

?Mary sempre age racionalmente, porém, desta vez não tenho tanta certeza disso. Você sabe que tipo de repercussão teria se tivesse cometido um erro?

?Erro? ?Retrucou Shals parando no patamar do primeiro andar. ?Não houve nenhum, Sr. Moore. Testemunhei o trabalho de muitos médicos e garanto-lhe que nunca vi uma pessoa trabalhar como ela.

?Não percebeu que é uma mulher e que não tem licença médica? ?Moore insistiu, impressionado com o apoio e o respeito que o criado mostrava a Mary.

?E? ?Shals perguntou olhando para ele incrédulo. ?Tenho certeza de que se ela tivesse atendido meu amo anterior, ele ainda continuaria respirando ?comentou antes de estender a mão para as escadas.

?Não lhe importa as opiniões que este ato de suposta valentia pode lhe causar? ?O pai insistiu.

?Não. E sobre esse assunto, como lorde Giesler esclareceu, não deve se preocupar. No entanto, lhe aviso que, após a brilhante atitude de sua filha esta noite, receio que ninguém nesta casa receberá, quando estiver doente, outro médico que não seja a Srta. Moore.

?Ela não é médica.

?Para nós sim, ela é ?Shals disse sem rodeios.

?Não falaria assim se a conhecesse melhor... ?Randall disse descendo o primeiro degrau.

?Acredite em mim quando digo que todos descobrimos o caráter afável da Srta. Moore ?Shals explicou divertido.

?De verdade? O que fez desta vez?

Enquanto desciam as escadas, o mordomo contou a ele o momento em que apareceu batendo na porta da residência. Randall não ficou chocado ao saber que jogou o casaco e que, sem a presença de um criado, foi para o quarto do paciente. Tampouco ficou surpreso quando Shals o informou que chamava os criados que pretendiam banhar seu senhor de bando de inúteis. Se tivesse agido de maneira diferente, o teria confundido. Mas apenas lhe descreveu o caráter típico de sua filha e seu desejo de salvar vidas. O mesmo que o seu. Esse reflexo lhe causou grande tristeza. Não era justo que a sociedade não permitisse que uma mulher desempenhasse o papel de um homem, apesar de ter mais conhecimento e habilidades do que eles.

?Srta. Moore, aqui está o seu casaco ?Shals comentou estendendo a roupa para ela.

Naquele momento, Mary arregalou os olhos e lançou uma maldição em alemão. Se virou rapidamente e, sem ouvir a repreensão que seu pai falou ao ouvi-la blasfemar, levantou o vestido com as duas mãos para voltar ao quarto.

Correu pelo corredor até chegar à porta do lorde. Por um momento duvidou se deveria bater ou não. Não o fez porque imaginou que, uma vez que estivesse sozinho e em silêncio, a morfina o teria entorpecido novamente.

Como deduziu, seus olhos estavam fechados e ele estava respirando calmamente. Não seria um problema se aproximar da mesa e levar sua maleta. Na ponta dos pés, atravessou a sala, ficou ao lado do paciente e sorriu quando viu que estava descansando tranquilamente. Sem fazer o mínimo barulho, se virou para a maleta, fechou-a e, ao se virar novamente, ficou sem fôlego quando descobriu que os olhos do homem se abriram e a olhava com uma intensidade desconhecida para ela.

?Desculpe, esqueci... ?Ficou calada ao ver que ele estendia a mão para ela enquanto balbuciava algo incompreensível.

Assustada, caso tivesse piorado durante o breve período de tempo em que permaneceu sozinho, deixou cair a maleta no chão e estendeu a mão esquerda. Mas esse medo se tornou perplexidade quando ele a puxou com tanta força que seus narizes se tocaram.

?É uma mulher fascinante, Mary Moore ?ele sussurrou. ?Fascinantemente inesquecível ?afirmou antes que seus lábios tocassem os dela suavemente.

A resposta de Mary não demorou a chegar. Se afastou rapidamente dele e, apesar do estado de nervosismo que sentiu quando foi beijada pela primeira vez, levantou a palma da mão direita e lhe deu uma bofetada.

?Você é um grosseiro e espero que fascinantemente me esqueça ?Disse antes de levantar o queixo, pegar a maleta, adotar uma postura arrogante e sair dali a grandes passos.

No entanto, uma vez que Mary fechou a porta, se apoiou nela, levou a mão com a qual lhe bateu no coração e suspirou. Por que deu um tapa nele? Por acaso não sabia que o clorofórmio ainda passeava por suas veias? Milorde ainda não estava lúcido e estava agindo sob os efeitos dos narcóticos. Seria uma tragédia para ela que recordasse o que tinha acontecido. Se fosse assim, seria um problema sério. Compaixão, um sentimento que não tinha desde que entendeu a amargura do mundo ao seu redor, brotou de suas entranhas. Mas desapareceu imediatamente ao ouvir uma grande risada vinda de dentro do quarto.

?Verdammter Schurke![5] ?explodiu antes de descer as escadas tão rapidamente quanto subiu.


***

?Sabe que não deveria se sentir tão orgulhosa pelo que tem feito, certo? ?Randall perguntou à filha quando ambos se acomodaram dentro da carruagem e depositaram as respectivas maletas no assento. ?A intervenção foi um sucesso, mas não deveria ter feito isso sozinha.

?Agi por instinto, pai ?ela respondeu olhando pela janela.

?Por instinto? ?retrucou levantando as sobrancelhas. ?Desde quando se deixa levar por esse tipo de coisas?

?Tinha uma enorme inflamação. Os vômitos que observei...

?Não pôde esperar sete miseráveis horas, Mary Moore Arany? ?o pai insistiu irritado ?Você parou para pensar nas consequências que teria se não tivesse trabalhado corretamente? Estamos falando de um lorde!

?Desde quando faz esse tipo de distinção social, pai? ?Respondeu, virando lentamente sua cabeça para ele para olhá-lo. ?Me ensinou que as doenças não têm piedade daqueles que as sofrem. Observa-se, se faz um diagnóstico, se age e quando tudo termina tal como se deseja, volta para casa satisfeito por ter salvo uma vida ?garantiu com firmeza.

?Nu! ?Randall gritou fora de si. ?Aquele homem estava totalmente nu! Como foi capaz de se manter de pé, Mary? Por isso corou ao me ver entrar? Sentia vergonha por estar diante de um homem nu?

?Ist das ein problem, Vater?[6]

?Sim. Para mim isso é um grande problema, filha ?Moore garantiu.

?Caso você não se lembre, desde que eu o acompanho, tenho visto muitos homens nus ?apontou com desdém ?e seu querido lorde não é diferente dos outros.

?Sabe o que acontecerá se alguém daquela casa espalhar que você operou seu senhor enquanto ele estava nu? Sua mãe nos matará, porque eles não falarão mais sobre o caráter azedo de sua segunda filha, mas sobre sua insolência e falta de decoro.

?Queria que fizesse a intervenção com ele vestido? ?Retrucou com raiva.

?Poderia ter estendido o lençol, como fizemos em muitas ocasiões ?Randall manifestou sem diminuir sua raiva. ?Mas não. Você não pôde pensar em uma coisa tão simples...

?Me preocupava mais com a sua vida do que descobrir sua aparência física ?declarou mordaz. Embora a avaliação obtida pelo corpo forte e robusto do lorde fosse mantida para si. Sem contar com a surpresa que teve ao ver, pela primeira vez, um sexo masculino de verdade. ?Não fiz um bom trabalho? Não lhe salvei a vida?

?Isso parece.

?Melhorará? ?Persistiu tenazmente.

?Espero que sim ?Randall comentou com um suspiro.

?Então... vamos esquecer o resto! ?Apontou séria.

?Acha que será tão fácil para lorde Giesler esquecer que uma mulher o viu nu?

?Oh, bem! ?Exclamou com um leve sorriso. ?Realmente acredita que é a primeira vez que se mostra dessa forma diante de uma mulher? Por acaso não lembra que é o melhor amigo de lorde Bennett? Não ouviu o que dizem sobre eles?

?Mary Moore Arany, não fale comigo com esse tom!

?Pai, não seja ingênuo, por favor. Certamente, dentro de algumas horas, quando o efeito do sedativo tiver passado, seu querido lorde Giesler esquecerá o que aconteceu e se concentrará em aplacar a dor que ele deve suportar. ?Disse antes de cruzar os braços e olhar pela janela novamente.

?E se isso não acontecer?

?O fará ?disse incisiva.

No entanto, ela sabia que não. Aquele homem miserável guardou um rolo seu debaixo de um tecido de seda, olhou-a com veneração, defendeu-a como um justiceiro e, para aumentar a lista de eventos horríveis entre eles, a beijou. Só esperava que o tapa o fizesse entender que era melhor esquecê-la se sonhava em viver mais alguns anos.


Capítulo V


?Não posso acreditar! ?Sophia exclamou horrorizada depois de ouvir a explicação do marido. ?Como pôde ser tão imprudente? Operar? Ela sozinha? Por que o fez?

Felizmente para sua filha, assim que chegou em casa, subiu as escadas e se refugiou em seu quarto. Sabia como sua mãe agiria quando ele lhe contasse tudo o que tinha acontecido e, como mulher inteligente que era, decidiu se refugiar do perigo. Mas ele não podia fugir como Mary...

Randall olhou para a sua esposa, ela estava andando de um lado para o outro da sala. O laço de sua bata branca se soltou com os movimentos bruscos e seus cabelos, geralmente lisos e suaves como a seda, se enrolaram ao não deixar de tocá-lo. Sua raiva era compreensível; Mary agiu impulsivamente, sem parar para pensar nas consequências que seu ato de caridade poderia lhe acarretar no futuro. No entanto, ele se sentia muito orgulhoso do trabalho de sua amada menina. Qualquer outra pessoa em seu lugar esperaria a presença de outro médico para corroborar o primeiro diagnóstico. Mas ela não precisava de uma segunda opinião e procedeu com a paixão que mostrava sempre que alguém precisava de sua ajuda. Era verdade que havia cometido uma grande imprudência, isso não podia discutir com Sophia, mas também deviam elogiar seu bom julgamento.

?O salvou ?disse depois de procurar por palavras tão chocantes que diminuíssem a raiva de sua esposa.

?O que disse? ?Ela retrucou, abrindo tanto os olhos que podia ver claramente a dilatação de suas pupilas.

?Nossa filha salvou sua vida ?respondeu calmamente.

?Randall Moore! Você ficou louco? Porque só assim entenderia sua postura inadequada ?gritou angustiada.

?Apesar da minha primeira impressão, duvido muito que lorde Giesler sobrevivesse a uma doença tão perigosa quanto essa. ?Adicionou sem hesitar.

?Mas... não acaba de me dizer que poderia ter esperado até sua chegada? ?Enfatizou frenética. ?Que posição vai tomar, Randall? Sim ou não? ?Acrescentou, estreitando os olhos e colocando as duas mãos na cintura.

?Na minha opinião, penso, acredito e calculo que...

?Não comece a falar comigo dessa maneira, ou juro por Morgana que dormirá no sofá por um mês inteiro! ?O ameaçou.

?A posição é sim. Apoio fortemente a decisão de Mary. É, sem dúvida, o melhor trabalho que já vi em anos ?assumiu orgulho. ?Você acredita que tive que olhar duas vezes para a sutura que ela fez na incisão? Era perfeita!

?Mary... o costurou? ?Retrucou impressionada. ?Mas se não sabe nem enfiar fio na agulha!

?Bem, te garanto que sabe fazê-lo, e muito bem. ?Recostou-se na cadeira, subiu os óculos pela ponte de seu nariz, sorriu levemente e olhou ternamente para a esposa. ?No fundo, acho que ela estava certa...

?Então, agiu corretamente, certo? Lorde Giesler não retaliará contra ela, correto? ?Sophia insistiu desconcertada. O que devia fazer? Castigá-la durante dois anos em seu quarto ou deixar Madeleine preparar um daqueles bolos de que tanto gostava?

?Como já expliquei várias vezes, este tipo de doença é imprevisível... ?começou a explicar enquanto se levantava do cômodo sofá. ?É verdade que, se a fossa não explodisse por dentro, a intervenção poderia ser adiada até minha chegada. Mas como não podemos saber o que está acontecendo sob a nossa pele, até abrirmos, possivelmente sua predição se cumpriria em minutos. Devo esclarecer que essas inflamações são diferentes em cada paciente. Lorde Giesler sofreu dois dias com dor, febre e vômito. O Sr. Skinner faleceu antes que a febre aparecesse.

?Pelo amor de Morgana! Tinha esquecido o Sr. Skinner! ?Exclamou levando as mãos ao rosto. ?Mary ainda não superou, certo?

?Nunca se esqueça da primeira pessoa que morreu em suas mãos, querida. Sem dúvida, foi o pior momento de sua vida e imagino que foi por isso que ela agiu sem o meu consentimento. Reviveu aquela noite e concluiu que tinha que salvar a vida de lorde Giesler, apesar das consequências que teria no futuro.

?Se certificou de que lhe não tirou nada do corpo, exceto a abençoada fossa? ?Perguntou um pouco mais calma. Se fosse verdade, se a sua filha tivesse acalmado a consciência e descansado em paz depois da sua loucura corajosa, não a castigaria, mas também não a recompensaria. Se elogiasse Mary, estava perdida, porque nunca ouviria um conselho sem lembrá-la de que seus motivos alcançaram um tremendo triunfo. ?Depois do que aconteceu entre eles há alguns dias, poderia ter removido metade do estômago para se vingar.

?Que loucura você disse, querida! ?Randall exclamou com uma risada nervosa. ?Como nossa filha faria esse tipo de bobagem?

Mas a verdade era que não o confirmou e foi um descuido de sua parte. Estava tão preocupado em proteger a imprudência de Mary que não notou os restos que havia na bandeja. Ele esperava que sua filha tivesse esquecido a vingança que jurou realizar contra o homem que a chamara de Medusa e que, como sua esposa disse, não aproveitou o momento para lhe arrancar qualquer órgão vital com suas próprias mãos.

?E, como estava quando entrou no quarto dele? ?Perseverou sua esposa.

?Bastante bem ?admitiu finalmente respirando tranquilamente. Se lhe tivesse faltado algo importante, não teria aberto os olhos. ?Bastante bem ?repetiu para garantir sua própria dedução. ?Eu tenho que confessar que seu estado lúcido me deixou perplexo. Em outros pacientes, a recuperação tem sido muito lenta. No entanto, lorde Giesler estava ciente o tempo todo e raciocinava claramente.

?Suponho que, quando lhe anunciou que foi nossa filha quem lhe realizou a intervenção, gritou horrorizado como fez na manhã em que ela lhe atirou os tubos metálicos ?Sophia comentou olhando-o sem piscar.

?Pois não. O oposto. lorde Giesler a defendeu veementemente.

?A defendeu? ?Sophia perguntou boquiaberta.

?Não só ele, mas também o seu mordomo principal. Juro que pensei que o lacaio jogaria um dos castiçais na minha cabeça quando eu a repreendi na frente deles ?explicou Randall estendendo a mão para a esposa.

Tinha que descansar. Estava exausto demais para enfrentar o dia e, como sua amada esposa se acalmara um pouco, era hora de levá-la para o quarto e que o médico assumisse o papel de doente. O que mais um marido poderia querer depois de uma noite sem descanso e a situação que viveu na residência do lorde? Apenas um: adormecer nos braços de sua esposa.

?Lhe explicou tudo o que acontecerá se descobrir que Mary o atendeu? ?Sophia insistiu, aceitando aquele braço.

?Compreendeu-o rapidamente e isso lhe causou um terrível aborrecimento ?ele indicou, abrindo a porta.

?A quem? Lorde Giesler ou o mordomo? ?Ela insistiu sem esclarecer.

?Para ambos. O servo me avisou que ninguém na residência procuraria outro médico além de nossa filha e lorde Giesler disse que se tornaria um feroz protetor de Mary se alguém ousasse reprovar seu bom trabalho.

?O que ele disse? ?Sophia retrucou, arregalando os olhos novamente.

?Que ele se tornaria seu feroz protetor ?Randall repetiu.

?Quanto clorofórmio Mary lhe forneceu? ?Insistiu sua esposa lhe ajudando a subir o primeiro degrau da longa escadaria.

?Quase um quarto do frasco! Você não acha engraçado? Lorde Giesler permanecerá sedado por uma semana inteira! ?Randall comentou com diversão. ?Talvez, quando seu corpo eliminar toda essa quantidade de soníferos, não se lembre que Mary o operou nu ?acrescentou rindo sem parar.

?Como disse? ?Trovejou Sophia parando abruptamente nas escadas. ?Nossa filha viu aquele homem nu?

?Eu disse isso? Não lembra querida.

?Randall Moore... Fale agora mesmo! ?E no meio daquela escada, Sophia se afastou do marido e cruzou os braços.

?Não esteve sozinha em nenhum momento. A irmã do paciente e mais de dez servos presenciaram tudo ?ele comentou, sem saber se devia correr, como Mary havia feito quando chegou, ou voltar para a sala e se trancar até que a nova raiva de sua esposa passasse. ?Portanto, não pode nem deve pensar que eles tiveram um momento íntimo. Todos ali presentes...

?Nu?! ?Esbravejou. ?Minha filha viu aquele homem nu? E acha que lorde Giesler se esquecerá disso? Que ninguém naquela casa comentará que nossa filha, a quem esperamos casar algum dia, teve a indecência de ver um homem nu? ?Sua garganta ficou tão fina e alongada quanto o pescoço dos patos do lago quando via Josephine aparecer com a arma.

?Sophia... querida... Talvez... eu... ?tentou dizer.

?Mary Moore Arany! Nem pense em dormir! Temos que falar! ?Gritou depois de levantar a camisola e subir as escadas num tropel.

?Graças a Deus... ?suspirou o médico retrocedendo muito lentamente os degraus que tinha subido acompanhando sua esposa.

Depois de olhar para o primeiro andar, voltou ao seu escritório. A escolha mais acertada para ele era descansar em um sofá duro, em vez de suportar a disputa que mãe e filha teriam durante as próximas horas...


***

?Se sente bem, milorde? ?Shals perguntou a Philip quando apareceu novamente no quarto.

?Já foram embora? ?Ele perguntou, fazendo um grande esforço para permanecer um pouco inclinado.

?Sim. O Sr. Randall e sua filha voltaram para casa. Como não tinham carruagem, tomei a liberdade de lhes oferecer uma de sua senhoria ?informou-o enquanto caminhava em sua direção.

?Nesse caso... me sinto horrível! ?Trovejou. Finalmente descansou a cabeça no travesseiro e olhou para o teto. ?Isso dói muito!

Shals, confuso com a mudança radical na saúde de seu mestre, pegou o frasco de comprimidos e retirou o que o médico recomendou.

?Pensei, ao vê-lo se inclinar e conversar com o médico, não estava se sentindo tão mal... ?disse aproximando as cápsulas para a boca de Philip. Ele os colocou na língua e lhe aproximou um copo de água.

?Se lembra da infecção que sofri durante minha primeira viagem às ilhas do Caribe? ?Estalou, depois de engolir o medicamento.

?Sim, milorde. Jamais o vi tão fraco e doente. Devo lhe confessar que pensei que não voltaria a Londres... vivo ?explicou consternado.

?Bem, isso é pior... ?suspirou, jogando de novo sua cabeça sobre o travesseiro.

?Quer que chame o Sr. Moore? Com certeza ele saberá...

?Não! Nem pense em fazê-lo! Não quero que ele se preocupe com nada. Certamente culparia sua filha pelo meu desconforto e não vou consentir que isso aconteça.

?Claro, milorde. Tem toda a razão. Depois de presenciar a repreensão contra a Srta. Moore, tenho muito medo de que ela assuma a responsabilidade por tudo e, se naquele momento acalmei o desejo de lhe acertar a cabeça com um dos castiçais que tem na lareira, não duvidarei da próxima vez. Como ele ousa repreendê-la assim? Aquela menina o salvou! ?Comentou com ira. ?Se o próprio pai não é capaz de apoiá-la, quem o fará? ?Acrescentou.

?O Sr. Moore é um fiel defensor de sua filha, junto com o Sr. Flatman. Mas acho que se assustou ?Philip refletiu. ?Talvez seja a primeira vez que ela agiu sem o seu consentimento.

?Estava em perigo, milorde. Ela agiu prontamente porque deduziu que poderia morrer ?informou. ?Depois de ver os seus vômitos, ela colocou as mãos sobre o seu corpo e foi apalpando lentamente a área em que foi operado.

Tocando? Até que Shals não fez referência a sua nudez, ele não reparou nela. Mary havia tocado seu corpo e ele estava inconsciente naquele momento? Isto era imperdoável! Desde quando não sentia as carícias de uma mulher? Ele teria ficado excitado ao notá-la? Com certeza que sim. Seu membro agia por conta própria, sem a necessidade de uma ordem mental. Teria deixado em um bom lugar? Como ela reagiu? De repente, um sorriso de orgulho cobriu seu rosto cansado. Até agora, nenhuma de suas amantes se queixara de sua aparência física; era mais, elas o exaltavam e o admiravam. Mary teria olhado para ele dessa maneira também? Que conclusão havia chegado? Poderia obter a resposta através de Shals, mas precisava ser cauteloso, se não quisesse na sua, os candelabros que queria jogar na cabeça do pai. Bem, por causa da emoção com que ele falou sobre ela, sua admiração era notável.

?Por que minha irmã a chamou? ?Mesmo sabendo a resposta, decidiu começar do início, para descobrir todos os detalhes.

?A Sra. Reform decidiu aparecer na casa dos Moore após seu último estado febril ?Shals começou a explicar, evitando comentar que ele estava gritando o nome da menina como se não houvesse outra mulher no mundo. ?Como já descobriu, o médico não estava em casa e sua filha apareceu. Devo esclarecer que, quando ela entrou e jogou seu casaco na minha cara, eu queria chutá-la daqui ?explicou. Seus lábios se estenderam para mostrar um sorriso travesso enquanto aceitava o convite de seu amo para se sentar na mesma poltrona onde ela passou a noite toda. ?Mas sua irmã impediu que o fizesse. Sem demora, a jovem subiu as escadas de três em três com a maleta na mão e entrou no quarto sem avisar. Foi então que ela encontrou três dos criados o agarrando. Eles estavam apenas tentando cumprir a ordem da Sra. Reform: dar-lhe um banho gelado. No entanto, foram eles que ficaram congelados quando a Srta. Moore gritou lhes chamando de bando de inúteis.

E naquele momento, Philip soltou uma risada que lhe causou mais mal do que diversão.

?Continua ?encorajou-o enquanto ele respirava fundo e colocava a mão esquerda em direção ao curativo.

?Obrigou-os a colocá-lo de novo sobre a cama. Logo se aproximou e começou a inspecioná-lo, tal como lhe disse. Quando ela anunciou à Sra. Reform que deveria operá-lo, sua irmã não deu crédito a suas palavras. Tentou convencê-la, mas, como entendi, é difícil para a Srta. Moore mudar de ideia sobre algo de que ela tem plena certeza.

?E? ?Giesler perguntou sorrindo com mais cuidado.

?E em menos de uma hora, você estava sobre uma mesa sob o olhar atento da jovem médica. Prometo que o tempo se tornou eterno, mesmo que a menina não tenha parado de falar sobre pesquisas que fizeram sobre a doença que sofria. Senti que ela estava narrando para que a Sra. Reform, que estava sentada na poltrona perto da lareira desde o momento em que o viu sangrar, relaxasse. Mas estávamos todos em tensão até que saiu de suas entranhas, o que o prejudicava. Então ela o costurou e desceu para a cozinha para o café da manhã acompanhada por sua irmã.

?Conseguiu comer alguma coisa depois de ver o que guardo dentro de mim? ?Retrucou estupefato pela frieza de Mary.

?Sim senhor. A Srta. Moore tomou duas xícaras de café, três torradas e um ovo escalfado, enquanto a Sra. Reform não conseguia nem terminar o chá que lhe serviram. ?Apontou com alguma diversão.

?Fascinante! ?Giesler exclamou depois de suspirar e encarar o teto.

?Pode acreditar! ?Shals respondeu se levantando da cadeira. O momento que ele esperava havia chegado e, como sabia que reação seu senhor teria, era melhor se afastar dele, porque, apesar de se sentir tão mal, quando ouvisse o que planejava dizer, conseguiria se levantar e estrangulá-lo. ?É uma lástima que não possamos falar sobre o que aconteceu aqui esta noite, milorde.

?Por quê? ?Ele perguntou, estreitando os olhos.

?Essa menina é um verdadeiro tesouro ?declarou aos pés da cama ?e é uma pena que ninguém saiba como é realmente.

?Por quê? ?Repetiu grosseiro.

?Por que... que homem não gostaria de se casar com uma mulher que o libertaria da morte sem hesitar por um segundo? Se os solteiros desta cidade conhecessem o dom daquela jovem, o Sr. Moore teria, às portas de sua casa, inúmeros pretendentes esperando impacientemente ?comentou com entusiasmo.

?Daqui não sairá nem uma palavra! ?Philip garantiu, se levantando apesar da dor que sentia. ?Dei minha palavra a seu pai e a cumprirei!

?Oh, milorde! Não me interprete mal ?Shals se apressou em responder. ?Juro que ninguém nesta casa comentará nada. Todos entenderam que suas posições estão em risco se não conseguirem manter a boca fechada ?acrescentou com aparente tensão.

?Perfeito... ?manifestou Giesler deitando-se de novo.

?Se a sua senhoria não requer dos meus serviços, irei ao...

?Mais uma coisa antes de sair ?interrompeu.

?Sim? ?Ele perguntou, provando o sabor da vitória.

?Quem, dentre todos os que trabalham para mim, pode fazer um trabalho que exige muita discrição?

?Todos, milorde. Ninguém desta casa...

?Bem, escolha um deles e que vigie a Srta. Moore enquanto eu não posso sair deste maldito quarto ?ordenou bruscamente.

?Pensa que pode estar em perigo? Que alguém pode machucá-la? Não me parece que precisa de proteção, senhor. Ela...

?Não me ouviu bem, Shals? Preciso chamar outro lacaio para executar minha ordem sem questionar? ?Ele insistiu, olhando-o ferozmente. ?Eu disse que alguém a vigie e me conte tudo o que ela faz.

?Com certeza, milorde! Agora mesmo me coloco a isso ?ele respondeu antes de fechar a porta.

Quando seu mestre não pôde olhar para ele, sorriu amplamente. Havia entendido a indireta? Ou melhor, devia defini-la como uma grande direta? O que quer que fosse, o plano começou melhor do que esperava...

«Um marido? Pretendentes?»

Philip cerrou os punhos e bateu no colchão. Maldita fosse a sua doença e a incapacidade de se levantar da cama! Quanto tempo o Sr. Moore havia dito que deveria permanecer deitado? Um mês? Bem, ele se recuperaria na metade do tempo! Depois de esperar que Bennett partisse para sua casa no campo com três das irmãs, depois de perguntar sobre ela e ficar impressionado por esse caráter grosseiro e brilhante intelecto, depois de vê-la com aquela camisola e de guardar um objeto seu, fazendo dele seu amuleto... Permitiria que outro homem aparecesse em sua vida? Não, absolutamente não! Se um homem ousasse aparecer na residência Moore lhe pedindo em casamento... lhe arrancaria a cabeça. Mary Moore Arany era sua Medusa, sua bruxa e lutaria para tê-la, mesmo que tivesse que rastejar como uma minhoca pelas ruas de Londres!


Capítulo VI


Não era justo! Por que ela deveria ficar de castigo por duas semanas por uma coisa tão absurda? Sua mãe esqueceu o prodígio que havia feito: salvar a vida de um homem, e só se concentrou no fato de que ela o vira nu. E como iria operá-lo? Com uma venda nos olhos?

Mary bufou pela décima quinta vez e sentou no parapeito da janela. Ela só estava trancada em sua casa por cinco dias e os primeiros sinais de uma loucura monumental apareceram: ela não havia trocado a camisola, nem escovado os cabelos nem uma vez, sorria sem motivo, andava pelo quarto procurando teias de aranha para soprá-las, passava o dedo pelas paredes, para sentir a aspereza delas. Como poderia suportar tanta crueldade por tanto tempo? Ela olhou para fora e bufou. Nos dias anteriores, não teve vontade de sair de casa, porque a chuva a ajudou a superar sua agonia. Mas naquela manhã, para sua desgraça, as nuvens se dissiparam do céu e o sol, apesar de frio, se mostrou em todo o seu esplendor, temperando levemente a cidade. Ela abraçou as pernas, cujos joelhos tocavam seu peito, e focou os olhos na cama de Anne. Senti falta dela. Ansiava as conversas e presença da mais velha de suas irmãs. Certamente que, se estivesse lá quando sua mãe apareceu no quarto com raiva, rapidamente aplacaria sua ira. No entanto, ela teve que enfrentar sozinha e, por mais que insistisse em que não havia reparado naquele corpo masculino, o olhar reprovador de sua mãe expressava que não acreditava nela.

E estava certa...

Como não admiraria um corpo assim? Se era praticamente perfeito! Como admitiu naquela noite, algo que seu cérebro lembrava como se tivessem passado mil anos, Lorde Giesler merecia ser estudado como um exemplar do Homo sapiens perfeito. Não tinha dúvida alguma de que, se tivesse vivido na pré-história, seria o melhor caçador. Caçador? Não! Ele seria o chefe de alguma tribo! Mas de uma em que haveria apenas mulheres. Sim, tinha certeza de que, antes de abrir os olhos, na chegada de um novo dia, ele teria à sua frente mais de dez quadris levantados, esperando serem usados para gerar novos filhos, novos chefes, novos homens com um físico parecido ao de seu procriador. E se tivesse vivido na era grega! Ah, certamente teria sido a musa de centenas de escultores! E os homens o perseguiram... e as mulheres!

Irritada, por compará-lo em diferentes épocas e em situações semelhantes, enrugou a testa e bufou. Era verdade que ele tinha um físico digno de uma divindade: seus braços, pernas e aquele peito duro e forte lhe davam essa condição. Mas... por que deveria notar tanto algo que para ela era trivial? Sempre pensou que, se encontrasse um homem que estivesse mais do que disposto a suportá-la, seria inteligente, um tanto tímido e muito sensato. Lorde Giesler não era nada disso! Tímido? Hah! O próprio canalha fez um grande esforço, comprometendo seu bom trabalho, para beijá-la! Havia sensatez nesse ato? Não, claro que não! Isso já lhe mostrava que o homem não era nada racional. Se tivesse sido, não a teria beijado nem teria feito um sacrifício desnecessário para obter, como presente, um bom tapa. Essa conclusão a levou a outra característica que não possuía: inteligência. Que pessoa inteligente faz um plano tão absurdo para se aproximar dela e beijá-la?

Mary levou a ponta dos dedos da mão direita para a boca e sorriu. Pensou, em algum momento de sua vida, que o cavalheiro que a beijasse pela primeira vez, receberia em troca o impacto de sua mão? Não. Mas também não achava que alguém se atreveria a fazê-lo. Quem iria desejar uma mulher que pudesse matar com um olhar e com algum outro remédio que carregasse em sua maleta? No entanto, mesmo que não quisesse admitir, gostava de se sentir... fascinantemente inesquecível. Foi isso que lorde Giesler lhe confessou antes que pudesse estar consciente do que estava acontecendo ao seu redor. Talvez não tenha antecipado seu plano selvagem, porque ainda estava perturbada ao encontrar um de seus rolos metálicos armazenados como se fosse um tesouro. Se seu pai não tivesse entrado no quarto naquele momento, ela o teria pegado e o teria jogado de novo, para que não esquecesse quão fascinantemente doloroso poderia ser um impacto semelhante.

Irritada, não apenas pelo castigo, mas por se concentrar novamente em lorde Giesler, ela pulou no chão e se afastando da janela. Não deveria eliminar tudo o que sua mente havia cultivado desde anos atrás para preencher essas lacunas mentais com bobagens sobre os homens. Ela havia determinado, desde que tinha uso da razão, que não aceitaria se casar com um, pois todo seu mundo se tornaria trágico. Que marido permitiria que ela fosse às reuniões médicas? Que marido íntegro aceitaria que sua esposa abandonasse a cama para acompanhar seu pai a uma urgência médica? E, que homem suportaria que sua esposa o substituísse por um bom livro? Nenhum! Não nasceu homem capaz de lhe oferecer a vida que esperava! Por causa disso, não pensava, nem procurava um cônjuge. A decepção destruiria as duas vidas, os problemas apareceriam: discussões, raiva, gritos, mentiras, infidelidade, tristezas, decepção e, após anos e anos sofrendo uma agonia infinita, a morte chegaria. A dele, é claro, porque ela não planejava morrer até os noventa anos, pelo menos...

Nervosa, pela agonia dessa prisão obrigatória, ela começou a andar pelo quarto até fixar o olhar na poltrona ao pé da cama. Como lhe tinha ocorrido uma ideia tão descabelada? Não achou que era suficiente castigá-la sem sair de casa e não permitir que ela lesse um único livro que também lhe impunha uma tarefa tão absurda? Jamais tocaria aquele bastidor, nem passaria o tempo bordando! Mas... como pensou que ela costuraria? Em que momento da sua vida pediu que lhe dessem linhas e agulhas? Colocou as mãos nas têmporas e apertou-as, como se desse modo desaparecesse uma dor de cabeça inexistente.

Era tudo culpa dele! Desde que lorde Giesler apareceu em sua vida, esta havia se transformado. E agora, embora não soubesse nada sobre seu paciente há vários dias, porque sua mãe avisou seu pai que, se ele passasse informações, iria dormir para sempre em seu escritório, continuava incomodando-a.

Estava prestes a pegar o pano comprado para bordar, o que poderia servir de colcha para a cama e fazê-la em farrapos quando ouviu barulho do lado de fora. Madeleine não teria pensado em sair, certo? Como superaria a má sorte de que, embora ela precisasse de sua presença, para que sua loucura não aumentasse, a irmã mais nova de suas irmãs decidisse enfrentar sua timidez saindo para a rua. Desesperada, correu para a janela com tanta pressa que sua testa alcançou o vidro antes que o resto do corpo. Seus lábios desenharam um sorriso enorme, o primeiro que mostrava desde que sua mãe fechou a porta antes de lhe gritar que queimaria seus livros se a desobedecesse. Viria por ela? Havia decidido descobrir o que tinha acontecido para não acompanhar seu pai até a casa do seu irmão? Nesse caso, agradecia a... seja lá o que todos acreditassem, que se apresentasse. Não lhe disse que havia se tornado sua primeira admiradora e que os Giesler a protegeriam? Bem, estava com sérios problemas e precisava dessa proteção... imediatamente!

Sem esperar para saber por que ela apareceu em sua casa, foi ao armário e procurou um de seus vestidos. Embora Shira logo aparecesse, porque sua mãe a obrigaria a chamá-la, para que a Sra. Reform não descobrisse o que havia feito com a filha, ela não desejava demorar nem um minuto.


***

Continuava sem acreditar no que estava fazendo...

Quando um servo de Giesler apareceu em sua casa, às oito horas da manhã, avisando-a de que deveria aparecer na casa de seu irmão o mais rápido possível, quase morreu de um ataque cardíaco. Pensou que tinha piorado, e isso que na tarde anterior confirmou que seu estado de saúde havia melhorado. Preocupada, ela começou a dar ordens a todos os empregados da casa, porque quando ela anunciou ao marido que deveria ficar cuidando dos filhos, ele lhe lembrou que tinha uma reunião importante e que não podia atrasar. Sem Trevor... Teve que procurar outras alternativas e preparar sua casa em uma hora! E para que? Para aparecer no quarto de Philip e descobrir que ele não estava doente, mas que teve uma ideia maluca e que precisava de sua ajuda.

?Preciso que vá vê-la ?disse-lhe assim que entrou.

?A quem? ?Ela perguntou erguendo as sobrancelhas. Se lhe pedisse que falasse com alguma de suas amantes, arrancaria seus olhos naquele momento.

?Mary.

Bem, isso a relaxou muito, tanto que ela caminhou lentamente pelo quarto para se sentar na beira da cama e mostrar um leve sorriso.

?Por quê? ?Insistiu em descobrir.

?Sei que algo aconteceu com ela. O Sr. Moore se recusa a falar sobre ela toda vez que toco no assunto e fico surpreso que, depois do que fez, não esteja interessada em descobrir como estou. ?Philip admitiu com angústia.

?Talvez, apenas talvez, não queira saber nada sobre você. Não pensou nessa possibilidade? ?Valeria afirmou com mordacidade.

Estava brava com o grande ego de seu irmão, odiava que fosse tão vaidoso. Era verdade que, para mulheres solteiras, casadas, viúvas e até idosas, ele era descrito como um homem encantador, elegante e sedutor, e com um porte digno de um deus, mas isso carecia de importância. No entanto, por causa disso, seu irmão não pensava em procurar uma esposa digna de um barão e apenas desejava estar nos braços de amantes desavergonhadas. Valeria estava muito preocupada com seu futuro e essa preocupação aumentou depois de ler a última carta que o advogado de seu avô enviou. Ele informou que sua saúde piorou e pediu que ela chamasse a sabedoria de seu irmão. A recusa de Philip estava começando a ser perigosa. Se ele não reivindicasse o título de família, a alma de seu pai não descansaria em paz...

?Já que não posso fazer outra coisa durante o dia exceto pensar, também ponderei essa ideia ?declarou zangado. ?Mas sei que essa não é a resposta. Uma mulher como ela, tão apaixonada, não se pode esquecer, da noite para o dia, a evolução da pessoa a quem salvou da morte.

?Talvez o pai a mantenha informada e ele precise permanecer em silêncio ?Valeria ofereceu.

Embora temesse muito que essa não fosse a resposta certa também. O pouco que sabia de Mary se assemelhava a conclusão de Philip: era apaixonada por seu trabalho e duvidava muito que desconsiderasse seu estado de saúde facilmente, apesar do fato de que, por causa do rosto que colocou quando lhe anunciou na carruagem seu nome, mostrou mais ódio do que misericórdia.

?Há cinco dias que não sai de casa ?Philip anunciou.

?Como sabe? ?Valeria perguntou, arregalando os olhos.

?Encarreguei a tarefa de protegê-la a um de meus servos ?ele declarou, evitando expressar em seu tom mais ansiedade do que deveria mostrar à irmã. Se descobrisse que tinha algum interesse nela, começaria a planejar um casamento, forçaria-o a recuperar a baronia, iria enviá-lo para a Alemanha e, quando voltasse, se tornaria um homem que não desejava ser.

?Proteger ou espioná-la? ?O sorriso malicioso que seus lábios esboçaram, fez Philip entender que todos os seus esforços para não revelar um interesse especial por Mary eram um fracasso.

?Protegê-la ?resmungou. ?Tenho que velar por sua honra. Depois do que fez por mim, não vejo justo que corra perigo...

?Que perigo poderia ter? ?O interrompeu, se levantando da cama. ?Alguém desejaria matá-la por salvar sua vida? Se essa cidade descobrisse o que fez, seria valorizada tal como merece e eles parariam de vê-la como um pária. Sabe quantos homens estariam interessados nela? ?Insistiu com ele. ?Possivelmente, você não está fazendo nenhum bem em esconder o segredo. Talvez deveria...

?Não! ?Rosnou. Em seguida colocou a mão no curativo e apertou para aliviar a dor. ?Não é isso que quero!

?Bem... Diga-me por que me fez sair de casa a essa hora e ter que fazer o trabalho de um dia inteiro em uma hora ?Valeria murmurou.

?Quero que descubra o que acontece com ela. Preciso saber por que não saiu de casa durante esses dias.

?Não pensou que a chuva tivesse algo a ver? ?Soltou, um pouco brava.

?Mary gosta dos dias chuvosos e nem um dilúvio a impediria de sair de casa para comprar os folhetos científicos que coleciona.

?E você sabe tudo isso por que...

?Porque Logan me pediu ?declarou.

?Bennett está interessado nela? ?A vida poderia dar-lhe um chute mais forte em seu traseiro? Se seu melhor amigo tivesse alguma intenção na mulher, seu irmão não intercederia, mesmo que estivesse apaixonado. Mas... Philip poderia se apaixonar?

?Não ?respondeu com um sorriso. A irmã dele tinha que mascarar melhor tudo o que pensava. Ele ainda não entendia como tinha sido tão boa em jogar cartas com Trevor, quando não era capaz de dissimular o que passava em sua cabeça. Não havia dúvida de que seu cunhado era capaz de fazer qualquer coisa para fazê-la feliz. ?Não, Logan está interessado na primogênita das Moore. Precisava descobrir como poderia se aproximar dela sem a interrupção das outras, então me pediu para descobrir tudo o que podia sobre as Moore.

?E era de vital importância que descobrisse seus gostos... ?Valeria apontou ironicamente. Philip assentiu. ?Então, como choveu, o que ela ama, e seu lacaio lhe disse que ela não saiu de casa, você concluiu que algo sério aconteceu com ela.

?Mary não pode sobreviver sem esses artigos médicos. Somente uma doença, que a obrigue a permanecer em sua casa, pode impedi-la de comprá-los. ?Garantiu preocupado.

?Quer que me apresente na residência Moore e descubra o que aconteceu? ?Philip assentiu. ?A troco de que?

?Vai me chantagear, Valeria? ?Retrucou, sem saber muito bem se estava com raiva ou orgulhoso do sangue cigano materno que corria por suas veias. ?É capaz de impor condições a um irmão que te ama e não pode se defender sozinho?

?Se Martin me pedisse, faria sem pensar um só segundo. Mas você ?ela apontou um dedo ?não é ele. Então, sim, vou chantagear você, é o único idioma que você entende.

?O que quer? ?Ele disse depois de subir o lençol até o pescoço.

Medo, sua irmã lhe dava medo, tanto que ele usou o lençol como escudo. Se não errasse em seu palpite, levaria pouco tempo para lembrá-lo de que deveria...

?Na semana passada, recebi uma carta do advogado do nosso avô. ?Philip rosnou quando a ouviu. ?Ele queria nos avisar sobre sua saúde. Aparentemente, sua doença piora e não demorará muito...

?Não! ?Gritou. ?Esqueça esse absurdo, Valeria! Já te disse mil vezes! Não quero!

?Tem razão ?ela disse cruzando os braços ?você me disse não mil, mas um milhão, mas deve admitir que a situação mudou.

?Por isto? ?Apontou com o queixo para a cintura. ?Isso não mudou nada. Minha cabeça ainda está saudável...

?Se tem algum interesse em Mary, deveria considerar a alternativa de se tornar um barão.

Ela nunca havia chamado sua atenção para o assunto, mas incluir ao nome da mulher na frase, ela o fez.

?Não tenho nenhuma intenção de torná-la mi...

?Então, deixe-me falar sobre o que aconteceu aqui. Quando todo mundo souber que realizou um milagre, porque o rumor se espalhará como pólvora, ninguém duvidará de sua grande habilidade. Será convidada para uma infinidade de festas, terá, antes de descer o último degrau de qualquer salão, o cartão cheio de danças e, talvez em um deles, encontre o homem adequado para se casar com...

?Eu disse que não! Maldita seja, Valeria! Não escuta quando falo com você?

Mas... por que diabos todos estavam pensando em encontrar um marido para Mary? Queriam que se levantasse antes de se recuperar? Ou estavam tirando sarro dele? Mary não estaria com ninguém, ela não dançaria com ninguém e ninguém, absolutamente ninguém, descobriria que adorava sentir as gotas de chuva em seu rosto! Lembrando daquele dia, quando pensava que estava sozinha, que ninguém poderia descobri-la, se estremeceu. Nunca na vida viu um sorriso de um anjo até que Mary, sem perceber sua presença, virou o rosto para ele e sorriu.

?Está me ouvindo? ?Replicou. ?Olha ?começou a dizer se aproximando novamente dele ?se pensou em torná-la uma de suas muitas amantes, acredite-me que não fará isso. Essa moça não consentirá uma humilhação semelhante. Lutou com unhas e dentes contra todos os infortúnios que lhe foram apresentados para aceitar uma coisa tão vil. Por acaso não se informou o que fazem os cavaleiros quando a veem, ou só tem perguntado sobre seus gostos?

?Posso garantir que sei muito bem do que falam. ?E Valeria não duvidou por como sua mandíbula endureceu e como seus olhos, azuis com o céu, ficaram escuros, como uma noite sem estrelas. ?Assim como também tenho que confessar que mais de um imbecil trocará de calçada quando a veja, se quiser manter seus bonitos dentes dentro da boca ?garantiu irritado.

?Você gosta! Tem interesse nela? ?Embora apenas parecesse uma pergunta, não era. ?Então, pense em uma coisa...

?Qual? ?Ele perguntou, erguendo as sobrancelhas loiras.

?O que você vai lhe oferecer Philip, que os outros não podem dar?

?Respeito e admiração ?respondeu sem hesitar.

?Oh, bem! ?Exclamou revirando os olhos. ?E pensa que isso será suficiente para ela?

?Sim ?garantiu com firmeza.

?Pois está equivocado! ?Gritou. ?Uma mulher quer ter ao seu lado um marido compreensivo, certo, mas também um lutador. Precisará de um homem que a apoie e que não lhe coloque obstáculos em seu caminho. Sabe qual é o caminho de Mary Moore?

«Mary Moore Arany», pensou Giesler.

?Qual, de acordo com o seu bom julgamento? ?Murmurou Philip.

?Tornar-se alguém que a sociedade não permite ?berrou. ?Não tem olhos em seu rosto, irmão? Realmente pensa que uma mulher que é capaz de deduzir a doença de uma pessoa apenas tocando nela e que tem a coragem de se envolver em uma operação, como ela fez com você, se conformará com um marido que lhe oferecerá respeito e admiração? Já tem um pai que o faz! Mary precisa de um marido para ajudá-la a alcançar o que ela sozinha não pode e... você conhece o paradoxo de tudo isso? Que, nesta maldita cidade, apenas um nobre pode pavimentar esse futuro. Conhece algum aristocrata que pode lutar nessa batalha social ao seu lado?

Silêncio... Por mais de um minuto, os dois irmãos permaneceram em silêncio. Valeria, entendendo que não havia conseguido nada, nem mesmo uma resposta negativa, se virou para a porta e a abriu de uma vez.

?Verá o que lhe acontece ?Philip pediu-lhe olhando para o teto ?e deixe-me pensar.

?Precisará de muito tempo para fazê-lo, querido irmão, pois até que não tenha adoecido, não foi capaz de fazê-lo.

?Ainda tenho dez dias para sair daqui. Quando o fizer, direi o que decidi ?ele garantiu.

Valeria não respondeu. Fechou a porta atrás dela com um forte estrondo. Não foi muito, mas foi mais do que suficiente. Se Philip tinha interesse em Mary, que disso não havia dúvida sobre a maneira de chamá-la quando a febre se apoderou dele, pensaria em como alcançá-la, porque, como lhe disse, ela não era uma de suas amantes que suspirava ao ver um corpo masculino perfeito.


?Bom dia, o que deseja? ?A voz de uma mulher, que não reconheceu, a fez voltar ao presente.

?Bom dia, sou a Sra. Reform. A Srta. Mary Moore pode me receber? ?Perguntou, oferecendo-lhe um sorriso terno e encantador.

?A Srta. ainda não saiu do seu quarto ?comentou Shira sem especificar em excesso. ?Mas posso anunciar à Sra. Moore que deseja visitá-la.

?Se fizer a gentileza ?comentou, entrando por fim no hall. Ofereceu-lhe o casaco e a empregada o pegou.

Depois que a mulher deixou o casaco no guarda-roupa à direita, ela caminhou para uma sala à esquerda. Enquanto informava a esposa do médico sobre sua presença, Valeria suspirou. Durante o trajeto, pensara na mudança de atitude de Philip. Repassou todos os gestos que seu rosto mostrava ao falar sobre Mary, até avaliou o tom de voz que ele usou nas palavras. Bem, uma coisa era certa; Mary era especial para ele e não suportava a ideia de que ela estivesse com outro homem. Agora tinha que se concentrar em aproximá-los sem levantar suspeitas e procurar um motivo eloquente pelo qual aparecera às onze horas na residência dos Moore.


Capítulo VII


Enquanto esperava a criada retornar, Valeria olhou para o primeiro andar. Se Mary permanecia em sua casa e não estava doente, pode observar, através de alguma janela, a chegada de sua carruagem ou até mesmo quando desceu dela. Se queria vê-la, logo apareceria no topo da escada, como na noite em que a conheceu. No entanto, essa alternativa diminuiu com o passar do tempo... Philip estava certo? Porque havia a possibilidade de que não estivesse em casa. Talvez tivesse que comparecer em outra emergência médica e, por isso, não havia vestígios da jovem. Mas essa ideia desapareceu rapidamente, porque ao entrar no jardim dos Moore, encontrou o servo de seu irmão escondido e sem tirar os olhos da entrada, tal como havia recebido a ordem. Então... o que tinha acontecido? Mary não teria decidido fugir dos Giesler, certo? Não, isso também não parecia certo. Era verdade que elas haviam discutido quando decidiu operá-lo, mas após sua magnífica proeza, as duas conversaram como se tivesse se conhecido há uma vida. E com relação ao irmão... Desejava manter distância? Mary, na realidade, era uma covarde? Não. Não era. Se sua intuição feminina não lhe enganava, a filha dos Moore não se assustaria facilmente. Se ela própria se envolveu numa intervenção deste tipo, seria capaz de lutar contra o mundo, se fosse necessário. Tinha que haver outra razão pela qual Mary não saía de casa, uma que, por incrível que pudesse parecer, lhe causava medo.

Valeria parou de olhar para o fim da escada e começou a andar inquieta pelo hall. Já não lhe importava mais a desculpa que lhe ofereceria à Sra. Moore ao aparecer em sua casa tão cedo, mas a causa pela qual Mary não aparecia. Apesar de tudo, a opção de estar em sério perigo começou a tomar força. Como seu irmão agiria se descobrisse que a jovem estava sob alguma ameaça? Pularia da cama para fazê-la desaparecer, mesmo sabendo que colocaria sua vida em risco! Disso não lhe cabia a menor dúvida...

Assim que focou o olhar na porta da entrada, ponderando todas as alternativas possíveis para esse desaparecimento, ouviu o som fraco de sapatos enquanto pisavam no chão. Se virou rapidamente, esperançosa de que fosse Mary, mas não havia ninguém lá. Resignada, ela respirou fundo para se acalmar e...

?Valeria... Olá! Estou aqui em cima! ?Mary sussurrou se escondendo atrás do parapeito de madeira.

?Mary! ?Exclamou eufórica. ?O que está fazendo aí? Por que não desce? Vim falar com você e...

?Não levante a voz ?lhe disse, acompanhando a sua ordem um leve movimento de suas mãos. ?Não pode saber que estou aqui. Se me descobrire, queimará todos os meus livros ?ela adicionou aterrorizada.

?Quem? ?Retrucou arregalando os olhos. Subiu um degrau, para poder vê-la melhor, mas a recusa de Mary a fez retroceder.

?Minha mãe ?bufou. ?Estou de castigo. ?E a vergonha que sentiu naquele momento em confessar o que estava acontecendo fez suas bochechas corarem.

?De castigo? O que você fez? ?Valeria insistiu em saber.

?Não posso falar, Shira aparecerá em breve e não deve me descobrir ?declarou sem afastar o olhar da porta por onde a empregada tinha entrado. ?Então, veio me ver?

?Sim. Meu irmão me pediu para fazê-lo. Ele sabia, de alguma forma, que você não deixou sua casa desde que saiu da dele e estava preocupado.

?Que atencioso da sua parte! ?Exclamou, revirando os olhos.

Faltava apenas, para que seu castigo aumentasse mil anos mais, que lorde Giesler aparecesse em sua casa perguntando por que sua filha continuava trancada. Sua mãe sofreria uma repentina apoplexia!

?Não pode descer? Preciso falar com você, mas jamais imaginei que deveria fazê-lo desta forma ?disse perplexa. Não tinha irmãs, nem primas, mas filhas e elas agiam da mesma maneira quando alguém era castigada.

Estava prestes a responder quando Shira saiu. Mary amaldiçoou baixinho e franziu a testa. Não seria capaz de executar seu plano? Pela primeira vez havia se arrumado decentemente! Embora essa leve raiva tenha desaparecido quando notou que sua governanta voltou para a sala.

?Minha mãe lhe dará uma desculpa para impedir que desça. Você insista que precisa me ver ?começou a dizer enquanto se levantava e saia do esconderijo. ?Quando eu aparecer confirme tudo o que digo ?acrescentou antes de desaparecer tão rapidamente quanto um fantasma deveria.

Valeria desviou o olhar do topo da escada e suspirou. Por que eles a castigaram? Que tipo de trapaça teria feito para enfurecer a sua mãe? E... como ela iria se intrometer na ordem de uma mãe? Não era sensato! O que aconteceria no futuro quando ela estivesse no lugar da Sra. Moore? Deixaria que uma de suas filhas se livrasse de um castigo quando aparecesse alguma amiga procurando-a? E por que Philip e Mary a colocaram em uma situação tão embaraçosa? Só esperava que, depois de tudo o que estava fazendo, seu irmão aceitasse a baronia ou... o mataria!

?Sra. Reform, se fizer a gentileza de me acompanhar, a Sra. Moore ficará encantada em recebê-la ?Shira a informou.

Sem apagar o sorriso gentil do rosto, Valeria se aproximou da porta, pensando em Mary, Philip, na baronia e os castigos de seus filhos. Ela balançou a cabeça levemente, afastando tudo o que sua mente lhe oferecia. Precisava se concentrar no motivo pelo qual tinha aparecido e, logicamente, não podia confessar a verdade. Outro ponto a discutir com Philip, por que... como poderia pedir aos filhos para não mentirem quando ela foi a primeira a fazê-lo? Irritada, tendo que pular todos os princípios morais que ensinou aos pequenos, ficou em frente à entrada e observou a Sra. Moore. Ela permanecia no centro da sala, usando um lindo vestido esmeralda. Seus cabelos, recolhido em um coque esticado, e aqueles olhos claros a perseguindo sem piscar, indicavam que sua presença não era muito desejada.

?Obrigado por me receber, Sra. Moore ?comentou Valeria apertando as mãos entre as suas.

?Obrigado por ter vindo, Sra. Reform ?disse educadamente. Uma vez que se separaram, Sophia apontou para um assento. ?Shira me disse que quer conversar com Mary, mas ela ainda não desceu para o café da manhã. Imagino que esteve a noite toda lendo algum livro sobre medicina ?tagarelou, enquanto a convidada se sentava. ?Se desejar, enquanto a esperamos, podemos tomar um chá.

?Se não for muito incomodo ?considerou ela. Embora soubesse que não chegaria a tomá-lo. A ansiedade que Mary mostrou indicou-lhe que tinha tramado algo em que não incluía uma conversa amável com sua mãe e um chá.

?Nenhum ?Sophia disse sentando-se ao lado de Valeria. ?Shira, por favor, chame...

E então, como se tivesse surgido uma repentina nevasca, Shira se afastou com rapidez da porta, deixando passagem a uma jovem que corria como um galgo.

?Valeria! ?Mary exclamou, entrando na sala com uma urgência incomum. ?Que alegria vê-la novamente!

De onde veio esse rosnado? A família Moore tinha um cachorro escondido na sala? Porque esse barulho costumava ser emitido por Ricardo, o animal de estimação da família, quando Fiona puxava suas longas orelhas e Charles queria usá-lo de cavalo.

?Bom dia, Mary ?ela disse se levantando rapidamente. Como fez com a Sra. Moore, apertou suas mãos com as de sua amiga e aceitou com prazer os dois beijos que a jovem lhe ofereceu nas bochechas. ?Aqui estou ?acrescentou olhando para ela com os olhos bem abertos, esperando descobrir o que havia tramado.

?Bem, você veio no melhor momento ?Comentou com um leve sorriso. Então observou sua mãe, que franzia o cenho e olhava para ela com advertência, mas não se assustou. Ela preferia ouvir milhares de palavrões e ordens há suportar outro dia em seu quarto... costurando? Nem morta! ?Bom dia, mãe ?disse suavemente. Se aproximou dela e lhe deu dois beijos mantendo uma distância segura. Não colocaria a mão em seu braço se arriscando a ser beliscada até que o sangue corresse por aquela área de sua pele.

?Mary... ?Sophia respondeu com aparente tranquilidade. ?Estava oferecendo um chá à nossa convidada. Como ainda não desceu para o café da manhã, pensei que ainda estava dormindo.

?Que nada! Hoje eu acordei muito cedo. Mas nossa querida Shira me serviu café no quarto quando eu a informei que estava acordada ?declarou com certo sufoco, como se realmente sentisse vergonha da insinuação de sua mãe de tratá-la como preguiçosa.

?Já vejo... ?Sophia apontou para o vestido e o penteado de Mary. Ela não tinha passado os dias em uma camisola e despenteada? Que coincidência oportuna! A Sra. Reform apareceu e usava um vestido para passear...

?Ela realmente lhe ofereceu um chá? ?Perguntou, levando a mão na boca, como se a palavra chá fosse horrenda. Então ela olhou para Valeria, que parecia, além de perplexa, indisposta, já que as bochechas dela estavam pálidas. ?Não lhe disse que pode pôr em perigo a sua saúde se beber infusões?

?Em perigo? ?As duas perguntaram ao mesmo tempo.

?Sim. Outro dia me confessou que não tolera bem as infusões, que lhe produzem flatulências severas ?manifestou adotando a atitude própria de um médico.

?Não queria demonstrar desconsideração pela oferta...

E Valeria voltou a recordar seus filhos, a regra de não mentir e a maldita baronia de Philip, acrescentando a esses pensamentos a inoportuna indisposição de... flatulências? Não poderia explicar algo menos embaraçoso?

?Também temos café ?lhe ofereceu Sophia que, ao ver a cara de espanto da Sra. Reform, não pôde concretizar se era devido ao perigo que esteve a ponto de sofrer ou pela invenção de sua filha. Que ficaria de castigo mais duas semanas se a enganasse.

?Mas... não veio me levar para passear? ?Perguntou com um pequeno soluço. Diante do barulho que ofereceu, sua mãe virou-se para ela para lhe falar: ?Na outra noite, depois da minha horrível decisão de falar com lorde Giesler ?declarou com fingido pesar ?Valeria insistiu em me levar até o Gunter’s e tomar um sorvete de... amoras?

?De limão ?Valeria a corrigiu rapidamente.

Bem, a acidez do sorvete poderia se parecer com o que o estômago estava emitindo naquele momento. O que diabos estava fazendo? Por que agia dessa maneira? Ela teria enlouquecido durante o confinamento?

?De limão ?Mary repetiu esboçando um grande sorriso. ?Imagino que não tenha vindo antes por causa da maldita chuva, estou certa? ?Ela perguntou olhando para sua salvadora com olhos suplicantes.

?Se parece bom para você ?começou a dizer à Sra. Moore, que abria a boca e a fechava como se fosse um peixe fora da água ?adoraria cumprir a promessa ?acrescentou, colocando as mãos atrás das costas para poder cruzar os dedos. Ela pagaria por isso! Deus sabia que Mary pagaria a mentira, o constrangimento e a horrível tristeza que ela estava sofrendo! E, infelizmente para a jovem, ela sabia muito bem como pagaria sua dívida. Ah, se pagaria! ?Além disso, também preparei um pequeno almoço em minha casa. Se bem me lembro ?expôs, pegando uma das mãos de Mary em uma atitude carinhosa e afetuosa ?também me prometeu que visitaria minha casa e faria um exame médico completo em meus seis filhos.

?Seis? ?Mary estalou abrindo tanto seus olhos que eles podiam saltar das órbitas.

?Sim ?afirmou a mãe orgulhosa. ?Candie, Charles, Eleonora, Samantha, Fiona e o pequeno Trevor. Todos, para meu pesar, se contagiaram com um resfriado terrível e desejo que sua filha me garanta que não fiquem com sequelas ?acrescentou, esboçando um sorriso de orelha a orelha.

?Então... quer que leve minha maleta? ?Perguntou perplexa.

?Sim, acho que é o mais conveniente... ?Valeria sugeriu.

Agora sim que estava em apuros. Todo o seu plano tinha sido desperdiçado! Filhos? Seis? E teria que verificá-los um a um? Não lhe disse que eram uns trastes, que se pareciam com o pai? Como lidaria com uma tarde cercada por demônios? Só queria comprar suas revistas e tomar um pouco de ar fresco!

Sophia, que até agora permaneceu calada e duvidando da credibilidade das duas, finalmente deu um grande sorriso. O brilho que ela mostrava em seus olhos expressava tanta diversão, que Mary queria sentar no chão e começar a chorar. Seria um bom castigo, o fato de ter que atender seis filhos, e tinha merecido, por usar a pobre mulher como tábua de salvação. No entanto, não podia dar o braço a torcer tão facilmente. Devia mostrar um pouco de... perseverança?

?Se lhe prometeu que visitaria essas crianças, me parece bom manter sua palavra. Mas tenho que lembrá-la o estado em que está. Se voltar com as mãos cheias de livros, também cumprirei a minha ?afirmou, com aquele tom firme que fez os cabelos de sua filha se arrepiarem. ?Sra. Reform, confio no seu bom senso, como mãe, entenderá que uma filha deve obedecer sem reclamar; depois do sofrimento que padecemos no parto, das noites sem dormir, todas as preocupações que nossas mentes nos oferecem para canalizá-las de um jeito bom, uma filha amada e respeitada deve ser fiel aos padrões da família.

?Claro, Sra. Moore. Entendo. Como lhe disse na noite passada, dedico todo o meu bom trabalho para que meus filhos, tão insuportáveis quanto o pai, cumpram com suas obrigações e ordens.

?Sendo assim... ?olhou para Mary de cima a baixo. Ela ainda não explicou como se vestira tão rápido. Não podia alegar uma desculpa para mandá-la para seu quarto, nem atrasar a saída. Tinha que admitir que era muito esperta. Sua segunda filha, para seu arrependimento, herdara a inteligência de seu marido e a astúcia característica de sua família. Gritava alto e se orgulhava de que nem uma gota do sangue Arany corria em suas veias? Ahh! Mary estava muito errada! Faltava apenas uma coisa para sua transformação em cigana ser completa... Uma que, se não estava errada, era a razão pela qual estava de castigo. ?Comporte-se, Mary. E não faça a Sra. Reform se arrepender de ter liberado você de seu castigo ?finalmente expos.

?Obrigada mãe! ?Exclamou se lançando para ela para lhe dar um forte abraço. ?Garanto-lhe que me comportarei adequadamente!

?Não faça promessas que não pode cumprir ?Sophia a repreendeu, tocando lentamente suas costas.

?Vou cumpri-las ?garantiu com firmeza. ?Vou cumpri-las todas ?confirmou.

?Sendo sim, você pode sair. Certamente os pequeninos estarão ansiosos para ver sua mãe novamente ?Sophia disse estendendo as mãos para Valeria.

?Prometo que sua filha terá o remédio que merece ?lhe sussurrou quando lhe deu dois beijos na bochecha.

?Confio nisso ?a Sra. Moore respondeu da mesma maneira.

?Vamos? ?Interrompeu Mary ansiosamente.

?Sim ?Valeria respondeu caminhando em sua direção.

Depois que Shira lhes ofereceu o casaco e a maleta, que sua mãe guardara em algum lugar da casa, as duas desceram as escadas com os braços entrelaçados, mostrando a imagem de amigas que se conheciam desde a infância. Mary, ao sair de casa, fechou os olhos e deixou o sol tocar suas bochechas. Havia ansiado tanto por essa sensação de bem-estar! Mas finalmente conseguia respirar ar puro, desfrutar de um dia tranquilo e... comprar suas revistas!

?Bem ?Valeria começou a dizer quando as duas se acomodaram na carruagem ?pode me dizer por que te castigou?

?Por uma bobagem... ?Mary expressou enquanto dava um pequeno pontapé na maleta.

?Qual? ?Insistiu a Sra. Reform, a quem não passou despercebido o estupor de sua nova melhor amiga.

?Não lhe pareceu correto que operasse o seu irmão nu... ?declarou, encolhendo os ombros, como se ela não tivesse sido prejudicada por tê-lo visto daquela forma.

?E como pretendia que fizesse isso? ?Soltou Valeria com uma mistura de confusão e surpresa.

?Bem, segundo ela, vestido ou com os olhos vendados. ?Depois de suas palavras, soltou uma grande risada. Quando se acalmou, observou de relance Valeria e advertiu que seu rosto não mostrava a mesma diversão que ela. Moveu-se desconfortável no assento, apaziguou o riso e acrescentou: ?realmente quer que eu veja seus filhos?

?Deseja comprar as revistas que comentou? ?Respondeu, olhando para ela sem piscar.

?Claro! ?Exclamou rapidamente. ?Preciso delas urgentemente!

?Pois as terá. Mas antes faremos uma parada.

Encostou a cabeça na almofada, colocou as mãos nas têmporas e as apertou. Que Deus tivesse misericórdia, que ajudasse seus filhos e não os castigasse pelo que ela faria. Mas, depois de tudo o que havia sofrido, teria que fazê-lo ou sofreria a síncope que pobre Sra. Moore aguentou ao descobrir que sua filha tinha visto o corpo nu do seu irmão.

?Que parada? Para onde vamos? Por que esfrega a cabeça? Dói? Sofre com assiduidade de enxaquecas?

?Em primeiro lugar, não sofro de enxaqueca, mas em breve sofrerei... ?comentou, com um halo de mistério.

?Por quê? ?Mary estalou confusa.

?Porque vou ouvir você gritar ?disse fechando os olhos e se preparando para o pior.

?Por quê? ?Repetiu a moça.

?Porque primeiro vamos visitar meu irmão...

Nesse momento, Mary começou a soltar mil palavrões, a amaldiçoar o destino e a caluniar sua má sorte, fazendo Valeria temer a enxaqueca.


Capítulo VIII


Amiga?! Ninguém podia considerar amiga uma pessoa que lhe estende uma armadilha! Porque, definitivamente, foi isso o que a Sra. Reform fez.

Depois de gritar tudo o que lhe passou pela cabeça, Mary cruzou os braços sobre o peito e rosnou. Desde que Valeria deixou claro qual era seu objetivo, toda a felicidade que ela sentiu quando foi libertada da prisão de sua casa, desapareceu. Não havia mais sorrisos em seu rosto, depois de gritar, seus lábios permaneceram fechados, manteve o olhar para fora, bufou sessenta vezes e amaldiçoou lorde Giesler por mais sessenta.

Lorde Giesler! Esse nome denotava perigo para ela. Por sua culpa, ela foi punida e, por sua culpa, teria que atender seis filhos antes de poder comprar seus preciosos folhetos científicos. Sem contar com o fato de que o veria novamente. Havia punição maior no mundo? Certamente, sua mãe, quando descobrisse que havia aparecido na residência do homem proibido, procuraria uma maneira de superá-lo... E, tudo por quê? Porque imaginou que sua suposta amiga a ajudaria a sair do seu cativeiro e a faria passar um dia esplêndido. Mas é claro, tudo tinha sido distorcido, nada sairia como ela planejou.

?Mary... ?Valeria disse a ela quando a carruagem entrou no jardim de Kleyton House ?Prometo que comprará esses artigos e que não terá que suportar meus filhos.

?Promessas... promessas... ?Mary resmungou.

?Isso aconteceu por sua culpa ?ela a repreendeu, encarando-a. ?Só queria falar com você e descobrir por que não saiu de casa. Mas o meu plano foi frustrado ao me pedir que te ajudasse a se liberar do castigo ?garantiu, com o tom de voz que sua mãe usava quando a repreendia por uma atitude ruim. ?Te prometi que compraria essas revistas; e mais, eu mesma te darei pelo inconveniente que isso possa causar. No entanto, acho justo te pedir, depois de me colocar em uma situação tão comprometedora, que confirme o estado de saúde do meu irmão.

?Meu pai a visita todos os dias e ouvi-o dizer a minha mãe que sua evolução é adequada ?murmurou. Com os braços ainda cruzados sobre o peito, virou suavemente a cabeça na direção dela e a olhou como se estivesse procurando a melhor maneira de jogá-la para fora da carruagem sem ter que abrir a porta.

?E... não sente curiosidade e ter certeza com seus próprios olhos? ?continuou Valeria.

Curiosidade? O que sentia naquele momento era o desejo de subir as escadas e enredar as mãos no pescoço de lorde Giesler para sufocá-lo. Mas não era o momento nem o lugar para proclamar seu desejo em voz alta. A melhor coisa, para salvar pelo menos uma parte do dia, era fingir estar preocupada, vê-lo, sorrir para ele e, depois de confirmar que ainda era um arrogante, petulante e estúpido, retornar à carruagem para visitar a livraria do Sr. Slow antes de fechar.

?A verdade é que sim. Tem razão, Valeria. Estou muito intrigada em saber como o seu estado de saúde evoluiu e se cumpriu tudo aquilo que ordenei. ?Depois disso, sorriu.

A Sra. Reform bufou, como uma de suas meninas, entendendo que ouviriam uma repreensão bastante enfadonha. Realmente pensava que suas palavras pareciam convincentes? Só lhe faltava alongar os lábios um pouco mais, para mostrar a imagem de uma mulher digna de ser trancada no hospital psiquiátrico de Bethlem.

A dúvida sobre o plano que havia idealizado a invadiu. Mary ainda não apreciava seu irmão. Mostrou na primeira noite e continuava expressando naquele momento. Realmente não sentia nada por ele? Nem mesmo alguma admiração? Qualquer mulher, além dela, é claro, levaria mil anos para esquecer um corpo tão bonito quanto o de Philip, e procuraria maneiras de fazê-lo entender que lhe devia um grande favor. Muitas delas até tentariam se tornar suas prometidas, amantes ou... o que fosse! No entanto, Mary era imune à virilidade de seu irmão. Só faltava ela bocejar para acentuar essa indiferença. Se Philip imaginava que ela poderia se apaixonar, estava muito errado. Antes colocaria em sua cama uma égua do que a filha do médico.

Elas continuaram em silêncio até a carruagem parar bem perto da entrada principal da residência. Em homenagem a essa discrição mantida pelos funcionários de seu irmão, o cocheiro abriu a porta depois de se certificar de que não havia ninguém por perto. Em primeiro lugar, e isso deixou Valeria confusa, o funcionário ofereceu a mão para Mary. Embora, pela cara que fez, ela estava tão atordoada quanto sua acompanhante.

?Senhorita Moore ?lhe disse o lacaio quando ela aceitou sua ajuda para descer ?tenha cuidado com este último degrau. Não gostaria que sofresse um acidente.

Os olhos de Mary se arregalaram. Não sabia muito bem como tomar aquela atitude considerada. Estaria tirando sarro dela? Queria lhe dizer algo inapropriado, para que o rosto amável exibido pelo cocheiro desaparecesse, mas não ousou dizer nada. Pela primeira vez em sua vida, identificou, com surpresa, que não havia mordacidade, mas ternura e carinho. A única coisa que ela não conseguia descobrir era a razão dessa estranha cordialidade.

?Senhora Reform.

Quando Mary pousou os dois pés no chão e o homem confirmou que ela não sofreria nenhum tropeço, ele estendeu a mão para Valeria e a ajudou a descer.

As duas mulheres subiram lentamente as escadas que levavam à entrada. Surpreendidas e mudas, pois não sabiam o que dizer. Philip teria imaginado que a levaria e ordenou que os servos a tratassem com toda a gentileza que pudessem demonstrar? Não. Ele não sabia nada sobre seu plano. Isso aconteceu quando ela pediu para sair de casa para passear. Então, o que estava acontecendo?

Com milhares de ideias brotando em sua cabeça, Valeria se adiantou a Mary para bater na porta, mas ela não precisou. Quando as pontas dos dedos tocaram a aldrava, esta se abriu.

?Senhorita Moore! ?Shals exclamou ao encontrá-la. ?Que alegria vê-la novamente!

Os olhos de Mary caíram sobre a senhora Reform e então, muito lentamente, ela os dirigiu para o mordomo.

?Estavam me esperando? ?Ela perguntou com uma mistura de espanto e estupor.

?Oh, não! ?Shals respondeu se afastando o suficiente para deixá-las passar. ?O senhor não nos avisou de sua chegada, mas todos nos perguntávamos quando apareceria ?acrescentou, estendendo as mãos para ajudá-la a tirar o casaco.

?Todos? ?Continuou falando perplexa.

?Sim ?ele respondeu. Depois de pegar seu casaco e o de Valeria, para quem ele mal olhou. Shals fez um leve gesto com o queixo no lado esquerdo do primeiro andar. ?Todos ?repetiu.

Isso era uma comitiva de boas-vindas? Por que diabos todo o serviço de lorde Giesler a esperava? Eles queriam linchá-la, como fariam os aldeões ao declarar uma mulher inocente uma bruxa? Com medo, ela deu alguns passos para trás, tentando tocar na porta de entrada com as costas. Mas encontrou a Sra. Reform, que havia parado de respirar.

?O que é tudo isso, Shals? ?Valeria finalmente falou.

?Senhora... ?comentou o homem um pouco envergonhado. ?Peço-lhe mil desculpas se fizemos algo errado. Mas quando a donzela Phiona viu a Srta. Moore sair da carruagem com a maleta, a notícia se espalhou e, bem, estávamos esperando por ela por que... muitos deles precisam... desejam que...

Mary entendeu imediatamente. O que o pobre mordomo estava tentando dizer à fez se sentir tão orgulhosa e feliz que esqueceu a raiva. Eles estavam esperando por ela! Queria que ela os atendesse! Shals não disse a seu pai que nenhum dos criados pediria ajuda a outro médico além de sua filha? Bem, ele não mentiu. Aquelas pessoas fizeram isso. Eles não se importavam que ela fosse uma mulher, que ela não tinha uma licença ou que ela os obrigou a lavar as mãos mil vezes. Eles haviam determinado que somente ela era a pessoa que poderia atendê-los e lá estavam eles, em perfeita ordem de espera, aguardando sua decisão. O prazer, o bem-estar e a emoção que ela sentiu, embaçaram os olhos. Não pensaria em chorar, certo? Ela nunca chorava! Afogando aquele soluço, fazendo desaparecer o nó na garganta que a impedia de respirar, agarrou a maleta com mais força, olhou para Valeria e disse:

?Lorde Giesler pode esperar.

?Obrigado! Obrigada! ?Ouviu os servos dizerem.

?Claro ?Valeria respondeu, suportando aquele grito de felicidade que ela queria liberar. ?Se não se importa, enquanto os atende, subirei até...

Não terminou a frase, Mary não se importava com o que ela ia dizer. Antes de esclarecer qual era sua intenção, a mulher se voltou para os funcionários e começou a perguntar o que estava acontecendo com eles. O Sr. Shals olhou para Valeria e lhe sorriu.

?Se desejar, posso informá-lo que a Srta. Moore acaba de chegar.

?Quer que saia da cama e desça as escadas três em três? ?Perguntou Valeria zombando.

?Tem razão, senhora. É melhor que não descubra o que está acontecendo aqui até que a Srta. Moore termine os exames médicos ?respondeu sem apagar o sorriso.

?Vou fazer café. Acredito que Mary precisará depois dessa incrível recepção ?apontou enquanto se dirigia para a cozinha.

?Deixe-me ajudá-la, porque, como pode ver, a cozinheira é a primeira da fila ?apontou Shals andando atrás dela.

E Valeria soltou uma risada alta.


***

Não aguentaria nem mais um dia trancado naquele quarto. Seu desespero aumentava a cada minuto. A isso, acrescentou a angústia de não saber nada sobre Mary. Por que não havia saído de sua casa por tanto tempo? O que a segurava? A ideia de que ela estivesse doente permanecia latente em sua cabeça, assim como seu desconforto por não poder se levantar, se arrumar e aparecer na residência dos Moore para descobrir pessoalmente o que havia acontecido com ela. Olhou novamente para o relógio de bolso, que Shals lhe enviou, e bufou. Aquilo só lhe informava que o tempo não corria tão depressa como desejava. As horas pareciam dias e dias... anos. Sentou-se muito lentamente no colchão e procurou o livro que Martin lhe deu quando o visitou dois dias depois de Mary operá-lo. Como havia pensado que a teoria sobre a lei de gravitação universal, de um tal de Isaac Newton, poderia aliviar seu desespero? Realmente imaginou que ele passaria horas procurando o motivo pelo qual dois corpos se atraem? Não era necessário ler esse livro para saber a resposta! Ele havia sido atraído tantas vezes que podia refutar qualquer teoria absurda! Os homens atraíam mulheres, estas buscavam a excitação deles e, finalmente, essa proporcionalidade ao produto das suas massas terminava em um encontro íntimo.

?É um belo princípio matemático ?lhe disse quando ele arregalou os olhos ao descobrir o que significava para seu irmão o melhor presente do mundo. ?Você será cativado pela simplicidade da fórmula gravitacional. É, sem dúvida, a mais bela simplicidade que você pode encontrar na vida. ?E depois disso, ele sorriu de orelha a orelha.

?Você já dormiu com uma mulher, Martin? Ou você prefere ir para a cama com... isto? ?Perguntou bruscamente, apontando um dedo para a capa do livro que jogara na colcha como se estivesse queimando.

?Por que essa pergunta, Philip? ?Retrucou, eliminando o sorriso imediatamente.

?Porque não entendo como pode comparar fórmulas matemáticas com a beleza e as maravilhas da natureza. Para mim, isso não se encaixa nessas descrições. Você já dormiu com uma mulher ou ainda é virgem? ?Continuou.

?Claro que não sou! ?Exclamou envergonhado. ?Tenho minhas fraquezas...

?Carnal ou intelectual? Porque não tenho certeza de que você entende a diferença entre um bom par de seios femininos e duas maneiras de calcular o mesmo resultado ?garantiu, cruzando os braços e franzindo a testa.

?Como se atreve a falar comigo dessa maneira? Não sente remorso nem respeito por uma mulher?

?Sim, respeito todas elas. Pode perguntar as minhas amantes se elas foram respeitadas antes de deixá-las exaustas em suas camas. Mas não desvie o assunto, Martin. Você parou de ser...?

?Não vou te responder. Primeiro de tudo, sou um cavalheiro ?ele respondeu com raiva. ?Se estive com uma mulher ou com várias, isso só importa para mim.

?Ou seja, você evita falar sobre isso porque ainda não sabe o que significa prazer carnal ?afirmou enquanto olhava para ele.

?Valeria me avisou que seu humor havia piorado ?comentou indo em direção à porta?, mas nunca imaginei que você atingiria um nível tão alto de imbecilidade.

?Não é imbecilidade, mas aborrecimento ?indicou, sem poder apagar um sorriso malicioso de seu rosto.

?Nesse caso, espero que deixe de se aborrecer em breve ?declarou antes de bater a porta.

E desde aquele dia, não falou com Martin novamente. Shals informou que ele apareceu na residência para perguntar sobre sua saúde, mas, depois do que aconteceu entre eles, não teve coragem de comparecer diante dele.

Abriu o livro na página em que havia deixado na noite anterior, bufou com o aborrecimento que lhe causava e tentou se concentrar na maldita fórmula da força exercida entre dois corpos. Naquele momento, sua mente se afastou da constante gravitação universal, do valor dessa constante e da massa dos sujeitos, para se concentrar em Mary. Sim, de fato, ela foi o resultado de toda a maldita formulação que o livro comentava. Ela exercia uma força de atração até ele que o deslocava, entorpecia e o deixava vulnerável. Desde que ela jogou aqueles tubos, que para assimilá-lo com a teoria eram as massas de atração, ele não conseguiu pensar em outra coisa senão procurar o contato entre os dois. Eles tiveram, é verdade, mas em primeiro lugar ele estava inconsciente e não se lembrava de nada, e em segundo lugar o beijo não foi suficiente para obter um bom resultado. Que poder suas carícias teria em relação a ele? O que sentiria ao ver como as pontas dos seus dedos acariciavam sua pele? Se excitaria ou se incomodaria? Mary seria uma mulher apaixonada ou mostraria a mesma frieza que exibia ao mundo ao seu redor? Teria observando-o com admiração ou calculou apenas a dose apropriada de sedativo para o seu corpo grande? Philip fechou os olhos e recostou-se nos três travesseiros atrás das costas. A imagem dela apareceu sem fazer esforço. Ele a viu rindo do comentário que fez ao pai quando perguntou sobre a quantidade de clorofórmio que havia lhe dado. Um cavalo? Maldita mulher que o comparou a um cavalo! Não havia comparações mais bonitas? Teria sido suficiente com o fato de que ela evocava sua grande magnitude, que sugeria sua forte musculatura, mas não. Mary não conseguia encontrar um símile que o deixasse orgulhoso. Ele teve que se parecer com um animal de quatro patas. Agradecia a Deus por não tê-lo chamado de porco ou bezerro, mesmo assim, ainda estava descontente. Talvez o poder de sedução que ele dava a outras mulheres fosse imune a ela. Talvez ele não tenha percebido por que... Não! Ele se recusava a pensar sobre isso. Não havia nenhum homem para Mary além dele e isso a deixaria saber assim que ele pudesse deixar sua casa. Toda vez que ela saísse de casa, ele a esperaria na porta. Sempre que ela decidisse aparecer nas reuniões que os médicos realizavam as sextas-feiras, ele ficaria sentado ao lado dela, ouvindo-a atentamente e, é claro, a encontraria em todas as festas que ela decidisse comparecer. Ele pediria que ela dançasse uma, ou duas danças, ou talvez tudo o que ela pudesse suportar. Só para deixar bem claro, aos cavalheiros que a olhassem, que não teriam chance com ela. Quando um Giesler encontrava a mulher de sua vida... ninguém ficava no seu caminho!

Esse pensamento só lhe causou mais inquietação e estresse. O lençol o prendia, a suavidade do colchão o incomodava. Até parecia que os travesseiros macios tinham espinhos! Aturdido e nervoso, ele estendeu a mão esquerda para a mesinha e pegou a sineta que Shals colocou ali na mesma noite em que Mary saiu. Ele franziu a testa, apertou a mandíbula e amaldiçoou sua vida. Tudo começava a girar em torno dela. Até o motivo de tocar uma miserável sineta! Não havia dúvida, ele tinha que sair de lá e aparecer na casa dos Moore para vê-la ou ele ficaria louco.

?Maldito seja, Shals! ?Explodiu quando, depois de tocar a sineta mais de vinte vezes, seu mordomo não apareceu. ?Pode-se saber por que ninguém me responde? Ficaram surdos? ?Continuou gritando. Com raiva, afastou o lençol do corpo. Pelo menos eles tiveram a decência de ajudá-lo a vestir calções. Não seria apropriado aparecer no topo da escada nu e gritando alto que todos estavam demitidos. Sem dúvida, Valeria o levaria para fora de seu quarto, sim, mas para levá-lo diretamente a Bethlem.

?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa ?Mary o ameaçou quando, ao abriu a porta, o encontrou em pé ao lado da cama.


CONTINUA

Londres, 28 de outubro de 1882, residência Moore.
Sophia observou pela janela como a carruagem em que estava seu marido se afastava de casa. Deveria estar acostumada que Randall saísse na metade da noite, mas naquele momento teria dado tudo o que tinha para que não saísse do seu lado. Se abraçou e tentou acalmar o calafrio que surgiu ao se sentir tão sozinha. A casa ficou em silêncio, demais para o seu gosto. Desde que suas filhas nasceram, sempre havia ruído pela casa, correndo pelos corredores. No entanto, desde que três delas saíram, aquilo não parecia uma casa, mas uma das bibliotecas que Mary costumava visitar. Fixou seus olhos na lareira, já apagada, e suspirou fundo. Como se encontravam suas meninas? O visconde iria atendê-las com o respeito que mereciam? Esperava que assim fosse e que as três se comportassem adequadamente. O único que não suportaria seria que, depois da saudade que sofria por não poder estar com elas, voltariam com uma infinidade de escândalos em suas costas. Desviou o olhar para as cadeiras que haviam ao redor da mesa da sala de jantar e notou como sua dor aumentava ao observá-las vazias. Em noites como aquela, Anne e Josephine deixavam seus quartos e desciam para acompanhá-la. Costumavam conversar sobre qualquer assunto até o amanhecer e quando o resto de suas filhas aparecia, tomavam o desjejum conversando sobre o que haviam planejado fazer o resto do dia.
Apoiou as costas na janela e suspirou. Sentia falta dos gritos que oferecia a Josephine por ter perfurado outra janela ou por terminar com a valiosa porcelana de Randall. Sentia falta de pedir a Elizabeth que deveria mudar seu comportamento inadequado e sentia falta de aparecer na sala de pintura de Anne para admirar seu novo trabalho. Quantas vezes suplicou que dessem a ela algumas horas de tranquilidade? Muitas! No entanto, agora não queria, pois as usava para pensar em como se encontravam. A pequena soldado se adaptaria a uma vida repleta de protocolos femininos ou talvez o visconde permitisse continuar com seus habituais comportamentos masculinos? Seguiria as instruções Randall? Porque se fosse assim, tinha receio que dormiria e se banharia com a nova arma que lhe comprou. Só esperava que o visconde se mantivesse afastado de Anne para que não desse a Josephine a oportunidade de cumprir as ordens que seu pai lhe dera. E Elizabeth? Agiria de maneira adequada ou continuaria mostrando atrevimento? E Anne? Continuaria sonhando com ele? Se apaixonaria por esse homem?
Eram só perguntas e para seu desespero não encontrava uma única resposta. Somente as encontraria quando voltassem e para que isso acontecesse faltava pouco mais de três semanas.

 

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Uma pontada no estômago a fez apertar as mãos sobre aquela região do corpo. Continuava sem ter certeza de ter agido corretamente. Talvez devesse encontrar uma forma de romper o acordo com o visconde e não desistir tão rapidamente. Mas... que fez? Nada, porque os sonhos de Anne avisavam que não podia impedir aquilo que já estava previsto. No entanto, a dúvida sobre a escolha feita pelo fogo a assaltava a cada momento. Como poderia ser o visconde o homem destinado para Anne? Qual seria o motivo pelo qual Morgana mostrava a Anne que ele era o escolhido? A maldição de Jovenka era muito clara: o sangue contaminado voltaria a ser puro. Que tipo de pureza se referia? Teria entendido errado o juramento? Não, não tinha feito desde que os dois pretendentes de sua filha morreram, tal como sua avó anunciou. Então... porque o visconde, um homem de sangue azul, destruiria a maldição que sua filha suportava desde que nasceu? O que os Bennett escondiam? O que lhes aconteceu? Naquele momento lembrou uma notícia em que afirmavam que os marqueses, dezessete anos depois, reconheciam um jovem como filho legitimo. Segundo o jornal, foi roubado logo após o nascimento e não denunciaram o desaparecimento para não criar um escândalo social. Como poderiam manter em segredo semelhante atrocidade? A aristocracia era tão frívola? Como a marquesa foi capaz de suportar uma dor tão cruel? Sophia franziu a testa e suspirou profundamente. Nenhuma mãe aceitaria uma situação semelhante a menos que não fosse filho dela. Talvez essa fosse a verdadeira razão e não o sequestro. Era mais lógico deduzir que o falecido marquês de Riderland, com uma reconhecida reputação de libertino, mantivesse um idílio com uma mulher, talvez uma cigana, e o visconde era fruto desse romance. Quando a mulher anunciara ao seu amante que teve um filho dele, ele seria rejeitado pelo pai, como todos os bastardos que sua avó Jovenka teve, e o menino vivera com a mãe durante aqueles dezessete anos. O que os fez mudar de ideia? O acidente que sofreu a esposa do seu único filho vivo os incentivou a finalmente reconhecê-lo? Isso seria uma dedução bastante comum entre a aristocracia, pois eram incapazes de se separar do título de nobreza que haviam mantido por gerações. Talvez fosse essa a razão pela qual o falecido marques decidiu assumir a paternidade. Embora ainda houvesse uma questão não resolvida... por que a marquesa, que todo mundo descrevia como uma mulher frívola, aceitou a decisão de seu marido? Se sentira obrigada? Queria evitar uma humilhação social dessa maneira? O que quer que aconteça com a família Bennett, não importava mais, o único de deveria se preocupar era o motivo pelo qual sua mãe criadora provocou uma aproximação entre o visconde e sua filha.

Decidiu voltar para o seu quarto. Ainda podia aproveitar algumas horas de sono antes que Madeleine e Mary decidissem se levantar. Além disso, naquela mesma manhã se propôs a visitar Vianey para falar pessoalmente sobre a viagem de suas filhas com o visconde. Se queria evitar qualquer rumor inadequado sobre sua família, a baronesa era a pessoa ideal. Ela compreenderia melhor que ninguém e ajudaria a proteger a honra de suas filhas porque, se começavam a fofocar sobre a honra de suas meninas, mesmo que o visconde quebrasse a maldição, nenhum homem decente apareceria em sua casa para se comprometer com alguma delas.

O pensamento de vê-las casadas a fez sorrir. Que marido seria apropriado para a destemida Josh? Quem poderia conviver com uma mulher como Mary? Algum cavalheiro seria capaz de eliminar o orgulho de Elizabeth? E o que aconteceria com Madeleine? De acordo com sua visão, ela também encontraria o homem que a amaria tanto que faria desaparecer sua timidez excessiva. Como conseguiria? Quem seria? E, realmente existiam esses valiosos maridos? Porque de uma coisa tinha certeza; suas filhas eram muito especiais e não aceitariam qualquer homem.

Colocou a mão esquerda sobre o corrimão de madeira, pisou no primeiro degrau e prendeu a respiração quando ouviu fortes batidas que vinham da porta da frente. No mesmo instante, voltou até a entrada e permaneceu em silêncio para se certificar que tinha ouvido bem. Estava certa. Alguém tinha aparecido em sua residência e batia na porta com a aldrava. Sophia se olhou de cima a baixo. Não se vestia apropriadamente para receber ninguém àquela hora da noite. Além disso, se a razão pela qual tinha vindo a sua casa era seu marido, não podia fazer nada, pois não voltaria até o dia seguinte. Embora a pessoa que se encontrava fora batesse novamente, tomou a decisão de ignorá-la. Se fosse muito urgente, poderia recorrer a residência do doutor Flatman. Olhou para as escadas e suspirou. Por mais que desejasse, um estranho pressentimento a impedia de avançar e insistia que devia aceitar a visita. Mas... por quê? Quem seria?

?Tem alguém aí? ?Uma voz feminina finalmente perguntou. ?Vejo luz através das janelas. Por favor, preciso de ajuda. Sou a Sra. Reform e estou procurando pelo doutor ?insistiu.

Sophia, ao ouvir a voz de uma mulher virou-se e caminhou para ficar atrás da porta, mas não a abriu até ter certeza de que não era uma farsa para entrar na casa e assaltá-la. Quantas vezes os de seu sangue agiam no meio da noite? Centenas! Eram como vermes. Esperavam pacientemente que a casa de algum Sr. rico permanecesse desprotegida para assaltá-la. Sua própria avó agia nesses roubos como uma reivindicação.

?O doutor não se encontra nesse momento, precisou sair ?Sophia respondeu com cautela.

?Sabe quando volta? Vim até aqui porque um dos meus irmãos precisa de atendimento médico e tenho entendido que o Sr. Moore é o melhor médico que temos em Londres ?Valeria insistiu olhando para a porta e sem dar um só passo para trás.

Não estava disposta a sair sem uma pessoa que pudesse ajudá-la. Philip jamais esteve tão doente, nem prostrado em sua cama por mais de um dia. Isso indicava que sua convalescença não tinha nada a ver com uma ingestão soberana de álcool. Pela primeira vez em sua vida, ele realmente adoecera.

?Amanhã. Talvez possa encontrá-lo ao meio-dia... ?respondeu, revendo mentalmente o tom de voz que a mulher usou para falar com ela. Parecia desesperada, agitada e sincera. Mas... isso seria suficiente para confiar nela?

?Eu imploro. Meu irmão está muito doente e não sei a quem recorrer ?insistiu a Sra. Reform. ?Pode perguntar a Sra. Moore se pode me atender?

?Sou a Sra. Moore ?revelou ?garanto-lhe que deixarei meu marido saber que veio. Se tiver a gentileza de me explicar quem é o doente e onde mora, prometo que irá o mais breve possível ?Sophia sugeriu.

?Sua casa é a Kleyton House localizada na Mount Row. Ele se chama Philip Giesler ?Valeria esclareceu depois de um longo suspiro.

Ao ouvir o nome, Sophia arregalou os olhos e prendeu a respiração novamente. Seria a mesma pessoa que acompanhou o visconde dias atrás? Aquele que foi agredido por suas filhas na entrada? Quantos Philips Giesler poderia residir em Londres? E por que, tendo tantos médicos na cidade, aquela mulher aparecia na frente de sua porta?

?Por que escolheu meu marido se há outros médicos na cidade que podem atendê-la? ?Perguntou, depois de supor que o próprio Giesler lhe dissera para vir e procurá-la como pagamento pelo sofrimento que sofrera devido ao mau comportamento de suas filhas.

?Pode abrir? Não quero gritar, por favor. Além disso, seus vizinhos podem espreitar nas janelas e supor que estamos discutindo ?Valeria explicou com um pouco de serenidade.

?Sra. Reform, não estou apresentável. Como compreenderá, não esperava visita e...

?Estou sozinha, Sra. Moore. Não há homem ao meu redor e o cocheiro ainda continua no seu lugar ?informou. ?Só quero que me ajude. Conhece todos os médicos da cidade e, se explicar os sintomas que meu irmão sofre, poderá me indicar que médico é o mais adequado para curá-lo o quanto antes ?insistiu?. Suplico, tenha compaixão. Prometo-lhe que se me ajudar estarei eternamente agradecida e...

Valeria ficou em silêncio ao ouvir como a Sra. Moore começou a mover o ferrolho. Talvez nem tudo estivesse perdido. Talvez houvesse uma chance de descobrir por que Philip, em seus delírios, nunca deixava de mencionar um nome feminino e o sobrenome do médico.

?Entre, conversaremos aqui dentro ?convidou Sophia, vendo que, na verdade, seu rosto mostrava a mesma angústia que sua voz expressava.

Valeria aceitou o convite e entrou na residência. Mas não se moveu da entrada, embora a esposa do médico, depois de fechar a porta, entendeu a mão até o corredor da esquerda. Estava com pressa para voltar. Se o doutor Moore não podia atendê-lo, precisava com urgência descobrir quem o faria e isso atrasaria muito a sua volta.

?Sra. Moore, por favor, quem acha que posso pedir ajuda?

?É assim tão grave? ?Sophia a olhou com relutância. Talvez tenha entendido mal quando ouviu o parentesco que a unia com lorde Giesler, pois os dois eram muito diferentes. Onde o cavalheiro usava uma cabeleira tão loura como os raios do sol, o da mulher era tão escuro quanto os dela. Sem contar a tonalidade de seus olhos. Não havia nada que pudesse se assemelhar a ele. Estaria enganando-a? Seria na realidade sua amante desesperada?

?Sim ?Valeria respondeu apertando as mãos com força. ?Está há vários dias na cama. No começo pensei que sua última saída terminou pior do que esperava. Se é que me entende... Um homem solteiro, sem responsabilidades familiares e amantes da liberdade... Mas depois que apareci em sua casa, depois de ser informada pelos criados, para repreendê-lo, como uma irmã preocupada faria, descobri que não se tratava de uma embriagues soberana. Ele estava realmente doente.

?Como já lhe disse, meu marido não estará de volta até o meio-dia. O único que posso aconselhar é que vá à casa do Sr. Flatman. Certamente que o encontrará em sua casa, pois nunca comparece a uma emergência, a menos que seja exigido pela nobreza. ?Sophia apontou como alternativa.

?Mas o meu irmão não quer. Ele disse o seu nome ?revelou a Sra. Reform.

?Meu nome? ?Ela estranhou.

?Não, o de seu marido. Quando a febre aumenta muito e provoca delírios, murmura o sobrenome do seu marido. Por isso estou aqui. Acredito que ele deseja que o seu marido o visite.

Não podia contar a verdade porque parecia estranho até para ela. Quando Philip delirava, as únicas palavras que saíam de sua boca eram Mary e o sobrenome Moore. Como era lógico, perguntou sobre isso. Finalmente, depois de varias horas perguntando a conhecidos, descobriu que se tratava do sobrenome de um médico de Londres que morava fora da cidade, que era pai de cinco meninas e que uma delas se chamava Mary. Então deduziu que em sua inconsciência tinha se confundido, portanto tinha que ter mencionado o nome de Randall Moore em vez de se referir a uma de suas filhas.

Sophia confirmou sua suspeita ao ouvir a declaração. Já não tinha dúvidas que lorde Giesler queria que seu marido pagasse o trágico encontro que teve na manhã em que apareceu com o visconde. Talvez pensasse que, depois de ser atendido por ele, ouviria o que aconteceu e manteria em segredo o comportamento inapropriado de suas filhas, mas... o que poderia fazer se Ronald não estava?

?Prometo que meu marido irá à casa do seu irmão assim que voltar. Enquanto isso, para baixar a febre, aconselho que coloque panos mergulhados na água fria. Isso o acalmará...

Sophia ficou em silêncio quando ouviu um pequeno ruído no alto da escada. Olhou para cima e quando viu a camisola de Mary se escondendo atrás da parede, franziu a testa. Por que tinha levantado? Continuaria lendo apesar do castigo que lhe impôs? Será que nunca atendia suas ordens? Como podia fazê-la ouvir a razão? Que tipo de reprimenda seria adequado para uma menina como ela? Havia algo no mundo que a mortificaria tanto que a fizesse ver a razão? Que vingança seria apropriada? De repente, um sorriso maligno se desenhou em sua boca. Era uma ideia excessivamente maligna até para ela, mas... não queria dar-lhe uma lição? Mary jamais se negaria a atender um doente e se não confessasse quem era o paciente, desceria as escadas agarrando sua maleta sem se dar conta que vestia uma camisola. Seu sorriso perverso se alargou ainda mais ao lembrar a profecia de Madeleine: «Tinha visto Mary apaixonada, embora tentará deter os sentimentos que esse homem lhe provocará desde o momento em que se encontrem pela primeira vez». O que poderia perder? Se aquele homem não era o escolhido para Mary, pelo menos aproveitaria com a vingança. No entanto, a dúvida sobre o comportamento de sua filha a invadiu. O que aconteceria quando Mary descobrisse que o cavalheiro que deveria curar era o mesmo que não afastou seus olhos dela, mesmo que Josephine lhe apontasse com a arma? Possivelmente o envenenaria, ou o curaria primeiro para matá-lo depois. No entanto, se o destino voltava a cruzá-los... quem era ela para impedir?

Olhou para a Sra. Reform e adotou uma postura seria e tranquila. Se oferecesse a sua filha, precisava adotar uma atitude decidida, pois não poderia colocar em perigo a honra dela, mas também a reputação de seu próprio marido estava em perigo.

?Existe uma opção possível. Se estivesse em seu lugar, aceitaria sem duvidar um só segundo ?manifestou sem vacilar.

?Farei qualquer coisa, Sra. Moore! ?Valeria exclamou desesperada. ?Diga-me o que pensou e juro que não demorarei nem um só segundo.

?Mas deve me prometer que ela não permanecerá em nenhum momento sozinha com ele ?Sophia prosseguiu.

?Ela? ?Valeria perguntou arregalando os olhos.

?Sim, uma de minhas filhas, Mary. Ela acompanha meu marido em todas as suas visitas médicas. Ela curou muitos doentes e garanto que é tão habilidosa em medicina quanto seu pai. Ela descobrirá, se você considerar apropriado, o que acontece com seu irmão e atribuirá um tratamento enquanto meu marido volta.

?Tem certeza? ?E ali estava a resposta para sua pergunta! Seu irmão não estava perturbado pela febre, somente gritava o nome da pessoa que desejava ter ao seu lado. Como diabos sabia que a filha do médico poderia ajudar-lhe? Se conheciam? De onde? Quando?

?Tenho. Tudo que preciso saber é se você admite que uma mulher aja como médica sem importar...

?Pelo amor de Deus! Não vê que sou uma mulher? Acha que rejeitaria a ajuda de alguém, ou que seria capaz de menosprezar seu trabalho por não ser homem? ?Valeria retrucou ofendida. ?Te garanto que meu marido não seria quem é hoje se não tivesse casado comigo.

?Está certo, tudo bem que a chame?

?Com certeza!

?E me promete que zelara por sua honra? Tenha em mente que estamos falando de uma jovem solteira que permanecerá na casa de um homem solteiro e isso poderá causar problemas sem fim no futuro ?Sophia concluiu desconfiada.

?Sra. Moore, meu irmão precisa de um médico, não uma esposa ?Valeria garantiu com aparente indignação.

?Sendo assim, espere dez minutos. Subirei ao seu quarto e perguntarei se está disposta a...

?Sim! ?Mary exclamou do alto da escada. ?Vou! Coloco um vestido e desço em menos de cinco minutos ?acrescentou feliz.

?Mary Moore! Quantas vezes tenho que dizer que não deve espiar? ?A mãe gritou repreendendo-a.

?Milhares! ?Respondeu enquanto voltava correndo até seu quarto.

?Filhas... ?bufou Sophia. ?Por mais que cresçam, sempre serão crianças pequenas. Tinha esperança de que quando ficassem mais velhas mudariam de atitude, mas como pôde comprovar, não fizeram isso ?afirmou fingindo pesar.

?Eu tenho quatro e se forem como seu pai, teriam quarenta anos e continuariam sendo umas meninas extravagantes e teimosas ?apontou a Sra. Reform um pouco mais calma.

Enquanto esperavam a presença de Mary, Sophia fez uma investigação à Sra. Reform. Descobriu que era filha de uma espanhola e um alemão. Que tinham chegado à Londres fugindo da família do pai. Que tinha dois irmãos muito diferentes fisicamente e que tinha se casado anos atrás com Trevor Reform, o antigo dono do clube de cavalheiros Reform. Então, ela informou que lorde Giesler tinha chamado seu marido e Valeria contou-lhe a história do baronato que seu irmão devia ocupar na Alemanha.

?Mas como bem comentou, nunca crescem como se deseja e meu irmão é incapaz de aceitar o título ?Valeria comentou com pesar. ?Tentei de tudo... ?suspirou ?no entanto, essa atitude alemã que possui o impede de salvar o seu orgulho e assumir o que um dia herdará por direito.

Isso acalmaria a mãe? Por que não tinha parado de lhe fazer perguntas. Obviamente, tinha respondido todas. Não queria que pensasse que Mary se encontraria com pessoas sem escrúpulos. Precisava deixar claro que sua família era muito respeitável e que protegeria sua filha como se fosse uma das suas.

?Não se preocupe, certeza que em breve terá que desistir. Os homens são, por natureza, muito teimosos e tem que encontrar um incentivo para avançar esse passo que ambos se recusam a dar ?Sophia comentou, à alusão do baronato, com falso tom sereno e calmo.

Giesler era um barão alemão? Por isso seu marido fez referência ao tratamento de lorde? Os barões alemães possuíam as mesmas conotações que os ingleses? Tinha que assimilar muitas coisas depois dessa informação. Além disso, se a premonição de Madeleine estava certa, se lorde Giesler era o homem destinado para Mary... se tornaria uma baronesa inglesa ou alemã? Como agiria se alcançasse essa posição social? O que aconteceria com todos aqueles homens que a humilharam no passado? Se esqueceria deles ou encontraria uma maneira de se vingar? Um frio repentino fez com que os pelos do seu corpo se arrepiassem. Se isso acontecesse, a melhor opção era que partisse para a Alemanha, porque se ela ficasse, os cavalheiros que a desprezaram estariam em grave perigo...

?Já estou aqui! ?Mary gritou descendo as escadas.

Sophia a olhou de cima a baixo. Não podia repreendê-la porque não estava mais usando a camisola, mas usava o vestido azul que tinha colocado no dia anterior. Um que lhe dava a aparência de uma governanta, mas por causa da maneira como o tecido se agarrava ao seu corpo, não havia dúvida de que ela não tinha colocado o espartilho ou as anáguas. Mantinha o cabelo em um coque desastroso e em sua mão direita segurava a maleta que Randall a presenteou ao completar dezoito anos. Levaria dentro um frasco de cicuta? Porque se fosse assim, temia que gastasse essa mesma noite quando descobrisse a identidade do doente.

?Lembra querida, o que sempre comentei com seu pai ?ela disse suavemente enquanto a ajudava a vestir o casaco que tirara do armário.

?Boa noite ?primeiro saudou a mulher e logo se voltou até sua mãe com um olhar interrogativo. ?O pai me disse muitas coisas, pode ser mais especifica...

?Que não importa o paciente que precisa de atendimento, tem que fazer um bom trabalho ?lembrou antes de lhe dar um beijo na bochecha.

?Não sei por que diz essas coisas ?resmungou, corando rapidamente. ?Jamais me neguei a atender alguém.

?Espero que também não faça nesta ocasião ?Sophia insistiu puxando-a até a saída.

?Tem algum tipo de preconceito, Srta. Moore? ?Valeria interveio um pouco desconfortável ao ouvir as estranhas palavras da esposa do médico.

?Nem um pouco! ?Mary respondeu rapidamente, se colocando ao lado da Sra. Reform. ?É muito comum minha mãe me lembrar de que eu não devo ser descortês com as pessoas.

?Enquanto possa salvá-lo, não me importa o caráter que possua ?Valeria afirmou. ?Sra. Moore, boa noite. Garanto que sua filha estará em boas mãos.

?Obrigada, Sra. Reform, embora neste momento não tema por Mary, mas pelo doente ?Sophia garantiu.

?Mas mãe! ?Ela respondeu com raiva. ?Por favor, não vamos perder mais tempo. Preciso ver o paciente o quanto antes. Se não se importa, Sra. Reform, durante o caminho, me explica os sintomas que tem, essa conversa será mais que ouvir os lembretes morais da minha mãe. ?Boa noite, mãe.

?Boa noite, filha.

Assim que se despediram de Sophia, a duas andaram até a carruagem. A Sra. Moore permaneceu na porta até o veículo sair de seus domínios. Fechou a porta e suspirou fundo. A vida de sua segunda filha mudaria, a única coisa que podia garantir era se ela estava preparada para assumir essa mudança...

Mary se acomodou no assento e observou de canto de olho a sua acompanhante. Parecia tão preocupada que queria lhe dizer algo que pudesse acalmá-la. No entanto, ela não tinha o dom de tranquilizar as pessoas, mas de curá-las.

?Desculpe-me por tê-la tirado de sua casa a esta hora tão inapropriada, mas sua mãe, depois de lhe explicar o que aconteceu, insistiu que você é a mulher adequada para atendê-lo.

?Não foi problema nenhum, pelo contrário, sinto-me muito honrada por poder ajudá-la ?Mary respondeu, acrescentando um leve movimento com a mão enluvada ao comentário. ?Ficarei feliz em descobrir que doença seu marido tem e indicar-lhe o tratamento adequado.

?Meu marido? ?Espetou Valeria arregalando os olhos. ?Não é meu marido que está doente, mas meu irmão.

?Desculpe, devo ter entendido errado. De lá, não consegui ouvir bem suas palavras ?Mary comentou, ruborizando no mesmo instante. ?Às vezes, quando fico empolgada, não presto muita atenção.

?Não se preocupe, isso geralmente acontece comigo também. Acho que é muito comum mulheres inteligentes selecionarem o que as interessa.

Diante desse comentário, Mary relaxou e soltou uma gargalhada. Quando se recuperou, voltou a olhar a Sra. Reform e esperou que lhe revelasse o nome do seu irmão, mas ela se manteve em silêncio.

?E, a quem devo atender? ?Finalmente perguntou.

?Talvez o conheça, Srta. Moore.

?Mary, por favor, me chame de Mary.

?Obrigada, bem, o que disse Mary, possivelmente tenha ouvido falar sobre ele, porque é um homem bem conhecido nesta cidade. Trabalhou na Scotland Yard durante alguns anos, mas quando estava prestes a conseguir um cargo importante, se recusou a fazê-lo e decidiu se tornar um marinheiro ?declarou com pesar enquanto observava como Mary continuava negando com a cabeça.

?Confesso que sou uma mulher antissocial. Mal saio de minha casa e quando o faço não tenho entre os meus objetivos me relacionar com as pessoas que conheço, exceto se tiver que curá-las ?acrescentou espirituosamente.

?Entendo... ?Valeria apontou ainda mais intrigada. Se a moça não o conhecia, por que seu irmão não parava de chamá-la quando lhe subia a febre? Espalhou a saia do vestido para que não enrugasse, depois colocou as duas mãos no colo e olhou para a jovem sem piscar. ?Mas acredito que sim, que conhece meu irmão ?insistiu.

?Se me disser o nome, posso responder com mais certeza ?Mary declarou com a voz cansada.

Para que tanto mistério? Por que proteger sua identidade? Teria que atender um criminoso fugitivo da justiça? Seria um parente direto do próprio Gilles de Rais?[1]

?Meu irmão é Philip Giesler ?Valeria finalmente declarou.

Naquele exato momento, Mary sentiu o queixo cair e ouviu uma voz em sua cabeça gritar que preferia enfrentar um depravado como o Barão de Rais do que salvar o homem que a chamou de bruxa.


Capítulo I


?Sabe de quem estou falando? ?Valeria lhe perguntou ao observar o sorriso de desagrado que mostrou em seu rosto. ?O conhece?

?Vagamente... ?Mary murmurou.

Por isso sua mãe a recordou que devia atendê-lo como mais um? Ela sabia de quem se tratava? «Por todos os diabos!», gritou mentalmente. Quando voltasse falaria muito seriamente com ela e lhe deixaria bem claro que jamais atenderia, mesmo que estivesse a ponto de morrer, imbecis como lorde Giesler.

?De onde? ?Valeria insistiu, apesar do mau humor que a jovem demonstrava e do tom áspero que usou ao respondê-la.

?Há alguns dias, seis para ser exata, seu irmão apareceu em nossa casa junto com o visconde de Devon ?respondeu sem diminuir sua aspereza. ?Nós dois tivemos a oportunidade de nos conhecermos e conversar por um curto período de tempo...

Pouco, mas o suficiente para odiá-lo e desejar que apodrecesse no inferno. No entanto, essa parte da história não era apropriada para expor naquele momento. Para o bem dela e de seu futuro paciente, deveria se acalmar e mostrar um caráter afável, tal como seu pai insistia: «Pode ser a mulher mais inteligente do mundo, mas ninguém a respeitará se continuar se comportando de maneira tão irascível».

?Entendo... ?a Sra. Reform sussurrou fixando seu olhar na janela.

?Disse que está doente há quanto tempo? Que sintomas têm apresentado? ?Mary perguntou para tentar esquecer o ódio que sentia pelo paciente e se concentrar em descobrir a possível doença. Porque se tudo fosse uma mentira, se a fez sair de sua casa para continuar zombando dela, antes de três horas passadas, seu sofrimento seria real, assim como a terrível dor que apareceria em sua virilha.

?Dois dias. A febre não diminui. Tem tanto calor que saíram bolhas na sua pele. Delira, tem suores, não para de vomitar e faz movimentos involuntários muito bruscos. Antes de pedir ajuda na sua casa, seus olhos estavam em branco por causa do novo aumento de temperatura, por isso disse a vários criados que preparassem um banho de água fria. Espero que com isso acalme...

?Realmente ordenou tal insensatez? ?Mary disse horrorizada. ?Que absurdo!

?Desculpe? ?Valeria retrucou com uma mistura de surpresa e assombro com a súbita mudança de atitude. Estava chamando-a de estúpida por ter mandado fazer uma coisa tão frequente em estados febris? ?O que quer dizer com essas palavras Srta. Moore? ?Resmungou, adotando novamente uma atitude distante.

?Como lhe ocorreu tal incoerência? Uma pessoa com febre alta não pode entrar em uma banheira com água fria, mas morna e, uma vez que seu corpo se adapte a essa breve mudança de temperatura, se acrescenta gradativamente gelo, mas nunca de uma vez! ?Falou irritada.

?Bem, agora entendo porque sua vida social é tão escassa... ?murmurou em voz alta. ?Espero que os servos tenham sido mais sensatos do que eu e não o congelem antes da sua chegada.

?-Isso espero! ?Mary disse, cruzando os braços sobre o peito.

A conversa entre as duas mulheres cessou naquele momento. O silêncio reinou dentro da carruagem, embora ocasionalmente se ouvisse os grunhidos exasperados de Mary. Valeria não podia afastar o olhar dela e de se perguntar se seu irmão era consciente do verdadeiro caráter da mulher que ele invocou inconscientemente. Talvez quando se conheceram, a jovem em idade de casar, contemplou um homem tão bonito e galã, tirou todas as suas armas de sedução para apanhá-lo. Só esperava que, ao tratá-lo novamente, Philip entenderia que os escorpiões tinham menos veneno no ferrão do que ela em sua língua.

Uma vez que a carruagem estacionou na entrada da residência, o cocheiro abriu a porta para ajudar em primeiro lugar a Sra. Reform, no entanto, a filha dos Moore se esqueceu do bom protocolo e, depois de um movimento brusco, saltou para o chão sem observar a cara de espanto do empregado.

?Onde disse que se encontra seu irmão? ?Mary perguntou, agarrando a pasta com força.

?Não lhe disse ?Valeria garantiu mal humorada. ?Mas imagino que continua em seu quarto, onde o deixei antes de procurar por seu pai.

?Não há tempo a perder! Devemos impedir esse absurdo congelamento! ?afirmou, caminhando até a entrada sem esperá-la. Assim que chegou à porta, Mary pegou a aldrava e bateu até que um mordomo a abriu. ?Diga-me agora mesmo, onde se encontra o doente ?lhe perguntou assim que o viu. Entrou na casa sem ser convidada, rapidamente tirou o casaco, jogou no mordomo e olhou em volta tentando descobrir em qual lugar da casa deveria avançar.

Shals, o criado principal, fixou seus olhos cinzentos na Sra. Reform, quem apareceu depois na estranha, e perguntou-lhe com aquele olhar se deveria responder a sua exigência. Quando ela assentiu, respondeu:

?Em cima, terceira porta a direita. Se desejar que a acompanhe...

Não conseguiu terminar a frase porque Mary ergueu o vestido com a mão esquerda e subiu as escadas tão rápido que, antes de piscar duas vezes, já estava no andar de cima.

?Sra... ?disse a Valeria ?Quem é essa moça? Não será uma das amigas do Sr. certo? Já sabe que estamos proibidos de aceitar a entrada de mulheres de moral duvidosa.

?Não se preocupe. Não acredito que meu irmão a declare como amiga e tampouco é de moral duvidosa. Além disso, imagino que nem saiba o que essas duas palavras podem significar ?respondeu, oferecendo-lhe o casaco. ?É uma das filhas do doutor Moore que veio em seu lugar. Segundo me informou a esposa do médico, ela tem experiência suficiente para descobrir o que acontece com Philip e o atenderá até que seu pai apareça.

?Como disse? ?Retrucou Shals mais espantando se possível. ?Uma mulher médica? Tem certeza? Seu comportamento não me pareceu...

?Também não a achei muito adequada, mas se é capaz de descobrir o que acontece com Philip, esquecerei esse comportamento grosseiro e insolente que exibe com tanto orgulho. A propósito, sabe se poderiam colocá-lo na banheira?

?Acabaram de subir vários criados para levantá-lo da cama. Como bem sabe, as dimensões do Sr. são...

?Nem pense nisso! Deixem-no novamente sobre esse maldito colchão, bando de inúteis! ?Mary gritou com tanta força que Valeria e Shals a ouviram como se ela ainda estivesse no corredor.

?Meu Deus! ?O mordomo exclamou horrorizado. ?Continua dizendo que esta mulher é a certa para salvá-lo?

?Não ?garantiu antes de levantar o vestido com as duas mãos e subir os degraus o mais rápido que podia.

Quando chegou ao quarto, Valeria se apoiou no batente da porta para tomar ar. Enquanto sua respiração normalizava, seus olhos se cravaram dentro do quarto. Os três criados, quem tinham tentando mover o corpo de seu irmão, estavam ao pé da cama e olhavam para Mary como se ela fosse louca, pois nenhuma mulher sensata gritaria em uma casa desconhecida nem permaneceria em frente a um homem nu, embora o lençol escondesse a parte inferior de seu irmão. No entanto, Valeria ficou perplexa pela atitude fria da Srta. A filha do médico não o contemplava como uma mulher faria, mas como um médico que procurava a origem da doença que padecia seu paciente. Depois de tocar a testa, continuou com o peito. Suas mãos apalparam o peito de Philip sem nenhum tipo de sensualidade. Sensualidade? Aquela mulher não sabia o que era isso! Mas os olhos de Valeria se arregalaram e os três servos exclamaram horrorizados quando ela baixou os lençóis até os quadris. Os pelos loiros encaracolados de seu irmão ficaram descobertos. Colocou as mãos no rosto e deus graças a Deus que estava inconsciente, porque só culparia ela de tê-la levado ao seu quarto e que ela tomou certas liberdades inadequadas enquanto ele não podia se defender.

Sem afastar os olhos de Mary, notou como seus dedos largos se concentraram na parte da virilha direita. Com uma suavidade improvável apalpou durante um bom tempo, logo as afastou, andou para trás, levantou o rosto, olhou para os servos espantados e lhes perguntou:

?Onde estão os vômitos do seu Sr.? ?Como ninguém era capaz de respondê-la, pois não podiam falar por causa de seu espanto, ela começou a procurar o recipiente embaixo da cama. Quando o encontrou, pegou-o e levou até a luz da cabeceira. ?Desde quando está assim?

?Faz um dia ?Valeria respondeu entrando lentamente. ?Primeiro foram as febres e depois os...

?Se queixou de dor abdominal? ?Mary insistiu voltando para a cama com a bacia nas mãos.

Depositou-a no chão. Depois, apesar dos olhares reprovadores dos servos, colocou as palmas das mãos novamente na região da virilha afetada e justo quando seus dedos pressionaram essa parte com mais força, Giesler, que estava inconsciente até agora, gritou de dor.

?Parece que sim, se queixa... ?Valeria comentou sarcástica ao observar como seu irmão finalmente abria os olhos e agarrava com força a mão direita da jovem.

?Acalme-se, lorde Giesler. Sou Mary Moore ?começou a falar com ele ao descobrir que a olhava assombrado, como se achasse que estava vivendo uma alucinação. ?Sua irmã apareceu em minha casa para pedir ajuda ao meu pai. Como ele não se encontrava, vim no seu lugar. ?Puxou a mão, dirigiu-se a sua maleta e procurou pelo estetoscópio. Uma vez que o encontrou, voltou até o doente, colocou a campainha larga em seu abdômen e ouviu atentamente.

?Mary... ?Giesler sussurrou, apoiando novamente a cabeça sobre o travesseiro e incapaz de afastar os olhos dela.

?Chist! Preciso de silencio ?ordenou.

Philip observou-a atordoado até que Valeria se acomodou ao seu lado. Não querendo fazer nem um mísero barulho, para não desobedecer a ordem da mulher feroz, lentamente virou a cabeça até seu irmão. Ela encolheu os ombros e o olhou com simpatia, como se estivesse pedindo perdão por tê-la levado. No entanto, apesar do estado atordoado que Philip estava e da dor que percorria seu grande corpo, ele sorriu antes de desmaiar de novo.

?Acredito que ele tem a fossa ilíaca direita inflamada ?Mary comentou depositando o instrumento na maleta.

?E? —Valeria perguntou, pegando o pano que estava em uma mesa de cabeceira para limpar suavemente o rosto suado de Philip.

?Tem que fazer uma incisão nessa parte do corpo, cortar e extrair a fossa afetada, limpar bem o interior, cauterizar e costurar ?explicou, como se estivesse descrevendo uma tarefa tão simples quanto encher um copo de água embaixo da torneira.

?Como podemos aliviar a dor enquanto seu pai não chega? ?Valeria apontou, terminando a tarefa que estava fazendo.

?Não deveríamos esperar tanto. Se a fossa não estiver perfurada, há muita possibilidade que sobreviva, mas se estiver... aconselho-lhe que realize todos os preparativos pertinentes para um próximo funeral ?declarou com grosseria.

?Como ousa falar dessa forma, Srta Moore? Está se referindo ao meu irmão! Por acaso não tem compaixão? ?Clamou horrorizada por sua falta de tato.

?Sou uma mulher racional e sincera, Sra. Reform. Esclareço o que há e enfatizo que, se não agirmos rapidamente, a vida do seu irmão terminará em apenas três dias. ?Colocou as mãos na cintura e olhou com frieza. ?Não concorda com meu diagnóstico? Bem... corra! Procure o doutor Flatman para que verifique minha conclusão! Talvez seja muito tarde para ele... ?insistiu com mais crueldade do que deveria mostrar.

Por acaso estava desesperada para salvar a vida do homem que a chamara de bruxa? Por quê? Teria mudado de ideia ao ver como seus olhos azuis a observavam como se a idolatrasse? Havia em seu coração um pouquinho de piedade? Ou queria salvá-lo para depois lhe recordar que tinha um divida de vida com ela? O que quer que fosse, era a primeira vez que misturava sentimentos e trabalho...

?Está me dizendo que a vida do meu irmão está em minhas mãos? ?Valeria enfatizou se levantando do colchão.

?Não. A vida do seu irmão está nas minhas, porque serei eu quem realiza a intervenção. Você deve dar seu consentimento. Embora também possa esbofetear lorde Giesler até que aceite minha decisão ?afirmou virando até o paciente como se tivesse a intenção de lhe bater.

?Não se atreva a tocá-lo! ?Valeria explodiu andando até ela. ?Se fizer isso, garanto-lhe que não ficará um único fio de cabelo na sua cabeça.

?Não me importa ficar careca, Sra. Reform, caso não saiba, em menos de um ano vou usar outra linda cabeleira, mas se não operar seu irmão imediatamente, ele estará no subsolo, decompondo e alimentando todos os tipos de microorga...

?Maldita seja! ?Valeria gritou desesperada. ?O que quer que faça?

?Que consinta o que vou fazer ?Mary disse satisfeita.

?E se morrer durante a intervenção?

?Morrerá de qualquer maneira ?disse sem hesitar nem um único segundo.

?Está bem! Que todo mundo siga as instruções da Srta Moore! ?Valeria finalmente decidiu. ?Espero que não morra em suas mãos...

?Ele não vai ?Mary determinou antes de se colocar na frente de sua maleta e preparar todos os instrumentos que precisava para aquela operação apressada.


***

Valeria não podia acreditar no que via. Era tão improvável que mais de uma vez acreditou viver um pesadelo. Depois que a Srta. Moore ordenou acender todas as luzes que havia no quarto e que fechasse as janelas, pediu aos servos que colocassem duas mesas grandes em frente à lareira. Foi nela onde colocaram Philip. Então os obrigou a lavarem suas mãos em sete recipientes que havia cheio de água e sabão. Mas não se conformou com essa exaustiva limpeza, também os obrigou a borrifar suas palmas com um liquido que chamava desinfetante. Os lacaios fizeram isso sem questionar, porque ficou muito claro o caráter azedo e autoritário da mulher. Dois deles, que a olhavam como se fosse o próprio diabo, foram encarregados de limpar o sangue que caia no chão e de avivar o fogo. Quando tudo estava pronto, começou a trabalhar. Se até esse momento havia pensando que era uma pessoa única, o comportamento que manteve depois, confirmou. Enquanto que ela não podia permanecer de pé nem dois minutos ao presenciar a pequena incisão que fez no corpo de Philip, Mary nem piscou. Parecia que tudo ao redor deixou de existir para ela, embora falasse sem parar sobre certas descobertas cientificas sobre a operação que realizava. A jovem se concentrou no trabalho com tanta segurança e precisão que ficou fascinada. Nem em seus partos o médico que a atendeu foi tão firme e profissional! Não havia dúvidas, Mary tinha um dom e, por muito estranho que lhe parecesse, Philip sabia. Talvez por essa razão ele murmurasse tantas vezes seu nome. Mas... como e quando a descobriu? Falaram sobre medicina nesse primeiro encontro? Não, essa opção estava descartada, desde que seu irmão não tinha conhecimento sobre esse assunto. Além disso, a filha do médico não lhe agradou lembrar aquele momento, como se tivesse sido o pior de sua vida... Por que Philip sabia da incrível capacidade da mulher? Perguntaria sobre ela depois daquele dia? Por qual motivo? Esperava que, se ele se salvasse, respondesse a todas as suas perguntas, porque era a primeira vez que Philip lhe ocultava algo sobre mulheres e isso a fazia suspeitar que talvez esse encontro fora mais importante para ele que para ela.

Durante as quatro horas seguintes, Mary não foi capaz de afastar o olhar do corpo de seu paciente. Depois de sedá-lo, para o que teve que usar quase todo o clorofórmio que tinha, porque não tinha levado em conta as dimensões do paciente até que o ouviu gritar depois de apertar a ponta da escarpa em sua pele, fez a incisão na região e procurou a fossa ilíaca. Tal como pensou, pelo inchaço que apresentava a olho nu, não estava perfurada, os resíduos continuavam armazenados no pequeno apêndice vermiforme. Enquanto removia e cauterizava a borda com uma faca em brasa, falava com a desconfortável Sra. Reform sobre os descobrimentos egípcios e como registraram essa doença nas mumificações. Então mencionou os estudos que Lorenz Heriste realizou, um discípulo de Herman Boerhaave, e finalizou o monólogo cientifico com as pesquisas realizadas por Reginald H. Fitz, um famoso professor de anatomia patológica da Universidade de Harvard. Mas a única coisa que saía da boca da irmã o tempo todo era «que não morra», de modo que Mary deduziu que ela não ouviu uma única palavra de sua ampla e contundente exposição científica sobre a descoberta do apêndice inflamado.

?Agulha e linha ?pediu, uma vez que finalizou a limpeza por dentro.

?Aqui está ?respondeu o criado que havia permanecido ao seu lado em todo o momento.

?Desinfetou isto? ?Perguntou depois de segurá-lo e esticar o fio para que não tivesse nós.

?Sim, fiz tal como indicou ?informou, afastando-se rapidamente dela.

?Lavou as mãos antes de fazê-lo? Porque, mesmo que não seja visto a olho nu, nossa pele pode estar contaminada por...

?Garanto, Srta. Moore, que jamais tive minhas mãos tão limpas ?interrompeu a criada com relutância, repetindo todas as ordens sete vezes, como se não pudessem entendê-la a princípio.

Com um sorriso que cruzava o rosto, Mary começou a fechar a abertura enquanto a Sra. Reform finalmente se levantava da cadeira em que havia permanecido durante a intervenção. Quando finalizou a sutura, pegou o bisturi, cortou o fio em excesso e colocou-o na bandeja onde estava o pedaço de intestino removido.

?Agora só precisa de muito repouso. Deve tomar o remédio que deixarei sobre a mesa de cabeceira. Os banhos frios acabaram durante uma boa temporada. Recomendo que limpe seu corpo com panos em água quente e se aparecerem algumas crostas brancas em volta da ferida, tem que...

?Vai embora? Pretende deixa-lo assim? ?Valeria espetou chocada olhando para o corpo convalescente de Philip.

Reconhecia que a atitude da filha dos Moore fosse sublime e que a Sra. Moore tinha razão ao recomendá-la. No entanto, não permitiria que saísse tão cedo. Precisava que ficasse durante a noite. Ela, melhor do que ninguém, poderia atendê-lo quando acordasse.

?Meu trabalho acabou Sra. Reform. Agora cabe a vocês cuidarem do doente. Se seguir minhas instruções, em dois dias poderá se levantar e dez dias depois continuará com seu estilo de vida habitual ?respondeu retirando o suor da testa com a manga direita do vestido. ?Além disso, meu pai aparecerá em algumas horas para verificar seu estado. Se tiver alguma dúvida sobre...

?Você fica! ?Garantiu a irmã. Ao perceber que não havia usado o tom adequado para falar, pois as rugas em sua testa indicavam que jamais admitiria uma imposição, suavizou a voz. ?Srta. Moore, Mary, peço-lhe que não saia até ele abrir os olhos. Já descobriu que sou incapaz de me manter firme quando vejo sangue e se tenho que trocar o curativo ou limpar...

?A troca de curativo pode ser feita pelo meu pai dentro de alguns dias, e lembro que não é apropriado que permaneça desnecessariamente. Não tenho dúvidas de que seu irmão melhorará se seguir minhas instruções... ?Mary comentou visivelmente sufocada.

Não queria estar presente quando aquele titã loiro abrisse os olhos, preferia se manter distante do homem que a chamara de bruxa. Além disso, não podia perder tempo cuidando da pessoa que odiava. Era verdade que o salvara de uma morte certa, que tinha abrandado ao ver como ele a olhava, mas até aí chegava a sua benevolência. Quanto antes saísse daquela casa, antes poderia esquecer que o conhecia e que havia contemplado aquele imenso corpo nu. Como era possível que suas pupilas se fixassem em certas regiões indecorosas? Havia atendido muitos homens doentes, mas ele era diferente de todos eles. A largura de seu torso, de seus braços, a magnitude e a força de suas pernas... toda aquela aparência dignificava-o. Qualquer mulher, que desejasse ter filhos robustos e saudáveis, procuraria um marido como ele. Mas ela não seria essa futura esposa. Tudo o que queria era colocar alguma distância entre os dois e que sua mente esquecesse tudo o que havia observado.

?Se teme por sua honra, lhe garanto que ninguém desta casa falará sobre sua visita ?Valeria afirmou se aproximando dela.

?Honra? ?Mary perguntou divertida. ?Nunca me interessei por esse tipo de besteira! Sou a pessoa mais honrada do planeta, por isso ninguém é capaz de me suportar. Não se trata disso, Sra. Reform, está mais para privacidade. Seu irmão e você precisam de privacidade para realizar os cuidados apropriados. O que seu irmão pensaria quando me visse em seu quarto?

?Que salvou a sua vida. Só isso. E estará tão agradecido como eu estou.

?Mas não é adequado que uma mulher permaneça sozinha no dormitório de um homem ?Mary insistiu, limpando o sangue de suas mãos na bacia que um dos empregados aproximou.

?É puritana, Mary? Depois do que fez, tenta me convencer de que é uma mulher recatada? Porque se fosse, eu não teria suportado as quatro horas que a intervenção durou com tanta solenidade ?Valeria insistiu.

?Está recriminando mina atitude? Porque tenho que lembrá-la de que acabei de salvar-lhe a vida ?concluiu, assinalando Giesler com um dedo de sua mão direita.

?Não interprete mal minhas palavras, por favor. Estou e serei eternamente agradecida. Tudo que eu quero é que permaneça ao seu lado esta noite. Estou tão cansada, depois desses dias, não sei se posso agir corretamente. É por isso que suplico que me ajude. Sabe como me sentiria se depois de seu brilhante trabalho ele não se recuperar por minha causa? ?Valeria retrucou visivelmente preocupada.

?Aceitarei esse pedido como um elogio... ?Mary respondeu cruzando os braços sobre o peito. ?Mas insisto que não sou a pessoa adequada para cuidar do seu irmão.

?Pedirei a um criado para acompanhá-la em todos os momentos. Assim nunca estará sozinha e será capaz de lhe dizer tudo o que quiser ?Valeria informou-a um pouco mais calma. ?Se amanhã, quando seu pai aparecer, decidir que não deve continuar na residência, procuraremos outra pessoa para assumir o seu lugar.

?Não se trata de ficar sozinha com ele, mas sobre a reação que terá quando abrir os olhos e me encontrar ao seu lado ?Mary explicou estendendo os braços para o chão. Então voltou para onde Philip estava, coberto até o peito com um lençol que um dos servos havia colocado, e o observou em silencio. Faria a coisa certa ficando aquela noite? O que poderia acontecer? A princípio, depois de usar tanto clorofórmio, não acordaria até a chegada do novo dia, momento em que seu pai poderia se ocupar dele. Mas... e se acordasse? O que faria quando a visse? Olharia novamente para ela com ternura ou gritaria para que saísse?

?Meu irmão não vai julgá-la, Mary. Depois do que fez por ele, por que acha que reagirá negativamente? ?Valeria insistiu se aproximando dela.

?Lembra-se de uma das perguntas que me fez na carruagem? ?Mary continuou deixando Giesler para encontrar a Sra. Reform no meio do quarto.

?Agradeceria se fosse mais especifica, porque tudo que eu pensava antes de sua atitude, foi apagado da minha mente ?disse com sinceridade. Não mentia. Tudo aquilo que pensava sobre Mary desapareceu de sua cabeça ao vê-la agir.

?Me perguntou se nos conhecemos e eu lhe disse brevemente. Bem, garanto-lhe que o nosso encontro foi suficiente para eliminar qualquer amizade cordial entre os nós dois. ?Mary olhou de lado para Philip e suspirou. Parecia tão dócil naquela situação, que até ela duvidava que fosse um ogro, mas era.

?Tenho certeza que meu irmão esquecerá qualquer incidente que tiveram no passado quando descobrir que você salvou sua vida ?Valeria esclareceu indicando com a mão a saída, para que ambas saíssem juntas.

?Não estou muito convencida disso... ?murmurou caminhando até a porta. ?Você seria capaz de perdoar a pessoa que tentou matá-la?

?O que disse? ?Valeria retrucou arregalando os olhos e parando atrás dela. ?Queria matá-lo. Por quê?

?Porque me chamou de bruxa ?Mary explicou avançando rapidamente. Se a irmã começasse a gritar, era melhor que o fizesse fora do quarto para não despertá-lo antes do previsto.

?Faria sem pensar. Em defesa do meu irmão, tenho que lhe dizer que ele é muito atencioso com as mulheres, muito para meu bom entendimento... ?Valeria esclareceu, tomando novamente o caminho para fora. Ao fechar a porta, se colocou ao lado de Mary e a olhou por um momento. Por que a chamou de bruxa? O que aconteceu entre eles? Se quisesse conhecer a verdade e descobrir o motivo pelo qual seu irmão havia chamando-a dessa forma e porque sorriu ao descobrir que ela estava ao seu lado, tinha que se esforçar o suficiente para que entre elas duas crescesse uma pequena amizade. ?Me daria a honra de tomar um chá? Depois de tantas horas sem comer, estou faminta.

?Não gosto de chá, prefiro o café e se acrescentar a isso uns ovos mexidos e torradas, estarei encantada em acompanhá-la ?Mary disse parando no alto da escada.

?Vejo que não sou a única que tem fome ?Valeria afirmou sorrindo. ?Não se preocupe, o serviço é incapaz de dormir desde que meu irmão ficou doente e certamente a cozinheira ficará feliz em preparar tudo o que quisermos. ?Enlaçou o braço direito com o esquerdo de Mary e desceram as escadas juntas. ?Sabe? Philip é incapaz de sair de seu quarto sem primeiro tomar duas xícaras de café. Segundo me explicou, as pessoas que o tomam são mais inteligentes e ativas. E depois do que fez, penso que tem razão. E você é uma mulher muito lúcida e perspicaz.

?Tentando me elogiar, Valeria? Não pareço mais uma mulher tão horrível? Esqueceu meu mau caráter? Porque posso lhe garantir que não será a primeira ou a última vez que me comportarei de maneira tão grosseira. Como bem sabe, minhas habilidades sociais são bastante escassas, o que não me preocupa em nada.

Diante dessa afirmação, a Sra. Reform soltou uma risada alta, apertou Mary com mais força em direção a ela e avançaram até que pisaram no corredor.

?Depois de sua atitude, tenho que lhe dizer que possui mais qualidades positivas que negativas, embora tema que não está acostumada a esse tipo de bajulação em relação a sua pessoa, estou errada?

?Não sei muito bem o que responder a isso porque acho mais fácil enfrentar críticas do que elogios ?respondeu com sua habitual sinceridade.

?Então se acostume com isso, Mary. Se realmente salvou a vida do meu irmão, ele se transformará em seu fiel protetor e eu em sua principal admiradora. Acha que qualquer um de nós permitirá que voltem a menosprezá-la por realizar um trabalho que até agora só realizavam homens? Ninguém será tão tolo em lidar com a protegida de Giesler ?garantiu enquanto a dirigia para a cozinha.

?Se você diz... ?Mary declarou um pouco desconcertada.


Capítulo II


Tinha que admitir que a conversa que manteve com a Sra. Reform se mostrou muito agradável. Além das numerosas atenções afetuosas, que lhe fizeram desconfortável mais de uma vez por não estar a costumada a tanta cortesia, a conversa foi muito reveladora para ela. Descobriu que os Giesler procediam de uma casta de barões alemães, que o pai se apaixonou por uma cigana espanhola e que ambos saíram da Alemanha para viverem seu romance. Uma bela história que terminou com três filhos: Valeria, Philip e Martin. Este último não o conhecia pessoalmente, mas tinha ouvido falar dele pelo excelente trabalho como professor de matemática avançada na Universidade de Oxford. Aparentemente, era uma celebridade, apesar de ser tão jovem. Isso só aconteceu porque tinha nascido homem...

Pegou o vestido com as duas mãos e subiu novamente as escadas. Nesta ocasião não foi acompanhada pela Sra. Reform, pois lhe insistiu que fosse a sua casa para descansar. Tal como Valeria garantiu com autoridade, só ela poderia ajudar o paciente se ele piorasse. A princípio se negou a deixá-la sozinha, pois fez uma promessa a sua mãe. No entanto, depois de uma intensa discussão, concordaram que Shals, o principal mordomo de lorde Giesler, permaneceria ao seu lado durante toda a noite. Mary sorriu novamente ao lembrar o memento em que o servo entrou na cozinha e ouviu a decisão de Valeria. Se naquele momento Anne estivesse junto para contemplar aquele rosto, tê-lo-ia pintado entre gargalhadas. Jamais admirou olhos tão abertos e uma boca tão grande. Na verdade, não pretendia que agradecesse por ter salvo a vida do homem que pagava o seu salário, mas tampouco esperava que reagisse com tanto medo e surpresa, como se estivesse em frente ao próprio Lúcifer. O fiel empregado acreditava que, no meio da noite, ela mudaria de ideia e, depois de pegar seu bisturi, retalharia seu senhor da cintura até a garganta? Embora essa ideia parecesse agradável na manhã em que o conheceu, havia mudado de opinião. Talvez o fato de saber que suas mães tinham algo em comum ou descobrir que não era tão invencível como lhe pareceu naquele dia, suavizou seu temperamento. Quem teria imaginado que um homem com esse aspecto se encontraria apertando a mão da morte? Possivelmente seu sangue espanhol, o único legado da mãe, porque não tinha dúvida de que Lorde Giesler herdara o físico de seu pai, que o mantivera vivo até sua chegada. Ambos os pais haviam passado por situações muito parecidas: a mãe fugiu dos ciganos para se casar com um médico e a cigana espanhola com um barão alemão. Sem dúvida alguma, ambas as mulheres tiveram a sorte de encontrar os homens que as amariam e respeitariam até a morte.

Quando chegou ao patamar no primeiro andar, caminhou lentamente até o quarto onde passaria as próximas horas. Só tinha que respirar fundo e agir com naturalidade até que seu pai chegasse. Uma vez que ele confirmasse que o paciente estava bem e que evoluiria normalmente, sairia de lá sem olhar para trás. Não era bom para ela permanecer ao lado de um homem que havia desejado odiar depois de lhe salvar a vida e descobrir que tinham muitas coisas em comum.

Colocou a mão na maçaneta e virou-a devagar, para não fazer muito barulho. Os criados, exceto Shals, haviam se retirado para descansar e não queria tirá-los de seus quartos se perguntando o que havia feito desta vez a filha do médico. Ao abrir a porta, ao olhar para dentro do quarto, levou as duas mãos até a boca e a pressionou com força para que seu grito não se ouvisse. Por que diabos fizeram tal coisa? Se não falhava a memória, jurava que os havia ordenado que não movessem o recém operado até que acordasse? Bem, eles a ignoraram! Os lacaios, aqueles a quem lavara as mãos tanto que pôde observar como alguns pedaços de pele morta caíram no chão, ergueram o grande corpo de seu paciente para colocá-lo no confortável colchão. Por acaso estava trabalhando com um bando de teimosos? Não eram capazes de entender suas palavras? Bem, terminariam compreendendo cada letra! No dia seguinte, assim que a Sra. Reform aparecesse, pediria que convocasse uma reunião com os servos. Uma vez que todos estivessem em silencio e atentos as suas palavras, escolheria uma linguagem muito simples para que pudessem compreender melhor as ordens.

Obrigou-se a se concentrar no bem estar de seu paciente. Andou pelo quarto pisando com força e não parou até se posicionar ao lado direito da cama. «Verdammt![2]», exclamou horrorizada ao descobrir que seus dedos, por mais que esticasse seus braços, de onde estava não alcançava o curativo, porque o haviam deitado exatamente no centro da imensa cama. Mas como podiam ser tão inúteis? Não deduziram que ela tinha que subir no colchão para tocar sua testa ou para verificar se a ferida não havia sido aberta ao deslocá-lo? Não! Como poderiam calcular uma lógica tão simples? O único que desejavam era que seu senhor acordasse confortavelmente em sua cama enorme, sem se importar com a inconveniência que a pessoa que salvara sua vida encontraria durante a noite. Por acaso não podia proteger sua honra? O fato de que Valeria mostrasse que sua presença deveria ser mantida em segredo para o bem de todos, não lhes dava o direito de tratá-la como se ela não estivesse. Depois de bufar como um cavalo ao final de uma interminável corrida, seguiu em direção a lareira, onde se encontrava um caldeirão com água limpa e quente. Colocou as mãos e tirou rapidamente ao sentir como sua pele queimava. Olhou com raiva para o paciente, como se estivesse rindo dela e voltou a resmungar. Sim, essa reunião com os empregados deveria se realizar o quanto antes e quem não acatasse suas ordens, ela mesma expulsaria a patadas da residência.

Irritada com a inépcia dos lacaios, ela voltou para a cama para garantir que o paciente não sangrasse. Só faltava que depois do que aconteceu nesse dia, lorde Giesler morresse depois da sua intervenção. O que comentariam aqueles que sempre zombaram da sua inteligência e capacidade? Não suportaria uma humilhação semelhante e seu pai teria que procurar outro capitão de navio que não levasse somente Anne a França, mas ela também. Olhou para a porta, que ainda permanecia fechada, e deixou de respirar, para aguçar o sentido da audição. Depois de comprovar que não havia ruído ao seu redor, subiu com muito cuidado na cama, se ajoelhou sobre o colchão, afastou rapidamente o lençol do corpo de Giesler e cravou seus olhos no curativo. Tinha várias manchas de sangue nele, mas eram normais depois de uma operação desse tipo. Talvez aqueles que o moveram foram mais atentos do que pensou. Assim que confirmou que o curativo continuava firme na cintura, apoiou a mão direita sobre a cama para descer. No entanto, seus olhos seguiam fixos no imenso e forte peito de Giesler. Como havia deduzido antes, era um homem bastante robusto e bonito. Poderia classificá-lo até como atraente, embora naquele momento precisasse de um bom banho para eliminar o suor que tinha emanado do seu corpo. Sua mata de cabelos loiros, que cobria desde seu peito até a cintura, possuía uma tonalidade mais escura que a de seu cabelo, permanecia preso à pele pela transpiração. Então reviu seus ombros, admitindo que o volume deles permanecia de acordo com a solidez de seus braços. Valeria não tinha dito que acompanhava o visconde em suas viagens? Bem, a cor de sua pele e a musculatura confirmavam que não passava as longas viagens protegido em um camarote. Sem dúvida alguma, se transformaria em um corsário vulgar uma vez que zarpassem. Pela diferença de tom entre o peito e a cintura, não tinha dúvidas de que lorde Giesler mostrava seu grande peito sem pudor, fazendo com que o sol e a brisa marinha alcançassem sua pele. Entendia o motivo pelo qual a cigana espanhola se apaixonou pelo barão alemão a primeira vista. Se seu filho tivesse herdado o físico paterno, tal como Valeria disse, não haveria mulher que resistisse a um homem tão atraente. Exceto ela, claro. Pois era imune a sedução masculina. Afastou o olhar do peito e fixou em seu rosto. Seus traços viris se acentuavam com a barba loira que cresceu desde que adoeceu. Seria grosseiro como o caráter que ofereceu no dia que se conheceram ou seria tão suave quanto o toque do lençol? Intrigada para descobrir que sensação tinha, levou os dedos de sua mão direita até o rosto de Philip e o acariciou lentamente. Surpreendentemente, ele virou a cabeça para a palma da sua mão quando sentiu o contato e, embora tivesse que retirá-la rapidamente, para o caso de ele acordar, a manteve até que ouviu a porta abrir.

?Srta Moore... ?disse Shals ao encontrá-la naquela posição tão pouco adequada. ?O que está fazendo? O senhor está acordado?

Dissimulando o espanto que lhe causou ser descoberta dessa maneira tão afetuosa, esticou o lençol para cobrir o pescoço e saiu da cama com menos delicadeza do que quando subiu.

?Estava confirmando que, ao movê-lo, a ferida não se abriu ?explicou com uma serenidade fingida. Colocou os pés no chão e deu vários passos para trás.

?E fez isso? ?Perguntou o mordomo entrando no quarto com uma enorme poltrona em suas mãos.

?Por sorte não. Mas foi imprudente movê-lo tão depressa ?Mary respondeu, se afastando o suficiente para que o criado colocasse a pesada poltrona ao seu dela. ?Para quem é isto? ?Perguntou curiosa.

?A Sra. Reform, antes de sair, me pediu que subisse a poltrona mais confortável que nosso senhor tem em seu escritório ?respondeu depois de deixá-la no chão e colocar as mãos nas costas, como se tivesse se machucado ao transportá-la.

?Dói? ?Mary disse se aproximando dele. ?Não deveria tê-la trazido sozinho. Deveria pedir ajuda a outro lacaio. ?Antes de ouvir a resposta de Shals, andou até o caldeirão quente que estava em frente à lareira, mergulhou um pano e, aguentando a alta temperatura, voltou para onde o empregado estava. ?Tire seu casaco e suba a camisa, por favor. Isto acalmará a dor.

?Mas... mas... ?ele gaguejou.

?Ou faz por vontade própria ou lhe garanto que não me importará tirá-la eu mes...

?Está bem. Farei o que me pede ?desistiu. Apesar do desconforto que sentiu, não só se separando de seu traje na frente de uma mulher, mas também pela indisposição em sua cintura, tirou o paletó e levantou a camisa para o meio das costas. Shals fechou os olhos quando notou um leve alívio quando Mary colocou o pano em sua pele.

?Não quero que você interprete mal minhas palavras, mas você está velho demais para fazer semelhante esforço ?alegou pressionando o pano úmido sobre a pele.

?Sempre fala dessa forma, Srta Moore? ?Shals estalou olhando por cima do ombro. Vendo que ela estava sorrindo, como se não se importasse com a pergunta mordaz, ele também sorriu.

?Como disse a Sra. Reform, sou uma pessoa muito racional e sincera. –Com a mão direita pegou a do mordomo e a colocou sobre o pano, então fez o mesmo com a outra. ?Aguente por mais alguns minutos. Se ainda continuar doendo, posso te dar um analgésico que tenho na maleta.

?Obrigado, com isto será o suficiente ?Shals respondeu depois de se virar para ela. —Posso fazer-lhe uma pergunta?

?Pode fazê-la, mas não prometo que a responda ?disse antes de circundar a cama, se aproximando de Giesler novamente, alongando seu corpo até que pudesse pegar seu pulso e confirmar que era adequado.

?Como aprendeu tudo o que sabe? ?Perguntou sem poder afastar o olhar dela. ?Seu pai a ensinou como se fosse um homem?

O sorriso que havia mostrado até esse momento, desapareceu. Levantou o queixo e olhou para o criado como se quisesse fuzilá-lo.

?Por acaso acredita que as mulheres nasceram sem cérebro e que a função dos homens é criá-las a sua conveniência? ?Disse levantando a voz.

?Não! Não! Por favor, Srta Moore, não interprete mal minhas palavras ?declarou Shals em voz baixa. ?Juro que não quero magoá-la ?argumentou, afastando o pano de suas costas.

?Disse para não tirá-lo ?repreendeu quando viu que, devido ao nervosismo, ele havia desobedecido a sua ordem.

?Sinto muito... outra vez ?Shals declarou acatando a ordem de Mary enquanto abaixava a cabeça, envergonhado.

?Tem filhos? ?Mary continuou falando enquanto voltava a poltrona que havia trazido. Se sentou e levantou o queixo para continuar observando o mordomo.

?Não.

?Então deduzo que é absurdo explicar as decisões que meu pai tomou depois de ser pai de cinco filhas ?se recostou na poltrona, cruzou os braços e encarou o paciente, que ainda estava descansando tranquilamente.

?Tenho sobrinhas, se isso lhe serve de algo ?Shals explicou passando atrás da poltrona para chegar até a lareira.

Se o pano quente acalmava um pouco a sua dor, imaginou que estar em frente ao fogo, faria desaparecer. Além disso, aquele lugar era ideal se a Srta Moore sofria outro ataque de raiva por seus comentários inapropriados.

?Como seus pais se comportam com elas? ?Mary perguntou, virando na poltrona o suficiente para observar o servo.

?Nascemos em uma família que sempre se dedicou a servir, Srta Moore. Pode concluir que minha irmã e meu cunhado as instruem para continuar essa tradição ?explicou com cautela.

?Felizmente para nós, nossos pais têm uma visão mais precisa do futuro de suas filhas ?Mary suspirou.

E ela também agradecia ao bom senso que ambos possuíam. Nem sua mãe nem seu pai teriam educando-as para se tornarem as futuras esposas de senhores odiosos que não as valorizassem. Único objetivo para jovens burguesas ou aristocratas. No entanto, graças a uma educação tão liberal, as cinco puderam desfrutar de algo que poucas mulheres possuíam: a felicidade. Como seriam suas vidas se tivessem sido instruídas sob a absurda opressão social? Tediosa, com certeza, e todas tinham lutado para conseguir a liberdade que precisavam.

?Fico feliz por você ?Shals comentou ocupando finalmente uma poltrona sem encosto que estava do seu lado direito. ?É muito estranho descobrir que alguns pais não são influenciados pelos costumes que nos cercam.

?Meu pai sempre teve uma visão diferente da vida ?Mary continuou um pouco mais relaxada. ?Desde que éramos meninas, nos ensinou a cuidar de nós mesmas e aceitou o caráter com o qual nascemos.

?Em seu caso, o amor pela medicina, certo? ?Shals insistiu e devido à calma de sua dor e ao tom suave da mulher, começou a relaxar.

?Não pense que foi fácil admitir meus interesses. No começo ele estava relutante em me ensinar tudo o que sabia, mas com o tempo lhe mostrei que minhas habilidades são adequadas para tal função ?explicou com orgulho.

?E afirmo-o ?o mordomo garantiu, fixando seus olhos em Giesler. ?Confesso que estou impressionado.

?Pela operação? ?Mary retrucou rindo. ?Não foi nada... Um corte longo, um mais curto, remover, limpar e cauterizar.

?Diz isso com tanta normalidade que dá a sensação que qualquer um pode fazê-lo e não é assim. Srta Moore, tem que compreender que fez algo maravilhoso e incrível. Tenho certeza que nenhum médico poderia ter realizado uma intervenção urgente com a serenidade que você manteve em todo o momento. Graças a Deus, a Sra. Reform, depois de ouvir as palavras que o senhor pronunciou em seus delírios, foi buscá-la.

?O que disse? ?Mary perguntou se inclinando para frente, para observar melhor a expressão no rosto de Shals.

?A senhora não lhe disse? ?O mordomo respondeu com certa inquietação ao deduzir que havia cometido um grande erro.

?A senhora falou em procurar meu pai, Randall Moore, mas não me disse que Lorde Giesler mencionou meu nome em seus delírios febris ?declarou com surpresa.

?Não! Não! Não me referia ao seu nome ?Shals mentiu ?mas seu sobrenome. Meu senhor, não parava de repetir o sobrenome de seu pai. Por isso a senhora foi a sua busca.

?Já percebi... ?comentou enquanto voltava a se recostar na poltrona e fixava seus olhos no paciente. Não lhe teria ocorrido falar sobre ela, certo? Porque se fosse assim, esperaria que se curasse para deixá-lo doente de novo.

?Como descobriu, tão rapidamente, a doença do meu senhor? ?Shals, ao confirmar que suas palavras a haviam relaxado novamente, mudou de assunto. Não desejava se envolver em um problema em que se confrontaria com o caráter daquela moça e do homem ao qual servia há vários anos, porque a única coisa que conseguiria seria uma demissão iminente.

?Conto a versão entendida, que abrange desde a época egípcia ou se conforma com o momento em que apalpei meus dedos na inflamação? ?Mary disse divertida.

?Com queira. Lembre que temos que permanecer acordados toda a noite e minha única tarefa é ficar com você neste quarto ?Shals respondeu com o mesmo tom jocoso.

?Sendo assim, começarei com os estudos que se realizaram depois de algumas descobertas em certos túmulos egípcios...

Durante um pouco mais de duas horas, Mary explicou sem parar tudo o que conhecia do assunto: seus descobrimentos, quem os estudou, suas conclusões e como os resolviam durante diferentes séculos. Em várias ocasiões o mordomo se aproximou dela para servir-lhe um copo de água fresca, mas ela não percebeu esse detalhe de cortesia. Mary estava incrivelmente emocionada porque era a primeira vez que alguém a escutava falar sobre medicina com atenção e até fazia perguntas sensatas. Se sentiu tão confortável que terminou confessando tudo o que lhe perguntava sobre sua infância: o dia em que seu pai a descobriu com um livro de medicina, os gritos de Shira ao descobri-la dissecando o corpo de um gato morto, as contínuas ameaças de sua mãe com seus livros, as reuniões de medicina que assistia. Falou tanto e se encontrava tão satisfeita que não reparou em Giesler exceto quando este emitiu um leve gemido. Nesse instante, Shals abandonou rapidamente a banqueta na qual permaneceu e se aproximou dos pés da cama enquanto observava como ela o atendia.

?O que acontece ?perguntou inquieto.

?Nada estranho ?ela respondeu depois de tocar sua testa e verificar que seu estado era normal. ?O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar. ?Deixou a cama, se dirigiu até a mesa de cabeceira onde havia deixado o copo que Shals enchia continuamente e voltou até Philip.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo... ?enfiou os dedos da mão direita dentro do copo, molhou-os e, depois de levantá-los, colocou-os sobre a boca de Giesler.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

?A Sra. Cheap tem um unguento a base de gordura animal que usa para que as mãos não rachem. Se quiser, posso pedir-lhe para...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaico. Terá mais que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção ?comentou com certo tom de amargura.

?Srta Moore, não me interprete mal, te suplico. Só desejo facilitar em tudo que possa seu excelente trabalho. Imagino que seja um pouco incomodo subir na cama do meu senhor, se ajoelhar ao seu lado e se inclinar até sua boca para umedecê-la com seus próprios dedos ?Shals explicou surpreso ao descobrir que ela era tão inocente que não era cuidadosa com a imagem que oferecia. Mais que um médico hidratando os lábios de um doente, parecia uma concubina fazendo alguma brincadeira erótica no seu cliente.

?Olhando a partir dessa perspectiva, parece que estou fazendo uma coisa horrível e tudo que pretendo é...

Mary ficou muda ao sentir uns dedos apertando em torno de seu pulso direito. Continuava olhando Shals, que já não expressava assombro, mas pavor. Tampouco fixava seus olhos nela, mas os dirigia até o lugar do colchão onde se encontrava lorde Giesler. Mary tragou a saliva e virou lentamente sua cabeça em direção ao rosto do homem que, inexplicavelmente, já havia acordado. Quando seus olhares se cruzaram, o coração paralisou. Aquele homem voltava a olhá-la como no dia em que se conheceram. Não havia ternura sem seus olhos, senão ódio e raiva. Por que diabos não lhe deu mais clorofórmio? E... de todas as maneiras possíveis para encontrá-la, teria que ser dessa maneira? O que passaria por sua cabeça ao vê-la sobre sua cama e ajoelhada ao seu lado? Pensaria que começaria a chorar como uma amante dramática ao ver a vida de seu amor em perigo? Por que Shals não falava? Por que não lhe oferecia o atiçador da lareira para que ela pudesse bater na cabeça dele e deixá-lo inconsciente de novo?

?Senhor... Milorde... ?Shals tentou finalmente dizer ao ver como lorde Giesler olhava a Srta Moore. ?Ela... é...

?Quem lhe salvou a vida ?Mary garantiu antes de fazer um movimento brusco com a mão, para se livrar do aperto, e descer da cama rapidamente.


Capítulo III


Não podia se mexer. Era incapaz de separar os cílios para observar quem se encontrava ao seu lado. Sua mente estava completamente adormecida e seu corpo parecia ter perdido toda a força. Não tentou nem desejou realizar nenhum esforço, pois pressentia que não conseguiria. Com os olhos fechados e imóvel, tentou lembrar o que havia acontecido. Mas não conseguiu nada, exceto que dias atrás se encontrava muito indisposto e que, de repente, seu corpo não se mantinha em pé. Em que dia da semana estava? Tinha perdido também a consciência? Quando? Respirou fundo, aplacando lentamente a angustia que sentia ao se sentir tão fraco. Pelo menos estava em casa, em seu quarto. A maciez característica do seu colchão e o cheiro do seu perfume atestavam isso. Deixando de lado a incerteza do que poderia acontecer, se concentrou nas vozes. A princípio parecia distante, mas com o passar do tempo ficaram mais nítidas e próximas. Duas. Ao seu lado permaneciam duas pessoas. Uma sem dúvida alguma era Shals. Poderia reconhecer sua voz, mesmo que ele estivesse trancado em uma caixa de metal. No entanto, se concentrou na outra. Uma mulher. Sim, aquele tom suave, mas ao mesmo tempo estridente, apenas uma fêmea poderia oferecê-lo. Conteve novamente a respiração, acalmando qualquer som que ele mesmo produzisse, para descobrir de quem poderia ser. Não teria ocorrido a Shals a ideia horrível de levar suas antigas amantes para cuidar dele, certo? Se ele tivesse tomado essa decisão, sua posição estava em perigo.

?Por que pensou em dissecar o pobre animal? ?Ouviu perguntar a estranha que, pela proximidade de sua voz, devia estar muito perto.

?Por curiosidade ?ela respondeu antes de soltar um sorriso suave. ?Precisava ver com meus próprios olhos o que escondia embaixo do pelo e da gordura. Além disso, estudar um coração na imagem de um livro não é o mesmo que tê-lo em suas mãos.

?Descobriu?

?Sim, até que Shira gritou horrorizada. ?Ela se divertiu ao lembrar aquele episódio de sua vida. —De acordo com ela, estava cometendo uma barbárie, então fui forçada a deixar o corpo e correr sem parar até chegar ao meu quarto.

?Imagino que sua mãe a castigou ?Shals deduziu.

?Somente até meu pai chegar. Quando expliquei a razão pela qual fiz isso e mostrei a ele todas as anotações que havia feito em um caderno pequeno, a punição acabou imediatamente. Daquele dia em diante, ele me ajudou a satisfazer minha curiosidade científica. Mas não me permitiu, até que completasse dezoito anos e depois de me presentear com a maleta que trouxe hoje, acompanhá-lo em suas consultas médicas.

?Atendeu aos doentes nessa idade tão jovem? ?Shals perguntou surpreso.

?Não. Eu apenas observava a atitude do meu pai e ouvia com atenção todas as suas explicações. No entanto, tenho que lhe assegurar que a grande maioria dos conhecimentos que possuo, consegui através dos livros que tenho lido sobre medicina.

?Você é uma mulher muito especial, Srta Moore.

?Obrigada ?ela respondeu, aceitando o elogio com prazer.

«Srta Moore...» Philip sentiu como seu peito se comprimia ao ouvir aquelas palavras. Seria ela? A bruxa de cabelos escuros tinha ido a sua casa para curá-lo? Por quê? Quem lhe havia pedido ajuda? Porque aceitou o pedido depois do terrível episódio que viveram dias atrás? Tentou se levantar para confirmar que não era uma alucinação, que sua mente distorcida não o enganava, mas continuava fraco, muito até mesmo para levantar um dedo. Assumindo que a única coisa que poderia fazer era ouvir com atenção a conversa da filha erudita do Dr. Moore, se concentrou em não perder nenhuma palavra. No entanto, uma pontada aguda de dor em sua cintura o fez rosnar, chamando a atenção de ambos.

?O que aconteceu? ?Ouviu Shals perguntar.

?Nada de estranho. O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar.

Philip percebeu como o colchão se inclinou ligeiramente para a sua esquerda. Depois disso, uma mão macia e quente tocou sua testa.

Mary...

Ela subiu na cama para confirmar que não estava piorando. Se deixou levar pela sensação de prazer que notou na leve carícia. Nunca se sentiu tão tranquilo e protegido por uma pessoa. Sempre foi ele quem velava pela segurança dos outros. Mas naquele momento, sua figura desamparada estava sob a proteção da mulher a quem ele gritou e admirou, em partes iguais. Ele apertou mais as pálpebras quando percebeu que estava se afastando. Uma estranha frieza percorreu seu corpo, causando um tremor intenso. Até suas vísceras reivindicavam essas carícias tão relaxantes. Não demorou em voltar. Para seu prazer, Mary ficou ao seu lado novamente.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo...

Tudo o que uma vez descreveu como maravilhoso desapareceu de sua mente quando sentiu a suavidade dos dedos molhados tocando seus lábios. Queria gemer de prazer, mas permaneceu quieto e calado. Não queria quebrar um momento tão terno, tão esplêndido. Possivelmente seria o único momento em que ela se comportaria de maneira tão afetuosa porque, uma vez que descobrisse que havia acordado, a mulher árida e gélida retornaria.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

Seu ferimento, o que ela mencionou, não sangraria. O que estava sangrando era sua alma. Porque lá estava ela, a mulher que jogou aqueles rolos de metal, saciando sua sede com os próprios dedos. Esse ato poderia defini-lo como o maior bem-estar que ele poderia sonhar? Talvez ele tivesse morrido e sua visão da vida eterna fosse ter aquela bruxa ao seu lado que ele não podia esquecer desde que a conheceu.

?A Sra. Cheap tem uma pomada à base de gordura animal que ela usa para evitar que as mãos rachem. Se desejar, posso pedir-lhe para que me...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaicos ?interrompeu-o?. Terá mais do que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção.

«Não!» Philip quis gritar com a opção que Shals lhe oferecia. Ele não queria que ela se afastasse dele, ou que seus lábios fossem borrifados com qualquer coisa, menos a água fresca de seus dedos. Ele precisava que ela continuasse com aquele ato íntimo, para tê-la por perto, sentir o perfume que ela exalava e a suavidade de seus dedos molhados.

Shals continuou falando. Ele explicou que não era apropriado que ela adotasse uma certa postura. Que postura seria? Estaria desconfortável? A inquietação tomou conta dele ao pensar que ela sofreria alguma doença por sua culpa. Muito lentamente, ele separou as pálpebras. A princípio, sua visão não era clara. Pelo contrário, parecia ter uma teia de aranha sobre as pupilas. Ele piscou várias vezes até alcançar a nitidez que desejava. Quando a viu, sentiu que não apenas sua alma estava sangrando, mas também seu coração. Mary estava ajoelhada na cama, estendendo a mão para a boca, hidratando-a, tal como explicava a Shals. Lentamente, seus olhos se desviaram para o peito feminino escondido sob um vestido que ele não conseguia distinguir claramente sua cor. Preto... talvez azul. Seus braços longos e delicados estavam nus, porque em algum momento decidiu enrolar as mangas até os cotovelos. A visão daquela pele esbranquiçada parecia requintada, atraente e tremendamente maravilhosa. Se estava morto, não tentaria voltar ao mundo dos vivos, pois o que vivia era ideal para ele. No entanto, justamente quando Shals percebeu que era capaz de observá-los, deduziu que sua situação idílica havia chegado ao fim. Ele lentamente levantou a mão esquerda para o pulso de Mary, agarrou-a e ela parou de falar.

Seus olhos se encontraram e se entreolharam por um momento. Ele queria transmitir através deles a felicidade que sentia ao encontrá-la ao seu lado, para cuida-lo. Mas o medo e a confusão mostrados pelo olhar de Mary o surpreenderam.

?Sr.... milorde... Ela é...

As palavras de seu mordomo ouviram-nas longe, como se não estivesse ao pé da cama, mas a 160 quilômetros de distância. Não quis prestar atenção à desculpa que Shals ofereceria ao encontrá-la em uma postura tão comprometedora. Tudo o que ele desejava era continuar contemplando a imagem perfeita de Mary: ao seu lado, em sua cama, acariciando sua boca com os dedos, saciando sua sede... Esse sentimento de felicidade se tornou em pavor quando percebeu sua mudança abrupta de atitude. Ela voltava a levantar o muro que os separou naquele dia.

?Quem salvou sua vida.

Manifestou em um tom de voz que Philip odiou. Lutou até libertar a mão de seu pulso e se afastou da cama, de seu lado. Continuou a olhá-la. Não podia afastar os olhos dela. Precisava observar todas as expressões que mostrava seu rosto. Surpresa, alegria, tristeza, compaixão? O que seria? Por qual escolher?

?Shals... ?murmurou lentamente. ?A... água... ?terminou de dizer.

O mordomo se aproximou rapidamente da cama, pegou o copo no qual Mary colocara os dedos e, quando ia lhe oferecer, ela gritou de horror.

?Nem pense em fazê-lo!

?Srta Moore, o senhor está me pedindo...

?E lhe dará, mas não dessa. Certamente que está contaminada depois de colocar meus dedos.

?Duvido muito que esteja depois de como foi lavado ?Shals apontou com um pouco de diversão.

Enquanto Mary estava em frente à lareira, onde podia observar claramente o paciente e permanecer distante, a criada esvaziou a água do copo na bacia e voltou a enchê-lo do jarro que havia sobre a mesinha. Se aproximou de lorde Giesler, segurou-lhe a cabeça e com muita delicadeza lhe deu de beber.

?Obrigado... ?ele disse uma vez que saciou sua sede. ?Shals, me ajude a sentar.

?Srta Moore, ?ele começou a dizer olhando para ela com os olhos arregalados ?acha que é uma boa ideia fazê-lo?

?Não. ?Garantiu indulgentemente. ?Precisa ficar deitado mais algumas horas.

O suficiente até que seu pai aparecesse e ela pudesse sair dali. Não podia enfrentar de novo esse olhar ameaçador. Só de pensar que continuava a odiá-la, a amarga e ressentida Mary voltaria para causar outro grande escândalo.

?Ficarei satisfeito se levantar um pouco minha cabeça. Não quero ficar o tempo todo olhando para o teto. ?Philip solicitou, a modo de queixa, a seu empregado, que acabou concordando com esse pedido, apesar de ouvir como a mulher bufava. ?O que aconteceu comigo?

?Um milagre! ?Shals exclamou dando um passo para trás, depois de acomodar o travesseiro.

?Que absurdo! ?Mary comentou, virando-se para não mostrar a raiva que tinha ao ouvir uma palavra tão estúpida para ela.

?Milagre? ?Philip retrucou olhando para a figura feminina. ?O que você quis dizer?

?Milorde, está acamado há pouco mais de dois dias. A Sra. Reform ficou ao seu lado esse tempo todo. Tentou curá-lo, mas, admitindo que precisava da ajuda de um médico, foi procurar o Dr. Moore. No entanto, ele não pôde comparecer e, em vez disso, a Srta Moore veio. Ela... ?Shals respirou fundo, olhou para a jovem e falou com orgulho, como se fosse seu próprio pai. ?Ela descobriu rapidamente que doença sofria e agiu imediatamente. Ela o operou, senhor. Ela salvou sua vida...

Giesler não tirou os olhos dela em nenhum momento. Algo dentro dele cresceu tão intensamente que seu peito expandiu. Felicidade? Agradecimento? Não sabia ao certo em que consistia essa emoção que inclusive lhe proporcionava forças para se levantar. Mas ele ficou parado, olhando-a sem piscar. Se ela descobrisse que estava começando a melhorar, iria embora e não estava disposto a se separar da mulher tão rapidamente que, rudemente, lhe dava as costas.

?Tinha a fossa ilíaca inflamada. ?Mary começou a dizer, olhando para o fogo. ?Tudo o que fiz foi tirá-la do seu corpo antes que fosse tarde demais.

?Pelo amor de Deus! ?Shals exclamou novamente. ?Explica como se fosse uma coisa muito simples e não foi. Sua intervenção durou pouco mais de quatro horas e posso garantir-lhe que, em nenhum momento, a Srta Moore diminuiu sua vontade de salvá-lo.

?Não preciso que me lisonjeie. ?Ela recriminou, ainda de costas para Giesler. ?Qualquer médico teria realizado essa operação com a mesma capacidade e eficiência que eu.

?Mas falamos de uma mulher... ?Shals sussurrou a seu senhor, comentário que fez Philip sorrir. Não só por afirmar algo evidente, mas pela forma temerosa de dizê-lo. Assustava-o? Conhecia o caráter especial da filha do médico?

Sem apagar o sorriso do rosto, ele continuou a admirá-la até seus olhos oferecerem uma imagem que ele nunca esqueceria. Se sua mente nunca parasse de mostrar a ele o momento em que se conheceram, e como o tecido de sua camisola se encaixava em sua figura, o fato de ficar na frente do fogo e que a luz das chamas atravessasse o tecido de seu vestido, concedeu a ele uma nova e esplêndida visão de suas pernas e quadris. Ela não usava anáguas? Por quê?

?Diga-me o que aconteceu ?Philip disse para Shals.

?Desde o início? ?estalou o mordomo se acomodando na cadeira onde Mary havia ficado antes que acordasse.

?Sim ?Giesler garantiu sem desviar o olhar daquela imagem espetacular.

Tal como pediu, Shals contou-lhe com todos os detalhes o que tinha acontecido desde que o encontraram caído no quarto. Os cuidados oferecidos por sua irmã, febre, vômito e convulsões. Evidentemente, ele não fez referência às palavras que evocou durante seus delírios. Mas, para dar uma explicação lógica do motivo pelo qual a Sra. Reform foi procurar o Dr. Moore, indicou que um funcionário havia ouvido que o médico seria o mais adequado para ajudá-lo, dada a fama que adquirira em Londres. Nesse momento Shals advertiu que Mary pegou o atiçador, o levantou e logo moveu as brasas com certa beligerância. Ele não quis perguntar o motivo pelo qual ela estava realizando esse ato brusco, decidiu continuar lhe falando sobre a saída de sua irmã para a residência do doutor e a chegada desta com a Srta. Moore. Explicou como gritou com os funcionários que se propunham a banhá-lo em água fria, como se aproximou dele e o espanto que todos mostraram quando a ouviu explicar que doença estava sofrendo. Narrou de maneira engraçada o momento em que ela forçou os servos a lavar as mãos em caldeirões diferentes e como insistia que fossem borrifados com um líquido que ela guardava na pasta. Philip não sorriu ao escutá-lo. Seu rosto estava rígido e seus olhos estavam fixos nela. Descobrir que havia tomado uma decisão tão importante, apesar de ambos não terem sido cordiais naquele dia, o deixou atordoado. Ele não tinha dúvida de que os rumores sobre seu intelecto eram verdadeiros, assim como afirmou aquilo que concluiu depois de investigá-la: os homens, que zombavam dela e a humilhavam constantemente, agiam dessa maneira porque a temiam. Eles estavam muito conscientes de que ela poderia superá-los, mesmo com os olhos fechados.

E isso que tinha crescido nele, que ainda não podia definir, aumentou.

?Obrigado. ?Lhe disse quando Shals concluiu a história. ?Te devo minha vida, Srta. Moore.

?Bobagem! ?Exclamou finalmente virando-se para ele. ?Não me deve nada. Como disse a seu mordomo, qualquer pessoa em meu lugar teria agido de maneira semelhante.

?Mas você enfrentou com valentia a Sra. Reform ?Shals interveio. Ao observar o rosto desconcertado de seu senhor, esclareceu: ?Sua irmã queria esperar o Sr. Moore, mas a Srta. insistiu em agir rapidamente. Além disso, lhe garantiu que morreria se não intervisse imediatamente.

Mary notou como suas bochechas coravam. Não arderam pelo calor do fogo, mas pelo embaraço que estava sofrendo. Aquele homem, imaginando que estava fazendo um ato de bondade para com ela, a descreveu como uma pessoa obstinada, teimosa e incapaz de aceitar a decisão da irmã do paciente. Outra característica que deveria adicionar à sua extensa lista de defeitos. Era melhor resolver o problema de uma só vez. Não podia suportar, nem por um momento mais, tantos elogios desnecessários ou daquele olhar hermético oferecido pelo homem que lhe salvara de uma morte certa.

?Como observei que está muito melhor e que o seu mordomo pode atendê-lo adequadamente, descerei ao primeiro andar. Já amanheceu há algum tempo e estou certa de que a Sra. Reform aparecerá em breve.

?Não! ?Philip gritou ao observar que ela se dirigia para a porta. Esse ligeiro movimento fez que lhe doesse a ferida. Ele colocou as mãos naquela área do corpo e olhou para ela novamente. ?Por favor... ?Sussurrou.

?Não se preocupe ?comentou Shals?, eu mesmo descerei para recebê-la. Você pode seguir atendendo Lorde Giesler. Agora que acordou, ele mesmo lhe dirá onde lhe dói e poderá lhe administrar o remédio que guarda na maleta.

?Vai me deixar sozinha? Não se lembra da promessa que fez à Sra. Reform? ?Mary insistiu com os olhos arregalados e colocando suas mãos em ambos os lados da cintura.

?Não corre nenhum perigo, Srta. Moore. Como pode ver, meu senhor, é incapaz de lhe fazer mal algum e sobre o escabroso assunto de permanecer a sós com um cavalheiro, não tem por que se preocupar. Ninguém nesta casa falará disso depois de salvar a vida do homem que paga seus honorários, lhe garanto.

?Mas... Mas... ?ela tentou dizer.

Shals parecia ter ficado surdo de repente. Depois de fazer uma leve reverência a Philip, caminhou decidido para a porta, fechou depois de sair e uma vez que já não puderam observá-lo, sorriu.


***

Quanto tempo passou desde que eles ficaram sozinhos? Talvez tenha sido apenas por alguns segundos, mas para Mary pareceu que tinha passado uma eternidade. Durante esse breve período não tinha se movido nem um palmo de onde ficou, antes da abrupta saída de Shals. Ele tentou fixar o olhar na porta, na lareira, no chão, mas acabou olhando para o rosto pálido e doentio. Embora Lorde Giesler não parecesse confortável, pois tampouco desviou o olhar dela. Seus olhos se mantiveram imóveis, como se o clorofórmio que lhe administrou não o deixasse movê-los para nenhuma outra área do quarto. Pegou as mãos e torceu-as com força. O que devia fazer? Faria bem se quebrasse aquele silêncio constrangedor?

?Srta. Moore... ?Philip sussurrou enquanto tentava mover a cabeça.

?Não o faça! ?Mary ordenou-lhe com um grito. ?Você não ouviu o seu mordomo? Acabei de operá-lo! ?Insistiu irritada.

?Sim, mas segundo as suas palavras, a intervenção foi muito simples. Por esse motivo, deduzi que...

?Deduções? A sério? Após a quantidade de anestésico que lhe dei, acha que sua mente é capaz de deduzir algo claramente? ?Continuou irritada. — O que precisa fazer é ficar parado por mais algumas horas.

?Quantas?

?Quantas o quê? ?Retrucou caminhando até ele com relutância.

?Quantas horas você acha que serão apropriadas? ?Esclareceu Philip, imensamente satisfeito ao ver como ela voltava a seu lado.

?Eu imagino que quarenta será mais que suficiente. ?Se Colocou no lado direito da cama, cruzou as mãos pelo peito e o olhou esquiva.

?Estou com calor... ?disse Giesler depois de pensar rapidamente uma alternativa que a obrigasse a tocá-lo de novo.

?Pode afastar o lençol, se desejar ?respondeu sem diminuir essa atitude zangada e distante.

?Mas me disse que não me movesse, que permanecesse quarenta...

Poderia rir? Não. Embora desejasse fazê-lo, não era apropriado, pois Mary acabaria cobrindo o rosto com o lençol para que não o observasse nem falasse mais. Por esse motivo, permaneceu calado, gostando de assistir enquanto pegava o pano com as pontas dos dedos e deslizava lentamente até a cintura.

?Melhor? ?Retrucou voltando a posição anterior.

?Água.

?Quer mais água? ?Perguntou arregalando os olhos.

?E remédios. Segundo declarou Shals, devo tomar...

?Cale-se por um momento! ?Mary exclamou desesperada. ?Não diga nem mais uma palavra. Vou dar-lhe a pílula[3] e esse maldito copo de água.

Fazendo movimentos mais bruscos do que deveria, se virou para a maleta, procurou o frasco onde tinha os comprimidos e pegou o copo de água.

?Não tente se mexer, eu te ajudarei. ?Philip a obedeceu. ?Passarei meu braço direito embaixo da cabeça. Precisa manter uma inclinação adequada para que o medicamento não fique preso na sua garganta. Se fizer isso, poderia morrer de asfixia ?comentou com sarcasmo.

?Sei que não permitiria que me acontecesse uma coisa tão horrível ?apontou Philip antes que lhe colocasse a cápsula na boca.

?Não tenha tanta certeza ?resmungou enquanto lhe dava de beber.

Não havia dúvida. Estava no céu e a mulher que ele chamou de bruxa era seu anjo. Sentir a suavidade da pele desse braço feminino em sua nuca, despertou-lhe uma incrível sensação de prazer e bem-estar. Quantas amantes deslizaram suas mãos pelo seu corpo? Dezenas! Quantas delas lhe causaram tanto prazer? Nenhuma. Aquela harpia de olhos azuis e cabelos escuros lhe provocava, com seu mau humor e seus atritos esquivos, uma satisfação inigualável.

Fechou os olhos quando ela deslizou seu braço para se afastar. Honestamente, nada poderia ser comparar. Talvez fosse um efeito colateral do clorofórmio que ela o fez inalar, ou talvez tudo fosse produto daquele período de castidade que se auto infringiu depois de conhecê-la. Fosse o que fosse, precisava senti-lo milhões de vezes mais.

?Obrigado ?lhe disse em voz baixa, quando Mary voltou a manter certa distância entre eles.

?Como disse? ?Retrucou estreitando os olhos.

?Agradeço, Srta. Moore. Mas entendo que não pode me ouvir claramente porque se afastou demais ?respondeu, dissimulando o estado de frenesi que se apoderou dele ao confirmar que encurtava essa separação bruta.

?O ouço perfeitamente, lorde Giesler. Só queria ouvir seus agradecimentos novamente ?respondeu mordaz. ?É bastante paradoxal que você, o homem que me chamou de bruxa em minha própria casa, me mostre tanta gratidão.

?Me jogou alguns tubos de metal. Queria me machucar com eles ?se defendeu.

?Não fiz isso? ?Retrucou ironicamente. Levantou as sobrancelhas escuras e esboçou um sorriso perverso enquanto colocava as mãos na cintura novamente.

?Não ?respondeu Philip. Se deleitando com aquele rosto maravilhosamente diabólico.

?Uma verdadeira lástima! ?Exclamou divertida antes de estalar a língua. ?Porque meu único objetivo naquele dia era machucá-lo.

?Para quê?

?Para que nunca me esquecesse ?respondeu de forma arrogante.

?Não fiz isso ?garantiu, olhando-a sem piscar.

As palavras e a expressão em seus olhos fizeram Mary se sentir intimidada, algo que geralmente não acontecia com facilidade. Mas aquele titã, com um corpo esbelto, cujo tronco bronzeado se mostrava descaradamente diante dela, começou a quebrar todas as barreiras que ela havia construído contra o sexo masculino. Que diabos tinha de especial? Por que seu coração batia loucamente? Não começaria a brotar seu sangue cigano naquele momento, certo? O que lhe disse Anne antes de partir para a cerimônia de casamento de Natalie Bennett? «Quando o sangue de Arany se libertar da pressão a que o submete, esquecerá tudo o que leu em seus amados livros e se tornará uma mulher apaixonada».

?Posso lhe pedir um favor, Srta. Moore? ?Philip perguntou, ao perceber que o olhar de Mary mostrava mais confusão do que medo.

?Quer mais água? Quer que o cubra novamente com o lençol? ?Respondeu ironicamente.

?Não. Minha sede se acalmou e garanto que estou com muito calor. Se não estivesse ao meu lado, afastaria imediatamente esse maldito lençol ?apontou sinceramente.

Comentário que a ruborizou, porque a fez lembrar o que estava escondendo debaixo do tecido.

?O que deseja? ?Quis saber, caminhando vários passos mais para trás.

Não devia permanecer tão perto. Não podia sentir nada. Seu coração precisava se acalmar de uma vez. Por que sua mente não agia? Onde estava seu autocontrole? E seu raciocínio feroz? Acaso haviam desaparecido? Que sangue possuíam naquele momento suas veias o Moore ou o Arany? Quando diabos seu pai chegaria?

?Vê essa cômoda que há no lado direito da lareira? ?Philip apontou com o queixo.

?Se pensa que vou me tornar sua empregada, está muito equivocado. Como bem sabe, meu único propósito tem sido...

?Srta. Moore, pode acatar, pelo menos uma vez na vida, uma ordem sem replicar? ?Philip resmungou.

?Por que devo fazê-lo?

?Porque não posso me mexer.

?O que me pedirá depois? ?Insistiu, franzindo a testa.

?Nada, juro por minha honra ?ele garantiu.

?Está bem! ?Mary sucumbiu caminhando em direção a cômoda. Uma vez que ficou na frente dela, olhou para ele. ?O que faço agora, Lorde Giesler? ?Acrescentou cantarolando.

?Abra a primeira gaveta e levante o lenço vermelho que encontrará à sua esquerda ?ele indicou. Embora não fosse conveniente para ele se mover, apoiou os cotovelos no colchão e, suportando a tremenda dor que esse esforço lhe causou, se inclinou o suficiente para vê-la. Como agiria? Se surpreenderia ao descobri-lo ou iria lançá-lo novamente? O que pensaria dele? O acusaria de ser louco e sairia correndo de lá? Com os olhos fixos nela, prendeu a respiração enquanto ao observa-la abrir a gaveta. Quando Mary levantou o pano, ficou parada e contemplou silenciosamente o que encontrou. ?Não me disse que sua única intenção era lembrá-la pelo resto da minha vida? Pois aí tem a prova, Mary. Não a esqueci, nem vou...

?Lorde Giesler ?Shals interrompeu depois de bater na porta duas vezes e abri-la ?O Sr. Moore acaba de chegar. Deseja recebê-lo?

?Sim, claro. Estávamos esperando por ele ?Philip respondeu sem desviar o olhar dela, que, ao ouvir o mordomo, bateu a gaveta e pulou para trás.


Capítulo IV


Shals se afastou para deixar o médico passar. Uma vez que este entrou no quarto seu olhar se dirigiu, em primeiro lugar, para ela. Respirou aliviado ao ver que permanecia frente à lareira, afastada do lorde. Que Mary tomara a decisão de operá-lo com urgência, quando era consciente de que podia esperar um pouco mais sem que corresse perigo, não lhe provocou tanto torpor como saber que se encontrava no quarto de um homem sozinha. Mas tudo o que havia imaginado desapareceu de sua cabeça ao vê-la tão afastada do paciente. Mary não era como Elizabeth, que colocava sua honra em risco constante. Sua segunda filha era tão fria quanto um bloco de gelo e, por mais atraente que o homem fosse, jamais o olharia de outra maneira que não fosse o de experimentar com ele alguma teoria médica nova. No entanto, não lhe passou despercebido o estupor que exibia. As bochechas queimavam pela proximidade do fogo ou pela emoção que devia sentir ao operar uma pessoa pela primeira vez sem o seu consentimento? Não ousou perguntar... O melhor era não saber mais, além do que seus velhos olhos cansados observavam. Com um passo lento, ele se aproximou de sua filha e depois de fazer uma breve revisão de suas roupas, confirmando as palavras de sua esposa, a cumprimentou.

?Bom dia, filha.

?Bom dia, pai ?ela respondeu.

Esgotado. Mary percebeu que seu pai estava bastante cansado, apesar de apresentar uma imagem decente e correta. Ela não tinha dúvida de que sua mãe o esperara na porta e antes que ele pudesse dar um pequeno passo dentro de sua casa, lhe teria dado a volta, teria arrumado a gravata e a camisa, enquanto lhe explicava o que tinha acontecido. Tinha certeza que quando ouviu lorde Giesler, Mary, doença e residência na mesma frase, nem mesmo seu cansaço o teria impedido de comparecer. Esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao imaginá-los divagando sobre sua conduta quando descobrisse a identidade do homem que devia salvar. Temeriam por sua vida? Não a sua, senão a do paciente. Se assim fosse, deveriam respirar tranquilos porque, nesse momento, não desejava matar ao presunçoso que a chamou de bruxa antes de lhe atirar uns rolos metálicos. Ao recordar esse dia, voltou a ficar tensa. Por que diabos havia guardado um dos objetos que lhe jogou? Por que o escondia sob um tecido de seda? E, como teve o descaramento de mostrá-lo? Queria humilhá-la ou talvez desejava que visse com seus próprios olhos a prova do delito? ¿ Não pensaria que o impacto do rolo originou sua doença, certo? Se acreditasse naquela hipótese absurda, era mais idiota do que pensava.

Enquanto ela divagava em silêncio, Randall atravessou o quarto para ficar ao lado de Philip, exatamente onde sua filha havia passado a noite. Seus dedos ainda estavam entrelaçados na alça da maleta, como se não quisesse se separar dela. Olhou novamente para Mary, depois contemplou o paciente e falou com sinais visíveis de medo:

?Bom dia, milorde. Desculpe a demora. Garanto-lhe que vim assim que fui informado por minha esposa. Como se encontra?

?Muito melhor, Sr. Moore ?Giesler respondeu um pouco confuso com a atitude distante que o médico lhe ofereceu a sua filha.

Mas claro, ele não sabia que ideias o casal considerou sobre Mary e sua maldade quando descobrisse a verdadeira identidade do paciente.

?Imagino que se encontra muito dolorido ?Randall disse depois de relaxar.

Pelo menos não tinha lhe arrancado a língua. Talvez tivesse adotado o comportamento de um médico e não o de uma mulher desprezada, como Sophia pensava. Ele nunca tinha visto sua esposa tão preocupada com a vida de alguém ou rezando para sua mãe criadora para mantê-lo seguro. Lentamente, ele se virou para a mesa e apoiou a maleta pesada.

?O normal após a intervenção que a Srta. Moore realizou ?respondeu com certo sarcasmo. Esperava que suas palavras eliminassem a possível inquietude do médico, mas não foi assim. A velha figura de Moore ficou tensa como uma corda de violino.

?Vou inspecionar a área ?lhe disse no momento em que suas mãos se libertaram da pesada mala de couro preto. Abriu-a e tirou uma tesoura. ?Tenho que tirar o curativo, milorde.

?Por quê? ?Philip retrucou estreitando os olhos.

?Porque preciso ter certeza do estado em que se encontra ?explicou depois de olhar para Mary rapidamente.

?Respiro, falo coerentemente e percebo facilmente a dor que irradia da ferida. Não tenho mais febre e me sinto muito mais forte do que antes. Isso não são sinais suficientes para confirmar que, graças à sua filha, me encontro bem? ?Apontou mordaz.

?Não se trata disso, Milorde ?comentou Mary se aproximando da cama. Mas parou o passo quando seu pai levantou a mão esquerda para ela.

?Tenho que confirmar que o trabalho que minha filha fez foi correto.

?Foi ?Philip garantiu categórico.

Mary não conseguia abrir mais os olhos diante da surpresa causada pelas palavras de lorde Giesler. O que ele pretendia agindo dessa maneira tão irritante? Recusaria a ajuda de seu pai? Por quê? O clorofórmio o deixou tão atordoado que não conseguia pensar com sensatez?

?Não duvido da capacidade da minha filha ?Randall expôs levantando o peito. ?Acredite quando lhe digo que colocaria a minha vida nas suas mãos sem hesitar. Mas caso não esteja ciente disso, Mary não possui a licença médica que lhe dá o poder de agir como tem feito. Se não trabalhou bem, se cometeu um pequeno erro, as repercussões futuras que teria seriam terríveis. Todo mundo falaria de sua ação impetuosa, o desastre que cometeu e a tragédia que Londres sofreria depois de perder um membro distinto da alta sociedade alemã. Quer que minha filha seja condenada por assassinato quando tudo o que ela fez por você foi um ato de misericórdia?

?Disparates... ?Giesler resmungou. ?Sua filha trabalhou perfeitamente. Ninguém falará sobre o que aconteceu hoje à noite aqui. Mas no caso hipotético de que aconteça, me tornarei seu feroz defensor.

?Não o fará se morrer ?Ela interveio mais espantada do que nunca.

Não havia dúvidas. Mary afirmou, depois de ouvi-lo, que os possíveis efeitos colaterais da anestesia eram horríveis. Todos os pacientes reagiam de maneira diferente: alguns pulavam sobre os colchões como se tivessem percevejos no corpo, outros gritavam como se vivessem no tempo de Neandertal, outros se tornavam crianças pequenas, que se consolavam chupando os dedos. No entanto, o caso de lorde Giesler foi a coisa mais insana que ela já vira. Ele só precisava sair da cama e empunhar uma espada, como se fosse um cavaleiro medieval, para proteger a honra de sua esposa!

?Penso como você, milorde. No entanto, tenho que verificar seu trabalho ?reafirmou veementemente. ?Posso cortar de uma vez os curativos ou deseja continuar essa conversa absurda? ?Acrescentou derramando sobre as tesouras e suas mãos um líquido incolor.

?Faça tudo o que precisa para confirmar o bom trabalho de sua filha ?disse finalmente.

Enquanto observava como rasgava as ataduras, Philip teve que admitir que Mary havia herdado o comportamento ousado de seu pai. Nenhum homem teria se dirigido a ele com insolência por temor a uma possível retaliação de sua parte. No entanto, lá estava ele, cortando o curativo, removendo o tecido de seu corpo e verificando o ferimento sem pestanejar depois de dar a entender que ele não estava em condições de pensar com lucidez.

?Você usou catgut[4] como fio de sutura? ?Randall perguntou sem olhar para ela enquanto sentia em volta do corte, confirmando que não havia deixado espaço ao costurá-lo. Se Sophia tivesse o acompanhado, descobriria que outra das habilidades de Mary era a costura, como ela o costurara com grande habilidade.

?Claro! ?ela exclamou se aproximando até ficar ao lado dele.

?Em que estado a encontrou? ?Perseverou, sem deixar de apalpar os arredores da ferida.

?Prestes a explodir. Felizmente, agi na hora certa. Mais algumas horas e seria tarde demais para ele... ?ela garantiu com firmeza.

?Como descobriu? ?Depois de fazer a pergunta, Randall se levantou, procurou uma pequena gaze na caixa de remédios, borrifou-a com antisséptico e colocou sobre a ferida.

?Os indícios eram evidentes. Mas confirmei ao apalpar-lhe a zona. Estava tão inchada como a do falecido Sr. Skinner. No entanto, Lorde Giesler teve mais sorte ?explicou antes de levantar lentamente o queixo e contemplar o rosto abatido do seu paciente.

?Se certificou de que não havia perfuração? ?Randall continuou perguntando sem se referir à comparação que fez entre pacientes.

Não era apropriado que repetisse tantas vezes que poderia ter morrido. Mas Mary, depois do que aconteceu com o Sr. Skinner, não conseguia pensar em mais nada. Por isso, agia sem pensar nas possíveis consequências.

?Sim. Antes de removê-lo, verifiquei várias vezes, mas não encontrei sujeira na superfície ?continuou explicando. ?Então, quando o coloquei na bandeja, confirmei que não havia poros.

?Como fez? Usou o método de Fizt? ?O pai perseverou enquanto pegava outro curativo para cobrir a ferida.

?Não, me baseei no método Moore ?continuou com diversão. Entendendo que seu pai não se divertia tanto quanto ela, continuou: ?Abri, procurei, encontrei, cortei, limpei, cauterizei e fechei ?Mary garantiu, finalmente endireitando as costas. Quando deduziu que seu pai enrolaria o novo curativo no abdômen do lorde, olhou para o mordomo e lhe perguntou: ?Shals, pode ajudá-lo? Meu pai é tão teimoso que acha que pode fazer isso sozinho.

Comentário que fez Philip sorrir, porque encontrou outra semelhança entre eles.

?Sim ?respondeu o mordomo avançando para eles rapidamente.

Randall deu o curativo à filha, colocou-se à direita e esperou que o empregado colocasse um travesseiro sob as pernas do senhor. Com a ajuda de ambos, as mãos de Mary se moveram agilmente sobre os quadris do paciente. Ao fazê-lo, descobriu que Philip a observava estranhamente. Não era angústia, nem raiva, nem desconforto, mas veneração, o que expressavam aqueles olhos tão azuis como os dela.

?Quanto de clorofórmio deu a ele? ?Ele perguntou depois de confirmar que o curativo se agarrava perfeitamente ao corpo. ?Levou em consideração o tamanho do paciente?

?Não no começo ?respondeu com um largo sorriso. ?Mas depois de ouvi-lo gritar, ao cravar a ponta do bisturi, rapidamente corrigi meu erro. Como pode ver, é a primeira vez que sedei um homem com a mesma compleição que um cavalo.

Esse comentário não agradou a Philip. Nem tampouco gostou de ser comparado a um cavalo. Não havia outro animal mais bonito? Uma águia não era adequada para ela?

?Quanto fenol usou?

?Tudo o que tinha na maleta ?Mary admitiu depois de se afastar de Shals e de seu pai. ?Tive que obrigar os empregados que me ajudarem e pulverizar suas mãos depois de lavá-las com sabão.

?Tenho certeza disto ?Shals comentou sorrindo. ?Graças à ordem da Srta. Moore muitos dos servos descobriu que sob a sujeira possuem uma pele tão branca como a madrepérola.

?Conheço o caráter de minha filha e tenho certeza de que ninguém poderia se aproximar sem seguir suas instruções à risca ?indicou Randall sorrindo pela primeira vez desde que apareceu.

?Quanto tempo levarei para me recuperar? ?Philip perguntou ao médico enquanto Shals pegava o travesseiro das pernas e o colocava sob as costas.

?Deve permanecer pelo menos dez dias em repouso ?respondeu. ?É vital não se mexa durante esse tempo. A sutura está perfeita e seria uma pena que, após um trabalho tão cuidadoso, arruinasse-a ao tentar se mover mais do que deveria. Precisará de ajuda para desempenhar suas funções vitais. Mas eu aconselho que, quando terminar, volte para a cama o mais rápido possível.

?Entendi que me recuperaria em quarenta horas ?Philip comentou olhando para Mary, que rapidamente desviou os olhos dele por não ter a decência de cobrir o peito na frente dela.

?Minha filha, como disse, fez um trabalho sublime, milorde, mas não um milagre ?afirmou enquanto pegava a alça da pasta com os dedos da mão direita e esboçava um sorriso largo. ?Vou visitá-lo todos os dias para observar sua evolução. Se a qualquer momento o vômito, a febre ou um desconforto inesperado retornar, peço que você me notifique imediatamente.

?A Srta. Moore nos indicou que deve tomar certos medicamentos para diminuir sua dor ?Shals apontou o dedo para o frasco de vidro que havia sobre a mesa redonda à sua esquerda.

?Forneceu o suficiente? ?Randall perguntou.

?Tem para três doses durante oito dias ?Mary admitiu.

?Perfeito. Quando terminar, se precisar de mais, eu mesmo os trarei... ?explicou o médico dando um passo atrás.

?Sr. Moore, antes de sair, diga ao meu mordomo o valor dos seus honorários. Penso que... ?Philip tentou dizer, mas quando viu o rosto de horror do médico, ficou calado.

?Não tem nada para me pagar, milorde. Como já esclareci, minha filha não tem a licença necessária para realizar esse tipo de trabalho e não posso, nem quero aceitá-lo.

?Insisto! ?Giesler exclamou tentando colocar os cotovelos novamente no colchão, um movimento que o fez grunhir de dor.

?É um asno! ?Mary trovejou desesperada ao observar a intenção do paciente. ?Meu pai não lhe disse que não pode se mover sozinho?

?Mary Moore Arany! ?Randall gritou ao ouvir como se dirigia ao lorde.

?Arany? ?Philip perguntou levantando a sobrancelha direita e sorrindo enquanto a observava corar.

?Cortesia da minha mãe, milorde ?respondeu franzindo a testa e dando ao pai um olhar carregado de represália.

?Um nome muito apropriado ?Philip sussurrou divertido.

?Deseja me fazer mais alguma pergunta? ?Randall interveio rapidamente quando percebeu que sua filha não continuaria mantendo uma atitude cordial por muito tempo.

?Não ?Giesler respondeu sem tirar os olhos dela.

Volátil. A palavra mais apropriada para descrevê-la era volátil. Tudo o que ele precisava descobrir era quando poderia pegá-la com a guarda baixa, para que não jogasse nada que pudesse usar como uma arma. Mas ele se preocuparia com isso mais tarde, justamente quando pudesse se levantar sem a ajuda de ninguém. Então ele a procuraria e agradecia pessoalmente pelo que havia feito por ele.

?Sendo assim, até amanhã ?Randall cedeu estendendo a mão.

?Até amanhã ?Philip respondeu, apertando a palma com aparente dificuldade.

?Mary... ?seu pai disse uma vez que estava ao seu lado ?vamos. É hora de lorde Giesler descansar com tranquilidade.

?Tenha um bom dia, milorde. ?Ela se despediu com tanta frieza que Philip sentiu sua alma congelar.

?Mais uma vez obrigado, Srta. Moore ?respondeu lentamente.

Mary lhe fez uma ligeira reverência e, sem dizer uma só palavra mais, caminhou atrás de Shals e de seu pai. No entanto, antes de fechar a porta, não pôde deixar de olhá-lo de novo. Esse íntimo cruzamento de olhares a oprimiu. Não entendia o motivo pelo qual sua mente lhe alertava que sua história com o lorde não terminaria naquele momento, senão que acabava de começar. Horrorizada ao pensar que voltaria a encontrá-lo, fechou a porta com rapidez e suspirou.

?Deve estar muito orgulhoso de sua filha ?Shals disse ao médico enquanto ambos caminhavam pelo longo corredor. ?Nunca conheci uma mulher tão valente.

?Valente ou demente? ?Randall respondeu.

?Não pensa que sua filha agiu corretamente? ?Shals insistiu confuso.

?Mary sempre age racionalmente, porém, desta vez não tenho tanta certeza disso. Você sabe que tipo de repercussão teria se tivesse cometido um erro?

?Erro? ?Retrucou Shals parando no patamar do primeiro andar. ?Não houve nenhum, Sr. Moore. Testemunhei o trabalho de muitos médicos e garanto-lhe que nunca vi uma pessoa trabalhar como ela.

?Não percebeu que é uma mulher e que não tem licença médica? ?Moore insistiu, impressionado com o apoio e o respeito que o criado mostrava a Mary.

?E? ?Shals perguntou olhando para ele incrédulo. ?Tenho certeza de que se ela tivesse atendido meu amo anterior, ele ainda continuaria respirando ?comentou antes de estender a mão para as escadas.

?Não lhe importa as opiniões que este ato de suposta valentia pode lhe causar? ?O pai insistiu.

?Não. E sobre esse assunto, como lorde Giesler esclareceu, não deve se preocupar. No entanto, lhe aviso que, após a brilhante atitude de sua filha esta noite, receio que ninguém nesta casa receberá, quando estiver doente, outro médico que não seja a Srta. Moore.

?Ela não é médica.

?Para nós sim, ela é ?Shals disse sem rodeios.

?Não falaria assim se a conhecesse melhor... ?Randall disse descendo o primeiro degrau.

?Acredite em mim quando digo que todos descobrimos o caráter afável da Srta. Moore ?Shals explicou divertido.

?De verdade? O que fez desta vez?

Enquanto desciam as escadas, o mordomo contou a ele o momento em que apareceu batendo na porta da residência. Randall não ficou chocado ao saber que jogou o casaco e que, sem a presença de um criado, foi para o quarto do paciente. Tampouco ficou surpreso quando Shals o informou que chamava os criados que pretendiam banhar seu senhor de bando de inúteis. Se tivesse agido de maneira diferente, o teria confundido. Mas apenas lhe descreveu o caráter típico de sua filha e seu desejo de salvar vidas. O mesmo que o seu. Esse reflexo lhe causou grande tristeza. Não era justo que a sociedade não permitisse que uma mulher desempenhasse o papel de um homem, apesar de ter mais conhecimento e habilidades do que eles.

?Srta. Moore, aqui está o seu casaco ?Shals comentou estendendo a roupa para ela.

Naquele momento, Mary arregalou os olhos e lançou uma maldição em alemão. Se virou rapidamente e, sem ouvir a repreensão que seu pai falou ao ouvi-la blasfemar, levantou o vestido com as duas mãos para voltar ao quarto.

Correu pelo corredor até chegar à porta do lorde. Por um momento duvidou se deveria bater ou não. Não o fez porque imaginou que, uma vez que estivesse sozinho e em silêncio, a morfina o teria entorpecido novamente.

Como deduziu, seus olhos estavam fechados e ele estava respirando calmamente. Não seria um problema se aproximar da mesa e levar sua maleta. Na ponta dos pés, atravessou a sala, ficou ao lado do paciente e sorriu quando viu que estava descansando tranquilamente. Sem fazer o mínimo barulho, se virou para a maleta, fechou-a e, ao se virar novamente, ficou sem fôlego quando descobriu que os olhos do homem se abriram e a olhava com uma intensidade desconhecida para ela.

?Desculpe, esqueci... ?Ficou calada ao ver que ele estendia a mão para ela enquanto balbuciava algo incompreensível.

Assustada, caso tivesse piorado durante o breve período de tempo em que permaneceu sozinho, deixou cair a maleta no chão e estendeu a mão esquerda. Mas esse medo se tornou perplexidade quando ele a puxou com tanta força que seus narizes se tocaram.

?É uma mulher fascinante, Mary Moore ?ele sussurrou. ?Fascinantemente inesquecível ?afirmou antes que seus lábios tocassem os dela suavemente.

A resposta de Mary não demorou a chegar. Se afastou rapidamente dele e, apesar do estado de nervosismo que sentiu quando foi beijada pela primeira vez, levantou a palma da mão direita e lhe deu uma bofetada.

?Você é um grosseiro e espero que fascinantemente me esqueça ?Disse antes de levantar o queixo, pegar a maleta, adotar uma postura arrogante e sair dali a grandes passos.

No entanto, uma vez que Mary fechou a porta, se apoiou nela, levou a mão com a qual lhe bateu no coração e suspirou. Por que deu um tapa nele? Por acaso não sabia que o clorofórmio ainda passeava por suas veias? Milorde ainda não estava lúcido e estava agindo sob os efeitos dos narcóticos. Seria uma tragédia para ela que recordasse o que tinha acontecido. Se fosse assim, seria um problema sério. Compaixão, um sentimento que não tinha desde que entendeu a amargura do mundo ao seu redor, brotou de suas entranhas. Mas desapareceu imediatamente ao ouvir uma grande risada vinda de dentro do quarto.

?Verdammter Schurke![5] ?explodiu antes de descer as escadas tão rapidamente quanto subiu.


***

?Sabe que não deveria se sentir tão orgulhosa pelo que tem feito, certo? ?Randall perguntou à filha quando ambos se acomodaram dentro da carruagem e depositaram as respectivas maletas no assento. ?A intervenção foi um sucesso, mas não deveria ter feito isso sozinha.

?Agi por instinto, pai ?ela respondeu olhando pela janela.

?Por instinto? ?retrucou levantando as sobrancelhas. ?Desde quando se deixa levar por esse tipo de coisas?

?Tinha uma enorme inflamação. Os vômitos que observei...

?Não pôde esperar sete miseráveis horas, Mary Moore Arany? ?o pai insistiu irritado ?Você parou para pensar nas consequências que teria se não tivesse trabalhado corretamente? Estamos falando de um lorde!

?Desde quando faz esse tipo de distinção social, pai? ?Respondeu, virando lentamente sua cabeça para ele para olhá-lo. ?Me ensinou que as doenças não têm piedade daqueles que as sofrem. Observa-se, se faz um diagnóstico, se age e quando tudo termina tal como se deseja, volta para casa satisfeito por ter salvo uma vida ?garantiu com firmeza.

?Nu! ?Randall gritou fora de si. ?Aquele homem estava totalmente nu! Como foi capaz de se manter de pé, Mary? Por isso corou ao me ver entrar? Sentia vergonha por estar diante de um homem nu?

?Ist das ein problem, Vater?[6]

?Sim. Para mim isso é um grande problema, filha ?Moore garantiu.

?Caso você não se lembre, desde que eu o acompanho, tenho visto muitos homens nus ?apontou com desdém ?e seu querido lorde não é diferente dos outros.

?Sabe o que acontecerá se alguém daquela casa espalhar que você operou seu senhor enquanto ele estava nu? Sua mãe nos matará, porque eles não falarão mais sobre o caráter azedo de sua segunda filha, mas sobre sua insolência e falta de decoro.

?Queria que fizesse a intervenção com ele vestido? ?Retrucou com raiva.

?Poderia ter estendido o lençol, como fizemos em muitas ocasiões ?Randall manifestou sem diminuir sua raiva. ?Mas não. Você não pôde pensar em uma coisa tão simples...

?Me preocupava mais com a sua vida do que descobrir sua aparência física ?declarou mordaz. Embora a avaliação obtida pelo corpo forte e robusto do lorde fosse mantida para si. Sem contar com a surpresa que teve ao ver, pela primeira vez, um sexo masculino de verdade. ?Não fiz um bom trabalho? Não lhe salvei a vida?

?Isso parece.

?Melhorará? ?Persistiu tenazmente.

?Espero que sim ?Randall comentou com um suspiro.

?Então... vamos esquecer o resto! ?Apontou séria.

?Acha que será tão fácil para lorde Giesler esquecer que uma mulher o viu nu?

?Oh, bem! ?Exclamou com um leve sorriso. ?Realmente acredita que é a primeira vez que se mostra dessa forma diante de uma mulher? Por acaso não lembra que é o melhor amigo de lorde Bennett? Não ouviu o que dizem sobre eles?

?Mary Moore Arany, não fale comigo com esse tom!

?Pai, não seja ingênuo, por favor. Certamente, dentro de algumas horas, quando o efeito do sedativo tiver passado, seu querido lorde Giesler esquecerá o que aconteceu e se concentrará em aplacar a dor que ele deve suportar. ?Disse antes de cruzar os braços e olhar pela janela novamente.

?E se isso não acontecer?

?O fará ?disse incisiva.

No entanto, ela sabia que não. Aquele homem miserável guardou um rolo seu debaixo de um tecido de seda, olhou-a com veneração, defendeu-a como um justiceiro e, para aumentar a lista de eventos horríveis entre eles, a beijou. Só esperava que o tapa o fizesse entender que era melhor esquecê-la se sonhava em viver mais alguns anos.


Capítulo V


?Não posso acreditar! ?Sophia exclamou horrorizada depois de ouvir a explicação do marido. ?Como pôde ser tão imprudente? Operar? Ela sozinha? Por que o fez?

Felizmente para sua filha, assim que chegou em casa, subiu as escadas e se refugiou em seu quarto. Sabia como sua mãe agiria quando ele lhe contasse tudo o que tinha acontecido e, como mulher inteligente que era, decidiu se refugiar do perigo. Mas ele não podia fugir como Mary...

Randall olhou para a sua esposa, ela estava andando de um lado para o outro da sala. O laço de sua bata branca se soltou com os movimentos bruscos e seus cabelos, geralmente lisos e suaves como a seda, se enrolaram ao não deixar de tocá-lo. Sua raiva era compreensível; Mary agiu impulsivamente, sem parar para pensar nas consequências que seu ato de caridade poderia lhe acarretar no futuro. No entanto, ele se sentia muito orgulhoso do trabalho de sua amada menina. Qualquer outra pessoa em seu lugar esperaria a presença de outro médico para corroborar o primeiro diagnóstico. Mas ela não precisava de uma segunda opinião e procedeu com a paixão que mostrava sempre que alguém precisava de sua ajuda. Era verdade que havia cometido uma grande imprudência, isso não podia discutir com Sophia, mas também deviam elogiar seu bom julgamento.

?O salvou ?disse depois de procurar por palavras tão chocantes que diminuíssem a raiva de sua esposa.

?O que disse? ?Ela retrucou, abrindo tanto os olhos que podia ver claramente a dilatação de suas pupilas.

?Nossa filha salvou sua vida ?respondeu calmamente.

?Randall Moore! Você ficou louco? Porque só assim entenderia sua postura inadequada ?gritou angustiada.

?Apesar da minha primeira impressão, duvido muito que lorde Giesler sobrevivesse a uma doença tão perigosa quanto essa. ?Adicionou sem hesitar.

?Mas... não acaba de me dizer que poderia ter esperado até sua chegada? ?Enfatizou frenética. ?Que posição vai tomar, Randall? Sim ou não? ?Acrescentou, estreitando os olhos e colocando as duas mãos na cintura.

?Na minha opinião, penso, acredito e calculo que...

?Não comece a falar comigo dessa maneira, ou juro por Morgana que dormirá no sofá por um mês inteiro! ?O ameaçou.

?A posição é sim. Apoio fortemente a decisão de Mary. É, sem dúvida, o melhor trabalho que já vi em anos ?assumiu orgulho. ?Você acredita que tive que olhar duas vezes para a sutura que ela fez na incisão? Era perfeita!

?Mary... o costurou? ?Retrucou impressionada. ?Mas se não sabe nem enfiar fio na agulha!

?Bem, te garanto que sabe fazê-lo, e muito bem. ?Recostou-se na cadeira, subiu os óculos pela ponte de seu nariz, sorriu levemente e olhou ternamente para a esposa. ?No fundo, acho que ela estava certa...

?Então, agiu corretamente, certo? Lorde Giesler não retaliará contra ela, correto? ?Sophia insistiu desconcertada. O que devia fazer? Castigá-la durante dois anos em seu quarto ou deixar Madeleine preparar um daqueles bolos de que tanto gostava?

?Como já expliquei várias vezes, este tipo de doença é imprevisível... ?começou a explicar enquanto se levantava do cômodo sofá. ?É verdade que, se a fossa não explodisse por dentro, a intervenção poderia ser adiada até minha chegada. Mas como não podemos saber o que está acontecendo sob a nossa pele, até abrirmos, possivelmente sua predição se cumpriria em minutos. Devo esclarecer que essas inflamações são diferentes em cada paciente. Lorde Giesler sofreu dois dias com dor, febre e vômito. O Sr. Skinner faleceu antes que a febre aparecesse.

?Pelo amor de Morgana! Tinha esquecido o Sr. Skinner! ?Exclamou levando as mãos ao rosto. ?Mary ainda não superou, certo?

?Nunca se esqueça da primeira pessoa que morreu em suas mãos, querida. Sem dúvida, foi o pior momento de sua vida e imagino que foi por isso que ela agiu sem o meu consentimento. Reviveu aquela noite e concluiu que tinha que salvar a vida de lorde Giesler, apesar das consequências que teria no futuro.

?Se certificou de que lhe não tirou nada do corpo, exceto a abençoada fossa? ?Perguntou um pouco mais calma. Se fosse verdade, se a sua filha tivesse acalmado a consciência e descansado em paz depois da sua loucura corajosa, não a castigaria, mas também não a recompensaria. Se elogiasse Mary, estava perdida, porque nunca ouviria um conselho sem lembrá-la de que seus motivos alcançaram um tremendo triunfo. ?Depois do que aconteceu entre eles há alguns dias, poderia ter removido metade do estômago para se vingar.

?Que loucura você disse, querida! ?Randall exclamou com uma risada nervosa. ?Como nossa filha faria esse tipo de bobagem?

Mas a verdade era que não o confirmou e foi um descuido de sua parte. Estava tão preocupado em proteger a imprudência de Mary que não notou os restos que havia na bandeja. Ele esperava que sua filha tivesse esquecido a vingança que jurou realizar contra o homem que a chamara de Medusa e que, como sua esposa disse, não aproveitou o momento para lhe arrancar qualquer órgão vital com suas próprias mãos.

?E, como estava quando entrou no quarto dele? ?Perseverou sua esposa.

?Bastante bem ?admitiu finalmente respirando tranquilamente. Se lhe tivesse faltado algo importante, não teria aberto os olhos. ?Bastante bem ?repetiu para garantir sua própria dedução. ?Eu tenho que confessar que seu estado lúcido me deixou perplexo. Em outros pacientes, a recuperação tem sido muito lenta. No entanto, lorde Giesler estava ciente o tempo todo e raciocinava claramente.

?Suponho que, quando lhe anunciou que foi nossa filha quem lhe realizou a intervenção, gritou horrorizado como fez na manhã em que ela lhe atirou os tubos metálicos ?Sophia comentou olhando-o sem piscar.

?Pois não. O oposto. lorde Giesler a defendeu veementemente.

?A defendeu? ?Sophia perguntou boquiaberta.

?Não só ele, mas também o seu mordomo principal. Juro que pensei que o lacaio jogaria um dos castiçais na minha cabeça quando eu a repreendi na frente deles ?explicou Randall estendendo a mão para a esposa.

Tinha que descansar. Estava exausto demais para enfrentar o dia e, como sua amada esposa se acalmara um pouco, era hora de levá-la para o quarto e que o médico assumisse o papel de doente. O que mais um marido poderia querer depois de uma noite sem descanso e a situação que viveu na residência do lorde? Apenas um: adormecer nos braços de sua esposa.

?Lhe explicou tudo o que acontecerá se descobrir que Mary o atendeu? ?Sophia insistiu, aceitando aquele braço.

?Compreendeu-o rapidamente e isso lhe causou um terrível aborrecimento ?ele indicou, abrindo a porta.

?A quem? Lorde Giesler ou o mordomo? ?Ela insistiu sem esclarecer.

?Para ambos. O servo me avisou que ninguém na residência procuraria outro médico além de nossa filha e lorde Giesler disse que se tornaria um feroz protetor de Mary se alguém ousasse reprovar seu bom trabalho.

?O que ele disse? ?Sophia retrucou, arregalando os olhos novamente.

?Que ele se tornaria seu feroz protetor ?Randall repetiu.

?Quanto clorofórmio Mary lhe forneceu? ?Insistiu sua esposa lhe ajudando a subir o primeiro degrau da longa escadaria.

?Quase um quarto do frasco! Você não acha engraçado? Lorde Giesler permanecerá sedado por uma semana inteira! ?Randall comentou com diversão. ?Talvez, quando seu corpo eliminar toda essa quantidade de soníferos, não se lembre que Mary o operou nu ?acrescentou rindo sem parar.

?Como disse? ?Trovejou Sophia parando abruptamente nas escadas. ?Nossa filha viu aquele homem nu?

?Eu disse isso? Não lembra querida.

?Randall Moore... Fale agora mesmo! ?E no meio daquela escada, Sophia se afastou do marido e cruzou os braços.

?Não esteve sozinha em nenhum momento. A irmã do paciente e mais de dez servos presenciaram tudo ?ele comentou, sem saber se devia correr, como Mary havia feito quando chegou, ou voltar para a sala e se trancar até que a nova raiva de sua esposa passasse. ?Portanto, não pode nem deve pensar que eles tiveram um momento íntimo. Todos ali presentes...

?Nu?! ?Esbravejou. ?Minha filha viu aquele homem nu? E acha que lorde Giesler se esquecerá disso? Que ninguém naquela casa comentará que nossa filha, a quem esperamos casar algum dia, teve a indecência de ver um homem nu? ?Sua garganta ficou tão fina e alongada quanto o pescoço dos patos do lago quando via Josephine aparecer com a arma.

?Sophia... querida... Talvez... eu... ?tentou dizer.

?Mary Moore Arany! Nem pense em dormir! Temos que falar! ?Gritou depois de levantar a camisola e subir as escadas num tropel.

?Graças a Deus... ?suspirou o médico retrocedendo muito lentamente os degraus que tinha subido acompanhando sua esposa.

Depois de olhar para o primeiro andar, voltou ao seu escritório. A escolha mais acertada para ele era descansar em um sofá duro, em vez de suportar a disputa que mãe e filha teriam durante as próximas horas...


***

?Se sente bem, milorde? ?Shals perguntou a Philip quando apareceu novamente no quarto.

?Já foram embora? ?Ele perguntou, fazendo um grande esforço para permanecer um pouco inclinado.

?Sim. O Sr. Randall e sua filha voltaram para casa. Como não tinham carruagem, tomei a liberdade de lhes oferecer uma de sua senhoria ?informou-o enquanto caminhava em sua direção.

?Nesse caso... me sinto horrível! ?Trovejou. Finalmente descansou a cabeça no travesseiro e olhou para o teto. ?Isso dói muito!

Shals, confuso com a mudança radical na saúde de seu mestre, pegou o frasco de comprimidos e retirou o que o médico recomendou.

?Pensei, ao vê-lo se inclinar e conversar com o médico, não estava se sentindo tão mal... ?disse aproximando as cápsulas para a boca de Philip. Ele os colocou na língua e lhe aproximou um copo de água.

?Se lembra da infecção que sofri durante minha primeira viagem às ilhas do Caribe? ?Estalou, depois de engolir o medicamento.

?Sim, milorde. Jamais o vi tão fraco e doente. Devo lhe confessar que pensei que não voltaria a Londres... vivo ?explicou consternado.

?Bem, isso é pior... ?suspirou, jogando de novo sua cabeça sobre o travesseiro.

?Quer que chame o Sr. Moore? Com certeza ele saberá...

?Não! Nem pense em fazê-lo! Não quero que ele se preocupe com nada. Certamente culparia sua filha pelo meu desconforto e não vou consentir que isso aconteça.

?Claro, milorde. Tem toda a razão. Depois de presenciar a repreensão contra a Srta. Moore, tenho muito medo de que ela assuma a responsabilidade por tudo e, se naquele momento acalmei o desejo de lhe acertar a cabeça com um dos castiçais que tem na lareira, não duvidarei da próxima vez. Como ele ousa repreendê-la assim? Aquela menina o salvou! ?Comentou com ira. ?Se o próprio pai não é capaz de apoiá-la, quem o fará? ?Acrescentou.

?O Sr. Moore é um fiel defensor de sua filha, junto com o Sr. Flatman. Mas acho que se assustou ?Philip refletiu. ?Talvez seja a primeira vez que ela agiu sem o seu consentimento.

?Estava em perigo, milorde. Ela agiu prontamente porque deduziu que poderia morrer ?informou. ?Depois de ver os seus vômitos, ela colocou as mãos sobre o seu corpo e foi apalpando lentamente a área em que foi operado.

Tocando? Até que Shals não fez referência a sua nudez, ele não reparou nela. Mary havia tocado seu corpo e ele estava inconsciente naquele momento? Isto era imperdoável! Desde quando não sentia as carícias de uma mulher? Ele teria ficado excitado ao notá-la? Com certeza que sim. Seu membro agia por conta própria, sem a necessidade de uma ordem mental. Teria deixado em um bom lugar? Como ela reagiu? De repente, um sorriso de orgulho cobriu seu rosto cansado. Até agora, nenhuma de suas amantes se queixara de sua aparência física; era mais, elas o exaltavam e o admiravam. Mary teria olhado para ele dessa maneira também? Que conclusão havia chegado? Poderia obter a resposta através de Shals, mas precisava ser cauteloso, se não quisesse na sua, os candelabros que queria jogar na cabeça do pai. Bem, por causa da emoção com que ele falou sobre ela, sua admiração era notável.

?Por que minha irmã a chamou? ?Mesmo sabendo a resposta, decidiu começar do início, para descobrir todos os detalhes.

?A Sra. Reform decidiu aparecer na casa dos Moore após seu último estado febril ?Shals começou a explicar, evitando comentar que ele estava gritando o nome da menina como se não houvesse outra mulher no mundo. ?Como já descobriu, o médico não estava em casa e sua filha apareceu. Devo esclarecer que, quando ela entrou e jogou seu casaco na minha cara, eu queria chutá-la daqui ?explicou. Seus lábios se estenderam para mostrar um sorriso travesso enquanto aceitava o convite de seu amo para se sentar na mesma poltrona onde ela passou a noite toda. ?Mas sua irmã impediu que o fizesse. Sem demora, a jovem subiu as escadas de três em três com a maleta na mão e entrou no quarto sem avisar. Foi então que ela encontrou três dos criados o agarrando. Eles estavam apenas tentando cumprir a ordem da Sra. Reform: dar-lhe um banho gelado. No entanto, foram eles que ficaram congelados quando a Srta. Moore gritou lhes chamando de bando de inúteis.

E naquele momento, Philip soltou uma risada que lhe causou mais mal do que diversão.

?Continua ?encorajou-o enquanto ele respirava fundo e colocava a mão esquerda em direção ao curativo.

?Obrigou-os a colocá-lo de novo sobre a cama. Logo se aproximou e começou a inspecioná-lo, tal como lhe disse. Quando ela anunciou à Sra. Reform que deveria operá-lo, sua irmã não deu crédito a suas palavras. Tentou convencê-la, mas, como entendi, é difícil para a Srta. Moore mudar de ideia sobre algo de que ela tem plena certeza.

?E? ?Giesler perguntou sorrindo com mais cuidado.

?E em menos de uma hora, você estava sobre uma mesa sob o olhar atento da jovem médica. Prometo que o tempo se tornou eterno, mesmo que a menina não tenha parado de falar sobre pesquisas que fizeram sobre a doença que sofria. Senti que ela estava narrando para que a Sra. Reform, que estava sentada na poltrona perto da lareira desde o momento em que o viu sangrar, relaxasse. Mas estávamos todos em tensão até que saiu de suas entranhas, o que o prejudicava. Então ela o costurou e desceu para a cozinha para o café da manhã acompanhada por sua irmã.

?Conseguiu comer alguma coisa depois de ver o que guardo dentro de mim? ?Retrucou estupefato pela frieza de Mary.

?Sim senhor. A Srta. Moore tomou duas xícaras de café, três torradas e um ovo escalfado, enquanto a Sra. Reform não conseguia nem terminar o chá que lhe serviram. ?Apontou com alguma diversão.

?Fascinante! ?Giesler exclamou depois de suspirar e encarar o teto.

?Pode acreditar! ?Shals respondeu se levantando da cadeira. O momento que ele esperava havia chegado e, como sabia que reação seu senhor teria, era melhor se afastar dele, porque, apesar de se sentir tão mal, quando ouvisse o que planejava dizer, conseguiria se levantar e estrangulá-lo. ?É uma lástima que não possamos falar sobre o que aconteceu aqui esta noite, milorde.

?Por quê? ?Ele perguntou, estreitando os olhos.

?Essa menina é um verdadeiro tesouro ?declarou aos pés da cama ?e é uma pena que ninguém saiba como é realmente.

?Por quê? ?Repetiu grosseiro.

?Por que... que homem não gostaria de se casar com uma mulher que o libertaria da morte sem hesitar por um segundo? Se os solteiros desta cidade conhecessem o dom daquela jovem, o Sr. Moore teria, às portas de sua casa, inúmeros pretendentes esperando impacientemente ?comentou com entusiasmo.

?Daqui não sairá nem uma palavra! ?Philip garantiu, se levantando apesar da dor que sentia. ?Dei minha palavra a seu pai e a cumprirei!

?Oh, milorde! Não me interprete mal ?Shals se apressou em responder. ?Juro que ninguém nesta casa comentará nada. Todos entenderam que suas posições estão em risco se não conseguirem manter a boca fechada ?acrescentou com aparente tensão.

?Perfeito... ?manifestou Giesler deitando-se de novo.

?Se a sua senhoria não requer dos meus serviços, irei ao...

?Mais uma coisa antes de sair ?interrompeu.

?Sim? ?Ele perguntou, provando o sabor da vitória.

?Quem, dentre todos os que trabalham para mim, pode fazer um trabalho que exige muita discrição?

?Todos, milorde. Ninguém desta casa...

?Bem, escolha um deles e que vigie a Srta. Moore enquanto eu não posso sair deste maldito quarto ?ordenou bruscamente.

?Pensa que pode estar em perigo? Que alguém pode machucá-la? Não me parece que precisa de proteção, senhor. Ela...

?Não me ouviu bem, Shals? Preciso chamar outro lacaio para executar minha ordem sem questionar? ?Ele insistiu, olhando-o ferozmente. ?Eu disse que alguém a vigie e me conte tudo o que ela faz.

?Com certeza, milorde! Agora mesmo me coloco a isso ?ele respondeu antes de fechar a porta.

Quando seu mestre não pôde olhar para ele, sorriu amplamente. Havia entendido a indireta? Ou melhor, devia defini-la como uma grande direta? O que quer que fosse, o plano começou melhor do que esperava...

«Um marido? Pretendentes?»

Philip cerrou os punhos e bateu no colchão. Maldita fosse a sua doença e a incapacidade de se levantar da cama! Quanto tempo o Sr. Moore havia dito que deveria permanecer deitado? Um mês? Bem, ele se recuperaria na metade do tempo! Depois de esperar que Bennett partisse para sua casa no campo com três das irmãs, depois de perguntar sobre ela e ficar impressionado por esse caráter grosseiro e brilhante intelecto, depois de vê-la com aquela camisola e de guardar um objeto seu, fazendo dele seu amuleto... Permitiria que outro homem aparecesse em sua vida? Não, absolutamente não! Se um homem ousasse aparecer na residência Moore lhe pedindo em casamento... lhe arrancaria a cabeça. Mary Moore Arany era sua Medusa, sua bruxa e lutaria para tê-la, mesmo que tivesse que rastejar como uma minhoca pelas ruas de Londres!


Capítulo VI


Não era justo! Por que ela deveria ficar de castigo por duas semanas por uma coisa tão absurda? Sua mãe esqueceu o prodígio que havia feito: salvar a vida de um homem, e só se concentrou no fato de que ela o vira nu. E como iria operá-lo? Com uma venda nos olhos?

Mary bufou pela décima quinta vez e sentou no parapeito da janela. Ela só estava trancada em sua casa por cinco dias e os primeiros sinais de uma loucura monumental apareceram: ela não havia trocado a camisola, nem escovado os cabelos nem uma vez, sorria sem motivo, andava pelo quarto procurando teias de aranha para soprá-las, passava o dedo pelas paredes, para sentir a aspereza delas. Como poderia suportar tanta crueldade por tanto tempo? Ela olhou para fora e bufou. Nos dias anteriores, não teve vontade de sair de casa, porque a chuva a ajudou a superar sua agonia. Mas naquela manhã, para sua desgraça, as nuvens se dissiparam do céu e o sol, apesar de frio, se mostrou em todo o seu esplendor, temperando levemente a cidade. Ela abraçou as pernas, cujos joelhos tocavam seu peito, e focou os olhos na cama de Anne. Senti falta dela. Ansiava as conversas e presença da mais velha de suas irmãs. Certamente que, se estivesse lá quando sua mãe apareceu no quarto com raiva, rapidamente aplacaria sua ira. No entanto, ela teve que enfrentar sozinha e, por mais que insistisse em que não havia reparado naquele corpo masculino, o olhar reprovador de sua mãe expressava que não acreditava nela.

E estava certa...

Como não admiraria um corpo assim? Se era praticamente perfeito! Como admitiu naquela noite, algo que seu cérebro lembrava como se tivessem passado mil anos, Lorde Giesler merecia ser estudado como um exemplar do Homo sapiens perfeito. Não tinha dúvida alguma de que, se tivesse vivido na pré-história, seria o melhor caçador. Caçador? Não! Ele seria o chefe de alguma tribo! Mas de uma em que haveria apenas mulheres. Sim, tinha certeza de que, antes de abrir os olhos, na chegada de um novo dia, ele teria à sua frente mais de dez quadris levantados, esperando serem usados para gerar novos filhos, novos chefes, novos homens com um físico parecido ao de seu procriador. E se tivesse vivido na era grega! Ah, certamente teria sido a musa de centenas de escultores! E os homens o perseguiram... e as mulheres!

Irritada, por compará-lo em diferentes épocas e em situações semelhantes, enrugou a testa e bufou. Era verdade que ele tinha um físico digno de uma divindade: seus braços, pernas e aquele peito duro e forte lhe davam essa condição. Mas... por que deveria notar tanto algo que para ela era trivial? Sempre pensou que, se encontrasse um homem que estivesse mais do que disposto a suportá-la, seria inteligente, um tanto tímido e muito sensato. Lorde Giesler não era nada disso! Tímido? Hah! O próprio canalha fez um grande esforço, comprometendo seu bom trabalho, para beijá-la! Havia sensatez nesse ato? Não, claro que não! Isso já lhe mostrava que o homem não era nada racional. Se tivesse sido, não a teria beijado nem teria feito um sacrifício desnecessário para obter, como presente, um bom tapa. Essa conclusão a levou a outra característica que não possuía: inteligência. Que pessoa inteligente faz um plano tão absurdo para se aproximar dela e beijá-la?

Mary levou a ponta dos dedos da mão direita para a boca e sorriu. Pensou, em algum momento de sua vida, que o cavalheiro que a beijasse pela primeira vez, receberia em troca o impacto de sua mão? Não. Mas também não achava que alguém se atreveria a fazê-lo. Quem iria desejar uma mulher que pudesse matar com um olhar e com algum outro remédio que carregasse em sua maleta? No entanto, mesmo que não quisesse admitir, gostava de se sentir... fascinantemente inesquecível. Foi isso que lorde Giesler lhe confessou antes que pudesse estar consciente do que estava acontecendo ao seu redor. Talvez não tenha antecipado seu plano selvagem, porque ainda estava perturbada ao encontrar um de seus rolos metálicos armazenados como se fosse um tesouro. Se seu pai não tivesse entrado no quarto naquele momento, ela o teria pegado e o teria jogado de novo, para que não esquecesse quão fascinantemente doloroso poderia ser um impacto semelhante.

Irritada, não apenas pelo castigo, mas por se concentrar novamente em lorde Giesler, ela pulou no chão e se afastando da janela. Não deveria eliminar tudo o que sua mente havia cultivado desde anos atrás para preencher essas lacunas mentais com bobagens sobre os homens. Ela havia determinado, desde que tinha uso da razão, que não aceitaria se casar com um, pois todo seu mundo se tornaria trágico. Que marido permitiria que ela fosse às reuniões médicas? Que marido íntegro aceitaria que sua esposa abandonasse a cama para acompanhar seu pai a uma urgência médica? E, que homem suportaria que sua esposa o substituísse por um bom livro? Nenhum! Não nasceu homem capaz de lhe oferecer a vida que esperava! Por causa disso, não pensava, nem procurava um cônjuge. A decepção destruiria as duas vidas, os problemas apareceriam: discussões, raiva, gritos, mentiras, infidelidade, tristezas, decepção e, após anos e anos sofrendo uma agonia infinita, a morte chegaria. A dele, é claro, porque ela não planejava morrer até os noventa anos, pelo menos...

Nervosa, pela agonia dessa prisão obrigatória, ela começou a andar pelo quarto até fixar o olhar na poltrona ao pé da cama. Como lhe tinha ocorrido uma ideia tão descabelada? Não achou que era suficiente castigá-la sem sair de casa e não permitir que ela lesse um único livro que também lhe impunha uma tarefa tão absurda? Jamais tocaria aquele bastidor, nem passaria o tempo bordando! Mas... como pensou que ela costuraria? Em que momento da sua vida pediu que lhe dessem linhas e agulhas? Colocou as mãos nas têmporas e apertou-as, como se desse modo desaparecesse uma dor de cabeça inexistente.

Era tudo culpa dele! Desde que lorde Giesler apareceu em sua vida, esta havia se transformado. E agora, embora não soubesse nada sobre seu paciente há vários dias, porque sua mãe avisou seu pai que, se ele passasse informações, iria dormir para sempre em seu escritório, continuava incomodando-a.

Estava prestes a pegar o pano comprado para bordar, o que poderia servir de colcha para a cama e fazê-la em farrapos quando ouviu barulho do lado de fora. Madeleine não teria pensado em sair, certo? Como superaria a má sorte de que, embora ela precisasse de sua presença, para que sua loucura não aumentasse, a irmã mais nova de suas irmãs decidisse enfrentar sua timidez saindo para a rua. Desesperada, correu para a janela com tanta pressa que sua testa alcançou o vidro antes que o resto do corpo. Seus lábios desenharam um sorriso enorme, o primeiro que mostrava desde que sua mãe fechou a porta antes de lhe gritar que queimaria seus livros se a desobedecesse. Viria por ela? Havia decidido descobrir o que tinha acontecido para não acompanhar seu pai até a casa do seu irmão? Nesse caso, agradecia a... seja lá o que todos acreditassem, que se apresentasse. Não lhe disse que havia se tornado sua primeira admiradora e que os Giesler a protegeriam? Bem, estava com sérios problemas e precisava dessa proteção... imediatamente!

Sem esperar para saber por que ela apareceu em sua casa, foi ao armário e procurou um de seus vestidos. Embora Shira logo aparecesse, porque sua mãe a obrigaria a chamá-la, para que a Sra. Reform não descobrisse o que havia feito com a filha, ela não desejava demorar nem um minuto.


***

Continuava sem acreditar no que estava fazendo...

Quando um servo de Giesler apareceu em sua casa, às oito horas da manhã, avisando-a de que deveria aparecer na casa de seu irmão o mais rápido possível, quase morreu de um ataque cardíaco. Pensou que tinha piorado, e isso que na tarde anterior confirmou que seu estado de saúde havia melhorado. Preocupada, ela começou a dar ordens a todos os empregados da casa, porque quando ela anunciou ao marido que deveria ficar cuidando dos filhos, ele lhe lembrou que tinha uma reunião importante e que não podia atrasar. Sem Trevor... Teve que procurar outras alternativas e preparar sua casa em uma hora! E para que? Para aparecer no quarto de Philip e descobrir que ele não estava doente, mas que teve uma ideia maluca e que precisava de sua ajuda.

?Preciso que vá vê-la ?disse-lhe assim que entrou.

?A quem? ?Ela perguntou erguendo as sobrancelhas. Se lhe pedisse que falasse com alguma de suas amantes, arrancaria seus olhos naquele momento.

?Mary.

Bem, isso a relaxou muito, tanto que ela caminhou lentamente pelo quarto para se sentar na beira da cama e mostrar um leve sorriso.

?Por quê? ?Insistiu em descobrir.

?Sei que algo aconteceu com ela. O Sr. Moore se recusa a falar sobre ela toda vez que toco no assunto e fico surpreso que, depois do que fez, não esteja interessada em descobrir como estou. ?Philip admitiu com angústia.

?Talvez, apenas talvez, não queira saber nada sobre você. Não pensou nessa possibilidade? ?Valeria afirmou com mordacidade.

Estava brava com o grande ego de seu irmão, odiava que fosse tão vaidoso. Era verdade que, para mulheres solteiras, casadas, viúvas e até idosas, ele era descrito como um homem encantador, elegante e sedutor, e com um porte digno de um deus, mas isso carecia de importância. No entanto, por causa disso, seu irmão não pensava em procurar uma esposa digna de um barão e apenas desejava estar nos braços de amantes desavergonhadas. Valeria estava muito preocupada com seu futuro e essa preocupação aumentou depois de ler a última carta que o advogado de seu avô enviou. Ele informou que sua saúde piorou e pediu que ela chamasse a sabedoria de seu irmão. A recusa de Philip estava começando a ser perigosa. Se ele não reivindicasse o título de família, a alma de seu pai não descansaria em paz...

?Já que não posso fazer outra coisa durante o dia exceto pensar, também ponderei essa ideia ?declarou zangado. ?Mas sei que essa não é a resposta. Uma mulher como ela, tão apaixonada, não se pode esquecer, da noite para o dia, a evolução da pessoa a quem salvou da morte.

?Talvez o pai a mantenha informada e ele precise permanecer em silêncio ?Valeria ofereceu.

Embora temesse muito que essa não fosse a resposta certa também. O pouco que sabia de Mary se assemelhava a conclusão de Philip: era apaixonada por seu trabalho e duvidava muito que desconsiderasse seu estado de saúde facilmente, apesar do fato de que, por causa do rosto que colocou quando lhe anunciou na carruagem seu nome, mostrou mais ódio do que misericórdia.

?Há cinco dias que não sai de casa ?Philip anunciou.

?Como sabe? ?Valeria perguntou, arregalando os olhos.

?Encarreguei a tarefa de protegê-la a um de meus servos ?ele declarou, evitando expressar em seu tom mais ansiedade do que deveria mostrar à irmã. Se descobrisse que tinha algum interesse nela, começaria a planejar um casamento, forçaria-o a recuperar a baronia, iria enviá-lo para a Alemanha e, quando voltasse, se tornaria um homem que não desejava ser.

?Proteger ou espioná-la? ?O sorriso malicioso que seus lábios esboçaram, fez Philip entender que todos os seus esforços para não revelar um interesse especial por Mary eram um fracasso.

?Protegê-la ?resmungou. ?Tenho que velar por sua honra. Depois do que fez por mim, não vejo justo que corra perigo...

?Que perigo poderia ter? ?O interrompeu, se levantando da cama. ?Alguém desejaria matá-la por salvar sua vida? Se essa cidade descobrisse o que fez, seria valorizada tal como merece e eles parariam de vê-la como um pária. Sabe quantos homens estariam interessados nela? ?Insistiu com ele. ?Possivelmente, você não está fazendo nenhum bem em esconder o segredo. Talvez deveria...

?Não! ?Rosnou. Em seguida colocou a mão no curativo e apertou para aliviar a dor. ?Não é isso que quero!

?Bem... Diga-me por que me fez sair de casa a essa hora e ter que fazer o trabalho de um dia inteiro em uma hora ?Valeria murmurou.

?Quero que descubra o que acontece com ela. Preciso saber por que não saiu de casa durante esses dias.

?Não pensou que a chuva tivesse algo a ver? ?Soltou, um pouco brava.

?Mary gosta dos dias chuvosos e nem um dilúvio a impediria de sair de casa para comprar os folhetos científicos que coleciona.

?E você sabe tudo isso por que...

?Porque Logan me pediu ?declarou.

?Bennett está interessado nela? ?A vida poderia dar-lhe um chute mais forte em seu traseiro? Se seu melhor amigo tivesse alguma intenção na mulher, seu irmão não intercederia, mesmo que estivesse apaixonado. Mas... Philip poderia se apaixonar?

?Não ?respondeu com um sorriso. A irmã dele tinha que mascarar melhor tudo o que pensava. Ele ainda não entendia como tinha sido tão boa em jogar cartas com Trevor, quando não era capaz de dissimular o que passava em sua cabeça. Não havia dúvida de que seu cunhado era capaz de fazer qualquer coisa para fazê-la feliz. ?Não, Logan está interessado na primogênita das Moore. Precisava descobrir como poderia se aproximar dela sem a interrupção das outras, então me pediu para descobrir tudo o que podia sobre as Moore.

?E era de vital importância que descobrisse seus gostos... ?Valeria apontou ironicamente. Philip assentiu. ?Então, como choveu, o que ela ama, e seu lacaio lhe disse que ela não saiu de casa, você concluiu que algo sério aconteceu com ela.

?Mary não pode sobreviver sem esses artigos médicos. Somente uma doença, que a obrigue a permanecer em sua casa, pode impedi-la de comprá-los. ?Garantiu preocupado.

?Quer que me apresente na residência Moore e descubra o que aconteceu? ?Philip assentiu. ?A troco de que?

?Vai me chantagear, Valeria? ?Retrucou, sem saber muito bem se estava com raiva ou orgulhoso do sangue cigano materno que corria por suas veias. ?É capaz de impor condições a um irmão que te ama e não pode se defender sozinho?

?Se Martin me pedisse, faria sem pensar um só segundo. Mas você ?ela apontou um dedo ?não é ele. Então, sim, vou chantagear você, é o único idioma que você entende.

?O que quer? ?Ele disse depois de subir o lençol até o pescoço.

Medo, sua irmã lhe dava medo, tanto que ele usou o lençol como escudo. Se não errasse em seu palpite, levaria pouco tempo para lembrá-lo de que deveria...

?Na semana passada, recebi uma carta do advogado do nosso avô. ?Philip rosnou quando a ouviu. ?Ele queria nos avisar sobre sua saúde. Aparentemente, sua doença piora e não demorará muito...

?Não! ?Gritou. ?Esqueça esse absurdo, Valeria! Já te disse mil vezes! Não quero!

?Tem razão ?ela disse cruzando os braços ?você me disse não mil, mas um milhão, mas deve admitir que a situação mudou.

?Por isto? ?Apontou com o queixo para a cintura. ?Isso não mudou nada. Minha cabeça ainda está saudável...

?Se tem algum interesse em Mary, deveria considerar a alternativa de se tornar um barão.

Ela nunca havia chamado sua atenção para o assunto, mas incluir ao nome da mulher na frase, ela o fez.

?Não tenho nenhuma intenção de torná-la mi...

?Então, deixe-me falar sobre o que aconteceu aqui. Quando todo mundo souber que realizou um milagre, porque o rumor se espalhará como pólvora, ninguém duvidará de sua grande habilidade. Será convidada para uma infinidade de festas, terá, antes de descer o último degrau de qualquer salão, o cartão cheio de danças e, talvez em um deles, encontre o homem adequado para se casar com...

?Eu disse que não! Maldita seja, Valeria! Não escuta quando falo com você?

Mas... por que diabos todos estavam pensando em encontrar um marido para Mary? Queriam que se levantasse antes de se recuperar? Ou estavam tirando sarro dele? Mary não estaria com ninguém, ela não dançaria com ninguém e ninguém, absolutamente ninguém, descobriria que adorava sentir as gotas de chuva em seu rosto! Lembrando daquele dia, quando pensava que estava sozinha, que ninguém poderia descobri-la, se estremeceu. Nunca na vida viu um sorriso de um anjo até que Mary, sem perceber sua presença, virou o rosto para ele e sorriu.

?Está me ouvindo? ?Replicou. ?Olha ?começou a dizer se aproximando novamente dele ?se pensou em torná-la uma de suas muitas amantes, acredite-me que não fará isso. Essa moça não consentirá uma humilhação semelhante. Lutou com unhas e dentes contra todos os infortúnios que lhe foram apresentados para aceitar uma coisa tão vil. Por acaso não se informou o que fazem os cavaleiros quando a veem, ou só tem perguntado sobre seus gostos?

?Posso garantir que sei muito bem do que falam. ?E Valeria não duvidou por como sua mandíbula endureceu e como seus olhos, azuis com o céu, ficaram escuros, como uma noite sem estrelas. ?Assim como também tenho que confessar que mais de um imbecil trocará de calçada quando a veja, se quiser manter seus bonitos dentes dentro da boca ?garantiu irritado.

?Você gosta! Tem interesse nela? ?Embora apenas parecesse uma pergunta, não era. ?Então, pense em uma coisa...

?Qual? ?Ele perguntou, erguendo as sobrancelhas loiras.

?O que você vai lhe oferecer Philip, que os outros não podem dar?

?Respeito e admiração ?respondeu sem hesitar.

?Oh, bem! ?Exclamou revirando os olhos. ?E pensa que isso será suficiente para ela?

?Sim ?garantiu com firmeza.

?Pois está equivocado! ?Gritou. ?Uma mulher quer ter ao seu lado um marido compreensivo, certo, mas também um lutador. Precisará de um homem que a apoie e que não lhe coloque obstáculos em seu caminho. Sabe qual é o caminho de Mary Moore?

«Mary Moore Arany», pensou Giesler.

?Qual, de acordo com o seu bom julgamento? ?Murmurou Philip.

?Tornar-se alguém que a sociedade não permite ?berrou. ?Não tem olhos em seu rosto, irmão? Realmente pensa que uma mulher que é capaz de deduzir a doença de uma pessoa apenas tocando nela e que tem a coragem de se envolver em uma operação, como ela fez com você, se conformará com um marido que lhe oferecerá respeito e admiração? Já tem um pai que o faz! Mary precisa de um marido para ajudá-la a alcançar o que ela sozinha não pode e... você conhece o paradoxo de tudo isso? Que, nesta maldita cidade, apenas um nobre pode pavimentar esse futuro. Conhece algum aristocrata que pode lutar nessa batalha social ao seu lado?

Silêncio... Por mais de um minuto, os dois irmãos permaneceram em silêncio. Valeria, entendendo que não havia conseguido nada, nem mesmo uma resposta negativa, se virou para a porta e a abriu de uma vez.

?Verá o que lhe acontece ?Philip pediu-lhe olhando para o teto ?e deixe-me pensar.

?Precisará de muito tempo para fazê-lo, querido irmão, pois até que não tenha adoecido, não foi capaz de fazê-lo.

?Ainda tenho dez dias para sair daqui. Quando o fizer, direi o que decidi ?ele garantiu.

Valeria não respondeu. Fechou a porta atrás dela com um forte estrondo. Não foi muito, mas foi mais do que suficiente. Se Philip tinha interesse em Mary, que disso não havia dúvida sobre a maneira de chamá-la quando a febre se apoderou dele, pensaria em como alcançá-la, porque, como lhe disse, ela não era uma de suas amantes que suspirava ao ver um corpo masculino perfeito.


?Bom dia, o que deseja? ?A voz de uma mulher, que não reconheceu, a fez voltar ao presente.

?Bom dia, sou a Sra. Reform. A Srta. Mary Moore pode me receber? ?Perguntou, oferecendo-lhe um sorriso terno e encantador.

?A Srta. ainda não saiu do seu quarto ?comentou Shira sem especificar em excesso. ?Mas posso anunciar à Sra. Moore que deseja visitá-la.

?Se fizer a gentileza ?comentou, entrando por fim no hall. Ofereceu-lhe o casaco e a empregada o pegou.

Depois que a mulher deixou o casaco no guarda-roupa à direita, ela caminhou para uma sala à esquerda. Enquanto informava a esposa do médico sobre sua presença, Valeria suspirou. Durante o trajeto, pensara na mudança de atitude de Philip. Repassou todos os gestos que seu rosto mostrava ao falar sobre Mary, até avaliou o tom de voz que ele usou nas palavras. Bem, uma coisa era certa; Mary era especial para ele e não suportava a ideia de que ela estivesse com outro homem. Agora tinha que se concentrar em aproximá-los sem levantar suspeitas e procurar um motivo eloquente pelo qual aparecera às onze horas na residência dos Moore.


Capítulo VII


Enquanto esperava a criada retornar, Valeria olhou para o primeiro andar. Se Mary permanecia em sua casa e não estava doente, pode observar, através de alguma janela, a chegada de sua carruagem ou até mesmo quando desceu dela. Se queria vê-la, logo apareceria no topo da escada, como na noite em que a conheceu. No entanto, essa alternativa diminuiu com o passar do tempo... Philip estava certo? Porque havia a possibilidade de que não estivesse em casa. Talvez tivesse que comparecer em outra emergência médica e, por isso, não havia vestígios da jovem. Mas essa ideia desapareceu rapidamente, porque ao entrar no jardim dos Moore, encontrou o servo de seu irmão escondido e sem tirar os olhos da entrada, tal como havia recebido a ordem. Então... o que tinha acontecido? Mary não teria decidido fugir dos Giesler, certo? Não, isso também não parecia certo. Era verdade que elas haviam discutido quando decidiu operá-lo, mas após sua magnífica proeza, as duas conversaram como se tivesse se conhecido há uma vida. E com relação ao irmão... Desejava manter distância? Mary, na realidade, era uma covarde? Não. Não era. Se sua intuição feminina não lhe enganava, a filha dos Moore não se assustaria facilmente. Se ela própria se envolveu numa intervenção deste tipo, seria capaz de lutar contra o mundo, se fosse necessário. Tinha que haver outra razão pela qual Mary não saía de casa, uma que, por incrível que pudesse parecer, lhe causava medo.

Valeria parou de olhar para o fim da escada e começou a andar inquieta pelo hall. Já não lhe importava mais a desculpa que lhe ofereceria à Sra. Moore ao aparecer em sua casa tão cedo, mas a causa pela qual Mary não aparecia. Apesar de tudo, a opção de estar em sério perigo começou a tomar força. Como seu irmão agiria se descobrisse que a jovem estava sob alguma ameaça? Pularia da cama para fazê-la desaparecer, mesmo sabendo que colocaria sua vida em risco! Disso não lhe cabia a menor dúvida...

Assim que focou o olhar na porta da entrada, ponderando todas as alternativas possíveis para esse desaparecimento, ouviu o som fraco de sapatos enquanto pisavam no chão. Se virou rapidamente, esperançosa de que fosse Mary, mas não havia ninguém lá. Resignada, ela respirou fundo para se acalmar e...

?Valeria... Olá! Estou aqui em cima! ?Mary sussurrou se escondendo atrás do parapeito de madeira.

?Mary! ?Exclamou eufórica. ?O que está fazendo aí? Por que não desce? Vim falar com você e...

?Não levante a voz ?lhe disse, acompanhando a sua ordem um leve movimento de suas mãos. ?Não pode saber que estou aqui. Se me descobrire, queimará todos os meus livros ?ela adicionou aterrorizada.

?Quem? ?Retrucou arregalando os olhos. Subiu um degrau, para poder vê-la melhor, mas a recusa de Mary a fez retroceder.

?Minha mãe ?bufou. ?Estou de castigo. ?E a vergonha que sentiu naquele momento em confessar o que estava acontecendo fez suas bochechas corarem.

?De castigo? O que você fez? ?Valeria insistiu em saber.

?Não posso falar, Shira aparecerá em breve e não deve me descobrir ?declarou sem afastar o olhar da porta por onde a empregada tinha entrado. ?Então, veio me ver?

?Sim. Meu irmão me pediu para fazê-lo. Ele sabia, de alguma forma, que você não deixou sua casa desde que saiu da dele e estava preocupado.

?Que atencioso da sua parte! ?Exclamou, revirando os olhos.

Faltava apenas, para que seu castigo aumentasse mil anos mais, que lorde Giesler aparecesse em sua casa perguntando por que sua filha continuava trancada. Sua mãe sofreria uma repentina apoplexia!

?Não pode descer? Preciso falar com você, mas jamais imaginei que deveria fazê-lo desta forma ?disse perplexa. Não tinha irmãs, nem primas, mas filhas e elas agiam da mesma maneira quando alguém era castigada.

Estava prestes a responder quando Shira saiu. Mary amaldiçoou baixinho e franziu a testa. Não seria capaz de executar seu plano? Pela primeira vez havia se arrumado decentemente! Embora essa leve raiva tenha desaparecido quando notou que sua governanta voltou para a sala.

?Minha mãe lhe dará uma desculpa para impedir que desça. Você insista que precisa me ver ?começou a dizer enquanto se levantava e saia do esconderijo. ?Quando eu aparecer confirme tudo o que digo ?acrescentou antes de desaparecer tão rapidamente quanto um fantasma deveria.

Valeria desviou o olhar do topo da escada e suspirou. Por que eles a castigaram? Que tipo de trapaça teria feito para enfurecer a sua mãe? E... como ela iria se intrometer na ordem de uma mãe? Não era sensato! O que aconteceria no futuro quando ela estivesse no lugar da Sra. Moore? Deixaria que uma de suas filhas se livrasse de um castigo quando aparecesse alguma amiga procurando-a? E por que Philip e Mary a colocaram em uma situação tão embaraçosa? Só esperava que, depois de tudo o que estava fazendo, seu irmão aceitasse a baronia ou... o mataria!

?Sra. Reform, se fizer a gentileza de me acompanhar, a Sra. Moore ficará encantada em recebê-la ?Shira a informou.

Sem apagar o sorriso gentil do rosto, Valeria se aproximou da porta, pensando em Mary, Philip, na baronia e os castigos de seus filhos. Ela balançou a cabeça levemente, afastando tudo o que sua mente lhe oferecia. Precisava se concentrar no motivo pelo qual tinha aparecido e, logicamente, não podia confessar a verdade. Outro ponto a discutir com Philip, por que... como poderia pedir aos filhos para não mentirem quando ela foi a primeira a fazê-lo? Irritada, tendo que pular todos os princípios morais que ensinou aos pequenos, ficou em frente à entrada e observou a Sra. Moore. Ela permanecia no centro da sala, usando um lindo vestido esmeralda. Seus cabelos, recolhido em um coque esticado, e aqueles olhos claros a perseguindo sem piscar, indicavam que sua presença não era muito desejada.

?Obrigado por me receber, Sra. Moore ?comentou Valeria apertando as mãos entre as suas.

?Obrigado por ter vindo, Sra. Reform ?disse educadamente. Uma vez que se separaram, Sophia apontou para um assento. ?Shira me disse que quer conversar com Mary, mas ela ainda não desceu para o café da manhã. Imagino que esteve a noite toda lendo algum livro sobre medicina ?tagarelou, enquanto a convidada se sentava. ?Se desejar, enquanto a esperamos, podemos tomar um chá.

?Se não for muito incomodo ?considerou ela. Embora soubesse que não chegaria a tomá-lo. A ansiedade que Mary mostrou indicou-lhe que tinha tramado algo em que não incluía uma conversa amável com sua mãe e um chá.

?Nenhum ?Sophia disse sentando-se ao lado de Valeria. ?Shira, por favor, chame...

E então, como se tivesse surgido uma repentina nevasca, Shira se afastou com rapidez da porta, deixando passagem a uma jovem que corria como um galgo.

?Valeria! ?Mary exclamou, entrando na sala com uma urgência incomum. ?Que alegria vê-la novamente!

De onde veio esse rosnado? A família Moore tinha um cachorro escondido na sala? Porque esse barulho costumava ser emitido por Ricardo, o animal de estimação da família, quando Fiona puxava suas longas orelhas e Charles queria usá-lo de cavalo.

?Bom dia, Mary ?ela disse se levantando rapidamente. Como fez com a Sra. Moore, apertou suas mãos com as de sua amiga e aceitou com prazer os dois beijos que a jovem lhe ofereceu nas bochechas. ?Aqui estou ?acrescentou olhando para ela com os olhos bem abertos, esperando descobrir o que havia tramado.

?Bem, você veio no melhor momento ?Comentou com um leve sorriso. Então observou sua mãe, que franzia o cenho e olhava para ela com advertência, mas não se assustou. Ela preferia ouvir milhares de palavrões e ordens há suportar outro dia em seu quarto... costurando? Nem morta! ?Bom dia, mãe ?disse suavemente. Se aproximou dela e lhe deu dois beijos mantendo uma distância segura. Não colocaria a mão em seu braço se arriscando a ser beliscada até que o sangue corresse por aquela área de sua pele.

?Mary... ?Sophia respondeu com aparente tranquilidade. ?Estava oferecendo um chá à nossa convidada. Como ainda não desceu para o café da manhã, pensei que ainda estava dormindo.

?Que nada! Hoje eu acordei muito cedo. Mas nossa querida Shira me serviu café no quarto quando eu a informei que estava acordada ?declarou com certo sufoco, como se realmente sentisse vergonha da insinuação de sua mãe de tratá-la como preguiçosa.

?Já vejo... ?Sophia apontou para o vestido e o penteado de Mary. Ela não tinha passado os dias em uma camisola e despenteada? Que coincidência oportuna! A Sra. Reform apareceu e usava um vestido para passear...

?Ela realmente lhe ofereceu um chá? ?Perguntou, levando a mão na boca, como se a palavra chá fosse horrenda. Então ela olhou para Valeria, que parecia, além de perplexa, indisposta, já que as bochechas dela estavam pálidas. ?Não lhe disse que pode pôr em perigo a sua saúde se beber infusões?

?Em perigo? ?As duas perguntaram ao mesmo tempo.

?Sim. Outro dia me confessou que não tolera bem as infusões, que lhe produzem flatulências severas ?manifestou adotando a atitude própria de um médico.

?Não queria demonstrar desconsideração pela oferta...

E Valeria voltou a recordar seus filhos, a regra de não mentir e a maldita baronia de Philip, acrescentando a esses pensamentos a inoportuna indisposição de... flatulências? Não poderia explicar algo menos embaraçoso?

?Também temos café ?lhe ofereceu Sophia que, ao ver a cara de espanto da Sra. Reform, não pôde concretizar se era devido ao perigo que esteve a ponto de sofrer ou pela invenção de sua filha. Que ficaria de castigo mais duas semanas se a enganasse.

?Mas... não veio me levar para passear? ?Perguntou com um pequeno soluço. Diante do barulho que ofereceu, sua mãe virou-se para ela para lhe falar: ?Na outra noite, depois da minha horrível decisão de falar com lorde Giesler ?declarou com fingido pesar ?Valeria insistiu em me levar até o Gunter’s e tomar um sorvete de... amoras?

?De limão ?Valeria a corrigiu rapidamente.

Bem, a acidez do sorvete poderia se parecer com o que o estômago estava emitindo naquele momento. O que diabos estava fazendo? Por que agia dessa maneira? Ela teria enlouquecido durante o confinamento?

?De limão ?Mary repetiu esboçando um grande sorriso. ?Imagino que não tenha vindo antes por causa da maldita chuva, estou certa? ?Ela perguntou olhando para sua salvadora com olhos suplicantes.

?Se parece bom para você ?começou a dizer à Sra. Moore, que abria a boca e a fechava como se fosse um peixe fora da água ?adoraria cumprir a promessa ?acrescentou, colocando as mãos atrás das costas para poder cruzar os dedos. Ela pagaria por isso! Deus sabia que Mary pagaria a mentira, o constrangimento e a horrível tristeza que ela estava sofrendo! E, infelizmente para a jovem, ela sabia muito bem como pagaria sua dívida. Ah, se pagaria! ?Além disso, também preparei um pequeno almoço em minha casa. Se bem me lembro ?expôs, pegando uma das mãos de Mary em uma atitude carinhosa e afetuosa ?também me prometeu que visitaria minha casa e faria um exame médico completo em meus seis filhos.

?Seis? ?Mary estalou abrindo tanto seus olhos que eles podiam saltar das órbitas.

?Sim ?afirmou a mãe orgulhosa. ?Candie, Charles, Eleonora, Samantha, Fiona e o pequeno Trevor. Todos, para meu pesar, se contagiaram com um resfriado terrível e desejo que sua filha me garanta que não fiquem com sequelas ?acrescentou, esboçando um sorriso de orelha a orelha.

?Então... quer que leve minha maleta? ?Perguntou perplexa.

?Sim, acho que é o mais conveniente... ?Valeria sugeriu.

Agora sim que estava em apuros. Todo o seu plano tinha sido desperdiçado! Filhos? Seis? E teria que verificá-los um a um? Não lhe disse que eram uns trastes, que se pareciam com o pai? Como lidaria com uma tarde cercada por demônios? Só queria comprar suas revistas e tomar um pouco de ar fresco!

Sophia, que até agora permaneceu calada e duvidando da credibilidade das duas, finalmente deu um grande sorriso. O brilho que ela mostrava em seus olhos expressava tanta diversão, que Mary queria sentar no chão e começar a chorar. Seria um bom castigo, o fato de ter que atender seis filhos, e tinha merecido, por usar a pobre mulher como tábua de salvação. No entanto, não podia dar o braço a torcer tão facilmente. Devia mostrar um pouco de... perseverança?

?Se lhe prometeu que visitaria essas crianças, me parece bom manter sua palavra. Mas tenho que lembrá-la o estado em que está. Se voltar com as mãos cheias de livros, também cumprirei a minha ?afirmou, com aquele tom firme que fez os cabelos de sua filha se arrepiarem. ?Sra. Reform, confio no seu bom senso, como mãe, entenderá que uma filha deve obedecer sem reclamar; depois do sofrimento que padecemos no parto, das noites sem dormir, todas as preocupações que nossas mentes nos oferecem para canalizá-las de um jeito bom, uma filha amada e respeitada deve ser fiel aos padrões da família.

?Claro, Sra. Moore. Entendo. Como lhe disse na noite passada, dedico todo o meu bom trabalho para que meus filhos, tão insuportáveis quanto o pai, cumpram com suas obrigações e ordens.

?Sendo assim... ?olhou para Mary de cima a baixo. Ela ainda não explicou como se vestira tão rápido. Não podia alegar uma desculpa para mandá-la para seu quarto, nem atrasar a saída. Tinha que admitir que era muito esperta. Sua segunda filha, para seu arrependimento, herdara a inteligência de seu marido e a astúcia característica de sua família. Gritava alto e se orgulhava de que nem uma gota do sangue Arany corria em suas veias? Ahh! Mary estava muito errada! Faltava apenas uma coisa para sua transformação em cigana ser completa... Uma que, se não estava errada, era a razão pela qual estava de castigo. ?Comporte-se, Mary. E não faça a Sra. Reform se arrepender de ter liberado você de seu castigo ?finalmente expos.

?Obrigada mãe! ?Exclamou se lançando para ela para lhe dar um forte abraço. ?Garanto-lhe que me comportarei adequadamente!

?Não faça promessas que não pode cumprir ?Sophia a repreendeu, tocando lentamente suas costas.

?Vou cumpri-las ?garantiu com firmeza. ?Vou cumpri-las todas ?confirmou.

?Sendo sim, você pode sair. Certamente os pequeninos estarão ansiosos para ver sua mãe novamente ?Sophia disse estendendo as mãos para Valeria.

?Prometo que sua filha terá o remédio que merece ?lhe sussurrou quando lhe deu dois beijos na bochecha.

?Confio nisso ?a Sra. Moore respondeu da mesma maneira.

?Vamos? ?Interrompeu Mary ansiosamente.

?Sim ?Valeria respondeu caminhando em sua direção.

Depois que Shira lhes ofereceu o casaco e a maleta, que sua mãe guardara em algum lugar da casa, as duas desceram as escadas com os braços entrelaçados, mostrando a imagem de amigas que se conheciam desde a infância. Mary, ao sair de casa, fechou os olhos e deixou o sol tocar suas bochechas. Havia ansiado tanto por essa sensação de bem-estar! Mas finalmente conseguia respirar ar puro, desfrutar de um dia tranquilo e... comprar suas revistas!

?Bem ?Valeria começou a dizer quando as duas se acomodaram na carruagem ?pode me dizer por que te castigou?

?Por uma bobagem... ?Mary expressou enquanto dava um pequeno pontapé na maleta.

?Qual? ?Insistiu a Sra. Reform, a quem não passou despercebido o estupor de sua nova melhor amiga.

?Não lhe pareceu correto que operasse o seu irmão nu... ?declarou, encolhendo os ombros, como se ela não tivesse sido prejudicada por tê-lo visto daquela forma.

?E como pretendia que fizesse isso? ?Soltou Valeria com uma mistura de confusão e surpresa.

?Bem, segundo ela, vestido ou com os olhos vendados. ?Depois de suas palavras, soltou uma grande risada. Quando se acalmou, observou de relance Valeria e advertiu que seu rosto não mostrava a mesma diversão que ela. Moveu-se desconfortável no assento, apaziguou o riso e acrescentou: ?realmente quer que eu veja seus filhos?

?Deseja comprar as revistas que comentou? ?Respondeu, olhando para ela sem piscar.

?Claro! ?Exclamou rapidamente. ?Preciso delas urgentemente!

?Pois as terá. Mas antes faremos uma parada.

Encostou a cabeça na almofada, colocou as mãos nas têmporas e as apertou. Que Deus tivesse misericórdia, que ajudasse seus filhos e não os castigasse pelo que ela faria. Mas, depois de tudo o que havia sofrido, teria que fazê-lo ou sofreria a síncope que pobre Sra. Moore aguentou ao descobrir que sua filha tinha visto o corpo nu do seu irmão.

?Que parada? Para onde vamos? Por que esfrega a cabeça? Dói? Sofre com assiduidade de enxaquecas?

?Em primeiro lugar, não sofro de enxaqueca, mas em breve sofrerei... ?comentou, com um halo de mistério.

?Por quê? ?Mary estalou confusa.

?Porque vou ouvir você gritar ?disse fechando os olhos e se preparando para o pior.

?Por quê? ?Repetiu a moça.

?Porque primeiro vamos visitar meu irmão...

Nesse momento, Mary começou a soltar mil palavrões, a amaldiçoar o destino e a caluniar sua má sorte, fazendo Valeria temer a enxaqueca.


Capítulo VIII


Amiga?! Ninguém podia considerar amiga uma pessoa que lhe estende uma armadilha! Porque, definitivamente, foi isso o que a Sra. Reform fez.

Depois de gritar tudo o que lhe passou pela cabeça, Mary cruzou os braços sobre o peito e rosnou. Desde que Valeria deixou claro qual era seu objetivo, toda a felicidade que ela sentiu quando foi libertada da prisão de sua casa, desapareceu. Não havia mais sorrisos em seu rosto, depois de gritar, seus lábios permaneceram fechados, manteve o olhar para fora, bufou sessenta vezes e amaldiçoou lorde Giesler por mais sessenta.

Lorde Giesler! Esse nome denotava perigo para ela. Por sua culpa, ela foi punida e, por sua culpa, teria que atender seis filhos antes de poder comprar seus preciosos folhetos científicos. Sem contar com o fato de que o veria novamente. Havia punição maior no mundo? Certamente, sua mãe, quando descobrisse que havia aparecido na residência do homem proibido, procuraria uma maneira de superá-lo... E, tudo por quê? Porque imaginou que sua suposta amiga a ajudaria a sair do seu cativeiro e a faria passar um dia esplêndido. Mas é claro, tudo tinha sido distorcido, nada sairia como ela planejou.

?Mary... ?Valeria disse a ela quando a carruagem entrou no jardim de Kleyton House ?Prometo que comprará esses artigos e que não terá que suportar meus filhos.

?Promessas... promessas... ?Mary resmungou.

?Isso aconteceu por sua culpa ?ela a repreendeu, encarando-a. ?Só queria falar com você e descobrir por que não saiu de casa. Mas o meu plano foi frustrado ao me pedir que te ajudasse a se liberar do castigo ?garantiu, com o tom de voz que sua mãe usava quando a repreendia por uma atitude ruim. ?Te prometi que compraria essas revistas; e mais, eu mesma te darei pelo inconveniente que isso possa causar. No entanto, acho justo te pedir, depois de me colocar em uma situação tão comprometedora, que confirme o estado de saúde do meu irmão.

?Meu pai a visita todos os dias e ouvi-o dizer a minha mãe que sua evolução é adequada ?murmurou. Com os braços ainda cruzados sobre o peito, virou suavemente a cabeça na direção dela e a olhou como se estivesse procurando a melhor maneira de jogá-la para fora da carruagem sem ter que abrir a porta.

?E... não sente curiosidade e ter certeza com seus próprios olhos? ?continuou Valeria.

Curiosidade? O que sentia naquele momento era o desejo de subir as escadas e enredar as mãos no pescoço de lorde Giesler para sufocá-lo. Mas não era o momento nem o lugar para proclamar seu desejo em voz alta. A melhor coisa, para salvar pelo menos uma parte do dia, era fingir estar preocupada, vê-lo, sorrir para ele e, depois de confirmar que ainda era um arrogante, petulante e estúpido, retornar à carruagem para visitar a livraria do Sr. Slow antes de fechar.

?A verdade é que sim. Tem razão, Valeria. Estou muito intrigada em saber como o seu estado de saúde evoluiu e se cumpriu tudo aquilo que ordenei. ?Depois disso, sorriu.

A Sra. Reform bufou, como uma de suas meninas, entendendo que ouviriam uma repreensão bastante enfadonha. Realmente pensava que suas palavras pareciam convincentes? Só lhe faltava alongar os lábios um pouco mais, para mostrar a imagem de uma mulher digna de ser trancada no hospital psiquiátrico de Bethlem.

A dúvida sobre o plano que havia idealizado a invadiu. Mary ainda não apreciava seu irmão. Mostrou na primeira noite e continuava expressando naquele momento. Realmente não sentia nada por ele? Nem mesmo alguma admiração? Qualquer mulher, além dela, é claro, levaria mil anos para esquecer um corpo tão bonito quanto o de Philip, e procuraria maneiras de fazê-lo entender que lhe devia um grande favor. Muitas delas até tentariam se tornar suas prometidas, amantes ou... o que fosse! No entanto, Mary era imune à virilidade de seu irmão. Só faltava ela bocejar para acentuar essa indiferença. Se Philip imaginava que ela poderia se apaixonar, estava muito errado. Antes colocaria em sua cama uma égua do que a filha do médico.

Elas continuaram em silêncio até a carruagem parar bem perto da entrada principal da residência. Em homenagem a essa discrição mantida pelos funcionários de seu irmão, o cocheiro abriu a porta depois de se certificar de que não havia ninguém por perto. Em primeiro lugar, e isso deixou Valeria confusa, o funcionário ofereceu a mão para Mary. Embora, pela cara que fez, ela estava tão atordoada quanto sua acompanhante.

?Senhorita Moore ?lhe disse o lacaio quando ela aceitou sua ajuda para descer ?tenha cuidado com este último degrau. Não gostaria que sofresse um acidente.

Os olhos de Mary se arregalaram. Não sabia muito bem como tomar aquela atitude considerada. Estaria tirando sarro dela? Queria lhe dizer algo inapropriado, para que o rosto amável exibido pelo cocheiro desaparecesse, mas não ousou dizer nada. Pela primeira vez em sua vida, identificou, com surpresa, que não havia mordacidade, mas ternura e carinho. A única coisa que ela não conseguia descobrir era a razão dessa estranha cordialidade.

?Senhora Reform.

Quando Mary pousou os dois pés no chão e o homem confirmou que ela não sofreria nenhum tropeço, ele estendeu a mão para Valeria e a ajudou a descer.

As duas mulheres subiram lentamente as escadas que levavam à entrada. Surpreendidas e mudas, pois não sabiam o que dizer. Philip teria imaginado que a levaria e ordenou que os servos a tratassem com toda a gentileza que pudessem demonstrar? Não. Ele não sabia nada sobre seu plano. Isso aconteceu quando ela pediu para sair de casa para passear. Então, o que estava acontecendo?

Com milhares de ideias brotando em sua cabeça, Valeria se adiantou a Mary para bater na porta, mas ela não precisou. Quando as pontas dos dedos tocaram a aldrava, esta se abriu.

?Senhorita Moore! ?Shals exclamou ao encontrá-la. ?Que alegria vê-la novamente!

Os olhos de Mary caíram sobre a senhora Reform e então, muito lentamente, ela os dirigiu para o mordomo.

?Estavam me esperando? ?Ela perguntou com uma mistura de espanto e estupor.

?Oh, não! ?Shals respondeu se afastando o suficiente para deixá-las passar. ?O senhor não nos avisou de sua chegada, mas todos nos perguntávamos quando apareceria ?acrescentou, estendendo as mãos para ajudá-la a tirar o casaco.

?Todos? ?Continuou falando perplexa.

?Sim ?ele respondeu. Depois de pegar seu casaco e o de Valeria, para quem ele mal olhou. Shals fez um leve gesto com o queixo no lado esquerdo do primeiro andar. ?Todos ?repetiu.

Isso era uma comitiva de boas-vindas? Por que diabos todo o serviço de lorde Giesler a esperava? Eles queriam linchá-la, como fariam os aldeões ao declarar uma mulher inocente uma bruxa? Com medo, ela deu alguns passos para trás, tentando tocar na porta de entrada com as costas. Mas encontrou a Sra. Reform, que havia parado de respirar.

?O que é tudo isso, Shals? ?Valeria finalmente falou.

?Senhora... ?comentou o homem um pouco envergonhado. ?Peço-lhe mil desculpas se fizemos algo errado. Mas quando a donzela Phiona viu a Srta. Moore sair da carruagem com a maleta, a notícia se espalhou e, bem, estávamos esperando por ela por que... muitos deles precisam... desejam que...

Mary entendeu imediatamente. O que o pobre mordomo estava tentando dizer à fez se sentir tão orgulhosa e feliz que esqueceu a raiva. Eles estavam esperando por ela! Queria que ela os atendesse! Shals não disse a seu pai que nenhum dos criados pediria ajuda a outro médico além de sua filha? Bem, ele não mentiu. Aquelas pessoas fizeram isso. Eles não se importavam que ela fosse uma mulher, que ela não tinha uma licença ou que ela os obrigou a lavar as mãos mil vezes. Eles haviam determinado que somente ela era a pessoa que poderia atendê-los e lá estavam eles, em perfeita ordem de espera, aguardando sua decisão. O prazer, o bem-estar e a emoção que ela sentiu, embaçaram os olhos. Não pensaria em chorar, certo? Ela nunca chorava! Afogando aquele soluço, fazendo desaparecer o nó na garganta que a impedia de respirar, agarrou a maleta com mais força, olhou para Valeria e disse:

?Lorde Giesler pode esperar.

?Obrigado! Obrigada! ?Ouviu os servos dizerem.

?Claro ?Valeria respondeu, suportando aquele grito de felicidade que ela queria liberar. ?Se não se importa, enquanto os atende, subirei até...

Não terminou a frase, Mary não se importava com o que ela ia dizer. Antes de esclarecer qual era sua intenção, a mulher se voltou para os funcionários e começou a perguntar o que estava acontecendo com eles. O Sr. Shals olhou para Valeria e lhe sorriu.

?Se desejar, posso informá-lo que a Srta. Moore acaba de chegar.

?Quer que saia da cama e desça as escadas três em três? ?Perguntou Valeria zombando.

?Tem razão, senhora. É melhor que não descubra o que está acontecendo aqui até que a Srta. Moore termine os exames médicos ?respondeu sem apagar o sorriso.

?Vou fazer café. Acredito que Mary precisará depois dessa incrível recepção ?apontou enquanto se dirigia para a cozinha.

?Deixe-me ajudá-la, porque, como pode ver, a cozinheira é a primeira da fila ?apontou Shals andando atrás dela.

E Valeria soltou uma risada alta.


***

Não aguentaria nem mais um dia trancado naquele quarto. Seu desespero aumentava a cada minuto. A isso, acrescentou a angústia de não saber nada sobre Mary. Por que não havia saído de sua casa por tanto tempo? O que a segurava? A ideia de que ela estivesse doente permanecia latente em sua cabeça, assim como seu desconforto por não poder se levantar, se arrumar e aparecer na residência dos Moore para descobrir pessoalmente o que havia acontecido com ela. Olhou novamente para o relógio de bolso, que Shals lhe enviou, e bufou. Aquilo só lhe informava que o tempo não corria tão depressa como desejava. As horas pareciam dias e dias... anos. Sentou-se muito lentamente no colchão e procurou o livro que Martin lhe deu quando o visitou dois dias depois de Mary operá-lo. Como havia pensado que a teoria sobre a lei de gravitação universal, de um tal de Isaac Newton, poderia aliviar seu desespero? Realmente imaginou que ele passaria horas procurando o motivo pelo qual dois corpos se atraem? Não era necessário ler esse livro para saber a resposta! Ele havia sido atraído tantas vezes que podia refutar qualquer teoria absurda! Os homens atraíam mulheres, estas buscavam a excitação deles e, finalmente, essa proporcionalidade ao produto das suas massas terminava em um encontro íntimo.

?É um belo princípio matemático ?lhe disse quando ele arregalou os olhos ao descobrir o que significava para seu irmão o melhor presente do mundo. ?Você será cativado pela simplicidade da fórmula gravitacional. É, sem dúvida, a mais bela simplicidade que você pode encontrar na vida. ?E depois disso, ele sorriu de orelha a orelha.

?Você já dormiu com uma mulher, Martin? Ou você prefere ir para a cama com... isto? ?Perguntou bruscamente, apontando um dedo para a capa do livro que jogara na colcha como se estivesse queimando.

?Por que essa pergunta, Philip? ?Retrucou, eliminando o sorriso imediatamente.

?Porque não entendo como pode comparar fórmulas matemáticas com a beleza e as maravilhas da natureza. Para mim, isso não se encaixa nessas descrições. Você já dormiu com uma mulher ou ainda é virgem? ?Continuou.

?Claro que não sou! ?Exclamou envergonhado. ?Tenho minhas fraquezas...

?Carnal ou intelectual? Porque não tenho certeza de que você entende a diferença entre um bom par de seios femininos e duas maneiras de calcular o mesmo resultado ?garantiu, cruzando os braços e franzindo a testa.

?Como se atreve a falar comigo dessa maneira? Não sente remorso nem respeito por uma mulher?

?Sim, respeito todas elas. Pode perguntar as minhas amantes se elas foram respeitadas antes de deixá-las exaustas em suas camas. Mas não desvie o assunto, Martin. Você parou de ser...?

?Não vou te responder. Primeiro de tudo, sou um cavalheiro ?ele respondeu com raiva. ?Se estive com uma mulher ou com várias, isso só importa para mim.

?Ou seja, você evita falar sobre isso porque ainda não sabe o que significa prazer carnal ?afirmou enquanto olhava para ele.

?Valeria me avisou que seu humor havia piorado ?comentou indo em direção à porta?, mas nunca imaginei que você atingiria um nível tão alto de imbecilidade.

?Não é imbecilidade, mas aborrecimento ?indicou, sem poder apagar um sorriso malicioso de seu rosto.

?Nesse caso, espero que deixe de se aborrecer em breve ?declarou antes de bater a porta.

E desde aquele dia, não falou com Martin novamente. Shals informou que ele apareceu na residência para perguntar sobre sua saúde, mas, depois do que aconteceu entre eles, não teve coragem de comparecer diante dele.

Abriu o livro na página em que havia deixado na noite anterior, bufou com o aborrecimento que lhe causava e tentou se concentrar na maldita fórmula da força exercida entre dois corpos. Naquele momento, sua mente se afastou da constante gravitação universal, do valor dessa constante e da massa dos sujeitos, para se concentrar em Mary. Sim, de fato, ela foi o resultado de toda a maldita formulação que o livro comentava. Ela exercia uma força de atração até ele que o deslocava, entorpecia e o deixava vulnerável. Desde que ela jogou aqueles tubos, que para assimilá-lo com a teoria eram as massas de atração, ele não conseguiu pensar em outra coisa senão procurar o contato entre os dois. Eles tiveram, é verdade, mas em primeiro lugar ele estava inconsciente e não se lembrava de nada, e em segundo lugar o beijo não foi suficiente para obter um bom resultado. Que poder suas carícias teria em relação a ele? O que sentiria ao ver como as pontas dos seus dedos acariciavam sua pele? Se excitaria ou se incomodaria? Mary seria uma mulher apaixonada ou mostraria a mesma frieza que exibia ao mundo ao seu redor? Teria observando-o com admiração ou calculou apenas a dose apropriada de sedativo para o seu corpo grande? Philip fechou os olhos e recostou-se nos três travesseiros atrás das costas. A imagem dela apareceu sem fazer esforço. Ele a viu rindo do comentário que fez ao pai quando perguntou sobre a quantidade de clorofórmio que havia lhe dado. Um cavalo? Maldita mulher que o comparou a um cavalo! Não havia comparações mais bonitas? Teria sido suficiente com o fato de que ela evocava sua grande magnitude, que sugeria sua forte musculatura, mas não. Mary não conseguia encontrar um símile que o deixasse orgulhoso. Ele teve que se parecer com um animal de quatro patas. Agradecia a Deus por não tê-lo chamado de porco ou bezerro, mesmo assim, ainda estava descontente. Talvez o poder de sedução que ele dava a outras mulheres fosse imune a ela. Talvez ele não tenha percebido por que... Não! Ele se recusava a pensar sobre isso. Não havia nenhum homem para Mary além dele e isso a deixaria saber assim que ele pudesse deixar sua casa. Toda vez que ela saísse de casa, ele a esperaria na porta. Sempre que ela decidisse aparecer nas reuniões que os médicos realizavam as sextas-feiras, ele ficaria sentado ao lado dela, ouvindo-a atentamente e, é claro, a encontraria em todas as festas que ela decidisse comparecer. Ele pediria que ela dançasse uma, ou duas danças, ou talvez tudo o que ela pudesse suportar. Só para deixar bem claro, aos cavalheiros que a olhassem, que não teriam chance com ela. Quando um Giesler encontrava a mulher de sua vida... ninguém ficava no seu caminho!

Esse pensamento só lhe causou mais inquietação e estresse. O lençol o prendia, a suavidade do colchão o incomodava. Até parecia que os travesseiros macios tinham espinhos! Aturdido e nervoso, ele estendeu a mão esquerda para a mesinha e pegou a sineta que Shals colocou ali na mesma noite em que Mary saiu. Ele franziu a testa, apertou a mandíbula e amaldiçoou sua vida. Tudo começava a girar em torno dela. Até o motivo de tocar uma miserável sineta! Não havia dúvida, ele tinha que sair de lá e aparecer na casa dos Moore para vê-la ou ele ficaria louco.

?Maldito seja, Shals! ?Explodiu quando, depois de tocar a sineta mais de vinte vezes, seu mordomo não apareceu. ?Pode-se saber por que ninguém me responde? Ficaram surdos? ?Continuou gritando. Com raiva, afastou o lençol do corpo. Pelo menos eles tiveram a decência de ajudá-lo a vestir calções. Não seria apropriado aparecer no topo da escada nu e gritando alto que todos estavam demitidos. Sem dúvida, Valeria o levaria para fora de seu quarto, sim, mas para levá-lo diretamente a Bethlem.

?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa ?Mary o ameaçou quando, ao abriu a porta, o encontrou em pé ao lado da cama.


CONTINUA

Londres, 28 de outubro de 1882, residência Moore.
Sophia observou pela janela como a carruagem em que estava seu marido se afastava de casa. Deveria estar acostumada que Randall saísse na metade da noite, mas naquele momento teria dado tudo o que tinha para que não saísse do seu lado. Se abraçou e tentou acalmar o calafrio que surgiu ao se sentir tão sozinha. A casa ficou em silêncio, demais para o seu gosto. Desde que suas filhas nasceram, sempre havia ruído pela casa, correndo pelos corredores. No entanto, desde que três delas saíram, aquilo não parecia uma casa, mas uma das bibliotecas que Mary costumava visitar. Fixou seus olhos na lareira, já apagada, e suspirou fundo. Como se encontravam suas meninas? O visconde iria atendê-las com o respeito que mereciam? Esperava que assim fosse e que as três se comportassem adequadamente. O único que não suportaria seria que, depois da saudade que sofria por não poder estar com elas, voltariam com uma infinidade de escândalos em suas costas. Desviou o olhar para as cadeiras que haviam ao redor da mesa da sala de jantar e notou como sua dor aumentava ao observá-las vazias. Em noites como aquela, Anne e Josephine deixavam seus quartos e desciam para acompanhá-la. Costumavam conversar sobre qualquer assunto até o amanhecer e quando o resto de suas filhas aparecia, tomavam o desjejum conversando sobre o que haviam planejado fazer o resto do dia.
Apoiou as costas na janela e suspirou. Sentia falta dos gritos que oferecia a Josephine por ter perfurado outra janela ou por terminar com a valiosa porcelana de Randall. Sentia falta de pedir a Elizabeth que deveria mudar seu comportamento inadequado e sentia falta de aparecer na sala de pintura de Anne para admirar seu novo trabalho. Quantas vezes suplicou que dessem a ela algumas horas de tranquilidade? Muitas! No entanto, agora não queria, pois as usava para pensar em como se encontravam. A pequena soldado se adaptaria a uma vida repleta de protocolos femininos ou talvez o visconde permitisse continuar com seus habituais comportamentos masculinos? Seguiria as instruções Randall? Porque se fosse assim, tinha receio que dormiria e se banharia com a nova arma que lhe comprou. Só esperava que o visconde se mantivesse afastado de Anne para que não desse a Josephine a oportunidade de cumprir as ordens que seu pai lhe dera. E Elizabeth? Agiria de maneira adequada ou continuaria mostrando atrevimento? E Anne? Continuaria sonhando com ele? Se apaixonaria por esse homem?
Eram só perguntas e para seu desespero não encontrava uma única resposta. Somente as encontraria quando voltassem e para que isso acontecesse faltava pouco mais de três semanas.

 

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Uma pontada no estômago a fez apertar as mãos sobre aquela região do corpo. Continuava sem ter certeza de ter agido corretamente. Talvez devesse encontrar uma forma de romper o acordo com o visconde e não desistir tão rapidamente. Mas... que fez? Nada, porque os sonhos de Anne avisavam que não podia impedir aquilo que já estava previsto. No entanto, a dúvida sobre a escolha feita pelo fogo a assaltava a cada momento. Como poderia ser o visconde o homem destinado para Anne? Qual seria o motivo pelo qual Morgana mostrava a Anne que ele era o escolhido? A maldição de Jovenka era muito clara: o sangue contaminado voltaria a ser puro. Que tipo de pureza se referia? Teria entendido errado o juramento? Não, não tinha feito desde que os dois pretendentes de sua filha morreram, tal como sua avó anunciou. Então... porque o visconde, um homem de sangue azul, destruiria a maldição que sua filha suportava desde que nasceu? O que os Bennett escondiam? O que lhes aconteceu? Naquele momento lembrou uma notícia em que afirmavam que os marqueses, dezessete anos depois, reconheciam um jovem como filho legitimo. Segundo o jornal, foi roubado logo após o nascimento e não denunciaram o desaparecimento para não criar um escândalo social. Como poderiam manter em segredo semelhante atrocidade? A aristocracia era tão frívola? Como a marquesa foi capaz de suportar uma dor tão cruel? Sophia franziu a testa e suspirou profundamente. Nenhuma mãe aceitaria uma situação semelhante a menos que não fosse filho dela. Talvez essa fosse a verdadeira razão e não o sequestro. Era mais lógico deduzir que o falecido marquês de Riderland, com uma reconhecida reputação de libertino, mantivesse um idílio com uma mulher, talvez uma cigana, e o visconde era fruto desse romance. Quando a mulher anunciara ao seu amante que teve um filho dele, ele seria rejeitado pelo pai, como todos os bastardos que sua avó Jovenka teve, e o menino vivera com a mãe durante aqueles dezessete anos. O que os fez mudar de ideia? O acidente que sofreu a esposa do seu único filho vivo os incentivou a finalmente reconhecê-lo? Isso seria uma dedução bastante comum entre a aristocracia, pois eram incapazes de se separar do título de nobreza que haviam mantido por gerações. Talvez fosse essa a razão pela qual o falecido marques decidiu assumir a paternidade. Embora ainda houvesse uma questão não resolvida... por que a marquesa, que todo mundo descrevia como uma mulher frívola, aceitou a decisão de seu marido? Se sentira obrigada? Queria evitar uma humilhação social dessa maneira? O que quer que aconteça com a família Bennett, não importava mais, o único de deveria se preocupar era o motivo pelo qual sua mãe criadora provocou uma aproximação entre o visconde e sua filha.

Decidiu voltar para o seu quarto. Ainda podia aproveitar algumas horas de sono antes que Madeleine e Mary decidissem se levantar. Além disso, naquela mesma manhã se propôs a visitar Vianey para falar pessoalmente sobre a viagem de suas filhas com o visconde. Se queria evitar qualquer rumor inadequado sobre sua família, a baronesa era a pessoa ideal. Ela compreenderia melhor que ninguém e ajudaria a proteger a honra de suas filhas porque, se começavam a fofocar sobre a honra de suas meninas, mesmo que o visconde quebrasse a maldição, nenhum homem decente apareceria em sua casa para se comprometer com alguma delas.

O pensamento de vê-las casadas a fez sorrir. Que marido seria apropriado para a destemida Josh? Quem poderia conviver com uma mulher como Mary? Algum cavalheiro seria capaz de eliminar o orgulho de Elizabeth? E o que aconteceria com Madeleine? De acordo com sua visão, ela também encontraria o homem que a amaria tanto que faria desaparecer sua timidez excessiva. Como conseguiria? Quem seria? E, realmente existiam esses valiosos maridos? Porque de uma coisa tinha certeza; suas filhas eram muito especiais e não aceitariam qualquer homem.

Colocou a mão esquerda sobre o corrimão de madeira, pisou no primeiro degrau e prendeu a respiração quando ouviu fortes batidas que vinham da porta da frente. No mesmo instante, voltou até a entrada e permaneceu em silêncio para se certificar que tinha ouvido bem. Estava certa. Alguém tinha aparecido em sua residência e batia na porta com a aldrava. Sophia se olhou de cima a baixo. Não se vestia apropriadamente para receber ninguém àquela hora da noite. Além disso, se a razão pela qual tinha vindo a sua casa era seu marido, não podia fazer nada, pois não voltaria até o dia seguinte. Embora a pessoa que se encontrava fora batesse novamente, tomou a decisão de ignorá-la. Se fosse muito urgente, poderia recorrer a residência do doutor Flatman. Olhou para as escadas e suspirou. Por mais que desejasse, um estranho pressentimento a impedia de avançar e insistia que devia aceitar a visita. Mas... por quê? Quem seria?

?Tem alguém aí? ?Uma voz feminina finalmente perguntou. ?Vejo luz através das janelas. Por favor, preciso de ajuda. Sou a Sra. Reform e estou procurando pelo doutor ?insistiu.

Sophia, ao ouvir a voz de uma mulher virou-se e caminhou para ficar atrás da porta, mas não a abriu até ter certeza de que não era uma farsa para entrar na casa e assaltá-la. Quantas vezes os de seu sangue agiam no meio da noite? Centenas! Eram como vermes. Esperavam pacientemente que a casa de algum Sr. rico permanecesse desprotegida para assaltá-la. Sua própria avó agia nesses roubos como uma reivindicação.

?O doutor não se encontra nesse momento, precisou sair ?Sophia respondeu com cautela.

?Sabe quando volta? Vim até aqui porque um dos meus irmãos precisa de atendimento médico e tenho entendido que o Sr. Moore é o melhor médico que temos em Londres ?Valeria insistiu olhando para a porta e sem dar um só passo para trás.

Não estava disposta a sair sem uma pessoa que pudesse ajudá-la. Philip jamais esteve tão doente, nem prostrado em sua cama por mais de um dia. Isso indicava que sua convalescença não tinha nada a ver com uma ingestão soberana de álcool. Pela primeira vez em sua vida, ele realmente adoecera.

?Amanhã. Talvez possa encontrá-lo ao meio-dia... ?respondeu, revendo mentalmente o tom de voz que a mulher usou para falar com ela. Parecia desesperada, agitada e sincera. Mas... isso seria suficiente para confiar nela?

?Eu imploro. Meu irmão está muito doente e não sei a quem recorrer ?insistiu a Sra. Reform. ?Pode perguntar a Sra. Moore se pode me atender?

?Sou a Sra. Moore ?revelou ?garanto-lhe que deixarei meu marido saber que veio. Se tiver a gentileza de me explicar quem é o doente e onde mora, prometo que irá o mais breve possível ?Sophia sugeriu.

?Sua casa é a Kleyton House localizada na Mount Row. Ele se chama Philip Giesler ?Valeria esclareceu depois de um longo suspiro.

Ao ouvir o nome, Sophia arregalou os olhos e prendeu a respiração novamente. Seria a mesma pessoa que acompanhou o visconde dias atrás? Aquele que foi agredido por suas filhas na entrada? Quantos Philips Giesler poderia residir em Londres? E por que, tendo tantos médicos na cidade, aquela mulher aparecia na frente de sua porta?

?Por que escolheu meu marido se há outros médicos na cidade que podem atendê-la? ?Perguntou, depois de supor que o próprio Giesler lhe dissera para vir e procurá-la como pagamento pelo sofrimento que sofrera devido ao mau comportamento de suas filhas.

?Pode abrir? Não quero gritar, por favor. Além disso, seus vizinhos podem espreitar nas janelas e supor que estamos discutindo ?Valeria explicou com um pouco de serenidade.

?Sra. Reform, não estou apresentável. Como compreenderá, não esperava visita e...

?Estou sozinha, Sra. Moore. Não há homem ao meu redor e o cocheiro ainda continua no seu lugar ?informou. ?Só quero que me ajude. Conhece todos os médicos da cidade e, se explicar os sintomas que meu irmão sofre, poderá me indicar que médico é o mais adequado para curá-lo o quanto antes ?insistiu?. Suplico, tenha compaixão. Prometo-lhe que se me ajudar estarei eternamente agradecida e...

Valeria ficou em silêncio ao ouvir como a Sra. Moore começou a mover o ferrolho. Talvez nem tudo estivesse perdido. Talvez houvesse uma chance de descobrir por que Philip, em seus delírios, nunca deixava de mencionar um nome feminino e o sobrenome do médico.

?Entre, conversaremos aqui dentro ?convidou Sophia, vendo que, na verdade, seu rosto mostrava a mesma angústia que sua voz expressava.

Valeria aceitou o convite e entrou na residência. Mas não se moveu da entrada, embora a esposa do médico, depois de fechar a porta, entendeu a mão até o corredor da esquerda. Estava com pressa para voltar. Se o doutor Moore não podia atendê-lo, precisava com urgência descobrir quem o faria e isso atrasaria muito a sua volta.

?Sra. Moore, por favor, quem acha que posso pedir ajuda?

?É assim tão grave? ?Sophia a olhou com relutância. Talvez tenha entendido mal quando ouviu o parentesco que a unia com lorde Giesler, pois os dois eram muito diferentes. Onde o cavalheiro usava uma cabeleira tão loura como os raios do sol, o da mulher era tão escuro quanto os dela. Sem contar a tonalidade de seus olhos. Não havia nada que pudesse se assemelhar a ele. Estaria enganando-a? Seria na realidade sua amante desesperada?

?Sim ?Valeria respondeu apertando as mãos com força. ?Está há vários dias na cama. No começo pensei que sua última saída terminou pior do que esperava. Se é que me entende... Um homem solteiro, sem responsabilidades familiares e amantes da liberdade... Mas depois que apareci em sua casa, depois de ser informada pelos criados, para repreendê-lo, como uma irmã preocupada faria, descobri que não se tratava de uma embriagues soberana. Ele estava realmente doente.

?Como já lhe disse, meu marido não estará de volta até o meio-dia. O único que posso aconselhar é que vá à casa do Sr. Flatman. Certamente que o encontrará em sua casa, pois nunca comparece a uma emergência, a menos que seja exigido pela nobreza. ?Sophia apontou como alternativa.

?Mas o meu irmão não quer. Ele disse o seu nome ?revelou a Sra. Reform.

?Meu nome? ?Ela estranhou.

?Não, o de seu marido. Quando a febre aumenta muito e provoca delírios, murmura o sobrenome do seu marido. Por isso estou aqui. Acredito que ele deseja que o seu marido o visite.

Não podia contar a verdade porque parecia estranho até para ela. Quando Philip delirava, as únicas palavras que saíam de sua boca eram Mary e o sobrenome Moore. Como era lógico, perguntou sobre isso. Finalmente, depois de varias horas perguntando a conhecidos, descobriu que se tratava do sobrenome de um médico de Londres que morava fora da cidade, que era pai de cinco meninas e que uma delas se chamava Mary. Então deduziu que em sua inconsciência tinha se confundido, portanto tinha que ter mencionado o nome de Randall Moore em vez de se referir a uma de suas filhas.

Sophia confirmou sua suspeita ao ouvir a declaração. Já não tinha dúvidas que lorde Giesler queria que seu marido pagasse o trágico encontro que teve na manhã em que apareceu com o visconde. Talvez pensasse que, depois de ser atendido por ele, ouviria o que aconteceu e manteria em segredo o comportamento inapropriado de suas filhas, mas... o que poderia fazer se Ronald não estava?

?Prometo que meu marido irá à casa do seu irmão assim que voltar. Enquanto isso, para baixar a febre, aconselho que coloque panos mergulhados na água fria. Isso o acalmará...

Sophia ficou em silêncio quando ouviu um pequeno ruído no alto da escada. Olhou para cima e quando viu a camisola de Mary se escondendo atrás da parede, franziu a testa. Por que tinha levantado? Continuaria lendo apesar do castigo que lhe impôs? Será que nunca atendia suas ordens? Como podia fazê-la ouvir a razão? Que tipo de reprimenda seria adequado para uma menina como ela? Havia algo no mundo que a mortificaria tanto que a fizesse ver a razão? Que vingança seria apropriada? De repente, um sorriso maligno se desenhou em sua boca. Era uma ideia excessivamente maligna até para ela, mas... não queria dar-lhe uma lição? Mary jamais se negaria a atender um doente e se não confessasse quem era o paciente, desceria as escadas agarrando sua maleta sem se dar conta que vestia uma camisola. Seu sorriso perverso se alargou ainda mais ao lembrar a profecia de Madeleine: «Tinha visto Mary apaixonada, embora tentará deter os sentimentos que esse homem lhe provocará desde o momento em que se encontrem pela primeira vez». O que poderia perder? Se aquele homem não era o escolhido para Mary, pelo menos aproveitaria com a vingança. No entanto, a dúvida sobre o comportamento de sua filha a invadiu. O que aconteceria quando Mary descobrisse que o cavalheiro que deveria curar era o mesmo que não afastou seus olhos dela, mesmo que Josephine lhe apontasse com a arma? Possivelmente o envenenaria, ou o curaria primeiro para matá-lo depois. No entanto, se o destino voltava a cruzá-los... quem era ela para impedir?

Olhou para a Sra. Reform e adotou uma postura seria e tranquila. Se oferecesse a sua filha, precisava adotar uma atitude decidida, pois não poderia colocar em perigo a honra dela, mas também a reputação de seu próprio marido estava em perigo.

?Existe uma opção possível. Se estivesse em seu lugar, aceitaria sem duvidar um só segundo ?manifestou sem vacilar.

?Farei qualquer coisa, Sra. Moore! ?Valeria exclamou desesperada. ?Diga-me o que pensou e juro que não demorarei nem um só segundo.

?Mas deve me prometer que ela não permanecerá em nenhum momento sozinha com ele ?Sophia prosseguiu.

?Ela? ?Valeria perguntou arregalando os olhos.

?Sim, uma de minhas filhas, Mary. Ela acompanha meu marido em todas as suas visitas médicas. Ela curou muitos doentes e garanto que é tão habilidosa em medicina quanto seu pai. Ela descobrirá, se você considerar apropriado, o que acontece com seu irmão e atribuirá um tratamento enquanto meu marido volta.

?Tem certeza? ?E ali estava a resposta para sua pergunta! Seu irmão não estava perturbado pela febre, somente gritava o nome da pessoa que desejava ter ao seu lado. Como diabos sabia que a filha do médico poderia ajudar-lhe? Se conheciam? De onde? Quando?

?Tenho. Tudo que preciso saber é se você admite que uma mulher aja como médica sem importar...

?Pelo amor de Deus! Não vê que sou uma mulher? Acha que rejeitaria a ajuda de alguém, ou que seria capaz de menosprezar seu trabalho por não ser homem? ?Valeria retrucou ofendida. ?Te garanto que meu marido não seria quem é hoje se não tivesse casado comigo.

?Está certo, tudo bem que a chame?

?Com certeza!

?E me promete que zelara por sua honra? Tenha em mente que estamos falando de uma jovem solteira que permanecerá na casa de um homem solteiro e isso poderá causar problemas sem fim no futuro ?Sophia concluiu desconfiada.

?Sra. Moore, meu irmão precisa de um médico, não uma esposa ?Valeria garantiu com aparente indignação.

?Sendo assim, espere dez minutos. Subirei ao seu quarto e perguntarei se está disposta a...

?Sim! ?Mary exclamou do alto da escada. ?Vou! Coloco um vestido e desço em menos de cinco minutos ?acrescentou feliz.

?Mary Moore! Quantas vezes tenho que dizer que não deve espiar? ?A mãe gritou repreendendo-a.

?Milhares! ?Respondeu enquanto voltava correndo até seu quarto.

?Filhas... ?bufou Sophia. ?Por mais que cresçam, sempre serão crianças pequenas. Tinha esperança de que quando ficassem mais velhas mudariam de atitude, mas como pôde comprovar, não fizeram isso ?afirmou fingindo pesar.

?Eu tenho quatro e se forem como seu pai, teriam quarenta anos e continuariam sendo umas meninas extravagantes e teimosas ?apontou a Sra. Reform um pouco mais calma.

Enquanto esperavam a presença de Mary, Sophia fez uma investigação à Sra. Reform. Descobriu que era filha de uma espanhola e um alemão. Que tinham chegado à Londres fugindo da família do pai. Que tinha dois irmãos muito diferentes fisicamente e que tinha se casado anos atrás com Trevor Reform, o antigo dono do clube de cavalheiros Reform. Então, ela informou que lorde Giesler tinha chamado seu marido e Valeria contou-lhe a história do baronato que seu irmão devia ocupar na Alemanha.

?Mas como bem comentou, nunca crescem como se deseja e meu irmão é incapaz de aceitar o título ?Valeria comentou com pesar. ?Tentei de tudo... ?suspirou ?no entanto, essa atitude alemã que possui o impede de salvar o seu orgulho e assumir o que um dia herdará por direito.

Isso acalmaria a mãe? Por que não tinha parado de lhe fazer perguntas. Obviamente, tinha respondido todas. Não queria que pensasse que Mary se encontraria com pessoas sem escrúpulos. Precisava deixar claro que sua família era muito respeitável e que protegeria sua filha como se fosse uma das suas.

?Não se preocupe, certeza que em breve terá que desistir. Os homens são, por natureza, muito teimosos e tem que encontrar um incentivo para avançar esse passo que ambos se recusam a dar ?Sophia comentou, à alusão do baronato, com falso tom sereno e calmo.

Giesler era um barão alemão? Por isso seu marido fez referência ao tratamento de lorde? Os barões alemães possuíam as mesmas conotações que os ingleses? Tinha que assimilar muitas coisas depois dessa informação. Além disso, se a premonição de Madeleine estava certa, se lorde Giesler era o homem destinado para Mary... se tornaria uma baronesa inglesa ou alemã? Como agiria se alcançasse essa posição social? O que aconteceria com todos aqueles homens que a humilharam no passado? Se esqueceria deles ou encontraria uma maneira de se vingar? Um frio repentino fez com que os pelos do seu corpo se arrepiassem. Se isso acontecesse, a melhor opção era que partisse para a Alemanha, porque se ela ficasse, os cavalheiros que a desprezaram estariam em grave perigo...

?Já estou aqui! ?Mary gritou descendo as escadas.

Sophia a olhou de cima a baixo. Não podia repreendê-la porque não estava mais usando a camisola, mas usava o vestido azul que tinha colocado no dia anterior. Um que lhe dava a aparência de uma governanta, mas por causa da maneira como o tecido se agarrava ao seu corpo, não havia dúvida de que ela não tinha colocado o espartilho ou as anáguas. Mantinha o cabelo em um coque desastroso e em sua mão direita segurava a maleta que Randall a presenteou ao completar dezoito anos. Levaria dentro um frasco de cicuta? Porque se fosse assim, temia que gastasse essa mesma noite quando descobrisse a identidade do doente.

?Lembra querida, o que sempre comentei com seu pai ?ela disse suavemente enquanto a ajudava a vestir o casaco que tirara do armário.

?Boa noite ?primeiro saudou a mulher e logo se voltou até sua mãe com um olhar interrogativo. ?O pai me disse muitas coisas, pode ser mais especifica...

?Que não importa o paciente que precisa de atendimento, tem que fazer um bom trabalho ?lembrou antes de lhe dar um beijo na bochecha.

?Não sei por que diz essas coisas ?resmungou, corando rapidamente. ?Jamais me neguei a atender alguém.

?Espero que também não faça nesta ocasião ?Sophia insistiu puxando-a até a saída.

?Tem algum tipo de preconceito, Srta. Moore? ?Valeria interveio um pouco desconfortável ao ouvir as estranhas palavras da esposa do médico.

?Nem um pouco! ?Mary respondeu rapidamente, se colocando ao lado da Sra. Reform. ?É muito comum minha mãe me lembrar de que eu não devo ser descortês com as pessoas.

?Enquanto possa salvá-lo, não me importa o caráter que possua ?Valeria afirmou. ?Sra. Moore, boa noite. Garanto que sua filha estará em boas mãos.

?Obrigada, Sra. Reform, embora neste momento não tema por Mary, mas pelo doente ?Sophia garantiu.

?Mas mãe! ?Ela respondeu com raiva. ?Por favor, não vamos perder mais tempo. Preciso ver o paciente o quanto antes. Se não se importa, Sra. Reform, durante o caminho, me explica os sintomas que tem, essa conversa será mais que ouvir os lembretes morais da minha mãe. ?Boa noite, mãe.

?Boa noite, filha.

Assim que se despediram de Sophia, a duas andaram até a carruagem. A Sra. Moore permaneceu na porta até o veículo sair de seus domínios. Fechou a porta e suspirou fundo. A vida de sua segunda filha mudaria, a única coisa que podia garantir era se ela estava preparada para assumir essa mudança...

Mary se acomodou no assento e observou de canto de olho a sua acompanhante. Parecia tão preocupada que queria lhe dizer algo que pudesse acalmá-la. No entanto, ela não tinha o dom de tranquilizar as pessoas, mas de curá-las.

?Desculpe-me por tê-la tirado de sua casa a esta hora tão inapropriada, mas sua mãe, depois de lhe explicar o que aconteceu, insistiu que você é a mulher adequada para atendê-lo.

?Não foi problema nenhum, pelo contrário, sinto-me muito honrada por poder ajudá-la ?Mary respondeu, acrescentando um leve movimento com a mão enluvada ao comentário. ?Ficarei feliz em descobrir que doença seu marido tem e indicar-lhe o tratamento adequado.

?Meu marido? ?Espetou Valeria arregalando os olhos. ?Não é meu marido que está doente, mas meu irmão.

?Desculpe, devo ter entendido errado. De lá, não consegui ouvir bem suas palavras ?Mary comentou, ruborizando no mesmo instante. ?Às vezes, quando fico empolgada, não presto muita atenção.

?Não se preocupe, isso geralmente acontece comigo também. Acho que é muito comum mulheres inteligentes selecionarem o que as interessa.

Diante desse comentário, Mary relaxou e soltou uma gargalhada. Quando se recuperou, voltou a olhar a Sra. Reform e esperou que lhe revelasse o nome do seu irmão, mas ela se manteve em silêncio.

?E, a quem devo atender? ?Finalmente perguntou.

?Talvez o conheça, Srta. Moore.

?Mary, por favor, me chame de Mary.

?Obrigada, bem, o que disse Mary, possivelmente tenha ouvido falar sobre ele, porque é um homem bem conhecido nesta cidade. Trabalhou na Scotland Yard durante alguns anos, mas quando estava prestes a conseguir um cargo importante, se recusou a fazê-lo e decidiu se tornar um marinheiro ?declarou com pesar enquanto observava como Mary continuava negando com a cabeça.

?Confesso que sou uma mulher antissocial. Mal saio de minha casa e quando o faço não tenho entre os meus objetivos me relacionar com as pessoas que conheço, exceto se tiver que curá-las ?acrescentou espirituosamente.

?Entendo... ?Valeria apontou ainda mais intrigada. Se a moça não o conhecia, por que seu irmão não parava de chamá-la quando lhe subia a febre? Espalhou a saia do vestido para que não enrugasse, depois colocou as duas mãos no colo e olhou para a jovem sem piscar. ?Mas acredito que sim, que conhece meu irmão ?insistiu.

?Se me disser o nome, posso responder com mais certeza ?Mary declarou com a voz cansada.

Para que tanto mistério? Por que proteger sua identidade? Teria que atender um criminoso fugitivo da justiça? Seria um parente direto do próprio Gilles de Rais?[1]

?Meu irmão é Philip Giesler ?Valeria finalmente declarou.

Naquele exato momento, Mary sentiu o queixo cair e ouviu uma voz em sua cabeça gritar que preferia enfrentar um depravado como o Barão de Rais do que salvar o homem que a chamou de bruxa.


Capítulo I


?Sabe de quem estou falando? ?Valeria lhe perguntou ao observar o sorriso de desagrado que mostrou em seu rosto. ?O conhece?

?Vagamente... ?Mary murmurou.

Por isso sua mãe a recordou que devia atendê-lo como mais um? Ela sabia de quem se tratava? «Por todos os diabos!», gritou mentalmente. Quando voltasse falaria muito seriamente com ela e lhe deixaria bem claro que jamais atenderia, mesmo que estivesse a ponto de morrer, imbecis como lorde Giesler.

?De onde? ?Valeria insistiu, apesar do mau humor que a jovem demonstrava e do tom áspero que usou ao respondê-la.

?Há alguns dias, seis para ser exata, seu irmão apareceu em nossa casa junto com o visconde de Devon ?respondeu sem diminuir sua aspereza. ?Nós dois tivemos a oportunidade de nos conhecermos e conversar por um curto período de tempo...

Pouco, mas o suficiente para odiá-lo e desejar que apodrecesse no inferno. No entanto, essa parte da história não era apropriada para expor naquele momento. Para o bem dela e de seu futuro paciente, deveria se acalmar e mostrar um caráter afável, tal como seu pai insistia: «Pode ser a mulher mais inteligente do mundo, mas ninguém a respeitará se continuar se comportando de maneira tão irascível».

?Entendo... ?a Sra. Reform sussurrou fixando seu olhar na janela.

?Disse que está doente há quanto tempo? Que sintomas têm apresentado? ?Mary perguntou para tentar esquecer o ódio que sentia pelo paciente e se concentrar em descobrir a possível doença. Porque se tudo fosse uma mentira, se a fez sair de sua casa para continuar zombando dela, antes de três horas passadas, seu sofrimento seria real, assim como a terrível dor que apareceria em sua virilha.

?Dois dias. A febre não diminui. Tem tanto calor que saíram bolhas na sua pele. Delira, tem suores, não para de vomitar e faz movimentos involuntários muito bruscos. Antes de pedir ajuda na sua casa, seus olhos estavam em branco por causa do novo aumento de temperatura, por isso disse a vários criados que preparassem um banho de água fria. Espero que com isso acalme...

?Realmente ordenou tal insensatez? ?Mary disse horrorizada. ?Que absurdo!

?Desculpe? ?Valeria retrucou com uma mistura de surpresa e assombro com a súbita mudança de atitude. Estava chamando-a de estúpida por ter mandado fazer uma coisa tão frequente em estados febris? ?O que quer dizer com essas palavras Srta. Moore? ?Resmungou, adotando novamente uma atitude distante.

?Como lhe ocorreu tal incoerência? Uma pessoa com febre alta não pode entrar em uma banheira com água fria, mas morna e, uma vez que seu corpo se adapte a essa breve mudança de temperatura, se acrescenta gradativamente gelo, mas nunca de uma vez! ?Falou irritada.

?Bem, agora entendo porque sua vida social é tão escassa... ?murmurou em voz alta. ?Espero que os servos tenham sido mais sensatos do que eu e não o congelem antes da sua chegada.

?-Isso espero! ?Mary disse, cruzando os braços sobre o peito.

A conversa entre as duas mulheres cessou naquele momento. O silêncio reinou dentro da carruagem, embora ocasionalmente se ouvisse os grunhidos exasperados de Mary. Valeria não podia afastar o olhar dela e de se perguntar se seu irmão era consciente do verdadeiro caráter da mulher que ele invocou inconscientemente. Talvez quando se conheceram, a jovem em idade de casar, contemplou um homem tão bonito e galã, tirou todas as suas armas de sedução para apanhá-lo. Só esperava que, ao tratá-lo novamente, Philip entenderia que os escorpiões tinham menos veneno no ferrão do que ela em sua língua.

Uma vez que a carruagem estacionou na entrada da residência, o cocheiro abriu a porta para ajudar em primeiro lugar a Sra. Reform, no entanto, a filha dos Moore se esqueceu do bom protocolo e, depois de um movimento brusco, saltou para o chão sem observar a cara de espanto do empregado.

?Onde disse que se encontra seu irmão? ?Mary perguntou, agarrando a pasta com força.

?Não lhe disse ?Valeria garantiu mal humorada. ?Mas imagino que continua em seu quarto, onde o deixei antes de procurar por seu pai.

?Não há tempo a perder! Devemos impedir esse absurdo congelamento! ?afirmou, caminhando até a entrada sem esperá-la. Assim que chegou à porta, Mary pegou a aldrava e bateu até que um mordomo a abriu. ?Diga-me agora mesmo, onde se encontra o doente ?lhe perguntou assim que o viu. Entrou na casa sem ser convidada, rapidamente tirou o casaco, jogou no mordomo e olhou em volta tentando descobrir em qual lugar da casa deveria avançar.

Shals, o criado principal, fixou seus olhos cinzentos na Sra. Reform, quem apareceu depois na estranha, e perguntou-lhe com aquele olhar se deveria responder a sua exigência. Quando ela assentiu, respondeu:

?Em cima, terceira porta a direita. Se desejar que a acompanhe...

Não conseguiu terminar a frase porque Mary ergueu o vestido com a mão esquerda e subiu as escadas tão rápido que, antes de piscar duas vezes, já estava no andar de cima.

?Sra... ?disse a Valeria ?Quem é essa moça? Não será uma das amigas do Sr. certo? Já sabe que estamos proibidos de aceitar a entrada de mulheres de moral duvidosa.

?Não se preocupe. Não acredito que meu irmão a declare como amiga e tampouco é de moral duvidosa. Além disso, imagino que nem saiba o que essas duas palavras podem significar ?respondeu, oferecendo-lhe o casaco. ?É uma das filhas do doutor Moore que veio em seu lugar. Segundo me informou a esposa do médico, ela tem experiência suficiente para descobrir o que acontece com Philip e o atenderá até que seu pai apareça.

?Como disse? ?Retrucou Shals mais espantando se possível. ?Uma mulher médica? Tem certeza? Seu comportamento não me pareceu...

?Também não a achei muito adequada, mas se é capaz de descobrir o que acontece com Philip, esquecerei esse comportamento grosseiro e insolente que exibe com tanto orgulho. A propósito, sabe se poderiam colocá-lo na banheira?

?Acabaram de subir vários criados para levantá-lo da cama. Como bem sabe, as dimensões do Sr. são...

?Nem pense nisso! Deixem-no novamente sobre esse maldito colchão, bando de inúteis! ?Mary gritou com tanta força que Valeria e Shals a ouviram como se ela ainda estivesse no corredor.

?Meu Deus! ?O mordomo exclamou horrorizado. ?Continua dizendo que esta mulher é a certa para salvá-lo?

?Não ?garantiu antes de levantar o vestido com as duas mãos e subir os degraus o mais rápido que podia.

Quando chegou ao quarto, Valeria se apoiou no batente da porta para tomar ar. Enquanto sua respiração normalizava, seus olhos se cravaram dentro do quarto. Os três criados, quem tinham tentando mover o corpo de seu irmão, estavam ao pé da cama e olhavam para Mary como se ela fosse louca, pois nenhuma mulher sensata gritaria em uma casa desconhecida nem permaneceria em frente a um homem nu, embora o lençol escondesse a parte inferior de seu irmão. No entanto, Valeria ficou perplexa pela atitude fria da Srta. A filha do médico não o contemplava como uma mulher faria, mas como um médico que procurava a origem da doença que padecia seu paciente. Depois de tocar a testa, continuou com o peito. Suas mãos apalparam o peito de Philip sem nenhum tipo de sensualidade. Sensualidade? Aquela mulher não sabia o que era isso! Mas os olhos de Valeria se arregalaram e os três servos exclamaram horrorizados quando ela baixou os lençóis até os quadris. Os pelos loiros encaracolados de seu irmão ficaram descobertos. Colocou as mãos no rosto e deus graças a Deus que estava inconsciente, porque só culparia ela de tê-la levado ao seu quarto e que ela tomou certas liberdades inadequadas enquanto ele não podia se defender.

Sem afastar os olhos de Mary, notou como seus dedos largos se concentraram na parte da virilha direita. Com uma suavidade improvável apalpou durante um bom tempo, logo as afastou, andou para trás, levantou o rosto, olhou para os servos espantados e lhes perguntou:

?Onde estão os vômitos do seu Sr.? ?Como ninguém era capaz de respondê-la, pois não podiam falar por causa de seu espanto, ela começou a procurar o recipiente embaixo da cama. Quando o encontrou, pegou-o e levou até a luz da cabeceira. ?Desde quando está assim?

?Faz um dia ?Valeria respondeu entrando lentamente. ?Primeiro foram as febres e depois os...

?Se queixou de dor abdominal? ?Mary insistiu voltando para a cama com a bacia nas mãos.

Depositou-a no chão. Depois, apesar dos olhares reprovadores dos servos, colocou as palmas das mãos novamente na região da virilha afetada e justo quando seus dedos pressionaram essa parte com mais força, Giesler, que estava inconsciente até agora, gritou de dor.

?Parece que sim, se queixa... ?Valeria comentou sarcástica ao observar como seu irmão finalmente abria os olhos e agarrava com força a mão direita da jovem.

?Acalme-se, lorde Giesler. Sou Mary Moore ?começou a falar com ele ao descobrir que a olhava assombrado, como se achasse que estava vivendo uma alucinação. ?Sua irmã apareceu em minha casa para pedir ajuda ao meu pai. Como ele não se encontrava, vim no seu lugar. ?Puxou a mão, dirigiu-se a sua maleta e procurou pelo estetoscópio. Uma vez que o encontrou, voltou até o doente, colocou a campainha larga em seu abdômen e ouviu atentamente.

?Mary... ?Giesler sussurrou, apoiando novamente a cabeça sobre o travesseiro e incapaz de afastar os olhos dela.

?Chist! Preciso de silencio ?ordenou.

Philip observou-a atordoado até que Valeria se acomodou ao seu lado. Não querendo fazer nem um mísero barulho, para não desobedecer a ordem da mulher feroz, lentamente virou a cabeça até seu irmão. Ela encolheu os ombros e o olhou com simpatia, como se estivesse pedindo perdão por tê-la levado. No entanto, apesar do estado atordoado que Philip estava e da dor que percorria seu grande corpo, ele sorriu antes de desmaiar de novo.

?Acredito que ele tem a fossa ilíaca direita inflamada ?Mary comentou depositando o instrumento na maleta.

?E? —Valeria perguntou, pegando o pano que estava em uma mesa de cabeceira para limpar suavemente o rosto suado de Philip.

?Tem que fazer uma incisão nessa parte do corpo, cortar e extrair a fossa afetada, limpar bem o interior, cauterizar e costurar ?explicou, como se estivesse descrevendo uma tarefa tão simples quanto encher um copo de água embaixo da torneira.

?Como podemos aliviar a dor enquanto seu pai não chega? ?Valeria apontou, terminando a tarefa que estava fazendo.

?Não deveríamos esperar tanto. Se a fossa não estiver perfurada, há muita possibilidade que sobreviva, mas se estiver... aconselho-lhe que realize todos os preparativos pertinentes para um próximo funeral ?declarou com grosseria.

?Como ousa falar dessa forma, Srta Moore? Está se referindo ao meu irmão! Por acaso não tem compaixão? ?Clamou horrorizada por sua falta de tato.

?Sou uma mulher racional e sincera, Sra. Reform. Esclareço o que há e enfatizo que, se não agirmos rapidamente, a vida do seu irmão terminará em apenas três dias. ?Colocou as mãos na cintura e olhou com frieza. ?Não concorda com meu diagnóstico? Bem... corra! Procure o doutor Flatman para que verifique minha conclusão! Talvez seja muito tarde para ele... ?insistiu com mais crueldade do que deveria mostrar.

Por acaso estava desesperada para salvar a vida do homem que a chamara de bruxa? Por quê? Teria mudado de ideia ao ver como seus olhos azuis a observavam como se a idolatrasse? Havia em seu coração um pouquinho de piedade? Ou queria salvá-lo para depois lhe recordar que tinha um divida de vida com ela? O que quer que fosse, era a primeira vez que misturava sentimentos e trabalho...

?Está me dizendo que a vida do meu irmão está em minhas mãos? ?Valeria enfatizou se levantando do colchão.

?Não. A vida do seu irmão está nas minhas, porque serei eu quem realiza a intervenção. Você deve dar seu consentimento. Embora também possa esbofetear lorde Giesler até que aceite minha decisão ?afirmou virando até o paciente como se tivesse a intenção de lhe bater.

?Não se atreva a tocá-lo! ?Valeria explodiu andando até ela. ?Se fizer isso, garanto-lhe que não ficará um único fio de cabelo na sua cabeça.

?Não me importa ficar careca, Sra. Reform, caso não saiba, em menos de um ano vou usar outra linda cabeleira, mas se não operar seu irmão imediatamente, ele estará no subsolo, decompondo e alimentando todos os tipos de microorga...

?Maldita seja! ?Valeria gritou desesperada. ?O que quer que faça?

?Que consinta o que vou fazer ?Mary disse satisfeita.

?E se morrer durante a intervenção?

?Morrerá de qualquer maneira ?disse sem hesitar nem um único segundo.

?Está bem! Que todo mundo siga as instruções da Srta Moore! ?Valeria finalmente decidiu. ?Espero que não morra em suas mãos...

?Ele não vai ?Mary determinou antes de se colocar na frente de sua maleta e preparar todos os instrumentos que precisava para aquela operação apressada.


***

Valeria não podia acreditar no que via. Era tão improvável que mais de uma vez acreditou viver um pesadelo. Depois que a Srta. Moore ordenou acender todas as luzes que havia no quarto e que fechasse as janelas, pediu aos servos que colocassem duas mesas grandes em frente à lareira. Foi nela onde colocaram Philip. Então os obrigou a lavarem suas mãos em sete recipientes que havia cheio de água e sabão. Mas não se conformou com essa exaustiva limpeza, também os obrigou a borrifar suas palmas com um liquido que chamava desinfetante. Os lacaios fizeram isso sem questionar, porque ficou muito claro o caráter azedo e autoritário da mulher. Dois deles, que a olhavam como se fosse o próprio diabo, foram encarregados de limpar o sangue que caia no chão e de avivar o fogo. Quando tudo estava pronto, começou a trabalhar. Se até esse momento havia pensando que era uma pessoa única, o comportamento que manteve depois, confirmou. Enquanto que ela não podia permanecer de pé nem dois minutos ao presenciar a pequena incisão que fez no corpo de Philip, Mary nem piscou. Parecia que tudo ao redor deixou de existir para ela, embora falasse sem parar sobre certas descobertas cientificas sobre a operação que realizava. A jovem se concentrou no trabalho com tanta segurança e precisão que ficou fascinada. Nem em seus partos o médico que a atendeu foi tão firme e profissional! Não havia dúvidas, Mary tinha um dom e, por muito estranho que lhe parecesse, Philip sabia. Talvez por essa razão ele murmurasse tantas vezes seu nome. Mas... como e quando a descobriu? Falaram sobre medicina nesse primeiro encontro? Não, essa opção estava descartada, desde que seu irmão não tinha conhecimento sobre esse assunto. Além disso, a filha do médico não lhe agradou lembrar aquele momento, como se tivesse sido o pior de sua vida... Por que Philip sabia da incrível capacidade da mulher? Perguntaria sobre ela depois daquele dia? Por qual motivo? Esperava que, se ele se salvasse, respondesse a todas as suas perguntas, porque era a primeira vez que Philip lhe ocultava algo sobre mulheres e isso a fazia suspeitar que talvez esse encontro fora mais importante para ele que para ela.

Durante as quatro horas seguintes, Mary não foi capaz de afastar o olhar do corpo de seu paciente. Depois de sedá-lo, para o que teve que usar quase todo o clorofórmio que tinha, porque não tinha levado em conta as dimensões do paciente até que o ouviu gritar depois de apertar a ponta da escarpa em sua pele, fez a incisão na região e procurou a fossa ilíaca. Tal como pensou, pelo inchaço que apresentava a olho nu, não estava perfurada, os resíduos continuavam armazenados no pequeno apêndice vermiforme. Enquanto removia e cauterizava a borda com uma faca em brasa, falava com a desconfortável Sra. Reform sobre os descobrimentos egípcios e como registraram essa doença nas mumificações. Então mencionou os estudos que Lorenz Heriste realizou, um discípulo de Herman Boerhaave, e finalizou o monólogo cientifico com as pesquisas realizadas por Reginald H. Fitz, um famoso professor de anatomia patológica da Universidade de Harvard. Mas a única coisa que saía da boca da irmã o tempo todo era «que não morra», de modo que Mary deduziu que ela não ouviu uma única palavra de sua ampla e contundente exposição científica sobre a descoberta do apêndice inflamado.

?Agulha e linha ?pediu, uma vez que finalizou a limpeza por dentro.

?Aqui está ?respondeu o criado que havia permanecido ao seu lado em todo o momento.

?Desinfetou isto? ?Perguntou depois de segurá-lo e esticar o fio para que não tivesse nós.

?Sim, fiz tal como indicou ?informou, afastando-se rapidamente dela.

?Lavou as mãos antes de fazê-lo? Porque, mesmo que não seja visto a olho nu, nossa pele pode estar contaminada por...

?Garanto, Srta. Moore, que jamais tive minhas mãos tão limpas ?interrompeu a criada com relutância, repetindo todas as ordens sete vezes, como se não pudessem entendê-la a princípio.

Com um sorriso que cruzava o rosto, Mary começou a fechar a abertura enquanto a Sra. Reform finalmente se levantava da cadeira em que havia permanecido durante a intervenção. Quando finalizou a sutura, pegou o bisturi, cortou o fio em excesso e colocou-o na bandeja onde estava o pedaço de intestino removido.

?Agora só precisa de muito repouso. Deve tomar o remédio que deixarei sobre a mesa de cabeceira. Os banhos frios acabaram durante uma boa temporada. Recomendo que limpe seu corpo com panos em água quente e se aparecerem algumas crostas brancas em volta da ferida, tem que...

?Vai embora? Pretende deixa-lo assim? ?Valeria espetou chocada olhando para o corpo convalescente de Philip.

Reconhecia que a atitude da filha dos Moore fosse sublime e que a Sra. Moore tinha razão ao recomendá-la. No entanto, não permitiria que saísse tão cedo. Precisava que ficasse durante a noite. Ela, melhor do que ninguém, poderia atendê-lo quando acordasse.

?Meu trabalho acabou Sra. Reform. Agora cabe a vocês cuidarem do doente. Se seguir minhas instruções, em dois dias poderá se levantar e dez dias depois continuará com seu estilo de vida habitual ?respondeu retirando o suor da testa com a manga direita do vestido. ?Além disso, meu pai aparecerá em algumas horas para verificar seu estado. Se tiver alguma dúvida sobre...

?Você fica! ?Garantiu a irmã. Ao perceber que não havia usado o tom adequado para falar, pois as rugas em sua testa indicavam que jamais admitiria uma imposição, suavizou a voz. ?Srta. Moore, Mary, peço-lhe que não saia até ele abrir os olhos. Já descobriu que sou incapaz de me manter firme quando vejo sangue e se tenho que trocar o curativo ou limpar...

?A troca de curativo pode ser feita pelo meu pai dentro de alguns dias, e lembro que não é apropriado que permaneça desnecessariamente. Não tenho dúvidas de que seu irmão melhorará se seguir minhas instruções... ?Mary comentou visivelmente sufocada.

Não queria estar presente quando aquele titã loiro abrisse os olhos, preferia se manter distante do homem que a chamara de bruxa. Além disso, não podia perder tempo cuidando da pessoa que odiava. Era verdade que o salvara de uma morte certa, que tinha abrandado ao ver como ele a olhava, mas até aí chegava a sua benevolência. Quanto antes saísse daquela casa, antes poderia esquecer que o conhecia e que havia contemplado aquele imenso corpo nu. Como era possível que suas pupilas se fixassem em certas regiões indecorosas? Havia atendido muitos homens doentes, mas ele era diferente de todos eles. A largura de seu torso, de seus braços, a magnitude e a força de suas pernas... toda aquela aparência dignificava-o. Qualquer mulher, que desejasse ter filhos robustos e saudáveis, procuraria um marido como ele. Mas ela não seria essa futura esposa. Tudo o que queria era colocar alguma distância entre os dois e que sua mente esquecesse tudo o que havia observado.

?Se teme por sua honra, lhe garanto que ninguém desta casa falará sobre sua visita ?Valeria afirmou se aproximando dela.

?Honra? ?Mary perguntou divertida. ?Nunca me interessei por esse tipo de besteira! Sou a pessoa mais honrada do planeta, por isso ninguém é capaz de me suportar. Não se trata disso, Sra. Reform, está mais para privacidade. Seu irmão e você precisam de privacidade para realizar os cuidados apropriados. O que seu irmão pensaria quando me visse em seu quarto?

?Que salvou a sua vida. Só isso. E estará tão agradecido como eu estou.

?Mas não é adequado que uma mulher permaneça sozinha no dormitório de um homem ?Mary insistiu, limpando o sangue de suas mãos na bacia que um dos empregados aproximou.

?É puritana, Mary? Depois do que fez, tenta me convencer de que é uma mulher recatada? Porque se fosse, eu não teria suportado as quatro horas que a intervenção durou com tanta solenidade ?Valeria insistiu.

?Está recriminando mina atitude? Porque tenho que lembrá-la de que acabei de salvar-lhe a vida ?concluiu, assinalando Giesler com um dedo de sua mão direita.

?Não interprete mal minhas palavras, por favor. Estou e serei eternamente agradecida. Tudo que eu quero é que permaneça ao seu lado esta noite. Estou tão cansada, depois desses dias, não sei se posso agir corretamente. É por isso que suplico que me ajude. Sabe como me sentiria se depois de seu brilhante trabalho ele não se recuperar por minha causa? ?Valeria retrucou visivelmente preocupada.

?Aceitarei esse pedido como um elogio... ?Mary respondeu cruzando os braços sobre o peito. ?Mas insisto que não sou a pessoa adequada para cuidar do seu irmão.

?Pedirei a um criado para acompanhá-la em todos os momentos. Assim nunca estará sozinha e será capaz de lhe dizer tudo o que quiser ?Valeria informou-a um pouco mais calma. ?Se amanhã, quando seu pai aparecer, decidir que não deve continuar na residência, procuraremos outra pessoa para assumir o seu lugar.

?Não se trata de ficar sozinha com ele, mas sobre a reação que terá quando abrir os olhos e me encontrar ao seu lado ?Mary explicou estendendo os braços para o chão. Então voltou para onde Philip estava, coberto até o peito com um lençol que um dos servos havia colocado, e o observou em silencio. Faria a coisa certa ficando aquela noite? O que poderia acontecer? A princípio, depois de usar tanto clorofórmio, não acordaria até a chegada do novo dia, momento em que seu pai poderia se ocupar dele. Mas... e se acordasse? O que faria quando a visse? Olharia novamente para ela com ternura ou gritaria para que saísse?

?Meu irmão não vai julgá-la, Mary. Depois do que fez por ele, por que acha que reagirá negativamente? ?Valeria insistiu se aproximando dela.

?Lembra-se de uma das perguntas que me fez na carruagem? ?Mary continuou deixando Giesler para encontrar a Sra. Reform no meio do quarto.

?Agradeceria se fosse mais especifica, porque tudo que eu pensava antes de sua atitude, foi apagado da minha mente ?disse com sinceridade. Não mentia. Tudo aquilo que pensava sobre Mary desapareceu de sua cabeça ao vê-la agir.

?Me perguntou se nos conhecemos e eu lhe disse brevemente. Bem, garanto-lhe que o nosso encontro foi suficiente para eliminar qualquer amizade cordial entre os nós dois. ?Mary olhou de lado para Philip e suspirou. Parecia tão dócil naquela situação, que até ela duvidava que fosse um ogro, mas era.

?Tenho certeza que meu irmão esquecerá qualquer incidente que tiveram no passado quando descobrir que você salvou sua vida ?Valeria esclareceu indicando com a mão a saída, para que ambas saíssem juntas.

?Não estou muito convencida disso... ?murmurou caminhando até a porta. ?Você seria capaz de perdoar a pessoa que tentou matá-la?

?O que disse? ?Valeria retrucou arregalando os olhos e parando atrás dela. ?Queria matá-lo. Por quê?

?Porque me chamou de bruxa ?Mary explicou avançando rapidamente. Se a irmã começasse a gritar, era melhor que o fizesse fora do quarto para não despertá-lo antes do previsto.

?Faria sem pensar. Em defesa do meu irmão, tenho que lhe dizer que ele é muito atencioso com as mulheres, muito para meu bom entendimento... ?Valeria esclareceu, tomando novamente o caminho para fora. Ao fechar a porta, se colocou ao lado de Mary e a olhou por um momento. Por que a chamou de bruxa? O que aconteceu entre eles? Se quisesse conhecer a verdade e descobrir o motivo pelo qual seu irmão havia chamando-a dessa forma e porque sorriu ao descobrir que ela estava ao seu lado, tinha que se esforçar o suficiente para que entre elas duas crescesse uma pequena amizade. ?Me daria a honra de tomar um chá? Depois de tantas horas sem comer, estou faminta.

?Não gosto de chá, prefiro o café e se acrescentar a isso uns ovos mexidos e torradas, estarei encantada em acompanhá-la ?Mary disse parando no alto da escada.

?Vejo que não sou a única que tem fome ?Valeria afirmou sorrindo. ?Não se preocupe, o serviço é incapaz de dormir desde que meu irmão ficou doente e certamente a cozinheira ficará feliz em preparar tudo o que quisermos. ?Enlaçou o braço direito com o esquerdo de Mary e desceram as escadas juntas. ?Sabe? Philip é incapaz de sair de seu quarto sem primeiro tomar duas xícaras de café. Segundo me explicou, as pessoas que o tomam são mais inteligentes e ativas. E depois do que fez, penso que tem razão. E você é uma mulher muito lúcida e perspicaz.

?Tentando me elogiar, Valeria? Não pareço mais uma mulher tão horrível? Esqueceu meu mau caráter? Porque posso lhe garantir que não será a primeira ou a última vez que me comportarei de maneira tão grosseira. Como bem sabe, minhas habilidades sociais são bastante escassas, o que não me preocupa em nada.

Diante dessa afirmação, a Sra. Reform soltou uma risada alta, apertou Mary com mais força em direção a ela e avançaram até que pisaram no corredor.

?Depois de sua atitude, tenho que lhe dizer que possui mais qualidades positivas que negativas, embora tema que não está acostumada a esse tipo de bajulação em relação a sua pessoa, estou errada?

?Não sei muito bem o que responder a isso porque acho mais fácil enfrentar críticas do que elogios ?respondeu com sua habitual sinceridade.

?Então se acostume com isso, Mary. Se realmente salvou a vida do meu irmão, ele se transformará em seu fiel protetor e eu em sua principal admiradora. Acha que qualquer um de nós permitirá que voltem a menosprezá-la por realizar um trabalho que até agora só realizavam homens? Ninguém será tão tolo em lidar com a protegida de Giesler ?garantiu enquanto a dirigia para a cozinha.

?Se você diz... ?Mary declarou um pouco desconcertada.


Capítulo II


Tinha que admitir que a conversa que manteve com a Sra. Reform se mostrou muito agradável. Além das numerosas atenções afetuosas, que lhe fizeram desconfortável mais de uma vez por não estar a costumada a tanta cortesia, a conversa foi muito reveladora para ela. Descobriu que os Giesler procediam de uma casta de barões alemães, que o pai se apaixonou por uma cigana espanhola e que ambos saíram da Alemanha para viverem seu romance. Uma bela história que terminou com três filhos: Valeria, Philip e Martin. Este último não o conhecia pessoalmente, mas tinha ouvido falar dele pelo excelente trabalho como professor de matemática avançada na Universidade de Oxford. Aparentemente, era uma celebridade, apesar de ser tão jovem. Isso só aconteceu porque tinha nascido homem...

Pegou o vestido com as duas mãos e subiu novamente as escadas. Nesta ocasião não foi acompanhada pela Sra. Reform, pois lhe insistiu que fosse a sua casa para descansar. Tal como Valeria garantiu com autoridade, só ela poderia ajudar o paciente se ele piorasse. A princípio se negou a deixá-la sozinha, pois fez uma promessa a sua mãe. No entanto, depois de uma intensa discussão, concordaram que Shals, o principal mordomo de lorde Giesler, permaneceria ao seu lado durante toda a noite. Mary sorriu novamente ao lembrar o memento em que o servo entrou na cozinha e ouviu a decisão de Valeria. Se naquele momento Anne estivesse junto para contemplar aquele rosto, tê-lo-ia pintado entre gargalhadas. Jamais admirou olhos tão abertos e uma boca tão grande. Na verdade, não pretendia que agradecesse por ter salvo a vida do homem que pagava o seu salário, mas tampouco esperava que reagisse com tanto medo e surpresa, como se estivesse em frente ao próprio Lúcifer. O fiel empregado acreditava que, no meio da noite, ela mudaria de ideia e, depois de pegar seu bisturi, retalharia seu senhor da cintura até a garganta? Embora essa ideia parecesse agradável na manhã em que o conheceu, havia mudado de opinião. Talvez o fato de saber que suas mães tinham algo em comum ou descobrir que não era tão invencível como lhe pareceu naquele dia, suavizou seu temperamento. Quem teria imaginado que um homem com esse aspecto se encontraria apertando a mão da morte? Possivelmente seu sangue espanhol, o único legado da mãe, porque não tinha dúvida de que Lorde Giesler herdara o físico de seu pai, que o mantivera vivo até sua chegada. Ambos os pais haviam passado por situações muito parecidas: a mãe fugiu dos ciganos para se casar com um médico e a cigana espanhola com um barão alemão. Sem dúvida alguma, ambas as mulheres tiveram a sorte de encontrar os homens que as amariam e respeitariam até a morte.

Quando chegou ao patamar no primeiro andar, caminhou lentamente até o quarto onde passaria as próximas horas. Só tinha que respirar fundo e agir com naturalidade até que seu pai chegasse. Uma vez que ele confirmasse que o paciente estava bem e que evoluiria normalmente, sairia de lá sem olhar para trás. Não era bom para ela permanecer ao lado de um homem que havia desejado odiar depois de lhe salvar a vida e descobrir que tinham muitas coisas em comum.

Colocou a mão na maçaneta e virou-a devagar, para não fazer muito barulho. Os criados, exceto Shals, haviam se retirado para descansar e não queria tirá-los de seus quartos se perguntando o que havia feito desta vez a filha do médico. Ao abrir a porta, ao olhar para dentro do quarto, levou as duas mãos até a boca e a pressionou com força para que seu grito não se ouvisse. Por que diabos fizeram tal coisa? Se não falhava a memória, jurava que os havia ordenado que não movessem o recém operado até que acordasse? Bem, eles a ignoraram! Os lacaios, aqueles a quem lavara as mãos tanto que pôde observar como alguns pedaços de pele morta caíram no chão, ergueram o grande corpo de seu paciente para colocá-lo no confortável colchão. Por acaso estava trabalhando com um bando de teimosos? Não eram capazes de entender suas palavras? Bem, terminariam compreendendo cada letra! No dia seguinte, assim que a Sra. Reform aparecesse, pediria que convocasse uma reunião com os servos. Uma vez que todos estivessem em silencio e atentos as suas palavras, escolheria uma linguagem muito simples para que pudessem compreender melhor as ordens.

Obrigou-se a se concentrar no bem estar de seu paciente. Andou pelo quarto pisando com força e não parou até se posicionar ao lado direito da cama. «Verdammt![2]», exclamou horrorizada ao descobrir que seus dedos, por mais que esticasse seus braços, de onde estava não alcançava o curativo, porque o haviam deitado exatamente no centro da imensa cama. Mas como podiam ser tão inúteis? Não deduziram que ela tinha que subir no colchão para tocar sua testa ou para verificar se a ferida não havia sido aberta ao deslocá-lo? Não! Como poderiam calcular uma lógica tão simples? O único que desejavam era que seu senhor acordasse confortavelmente em sua cama enorme, sem se importar com a inconveniência que a pessoa que salvara sua vida encontraria durante a noite. Por acaso não podia proteger sua honra? O fato de que Valeria mostrasse que sua presença deveria ser mantida em segredo para o bem de todos, não lhes dava o direito de tratá-la como se ela não estivesse. Depois de bufar como um cavalo ao final de uma interminável corrida, seguiu em direção a lareira, onde se encontrava um caldeirão com água limpa e quente. Colocou as mãos e tirou rapidamente ao sentir como sua pele queimava. Olhou com raiva para o paciente, como se estivesse rindo dela e voltou a resmungar. Sim, essa reunião com os empregados deveria se realizar o quanto antes e quem não acatasse suas ordens, ela mesma expulsaria a patadas da residência.

Irritada com a inépcia dos lacaios, ela voltou para a cama para garantir que o paciente não sangrasse. Só faltava que depois do que aconteceu nesse dia, lorde Giesler morresse depois da sua intervenção. O que comentariam aqueles que sempre zombaram da sua inteligência e capacidade? Não suportaria uma humilhação semelhante e seu pai teria que procurar outro capitão de navio que não levasse somente Anne a França, mas ela também. Olhou para a porta, que ainda permanecia fechada, e deixou de respirar, para aguçar o sentido da audição. Depois de comprovar que não havia ruído ao seu redor, subiu com muito cuidado na cama, se ajoelhou sobre o colchão, afastou rapidamente o lençol do corpo de Giesler e cravou seus olhos no curativo. Tinha várias manchas de sangue nele, mas eram normais depois de uma operação desse tipo. Talvez aqueles que o moveram foram mais atentos do que pensou. Assim que confirmou que o curativo continuava firme na cintura, apoiou a mão direita sobre a cama para descer. No entanto, seus olhos seguiam fixos no imenso e forte peito de Giesler. Como havia deduzido antes, era um homem bastante robusto e bonito. Poderia classificá-lo até como atraente, embora naquele momento precisasse de um bom banho para eliminar o suor que tinha emanado do seu corpo. Sua mata de cabelos loiros, que cobria desde seu peito até a cintura, possuía uma tonalidade mais escura que a de seu cabelo, permanecia preso à pele pela transpiração. Então reviu seus ombros, admitindo que o volume deles permanecia de acordo com a solidez de seus braços. Valeria não tinha dito que acompanhava o visconde em suas viagens? Bem, a cor de sua pele e a musculatura confirmavam que não passava as longas viagens protegido em um camarote. Sem dúvida alguma, se transformaria em um corsário vulgar uma vez que zarpassem. Pela diferença de tom entre o peito e a cintura, não tinha dúvidas de que lorde Giesler mostrava seu grande peito sem pudor, fazendo com que o sol e a brisa marinha alcançassem sua pele. Entendia o motivo pelo qual a cigana espanhola se apaixonou pelo barão alemão a primeira vista. Se seu filho tivesse herdado o físico paterno, tal como Valeria disse, não haveria mulher que resistisse a um homem tão atraente. Exceto ela, claro. Pois era imune a sedução masculina. Afastou o olhar do peito e fixou em seu rosto. Seus traços viris se acentuavam com a barba loira que cresceu desde que adoeceu. Seria grosseiro como o caráter que ofereceu no dia que se conheceram ou seria tão suave quanto o toque do lençol? Intrigada para descobrir que sensação tinha, levou os dedos de sua mão direita até o rosto de Philip e o acariciou lentamente. Surpreendentemente, ele virou a cabeça para a palma da sua mão quando sentiu o contato e, embora tivesse que retirá-la rapidamente, para o caso de ele acordar, a manteve até que ouviu a porta abrir.

?Srta Moore... ?disse Shals ao encontrá-la naquela posição tão pouco adequada. ?O que está fazendo? O senhor está acordado?

Dissimulando o espanto que lhe causou ser descoberta dessa maneira tão afetuosa, esticou o lençol para cobrir o pescoço e saiu da cama com menos delicadeza do que quando subiu.

?Estava confirmando que, ao movê-lo, a ferida não se abriu ?explicou com uma serenidade fingida. Colocou os pés no chão e deu vários passos para trás.

?E fez isso? ?Perguntou o mordomo entrando no quarto com uma enorme poltrona em suas mãos.

?Por sorte não. Mas foi imprudente movê-lo tão depressa ?Mary respondeu, se afastando o suficiente para que o criado colocasse a pesada poltrona ao seu dela. ?Para quem é isto? ?Perguntou curiosa.

?A Sra. Reform, antes de sair, me pediu que subisse a poltrona mais confortável que nosso senhor tem em seu escritório ?respondeu depois de deixá-la no chão e colocar as mãos nas costas, como se tivesse se machucado ao transportá-la.

?Dói? ?Mary disse se aproximando dele. ?Não deveria tê-la trazido sozinho. Deveria pedir ajuda a outro lacaio. ?Antes de ouvir a resposta de Shals, andou até o caldeirão quente que estava em frente à lareira, mergulhou um pano e, aguentando a alta temperatura, voltou para onde o empregado estava. ?Tire seu casaco e suba a camisa, por favor. Isto acalmará a dor.

?Mas... mas... ?ele gaguejou.

?Ou faz por vontade própria ou lhe garanto que não me importará tirá-la eu mes...

?Está bem. Farei o que me pede ?desistiu. Apesar do desconforto que sentiu, não só se separando de seu traje na frente de uma mulher, mas também pela indisposição em sua cintura, tirou o paletó e levantou a camisa para o meio das costas. Shals fechou os olhos quando notou um leve alívio quando Mary colocou o pano em sua pele.

?Não quero que você interprete mal minhas palavras, mas você está velho demais para fazer semelhante esforço ?alegou pressionando o pano úmido sobre a pele.

?Sempre fala dessa forma, Srta Moore? ?Shals estalou olhando por cima do ombro. Vendo que ela estava sorrindo, como se não se importasse com a pergunta mordaz, ele também sorriu.

?Como disse a Sra. Reform, sou uma pessoa muito racional e sincera. –Com a mão direita pegou a do mordomo e a colocou sobre o pano, então fez o mesmo com a outra. ?Aguente por mais alguns minutos. Se ainda continuar doendo, posso te dar um analgésico que tenho na maleta.

?Obrigado, com isto será o suficiente ?Shals respondeu depois de se virar para ela. —Posso fazer-lhe uma pergunta?

?Pode fazê-la, mas não prometo que a responda ?disse antes de circundar a cama, se aproximando de Giesler novamente, alongando seu corpo até que pudesse pegar seu pulso e confirmar que era adequado.

?Como aprendeu tudo o que sabe? ?Perguntou sem poder afastar o olhar dela. ?Seu pai a ensinou como se fosse um homem?

O sorriso que havia mostrado até esse momento, desapareceu. Levantou o queixo e olhou para o criado como se quisesse fuzilá-lo.

?Por acaso acredita que as mulheres nasceram sem cérebro e que a função dos homens é criá-las a sua conveniência? ?Disse levantando a voz.

?Não! Não! Por favor, Srta Moore, não interprete mal minhas palavras ?declarou Shals em voz baixa. ?Juro que não quero magoá-la ?argumentou, afastando o pano de suas costas.

?Disse para não tirá-lo ?repreendeu quando viu que, devido ao nervosismo, ele havia desobedecido a sua ordem.

?Sinto muito... outra vez ?Shals declarou acatando a ordem de Mary enquanto abaixava a cabeça, envergonhado.

?Tem filhos? ?Mary continuou falando enquanto voltava a poltrona que havia trazido. Se sentou e levantou o queixo para continuar observando o mordomo.

?Não.

?Então deduzo que é absurdo explicar as decisões que meu pai tomou depois de ser pai de cinco filhas ?se recostou na poltrona, cruzou os braços e encarou o paciente, que ainda estava descansando tranquilamente.

?Tenho sobrinhas, se isso lhe serve de algo ?Shals explicou passando atrás da poltrona para chegar até a lareira.

Se o pano quente acalmava um pouco a sua dor, imaginou que estar em frente ao fogo, faria desaparecer. Além disso, aquele lugar era ideal se a Srta Moore sofria outro ataque de raiva por seus comentários inapropriados.

?Como seus pais se comportam com elas? ?Mary perguntou, virando na poltrona o suficiente para observar o servo.

?Nascemos em uma família que sempre se dedicou a servir, Srta Moore. Pode concluir que minha irmã e meu cunhado as instruem para continuar essa tradição ?explicou com cautela.

?Felizmente para nós, nossos pais têm uma visão mais precisa do futuro de suas filhas ?Mary suspirou.

E ela também agradecia ao bom senso que ambos possuíam. Nem sua mãe nem seu pai teriam educando-as para se tornarem as futuras esposas de senhores odiosos que não as valorizassem. Único objetivo para jovens burguesas ou aristocratas. No entanto, graças a uma educação tão liberal, as cinco puderam desfrutar de algo que poucas mulheres possuíam: a felicidade. Como seriam suas vidas se tivessem sido instruídas sob a absurda opressão social? Tediosa, com certeza, e todas tinham lutado para conseguir a liberdade que precisavam.

?Fico feliz por você ?Shals comentou ocupando finalmente uma poltrona sem encosto que estava do seu lado direito. ?É muito estranho descobrir que alguns pais não são influenciados pelos costumes que nos cercam.

?Meu pai sempre teve uma visão diferente da vida ?Mary continuou um pouco mais relaxada. ?Desde que éramos meninas, nos ensinou a cuidar de nós mesmas e aceitou o caráter com o qual nascemos.

?Em seu caso, o amor pela medicina, certo? ?Shals insistiu e devido à calma de sua dor e ao tom suave da mulher, começou a relaxar.

?Não pense que foi fácil admitir meus interesses. No começo ele estava relutante em me ensinar tudo o que sabia, mas com o tempo lhe mostrei que minhas habilidades são adequadas para tal função ?explicou com orgulho.

?E afirmo-o ?o mordomo garantiu, fixando seus olhos em Giesler. ?Confesso que estou impressionado.

?Pela operação? ?Mary retrucou rindo. ?Não foi nada... Um corte longo, um mais curto, remover, limpar e cauterizar.

?Diz isso com tanta normalidade que dá a sensação que qualquer um pode fazê-lo e não é assim. Srta Moore, tem que compreender que fez algo maravilhoso e incrível. Tenho certeza que nenhum médico poderia ter realizado uma intervenção urgente com a serenidade que você manteve em todo o momento. Graças a Deus, a Sra. Reform, depois de ouvir as palavras que o senhor pronunciou em seus delírios, foi buscá-la.

?O que disse? ?Mary perguntou se inclinando para frente, para observar melhor a expressão no rosto de Shals.

?A senhora não lhe disse? ?O mordomo respondeu com certa inquietação ao deduzir que havia cometido um grande erro.

?A senhora falou em procurar meu pai, Randall Moore, mas não me disse que Lorde Giesler mencionou meu nome em seus delírios febris ?declarou com surpresa.

?Não! Não! Não me referia ao seu nome ?Shals mentiu ?mas seu sobrenome. Meu senhor, não parava de repetir o sobrenome de seu pai. Por isso a senhora foi a sua busca.

?Já percebi... ?comentou enquanto voltava a se recostar na poltrona e fixava seus olhos no paciente. Não lhe teria ocorrido falar sobre ela, certo? Porque se fosse assim, esperaria que se curasse para deixá-lo doente de novo.

?Como descobriu, tão rapidamente, a doença do meu senhor? ?Shals, ao confirmar que suas palavras a haviam relaxado novamente, mudou de assunto. Não desejava se envolver em um problema em que se confrontaria com o caráter daquela moça e do homem ao qual servia há vários anos, porque a única coisa que conseguiria seria uma demissão iminente.

?Conto a versão entendida, que abrange desde a época egípcia ou se conforma com o momento em que apalpei meus dedos na inflamação? ?Mary disse divertida.

?Com queira. Lembre que temos que permanecer acordados toda a noite e minha única tarefa é ficar com você neste quarto ?Shals respondeu com o mesmo tom jocoso.

?Sendo assim, começarei com os estudos que se realizaram depois de algumas descobertas em certos túmulos egípcios...

Durante um pouco mais de duas horas, Mary explicou sem parar tudo o que conhecia do assunto: seus descobrimentos, quem os estudou, suas conclusões e como os resolviam durante diferentes séculos. Em várias ocasiões o mordomo se aproximou dela para servir-lhe um copo de água fresca, mas ela não percebeu esse detalhe de cortesia. Mary estava incrivelmente emocionada porque era a primeira vez que alguém a escutava falar sobre medicina com atenção e até fazia perguntas sensatas. Se sentiu tão confortável que terminou confessando tudo o que lhe perguntava sobre sua infância: o dia em que seu pai a descobriu com um livro de medicina, os gritos de Shira ao descobri-la dissecando o corpo de um gato morto, as contínuas ameaças de sua mãe com seus livros, as reuniões de medicina que assistia. Falou tanto e se encontrava tão satisfeita que não reparou em Giesler exceto quando este emitiu um leve gemido. Nesse instante, Shals abandonou rapidamente a banqueta na qual permaneceu e se aproximou dos pés da cama enquanto observava como ela o atendia.

?O que acontece ?perguntou inquieto.

?Nada estranho ?ela respondeu depois de tocar sua testa e verificar que seu estado era normal. ?O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar. ?Deixou a cama, se dirigiu até a mesa de cabeceira onde havia deixado o copo que Shals enchia continuamente e voltou até Philip.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo... ?enfiou os dedos da mão direita dentro do copo, molhou-os e, depois de levantá-los, colocou-os sobre a boca de Giesler.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

?A Sra. Cheap tem um unguento a base de gordura animal que usa para que as mãos não rachem. Se quiser, posso pedir-lhe para...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaico. Terá mais que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção ?comentou com certo tom de amargura.

?Srta Moore, não me interprete mal, te suplico. Só desejo facilitar em tudo que possa seu excelente trabalho. Imagino que seja um pouco incomodo subir na cama do meu senhor, se ajoelhar ao seu lado e se inclinar até sua boca para umedecê-la com seus próprios dedos ?Shals explicou surpreso ao descobrir que ela era tão inocente que não era cuidadosa com a imagem que oferecia. Mais que um médico hidratando os lábios de um doente, parecia uma concubina fazendo alguma brincadeira erótica no seu cliente.

?Olhando a partir dessa perspectiva, parece que estou fazendo uma coisa horrível e tudo que pretendo é...

Mary ficou muda ao sentir uns dedos apertando em torno de seu pulso direito. Continuava olhando Shals, que já não expressava assombro, mas pavor. Tampouco fixava seus olhos nela, mas os dirigia até o lugar do colchão onde se encontrava lorde Giesler. Mary tragou a saliva e virou lentamente sua cabeça em direção ao rosto do homem que, inexplicavelmente, já havia acordado. Quando seus olhares se cruzaram, o coração paralisou. Aquele homem voltava a olhá-la como no dia em que se conheceram. Não havia ternura sem seus olhos, senão ódio e raiva. Por que diabos não lhe deu mais clorofórmio? E... de todas as maneiras possíveis para encontrá-la, teria que ser dessa maneira? O que passaria por sua cabeça ao vê-la sobre sua cama e ajoelhada ao seu lado? Pensaria que começaria a chorar como uma amante dramática ao ver a vida de seu amor em perigo? Por que Shals não falava? Por que não lhe oferecia o atiçador da lareira para que ela pudesse bater na cabeça dele e deixá-lo inconsciente de novo?

?Senhor... Milorde... ?Shals tentou finalmente dizer ao ver como lorde Giesler olhava a Srta Moore. ?Ela... é...

?Quem lhe salvou a vida ?Mary garantiu antes de fazer um movimento brusco com a mão, para se livrar do aperto, e descer da cama rapidamente.


Capítulo III


Não podia se mexer. Era incapaz de separar os cílios para observar quem se encontrava ao seu lado. Sua mente estava completamente adormecida e seu corpo parecia ter perdido toda a força. Não tentou nem desejou realizar nenhum esforço, pois pressentia que não conseguiria. Com os olhos fechados e imóvel, tentou lembrar o que havia acontecido. Mas não conseguiu nada, exceto que dias atrás se encontrava muito indisposto e que, de repente, seu corpo não se mantinha em pé. Em que dia da semana estava? Tinha perdido também a consciência? Quando? Respirou fundo, aplacando lentamente a angustia que sentia ao se sentir tão fraco. Pelo menos estava em casa, em seu quarto. A maciez característica do seu colchão e o cheiro do seu perfume atestavam isso. Deixando de lado a incerteza do que poderia acontecer, se concentrou nas vozes. A princípio parecia distante, mas com o passar do tempo ficaram mais nítidas e próximas. Duas. Ao seu lado permaneciam duas pessoas. Uma sem dúvida alguma era Shals. Poderia reconhecer sua voz, mesmo que ele estivesse trancado em uma caixa de metal. No entanto, se concentrou na outra. Uma mulher. Sim, aquele tom suave, mas ao mesmo tempo estridente, apenas uma fêmea poderia oferecê-lo. Conteve novamente a respiração, acalmando qualquer som que ele mesmo produzisse, para descobrir de quem poderia ser. Não teria ocorrido a Shals a ideia horrível de levar suas antigas amantes para cuidar dele, certo? Se ele tivesse tomado essa decisão, sua posição estava em perigo.

?Por que pensou em dissecar o pobre animal? ?Ouviu perguntar a estranha que, pela proximidade de sua voz, devia estar muito perto.

?Por curiosidade ?ela respondeu antes de soltar um sorriso suave. ?Precisava ver com meus próprios olhos o que escondia embaixo do pelo e da gordura. Além disso, estudar um coração na imagem de um livro não é o mesmo que tê-lo em suas mãos.

?Descobriu?

?Sim, até que Shira gritou horrorizada. ?Ela se divertiu ao lembrar aquele episódio de sua vida. —De acordo com ela, estava cometendo uma barbárie, então fui forçada a deixar o corpo e correr sem parar até chegar ao meu quarto.

?Imagino que sua mãe a castigou ?Shals deduziu.

?Somente até meu pai chegar. Quando expliquei a razão pela qual fiz isso e mostrei a ele todas as anotações que havia feito em um caderno pequeno, a punição acabou imediatamente. Daquele dia em diante, ele me ajudou a satisfazer minha curiosidade científica. Mas não me permitiu, até que completasse dezoito anos e depois de me presentear com a maleta que trouxe hoje, acompanhá-lo em suas consultas médicas.

?Atendeu aos doentes nessa idade tão jovem? ?Shals perguntou surpreso.

?Não. Eu apenas observava a atitude do meu pai e ouvia com atenção todas as suas explicações. No entanto, tenho que lhe assegurar que a grande maioria dos conhecimentos que possuo, consegui através dos livros que tenho lido sobre medicina.

?Você é uma mulher muito especial, Srta Moore.

?Obrigada ?ela respondeu, aceitando o elogio com prazer.

«Srta Moore...» Philip sentiu como seu peito se comprimia ao ouvir aquelas palavras. Seria ela? A bruxa de cabelos escuros tinha ido a sua casa para curá-lo? Por quê? Quem lhe havia pedido ajuda? Porque aceitou o pedido depois do terrível episódio que viveram dias atrás? Tentou se levantar para confirmar que não era uma alucinação, que sua mente distorcida não o enganava, mas continuava fraco, muito até mesmo para levantar um dedo. Assumindo que a única coisa que poderia fazer era ouvir com atenção a conversa da filha erudita do Dr. Moore, se concentrou em não perder nenhuma palavra. No entanto, uma pontada aguda de dor em sua cintura o fez rosnar, chamando a atenção de ambos.

?O que aconteceu? ?Ouviu Shals perguntar.

?Nada de estranho. O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar.

Philip percebeu como o colchão se inclinou ligeiramente para a sua esquerda. Depois disso, uma mão macia e quente tocou sua testa.

Mary...

Ela subiu na cama para confirmar que não estava piorando. Se deixou levar pela sensação de prazer que notou na leve carícia. Nunca se sentiu tão tranquilo e protegido por uma pessoa. Sempre foi ele quem velava pela segurança dos outros. Mas naquele momento, sua figura desamparada estava sob a proteção da mulher a quem ele gritou e admirou, em partes iguais. Ele apertou mais as pálpebras quando percebeu que estava se afastando. Uma estranha frieza percorreu seu corpo, causando um tremor intenso. Até suas vísceras reivindicavam essas carícias tão relaxantes. Não demorou em voltar. Para seu prazer, Mary ficou ao seu lado novamente.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo...

Tudo o que uma vez descreveu como maravilhoso desapareceu de sua mente quando sentiu a suavidade dos dedos molhados tocando seus lábios. Queria gemer de prazer, mas permaneceu quieto e calado. Não queria quebrar um momento tão terno, tão esplêndido. Possivelmente seria o único momento em que ela se comportaria de maneira tão afetuosa porque, uma vez que descobrisse que havia acordado, a mulher árida e gélida retornaria.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

Seu ferimento, o que ela mencionou, não sangraria. O que estava sangrando era sua alma. Porque lá estava ela, a mulher que jogou aqueles rolos de metal, saciando sua sede com os próprios dedos. Esse ato poderia defini-lo como o maior bem-estar que ele poderia sonhar? Talvez ele tivesse morrido e sua visão da vida eterna fosse ter aquela bruxa ao seu lado que ele não podia esquecer desde que a conheceu.

?A Sra. Cheap tem uma pomada à base de gordura animal que ela usa para evitar que as mãos rachem. Se desejar, posso pedir-lhe para que me...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaicos ?interrompeu-o?. Terá mais do que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção.

«Não!» Philip quis gritar com a opção que Shals lhe oferecia. Ele não queria que ela se afastasse dele, ou que seus lábios fossem borrifados com qualquer coisa, menos a água fresca de seus dedos. Ele precisava que ela continuasse com aquele ato íntimo, para tê-la por perto, sentir o perfume que ela exalava e a suavidade de seus dedos molhados.

Shals continuou falando. Ele explicou que não era apropriado que ela adotasse uma certa postura. Que postura seria? Estaria desconfortável? A inquietação tomou conta dele ao pensar que ela sofreria alguma doença por sua culpa. Muito lentamente, ele separou as pálpebras. A princípio, sua visão não era clara. Pelo contrário, parecia ter uma teia de aranha sobre as pupilas. Ele piscou várias vezes até alcançar a nitidez que desejava. Quando a viu, sentiu que não apenas sua alma estava sangrando, mas também seu coração. Mary estava ajoelhada na cama, estendendo a mão para a boca, hidratando-a, tal como explicava a Shals. Lentamente, seus olhos se desviaram para o peito feminino escondido sob um vestido que ele não conseguia distinguir claramente sua cor. Preto... talvez azul. Seus braços longos e delicados estavam nus, porque em algum momento decidiu enrolar as mangas até os cotovelos. A visão daquela pele esbranquiçada parecia requintada, atraente e tremendamente maravilhosa. Se estava morto, não tentaria voltar ao mundo dos vivos, pois o que vivia era ideal para ele. No entanto, justamente quando Shals percebeu que era capaz de observá-los, deduziu que sua situação idílica havia chegado ao fim. Ele lentamente levantou a mão esquerda para o pulso de Mary, agarrou-a e ela parou de falar.

Seus olhos se encontraram e se entreolharam por um momento. Ele queria transmitir através deles a felicidade que sentia ao encontrá-la ao seu lado, para cuida-lo. Mas o medo e a confusão mostrados pelo olhar de Mary o surpreenderam.

?Sr.... milorde... Ela é...

As palavras de seu mordomo ouviram-nas longe, como se não estivesse ao pé da cama, mas a 160 quilômetros de distância. Não quis prestar atenção à desculpa que Shals ofereceria ao encontrá-la em uma postura tão comprometedora. Tudo o que ele desejava era continuar contemplando a imagem perfeita de Mary: ao seu lado, em sua cama, acariciando sua boca com os dedos, saciando sua sede... Esse sentimento de felicidade se tornou em pavor quando percebeu sua mudança abrupta de atitude. Ela voltava a levantar o muro que os separou naquele dia.

?Quem salvou sua vida.

Manifestou em um tom de voz que Philip odiou. Lutou até libertar a mão de seu pulso e se afastou da cama, de seu lado. Continuou a olhá-la. Não podia afastar os olhos dela. Precisava observar todas as expressões que mostrava seu rosto. Surpresa, alegria, tristeza, compaixão? O que seria? Por qual escolher?

?Shals... ?murmurou lentamente. ?A... água... ?terminou de dizer.

O mordomo se aproximou rapidamente da cama, pegou o copo no qual Mary colocara os dedos e, quando ia lhe oferecer, ela gritou de horror.

?Nem pense em fazê-lo!

?Srta Moore, o senhor está me pedindo...

?E lhe dará, mas não dessa. Certamente que está contaminada depois de colocar meus dedos.

?Duvido muito que esteja depois de como foi lavado ?Shals apontou com um pouco de diversão.

Enquanto Mary estava em frente à lareira, onde podia observar claramente o paciente e permanecer distante, a criada esvaziou a água do copo na bacia e voltou a enchê-lo do jarro que havia sobre a mesinha. Se aproximou de lorde Giesler, segurou-lhe a cabeça e com muita delicadeza lhe deu de beber.

?Obrigado... ?ele disse uma vez que saciou sua sede. ?Shals, me ajude a sentar.

?Srta Moore, ?ele começou a dizer olhando para ela com os olhos arregalados ?acha que é uma boa ideia fazê-lo?

?Não. ?Garantiu indulgentemente. ?Precisa ficar deitado mais algumas horas.

O suficiente até que seu pai aparecesse e ela pudesse sair dali. Não podia enfrentar de novo esse olhar ameaçador. Só de pensar que continuava a odiá-la, a amarga e ressentida Mary voltaria para causar outro grande escândalo.

?Ficarei satisfeito se levantar um pouco minha cabeça. Não quero ficar o tempo todo olhando para o teto. ?Philip solicitou, a modo de queixa, a seu empregado, que acabou concordando com esse pedido, apesar de ouvir como a mulher bufava. ?O que aconteceu comigo?

?Um milagre! ?Shals exclamou dando um passo para trás, depois de acomodar o travesseiro.

?Que absurdo! ?Mary comentou, virando-se para não mostrar a raiva que tinha ao ouvir uma palavra tão estúpida para ela.

?Milagre? ?Philip retrucou olhando para a figura feminina. ?O que você quis dizer?

?Milorde, está acamado há pouco mais de dois dias. A Sra. Reform ficou ao seu lado esse tempo todo. Tentou curá-lo, mas, admitindo que precisava da ajuda de um médico, foi procurar o Dr. Moore. No entanto, ele não pôde comparecer e, em vez disso, a Srta Moore veio. Ela... ?Shals respirou fundo, olhou para a jovem e falou com orgulho, como se fosse seu próprio pai. ?Ela descobriu rapidamente que doença sofria e agiu imediatamente. Ela o operou, senhor. Ela salvou sua vida...

Giesler não tirou os olhos dela em nenhum momento. Algo dentro dele cresceu tão intensamente que seu peito expandiu. Felicidade? Agradecimento? Não sabia ao certo em que consistia essa emoção que inclusive lhe proporcionava forças para se levantar. Mas ele ficou parado, olhando-a sem piscar. Se ela descobrisse que estava começando a melhorar, iria embora e não estava disposto a se separar da mulher tão rapidamente que, rudemente, lhe dava as costas.

?Tinha a fossa ilíaca inflamada. ?Mary começou a dizer, olhando para o fogo. ?Tudo o que fiz foi tirá-la do seu corpo antes que fosse tarde demais.

?Pelo amor de Deus! ?Shals exclamou novamente. ?Explica como se fosse uma coisa muito simples e não foi. Sua intervenção durou pouco mais de quatro horas e posso garantir-lhe que, em nenhum momento, a Srta Moore diminuiu sua vontade de salvá-lo.

?Não preciso que me lisonjeie. ?Ela recriminou, ainda de costas para Giesler. ?Qualquer médico teria realizado essa operação com a mesma capacidade e eficiência que eu.

?Mas falamos de uma mulher... ?Shals sussurrou a seu senhor, comentário que fez Philip sorrir. Não só por afirmar algo evidente, mas pela forma temerosa de dizê-lo. Assustava-o? Conhecia o caráter especial da filha do médico?

Sem apagar o sorriso do rosto, ele continuou a admirá-la até seus olhos oferecerem uma imagem que ele nunca esqueceria. Se sua mente nunca parasse de mostrar a ele o momento em que se conheceram, e como o tecido de sua camisola se encaixava em sua figura, o fato de ficar na frente do fogo e que a luz das chamas atravessasse o tecido de seu vestido, concedeu a ele uma nova e esplêndida visão de suas pernas e quadris. Ela não usava anáguas? Por quê?

?Diga-me o que aconteceu ?Philip disse para Shals.

?Desde o início? ?estalou o mordomo se acomodando na cadeira onde Mary havia ficado antes que acordasse.

?Sim ?Giesler garantiu sem desviar o olhar daquela imagem espetacular.

Tal como pediu, Shals contou-lhe com todos os detalhes o que tinha acontecido desde que o encontraram caído no quarto. Os cuidados oferecidos por sua irmã, febre, vômito e convulsões. Evidentemente, ele não fez referência às palavras que evocou durante seus delírios. Mas, para dar uma explicação lógica do motivo pelo qual a Sra. Reform foi procurar o Dr. Moore, indicou que um funcionário havia ouvido que o médico seria o mais adequado para ajudá-lo, dada a fama que adquirira em Londres. Nesse momento Shals advertiu que Mary pegou o atiçador, o levantou e logo moveu as brasas com certa beligerância. Ele não quis perguntar o motivo pelo qual ela estava realizando esse ato brusco, decidiu continuar lhe falando sobre a saída de sua irmã para a residência do doutor e a chegada desta com a Srta. Moore. Explicou como gritou com os funcionários que se propunham a banhá-lo em água fria, como se aproximou dele e o espanto que todos mostraram quando a ouviu explicar que doença estava sofrendo. Narrou de maneira engraçada o momento em que ela forçou os servos a lavar as mãos em caldeirões diferentes e como insistia que fossem borrifados com um líquido que ela guardava na pasta. Philip não sorriu ao escutá-lo. Seu rosto estava rígido e seus olhos estavam fixos nela. Descobrir que havia tomado uma decisão tão importante, apesar de ambos não terem sido cordiais naquele dia, o deixou atordoado. Ele não tinha dúvida de que os rumores sobre seu intelecto eram verdadeiros, assim como afirmou aquilo que concluiu depois de investigá-la: os homens, que zombavam dela e a humilhavam constantemente, agiam dessa maneira porque a temiam. Eles estavam muito conscientes de que ela poderia superá-los, mesmo com os olhos fechados.

E isso que tinha crescido nele, que ainda não podia definir, aumentou.

?Obrigado. ?Lhe disse quando Shals concluiu a história. ?Te devo minha vida, Srta. Moore.

?Bobagem! ?Exclamou finalmente virando-se para ele. ?Não me deve nada. Como disse a seu mordomo, qualquer pessoa em meu lugar teria agido de maneira semelhante.

?Mas você enfrentou com valentia a Sra. Reform ?Shals interveio. Ao observar o rosto desconcertado de seu senhor, esclareceu: ?Sua irmã queria esperar o Sr. Moore, mas a Srta. insistiu em agir rapidamente. Além disso, lhe garantiu que morreria se não intervisse imediatamente.

Mary notou como suas bochechas coravam. Não arderam pelo calor do fogo, mas pelo embaraço que estava sofrendo. Aquele homem, imaginando que estava fazendo um ato de bondade para com ela, a descreveu como uma pessoa obstinada, teimosa e incapaz de aceitar a decisão da irmã do paciente. Outra característica que deveria adicionar à sua extensa lista de defeitos. Era melhor resolver o problema de uma só vez. Não podia suportar, nem por um momento mais, tantos elogios desnecessários ou daquele olhar hermético oferecido pelo homem que lhe salvara de uma morte certa.

?Como observei que está muito melhor e que o seu mordomo pode atendê-lo adequadamente, descerei ao primeiro andar. Já amanheceu há algum tempo e estou certa de que a Sra. Reform aparecerá em breve.

?Não! ?Philip gritou ao observar que ela se dirigia para a porta. Esse ligeiro movimento fez que lhe doesse a ferida. Ele colocou as mãos naquela área do corpo e olhou para ela novamente. ?Por favor... ?Sussurrou.

?Não se preocupe ?comentou Shals?, eu mesmo descerei para recebê-la. Você pode seguir atendendo Lorde Giesler. Agora que acordou, ele mesmo lhe dirá onde lhe dói e poderá lhe administrar o remédio que guarda na maleta.

?Vai me deixar sozinha? Não se lembra da promessa que fez à Sra. Reform? ?Mary insistiu com os olhos arregalados e colocando suas mãos em ambos os lados da cintura.

?Não corre nenhum perigo, Srta. Moore. Como pode ver, meu senhor, é incapaz de lhe fazer mal algum e sobre o escabroso assunto de permanecer a sós com um cavalheiro, não tem por que se preocupar. Ninguém nesta casa falará disso depois de salvar a vida do homem que paga seus honorários, lhe garanto.

?Mas... Mas... ?ela tentou dizer.

Shals parecia ter ficado surdo de repente. Depois de fazer uma leve reverência a Philip, caminhou decidido para a porta, fechou depois de sair e uma vez que já não puderam observá-lo, sorriu.


***

Quanto tempo passou desde que eles ficaram sozinhos? Talvez tenha sido apenas por alguns segundos, mas para Mary pareceu que tinha passado uma eternidade. Durante esse breve período não tinha se movido nem um palmo de onde ficou, antes da abrupta saída de Shals. Ele tentou fixar o olhar na porta, na lareira, no chão, mas acabou olhando para o rosto pálido e doentio. Embora Lorde Giesler não parecesse confortável, pois tampouco desviou o olhar dela. Seus olhos se mantiveram imóveis, como se o clorofórmio que lhe administrou não o deixasse movê-los para nenhuma outra área do quarto. Pegou as mãos e torceu-as com força. O que devia fazer? Faria bem se quebrasse aquele silêncio constrangedor?

?Srta. Moore... ?Philip sussurrou enquanto tentava mover a cabeça.

?Não o faça! ?Mary ordenou-lhe com um grito. ?Você não ouviu o seu mordomo? Acabei de operá-lo! ?Insistiu irritada.

?Sim, mas segundo as suas palavras, a intervenção foi muito simples. Por esse motivo, deduzi que...

?Deduções? A sério? Após a quantidade de anestésico que lhe dei, acha que sua mente é capaz de deduzir algo claramente? ?Continuou irritada. — O que precisa fazer é ficar parado por mais algumas horas.

?Quantas?

?Quantas o quê? ?Retrucou caminhando até ele com relutância.

?Quantas horas você acha que serão apropriadas? ?Esclareceu Philip, imensamente satisfeito ao ver como ela voltava a seu lado.

?Eu imagino que quarenta será mais que suficiente. ?Se Colocou no lado direito da cama, cruzou as mãos pelo peito e o olhou esquiva.

?Estou com calor... ?disse Giesler depois de pensar rapidamente uma alternativa que a obrigasse a tocá-lo de novo.

?Pode afastar o lençol, se desejar ?respondeu sem diminuir essa atitude zangada e distante.

?Mas me disse que não me movesse, que permanecesse quarenta...

Poderia rir? Não. Embora desejasse fazê-lo, não era apropriado, pois Mary acabaria cobrindo o rosto com o lençol para que não o observasse nem falasse mais. Por esse motivo, permaneceu calado, gostando de assistir enquanto pegava o pano com as pontas dos dedos e deslizava lentamente até a cintura.

?Melhor? ?Retrucou voltando a posição anterior.

?Água.

?Quer mais água? ?Perguntou arregalando os olhos.

?E remédios. Segundo declarou Shals, devo tomar...

?Cale-se por um momento! ?Mary exclamou desesperada. ?Não diga nem mais uma palavra. Vou dar-lhe a pílula[3] e esse maldito copo de água.

Fazendo movimentos mais bruscos do que deveria, se virou para a maleta, procurou o frasco onde tinha os comprimidos e pegou o copo de água.

?Não tente se mexer, eu te ajudarei. ?Philip a obedeceu. ?Passarei meu braço direito embaixo da cabeça. Precisa manter uma inclinação adequada para que o medicamento não fique preso na sua garganta. Se fizer isso, poderia morrer de asfixia ?comentou com sarcasmo.

?Sei que não permitiria que me acontecesse uma coisa tão horrível ?apontou Philip antes que lhe colocasse a cápsula na boca.

?Não tenha tanta certeza ?resmungou enquanto lhe dava de beber.

Não havia dúvida. Estava no céu e a mulher que ele chamou de bruxa era seu anjo. Sentir a suavidade da pele desse braço feminino em sua nuca, despertou-lhe uma incrível sensação de prazer e bem-estar. Quantas amantes deslizaram suas mãos pelo seu corpo? Dezenas! Quantas delas lhe causaram tanto prazer? Nenhuma. Aquela harpia de olhos azuis e cabelos escuros lhe provocava, com seu mau humor e seus atritos esquivos, uma satisfação inigualável.

Fechou os olhos quando ela deslizou seu braço para se afastar. Honestamente, nada poderia ser comparar. Talvez fosse um efeito colateral do clorofórmio que ela o fez inalar, ou talvez tudo fosse produto daquele período de castidade que se auto infringiu depois de conhecê-la. Fosse o que fosse, precisava senti-lo milhões de vezes mais.

?Obrigado ?lhe disse em voz baixa, quando Mary voltou a manter certa distância entre eles.

?Como disse? ?Retrucou estreitando os olhos.

?Agradeço, Srta. Moore. Mas entendo que não pode me ouvir claramente porque se afastou demais ?respondeu, dissimulando o estado de frenesi que se apoderou dele ao confirmar que encurtava essa separação bruta.

?O ouço perfeitamente, lorde Giesler. Só queria ouvir seus agradecimentos novamente ?respondeu mordaz. ?É bastante paradoxal que você, o homem que me chamou de bruxa em minha própria casa, me mostre tanta gratidão.

?Me jogou alguns tubos de metal. Queria me machucar com eles ?se defendeu.

?Não fiz isso? ?Retrucou ironicamente. Levantou as sobrancelhas escuras e esboçou um sorriso perverso enquanto colocava as mãos na cintura novamente.

?Não ?respondeu Philip. Se deleitando com aquele rosto maravilhosamente diabólico.

?Uma verdadeira lástima! ?Exclamou divertida antes de estalar a língua. ?Porque meu único objetivo naquele dia era machucá-lo.

?Para quê?

?Para que nunca me esquecesse ?respondeu de forma arrogante.

?Não fiz isso ?garantiu, olhando-a sem piscar.

As palavras e a expressão em seus olhos fizeram Mary se sentir intimidada, algo que geralmente não acontecia com facilidade. Mas aquele titã, com um corpo esbelto, cujo tronco bronzeado se mostrava descaradamente diante dela, começou a quebrar todas as barreiras que ela havia construído contra o sexo masculino. Que diabos tinha de especial? Por que seu coração batia loucamente? Não começaria a brotar seu sangue cigano naquele momento, certo? O que lhe disse Anne antes de partir para a cerimônia de casamento de Natalie Bennett? «Quando o sangue de Arany se libertar da pressão a que o submete, esquecerá tudo o que leu em seus amados livros e se tornará uma mulher apaixonada».

?Posso lhe pedir um favor, Srta. Moore? ?Philip perguntou, ao perceber que o olhar de Mary mostrava mais confusão do que medo.

?Quer mais água? Quer que o cubra novamente com o lençol? ?Respondeu ironicamente.

?Não. Minha sede se acalmou e garanto que estou com muito calor. Se não estivesse ao meu lado, afastaria imediatamente esse maldito lençol ?apontou sinceramente.

Comentário que a ruborizou, porque a fez lembrar o que estava escondendo debaixo do tecido.

?O que deseja? ?Quis saber, caminhando vários passos mais para trás.

Não devia permanecer tão perto. Não podia sentir nada. Seu coração precisava se acalmar de uma vez. Por que sua mente não agia? Onde estava seu autocontrole? E seu raciocínio feroz? Acaso haviam desaparecido? Que sangue possuíam naquele momento suas veias o Moore ou o Arany? Quando diabos seu pai chegaria?

?Vê essa cômoda que há no lado direito da lareira? ?Philip apontou com o queixo.

?Se pensa que vou me tornar sua empregada, está muito equivocado. Como bem sabe, meu único propósito tem sido...

?Srta. Moore, pode acatar, pelo menos uma vez na vida, uma ordem sem replicar? ?Philip resmungou.

?Por que devo fazê-lo?

?Porque não posso me mexer.

?O que me pedirá depois? ?Insistiu, franzindo a testa.

?Nada, juro por minha honra ?ele garantiu.

?Está bem! ?Mary sucumbiu caminhando em direção a cômoda. Uma vez que ficou na frente dela, olhou para ele. ?O que faço agora, Lorde Giesler? ?Acrescentou cantarolando.

?Abra a primeira gaveta e levante o lenço vermelho que encontrará à sua esquerda ?ele indicou. Embora não fosse conveniente para ele se mover, apoiou os cotovelos no colchão e, suportando a tremenda dor que esse esforço lhe causou, se inclinou o suficiente para vê-la. Como agiria? Se surpreenderia ao descobri-lo ou iria lançá-lo novamente? O que pensaria dele? O acusaria de ser louco e sairia correndo de lá? Com os olhos fixos nela, prendeu a respiração enquanto ao observa-la abrir a gaveta. Quando Mary levantou o pano, ficou parada e contemplou silenciosamente o que encontrou. ?Não me disse que sua única intenção era lembrá-la pelo resto da minha vida? Pois aí tem a prova, Mary. Não a esqueci, nem vou...

?Lorde Giesler ?Shals interrompeu depois de bater na porta duas vezes e abri-la ?O Sr. Moore acaba de chegar. Deseja recebê-lo?

?Sim, claro. Estávamos esperando por ele ?Philip respondeu sem desviar o olhar dela, que, ao ouvir o mordomo, bateu a gaveta e pulou para trás.


Capítulo IV


Shals se afastou para deixar o médico passar. Uma vez que este entrou no quarto seu olhar se dirigiu, em primeiro lugar, para ela. Respirou aliviado ao ver que permanecia frente à lareira, afastada do lorde. Que Mary tomara a decisão de operá-lo com urgência, quando era consciente de que podia esperar um pouco mais sem que corresse perigo, não lhe provocou tanto torpor como saber que se encontrava no quarto de um homem sozinha. Mas tudo o que havia imaginado desapareceu de sua cabeça ao vê-la tão afastada do paciente. Mary não era como Elizabeth, que colocava sua honra em risco constante. Sua segunda filha era tão fria quanto um bloco de gelo e, por mais atraente que o homem fosse, jamais o olharia de outra maneira que não fosse o de experimentar com ele alguma teoria médica nova. No entanto, não lhe passou despercebido o estupor que exibia. As bochechas queimavam pela proximidade do fogo ou pela emoção que devia sentir ao operar uma pessoa pela primeira vez sem o seu consentimento? Não ousou perguntar... O melhor era não saber mais, além do que seus velhos olhos cansados observavam. Com um passo lento, ele se aproximou de sua filha e depois de fazer uma breve revisão de suas roupas, confirmando as palavras de sua esposa, a cumprimentou.

?Bom dia, filha.

?Bom dia, pai ?ela respondeu.

Esgotado. Mary percebeu que seu pai estava bastante cansado, apesar de apresentar uma imagem decente e correta. Ela não tinha dúvida de que sua mãe o esperara na porta e antes que ele pudesse dar um pequeno passo dentro de sua casa, lhe teria dado a volta, teria arrumado a gravata e a camisa, enquanto lhe explicava o que tinha acontecido. Tinha certeza que quando ouviu lorde Giesler, Mary, doença e residência na mesma frase, nem mesmo seu cansaço o teria impedido de comparecer. Esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao imaginá-los divagando sobre sua conduta quando descobrisse a identidade do homem que devia salvar. Temeriam por sua vida? Não a sua, senão a do paciente. Se assim fosse, deveriam respirar tranquilos porque, nesse momento, não desejava matar ao presunçoso que a chamou de bruxa antes de lhe atirar uns rolos metálicos. Ao recordar esse dia, voltou a ficar tensa. Por que diabos havia guardado um dos objetos que lhe jogou? Por que o escondia sob um tecido de seda? E, como teve o descaramento de mostrá-lo? Queria humilhá-la ou talvez desejava que visse com seus próprios olhos a prova do delito? ¿ Não pensaria que o impacto do rolo originou sua doença, certo? Se acreditasse naquela hipótese absurda, era mais idiota do que pensava.

Enquanto ela divagava em silêncio, Randall atravessou o quarto para ficar ao lado de Philip, exatamente onde sua filha havia passado a noite. Seus dedos ainda estavam entrelaçados na alça da maleta, como se não quisesse se separar dela. Olhou novamente para Mary, depois contemplou o paciente e falou com sinais visíveis de medo:

?Bom dia, milorde. Desculpe a demora. Garanto-lhe que vim assim que fui informado por minha esposa. Como se encontra?

?Muito melhor, Sr. Moore ?Giesler respondeu um pouco confuso com a atitude distante que o médico lhe ofereceu a sua filha.

Mas claro, ele não sabia que ideias o casal considerou sobre Mary e sua maldade quando descobrisse a verdadeira identidade do paciente.

?Imagino que se encontra muito dolorido ?Randall disse depois de relaxar.

Pelo menos não tinha lhe arrancado a língua. Talvez tivesse adotado o comportamento de um médico e não o de uma mulher desprezada, como Sophia pensava. Ele nunca tinha visto sua esposa tão preocupada com a vida de alguém ou rezando para sua mãe criadora para mantê-lo seguro. Lentamente, ele se virou para a mesa e apoiou a maleta pesada.

?O normal após a intervenção que a Srta. Moore realizou ?respondeu com certo sarcasmo. Esperava que suas palavras eliminassem a possível inquietude do médico, mas não foi assim. A velha figura de Moore ficou tensa como uma corda de violino.

?Vou inspecionar a área ?lhe disse no momento em que suas mãos se libertaram da pesada mala de couro preto. Abriu-a e tirou uma tesoura. ?Tenho que tirar o curativo, milorde.

?Por quê? ?Philip retrucou estreitando os olhos.

?Porque preciso ter certeza do estado em que se encontra ?explicou depois de olhar para Mary rapidamente.

?Respiro, falo coerentemente e percebo facilmente a dor que irradia da ferida. Não tenho mais febre e me sinto muito mais forte do que antes. Isso não são sinais suficientes para confirmar que, graças à sua filha, me encontro bem? ?Apontou mordaz.

?Não se trata disso, Milorde ?comentou Mary se aproximando da cama. Mas parou o passo quando seu pai levantou a mão esquerda para ela.

?Tenho que confirmar que o trabalho que minha filha fez foi correto.

?Foi ?Philip garantiu categórico.

Mary não conseguia abrir mais os olhos diante da surpresa causada pelas palavras de lorde Giesler. O que ele pretendia agindo dessa maneira tão irritante? Recusaria a ajuda de seu pai? Por quê? O clorofórmio o deixou tão atordoado que não conseguia pensar com sensatez?

?Não duvido da capacidade da minha filha ?Randall expôs levantando o peito. ?Acredite quando lhe digo que colocaria a minha vida nas suas mãos sem hesitar. Mas caso não esteja ciente disso, Mary não possui a licença médica que lhe dá o poder de agir como tem feito. Se não trabalhou bem, se cometeu um pequeno erro, as repercussões futuras que teria seriam terríveis. Todo mundo falaria de sua ação impetuosa, o desastre que cometeu e a tragédia que Londres sofreria depois de perder um membro distinto da alta sociedade alemã. Quer que minha filha seja condenada por assassinato quando tudo o que ela fez por você foi um ato de misericórdia?

?Disparates... ?Giesler resmungou. ?Sua filha trabalhou perfeitamente. Ninguém falará sobre o que aconteceu hoje à noite aqui. Mas no caso hipotético de que aconteça, me tornarei seu feroz defensor.

?Não o fará se morrer ?Ela interveio mais espantada do que nunca.

Não havia dúvidas. Mary afirmou, depois de ouvi-lo, que os possíveis efeitos colaterais da anestesia eram horríveis. Todos os pacientes reagiam de maneira diferente: alguns pulavam sobre os colchões como se tivessem percevejos no corpo, outros gritavam como se vivessem no tempo de Neandertal, outros se tornavam crianças pequenas, que se consolavam chupando os dedos. No entanto, o caso de lorde Giesler foi a coisa mais insana que ela já vira. Ele só precisava sair da cama e empunhar uma espada, como se fosse um cavaleiro medieval, para proteger a honra de sua esposa!

?Penso como você, milorde. No entanto, tenho que verificar seu trabalho ?reafirmou veementemente. ?Posso cortar de uma vez os curativos ou deseja continuar essa conversa absurda? ?Acrescentou derramando sobre as tesouras e suas mãos um líquido incolor.

?Faça tudo o que precisa para confirmar o bom trabalho de sua filha ?disse finalmente.

Enquanto observava como rasgava as ataduras, Philip teve que admitir que Mary havia herdado o comportamento ousado de seu pai. Nenhum homem teria se dirigido a ele com insolência por temor a uma possível retaliação de sua parte. No entanto, lá estava ele, cortando o curativo, removendo o tecido de seu corpo e verificando o ferimento sem pestanejar depois de dar a entender que ele não estava em condições de pensar com lucidez.

?Você usou catgut[4] como fio de sutura? ?Randall perguntou sem olhar para ela enquanto sentia em volta do corte, confirmando que não havia deixado espaço ao costurá-lo. Se Sophia tivesse o acompanhado, descobriria que outra das habilidades de Mary era a costura, como ela o costurara com grande habilidade.

?Claro! ?ela exclamou se aproximando até ficar ao lado dele.

?Em que estado a encontrou? ?Perseverou, sem deixar de apalpar os arredores da ferida.

?Prestes a explodir. Felizmente, agi na hora certa. Mais algumas horas e seria tarde demais para ele... ?ela garantiu com firmeza.

?Como descobriu? ?Depois de fazer a pergunta, Randall se levantou, procurou uma pequena gaze na caixa de remédios, borrifou-a com antisséptico e colocou sobre a ferida.

?Os indícios eram evidentes. Mas confirmei ao apalpar-lhe a zona. Estava tão inchada como a do falecido Sr. Skinner. No entanto, Lorde Giesler teve mais sorte ?explicou antes de levantar lentamente o queixo e contemplar o rosto abatido do seu paciente.

?Se certificou de que não havia perfuração? ?Randall continuou perguntando sem se referir à comparação que fez entre pacientes.

Não era apropriado que repetisse tantas vezes que poderia ter morrido. Mas Mary, depois do que aconteceu com o Sr. Skinner, não conseguia pensar em mais nada. Por isso, agia sem pensar nas possíveis consequências.

?Sim. Antes de removê-lo, verifiquei várias vezes, mas não encontrei sujeira na superfície ?continuou explicando. ?Então, quando o coloquei na bandeja, confirmei que não havia poros.

?Como fez? Usou o método de Fizt? ?O pai perseverou enquanto pegava outro curativo para cobrir a ferida.

?Não, me baseei no método Moore ?continuou com diversão. Entendendo que seu pai não se divertia tanto quanto ela, continuou: ?Abri, procurei, encontrei, cortei, limpei, cauterizei e fechei ?Mary garantiu, finalmente endireitando as costas. Quando deduziu que seu pai enrolaria o novo curativo no abdômen do lorde, olhou para o mordomo e lhe perguntou: ?Shals, pode ajudá-lo? Meu pai é tão teimoso que acha que pode fazer isso sozinho.

Comentário que fez Philip sorrir, porque encontrou outra semelhança entre eles.

?Sim ?respondeu o mordomo avançando para eles rapidamente.

Randall deu o curativo à filha, colocou-se à direita e esperou que o empregado colocasse um travesseiro sob as pernas do senhor. Com a ajuda de ambos, as mãos de Mary se moveram agilmente sobre os quadris do paciente. Ao fazê-lo, descobriu que Philip a observava estranhamente. Não era angústia, nem raiva, nem desconforto, mas veneração, o que expressavam aqueles olhos tão azuis como os dela.

?Quanto de clorofórmio deu a ele? ?Ele perguntou depois de confirmar que o curativo se agarrava perfeitamente ao corpo. ?Levou em consideração o tamanho do paciente?

?Não no começo ?respondeu com um largo sorriso. ?Mas depois de ouvi-lo gritar, ao cravar a ponta do bisturi, rapidamente corrigi meu erro. Como pode ver, é a primeira vez que sedei um homem com a mesma compleição que um cavalo.

Esse comentário não agradou a Philip. Nem tampouco gostou de ser comparado a um cavalo. Não havia outro animal mais bonito? Uma águia não era adequada para ela?

?Quanto fenol usou?

?Tudo o que tinha na maleta ?Mary admitiu depois de se afastar de Shals e de seu pai. ?Tive que obrigar os empregados que me ajudarem e pulverizar suas mãos depois de lavá-las com sabão.

?Tenho certeza disto ?Shals comentou sorrindo. ?Graças à ordem da Srta. Moore muitos dos servos descobriu que sob a sujeira possuem uma pele tão branca como a madrepérola.

?Conheço o caráter de minha filha e tenho certeza de que ninguém poderia se aproximar sem seguir suas instruções à risca ?indicou Randall sorrindo pela primeira vez desde que apareceu.

?Quanto tempo levarei para me recuperar? ?Philip perguntou ao médico enquanto Shals pegava o travesseiro das pernas e o colocava sob as costas.

?Deve permanecer pelo menos dez dias em repouso ?respondeu. ?É vital não se mexa durante esse tempo. A sutura está perfeita e seria uma pena que, após um trabalho tão cuidadoso, arruinasse-a ao tentar se mover mais do que deveria. Precisará de ajuda para desempenhar suas funções vitais. Mas eu aconselho que, quando terminar, volte para a cama o mais rápido possível.

?Entendi que me recuperaria em quarenta horas ?Philip comentou olhando para Mary, que rapidamente desviou os olhos dele por não ter a decência de cobrir o peito na frente dela.

?Minha filha, como disse, fez um trabalho sublime, milorde, mas não um milagre ?afirmou enquanto pegava a alça da pasta com os dedos da mão direita e esboçava um sorriso largo. ?Vou visitá-lo todos os dias para observar sua evolução. Se a qualquer momento o vômito, a febre ou um desconforto inesperado retornar, peço que você me notifique imediatamente.

?A Srta. Moore nos indicou que deve tomar certos medicamentos para diminuir sua dor ?Shals apontou o dedo para o frasco de vidro que havia sobre a mesa redonda à sua esquerda.

?Forneceu o suficiente? ?Randall perguntou.

?Tem para três doses durante oito dias ?Mary admitiu.

?Perfeito. Quando terminar, se precisar de mais, eu mesmo os trarei... ?explicou o médico dando um passo atrás.

?Sr. Moore, antes de sair, diga ao meu mordomo o valor dos seus honorários. Penso que... ?Philip tentou dizer, mas quando viu o rosto de horror do médico, ficou calado.

?Não tem nada para me pagar, milorde. Como já esclareci, minha filha não tem a licença necessária para realizar esse tipo de trabalho e não posso, nem quero aceitá-lo.

?Insisto! ?Giesler exclamou tentando colocar os cotovelos novamente no colchão, um movimento que o fez grunhir de dor.

?É um asno! ?Mary trovejou desesperada ao observar a intenção do paciente. ?Meu pai não lhe disse que não pode se mover sozinho?

?Mary Moore Arany! ?Randall gritou ao ouvir como se dirigia ao lorde.

?Arany? ?Philip perguntou levantando a sobrancelha direita e sorrindo enquanto a observava corar.

?Cortesia da minha mãe, milorde ?respondeu franzindo a testa e dando ao pai um olhar carregado de represália.

?Um nome muito apropriado ?Philip sussurrou divertido.

?Deseja me fazer mais alguma pergunta? ?Randall interveio rapidamente quando percebeu que sua filha não continuaria mantendo uma atitude cordial por muito tempo.

?Não ?Giesler respondeu sem tirar os olhos dela.

Volátil. A palavra mais apropriada para descrevê-la era volátil. Tudo o que ele precisava descobrir era quando poderia pegá-la com a guarda baixa, para que não jogasse nada que pudesse usar como uma arma. Mas ele se preocuparia com isso mais tarde, justamente quando pudesse se levantar sem a ajuda de ninguém. Então ele a procuraria e agradecia pessoalmente pelo que havia feito por ele.

?Sendo assim, até amanhã ?Randall cedeu estendendo a mão.

?Até amanhã ?Philip respondeu, apertando a palma com aparente dificuldade.

?Mary... ?seu pai disse uma vez que estava ao seu lado ?vamos. É hora de lorde Giesler descansar com tranquilidade.

?Tenha um bom dia, milorde. ?Ela se despediu com tanta frieza que Philip sentiu sua alma congelar.

?Mais uma vez obrigado, Srta. Moore ?respondeu lentamente.

Mary lhe fez uma ligeira reverência e, sem dizer uma só palavra mais, caminhou atrás de Shals e de seu pai. No entanto, antes de fechar a porta, não pôde deixar de olhá-lo de novo. Esse íntimo cruzamento de olhares a oprimiu. Não entendia o motivo pelo qual sua mente lhe alertava que sua história com o lorde não terminaria naquele momento, senão que acabava de começar. Horrorizada ao pensar que voltaria a encontrá-lo, fechou a porta com rapidez e suspirou.

?Deve estar muito orgulhoso de sua filha ?Shals disse ao médico enquanto ambos caminhavam pelo longo corredor. ?Nunca conheci uma mulher tão valente.

?Valente ou demente? ?Randall respondeu.

?Não pensa que sua filha agiu corretamente? ?Shals insistiu confuso.

?Mary sempre age racionalmente, porém, desta vez não tenho tanta certeza disso. Você sabe que tipo de repercussão teria se tivesse cometido um erro?

?Erro? ?Retrucou Shals parando no patamar do primeiro andar. ?Não houve nenhum, Sr. Moore. Testemunhei o trabalho de muitos médicos e garanto-lhe que nunca vi uma pessoa trabalhar como ela.

?Não percebeu que é uma mulher e que não tem licença médica? ?Moore insistiu, impressionado com o apoio e o respeito que o criado mostrava a Mary.

?E? ?Shals perguntou olhando para ele incrédulo. ?Tenho certeza de que se ela tivesse atendido meu amo anterior, ele ainda continuaria respirando ?comentou antes de estender a mão para as escadas.

?Não lhe importa as opiniões que este ato de suposta valentia pode lhe causar? ?O pai insistiu.

?Não. E sobre esse assunto, como lorde Giesler esclareceu, não deve se preocupar. No entanto, lhe aviso que, após a brilhante atitude de sua filha esta noite, receio que ninguém nesta casa receberá, quando estiver doente, outro médico que não seja a Srta. Moore.

?Ela não é médica.

?Para nós sim, ela é ?Shals disse sem rodeios.

?Não falaria assim se a conhecesse melhor... ?Randall disse descendo o primeiro degrau.

?Acredite em mim quando digo que todos descobrimos o caráter afável da Srta. Moore ?Shals explicou divertido.

?De verdade? O que fez desta vez?

Enquanto desciam as escadas, o mordomo contou a ele o momento em que apareceu batendo na porta da residência. Randall não ficou chocado ao saber que jogou o casaco e que, sem a presença de um criado, foi para o quarto do paciente. Tampouco ficou surpreso quando Shals o informou que chamava os criados que pretendiam banhar seu senhor de bando de inúteis. Se tivesse agido de maneira diferente, o teria confundido. Mas apenas lhe descreveu o caráter típico de sua filha e seu desejo de salvar vidas. O mesmo que o seu. Esse reflexo lhe causou grande tristeza. Não era justo que a sociedade não permitisse que uma mulher desempenhasse o papel de um homem, apesar de ter mais conhecimento e habilidades do que eles.

?Srta. Moore, aqui está o seu casaco ?Shals comentou estendendo a roupa para ela.

Naquele momento, Mary arregalou os olhos e lançou uma maldição em alemão. Se virou rapidamente e, sem ouvir a repreensão que seu pai falou ao ouvi-la blasfemar, levantou o vestido com as duas mãos para voltar ao quarto.

Correu pelo corredor até chegar à porta do lorde. Por um momento duvidou se deveria bater ou não. Não o fez porque imaginou que, uma vez que estivesse sozinho e em silêncio, a morfina o teria entorpecido novamente.

Como deduziu, seus olhos estavam fechados e ele estava respirando calmamente. Não seria um problema se aproximar da mesa e levar sua maleta. Na ponta dos pés, atravessou a sala, ficou ao lado do paciente e sorriu quando viu que estava descansando tranquilamente. Sem fazer o mínimo barulho, se virou para a maleta, fechou-a e, ao se virar novamente, ficou sem fôlego quando descobriu que os olhos do homem se abriram e a olhava com uma intensidade desconhecida para ela.

?Desculpe, esqueci... ?Ficou calada ao ver que ele estendia a mão para ela enquanto balbuciava algo incompreensível.

Assustada, caso tivesse piorado durante o breve período de tempo em que permaneceu sozinho, deixou cair a maleta no chão e estendeu a mão esquerda. Mas esse medo se tornou perplexidade quando ele a puxou com tanta força que seus narizes se tocaram.

?É uma mulher fascinante, Mary Moore ?ele sussurrou. ?Fascinantemente inesquecível ?afirmou antes que seus lábios tocassem os dela suavemente.

A resposta de Mary não demorou a chegar. Se afastou rapidamente dele e, apesar do estado de nervosismo que sentiu quando foi beijada pela primeira vez, levantou a palma da mão direita e lhe deu uma bofetada.

?Você é um grosseiro e espero que fascinantemente me esqueça ?Disse antes de levantar o queixo, pegar a maleta, adotar uma postura arrogante e sair dali a grandes passos.

No entanto, uma vez que Mary fechou a porta, se apoiou nela, levou a mão com a qual lhe bateu no coração e suspirou. Por que deu um tapa nele? Por acaso não sabia que o clorofórmio ainda passeava por suas veias? Milorde ainda não estava lúcido e estava agindo sob os efeitos dos narcóticos. Seria uma tragédia para ela que recordasse o que tinha acontecido. Se fosse assim, seria um problema sério. Compaixão, um sentimento que não tinha desde que entendeu a amargura do mundo ao seu redor, brotou de suas entranhas. Mas desapareceu imediatamente ao ouvir uma grande risada vinda de dentro do quarto.

?Verdammter Schurke![5] ?explodiu antes de descer as escadas tão rapidamente quanto subiu.


***

?Sabe que não deveria se sentir tão orgulhosa pelo que tem feito, certo? ?Randall perguntou à filha quando ambos se acomodaram dentro da carruagem e depositaram as respectivas maletas no assento. ?A intervenção foi um sucesso, mas não deveria ter feito isso sozinha.

?Agi por instinto, pai ?ela respondeu olhando pela janela.

?Por instinto? ?retrucou levantando as sobrancelhas. ?Desde quando se deixa levar por esse tipo de coisas?

?Tinha uma enorme inflamação. Os vômitos que observei...

?Não pôde esperar sete miseráveis horas, Mary Moore Arany? ?o pai insistiu irritado ?Você parou para pensar nas consequências que teria se não tivesse trabalhado corretamente? Estamos falando de um lorde!

?Desde quando faz esse tipo de distinção social, pai? ?Respondeu, virando lentamente sua cabeça para ele para olhá-lo. ?Me ensinou que as doenças não têm piedade daqueles que as sofrem. Observa-se, se faz um diagnóstico, se age e quando tudo termina tal como se deseja, volta para casa satisfeito por ter salvo uma vida ?garantiu com firmeza.

?Nu! ?Randall gritou fora de si. ?Aquele homem estava totalmente nu! Como foi capaz de se manter de pé, Mary? Por isso corou ao me ver entrar? Sentia vergonha por estar diante de um homem nu?

?Ist das ein problem, Vater?[6]

?Sim. Para mim isso é um grande problema, filha ?Moore garantiu.

?Caso você não se lembre, desde que eu o acompanho, tenho visto muitos homens nus ?apontou com desdém ?e seu querido lorde não é diferente dos outros.

?Sabe o que acontecerá se alguém daquela casa espalhar que você operou seu senhor enquanto ele estava nu? Sua mãe nos matará, porque eles não falarão mais sobre o caráter azedo de sua segunda filha, mas sobre sua insolência e falta de decoro.

?Queria que fizesse a intervenção com ele vestido? ?Retrucou com raiva.

?Poderia ter estendido o lençol, como fizemos em muitas ocasiões ?Randall manifestou sem diminuir sua raiva. ?Mas não. Você não pôde pensar em uma coisa tão simples...

?Me preocupava mais com a sua vida do que descobrir sua aparência física ?declarou mordaz. Embora a avaliação obtida pelo corpo forte e robusto do lorde fosse mantida para si. Sem contar com a surpresa que teve ao ver, pela primeira vez, um sexo masculino de verdade. ?Não fiz um bom trabalho? Não lhe salvei a vida?

?Isso parece.

?Melhorará? ?Persistiu tenazmente.

?Espero que sim ?Randall comentou com um suspiro.

?Então... vamos esquecer o resto! ?Apontou séria.

?Acha que será tão fácil para lorde Giesler esquecer que uma mulher o viu nu?

?Oh, bem! ?Exclamou com um leve sorriso. ?Realmente acredita que é a primeira vez que se mostra dessa forma diante de uma mulher? Por acaso não lembra que é o melhor amigo de lorde Bennett? Não ouviu o que dizem sobre eles?

?Mary Moore Arany, não fale comigo com esse tom!

?Pai, não seja ingênuo, por favor. Certamente, dentro de algumas horas, quando o efeito do sedativo tiver passado, seu querido lorde Giesler esquecerá o que aconteceu e se concentrará em aplacar a dor que ele deve suportar. ?Disse antes de cruzar os braços e olhar pela janela novamente.

?E se isso não acontecer?

?O fará ?disse incisiva.

No entanto, ela sabia que não. Aquele homem miserável guardou um rolo seu debaixo de um tecido de seda, olhou-a com veneração, defendeu-a como um justiceiro e, para aumentar a lista de eventos horríveis entre eles, a beijou. Só esperava que o tapa o fizesse entender que era melhor esquecê-la se sonhava em viver mais alguns anos.


Capítulo V


?Não posso acreditar! ?Sophia exclamou horrorizada depois de ouvir a explicação do marido. ?Como pôde ser tão imprudente? Operar? Ela sozinha? Por que o fez?

Felizmente para sua filha, assim que chegou em casa, subiu as escadas e se refugiou em seu quarto. Sabia como sua mãe agiria quando ele lhe contasse tudo o que tinha acontecido e, como mulher inteligente que era, decidiu se refugiar do perigo. Mas ele não podia fugir como Mary...

Randall olhou para a sua esposa, ela estava andando de um lado para o outro da sala. O laço de sua bata branca se soltou com os movimentos bruscos e seus cabelos, geralmente lisos e suaves como a seda, se enrolaram ao não deixar de tocá-lo. Sua raiva era compreensível; Mary agiu impulsivamente, sem parar para pensar nas consequências que seu ato de caridade poderia lhe acarretar no futuro. No entanto, ele se sentia muito orgulhoso do trabalho de sua amada menina. Qualquer outra pessoa em seu lugar esperaria a presença de outro médico para corroborar o primeiro diagnóstico. Mas ela não precisava de uma segunda opinião e procedeu com a paixão que mostrava sempre que alguém precisava de sua ajuda. Era verdade que havia cometido uma grande imprudência, isso não podia discutir com Sophia, mas também deviam elogiar seu bom julgamento.

?O salvou ?disse depois de procurar por palavras tão chocantes que diminuíssem a raiva de sua esposa.

?O que disse? ?Ela retrucou, abrindo tanto os olhos que podia ver claramente a dilatação de suas pupilas.

?Nossa filha salvou sua vida ?respondeu calmamente.

?Randall Moore! Você ficou louco? Porque só assim entenderia sua postura inadequada ?gritou angustiada.

?Apesar da minha primeira impressão, duvido muito que lorde Giesler sobrevivesse a uma doença tão perigosa quanto essa. ?Adicionou sem hesitar.

?Mas... não acaba de me dizer que poderia ter esperado até sua chegada? ?Enfatizou frenética. ?Que posição vai tomar, Randall? Sim ou não? ?Acrescentou, estreitando os olhos e colocando as duas mãos na cintura.

?Na minha opinião, penso, acredito e calculo que...

?Não comece a falar comigo dessa maneira, ou juro por Morgana que dormirá no sofá por um mês inteiro! ?O ameaçou.

?A posição é sim. Apoio fortemente a decisão de Mary. É, sem dúvida, o melhor trabalho que já vi em anos ?assumiu orgulho. ?Você acredita que tive que olhar duas vezes para a sutura que ela fez na incisão? Era perfeita!

?Mary... o costurou? ?Retrucou impressionada. ?Mas se não sabe nem enfiar fio na agulha!

?Bem, te garanto que sabe fazê-lo, e muito bem. ?Recostou-se na cadeira, subiu os óculos pela ponte de seu nariz, sorriu levemente e olhou ternamente para a esposa. ?No fundo, acho que ela estava certa...

?Então, agiu corretamente, certo? Lorde Giesler não retaliará contra ela, correto? ?Sophia insistiu desconcertada. O que devia fazer? Castigá-la durante dois anos em seu quarto ou deixar Madeleine preparar um daqueles bolos de que tanto gostava?

?Como já expliquei várias vezes, este tipo de doença é imprevisível... ?começou a explicar enquanto se levantava do cômodo sofá. ?É verdade que, se a fossa não explodisse por dentro, a intervenção poderia ser adiada até minha chegada. Mas como não podemos saber o que está acontecendo sob a nossa pele, até abrirmos, possivelmente sua predição se cumpriria em minutos. Devo esclarecer que essas inflamações são diferentes em cada paciente. Lorde Giesler sofreu dois dias com dor, febre e vômito. O Sr. Skinner faleceu antes que a febre aparecesse.

?Pelo amor de Morgana! Tinha esquecido o Sr. Skinner! ?Exclamou levando as mãos ao rosto. ?Mary ainda não superou, certo?

?Nunca se esqueça da primeira pessoa que morreu em suas mãos, querida. Sem dúvida, foi o pior momento de sua vida e imagino que foi por isso que ela agiu sem o meu consentimento. Reviveu aquela noite e concluiu que tinha que salvar a vida de lorde Giesler, apesar das consequências que teria no futuro.

?Se certificou de que lhe não tirou nada do corpo, exceto a abençoada fossa? ?Perguntou um pouco mais calma. Se fosse verdade, se a sua filha tivesse acalmado a consciência e descansado em paz depois da sua loucura corajosa, não a castigaria, mas também não a recompensaria. Se elogiasse Mary, estava perdida, porque nunca ouviria um conselho sem lembrá-la de que seus motivos alcançaram um tremendo triunfo. ?Depois do que aconteceu entre eles há alguns dias, poderia ter removido metade do estômago para se vingar.

?Que loucura você disse, querida! ?Randall exclamou com uma risada nervosa. ?Como nossa filha faria esse tipo de bobagem?

Mas a verdade era que não o confirmou e foi um descuido de sua parte. Estava tão preocupado em proteger a imprudência de Mary que não notou os restos que havia na bandeja. Ele esperava que sua filha tivesse esquecido a vingança que jurou realizar contra o homem que a chamara de Medusa e que, como sua esposa disse, não aproveitou o momento para lhe arrancar qualquer órgão vital com suas próprias mãos.

?E, como estava quando entrou no quarto dele? ?Perseverou sua esposa.

?Bastante bem ?admitiu finalmente respirando tranquilamente. Se lhe tivesse faltado algo importante, não teria aberto os olhos. ?Bastante bem ?repetiu para garantir sua própria dedução. ?Eu tenho que confessar que seu estado lúcido me deixou perplexo. Em outros pacientes, a recuperação tem sido muito lenta. No entanto, lorde Giesler estava ciente o tempo todo e raciocinava claramente.

?Suponho que, quando lhe anunciou que foi nossa filha quem lhe realizou a intervenção, gritou horrorizado como fez na manhã em que ela lhe atirou os tubos metálicos ?Sophia comentou olhando-o sem piscar.

?Pois não. O oposto. lorde Giesler a defendeu veementemente.

?A defendeu? ?Sophia perguntou boquiaberta.

?Não só ele, mas também o seu mordomo principal. Juro que pensei que o lacaio jogaria um dos castiçais na minha cabeça quando eu a repreendi na frente deles ?explicou Randall estendendo a mão para a esposa.

Tinha que descansar. Estava exausto demais para enfrentar o dia e, como sua amada esposa se acalmara um pouco, era hora de levá-la para o quarto e que o médico assumisse o papel de doente. O que mais um marido poderia querer depois de uma noite sem descanso e a situação que viveu na residência do lorde? Apenas um: adormecer nos braços de sua esposa.

?Lhe explicou tudo o que acontecerá se descobrir que Mary o atendeu? ?Sophia insistiu, aceitando aquele braço.

?Compreendeu-o rapidamente e isso lhe causou um terrível aborrecimento ?ele indicou, abrindo a porta.

?A quem? Lorde Giesler ou o mordomo? ?Ela insistiu sem esclarecer.

?Para ambos. O servo me avisou que ninguém na residência procuraria outro médico além de nossa filha e lorde Giesler disse que se tornaria um feroz protetor de Mary se alguém ousasse reprovar seu bom trabalho.

?O que ele disse? ?Sophia retrucou, arregalando os olhos novamente.

?Que ele se tornaria seu feroz protetor ?Randall repetiu.

?Quanto clorofórmio Mary lhe forneceu? ?Insistiu sua esposa lhe ajudando a subir o primeiro degrau da longa escadaria.

?Quase um quarto do frasco! Você não acha engraçado? Lorde Giesler permanecerá sedado por uma semana inteira! ?Randall comentou com diversão. ?Talvez, quando seu corpo eliminar toda essa quantidade de soníferos, não se lembre que Mary o operou nu ?acrescentou rindo sem parar.

?Como disse? ?Trovejou Sophia parando abruptamente nas escadas. ?Nossa filha viu aquele homem nu?

?Eu disse isso? Não lembra querida.

?Randall Moore... Fale agora mesmo! ?E no meio daquela escada, Sophia se afastou do marido e cruzou os braços.

?Não esteve sozinha em nenhum momento. A irmã do paciente e mais de dez servos presenciaram tudo ?ele comentou, sem saber se devia correr, como Mary havia feito quando chegou, ou voltar para a sala e se trancar até que a nova raiva de sua esposa passasse. ?Portanto, não pode nem deve pensar que eles tiveram um momento íntimo. Todos ali presentes...

?Nu?! ?Esbravejou. ?Minha filha viu aquele homem nu? E acha que lorde Giesler se esquecerá disso? Que ninguém naquela casa comentará que nossa filha, a quem esperamos casar algum dia, teve a indecência de ver um homem nu? ?Sua garganta ficou tão fina e alongada quanto o pescoço dos patos do lago quando via Josephine aparecer com a arma.

?Sophia... querida... Talvez... eu... ?tentou dizer.

?Mary Moore Arany! Nem pense em dormir! Temos que falar! ?Gritou depois de levantar a camisola e subir as escadas num tropel.

?Graças a Deus... ?suspirou o médico retrocedendo muito lentamente os degraus que tinha subido acompanhando sua esposa.

Depois de olhar para o primeiro andar, voltou ao seu escritório. A escolha mais acertada para ele era descansar em um sofá duro, em vez de suportar a disputa que mãe e filha teriam durante as próximas horas...


***

?Se sente bem, milorde? ?Shals perguntou a Philip quando apareceu novamente no quarto.

?Já foram embora? ?Ele perguntou, fazendo um grande esforço para permanecer um pouco inclinado.

?Sim. O Sr. Randall e sua filha voltaram para casa. Como não tinham carruagem, tomei a liberdade de lhes oferecer uma de sua senhoria ?informou-o enquanto caminhava em sua direção.

?Nesse caso... me sinto horrível! ?Trovejou. Finalmente descansou a cabeça no travesseiro e olhou para o teto. ?Isso dói muito!

Shals, confuso com a mudança radical na saúde de seu mestre, pegou o frasco de comprimidos e retirou o que o médico recomendou.

?Pensei, ao vê-lo se inclinar e conversar com o médico, não estava se sentindo tão mal... ?disse aproximando as cápsulas para a boca de Philip. Ele os colocou na língua e lhe aproximou um copo de água.

?Se lembra da infecção que sofri durante minha primeira viagem às ilhas do Caribe? ?Estalou, depois de engolir o medicamento.

?Sim, milorde. Jamais o vi tão fraco e doente. Devo lhe confessar que pensei que não voltaria a Londres... vivo ?explicou consternado.

?Bem, isso é pior... ?suspirou, jogando de novo sua cabeça sobre o travesseiro.

?Quer que chame o Sr. Moore? Com certeza ele saberá...

?Não! Nem pense em fazê-lo! Não quero que ele se preocupe com nada. Certamente culparia sua filha pelo meu desconforto e não vou consentir que isso aconteça.

?Claro, milorde. Tem toda a razão. Depois de presenciar a repreensão contra a Srta. Moore, tenho muito medo de que ela assuma a responsabilidade por tudo e, se naquele momento acalmei o desejo de lhe acertar a cabeça com um dos castiçais que tem na lareira, não duvidarei da próxima vez. Como ele ousa repreendê-la assim? Aquela menina o salvou! ?Comentou com ira. ?Se o próprio pai não é capaz de apoiá-la, quem o fará? ?Acrescentou.

?O Sr. Moore é um fiel defensor de sua filha, junto com o Sr. Flatman. Mas acho que se assustou ?Philip refletiu. ?Talvez seja a primeira vez que ela agiu sem o seu consentimento.

?Estava em perigo, milorde. Ela agiu prontamente porque deduziu que poderia morrer ?informou. ?Depois de ver os seus vômitos, ela colocou as mãos sobre o seu corpo e foi apalpando lentamente a área em que foi operado.

Tocando? Até que Shals não fez referência a sua nudez, ele não reparou nela. Mary havia tocado seu corpo e ele estava inconsciente naquele momento? Isto era imperdoável! Desde quando não sentia as carícias de uma mulher? Ele teria ficado excitado ao notá-la? Com certeza que sim. Seu membro agia por conta própria, sem a necessidade de uma ordem mental. Teria deixado em um bom lugar? Como ela reagiu? De repente, um sorriso de orgulho cobriu seu rosto cansado. Até agora, nenhuma de suas amantes se queixara de sua aparência física; era mais, elas o exaltavam e o admiravam. Mary teria olhado para ele dessa maneira também? Que conclusão havia chegado? Poderia obter a resposta através de Shals, mas precisava ser cauteloso, se não quisesse na sua, os candelabros que queria jogar na cabeça do pai. Bem, por causa da emoção com que ele falou sobre ela, sua admiração era notável.

?Por que minha irmã a chamou? ?Mesmo sabendo a resposta, decidiu começar do início, para descobrir todos os detalhes.

?A Sra. Reform decidiu aparecer na casa dos Moore após seu último estado febril ?Shals começou a explicar, evitando comentar que ele estava gritando o nome da menina como se não houvesse outra mulher no mundo. ?Como já descobriu, o médico não estava em casa e sua filha apareceu. Devo esclarecer que, quando ela entrou e jogou seu casaco na minha cara, eu queria chutá-la daqui ?explicou. Seus lábios se estenderam para mostrar um sorriso travesso enquanto aceitava o convite de seu amo para se sentar na mesma poltrona onde ela passou a noite toda. ?Mas sua irmã impediu que o fizesse. Sem demora, a jovem subiu as escadas de três em três com a maleta na mão e entrou no quarto sem avisar. Foi então que ela encontrou três dos criados o agarrando. Eles estavam apenas tentando cumprir a ordem da Sra. Reform: dar-lhe um banho gelado. No entanto, foram eles que ficaram congelados quando a Srta. Moore gritou lhes chamando de bando de inúteis.

E naquele momento, Philip soltou uma risada que lhe causou mais mal do que diversão.

?Continua ?encorajou-o enquanto ele respirava fundo e colocava a mão esquerda em direção ao curativo.

?Obrigou-os a colocá-lo de novo sobre a cama. Logo se aproximou e começou a inspecioná-lo, tal como lhe disse. Quando ela anunciou à Sra. Reform que deveria operá-lo, sua irmã não deu crédito a suas palavras. Tentou convencê-la, mas, como entendi, é difícil para a Srta. Moore mudar de ideia sobre algo de que ela tem plena certeza.

?E? ?Giesler perguntou sorrindo com mais cuidado.

?E em menos de uma hora, você estava sobre uma mesa sob o olhar atento da jovem médica. Prometo que o tempo se tornou eterno, mesmo que a menina não tenha parado de falar sobre pesquisas que fizeram sobre a doença que sofria. Senti que ela estava narrando para que a Sra. Reform, que estava sentada na poltrona perto da lareira desde o momento em que o viu sangrar, relaxasse. Mas estávamos todos em tensão até que saiu de suas entranhas, o que o prejudicava. Então ela o costurou e desceu para a cozinha para o café da manhã acompanhada por sua irmã.

?Conseguiu comer alguma coisa depois de ver o que guardo dentro de mim? ?Retrucou estupefato pela frieza de Mary.

?Sim senhor. A Srta. Moore tomou duas xícaras de café, três torradas e um ovo escalfado, enquanto a Sra. Reform não conseguia nem terminar o chá que lhe serviram. ?Apontou com alguma diversão.

?Fascinante! ?Giesler exclamou depois de suspirar e encarar o teto.

?Pode acreditar! ?Shals respondeu se levantando da cadeira. O momento que ele esperava havia chegado e, como sabia que reação seu senhor teria, era melhor se afastar dele, porque, apesar de se sentir tão mal, quando ouvisse o que planejava dizer, conseguiria se levantar e estrangulá-lo. ?É uma lástima que não possamos falar sobre o que aconteceu aqui esta noite, milorde.

?Por quê? ?Ele perguntou, estreitando os olhos.

?Essa menina é um verdadeiro tesouro ?declarou aos pés da cama ?e é uma pena que ninguém saiba como é realmente.

?Por quê? ?Repetiu grosseiro.

?Por que... que homem não gostaria de se casar com uma mulher que o libertaria da morte sem hesitar por um segundo? Se os solteiros desta cidade conhecessem o dom daquela jovem, o Sr. Moore teria, às portas de sua casa, inúmeros pretendentes esperando impacientemente ?comentou com entusiasmo.

?Daqui não sairá nem uma palavra! ?Philip garantiu, se levantando apesar da dor que sentia. ?Dei minha palavra a seu pai e a cumprirei!

?Oh, milorde! Não me interprete mal ?Shals se apressou em responder. ?Juro que ninguém nesta casa comentará nada. Todos entenderam que suas posições estão em risco se não conseguirem manter a boca fechada ?acrescentou com aparente tensão.

?Perfeito... ?manifestou Giesler deitando-se de novo.

?Se a sua senhoria não requer dos meus serviços, irei ao...

?Mais uma coisa antes de sair ?interrompeu.

?Sim? ?Ele perguntou, provando o sabor da vitória.

?Quem, dentre todos os que trabalham para mim, pode fazer um trabalho que exige muita discrição?

?Todos, milorde. Ninguém desta casa...

?Bem, escolha um deles e que vigie a Srta. Moore enquanto eu não posso sair deste maldito quarto ?ordenou bruscamente.

?Pensa que pode estar em perigo? Que alguém pode machucá-la? Não me parece que precisa de proteção, senhor. Ela...

?Não me ouviu bem, Shals? Preciso chamar outro lacaio para executar minha ordem sem questionar? ?Ele insistiu, olhando-o ferozmente. ?Eu disse que alguém a vigie e me conte tudo o que ela faz.

?Com certeza, milorde! Agora mesmo me coloco a isso ?ele respondeu antes de fechar a porta.

Quando seu mestre não pôde olhar para ele, sorriu amplamente. Havia entendido a indireta? Ou melhor, devia defini-la como uma grande direta? O que quer que fosse, o plano começou melhor do que esperava...

«Um marido? Pretendentes?»

Philip cerrou os punhos e bateu no colchão. Maldita fosse a sua doença e a incapacidade de se levantar da cama! Quanto tempo o Sr. Moore havia dito que deveria permanecer deitado? Um mês? Bem, ele se recuperaria na metade do tempo! Depois de esperar que Bennett partisse para sua casa no campo com três das irmãs, depois de perguntar sobre ela e ficar impressionado por esse caráter grosseiro e brilhante intelecto, depois de vê-la com aquela camisola e de guardar um objeto seu, fazendo dele seu amuleto... Permitiria que outro homem aparecesse em sua vida? Não, absolutamente não! Se um homem ousasse aparecer na residência Moore lhe pedindo em casamento... lhe arrancaria a cabeça. Mary Moore Arany era sua Medusa, sua bruxa e lutaria para tê-la, mesmo que tivesse que rastejar como uma minhoca pelas ruas de Londres!


Capítulo VI


Não era justo! Por que ela deveria ficar de castigo por duas semanas por uma coisa tão absurda? Sua mãe esqueceu o prodígio que havia feito: salvar a vida de um homem, e só se concentrou no fato de que ela o vira nu. E como iria operá-lo? Com uma venda nos olhos?

Mary bufou pela décima quinta vez e sentou no parapeito da janela. Ela só estava trancada em sua casa por cinco dias e os primeiros sinais de uma loucura monumental apareceram: ela não havia trocado a camisola, nem escovado os cabelos nem uma vez, sorria sem motivo, andava pelo quarto procurando teias de aranha para soprá-las, passava o dedo pelas paredes, para sentir a aspereza delas. Como poderia suportar tanta crueldade por tanto tempo? Ela olhou para fora e bufou. Nos dias anteriores, não teve vontade de sair de casa, porque a chuva a ajudou a superar sua agonia. Mas naquela manhã, para sua desgraça, as nuvens se dissiparam do céu e o sol, apesar de frio, se mostrou em todo o seu esplendor, temperando levemente a cidade. Ela abraçou as pernas, cujos joelhos tocavam seu peito, e focou os olhos na cama de Anne. Senti falta dela. Ansiava as conversas e presença da mais velha de suas irmãs. Certamente que, se estivesse lá quando sua mãe apareceu no quarto com raiva, rapidamente aplacaria sua ira. No entanto, ela teve que enfrentar sozinha e, por mais que insistisse em que não havia reparado naquele corpo masculino, o olhar reprovador de sua mãe expressava que não acreditava nela.

E estava certa...

Como não admiraria um corpo assim? Se era praticamente perfeito! Como admitiu naquela noite, algo que seu cérebro lembrava como se tivessem passado mil anos, Lorde Giesler merecia ser estudado como um exemplar do Homo sapiens perfeito. Não tinha dúvida alguma de que, se tivesse vivido na pré-história, seria o melhor caçador. Caçador? Não! Ele seria o chefe de alguma tribo! Mas de uma em que haveria apenas mulheres. Sim, tinha certeza de que, antes de abrir os olhos, na chegada de um novo dia, ele teria à sua frente mais de dez quadris levantados, esperando serem usados para gerar novos filhos, novos chefes, novos homens com um físico parecido ao de seu procriador. E se tivesse vivido na era grega! Ah, certamente teria sido a musa de centenas de escultores! E os homens o perseguiram... e as mulheres!

Irritada, por compará-lo em diferentes épocas e em situações semelhantes, enrugou a testa e bufou. Era verdade que ele tinha um físico digno de uma divindade: seus braços, pernas e aquele peito duro e forte lhe davam essa condição. Mas... por que deveria notar tanto algo que para ela era trivial? Sempre pensou que, se encontrasse um homem que estivesse mais do que disposto a suportá-la, seria inteligente, um tanto tímido e muito sensato. Lorde Giesler não era nada disso! Tímido? Hah! O próprio canalha fez um grande esforço, comprometendo seu bom trabalho, para beijá-la! Havia sensatez nesse ato? Não, claro que não! Isso já lhe mostrava que o homem não era nada racional. Se tivesse sido, não a teria beijado nem teria feito um sacrifício desnecessário para obter, como presente, um bom tapa. Essa conclusão a levou a outra característica que não possuía: inteligência. Que pessoa inteligente faz um plano tão absurdo para se aproximar dela e beijá-la?

Mary levou a ponta dos dedos da mão direita para a boca e sorriu. Pensou, em algum momento de sua vida, que o cavalheiro que a beijasse pela primeira vez, receberia em troca o impacto de sua mão? Não. Mas também não achava que alguém se atreveria a fazê-lo. Quem iria desejar uma mulher que pudesse matar com um olhar e com algum outro remédio que carregasse em sua maleta? No entanto, mesmo que não quisesse admitir, gostava de se sentir... fascinantemente inesquecível. Foi isso que lorde Giesler lhe confessou antes que pudesse estar consciente do que estava acontecendo ao seu redor. Talvez não tenha antecipado seu plano selvagem, porque ainda estava perturbada ao encontrar um de seus rolos metálicos armazenados como se fosse um tesouro. Se seu pai não tivesse entrado no quarto naquele momento, ela o teria pegado e o teria jogado de novo, para que não esquecesse quão fascinantemente doloroso poderia ser um impacto semelhante.

Irritada, não apenas pelo castigo, mas por se concentrar novamente em lorde Giesler, ela pulou no chão e se afastando da janela. Não deveria eliminar tudo o que sua mente havia cultivado desde anos atrás para preencher essas lacunas mentais com bobagens sobre os homens. Ela havia determinado, desde que tinha uso da razão, que não aceitaria se casar com um, pois todo seu mundo se tornaria trágico. Que marido permitiria que ela fosse às reuniões médicas? Que marido íntegro aceitaria que sua esposa abandonasse a cama para acompanhar seu pai a uma urgência médica? E, que homem suportaria que sua esposa o substituísse por um bom livro? Nenhum! Não nasceu homem capaz de lhe oferecer a vida que esperava! Por causa disso, não pensava, nem procurava um cônjuge. A decepção destruiria as duas vidas, os problemas apareceriam: discussões, raiva, gritos, mentiras, infidelidade, tristezas, decepção e, após anos e anos sofrendo uma agonia infinita, a morte chegaria. A dele, é claro, porque ela não planejava morrer até os noventa anos, pelo menos...

Nervosa, pela agonia dessa prisão obrigatória, ela começou a andar pelo quarto até fixar o olhar na poltrona ao pé da cama. Como lhe tinha ocorrido uma ideia tão descabelada? Não achou que era suficiente castigá-la sem sair de casa e não permitir que ela lesse um único livro que também lhe impunha uma tarefa tão absurda? Jamais tocaria aquele bastidor, nem passaria o tempo bordando! Mas... como pensou que ela costuraria? Em que momento da sua vida pediu que lhe dessem linhas e agulhas? Colocou as mãos nas têmporas e apertou-as, como se desse modo desaparecesse uma dor de cabeça inexistente.

Era tudo culpa dele! Desde que lorde Giesler apareceu em sua vida, esta havia se transformado. E agora, embora não soubesse nada sobre seu paciente há vários dias, porque sua mãe avisou seu pai que, se ele passasse informações, iria dormir para sempre em seu escritório, continuava incomodando-a.

Estava prestes a pegar o pano comprado para bordar, o que poderia servir de colcha para a cama e fazê-la em farrapos quando ouviu barulho do lado de fora. Madeleine não teria pensado em sair, certo? Como superaria a má sorte de que, embora ela precisasse de sua presença, para que sua loucura não aumentasse, a irmã mais nova de suas irmãs decidisse enfrentar sua timidez saindo para a rua. Desesperada, correu para a janela com tanta pressa que sua testa alcançou o vidro antes que o resto do corpo. Seus lábios desenharam um sorriso enorme, o primeiro que mostrava desde que sua mãe fechou a porta antes de lhe gritar que queimaria seus livros se a desobedecesse. Viria por ela? Havia decidido descobrir o que tinha acontecido para não acompanhar seu pai até a casa do seu irmão? Nesse caso, agradecia a... seja lá o que todos acreditassem, que se apresentasse. Não lhe disse que havia se tornado sua primeira admiradora e que os Giesler a protegeriam? Bem, estava com sérios problemas e precisava dessa proteção... imediatamente!

Sem esperar para saber por que ela apareceu em sua casa, foi ao armário e procurou um de seus vestidos. Embora Shira logo aparecesse, porque sua mãe a obrigaria a chamá-la, para que a Sra. Reform não descobrisse o que havia feito com a filha, ela não desejava demorar nem um minuto.


***

Continuava sem acreditar no que estava fazendo...

Quando um servo de Giesler apareceu em sua casa, às oito horas da manhã, avisando-a de que deveria aparecer na casa de seu irmão o mais rápido possível, quase morreu de um ataque cardíaco. Pensou que tinha piorado, e isso que na tarde anterior confirmou que seu estado de saúde havia melhorado. Preocupada, ela começou a dar ordens a todos os empregados da casa, porque quando ela anunciou ao marido que deveria ficar cuidando dos filhos, ele lhe lembrou que tinha uma reunião importante e que não podia atrasar. Sem Trevor... Teve que procurar outras alternativas e preparar sua casa em uma hora! E para que? Para aparecer no quarto de Philip e descobrir que ele não estava doente, mas que teve uma ideia maluca e que precisava de sua ajuda.

?Preciso que vá vê-la ?disse-lhe assim que entrou.

?A quem? ?Ela perguntou erguendo as sobrancelhas. Se lhe pedisse que falasse com alguma de suas amantes, arrancaria seus olhos naquele momento.

?Mary.

Bem, isso a relaxou muito, tanto que ela caminhou lentamente pelo quarto para se sentar na beira da cama e mostrar um leve sorriso.

?Por quê? ?Insistiu em descobrir.

?Sei que algo aconteceu com ela. O Sr. Moore se recusa a falar sobre ela toda vez que toco no assunto e fico surpreso que, depois do que fez, não esteja interessada em descobrir como estou. ?Philip admitiu com angústia.

?Talvez, apenas talvez, não queira saber nada sobre você. Não pensou nessa possibilidade? ?Valeria afirmou com mordacidade.

Estava brava com o grande ego de seu irmão, odiava que fosse tão vaidoso. Era verdade que, para mulheres solteiras, casadas, viúvas e até idosas, ele era descrito como um homem encantador, elegante e sedutor, e com um porte digno de um deus, mas isso carecia de importância. No entanto, por causa disso, seu irmão não pensava em procurar uma esposa digna de um barão e apenas desejava estar nos braços de amantes desavergonhadas. Valeria estava muito preocupada com seu futuro e essa preocupação aumentou depois de ler a última carta que o advogado de seu avô enviou. Ele informou que sua saúde piorou e pediu que ela chamasse a sabedoria de seu irmão. A recusa de Philip estava começando a ser perigosa. Se ele não reivindicasse o título de família, a alma de seu pai não descansaria em paz...

?Já que não posso fazer outra coisa durante o dia exceto pensar, também ponderei essa ideia ?declarou zangado. ?Mas sei que essa não é a resposta. Uma mulher como ela, tão apaixonada, não se pode esquecer, da noite para o dia, a evolução da pessoa a quem salvou da morte.

?Talvez o pai a mantenha informada e ele precise permanecer em silêncio ?Valeria ofereceu.

Embora temesse muito que essa não fosse a resposta certa também. O pouco que sabia de Mary se assemelhava a conclusão de Philip: era apaixonada por seu trabalho e duvidava muito que desconsiderasse seu estado de saúde facilmente, apesar do fato de que, por causa do rosto que colocou quando lhe anunciou na carruagem seu nome, mostrou mais ódio do que misericórdia.

?Há cinco dias que não sai de casa ?Philip anunciou.

?Como sabe? ?Valeria perguntou, arregalando os olhos.

?Encarreguei a tarefa de protegê-la a um de meus servos ?ele declarou, evitando expressar em seu tom mais ansiedade do que deveria mostrar à irmã. Se descobrisse que tinha algum interesse nela, começaria a planejar um casamento, forçaria-o a recuperar a baronia, iria enviá-lo para a Alemanha e, quando voltasse, se tornaria um homem que não desejava ser.

?Proteger ou espioná-la? ?O sorriso malicioso que seus lábios esboçaram, fez Philip entender que todos os seus esforços para não revelar um interesse especial por Mary eram um fracasso.

?Protegê-la ?resmungou. ?Tenho que velar por sua honra. Depois do que fez por mim, não vejo justo que corra perigo...

?Que perigo poderia ter? ?O interrompeu, se levantando da cama. ?Alguém desejaria matá-la por salvar sua vida? Se essa cidade descobrisse o que fez, seria valorizada tal como merece e eles parariam de vê-la como um pária. Sabe quantos homens estariam interessados nela? ?Insistiu com ele. ?Possivelmente, você não está fazendo nenhum bem em esconder o segredo. Talvez deveria...

?Não! ?Rosnou. Em seguida colocou a mão no curativo e apertou para aliviar a dor. ?Não é isso que quero!

?Bem... Diga-me por que me fez sair de casa a essa hora e ter que fazer o trabalho de um dia inteiro em uma hora ?Valeria murmurou.

?Quero que descubra o que acontece com ela. Preciso saber por que não saiu de casa durante esses dias.

?Não pensou que a chuva tivesse algo a ver? ?Soltou, um pouco brava.

?Mary gosta dos dias chuvosos e nem um dilúvio a impediria de sair de casa para comprar os folhetos científicos que coleciona.

?E você sabe tudo isso por que...

?Porque Logan me pediu ?declarou.

?Bennett está interessado nela? ?A vida poderia dar-lhe um chute mais forte em seu traseiro? Se seu melhor amigo tivesse alguma intenção na mulher, seu irmão não intercederia, mesmo que estivesse apaixonado. Mas... Philip poderia se apaixonar?

?Não ?respondeu com um sorriso. A irmã dele tinha que mascarar melhor tudo o que pensava. Ele ainda não entendia como tinha sido tão boa em jogar cartas com Trevor, quando não era capaz de dissimular o que passava em sua cabeça. Não havia dúvida de que seu cunhado era capaz de fazer qualquer coisa para fazê-la feliz. ?Não, Logan está interessado na primogênita das Moore. Precisava descobrir como poderia se aproximar dela sem a interrupção das outras, então me pediu para descobrir tudo o que podia sobre as Moore.

?E era de vital importância que descobrisse seus gostos... ?Valeria apontou ironicamente. Philip assentiu. ?Então, como choveu, o que ela ama, e seu lacaio lhe disse que ela não saiu de casa, você concluiu que algo sério aconteceu com ela.

?Mary não pode sobreviver sem esses artigos médicos. Somente uma doença, que a obrigue a permanecer em sua casa, pode impedi-la de comprá-los. ?Garantiu preocupado.

?Quer que me apresente na residência Moore e descubra o que aconteceu? ?Philip assentiu. ?A troco de que?

?Vai me chantagear, Valeria? ?Retrucou, sem saber muito bem se estava com raiva ou orgulhoso do sangue cigano materno que corria por suas veias. ?É capaz de impor condições a um irmão que te ama e não pode se defender sozinho?

?Se Martin me pedisse, faria sem pensar um só segundo. Mas você ?ela apontou um dedo ?não é ele. Então, sim, vou chantagear você, é o único idioma que você entende.

?O que quer? ?Ele disse depois de subir o lençol até o pescoço.

Medo, sua irmã lhe dava medo, tanto que ele usou o lençol como escudo. Se não errasse em seu palpite, levaria pouco tempo para lembrá-lo de que deveria...

?Na semana passada, recebi uma carta do advogado do nosso avô. ?Philip rosnou quando a ouviu. ?Ele queria nos avisar sobre sua saúde. Aparentemente, sua doença piora e não demorará muito...

?Não! ?Gritou. ?Esqueça esse absurdo, Valeria! Já te disse mil vezes! Não quero!

?Tem razão ?ela disse cruzando os braços ?você me disse não mil, mas um milhão, mas deve admitir que a situação mudou.

?Por isto? ?Apontou com o queixo para a cintura. ?Isso não mudou nada. Minha cabeça ainda está saudável...

?Se tem algum interesse em Mary, deveria considerar a alternativa de se tornar um barão.

Ela nunca havia chamado sua atenção para o assunto, mas incluir ao nome da mulher na frase, ela o fez.

?Não tenho nenhuma intenção de torná-la mi...

?Então, deixe-me falar sobre o que aconteceu aqui. Quando todo mundo souber que realizou um milagre, porque o rumor se espalhará como pólvora, ninguém duvidará de sua grande habilidade. Será convidada para uma infinidade de festas, terá, antes de descer o último degrau de qualquer salão, o cartão cheio de danças e, talvez em um deles, encontre o homem adequado para se casar com...

?Eu disse que não! Maldita seja, Valeria! Não escuta quando falo com você?

Mas... por que diabos todos estavam pensando em encontrar um marido para Mary? Queriam que se levantasse antes de se recuperar? Ou estavam tirando sarro dele? Mary não estaria com ninguém, ela não dançaria com ninguém e ninguém, absolutamente ninguém, descobriria que adorava sentir as gotas de chuva em seu rosto! Lembrando daquele dia, quando pensava que estava sozinha, que ninguém poderia descobri-la, se estremeceu. Nunca na vida viu um sorriso de um anjo até que Mary, sem perceber sua presença, virou o rosto para ele e sorriu.

?Está me ouvindo? ?Replicou. ?Olha ?começou a dizer se aproximando novamente dele ?se pensou em torná-la uma de suas muitas amantes, acredite-me que não fará isso. Essa moça não consentirá uma humilhação semelhante. Lutou com unhas e dentes contra todos os infortúnios que lhe foram apresentados para aceitar uma coisa tão vil. Por acaso não se informou o que fazem os cavaleiros quando a veem, ou só tem perguntado sobre seus gostos?

?Posso garantir que sei muito bem do que falam. ?E Valeria não duvidou por como sua mandíbula endureceu e como seus olhos, azuis com o céu, ficaram escuros, como uma noite sem estrelas. ?Assim como também tenho que confessar que mais de um imbecil trocará de calçada quando a veja, se quiser manter seus bonitos dentes dentro da boca ?garantiu irritado.

?Você gosta! Tem interesse nela? ?Embora apenas parecesse uma pergunta, não era. ?Então, pense em uma coisa...

?Qual? ?Ele perguntou, erguendo as sobrancelhas loiras.

?O que você vai lhe oferecer Philip, que os outros não podem dar?

?Respeito e admiração ?respondeu sem hesitar.

?Oh, bem! ?Exclamou revirando os olhos. ?E pensa que isso será suficiente para ela?

?Sim ?garantiu com firmeza.

?Pois está equivocado! ?Gritou. ?Uma mulher quer ter ao seu lado um marido compreensivo, certo, mas também um lutador. Precisará de um homem que a apoie e que não lhe coloque obstáculos em seu caminho. Sabe qual é o caminho de Mary Moore?

«Mary Moore Arany», pensou Giesler.

?Qual, de acordo com o seu bom julgamento? ?Murmurou Philip.

?Tornar-se alguém que a sociedade não permite ?berrou. ?Não tem olhos em seu rosto, irmão? Realmente pensa que uma mulher que é capaz de deduzir a doença de uma pessoa apenas tocando nela e que tem a coragem de se envolver em uma operação, como ela fez com você, se conformará com um marido que lhe oferecerá respeito e admiração? Já tem um pai que o faz! Mary precisa de um marido para ajudá-la a alcançar o que ela sozinha não pode e... você conhece o paradoxo de tudo isso? Que, nesta maldita cidade, apenas um nobre pode pavimentar esse futuro. Conhece algum aristocrata que pode lutar nessa batalha social ao seu lado?

Silêncio... Por mais de um minuto, os dois irmãos permaneceram em silêncio. Valeria, entendendo que não havia conseguido nada, nem mesmo uma resposta negativa, se virou para a porta e a abriu de uma vez.

?Verá o que lhe acontece ?Philip pediu-lhe olhando para o teto ?e deixe-me pensar.

?Precisará de muito tempo para fazê-lo, querido irmão, pois até que não tenha adoecido, não foi capaz de fazê-lo.

?Ainda tenho dez dias para sair daqui. Quando o fizer, direi o que decidi ?ele garantiu.

Valeria não respondeu. Fechou a porta atrás dela com um forte estrondo. Não foi muito, mas foi mais do que suficiente. Se Philip tinha interesse em Mary, que disso não havia dúvida sobre a maneira de chamá-la quando a febre se apoderou dele, pensaria em como alcançá-la, porque, como lhe disse, ela não era uma de suas amantes que suspirava ao ver um corpo masculino perfeito.


?Bom dia, o que deseja? ?A voz de uma mulher, que não reconheceu, a fez voltar ao presente.

?Bom dia, sou a Sra. Reform. A Srta. Mary Moore pode me receber? ?Perguntou, oferecendo-lhe um sorriso terno e encantador.

?A Srta. ainda não saiu do seu quarto ?comentou Shira sem especificar em excesso. ?Mas posso anunciar à Sra. Moore que deseja visitá-la.

?Se fizer a gentileza ?comentou, entrando por fim no hall. Ofereceu-lhe o casaco e a empregada o pegou.

Depois que a mulher deixou o casaco no guarda-roupa à direita, ela caminhou para uma sala à esquerda. Enquanto informava a esposa do médico sobre sua presença, Valeria suspirou. Durante o trajeto, pensara na mudança de atitude de Philip. Repassou todos os gestos que seu rosto mostrava ao falar sobre Mary, até avaliou o tom de voz que ele usou nas palavras. Bem, uma coisa era certa; Mary era especial para ele e não suportava a ideia de que ela estivesse com outro homem. Agora tinha que se concentrar em aproximá-los sem levantar suspeitas e procurar um motivo eloquente pelo qual aparecera às onze horas na residência dos Moore.


Capítulo VII


Enquanto esperava a criada retornar, Valeria olhou para o primeiro andar. Se Mary permanecia em sua casa e não estava doente, pode observar, através de alguma janela, a chegada de sua carruagem ou até mesmo quando desceu dela. Se queria vê-la, logo apareceria no topo da escada, como na noite em que a conheceu. No entanto, essa alternativa diminuiu com o passar do tempo... Philip estava certo? Porque havia a possibilidade de que não estivesse em casa. Talvez tivesse que comparecer em outra emergência médica e, por isso, não havia vestígios da jovem. Mas essa ideia desapareceu rapidamente, porque ao entrar no jardim dos Moore, encontrou o servo de seu irmão escondido e sem tirar os olhos da entrada, tal como havia recebido a ordem. Então... o que tinha acontecido? Mary não teria decidido fugir dos Giesler, certo? Não, isso também não parecia certo. Era verdade que elas haviam discutido quando decidiu operá-lo, mas após sua magnífica proeza, as duas conversaram como se tivesse se conhecido há uma vida. E com relação ao irmão... Desejava manter distância? Mary, na realidade, era uma covarde? Não. Não era. Se sua intuição feminina não lhe enganava, a filha dos Moore não se assustaria facilmente. Se ela própria se envolveu numa intervenção deste tipo, seria capaz de lutar contra o mundo, se fosse necessário. Tinha que haver outra razão pela qual Mary não saía de casa, uma que, por incrível que pudesse parecer, lhe causava medo.

Valeria parou de olhar para o fim da escada e começou a andar inquieta pelo hall. Já não lhe importava mais a desculpa que lhe ofereceria à Sra. Moore ao aparecer em sua casa tão cedo, mas a causa pela qual Mary não aparecia. Apesar de tudo, a opção de estar em sério perigo começou a tomar força. Como seu irmão agiria se descobrisse que a jovem estava sob alguma ameaça? Pularia da cama para fazê-la desaparecer, mesmo sabendo que colocaria sua vida em risco! Disso não lhe cabia a menor dúvida...

Assim que focou o olhar na porta da entrada, ponderando todas as alternativas possíveis para esse desaparecimento, ouviu o som fraco de sapatos enquanto pisavam no chão. Se virou rapidamente, esperançosa de que fosse Mary, mas não havia ninguém lá. Resignada, ela respirou fundo para se acalmar e...

?Valeria... Olá! Estou aqui em cima! ?Mary sussurrou se escondendo atrás do parapeito de madeira.

?Mary! ?Exclamou eufórica. ?O que está fazendo aí? Por que não desce? Vim falar com você e...

?Não levante a voz ?lhe disse, acompanhando a sua ordem um leve movimento de suas mãos. ?Não pode saber que estou aqui. Se me descobrire, queimará todos os meus livros ?ela adicionou aterrorizada.

?Quem? ?Retrucou arregalando os olhos. Subiu um degrau, para poder vê-la melhor, mas a recusa de Mary a fez retroceder.

?Minha mãe ?bufou. ?Estou de castigo. ?E a vergonha que sentiu naquele momento em confessar o que estava acontecendo fez suas bochechas corarem.

?De castigo? O que você fez? ?Valeria insistiu em saber.

?Não posso falar, Shira aparecerá em breve e não deve me descobrir ?declarou sem afastar o olhar da porta por onde a empregada tinha entrado. ?Então, veio me ver?

?Sim. Meu irmão me pediu para fazê-lo. Ele sabia, de alguma forma, que você não deixou sua casa desde que saiu da dele e estava preocupado.

?Que atencioso da sua parte! ?Exclamou, revirando os olhos.

Faltava apenas, para que seu castigo aumentasse mil anos mais, que lorde Giesler aparecesse em sua casa perguntando por que sua filha continuava trancada. Sua mãe sofreria uma repentina apoplexia!

?Não pode descer? Preciso falar com você, mas jamais imaginei que deveria fazê-lo desta forma ?disse perplexa. Não tinha irmãs, nem primas, mas filhas e elas agiam da mesma maneira quando alguém era castigada.

Estava prestes a responder quando Shira saiu. Mary amaldiçoou baixinho e franziu a testa. Não seria capaz de executar seu plano? Pela primeira vez havia se arrumado decentemente! Embora essa leve raiva tenha desaparecido quando notou que sua governanta voltou para a sala.

?Minha mãe lhe dará uma desculpa para impedir que desça. Você insista que precisa me ver ?começou a dizer enquanto se levantava e saia do esconderijo. ?Quando eu aparecer confirme tudo o que digo ?acrescentou antes de desaparecer tão rapidamente quanto um fantasma deveria.

Valeria desviou o olhar do topo da escada e suspirou. Por que eles a castigaram? Que tipo de trapaça teria feito para enfurecer a sua mãe? E... como ela iria se intrometer na ordem de uma mãe? Não era sensato! O que aconteceria no futuro quando ela estivesse no lugar da Sra. Moore? Deixaria que uma de suas filhas se livrasse de um castigo quando aparecesse alguma amiga procurando-a? E por que Philip e Mary a colocaram em uma situação tão embaraçosa? Só esperava que, depois de tudo o que estava fazendo, seu irmão aceitasse a baronia ou... o mataria!

?Sra. Reform, se fizer a gentileza de me acompanhar, a Sra. Moore ficará encantada em recebê-la ?Shira a informou.

Sem apagar o sorriso gentil do rosto, Valeria se aproximou da porta, pensando em Mary, Philip, na baronia e os castigos de seus filhos. Ela balançou a cabeça levemente, afastando tudo o que sua mente lhe oferecia. Precisava se concentrar no motivo pelo qual tinha aparecido e, logicamente, não podia confessar a verdade. Outro ponto a discutir com Philip, por que... como poderia pedir aos filhos para não mentirem quando ela foi a primeira a fazê-lo? Irritada, tendo que pular todos os princípios morais que ensinou aos pequenos, ficou em frente à entrada e observou a Sra. Moore. Ela permanecia no centro da sala, usando um lindo vestido esmeralda. Seus cabelos, recolhido em um coque esticado, e aqueles olhos claros a perseguindo sem piscar, indicavam que sua presença não era muito desejada.

?Obrigado por me receber, Sra. Moore ?comentou Valeria apertando as mãos entre as suas.

?Obrigado por ter vindo, Sra. Reform ?disse educadamente. Uma vez que se separaram, Sophia apontou para um assento. ?Shira me disse que quer conversar com Mary, mas ela ainda não desceu para o café da manhã. Imagino que esteve a noite toda lendo algum livro sobre medicina ?tagarelou, enquanto a convidada se sentava. ?Se desejar, enquanto a esperamos, podemos tomar um chá.

?Se não for muito incomodo ?considerou ela. Embora soubesse que não chegaria a tomá-lo. A ansiedade que Mary mostrou indicou-lhe que tinha tramado algo em que não incluía uma conversa amável com sua mãe e um chá.

?Nenhum ?Sophia disse sentando-se ao lado de Valeria. ?Shira, por favor, chame...

E então, como se tivesse surgido uma repentina nevasca, Shira se afastou com rapidez da porta, deixando passagem a uma jovem que corria como um galgo.

?Valeria! ?Mary exclamou, entrando na sala com uma urgência incomum. ?Que alegria vê-la novamente!

De onde veio esse rosnado? A família Moore tinha um cachorro escondido na sala? Porque esse barulho costumava ser emitido por Ricardo, o animal de estimação da família, quando Fiona puxava suas longas orelhas e Charles queria usá-lo de cavalo.

?Bom dia, Mary ?ela disse se levantando rapidamente. Como fez com a Sra. Moore, apertou suas mãos com as de sua amiga e aceitou com prazer os dois beijos que a jovem lhe ofereceu nas bochechas. ?Aqui estou ?acrescentou olhando para ela com os olhos bem abertos, esperando descobrir o que havia tramado.

?Bem, você veio no melhor momento ?Comentou com um leve sorriso. Então observou sua mãe, que franzia o cenho e olhava para ela com advertência, mas não se assustou. Ela preferia ouvir milhares de palavrões e ordens há suportar outro dia em seu quarto... costurando? Nem morta! ?Bom dia, mãe ?disse suavemente. Se aproximou dela e lhe deu dois beijos mantendo uma distância segura. Não colocaria a mão em seu braço se arriscando a ser beliscada até que o sangue corresse por aquela área de sua pele.

?Mary... ?Sophia respondeu com aparente tranquilidade. ?Estava oferecendo um chá à nossa convidada. Como ainda não desceu para o café da manhã, pensei que ainda estava dormindo.

?Que nada! Hoje eu acordei muito cedo. Mas nossa querida Shira me serviu café no quarto quando eu a informei que estava acordada ?declarou com certo sufoco, como se realmente sentisse vergonha da insinuação de sua mãe de tratá-la como preguiçosa.

?Já vejo... ?Sophia apontou para o vestido e o penteado de Mary. Ela não tinha passado os dias em uma camisola e despenteada? Que coincidência oportuna! A Sra. Reform apareceu e usava um vestido para passear...

?Ela realmente lhe ofereceu um chá? ?Perguntou, levando a mão na boca, como se a palavra chá fosse horrenda. Então ela olhou para Valeria, que parecia, além de perplexa, indisposta, já que as bochechas dela estavam pálidas. ?Não lhe disse que pode pôr em perigo a sua saúde se beber infusões?

?Em perigo? ?As duas perguntaram ao mesmo tempo.

?Sim. Outro dia me confessou que não tolera bem as infusões, que lhe produzem flatulências severas ?manifestou adotando a atitude própria de um médico.

?Não queria demonstrar desconsideração pela oferta...

E Valeria voltou a recordar seus filhos, a regra de não mentir e a maldita baronia de Philip, acrescentando a esses pensamentos a inoportuna indisposição de... flatulências? Não poderia explicar algo menos embaraçoso?

?Também temos café ?lhe ofereceu Sophia que, ao ver a cara de espanto da Sra. Reform, não pôde concretizar se era devido ao perigo que esteve a ponto de sofrer ou pela invenção de sua filha. Que ficaria de castigo mais duas semanas se a enganasse.

?Mas... não veio me levar para passear? ?Perguntou com um pequeno soluço. Diante do barulho que ofereceu, sua mãe virou-se para ela para lhe falar: ?Na outra noite, depois da minha horrível decisão de falar com lorde Giesler ?declarou com fingido pesar ?Valeria insistiu em me levar até o Gunter’s e tomar um sorvete de... amoras?

?De limão ?Valeria a corrigiu rapidamente.

Bem, a acidez do sorvete poderia se parecer com o que o estômago estava emitindo naquele momento. O que diabos estava fazendo? Por que agia dessa maneira? Ela teria enlouquecido durante o confinamento?

?De limão ?Mary repetiu esboçando um grande sorriso. ?Imagino que não tenha vindo antes por causa da maldita chuva, estou certa? ?Ela perguntou olhando para sua salvadora com olhos suplicantes.

?Se parece bom para você ?começou a dizer à Sra. Moore, que abria a boca e a fechava como se fosse um peixe fora da água ?adoraria cumprir a promessa ?acrescentou, colocando as mãos atrás das costas para poder cruzar os dedos. Ela pagaria por isso! Deus sabia que Mary pagaria a mentira, o constrangimento e a horrível tristeza que ela estava sofrendo! E, infelizmente para a jovem, ela sabia muito bem como pagaria sua dívida. Ah, se pagaria! ?Além disso, também preparei um pequeno almoço em minha casa. Se bem me lembro ?expôs, pegando uma das mãos de Mary em uma atitude carinhosa e afetuosa ?também me prometeu que visitaria minha casa e faria um exame médico completo em meus seis filhos.

?Seis? ?Mary estalou abrindo tanto seus olhos que eles podiam saltar das órbitas.

?Sim ?afirmou a mãe orgulhosa. ?Candie, Charles, Eleonora, Samantha, Fiona e o pequeno Trevor. Todos, para meu pesar, se contagiaram com um resfriado terrível e desejo que sua filha me garanta que não fiquem com sequelas ?acrescentou, esboçando um sorriso de orelha a orelha.

?Então... quer que leve minha maleta? ?Perguntou perplexa.

?Sim, acho que é o mais conveniente... ?Valeria sugeriu.

Agora sim que estava em apuros. Todo o seu plano tinha sido desperdiçado! Filhos? Seis? E teria que verificá-los um a um? Não lhe disse que eram uns trastes, que se pareciam com o pai? Como lidaria com uma tarde cercada por demônios? Só queria comprar suas revistas e tomar um pouco de ar fresco!

Sophia, que até agora permaneceu calada e duvidando da credibilidade das duas, finalmente deu um grande sorriso. O brilho que ela mostrava em seus olhos expressava tanta diversão, que Mary queria sentar no chão e começar a chorar. Seria um bom castigo, o fato de ter que atender seis filhos, e tinha merecido, por usar a pobre mulher como tábua de salvação. No entanto, não podia dar o braço a torcer tão facilmente. Devia mostrar um pouco de... perseverança?

?Se lhe prometeu que visitaria essas crianças, me parece bom manter sua palavra. Mas tenho que lembrá-la o estado em que está. Se voltar com as mãos cheias de livros, também cumprirei a minha ?afirmou, com aquele tom firme que fez os cabelos de sua filha se arrepiarem. ?Sra. Reform, confio no seu bom senso, como mãe, entenderá que uma filha deve obedecer sem reclamar; depois do sofrimento que padecemos no parto, das noites sem dormir, todas as preocupações que nossas mentes nos oferecem para canalizá-las de um jeito bom, uma filha amada e respeitada deve ser fiel aos padrões da família.

?Claro, Sra. Moore. Entendo. Como lhe disse na noite passada, dedico todo o meu bom trabalho para que meus filhos, tão insuportáveis quanto o pai, cumpram com suas obrigações e ordens.

?Sendo assim... ?olhou para Mary de cima a baixo. Ela ainda não explicou como se vestira tão rápido. Não podia alegar uma desculpa para mandá-la para seu quarto, nem atrasar a saída. Tinha que admitir que era muito esperta. Sua segunda filha, para seu arrependimento, herdara a inteligência de seu marido e a astúcia característica de sua família. Gritava alto e se orgulhava de que nem uma gota do sangue Arany corria em suas veias? Ahh! Mary estava muito errada! Faltava apenas uma coisa para sua transformação em cigana ser completa... Uma que, se não estava errada, era a razão pela qual estava de castigo. ?Comporte-se, Mary. E não faça a Sra. Reform se arrepender de ter liberado você de seu castigo ?finalmente expos.

?Obrigada mãe! ?Exclamou se lançando para ela para lhe dar um forte abraço. ?Garanto-lhe que me comportarei adequadamente!

?Não faça promessas que não pode cumprir ?Sophia a repreendeu, tocando lentamente suas costas.

?Vou cumpri-las ?garantiu com firmeza. ?Vou cumpri-las todas ?confirmou.

?Sendo sim, você pode sair. Certamente os pequeninos estarão ansiosos para ver sua mãe novamente ?Sophia disse estendendo as mãos para Valeria.

?Prometo que sua filha terá o remédio que merece ?lhe sussurrou quando lhe deu dois beijos na bochecha.

?Confio nisso ?a Sra. Moore respondeu da mesma maneira.

?Vamos? ?Interrompeu Mary ansiosamente.

?Sim ?Valeria respondeu caminhando em sua direção.

Depois que Shira lhes ofereceu o casaco e a maleta, que sua mãe guardara em algum lugar da casa, as duas desceram as escadas com os braços entrelaçados, mostrando a imagem de amigas que se conheciam desde a infância. Mary, ao sair de casa, fechou os olhos e deixou o sol tocar suas bochechas. Havia ansiado tanto por essa sensação de bem-estar! Mas finalmente conseguia respirar ar puro, desfrutar de um dia tranquilo e... comprar suas revistas!

?Bem ?Valeria começou a dizer quando as duas se acomodaram na carruagem ?pode me dizer por que te castigou?

?Por uma bobagem... ?Mary expressou enquanto dava um pequeno pontapé na maleta.

?Qual? ?Insistiu a Sra. Reform, a quem não passou despercebido o estupor de sua nova melhor amiga.

?Não lhe pareceu correto que operasse o seu irmão nu... ?declarou, encolhendo os ombros, como se ela não tivesse sido prejudicada por tê-lo visto daquela forma.

?E como pretendia que fizesse isso? ?Soltou Valeria com uma mistura de confusão e surpresa.

?Bem, segundo ela, vestido ou com os olhos vendados. ?Depois de suas palavras, soltou uma grande risada. Quando se acalmou, observou de relance Valeria e advertiu que seu rosto não mostrava a mesma diversão que ela. Moveu-se desconfortável no assento, apaziguou o riso e acrescentou: ?realmente quer que eu veja seus filhos?

?Deseja comprar as revistas que comentou? ?Respondeu, olhando para ela sem piscar.

?Claro! ?Exclamou rapidamente. ?Preciso delas urgentemente!

?Pois as terá. Mas antes faremos uma parada.

Encostou a cabeça na almofada, colocou as mãos nas têmporas e as apertou. Que Deus tivesse misericórdia, que ajudasse seus filhos e não os castigasse pelo que ela faria. Mas, depois de tudo o que havia sofrido, teria que fazê-lo ou sofreria a síncope que pobre Sra. Moore aguentou ao descobrir que sua filha tinha visto o corpo nu do seu irmão.

?Que parada? Para onde vamos? Por que esfrega a cabeça? Dói? Sofre com assiduidade de enxaquecas?

?Em primeiro lugar, não sofro de enxaqueca, mas em breve sofrerei... ?comentou, com um halo de mistério.

?Por quê? ?Mary estalou confusa.

?Porque vou ouvir você gritar ?disse fechando os olhos e se preparando para o pior.

?Por quê? ?Repetiu a moça.

?Porque primeiro vamos visitar meu irmão...

Nesse momento, Mary começou a soltar mil palavrões, a amaldiçoar o destino e a caluniar sua má sorte, fazendo Valeria temer a enxaqueca.


Capítulo VIII


Amiga?! Ninguém podia considerar amiga uma pessoa que lhe estende uma armadilha! Porque, definitivamente, foi isso o que a Sra. Reform fez.

Depois de gritar tudo o que lhe passou pela cabeça, Mary cruzou os braços sobre o peito e rosnou. Desde que Valeria deixou claro qual era seu objetivo, toda a felicidade que ela sentiu quando foi libertada da prisão de sua casa, desapareceu. Não havia mais sorrisos em seu rosto, depois de gritar, seus lábios permaneceram fechados, manteve o olhar para fora, bufou sessenta vezes e amaldiçoou lorde Giesler por mais sessenta.

Lorde Giesler! Esse nome denotava perigo para ela. Por sua culpa, ela foi punida e, por sua culpa, teria que atender seis filhos antes de poder comprar seus preciosos folhetos científicos. Sem contar com o fato de que o veria novamente. Havia punição maior no mundo? Certamente, sua mãe, quando descobrisse que havia aparecido na residência do homem proibido, procuraria uma maneira de superá-lo... E, tudo por quê? Porque imaginou que sua suposta amiga a ajudaria a sair do seu cativeiro e a faria passar um dia esplêndido. Mas é claro, tudo tinha sido distorcido, nada sairia como ela planejou.

?Mary... ?Valeria disse a ela quando a carruagem entrou no jardim de Kleyton House ?Prometo que comprará esses artigos e que não terá que suportar meus filhos.

?Promessas... promessas... ?Mary resmungou.

?Isso aconteceu por sua culpa ?ela a repreendeu, encarando-a. ?Só queria falar com você e descobrir por que não saiu de casa. Mas o meu plano foi frustrado ao me pedir que te ajudasse a se liberar do castigo ?garantiu, com o tom de voz que sua mãe usava quando a repreendia por uma atitude ruim. ?Te prometi que compraria essas revistas; e mais, eu mesma te darei pelo inconveniente que isso possa causar. No entanto, acho justo te pedir, depois de me colocar em uma situação tão comprometedora, que confirme o estado de saúde do meu irmão.

?Meu pai a visita todos os dias e ouvi-o dizer a minha mãe que sua evolução é adequada ?murmurou. Com os braços ainda cruzados sobre o peito, virou suavemente a cabeça na direção dela e a olhou como se estivesse procurando a melhor maneira de jogá-la para fora da carruagem sem ter que abrir a porta.

?E... não sente curiosidade e ter certeza com seus próprios olhos? ?continuou Valeria.

Curiosidade? O que sentia naquele momento era o desejo de subir as escadas e enredar as mãos no pescoço de lorde Giesler para sufocá-lo. Mas não era o momento nem o lugar para proclamar seu desejo em voz alta. A melhor coisa, para salvar pelo menos uma parte do dia, era fingir estar preocupada, vê-lo, sorrir para ele e, depois de confirmar que ainda era um arrogante, petulante e estúpido, retornar à carruagem para visitar a livraria do Sr. Slow antes de fechar.

?A verdade é que sim. Tem razão, Valeria. Estou muito intrigada em saber como o seu estado de saúde evoluiu e se cumpriu tudo aquilo que ordenei. ?Depois disso, sorriu.

A Sra. Reform bufou, como uma de suas meninas, entendendo que ouviriam uma repreensão bastante enfadonha. Realmente pensava que suas palavras pareciam convincentes? Só lhe faltava alongar os lábios um pouco mais, para mostrar a imagem de uma mulher digna de ser trancada no hospital psiquiátrico de Bethlem.

A dúvida sobre o plano que havia idealizado a invadiu. Mary ainda não apreciava seu irmão. Mostrou na primeira noite e continuava expressando naquele momento. Realmente não sentia nada por ele? Nem mesmo alguma admiração? Qualquer mulher, além dela, é claro, levaria mil anos para esquecer um corpo tão bonito quanto o de Philip, e procuraria maneiras de fazê-lo entender que lhe devia um grande favor. Muitas delas até tentariam se tornar suas prometidas, amantes ou... o que fosse! No entanto, Mary era imune à virilidade de seu irmão. Só faltava ela bocejar para acentuar essa indiferença. Se Philip imaginava que ela poderia se apaixonar, estava muito errado. Antes colocaria em sua cama uma égua do que a filha do médico.

Elas continuaram em silêncio até a carruagem parar bem perto da entrada principal da residência. Em homenagem a essa discrição mantida pelos funcionários de seu irmão, o cocheiro abriu a porta depois de se certificar de que não havia ninguém por perto. Em primeiro lugar, e isso deixou Valeria confusa, o funcionário ofereceu a mão para Mary. Embora, pela cara que fez, ela estava tão atordoada quanto sua acompanhante.

?Senhorita Moore ?lhe disse o lacaio quando ela aceitou sua ajuda para descer ?tenha cuidado com este último degrau. Não gostaria que sofresse um acidente.

Os olhos de Mary se arregalaram. Não sabia muito bem como tomar aquela atitude considerada. Estaria tirando sarro dela? Queria lhe dizer algo inapropriado, para que o rosto amável exibido pelo cocheiro desaparecesse, mas não ousou dizer nada. Pela primeira vez em sua vida, identificou, com surpresa, que não havia mordacidade, mas ternura e carinho. A única coisa que ela não conseguia descobrir era a razão dessa estranha cordialidade.

?Senhora Reform.

Quando Mary pousou os dois pés no chão e o homem confirmou que ela não sofreria nenhum tropeço, ele estendeu a mão para Valeria e a ajudou a descer.

As duas mulheres subiram lentamente as escadas que levavam à entrada. Surpreendidas e mudas, pois não sabiam o que dizer. Philip teria imaginado que a levaria e ordenou que os servos a tratassem com toda a gentileza que pudessem demonstrar? Não. Ele não sabia nada sobre seu plano. Isso aconteceu quando ela pediu para sair de casa para passear. Então, o que estava acontecendo?

Com milhares de ideias brotando em sua cabeça, Valeria se adiantou a Mary para bater na porta, mas ela não precisou. Quando as pontas dos dedos tocaram a aldrava, esta se abriu.

?Senhorita Moore! ?Shals exclamou ao encontrá-la. ?Que alegria vê-la novamente!

Os olhos de Mary caíram sobre a senhora Reform e então, muito lentamente, ela os dirigiu para o mordomo.

?Estavam me esperando? ?Ela perguntou com uma mistura de espanto e estupor.

?Oh, não! ?Shals respondeu se afastando o suficiente para deixá-las passar. ?O senhor não nos avisou de sua chegada, mas todos nos perguntávamos quando apareceria ?acrescentou, estendendo as mãos para ajudá-la a tirar o casaco.

?Todos? ?Continuou falando perplexa.

?Sim ?ele respondeu. Depois de pegar seu casaco e o de Valeria, para quem ele mal olhou. Shals fez um leve gesto com o queixo no lado esquerdo do primeiro andar. ?Todos ?repetiu.

Isso era uma comitiva de boas-vindas? Por que diabos todo o serviço de lorde Giesler a esperava? Eles queriam linchá-la, como fariam os aldeões ao declarar uma mulher inocente uma bruxa? Com medo, ela deu alguns passos para trás, tentando tocar na porta de entrada com as costas. Mas encontrou a Sra. Reform, que havia parado de respirar.

?O que é tudo isso, Shals? ?Valeria finalmente falou.

?Senhora... ?comentou o homem um pouco envergonhado. ?Peço-lhe mil desculpas se fizemos algo errado. Mas quando a donzela Phiona viu a Srta. Moore sair da carruagem com a maleta, a notícia se espalhou e, bem, estávamos esperando por ela por que... muitos deles precisam... desejam que...

Mary entendeu imediatamente. O que o pobre mordomo estava tentando dizer à fez se sentir tão orgulhosa e feliz que esqueceu a raiva. Eles estavam esperando por ela! Queria que ela os atendesse! Shals não disse a seu pai que nenhum dos criados pediria ajuda a outro médico além de sua filha? Bem, ele não mentiu. Aquelas pessoas fizeram isso. Eles não se importavam que ela fosse uma mulher, que ela não tinha uma licença ou que ela os obrigou a lavar as mãos mil vezes. Eles haviam determinado que somente ela era a pessoa que poderia atendê-los e lá estavam eles, em perfeita ordem de espera, aguardando sua decisão. O prazer, o bem-estar e a emoção que ela sentiu, embaçaram os olhos. Não pensaria em chorar, certo? Ela nunca chorava! Afogando aquele soluço, fazendo desaparecer o nó na garganta que a impedia de respirar, agarrou a maleta com mais força, olhou para Valeria e disse:

?Lorde Giesler pode esperar.

?Obrigado! Obrigada! ?Ouviu os servos dizerem.

?Claro ?Valeria respondeu, suportando aquele grito de felicidade que ela queria liberar. ?Se não se importa, enquanto os atende, subirei até...

Não terminou a frase, Mary não se importava com o que ela ia dizer. Antes de esclarecer qual era sua intenção, a mulher se voltou para os funcionários e começou a perguntar o que estava acontecendo com eles. O Sr. Shals olhou para Valeria e lhe sorriu.

?Se desejar, posso informá-lo que a Srta. Moore acaba de chegar.

?Quer que saia da cama e desça as escadas três em três? ?Perguntou Valeria zombando.

?Tem razão, senhora. É melhor que não descubra o que está acontecendo aqui até que a Srta. Moore termine os exames médicos ?respondeu sem apagar o sorriso.

?Vou fazer café. Acredito que Mary precisará depois dessa incrível recepção ?apontou enquanto se dirigia para a cozinha.

?Deixe-me ajudá-la, porque, como pode ver, a cozinheira é a primeira da fila ?apontou Shals andando atrás dela.

E Valeria soltou uma risada alta.


***

Não aguentaria nem mais um dia trancado naquele quarto. Seu desespero aumentava a cada minuto. A isso, acrescentou a angústia de não saber nada sobre Mary. Por que não havia saído de sua casa por tanto tempo? O que a segurava? A ideia de que ela estivesse doente permanecia latente em sua cabeça, assim como seu desconforto por não poder se levantar, se arrumar e aparecer na residência dos Moore para descobrir pessoalmente o que havia acontecido com ela. Olhou novamente para o relógio de bolso, que Shals lhe enviou, e bufou. Aquilo só lhe informava que o tempo não corria tão depressa como desejava. As horas pareciam dias e dias... anos. Sentou-se muito lentamente no colchão e procurou o livro que Martin lhe deu quando o visitou dois dias depois de Mary operá-lo. Como havia pensado que a teoria sobre a lei de gravitação universal, de um tal de Isaac Newton, poderia aliviar seu desespero? Realmente imaginou que ele passaria horas procurando o motivo pelo qual dois corpos se atraem? Não era necessário ler esse livro para saber a resposta! Ele havia sido atraído tantas vezes que podia refutar qualquer teoria absurda! Os homens atraíam mulheres, estas buscavam a excitação deles e, finalmente, essa proporcionalidade ao produto das suas massas terminava em um encontro íntimo.

?É um belo princípio matemático ?lhe disse quando ele arregalou os olhos ao descobrir o que significava para seu irmão o melhor presente do mundo. ?Você será cativado pela simplicidade da fórmula gravitacional. É, sem dúvida, a mais bela simplicidade que você pode encontrar na vida. ?E depois disso, ele sorriu de orelha a orelha.

?Você já dormiu com uma mulher, Martin? Ou você prefere ir para a cama com... isto? ?Perguntou bruscamente, apontando um dedo para a capa do livro que jogara na colcha como se estivesse queimando.

?Por que essa pergunta, Philip? ?Retrucou, eliminando o sorriso imediatamente.

?Porque não entendo como pode comparar fórmulas matemáticas com a beleza e as maravilhas da natureza. Para mim, isso não se encaixa nessas descrições. Você já dormiu com uma mulher ou ainda é virgem? ?Continuou.

?Claro que não sou! ?Exclamou envergonhado. ?Tenho minhas fraquezas...

?Carnal ou intelectual? Porque não tenho certeza de que você entende a diferença entre um bom par de seios femininos e duas maneiras de calcular o mesmo resultado ?garantiu, cruzando os braços e franzindo a testa.

?Como se atreve a falar comigo dessa maneira? Não sente remorso nem respeito por uma mulher?

?Sim, respeito todas elas. Pode perguntar as minhas amantes se elas foram respeitadas antes de deixá-las exaustas em suas camas. Mas não desvie o assunto, Martin. Você parou de ser...?

?Não vou te responder. Primeiro de tudo, sou um cavalheiro ?ele respondeu com raiva. ?Se estive com uma mulher ou com várias, isso só importa para mim.

?Ou seja, você evita falar sobre isso porque ainda não sabe o que significa prazer carnal ?afirmou enquanto olhava para ele.

?Valeria me avisou que seu humor havia piorado ?comentou indo em direção à porta?, mas nunca imaginei que você atingiria um nível tão alto de imbecilidade.

?Não é imbecilidade, mas aborrecimento ?indicou, sem poder apagar um sorriso malicioso de seu rosto.

?Nesse caso, espero que deixe de se aborrecer em breve ?declarou antes de bater a porta.

E desde aquele dia, não falou com Martin novamente. Shals informou que ele apareceu na residência para perguntar sobre sua saúde, mas, depois do que aconteceu entre eles, não teve coragem de comparecer diante dele.

Abriu o livro na página em que havia deixado na noite anterior, bufou com o aborrecimento que lhe causava e tentou se concentrar na maldita fórmula da força exercida entre dois corpos. Naquele momento, sua mente se afastou da constante gravitação universal, do valor dessa constante e da massa dos sujeitos, para se concentrar em Mary. Sim, de fato, ela foi o resultado de toda a maldita formulação que o livro comentava. Ela exercia uma força de atração até ele que o deslocava, entorpecia e o deixava vulnerável. Desde que ela jogou aqueles tubos, que para assimilá-lo com a teoria eram as massas de atração, ele não conseguiu pensar em outra coisa senão procurar o contato entre os dois. Eles tiveram, é verdade, mas em primeiro lugar ele estava inconsciente e não se lembrava de nada, e em segundo lugar o beijo não foi suficiente para obter um bom resultado. Que poder suas carícias teria em relação a ele? O que sentiria ao ver como as pontas dos seus dedos acariciavam sua pele? Se excitaria ou se incomodaria? Mary seria uma mulher apaixonada ou mostraria a mesma frieza que exibia ao mundo ao seu redor? Teria observando-o com admiração ou calculou apenas a dose apropriada de sedativo para o seu corpo grande? Philip fechou os olhos e recostou-se nos três travesseiros atrás das costas. A imagem dela apareceu sem fazer esforço. Ele a viu rindo do comentário que fez ao pai quando perguntou sobre a quantidade de clorofórmio que havia lhe dado. Um cavalo? Maldita mulher que o comparou a um cavalo! Não havia comparações mais bonitas? Teria sido suficiente com o fato de que ela evocava sua grande magnitude, que sugeria sua forte musculatura, mas não. Mary não conseguia encontrar um símile que o deixasse orgulhoso. Ele teve que se parecer com um animal de quatro patas. Agradecia a Deus por não tê-lo chamado de porco ou bezerro, mesmo assim, ainda estava descontente. Talvez o poder de sedução que ele dava a outras mulheres fosse imune a ela. Talvez ele não tenha percebido por que... Não! Ele se recusava a pensar sobre isso. Não havia nenhum homem para Mary além dele e isso a deixaria saber assim que ele pudesse deixar sua casa. Toda vez que ela saísse de casa, ele a esperaria na porta. Sempre que ela decidisse aparecer nas reuniões que os médicos realizavam as sextas-feiras, ele ficaria sentado ao lado dela, ouvindo-a atentamente e, é claro, a encontraria em todas as festas que ela decidisse comparecer. Ele pediria que ela dançasse uma, ou duas danças, ou talvez tudo o que ela pudesse suportar. Só para deixar bem claro, aos cavalheiros que a olhassem, que não teriam chance com ela. Quando um Giesler encontrava a mulher de sua vida... ninguém ficava no seu caminho!

Esse pensamento só lhe causou mais inquietação e estresse. O lençol o prendia, a suavidade do colchão o incomodava. Até parecia que os travesseiros macios tinham espinhos! Aturdido e nervoso, ele estendeu a mão esquerda para a mesinha e pegou a sineta que Shals colocou ali na mesma noite em que Mary saiu. Ele franziu a testa, apertou a mandíbula e amaldiçoou sua vida. Tudo começava a girar em torno dela. Até o motivo de tocar uma miserável sineta! Não havia dúvida, ele tinha que sair de lá e aparecer na casa dos Moore para vê-la ou ele ficaria louco.

?Maldito seja, Shals! ?Explodiu quando, depois de tocar a sineta mais de vinte vezes, seu mordomo não apareceu. ?Pode-se saber por que ninguém me responde? Ficaram surdos? ?Continuou gritando. Com raiva, afastou o lençol do corpo. Pelo menos eles tiveram a decência de ajudá-lo a vestir calções. Não seria apropriado aparecer no topo da escada nu e gritando alto que todos estavam demitidos. Sem dúvida, Valeria o levaria para fora de seu quarto, sim, mas para levá-lo diretamente a Bethlem.

?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa ?Mary o ameaçou quando, ao abriu a porta, o encontrou em pé ao lado da cama.


CONTINUA

Londres, 28 de outubro de 1882, residência Moore.
Sophia observou pela janela como a carruagem em que estava seu marido se afastava de casa. Deveria estar acostumada que Randall saísse na metade da noite, mas naquele momento teria dado tudo o que tinha para que não saísse do seu lado. Se abraçou e tentou acalmar o calafrio que surgiu ao se sentir tão sozinha. A casa ficou em silêncio, demais para o seu gosto. Desde que suas filhas nasceram, sempre havia ruído pela casa, correndo pelos corredores. No entanto, desde que três delas saíram, aquilo não parecia uma casa, mas uma das bibliotecas que Mary costumava visitar. Fixou seus olhos na lareira, já apagada, e suspirou fundo. Como se encontravam suas meninas? O visconde iria atendê-las com o respeito que mereciam? Esperava que assim fosse e que as três se comportassem adequadamente. O único que não suportaria seria que, depois da saudade que sofria por não poder estar com elas, voltariam com uma infinidade de escândalos em suas costas. Desviou o olhar para as cadeiras que haviam ao redor da mesa da sala de jantar e notou como sua dor aumentava ao observá-las vazias. Em noites como aquela, Anne e Josephine deixavam seus quartos e desciam para acompanhá-la. Costumavam conversar sobre qualquer assunto até o amanhecer e quando o resto de suas filhas aparecia, tomavam o desjejum conversando sobre o que haviam planejado fazer o resto do dia.
Apoiou as costas na janela e suspirou. Sentia falta dos gritos que oferecia a Josephine por ter perfurado outra janela ou por terminar com a valiosa porcelana de Randall. Sentia falta de pedir a Elizabeth que deveria mudar seu comportamento inadequado e sentia falta de aparecer na sala de pintura de Anne para admirar seu novo trabalho. Quantas vezes suplicou que dessem a ela algumas horas de tranquilidade? Muitas! No entanto, agora não queria, pois as usava para pensar em como se encontravam. A pequena soldado se adaptaria a uma vida repleta de protocolos femininos ou talvez o visconde permitisse continuar com seus habituais comportamentos masculinos? Seguiria as instruções Randall? Porque se fosse assim, tinha receio que dormiria e se banharia com a nova arma que lhe comprou. Só esperava que o visconde se mantivesse afastado de Anne para que não desse a Josephine a oportunidade de cumprir as ordens que seu pai lhe dera. E Elizabeth? Agiria de maneira adequada ou continuaria mostrando atrevimento? E Anne? Continuaria sonhando com ele? Se apaixonaria por esse homem?
Eram só perguntas e para seu desespero não encontrava uma única resposta. Somente as encontraria quando voltassem e para que isso acontecesse faltava pouco mais de três semanas.

 

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Uma pontada no estômago a fez apertar as mãos sobre aquela região do corpo. Continuava sem ter certeza de ter agido corretamente. Talvez devesse encontrar uma forma de romper o acordo com o visconde e não desistir tão rapidamente. Mas... que fez? Nada, porque os sonhos de Anne avisavam que não podia impedir aquilo que já estava previsto. No entanto, a dúvida sobre a escolha feita pelo fogo a assaltava a cada momento. Como poderia ser o visconde o homem destinado para Anne? Qual seria o motivo pelo qual Morgana mostrava a Anne que ele era o escolhido? A maldição de Jovenka era muito clara: o sangue contaminado voltaria a ser puro. Que tipo de pureza se referia? Teria entendido errado o juramento? Não, não tinha feito desde que os dois pretendentes de sua filha morreram, tal como sua avó anunciou. Então... porque o visconde, um homem de sangue azul, destruiria a maldição que sua filha suportava desde que nasceu? O que os Bennett escondiam? O que lhes aconteceu? Naquele momento lembrou uma notícia em que afirmavam que os marqueses, dezessete anos depois, reconheciam um jovem como filho legitimo. Segundo o jornal, foi roubado logo após o nascimento e não denunciaram o desaparecimento para não criar um escândalo social. Como poderiam manter em segredo semelhante atrocidade? A aristocracia era tão frívola? Como a marquesa foi capaz de suportar uma dor tão cruel? Sophia franziu a testa e suspirou profundamente. Nenhuma mãe aceitaria uma situação semelhante a menos que não fosse filho dela. Talvez essa fosse a verdadeira razão e não o sequestro. Era mais lógico deduzir que o falecido marquês de Riderland, com uma reconhecida reputação de libertino, mantivesse um idílio com uma mulher, talvez uma cigana, e o visconde era fruto desse romance. Quando a mulher anunciara ao seu amante que teve um filho dele, ele seria rejeitado pelo pai, como todos os bastardos que sua avó Jovenka teve, e o menino vivera com a mãe durante aqueles dezessete anos. O que os fez mudar de ideia? O acidente que sofreu a esposa do seu único filho vivo os incentivou a finalmente reconhecê-lo? Isso seria uma dedução bastante comum entre a aristocracia, pois eram incapazes de se separar do título de nobreza que haviam mantido por gerações. Talvez fosse essa a razão pela qual o falecido marques decidiu assumir a paternidade. Embora ainda houvesse uma questão não resolvida... por que a marquesa, que todo mundo descrevia como uma mulher frívola, aceitou a decisão de seu marido? Se sentira obrigada? Queria evitar uma humilhação social dessa maneira? O que quer que aconteça com a família Bennett, não importava mais, o único de deveria se preocupar era o motivo pelo qual sua mãe criadora provocou uma aproximação entre o visconde e sua filha.

Decidiu voltar para o seu quarto. Ainda podia aproveitar algumas horas de sono antes que Madeleine e Mary decidissem se levantar. Além disso, naquela mesma manhã se propôs a visitar Vianey para falar pessoalmente sobre a viagem de suas filhas com o visconde. Se queria evitar qualquer rumor inadequado sobre sua família, a baronesa era a pessoa ideal. Ela compreenderia melhor que ninguém e ajudaria a proteger a honra de suas filhas porque, se começavam a fofocar sobre a honra de suas meninas, mesmo que o visconde quebrasse a maldição, nenhum homem decente apareceria em sua casa para se comprometer com alguma delas.

O pensamento de vê-las casadas a fez sorrir. Que marido seria apropriado para a destemida Josh? Quem poderia conviver com uma mulher como Mary? Algum cavalheiro seria capaz de eliminar o orgulho de Elizabeth? E o que aconteceria com Madeleine? De acordo com sua visão, ela também encontraria o homem que a amaria tanto que faria desaparecer sua timidez excessiva. Como conseguiria? Quem seria? E, realmente existiam esses valiosos maridos? Porque de uma coisa tinha certeza; suas filhas eram muito especiais e não aceitariam qualquer homem.

Colocou a mão esquerda sobre o corrimão de madeira, pisou no primeiro degrau e prendeu a respiração quando ouviu fortes batidas que vinham da porta da frente. No mesmo instante, voltou até a entrada e permaneceu em silêncio para se certificar que tinha ouvido bem. Estava certa. Alguém tinha aparecido em sua residência e batia na porta com a aldrava. Sophia se olhou de cima a baixo. Não se vestia apropriadamente para receber ninguém àquela hora da noite. Além disso, se a razão pela qual tinha vindo a sua casa era seu marido, não podia fazer nada, pois não voltaria até o dia seguinte. Embora a pessoa que se encontrava fora batesse novamente, tomou a decisão de ignorá-la. Se fosse muito urgente, poderia recorrer a residência do doutor Flatman. Olhou para as escadas e suspirou. Por mais que desejasse, um estranho pressentimento a impedia de avançar e insistia que devia aceitar a visita. Mas... por quê? Quem seria?

?Tem alguém aí? ?Uma voz feminina finalmente perguntou. ?Vejo luz através das janelas. Por favor, preciso de ajuda. Sou a Sra. Reform e estou procurando pelo doutor ?insistiu.

Sophia, ao ouvir a voz de uma mulher virou-se e caminhou para ficar atrás da porta, mas não a abriu até ter certeza de que não era uma farsa para entrar na casa e assaltá-la. Quantas vezes os de seu sangue agiam no meio da noite? Centenas! Eram como vermes. Esperavam pacientemente que a casa de algum Sr. rico permanecesse desprotegida para assaltá-la. Sua própria avó agia nesses roubos como uma reivindicação.

?O doutor não se encontra nesse momento, precisou sair ?Sophia respondeu com cautela.

?Sabe quando volta? Vim até aqui porque um dos meus irmãos precisa de atendimento médico e tenho entendido que o Sr. Moore é o melhor médico que temos em Londres ?Valeria insistiu olhando para a porta e sem dar um só passo para trás.

Não estava disposta a sair sem uma pessoa que pudesse ajudá-la. Philip jamais esteve tão doente, nem prostrado em sua cama por mais de um dia. Isso indicava que sua convalescença não tinha nada a ver com uma ingestão soberana de álcool. Pela primeira vez em sua vida, ele realmente adoecera.

?Amanhã. Talvez possa encontrá-lo ao meio-dia... ?respondeu, revendo mentalmente o tom de voz que a mulher usou para falar com ela. Parecia desesperada, agitada e sincera. Mas... isso seria suficiente para confiar nela?

?Eu imploro. Meu irmão está muito doente e não sei a quem recorrer ?insistiu a Sra. Reform. ?Pode perguntar a Sra. Moore se pode me atender?

?Sou a Sra. Moore ?revelou ?garanto-lhe que deixarei meu marido saber que veio. Se tiver a gentileza de me explicar quem é o doente e onde mora, prometo que irá o mais breve possível ?Sophia sugeriu.

?Sua casa é a Kleyton House localizada na Mount Row. Ele se chama Philip Giesler ?Valeria esclareceu depois de um longo suspiro.

Ao ouvir o nome, Sophia arregalou os olhos e prendeu a respiração novamente. Seria a mesma pessoa que acompanhou o visconde dias atrás? Aquele que foi agredido por suas filhas na entrada? Quantos Philips Giesler poderia residir em Londres? E por que, tendo tantos médicos na cidade, aquela mulher aparecia na frente de sua porta?

?Por que escolheu meu marido se há outros médicos na cidade que podem atendê-la? ?Perguntou, depois de supor que o próprio Giesler lhe dissera para vir e procurá-la como pagamento pelo sofrimento que sofrera devido ao mau comportamento de suas filhas.

?Pode abrir? Não quero gritar, por favor. Além disso, seus vizinhos podem espreitar nas janelas e supor que estamos discutindo ?Valeria explicou com um pouco de serenidade.

?Sra. Reform, não estou apresentável. Como compreenderá, não esperava visita e...

?Estou sozinha, Sra. Moore. Não há homem ao meu redor e o cocheiro ainda continua no seu lugar ?informou. ?Só quero que me ajude. Conhece todos os médicos da cidade e, se explicar os sintomas que meu irmão sofre, poderá me indicar que médico é o mais adequado para curá-lo o quanto antes ?insistiu?. Suplico, tenha compaixão. Prometo-lhe que se me ajudar estarei eternamente agradecida e...

Valeria ficou em silêncio ao ouvir como a Sra. Moore começou a mover o ferrolho. Talvez nem tudo estivesse perdido. Talvez houvesse uma chance de descobrir por que Philip, em seus delírios, nunca deixava de mencionar um nome feminino e o sobrenome do médico.

?Entre, conversaremos aqui dentro ?convidou Sophia, vendo que, na verdade, seu rosto mostrava a mesma angústia que sua voz expressava.

Valeria aceitou o convite e entrou na residência. Mas não se moveu da entrada, embora a esposa do médico, depois de fechar a porta, entendeu a mão até o corredor da esquerda. Estava com pressa para voltar. Se o doutor Moore não podia atendê-lo, precisava com urgência descobrir quem o faria e isso atrasaria muito a sua volta.

?Sra. Moore, por favor, quem acha que posso pedir ajuda?

?É assim tão grave? ?Sophia a olhou com relutância. Talvez tenha entendido mal quando ouviu o parentesco que a unia com lorde Giesler, pois os dois eram muito diferentes. Onde o cavalheiro usava uma cabeleira tão loura como os raios do sol, o da mulher era tão escuro quanto os dela. Sem contar a tonalidade de seus olhos. Não havia nada que pudesse se assemelhar a ele. Estaria enganando-a? Seria na realidade sua amante desesperada?

?Sim ?Valeria respondeu apertando as mãos com força. ?Está há vários dias na cama. No começo pensei que sua última saída terminou pior do que esperava. Se é que me entende... Um homem solteiro, sem responsabilidades familiares e amantes da liberdade... Mas depois que apareci em sua casa, depois de ser informada pelos criados, para repreendê-lo, como uma irmã preocupada faria, descobri que não se tratava de uma embriagues soberana. Ele estava realmente doente.

?Como já lhe disse, meu marido não estará de volta até o meio-dia. O único que posso aconselhar é que vá à casa do Sr. Flatman. Certamente que o encontrará em sua casa, pois nunca comparece a uma emergência, a menos que seja exigido pela nobreza. ?Sophia apontou como alternativa.

?Mas o meu irmão não quer. Ele disse o seu nome ?revelou a Sra. Reform.

?Meu nome? ?Ela estranhou.

?Não, o de seu marido. Quando a febre aumenta muito e provoca delírios, murmura o sobrenome do seu marido. Por isso estou aqui. Acredito que ele deseja que o seu marido o visite.

Não podia contar a verdade porque parecia estranho até para ela. Quando Philip delirava, as únicas palavras que saíam de sua boca eram Mary e o sobrenome Moore. Como era lógico, perguntou sobre isso. Finalmente, depois de varias horas perguntando a conhecidos, descobriu que se tratava do sobrenome de um médico de Londres que morava fora da cidade, que era pai de cinco meninas e que uma delas se chamava Mary. Então deduziu que em sua inconsciência tinha se confundido, portanto tinha que ter mencionado o nome de Randall Moore em vez de se referir a uma de suas filhas.

Sophia confirmou sua suspeita ao ouvir a declaração. Já não tinha dúvidas que lorde Giesler queria que seu marido pagasse o trágico encontro que teve na manhã em que apareceu com o visconde. Talvez pensasse que, depois de ser atendido por ele, ouviria o que aconteceu e manteria em segredo o comportamento inapropriado de suas filhas, mas... o que poderia fazer se Ronald não estava?

?Prometo que meu marido irá à casa do seu irmão assim que voltar. Enquanto isso, para baixar a febre, aconselho que coloque panos mergulhados na água fria. Isso o acalmará...

Sophia ficou em silêncio quando ouviu um pequeno ruído no alto da escada. Olhou para cima e quando viu a camisola de Mary se escondendo atrás da parede, franziu a testa. Por que tinha levantado? Continuaria lendo apesar do castigo que lhe impôs? Será que nunca atendia suas ordens? Como podia fazê-la ouvir a razão? Que tipo de reprimenda seria adequado para uma menina como ela? Havia algo no mundo que a mortificaria tanto que a fizesse ver a razão? Que vingança seria apropriada? De repente, um sorriso maligno se desenhou em sua boca. Era uma ideia excessivamente maligna até para ela, mas... não queria dar-lhe uma lição? Mary jamais se negaria a atender um doente e se não confessasse quem era o paciente, desceria as escadas agarrando sua maleta sem se dar conta que vestia uma camisola. Seu sorriso perverso se alargou ainda mais ao lembrar a profecia de Madeleine: «Tinha visto Mary apaixonada, embora tentará deter os sentimentos que esse homem lhe provocará desde o momento em que se encontrem pela primeira vez». O que poderia perder? Se aquele homem não era o escolhido para Mary, pelo menos aproveitaria com a vingança. No entanto, a dúvida sobre o comportamento de sua filha a invadiu. O que aconteceria quando Mary descobrisse que o cavalheiro que deveria curar era o mesmo que não afastou seus olhos dela, mesmo que Josephine lhe apontasse com a arma? Possivelmente o envenenaria, ou o curaria primeiro para matá-lo depois. No entanto, se o destino voltava a cruzá-los... quem era ela para impedir?

Olhou para a Sra. Reform e adotou uma postura seria e tranquila. Se oferecesse a sua filha, precisava adotar uma atitude decidida, pois não poderia colocar em perigo a honra dela, mas também a reputação de seu próprio marido estava em perigo.

?Existe uma opção possível. Se estivesse em seu lugar, aceitaria sem duvidar um só segundo ?manifestou sem vacilar.

?Farei qualquer coisa, Sra. Moore! ?Valeria exclamou desesperada. ?Diga-me o que pensou e juro que não demorarei nem um só segundo.

?Mas deve me prometer que ela não permanecerá em nenhum momento sozinha com ele ?Sophia prosseguiu.

?Ela? ?Valeria perguntou arregalando os olhos.

?Sim, uma de minhas filhas, Mary. Ela acompanha meu marido em todas as suas visitas médicas. Ela curou muitos doentes e garanto que é tão habilidosa em medicina quanto seu pai. Ela descobrirá, se você considerar apropriado, o que acontece com seu irmão e atribuirá um tratamento enquanto meu marido volta.

?Tem certeza? ?E ali estava a resposta para sua pergunta! Seu irmão não estava perturbado pela febre, somente gritava o nome da pessoa que desejava ter ao seu lado. Como diabos sabia que a filha do médico poderia ajudar-lhe? Se conheciam? De onde? Quando?

?Tenho. Tudo que preciso saber é se você admite que uma mulher aja como médica sem importar...

?Pelo amor de Deus! Não vê que sou uma mulher? Acha que rejeitaria a ajuda de alguém, ou que seria capaz de menosprezar seu trabalho por não ser homem? ?Valeria retrucou ofendida. ?Te garanto que meu marido não seria quem é hoje se não tivesse casado comigo.

?Está certo, tudo bem que a chame?

?Com certeza!

?E me promete que zelara por sua honra? Tenha em mente que estamos falando de uma jovem solteira que permanecerá na casa de um homem solteiro e isso poderá causar problemas sem fim no futuro ?Sophia concluiu desconfiada.

?Sra. Moore, meu irmão precisa de um médico, não uma esposa ?Valeria garantiu com aparente indignação.

?Sendo assim, espere dez minutos. Subirei ao seu quarto e perguntarei se está disposta a...

?Sim! ?Mary exclamou do alto da escada. ?Vou! Coloco um vestido e desço em menos de cinco minutos ?acrescentou feliz.

?Mary Moore! Quantas vezes tenho que dizer que não deve espiar? ?A mãe gritou repreendendo-a.

?Milhares! ?Respondeu enquanto voltava correndo até seu quarto.

?Filhas... ?bufou Sophia. ?Por mais que cresçam, sempre serão crianças pequenas. Tinha esperança de que quando ficassem mais velhas mudariam de atitude, mas como pôde comprovar, não fizeram isso ?afirmou fingindo pesar.

?Eu tenho quatro e se forem como seu pai, teriam quarenta anos e continuariam sendo umas meninas extravagantes e teimosas ?apontou a Sra. Reform um pouco mais calma.

Enquanto esperavam a presença de Mary, Sophia fez uma investigação à Sra. Reform. Descobriu que era filha de uma espanhola e um alemão. Que tinham chegado à Londres fugindo da família do pai. Que tinha dois irmãos muito diferentes fisicamente e que tinha se casado anos atrás com Trevor Reform, o antigo dono do clube de cavalheiros Reform. Então, ela informou que lorde Giesler tinha chamado seu marido e Valeria contou-lhe a história do baronato que seu irmão devia ocupar na Alemanha.

?Mas como bem comentou, nunca crescem como se deseja e meu irmão é incapaz de aceitar o título ?Valeria comentou com pesar. ?Tentei de tudo... ?suspirou ?no entanto, essa atitude alemã que possui o impede de salvar o seu orgulho e assumir o que um dia herdará por direito.

Isso acalmaria a mãe? Por que não tinha parado de lhe fazer perguntas. Obviamente, tinha respondido todas. Não queria que pensasse que Mary se encontraria com pessoas sem escrúpulos. Precisava deixar claro que sua família era muito respeitável e que protegeria sua filha como se fosse uma das suas.

?Não se preocupe, certeza que em breve terá que desistir. Os homens são, por natureza, muito teimosos e tem que encontrar um incentivo para avançar esse passo que ambos se recusam a dar ?Sophia comentou, à alusão do baronato, com falso tom sereno e calmo.

Giesler era um barão alemão? Por isso seu marido fez referência ao tratamento de lorde? Os barões alemães possuíam as mesmas conotações que os ingleses? Tinha que assimilar muitas coisas depois dessa informação. Além disso, se a premonição de Madeleine estava certa, se lorde Giesler era o homem destinado para Mary... se tornaria uma baronesa inglesa ou alemã? Como agiria se alcançasse essa posição social? O que aconteceria com todos aqueles homens que a humilharam no passado? Se esqueceria deles ou encontraria uma maneira de se vingar? Um frio repentino fez com que os pelos do seu corpo se arrepiassem. Se isso acontecesse, a melhor opção era que partisse para a Alemanha, porque se ela ficasse, os cavalheiros que a desprezaram estariam em grave perigo...

?Já estou aqui! ?Mary gritou descendo as escadas.

Sophia a olhou de cima a baixo. Não podia repreendê-la porque não estava mais usando a camisola, mas usava o vestido azul que tinha colocado no dia anterior. Um que lhe dava a aparência de uma governanta, mas por causa da maneira como o tecido se agarrava ao seu corpo, não havia dúvida de que ela não tinha colocado o espartilho ou as anáguas. Mantinha o cabelo em um coque desastroso e em sua mão direita segurava a maleta que Randall a presenteou ao completar dezoito anos. Levaria dentro um frasco de cicuta? Porque se fosse assim, temia que gastasse essa mesma noite quando descobrisse a identidade do doente.

?Lembra querida, o que sempre comentei com seu pai ?ela disse suavemente enquanto a ajudava a vestir o casaco que tirara do armário.

?Boa noite ?primeiro saudou a mulher e logo se voltou até sua mãe com um olhar interrogativo. ?O pai me disse muitas coisas, pode ser mais especifica...

?Que não importa o paciente que precisa de atendimento, tem que fazer um bom trabalho ?lembrou antes de lhe dar um beijo na bochecha.

?Não sei por que diz essas coisas ?resmungou, corando rapidamente. ?Jamais me neguei a atender alguém.

?Espero que também não faça nesta ocasião ?Sophia insistiu puxando-a até a saída.

?Tem algum tipo de preconceito, Srta. Moore? ?Valeria interveio um pouco desconfortável ao ouvir as estranhas palavras da esposa do médico.

?Nem um pouco! ?Mary respondeu rapidamente, se colocando ao lado da Sra. Reform. ?É muito comum minha mãe me lembrar de que eu não devo ser descortês com as pessoas.

?Enquanto possa salvá-lo, não me importa o caráter que possua ?Valeria afirmou. ?Sra. Moore, boa noite. Garanto que sua filha estará em boas mãos.

?Obrigada, Sra. Reform, embora neste momento não tema por Mary, mas pelo doente ?Sophia garantiu.

?Mas mãe! ?Ela respondeu com raiva. ?Por favor, não vamos perder mais tempo. Preciso ver o paciente o quanto antes. Se não se importa, Sra. Reform, durante o caminho, me explica os sintomas que tem, essa conversa será mais que ouvir os lembretes morais da minha mãe. ?Boa noite, mãe.

?Boa noite, filha.

Assim que se despediram de Sophia, a duas andaram até a carruagem. A Sra. Moore permaneceu na porta até o veículo sair de seus domínios. Fechou a porta e suspirou fundo. A vida de sua segunda filha mudaria, a única coisa que podia garantir era se ela estava preparada para assumir essa mudança...

Mary se acomodou no assento e observou de canto de olho a sua acompanhante. Parecia tão preocupada que queria lhe dizer algo que pudesse acalmá-la. No entanto, ela não tinha o dom de tranquilizar as pessoas, mas de curá-las.

?Desculpe-me por tê-la tirado de sua casa a esta hora tão inapropriada, mas sua mãe, depois de lhe explicar o que aconteceu, insistiu que você é a mulher adequada para atendê-lo.

?Não foi problema nenhum, pelo contrário, sinto-me muito honrada por poder ajudá-la ?Mary respondeu, acrescentando um leve movimento com a mão enluvada ao comentário. ?Ficarei feliz em descobrir que doença seu marido tem e indicar-lhe o tratamento adequado.

?Meu marido? ?Espetou Valeria arregalando os olhos. ?Não é meu marido que está doente, mas meu irmão.

?Desculpe, devo ter entendido errado. De lá, não consegui ouvir bem suas palavras ?Mary comentou, ruborizando no mesmo instante. ?Às vezes, quando fico empolgada, não presto muita atenção.

?Não se preocupe, isso geralmente acontece comigo também. Acho que é muito comum mulheres inteligentes selecionarem o que as interessa.

Diante desse comentário, Mary relaxou e soltou uma gargalhada. Quando se recuperou, voltou a olhar a Sra. Reform e esperou que lhe revelasse o nome do seu irmão, mas ela se manteve em silêncio.

?E, a quem devo atender? ?Finalmente perguntou.

?Talvez o conheça, Srta. Moore.

?Mary, por favor, me chame de Mary.

?Obrigada, bem, o que disse Mary, possivelmente tenha ouvido falar sobre ele, porque é um homem bem conhecido nesta cidade. Trabalhou na Scotland Yard durante alguns anos, mas quando estava prestes a conseguir um cargo importante, se recusou a fazê-lo e decidiu se tornar um marinheiro ?declarou com pesar enquanto observava como Mary continuava negando com a cabeça.

?Confesso que sou uma mulher antissocial. Mal saio de minha casa e quando o faço não tenho entre os meus objetivos me relacionar com as pessoas que conheço, exceto se tiver que curá-las ?acrescentou espirituosamente.

?Entendo... ?Valeria apontou ainda mais intrigada. Se a moça não o conhecia, por que seu irmão não parava de chamá-la quando lhe subia a febre? Espalhou a saia do vestido para que não enrugasse, depois colocou as duas mãos no colo e olhou para a jovem sem piscar. ?Mas acredito que sim, que conhece meu irmão ?insistiu.

?Se me disser o nome, posso responder com mais certeza ?Mary declarou com a voz cansada.

Para que tanto mistério? Por que proteger sua identidade? Teria que atender um criminoso fugitivo da justiça? Seria um parente direto do próprio Gilles de Rais?[1]

?Meu irmão é Philip Giesler ?Valeria finalmente declarou.

Naquele exato momento, Mary sentiu o queixo cair e ouviu uma voz em sua cabeça gritar que preferia enfrentar um depravado como o Barão de Rais do que salvar o homem que a chamou de bruxa.


Capítulo I


?Sabe de quem estou falando? ?Valeria lhe perguntou ao observar o sorriso de desagrado que mostrou em seu rosto. ?O conhece?

?Vagamente... ?Mary murmurou.

Por isso sua mãe a recordou que devia atendê-lo como mais um? Ela sabia de quem se tratava? «Por todos os diabos!», gritou mentalmente. Quando voltasse falaria muito seriamente com ela e lhe deixaria bem claro que jamais atenderia, mesmo que estivesse a ponto de morrer, imbecis como lorde Giesler.

?De onde? ?Valeria insistiu, apesar do mau humor que a jovem demonstrava e do tom áspero que usou ao respondê-la.

?Há alguns dias, seis para ser exata, seu irmão apareceu em nossa casa junto com o visconde de Devon ?respondeu sem diminuir sua aspereza. ?Nós dois tivemos a oportunidade de nos conhecermos e conversar por um curto período de tempo...

Pouco, mas o suficiente para odiá-lo e desejar que apodrecesse no inferno. No entanto, essa parte da história não era apropriada para expor naquele momento. Para o bem dela e de seu futuro paciente, deveria se acalmar e mostrar um caráter afável, tal como seu pai insistia: «Pode ser a mulher mais inteligente do mundo, mas ninguém a respeitará se continuar se comportando de maneira tão irascível».

?Entendo... ?a Sra. Reform sussurrou fixando seu olhar na janela.

?Disse que está doente há quanto tempo? Que sintomas têm apresentado? ?Mary perguntou para tentar esquecer o ódio que sentia pelo paciente e se concentrar em descobrir a possível doença. Porque se tudo fosse uma mentira, se a fez sair de sua casa para continuar zombando dela, antes de três horas passadas, seu sofrimento seria real, assim como a terrível dor que apareceria em sua virilha.

?Dois dias. A febre não diminui. Tem tanto calor que saíram bolhas na sua pele. Delira, tem suores, não para de vomitar e faz movimentos involuntários muito bruscos. Antes de pedir ajuda na sua casa, seus olhos estavam em branco por causa do novo aumento de temperatura, por isso disse a vários criados que preparassem um banho de água fria. Espero que com isso acalme...

?Realmente ordenou tal insensatez? ?Mary disse horrorizada. ?Que absurdo!

?Desculpe? ?Valeria retrucou com uma mistura de surpresa e assombro com a súbita mudança de atitude. Estava chamando-a de estúpida por ter mandado fazer uma coisa tão frequente em estados febris? ?O que quer dizer com essas palavras Srta. Moore? ?Resmungou, adotando novamente uma atitude distante.

?Como lhe ocorreu tal incoerência? Uma pessoa com febre alta não pode entrar em uma banheira com água fria, mas morna e, uma vez que seu corpo se adapte a essa breve mudança de temperatura, se acrescenta gradativamente gelo, mas nunca de uma vez! ?Falou irritada.

?Bem, agora entendo porque sua vida social é tão escassa... ?murmurou em voz alta. ?Espero que os servos tenham sido mais sensatos do que eu e não o congelem antes da sua chegada.

?-Isso espero! ?Mary disse, cruzando os braços sobre o peito.

A conversa entre as duas mulheres cessou naquele momento. O silêncio reinou dentro da carruagem, embora ocasionalmente se ouvisse os grunhidos exasperados de Mary. Valeria não podia afastar o olhar dela e de se perguntar se seu irmão era consciente do verdadeiro caráter da mulher que ele invocou inconscientemente. Talvez quando se conheceram, a jovem em idade de casar, contemplou um homem tão bonito e galã, tirou todas as suas armas de sedução para apanhá-lo. Só esperava que, ao tratá-lo novamente, Philip entenderia que os escorpiões tinham menos veneno no ferrão do que ela em sua língua.

Uma vez que a carruagem estacionou na entrada da residência, o cocheiro abriu a porta para ajudar em primeiro lugar a Sra. Reform, no entanto, a filha dos Moore se esqueceu do bom protocolo e, depois de um movimento brusco, saltou para o chão sem observar a cara de espanto do empregado.

?Onde disse que se encontra seu irmão? ?Mary perguntou, agarrando a pasta com força.

?Não lhe disse ?Valeria garantiu mal humorada. ?Mas imagino que continua em seu quarto, onde o deixei antes de procurar por seu pai.

?Não há tempo a perder! Devemos impedir esse absurdo congelamento! ?afirmou, caminhando até a entrada sem esperá-la. Assim que chegou à porta, Mary pegou a aldrava e bateu até que um mordomo a abriu. ?Diga-me agora mesmo, onde se encontra o doente ?lhe perguntou assim que o viu. Entrou na casa sem ser convidada, rapidamente tirou o casaco, jogou no mordomo e olhou em volta tentando descobrir em qual lugar da casa deveria avançar.

Shals, o criado principal, fixou seus olhos cinzentos na Sra. Reform, quem apareceu depois na estranha, e perguntou-lhe com aquele olhar se deveria responder a sua exigência. Quando ela assentiu, respondeu:

?Em cima, terceira porta a direita. Se desejar que a acompanhe...

Não conseguiu terminar a frase porque Mary ergueu o vestido com a mão esquerda e subiu as escadas tão rápido que, antes de piscar duas vezes, já estava no andar de cima.

?Sra... ?disse a Valeria ?Quem é essa moça? Não será uma das amigas do Sr. certo? Já sabe que estamos proibidos de aceitar a entrada de mulheres de moral duvidosa.

?Não se preocupe. Não acredito que meu irmão a declare como amiga e tampouco é de moral duvidosa. Além disso, imagino que nem saiba o que essas duas palavras podem significar ?respondeu, oferecendo-lhe o casaco. ?É uma das filhas do doutor Moore que veio em seu lugar. Segundo me informou a esposa do médico, ela tem experiência suficiente para descobrir o que acontece com Philip e o atenderá até que seu pai apareça.

?Como disse? ?Retrucou Shals mais espantando se possível. ?Uma mulher médica? Tem certeza? Seu comportamento não me pareceu...

?Também não a achei muito adequada, mas se é capaz de descobrir o que acontece com Philip, esquecerei esse comportamento grosseiro e insolente que exibe com tanto orgulho. A propósito, sabe se poderiam colocá-lo na banheira?

?Acabaram de subir vários criados para levantá-lo da cama. Como bem sabe, as dimensões do Sr. são...

?Nem pense nisso! Deixem-no novamente sobre esse maldito colchão, bando de inúteis! ?Mary gritou com tanta força que Valeria e Shals a ouviram como se ela ainda estivesse no corredor.

?Meu Deus! ?O mordomo exclamou horrorizado. ?Continua dizendo que esta mulher é a certa para salvá-lo?

?Não ?garantiu antes de levantar o vestido com as duas mãos e subir os degraus o mais rápido que podia.

Quando chegou ao quarto, Valeria se apoiou no batente da porta para tomar ar. Enquanto sua respiração normalizava, seus olhos se cravaram dentro do quarto. Os três criados, quem tinham tentando mover o corpo de seu irmão, estavam ao pé da cama e olhavam para Mary como se ela fosse louca, pois nenhuma mulher sensata gritaria em uma casa desconhecida nem permaneceria em frente a um homem nu, embora o lençol escondesse a parte inferior de seu irmão. No entanto, Valeria ficou perplexa pela atitude fria da Srta. A filha do médico não o contemplava como uma mulher faria, mas como um médico que procurava a origem da doença que padecia seu paciente. Depois de tocar a testa, continuou com o peito. Suas mãos apalparam o peito de Philip sem nenhum tipo de sensualidade. Sensualidade? Aquela mulher não sabia o que era isso! Mas os olhos de Valeria se arregalaram e os três servos exclamaram horrorizados quando ela baixou os lençóis até os quadris. Os pelos loiros encaracolados de seu irmão ficaram descobertos. Colocou as mãos no rosto e deus graças a Deus que estava inconsciente, porque só culparia ela de tê-la levado ao seu quarto e que ela tomou certas liberdades inadequadas enquanto ele não podia se defender.

Sem afastar os olhos de Mary, notou como seus dedos largos se concentraram na parte da virilha direita. Com uma suavidade improvável apalpou durante um bom tempo, logo as afastou, andou para trás, levantou o rosto, olhou para os servos espantados e lhes perguntou:

?Onde estão os vômitos do seu Sr.? ?Como ninguém era capaz de respondê-la, pois não podiam falar por causa de seu espanto, ela começou a procurar o recipiente embaixo da cama. Quando o encontrou, pegou-o e levou até a luz da cabeceira. ?Desde quando está assim?

?Faz um dia ?Valeria respondeu entrando lentamente. ?Primeiro foram as febres e depois os...

?Se queixou de dor abdominal? ?Mary insistiu voltando para a cama com a bacia nas mãos.

Depositou-a no chão. Depois, apesar dos olhares reprovadores dos servos, colocou as palmas das mãos novamente na região da virilha afetada e justo quando seus dedos pressionaram essa parte com mais força, Giesler, que estava inconsciente até agora, gritou de dor.

?Parece que sim, se queixa... ?Valeria comentou sarcástica ao observar como seu irmão finalmente abria os olhos e agarrava com força a mão direita da jovem.

?Acalme-se, lorde Giesler. Sou Mary Moore ?começou a falar com ele ao descobrir que a olhava assombrado, como se achasse que estava vivendo uma alucinação. ?Sua irmã apareceu em minha casa para pedir ajuda ao meu pai. Como ele não se encontrava, vim no seu lugar. ?Puxou a mão, dirigiu-se a sua maleta e procurou pelo estetoscópio. Uma vez que o encontrou, voltou até o doente, colocou a campainha larga em seu abdômen e ouviu atentamente.

?Mary... ?Giesler sussurrou, apoiando novamente a cabeça sobre o travesseiro e incapaz de afastar os olhos dela.

?Chist! Preciso de silencio ?ordenou.

Philip observou-a atordoado até que Valeria se acomodou ao seu lado. Não querendo fazer nem um mísero barulho, para não desobedecer a ordem da mulher feroz, lentamente virou a cabeça até seu irmão. Ela encolheu os ombros e o olhou com simpatia, como se estivesse pedindo perdão por tê-la levado. No entanto, apesar do estado atordoado que Philip estava e da dor que percorria seu grande corpo, ele sorriu antes de desmaiar de novo.

?Acredito que ele tem a fossa ilíaca direita inflamada ?Mary comentou depositando o instrumento na maleta.

?E? —Valeria perguntou, pegando o pano que estava em uma mesa de cabeceira para limpar suavemente o rosto suado de Philip.

?Tem que fazer uma incisão nessa parte do corpo, cortar e extrair a fossa afetada, limpar bem o interior, cauterizar e costurar ?explicou, como se estivesse descrevendo uma tarefa tão simples quanto encher um copo de água embaixo da torneira.

?Como podemos aliviar a dor enquanto seu pai não chega? ?Valeria apontou, terminando a tarefa que estava fazendo.

?Não deveríamos esperar tanto. Se a fossa não estiver perfurada, há muita possibilidade que sobreviva, mas se estiver... aconselho-lhe que realize todos os preparativos pertinentes para um próximo funeral ?declarou com grosseria.

?Como ousa falar dessa forma, Srta Moore? Está se referindo ao meu irmão! Por acaso não tem compaixão? ?Clamou horrorizada por sua falta de tato.

?Sou uma mulher racional e sincera, Sra. Reform. Esclareço o que há e enfatizo que, se não agirmos rapidamente, a vida do seu irmão terminará em apenas três dias. ?Colocou as mãos na cintura e olhou com frieza. ?Não concorda com meu diagnóstico? Bem... corra! Procure o doutor Flatman para que verifique minha conclusão! Talvez seja muito tarde para ele... ?insistiu com mais crueldade do que deveria mostrar.

Por acaso estava desesperada para salvar a vida do homem que a chamara de bruxa? Por quê? Teria mudado de ideia ao ver como seus olhos azuis a observavam como se a idolatrasse? Havia em seu coração um pouquinho de piedade? Ou queria salvá-lo para depois lhe recordar que tinha um divida de vida com ela? O que quer que fosse, era a primeira vez que misturava sentimentos e trabalho...

?Está me dizendo que a vida do meu irmão está em minhas mãos? ?Valeria enfatizou se levantando do colchão.

?Não. A vida do seu irmão está nas minhas, porque serei eu quem realiza a intervenção. Você deve dar seu consentimento. Embora também possa esbofetear lorde Giesler até que aceite minha decisão ?afirmou virando até o paciente como se tivesse a intenção de lhe bater.

?Não se atreva a tocá-lo! ?Valeria explodiu andando até ela. ?Se fizer isso, garanto-lhe que não ficará um único fio de cabelo na sua cabeça.

?Não me importa ficar careca, Sra. Reform, caso não saiba, em menos de um ano vou usar outra linda cabeleira, mas se não operar seu irmão imediatamente, ele estará no subsolo, decompondo e alimentando todos os tipos de microorga...

?Maldita seja! ?Valeria gritou desesperada. ?O que quer que faça?

?Que consinta o que vou fazer ?Mary disse satisfeita.

?E se morrer durante a intervenção?

?Morrerá de qualquer maneira ?disse sem hesitar nem um único segundo.

?Está bem! Que todo mundo siga as instruções da Srta Moore! ?Valeria finalmente decidiu. ?Espero que não morra em suas mãos...

?Ele não vai ?Mary determinou antes de se colocar na frente de sua maleta e preparar todos os instrumentos que precisava para aquela operação apressada.


***

Valeria não podia acreditar no que via. Era tão improvável que mais de uma vez acreditou viver um pesadelo. Depois que a Srta. Moore ordenou acender todas as luzes que havia no quarto e que fechasse as janelas, pediu aos servos que colocassem duas mesas grandes em frente à lareira. Foi nela onde colocaram Philip. Então os obrigou a lavarem suas mãos em sete recipientes que havia cheio de água e sabão. Mas não se conformou com essa exaustiva limpeza, também os obrigou a borrifar suas palmas com um liquido que chamava desinfetante. Os lacaios fizeram isso sem questionar, porque ficou muito claro o caráter azedo e autoritário da mulher. Dois deles, que a olhavam como se fosse o próprio diabo, foram encarregados de limpar o sangue que caia no chão e de avivar o fogo. Quando tudo estava pronto, começou a trabalhar. Se até esse momento havia pensando que era uma pessoa única, o comportamento que manteve depois, confirmou. Enquanto que ela não podia permanecer de pé nem dois minutos ao presenciar a pequena incisão que fez no corpo de Philip, Mary nem piscou. Parecia que tudo ao redor deixou de existir para ela, embora falasse sem parar sobre certas descobertas cientificas sobre a operação que realizava. A jovem se concentrou no trabalho com tanta segurança e precisão que ficou fascinada. Nem em seus partos o médico que a atendeu foi tão firme e profissional! Não havia dúvidas, Mary tinha um dom e, por muito estranho que lhe parecesse, Philip sabia. Talvez por essa razão ele murmurasse tantas vezes seu nome. Mas... como e quando a descobriu? Falaram sobre medicina nesse primeiro encontro? Não, essa opção estava descartada, desde que seu irmão não tinha conhecimento sobre esse assunto. Além disso, a filha do médico não lhe agradou lembrar aquele momento, como se tivesse sido o pior de sua vida... Por que Philip sabia da incrível capacidade da mulher? Perguntaria sobre ela depois daquele dia? Por qual motivo? Esperava que, se ele se salvasse, respondesse a todas as suas perguntas, porque era a primeira vez que Philip lhe ocultava algo sobre mulheres e isso a fazia suspeitar que talvez esse encontro fora mais importante para ele que para ela.

Durante as quatro horas seguintes, Mary não foi capaz de afastar o olhar do corpo de seu paciente. Depois de sedá-lo, para o que teve que usar quase todo o clorofórmio que tinha, porque não tinha levado em conta as dimensões do paciente até que o ouviu gritar depois de apertar a ponta da escarpa em sua pele, fez a incisão na região e procurou a fossa ilíaca. Tal como pensou, pelo inchaço que apresentava a olho nu, não estava perfurada, os resíduos continuavam armazenados no pequeno apêndice vermiforme. Enquanto removia e cauterizava a borda com uma faca em brasa, falava com a desconfortável Sra. Reform sobre os descobrimentos egípcios e como registraram essa doença nas mumificações. Então mencionou os estudos que Lorenz Heriste realizou, um discípulo de Herman Boerhaave, e finalizou o monólogo cientifico com as pesquisas realizadas por Reginald H. Fitz, um famoso professor de anatomia patológica da Universidade de Harvard. Mas a única coisa que saía da boca da irmã o tempo todo era «que não morra», de modo que Mary deduziu que ela não ouviu uma única palavra de sua ampla e contundente exposição científica sobre a descoberta do apêndice inflamado.

?Agulha e linha ?pediu, uma vez que finalizou a limpeza por dentro.

?Aqui está ?respondeu o criado que havia permanecido ao seu lado em todo o momento.

?Desinfetou isto? ?Perguntou depois de segurá-lo e esticar o fio para que não tivesse nós.

?Sim, fiz tal como indicou ?informou, afastando-se rapidamente dela.

?Lavou as mãos antes de fazê-lo? Porque, mesmo que não seja visto a olho nu, nossa pele pode estar contaminada por...

?Garanto, Srta. Moore, que jamais tive minhas mãos tão limpas ?interrompeu a criada com relutância, repetindo todas as ordens sete vezes, como se não pudessem entendê-la a princípio.

Com um sorriso que cruzava o rosto, Mary começou a fechar a abertura enquanto a Sra. Reform finalmente se levantava da cadeira em que havia permanecido durante a intervenção. Quando finalizou a sutura, pegou o bisturi, cortou o fio em excesso e colocou-o na bandeja onde estava o pedaço de intestino removido.

?Agora só precisa de muito repouso. Deve tomar o remédio que deixarei sobre a mesa de cabeceira. Os banhos frios acabaram durante uma boa temporada. Recomendo que limpe seu corpo com panos em água quente e se aparecerem algumas crostas brancas em volta da ferida, tem que...

?Vai embora? Pretende deixa-lo assim? ?Valeria espetou chocada olhando para o corpo convalescente de Philip.

Reconhecia que a atitude da filha dos Moore fosse sublime e que a Sra. Moore tinha razão ao recomendá-la. No entanto, não permitiria que saísse tão cedo. Precisava que ficasse durante a noite. Ela, melhor do que ninguém, poderia atendê-lo quando acordasse.

?Meu trabalho acabou Sra. Reform. Agora cabe a vocês cuidarem do doente. Se seguir minhas instruções, em dois dias poderá se levantar e dez dias depois continuará com seu estilo de vida habitual ?respondeu retirando o suor da testa com a manga direita do vestido. ?Além disso, meu pai aparecerá em algumas horas para verificar seu estado. Se tiver alguma dúvida sobre...

?Você fica! ?Garantiu a irmã. Ao perceber que não havia usado o tom adequado para falar, pois as rugas em sua testa indicavam que jamais admitiria uma imposição, suavizou a voz. ?Srta. Moore, Mary, peço-lhe que não saia até ele abrir os olhos. Já descobriu que sou incapaz de me manter firme quando vejo sangue e se tenho que trocar o curativo ou limpar...

?A troca de curativo pode ser feita pelo meu pai dentro de alguns dias, e lembro que não é apropriado que permaneça desnecessariamente. Não tenho dúvidas de que seu irmão melhorará se seguir minhas instruções... ?Mary comentou visivelmente sufocada.

Não queria estar presente quando aquele titã loiro abrisse os olhos, preferia se manter distante do homem que a chamara de bruxa. Além disso, não podia perder tempo cuidando da pessoa que odiava. Era verdade que o salvara de uma morte certa, que tinha abrandado ao ver como ele a olhava, mas até aí chegava a sua benevolência. Quanto antes saísse daquela casa, antes poderia esquecer que o conhecia e que havia contemplado aquele imenso corpo nu. Como era possível que suas pupilas se fixassem em certas regiões indecorosas? Havia atendido muitos homens doentes, mas ele era diferente de todos eles. A largura de seu torso, de seus braços, a magnitude e a força de suas pernas... toda aquela aparência dignificava-o. Qualquer mulher, que desejasse ter filhos robustos e saudáveis, procuraria um marido como ele. Mas ela não seria essa futura esposa. Tudo o que queria era colocar alguma distância entre os dois e que sua mente esquecesse tudo o que havia observado.

?Se teme por sua honra, lhe garanto que ninguém desta casa falará sobre sua visita ?Valeria afirmou se aproximando dela.

?Honra? ?Mary perguntou divertida. ?Nunca me interessei por esse tipo de besteira! Sou a pessoa mais honrada do planeta, por isso ninguém é capaz de me suportar. Não se trata disso, Sra. Reform, está mais para privacidade. Seu irmão e você precisam de privacidade para realizar os cuidados apropriados. O que seu irmão pensaria quando me visse em seu quarto?

?Que salvou a sua vida. Só isso. E estará tão agradecido como eu estou.

?Mas não é adequado que uma mulher permaneça sozinha no dormitório de um homem ?Mary insistiu, limpando o sangue de suas mãos na bacia que um dos empregados aproximou.

?É puritana, Mary? Depois do que fez, tenta me convencer de que é uma mulher recatada? Porque se fosse, eu não teria suportado as quatro horas que a intervenção durou com tanta solenidade ?Valeria insistiu.

?Está recriminando mina atitude? Porque tenho que lembrá-la de que acabei de salvar-lhe a vida ?concluiu, assinalando Giesler com um dedo de sua mão direita.

?Não interprete mal minhas palavras, por favor. Estou e serei eternamente agradecida. Tudo que eu quero é que permaneça ao seu lado esta noite. Estou tão cansada, depois desses dias, não sei se posso agir corretamente. É por isso que suplico que me ajude. Sabe como me sentiria se depois de seu brilhante trabalho ele não se recuperar por minha causa? ?Valeria retrucou visivelmente preocupada.

?Aceitarei esse pedido como um elogio... ?Mary respondeu cruzando os braços sobre o peito. ?Mas insisto que não sou a pessoa adequada para cuidar do seu irmão.

?Pedirei a um criado para acompanhá-la em todos os momentos. Assim nunca estará sozinha e será capaz de lhe dizer tudo o que quiser ?Valeria informou-a um pouco mais calma. ?Se amanhã, quando seu pai aparecer, decidir que não deve continuar na residência, procuraremos outra pessoa para assumir o seu lugar.

?Não se trata de ficar sozinha com ele, mas sobre a reação que terá quando abrir os olhos e me encontrar ao seu lado ?Mary explicou estendendo os braços para o chão. Então voltou para onde Philip estava, coberto até o peito com um lençol que um dos servos havia colocado, e o observou em silencio. Faria a coisa certa ficando aquela noite? O que poderia acontecer? A princípio, depois de usar tanto clorofórmio, não acordaria até a chegada do novo dia, momento em que seu pai poderia se ocupar dele. Mas... e se acordasse? O que faria quando a visse? Olharia novamente para ela com ternura ou gritaria para que saísse?

?Meu irmão não vai julgá-la, Mary. Depois do que fez por ele, por que acha que reagirá negativamente? ?Valeria insistiu se aproximando dela.

?Lembra-se de uma das perguntas que me fez na carruagem? ?Mary continuou deixando Giesler para encontrar a Sra. Reform no meio do quarto.

?Agradeceria se fosse mais especifica, porque tudo que eu pensava antes de sua atitude, foi apagado da minha mente ?disse com sinceridade. Não mentia. Tudo aquilo que pensava sobre Mary desapareceu de sua cabeça ao vê-la agir.

?Me perguntou se nos conhecemos e eu lhe disse brevemente. Bem, garanto-lhe que o nosso encontro foi suficiente para eliminar qualquer amizade cordial entre os nós dois. ?Mary olhou de lado para Philip e suspirou. Parecia tão dócil naquela situação, que até ela duvidava que fosse um ogro, mas era.

?Tenho certeza que meu irmão esquecerá qualquer incidente que tiveram no passado quando descobrir que você salvou sua vida ?Valeria esclareceu indicando com a mão a saída, para que ambas saíssem juntas.

?Não estou muito convencida disso... ?murmurou caminhando até a porta. ?Você seria capaz de perdoar a pessoa que tentou matá-la?

?O que disse? ?Valeria retrucou arregalando os olhos e parando atrás dela. ?Queria matá-lo. Por quê?

?Porque me chamou de bruxa ?Mary explicou avançando rapidamente. Se a irmã começasse a gritar, era melhor que o fizesse fora do quarto para não despertá-lo antes do previsto.

?Faria sem pensar. Em defesa do meu irmão, tenho que lhe dizer que ele é muito atencioso com as mulheres, muito para meu bom entendimento... ?Valeria esclareceu, tomando novamente o caminho para fora. Ao fechar a porta, se colocou ao lado de Mary e a olhou por um momento. Por que a chamou de bruxa? O que aconteceu entre eles? Se quisesse conhecer a verdade e descobrir o motivo pelo qual seu irmão havia chamando-a dessa forma e porque sorriu ao descobrir que ela estava ao seu lado, tinha que se esforçar o suficiente para que entre elas duas crescesse uma pequena amizade. ?Me daria a honra de tomar um chá? Depois de tantas horas sem comer, estou faminta.

?Não gosto de chá, prefiro o café e se acrescentar a isso uns ovos mexidos e torradas, estarei encantada em acompanhá-la ?Mary disse parando no alto da escada.

?Vejo que não sou a única que tem fome ?Valeria afirmou sorrindo. ?Não se preocupe, o serviço é incapaz de dormir desde que meu irmão ficou doente e certamente a cozinheira ficará feliz em preparar tudo o que quisermos. ?Enlaçou o braço direito com o esquerdo de Mary e desceram as escadas juntas. ?Sabe? Philip é incapaz de sair de seu quarto sem primeiro tomar duas xícaras de café. Segundo me explicou, as pessoas que o tomam são mais inteligentes e ativas. E depois do que fez, penso que tem razão. E você é uma mulher muito lúcida e perspicaz.

?Tentando me elogiar, Valeria? Não pareço mais uma mulher tão horrível? Esqueceu meu mau caráter? Porque posso lhe garantir que não será a primeira ou a última vez que me comportarei de maneira tão grosseira. Como bem sabe, minhas habilidades sociais são bastante escassas, o que não me preocupa em nada.

Diante dessa afirmação, a Sra. Reform soltou uma risada alta, apertou Mary com mais força em direção a ela e avançaram até que pisaram no corredor.

?Depois de sua atitude, tenho que lhe dizer que possui mais qualidades positivas que negativas, embora tema que não está acostumada a esse tipo de bajulação em relação a sua pessoa, estou errada?

?Não sei muito bem o que responder a isso porque acho mais fácil enfrentar críticas do que elogios ?respondeu com sua habitual sinceridade.

?Então se acostume com isso, Mary. Se realmente salvou a vida do meu irmão, ele se transformará em seu fiel protetor e eu em sua principal admiradora. Acha que qualquer um de nós permitirá que voltem a menosprezá-la por realizar um trabalho que até agora só realizavam homens? Ninguém será tão tolo em lidar com a protegida de Giesler ?garantiu enquanto a dirigia para a cozinha.

?Se você diz... ?Mary declarou um pouco desconcertada.


Capítulo II


Tinha que admitir que a conversa que manteve com a Sra. Reform se mostrou muito agradável. Além das numerosas atenções afetuosas, que lhe fizeram desconfortável mais de uma vez por não estar a costumada a tanta cortesia, a conversa foi muito reveladora para ela. Descobriu que os Giesler procediam de uma casta de barões alemães, que o pai se apaixonou por uma cigana espanhola e que ambos saíram da Alemanha para viverem seu romance. Uma bela história que terminou com três filhos: Valeria, Philip e Martin. Este último não o conhecia pessoalmente, mas tinha ouvido falar dele pelo excelente trabalho como professor de matemática avançada na Universidade de Oxford. Aparentemente, era uma celebridade, apesar de ser tão jovem. Isso só aconteceu porque tinha nascido homem...

Pegou o vestido com as duas mãos e subiu novamente as escadas. Nesta ocasião não foi acompanhada pela Sra. Reform, pois lhe insistiu que fosse a sua casa para descansar. Tal como Valeria garantiu com autoridade, só ela poderia ajudar o paciente se ele piorasse. A princípio se negou a deixá-la sozinha, pois fez uma promessa a sua mãe. No entanto, depois de uma intensa discussão, concordaram que Shals, o principal mordomo de lorde Giesler, permaneceria ao seu lado durante toda a noite. Mary sorriu novamente ao lembrar o memento em que o servo entrou na cozinha e ouviu a decisão de Valeria. Se naquele momento Anne estivesse junto para contemplar aquele rosto, tê-lo-ia pintado entre gargalhadas. Jamais admirou olhos tão abertos e uma boca tão grande. Na verdade, não pretendia que agradecesse por ter salvo a vida do homem que pagava o seu salário, mas tampouco esperava que reagisse com tanto medo e surpresa, como se estivesse em frente ao próprio Lúcifer. O fiel empregado acreditava que, no meio da noite, ela mudaria de ideia e, depois de pegar seu bisturi, retalharia seu senhor da cintura até a garganta? Embora essa ideia parecesse agradável na manhã em que o conheceu, havia mudado de opinião. Talvez o fato de saber que suas mães tinham algo em comum ou descobrir que não era tão invencível como lhe pareceu naquele dia, suavizou seu temperamento. Quem teria imaginado que um homem com esse aspecto se encontraria apertando a mão da morte? Possivelmente seu sangue espanhol, o único legado da mãe, porque não tinha dúvida de que Lorde Giesler herdara o físico de seu pai, que o mantivera vivo até sua chegada. Ambos os pais haviam passado por situações muito parecidas: a mãe fugiu dos ciganos para se casar com um médico e a cigana espanhola com um barão alemão. Sem dúvida alguma, ambas as mulheres tiveram a sorte de encontrar os homens que as amariam e respeitariam até a morte.

Quando chegou ao patamar no primeiro andar, caminhou lentamente até o quarto onde passaria as próximas horas. Só tinha que respirar fundo e agir com naturalidade até que seu pai chegasse. Uma vez que ele confirmasse que o paciente estava bem e que evoluiria normalmente, sairia de lá sem olhar para trás. Não era bom para ela permanecer ao lado de um homem que havia desejado odiar depois de lhe salvar a vida e descobrir que tinham muitas coisas em comum.

Colocou a mão na maçaneta e virou-a devagar, para não fazer muito barulho. Os criados, exceto Shals, haviam se retirado para descansar e não queria tirá-los de seus quartos se perguntando o que havia feito desta vez a filha do médico. Ao abrir a porta, ao olhar para dentro do quarto, levou as duas mãos até a boca e a pressionou com força para que seu grito não se ouvisse. Por que diabos fizeram tal coisa? Se não falhava a memória, jurava que os havia ordenado que não movessem o recém operado até que acordasse? Bem, eles a ignoraram! Os lacaios, aqueles a quem lavara as mãos tanto que pôde observar como alguns pedaços de pele morta caíram no chão, ergueram o grande corpo de seu paciente para colocá-lo no confortável colchão. Por acaso estava trabalhando com um bando de teimosos? Não eram capazes de entender suas palavras? Bem, terminariam compreendendo cada letra! No dia seguinte, assim que a Sra. Reform aparecesse, pediria que convocasse uma reunião com os servos. Uma vez que todos estivessem em silencio e atentos as suas palavras, escolheria uma linguagem muito simples para que pudessem compreender melhor as ordens.

Obrigou-se a se concentrar no bem estar de seu paciente. Andou pelo quarto pisando com força e não parou até se posicionar ao lado direito da cama. «Verdammt![2]», exclamou horrorizada ao descobrir que seus dedos, por mais que esticasse seus braços, de onde estava não alcançava o curativo, porque o haviam deitado exatamente no centro da imensa cama. Mas como podiam ser tão inúteis? Não deduziram que ela tinha que subir no colchão para tocar sua testa ou para verificar se a ferida não havia sido aberta ao deslocá-lo? Não! Como poderiam calcular uma lógica tão simples? O único que desejavam era que seu senhor acordasse confortavelmente em sua cama enorme, sem se importar com a inconveniência que a pessoa que salvara sua vida encontraria durante a noite. Por acaso não podia proteger sua honra? O fato de que Valeria mostrasse que sua presença deveria ser mantida em segredo para o bem de todos, não lhes dava o direito de tratá-la como se ela não estivesse. Depois de bufar como um cavalo ao final de uma interminável corrida, seguiu em direção a lareira, onde se encontrava um caldeirão com água limpa e quente. Colocou as mãos e tirou rapidamente ao sentir como sua pele queimava. Olhou com raiva para o paciente, como se estivesse rindo dela e voltou a resmungar. Sim, essa reunião com os empregados deveria se realizar o quanto antes e quem não acatasse suas ordens, ela mesma expulsaria a patadas da residência.

Irritada com a inépcia dos lacaios, ela voltou para a cama para garantir que o paciente não sangrasse. Só faltava que depois do que aconteceu nesse dia, lorde Giesler morresse depois da sua intervenção. O que comentariam aqueles que sempre zombaram da sua inteligência e capacidade? Não suportaria uma humilhação semelhante e seu pai teria que procurar outro capitão de navio que não levasse somente Anne a França, mas ela também. Olhou para a porta, que ainda permanecia fechada, e deixou de respirar, para aguçar o sentido da audição. Depois de comprovar que não havia ruído ao seu redor, subiu com muito cuidado na cama, se ajoelhou sobre o colchão, afastou rapidamente o lençol do corpo de Giesler e cravou seus olhos no curativo. Tinha várias manchas de sangue nele, mas eram normais depois de uma operação desse tipo. Talvez aqueles que o moveram foram mais atentos do que pensou. Assim que confirmou que o curativo continuava firme na cintura, apoiou a mão direita sobre a cama para descer. No entanto, seus olhos seguiam fixos no imenso e forte peito de Giesler. Como havia deduzido antes, era um homem bastante robusto e bonito. Poderia classificá-lo até como atraente, embora naquele momento precisasse de um bom banho para eliminar o suor que tinha emanado do seu corpo. Sua mata de cabelos loiros, que cobria desde seu peito até a cintura, possuía uma tonalidade mais escura que a de seu cabelo, permanecia preso à pele pela transpiração. Então reviu seus ombros, admitindo que o volume deles permanecia de acordo com a solidez de seus braços. Valeria não tinha dito que acompanhava o visconde em suas viagens? Bem, a cor de sua pele e a musculatura confirmavam que não passava as longas viagens protegido em um camarote. Sem dúvida alguma, se transformaria em um corsário vulgar uma vez que zarpassem. Pela diferença de tom entre o peito e a cintura, não tinha dúvidas de que lorde Giesler mostrava seu grande peito sem pudor, fazendo com que o sol e a brisa marinha alcançassem sua pele. Entendia o motivo pelo qual a cigana espanhola se apaixonou pelo barão alemão a primeira vista. Se seu filho tivesse herdado o físico paterno, tal como Valeria disse, não haveria mulher que resistisse a um homem tão atraente. Exceto ela, claro. Pois era imune a sedução masculina. Afastou o olhar do peito e fixou em seu rosto. Seus traços viris se acentuavam com a barba loira que cresceu desde que adoeceu. Seria grosseiro como o caráter que ofereceu no dia que se conheceram ou seria tão suave quanto o toque do lençol? Intrigada para descobrir que sensação tinha, levou os dedos de sua mão direita até o rosto de Philip e o acariciou lentamente. Surpreendentemente, ele virou a cabeça para a palma da sua mão quando sentiu o contato e, embora tivesse que retirá-la rapidamente, para o caso de ele acordar, a manteve até que ouviu a porta abrir.

?Srta Moore... ?disse Shals ao encontrá-la naquela posição tão pouco adequada. ?O que está fazendo? O senhor está acordado?

Dissimulando o espanto que lhe causou ser descoberta dessa maneira tão afetuosa, esticou o lençol para cobrir o pescoço e saiu da cama com menos delicadeza do que quando subiu.

?Estava confirmando que, ao movê-lo, a ferida não se abriu ?explicou com uma serenidade fingida. Colocou os pés no chão e deu vários passos para trás.

?E fez isso? ?Perguntou o mordomo entrando no quarto com uma enorme poltrona em suas mãos.

?Por sorte não. Mas foi imprudente movê-lo tão depressa ?Mary respondeu, se afastando o suficiente para que o criado colocasse a pesada poltrona ao seu dela. ?Para quem é isto? ?Perguntou curiosa.

?A Sra. Reform, antes de sair, me pediu que subisse a poltrona mais confortável que nosso senhor tem em seu escritório ?respondeu depois de deixá-la no chão e colocar as mãos nas costas, como se tivesse se machucado ao transportá-la.

?Dói? ?Mary disse se aproximando dele. ?Não deveria tê-la trazido sozinho. Deveria pedir ajuda a outro lacaio. ?Antes de ouvir a resposta de Shals, andou até o caldeirão quente que estava em frente à lareira, mergulhou um pano e, aguentando a alta temperatura, voltou para onde o empregado estava. ?Tire seu casaco e suba a camisa, por favor. Isto acalmará a dor.

?Mas... mas... ?ele gaguejou.

?Ou faz por vontade própria ou lhe garanto que não me importará tirá-la eu mes...

?Está bem. Farei o que me pede ?desistiu. Apesar do desconforto que sentiu, não só se separando de seu traje na frente de uma mulher, mas também pela indisposição em sua cintura, tirou o paletó e levantou a camisa para o meio das costas. Shals fechou os olhos quando notou um leve alívio quando Mary colocou o pano em sua pele.

?Não quero que você interprete mal minhas palavras, mas você está velho demais para fazer semelhante esforço ?alegou pressionando o pano úmido sobre a pele.

?Sempre fala dessa forma, Srta Moore? ?Shals estalou olhando por cima do ombro. Vendo que ela estava sorrindo, como se não se importasse com a pergunta mordaz, ele também sorriu.

?Como disse a Sra. Reform, sou uma pessoa muito racional e sincera. –Com a mão direita pegou a do mordomo e a colocou sobre o pano, então fez o mesmo com a outra. ?Aguente por mais alguns minutos. Se ainda continuar doendo, posso te dar um analgésico que tenho na maleta.

?Obrigado, com isto será o suficiente ?Shals respondeu depois de se virar para ela. —Posso fazer-lhe uma pergunta?

?Pode fazê-la, mas não prometo que a responda ?disse antes de circundar a cama, se aproximando de Giesler novamente, alongando seu corpo até que pudesse pegar seu pulso e confirmar que era adequado.

?Como aprendeu tudo o que sabe? ?Perguntou sem poder afastar o olhar dela. ?Seu pai a ensinou como se fosse um homem?

O sorriso que havia mostrado até esse momento, desapareceu. Levantou o queixo e olhou para o criado como se quisesse fuzilá-lo.

?Por acaso acredita que as mulheres nasceram sem cérebro e que a função dos homens é criá-las a sua conveniência? ?Disse levantando a voz.

?Não! Não! Por favor, Srta Moore, não interprete mal minhas palavras ?declarou Shals em voz baixa. ?Juro que não quero magoá-la ?argumentou, afastando o pano de suas costas.

?Disse para não tirá-lo ?repreendeu quando viu que, devido ao nervosismo, ele havia desobedecido a sua ordem.

?Sinto muito... outra vez ?Shals declarou acatando a ordem de Mary enquanto abaixava a cabeça, envergonhado.

?Tem filhos? ?Mary continuou falando enquanto voltava a poltrona que havia trazido. Se sentou e levantou o queixo para continuar observando o mordomo.

?Não.

?Então deduzo que é absurdo explicar as decisões que meu pai tomou depois de ser pai de cinco filhas ?se recostou na poltrona, cruzou os braços e encarou o paciente, que ainda estava descansando tranquilamente.

?Tenho sobrinhas, se isso lhe serve de algo ?Shals explicou passando atrás da poltrona para chegar até a lareira.

Se o pano quente acalmava um pouco a sua dor, imaginou que estar em frente ao fogo, faria desaparecer. Além disso, aquele lugar era ideal se a Srta Moore sofria outro ataque de raiva por seus comentários inapropriados.

?Como seus pais se comportam com elas? ?Mary perguntou, virando na poltrona o suficiente para observar o servo.

?Nascemos em uma família que sempre se dedicou a servir, Srta Moore. Pode concluir que minha irmã e meu cunhado as instruem para continuar essa tradição ?explicou com cautela.

?Felizmente para nós, nossos pais têm uma visão mais precisa do futuro de suas filhas ?Mary suspirou.

E ela também agradecia ao bom senso que ambos possuíam. Nem sua mãe nem seu pai teriam educando-as para se tornarem as futuras esposas de senhores odiosos que não as valorizassem. Único objetivo para jovens burguesas ou aristocratas. No entanto, graças a uma educação tão liberal, as cinco puderam desfrutar de algo que poucas mulheres possuíam: a felicidade. Como seriam suas vidas se tivessem sido instruídas sob a absurda opressão social? Tediosa, com certeza, e todas tinham lutado para conseguir a liberdade que precisavam.

?Fico feliz por você ?Shals comentou ocupando finalmente uma poltrona sem encosto que estava do seu lado direito. ?É muito estranho descobrir que alguns pais não são influenciados pelos costumes que nos cercam.

?Meu pai sempre teve uma visão diferente da vida ?Mary continuou um pouco mais relaxada. ?Desde que éramos meninas, nos ensinou a cuidar de nós mesmas e aceitou o caráter com o qual nascemos.

?Em seu caso, o amor pela medicina, certo? ?Shals insistiu e devido à calma de sua dor e ao tom suave da mulher, começou a relaxar.

?Não pense que foi fácil admitir meus interesses. No começo ele estava relutante em me ensinar tudo o que sabia, mas com o tempo lhe mostrei que minhas habilidades são adequadas para tal função ?explicou com orgulho.

?E afirmo-o ?o mordomo garantiu, fixando seus olhos em Giesler. ?Confesso que estou impressionado.

?Pela operação? ?Mary retrucou rindo. ?Não foi nada... Um corte longo, um mais curto, remover, limpar e cauterizar.

?Diz isso com tanta normalidade que dá a sensação que qualquer um pode fazê-lo e não é assim. Srta Moore, tem que compreender que fez algo maravilhoso e incrível. Tenho certeza que nenhum médico poderia ter realizado uma intervenção urgente com a serenidade que você manteve em todo o momento. Graças a Deus, a Sra. Reform, depois de ouvir as palavras que o senhor pronunciou em seus delírios, foi buscá-la.

?O que disse? ?Mary perguntou se inclinando para frente, para observar melhor a expressão no rosto de Shals.

?A senhora não lhe disse? ?O mordomo respondeu com certa inquietação ao deduzir que havia cometido um grande erro.

?A senhora falou em procurar meu pai, Randall Moore, mas não me disse que Lorde Giesler mencionou meu nome em seus delírios febris ?declarou com surpresa.

?Não! Não! Não me referia ao seu nome ?Shals mentiu ?mas seu sobrenome. Meu senhor, não parava de repetir o sobrenome de seu pai. Por isso a senhora foi a sua busca.

?Já percebi... ?comentou enquanto voltava a se recostar na poltrona e fixava seus olhos no paciente. Não lhe teria ocorrido falar sobre ela, certo? Porque se fosse assim, esperaria que se curasse para deixá-lo doente de novo.

?Como descobriu, tão rapidamente, a doença do meu senhor? ?Shals, ao confirmar que suas palavras a haviam relaxado novamente, mudou de assunto. Não desejava se envolver em um problema em que se confrontaria com o caráter daquela moça e do homem ao qual servia há vários anos, porque a única coisa que conseguiria seria uma demissão iminente.

?Conto a versão entendida, que abrange desde a época egípcia ou se conforma com o momento em que apalpei meus dedos na inflamação? ?Mary disse divertida.

?Com queira. Lembre que temos que permanecer acordados toda a noite e minha única tarefa é ficar com você neste quarto ?Shals respondeu com o mesmo tom jocoso.

?Sendo assim, começarei com os estudos que se realizaram depois de algumas descobertas em certos túmulos egípcios...

Durante um pouco mais de duas horas, Mary explicou sem parar tudo o que conhecia do assunto: seus descobrimentos, quem os estudou, suas conclusões e como os resolviam durante diferentes séculos. Em várias ocasiões o mordomo se aproximou dela para servir-lhe um copo de água fresca, mas ela não percebeu esse detalhe de cortesia. Mary estava incrivelmente emocionada porque era a primeira vez que alguém a escutava falar sobre medicina com atenção e até fazia perguntas sensatas. Se sentiu tão confortável que terminou confessando tudo o que lhe perguntava sobre sua infância: o dia em que seu pai a descobriu com um livro de medicina, os gritos de Shira ao descobri-la dissecando o corpo de um gato morto, as contínuas ameaças de sua mãe com seus livros, as reuniões de medicina que assistia. Falou tanto e se encontrava tão satisfeita que não reparou em Giesler exceto quando este emitiu um leve gemido. Nesse instante, Shals abandonou rapidamente a banqueta na qual permaneceu e se aproximou dos pés da cama enquanto observava como ela o atendia.

?O que acontece ?perguntou inquieto.

?Nada estranho ?ela respondeu depois de tocar sua testa e verificar que seu estado era normal. ?O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar. ?Deixou a cama, se dirigiu até a mesa de cabeceira onde havia deixado o copo que Shals enchia continuamente e voltou até Philip.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo... ?enfiou os dedos da mão direita dentro do copo, molhou-os e, depois de levantá-los, colocou-os sobre a boca de Giesler.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

?A Sra. Cheap tem um unguento a base de gordura animal que usa para que as mãos não rachem. Se quiser, posso pedir-lhe para...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaico. Terá mais que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção ?comentou com certo tom de amargura.

?Srta Moore, não me interprete mal, te suplico. Só desejo facilitar em tudo que possa seu excelente trabalho. Imagino que seja um pouco incomodo subir na cama do meu senhor, se ajoelhar ao seu lado e se inclinar até sua boca para umedecê-la com seus próprios dedos ?Shals explicou surpreso ao descobrir que ela era tão inocente que não era cuidadosa com a imagem que oferecia. Mais que um médico hidratando os lábios de um doente, parecia uma concubina fazendo alguma brincadeira erótica no seu cliente.

?Olhando a partir dessa perspectiva, parece que estou fazendo uma coisa horrível e tudo que pretendo é...

Mary ficou muda ao sentir uns dedos apertando em torno de seu pulso direito. Continuava olhando Shals, que já não expressava assombro, mas pavor. Tampouco fixava seus olhos nela, mas os dirigia até o lugar do colchão onde se encontrava lorde Giesler. Mary tragou a saliva e virou lentamente sua cabeça em direção ao rosto do homem que, inexplicavelmente, já havia acordado. Quando seus olhares se cruzaram, o coração paralisou. Aquele homem voltava a olhá-la como no dia em que se conheceram. Não havia ternura sem seus olhos, senão ódio e raiva. Por que diabos não lhe deu mais clorofórmio? E... de todas as maneiras possíveis para encontrá-la, teria que ser dessa maneira? O que passaria por sua cabeça ao vê-la sobre sua cama e ajoelhada ao seu lado? Pensaria que começaria a chorar como uma amante dramática ao ver a vida de seu amor em perigo? Por que Shals não falava? Por que não lhe oferecia o atiçador da lareira para que ela pudesse bater na cabeça dele e deixá-lo inconsciente de novo?

?Senhor... Milorde... ?Shals tentou finalmente dizer ao ver como lorde Giesler olhava a Srta Moore. ?Ela... é...

?Quem lhe salvou a vida ?Mary garantiu antes de fazer um movimento brusco com a mão, para se livrar do aperto, e descer da cama rapidamente.


Capítulo III


Não podia se mexer. Era incapaz de separar os cílios para observar quem se encontrava ao seu lado. Sua mente estava completamente adormecida e seu corpo parecia ter perdido toda a força. Não tentou nem desejou realizar nenhum esforço, pois pressentia que não conseguiria. Com os olhos fechados e imóvel, tentou lembrar o que havia acontecido. Mas não conseguiu nada, exceto que dias atrás se encontrava muito indisposto e que, de repente, seu corpo não se mantinha em pé. Em que dia da semana estava? Tinha perdido também a consciência? Quando? Respirou fundo, aplacando lentamente a angustia que sentia ao se sentir tão fraco. Pelo menos estava em casa, em seu quarto. A maciez característica do seu colchão e o cheiro do seu perfume atestavam isso. Deixando de lado a incerteza do que poderia acontecer, se concentrou nas vozes. A princípio parecia distante, mas com o passar do tempo ficaram mais nítidas e próximas. Duas. Ao seu lado permaneciam duas pessoas. Uma sem dúvida alguma era Shals. Poderia reconhecer sua voz, mesmo que ele estivesse trancado em uma caixa de metal. No entanto, se concentrou na outra. Uma mulher. Sim, aquele tom suave, mas ao mesmo tempo estridente, apenas uma fêmea poderia oferecê-lo. Conteve novamente a respiração, acalmando qualquer som que ele mesmo produzisse, para descobrir de quem poderia ser. Não teria ocorrido a Shals a ideia horrível de levar suas antigas amantes para cuidar dele, certo? Se ele tivesse tomado essa decisão, sua posição estava em perigo.

?Por que pensou em dissecar o pobre animal? ?Ouviu perguntar a estranha que, pela proximidade de sua voz, devia estar muito perto.

?Por curiosidade ?ela respondeu antes de soltar um sorriso suave. ?Precisava ver com meus próprios olhos o que escondia embaixo do pelo e da gordura. Além disso, estudar um coração na imagem de um livro não é o mesmo que tê-lo em suas mãos.

?Descobriu?

?Sim, até que Shira gritou horrorizada. ?Ela se divertiu ao lembrar aquele episódio de sua vida. —De acordo com ela, estava cometendo uma barbárie, então fui forçada a deixar o corpo e correr sem parar até chegar ao meu quarto.

?Imagino que sua mãe a castigou ?Shals deduziu.

?Somente até meu pai chegar. Quando expliquei a razão pela qual fiz isso e mostrei a ele todas as anotações que havia feito em um caderno pequeno, a punição acabou imediatamente. Daquele dia em diante, ele me ajudou a satisfazer minha curiosidade científica. Mas não me permitiu, até que completasse dezoito anos e depois de me presentear com a maleta que trouxe hoje, acompanhá-lo em suas consultas médicas.

?Atendeu aos doentes nessa idade tão jovem? ?Shals perguntou surpreso.

?Não. Eu apenas observava a atitude do meu pai e ouvia com atenção todas as suas explicações. No entanto, tenho que lhe assegurar que a grande maioria dos conhecimentos que possuo, consegui através dos livros que tenho lido sobre medicina.

?Você é uma mulher muito especial, Srta Moore.

?Obrigada ?ela respondeu, aceitando o elogio com prazer.

«Srta Moore...» Philip sentiu como seu peito se comprimia ao ouvir aquelas palavras. Seria ela? A bruxa de cabelos escuros tinha ido a sua casa para curá-lo? Por quê? Quem lhe havia pedido ajuda? Porque aceitou o pedido depois do terrível episódio que viveram dias atrás? Tentou se levantar para confirmar que não era uma alucinação, que sua mente distorcida não o enganava, mas continuava fraco, muito até mesmo para levantar um dedo. Assumindo que a única coisa que poderia fazer era ouvir com atenção a conversa da filha erudita do Dr. Moore, se concentrou em não perder nenhuma palavra. No entanto, uma pontada aguda de dor em sua cintura o fez rosnar, chamando a atenção de ambos.

?O que aconteceu? ?Ouviu Shals perguntar.

?Nada de estranho. O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar.

Philip percebeu como o colchão se inclinou ligeiramente para a sua esquerda. Depois disso, uma mão macia e quente tocou sua testa.

Mary...

Ela subiu na cama para confirmar que não estava piorando. Se deixou levar pela sensação de prazer que notou na leve carícia. Nunca se sentiu tão tranquilo e protegido por uma pessoa. Sempre foi ele quem velava pela segurança dos outros. Mas naquele momento, sua figura desamparada estava sob a proteção da mulher a quem ele gritou e admirou, em partes iguais. Ele apertou mais as pálpebras quando percebeu que estava se afastando. Uma estranha frieza percorreu seu corpo, causando um tremor intenso. Até suas vísceras reivindicavam essas carícias tão relaxantes. Não demorou em voltar. Para seu prazer, Mary ficou ao seu lado novamente.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo...

Tudo o que uma vez descreveu como maravilhoso desapareceu de sua mente quando sentiu a suavidade dos dedos molhados tocando seus lábios. Queria gemer de prazer, mas permaneceu quieto e calado. Não queria quebrar um momento tão terno, tão esplêndido. Possivelmente seria o único momento em que ela se comportaria de maneira tão afetuosa porque, uma vez que descobrisse que havia acordado, a mulher árida e gélida retornaria.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

Seu ferimento, o que ela mencionou, não sangraria. O que estava sangrando era sua alma. Porque lá estava ela, a mulher que jogou aqueles rolos de metal, saciando sua sede com os próprios dedos. Esse ato poderia defini-lo como o maior bem-estar que ele poderia sonhar? Talvez ele tivesse morrido e sua visão da vida eterna fosse ter aquela bruxa ao seu lado que ele não podia esquecer desde que a conheceu.

?A Sra. Cheap tem uma pomada à base de gordura animal que ela usa para evitar que as mãos rachem. Se desejar, posso pedir-lhe para que me...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaicos ?interrompeu-o?. Terá mais do que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção.

«Não!» Philip quis gritar com a opção que Shals lhe oferecia. Ele não queria que ela se afastasse dele, ou que seus lábios fossem borrifados com qualquer coisa, menos a água fresca de seus dedos. Ele precisava que ela continuasse com aquele ato íntimo, para tê-la por perto, sentir o perfume que ela exalava e a suavidade de seus dedos molhados.

Shals continuou falando. Ele explicou que não era apropriado que ela adotasse uma certa postura. Que postura seria? Estaria desconfortável? A inquietação tomou conta dele ao pensar que ela sofreria alguma doença por sua culpa. Muito lentamente, ele separou as pálpebras. A princípio, sua visão não era clara. Pelo contrário, parecia ter uma teia de aranha sobre as pupilas. Ele piscou várias vezes até alcançar a nitidez que desejava. Quando a viu, sentiu que não apenas sua alma estava sangrando, mas também seu coração. Mary estava ajoelhada na cama, estendendo a mão para a boca, hidratando-a, tal como explicava a Shals. Lentamente, seus olhos se desviaram para o peito feminino escondido sob um vestido que ele não conseguia distinguir claramente sua cor. Preto... talvez azul. Seus braços longos e delicados estavam nus, porque em algum momento decidiu enrolar as mangas até os cotovelos. A visão daquela pele esbranquiçada parecia requintada, atraente e tremendamente maravilhosa. Se estava morto, não tentaria voltar ao mundo dos vivos, pois o que vivia era ideal para ele. No entanto, justamente quando Shals percebeu que era capaz de observá-los, deduziu que sua situação idílica havia chegado ao fim. Ele lentamente levantou a mão esquerda para o pulso de Mary, agarrou-a e ela parou de falar.

Seus olhos se encontraram e se entreolharam por um momento. Ele queria transmitir através deles a felicidade que sentia ao encontrá-la ao seu lado, para cuida-lo. Mas o medo e a confusão mostrados pelo olhar de Mary o surpreenderam.

?Sr.... milorde... Ela é...

As palavras de seu mordomo ouviram-nas longe, como se não estivesse ao pé da cama, mas a 160 quilômetros de distância. Não quis prestar atenção à desculpa que Shals ofereceria ao encontrá-la em uma postura tão comprometedora. Tudo o que ele desejava era continuar contemplando a imagem perfeita de Mary: ao seu lado, em sua cama, acariciando sua boca com os dedos, saciando sua sede... Esse sentimento de felicidade se tornou em pavor quando percebeu sua mudança abrupta de atitude. Ela voltava a levantar o muro que os separou naquele dia.

?Quem salvou sua vida.

Manifestou em um tom de voz que Philip odiou. Lutou até libertar a mão de seu pulso e se afastou da cama, de seu lado. Continuou a olhá-la. Não podia afastar os olhos dela. Precisava observar todas as expressões que mostrava seu rosto. Surpresa, alegria, tristeza, compaixão? O que seria? Por qual escolher?

?Shals... ?murmurou lentamente. ?A... água... ?terminou de dizer.

O mordomo se aproximou rapidamente da cama, pegou o copo no qual Mary colocara os dedos e, quando ia lhe oferecer, ela gritou de horror.

?Nem pense em fazê-lo!

?Srta Moore, o senhor está me pedindo...

?E lhe dará, mas não dessa. Certamente que está contaminada depois de colocar meus dedos.

?Duvido muito que esteja depois de como foi lavado ?Shals apontou com um pouco de diversão.

Enquanto Mary estava em frente à lareira, onde podia observar claramente o paciente e permanecer distante, a criada esvaziou a água do copo na bacia e voltou a enchê-lo do jarro que havia sobre a mesinha. Se aproximou de lorde Giesler, segurou-lhe a cabeça e com muita delicadeza lhe deu de beber.

?Obrigado... ?ele disse uma vez que saciou sua sede. ?Shals, me ajude a sentar.

?Srta Moore, ?ele começou a dizer olhando para ela com os olhos arregalados ?acha que é uma boa ideia fazê-lo?

?Não. ?Garantiu indulgentemente. ?Precisa ficar deitado mais algumas horas.

O suficiente até que seu pai aparecesse e ela pudesse sair dali. Não podia enfrentar de novo esse olhar ameaçador. Só de pensar que continuava a odiá-la, a amarga e ressentida Mary voltaria para causar outro grande escândalo.

?Ficarei satisfeito se levantar um pouco minha cabeça. Não quero ficar o tempo todo olhando para o teto. ?Philip solicitou, a modo de queixa, a seu empregado, que acabou concordando com esse pedido, apesar de ouvir como a mulher bufava. ?O que aconteceu comigo?

?Um milagre! ?Shals exclamou dando um passo para trás, depois de acomodar o travesseiro.

?Que absurdo! ?Mary comentou, virando-se para não mostrar a raiva que tinha ao ouvir uma palavra tão estúpida para ela.

?Milagre? ?Philip retrucou olhando para a figura feminina. ?O que você quis dizer?

?Milorde, está acamado há pouco mais de dois dias. A Sra. Reform ficou ao seu lado esse tempo todo. Tentou curá-lo, mas, admitindo que precisava da ajuda de um médico, foi procurar o Dr. Moore. No entanto, ele não pôde comparecer e, em vez disso, a Srta Moore veio. Ela... ?Shals respirou fundo, olhou para a jovem e falou com orgulho, como se fosse seu próprio pai. ?Ela descobriu rapidamente que doença sofria e agiu imediatamente. Ela o operou, senhor. Ela salvou sua vida...

Giesler não tirou os olhos dela em nenhum momento. Algo dentro dele cresceu tão intensamente que seu peito expandiu. Felicidade? Agradecimento? Não sabia ao certo em que consistia essa emoção que inclusive lhe proporcionava forças para se levantar. Mas ele ficou parado, olhando-a sem piscar. Se ela descobrisse que estava começando a melhorar, iria embora e não estava disposto a se separar da mulher tão rapidamente que, rudemente, lhe dava as costas.

?Tinha a fossa ilíaca inflamada. ?Mary começou a dizer, olhando para o fogo. ?Tudo o que fiz foi tirá-la do seu corpo antes que fosse tarde demais.

?Pelo amor de Deus! ?Shals exclamou novamente. ?Explica como se fosse uma coisa muito simples e não foi. Sua intervenção durou pouco mais de quatro horas e posso garantir-lhe que, em nenhum momento, a Srta Moore diminuiu sua vontade de salvá-lo.

?Não preciso que me lisonjeie. ?Ela recriminou, ainda de costas para Giesler. ?Qualquer médico teria realizado essa operação com a mesma capacidade e eficiência que eu.

?Mas falamos de uma mulher... ?Shals sussurrou a seu senhor, comentário que fez Philip sorrir. Não só por afirmar algo evidente, mas pela forma temerosa de dizê-lo. Assustava-o? Conhecia o caráter especial da filha do médico?

Sem apagar o sorriso do rosto, ele continuou a admirá-la até seus olhos oferecerem uma imagem que ele nunca esqueceria. Se sua mente nunca parasse de mostrar a ele o momento em que se conheceram, e como o tecido de sua camisola se encaixava em sua figura, o fato de ficar na frente do fogo e que a luz das chamas atravessasse o tecido de seu vestido, concedeu a ele uma nova e esplêndida visão de suas pernas e quadris. Ela não usava anáguas? Por quê?

?Diga-me o que aconteceu ?Philip disse para Shals.

?Desde o início? ?estalou o mordomo se acomodando na cadeira onde Mary havia ficado antes que acordasse.

?Sim ?Giesler garantiu sem desviar o olhar daquela imagem espetacular.

Tal como pediu, Shals contou-lhe com todos os detalhes o que tinha acontecido desde que o encontraram caído no quarto. Os cuidados oferecidos por sua irmã, febre, vômito e convulsões. Evidentemente, ele não fez referência às palavras que evocou durante seus delírios. Mas, para dar uma explicação lógica do motivo pelo qual a Sra. Reform foi procurar o Dr. Moore, indicou que um funcionário havia ouvido que o médico seria o mais adequado para ajudá-lo, dada a fama que adquirira em Londres. Nesse momento Shals advertiu que Mary pegou o atiçador, o levantou e logo moveu as brasas com certa beligerância. Ele não quis perguntar o motivo pelo qual ela estava realizando esse ato brusco, decidiu continuar lhe falando sobre a saída de sua irmã para a residência do doutor e a chegada desta com a Srta. Moore. Explicou como gritou com os funcionários que se propunham a banhá-lo em água fria, como se aproximou dele e o espanto que todos mostraram quando a ouviu explicar que doença estava sofrendo. Narrou de maneira engraçada o momento em que ela forçou os servos a lavar as mãos em caldeirões diferentes e como insistia que fossem borrifados com um líquido que ela guardava na pasta. Philip não sorriu ao escutá-lo. Seu rosto estava rígido e seus olhos estavam fixos nela. Descobrir que havia tomado uma decisão tão importante, apesar de ambos não terem sido cordiais naquele dia, o deixou atordoado. Ele não tinha dúvida de que os rumores sobre seu intelecto eram verdadeiros, assim como afirmou aquilo que concluiu depois de investigá-la: os homens, que zombavam dela e a humilhavam constantemente, agiam dessa maneira porque a temiam. Eles estavam muito conscientes de que ela poderia superá-los, mesmo com os olhos fechados.

E isso que tinha crescido nele, que ainda não podia definir, aumentou.

?Obrigado. ?Lhe disse quando Shals concluiu a história. ?Te devo minha vida, Srta. Moore.

?Bobagem! ?Exclamou finalmente virando-se para ele. ?Não me deve nada. Como disse a seu mordomo, qualquer pessoa em meu lugar teria agido de maneira semelhante.

?Mas você enfrentou com valentia a Sra. Reform ?Shals interveio. Ao observar o rosto desconcertado de seu senhor, esclareceu: ?Sua irmã queria esperar o Sr. Moore, mas a Srta. insistiu em agir rapidamente. Além disso, lhe garantiu que morreria se não intervisse imediatamente.

Mary notou como suas bochechas coravam. Não arderam pelo calor do fogo, mas pelo embaraço que estava sofrendo. Aquele homem, imaginando que estava fazendo um ato de bondade para com ela, a descreveu como uma pessoa obstinada, teimosa e incapaz de aceitar a decisão da irmã do paciente. Outra característica que deveria adicionar à sua extensa lista de defeitos. Era melhor resolver o problema de uma só vez. Não podia suportar, nem por um momento mais, tantos elogios desnecessários ou daquele olhar hermético oferecido pelo homem que lhe salvara de uma morte certa.

?Como observei que está muito melhor e que o seu mordomo pode atendê-lo adequadamente, descerei ao primeiro andar. Já amanheceu há algum tempo e estou certa de que a Sra. Reform aparecerá em breve.

?Não! ?Philip gritou ao observar que ela se dirigia para a porta. Esse ligeiro movimento fez que lhe doesse a ferida. Ele colocou as mãos naquela área do corpo e olhou para ela novamente. ?Por favor... ?Sussurrou.

?Não se preocupe ?comentou Shals?, eu mesmo descerei para recebê-la. Você pode seguir atendendo Lorde Giesler. Agora que acordou, ele mesmo lhe dirá onde lhe dói e poderá lhe administrar o remédio que guarda na maleta.

?Vai me deixar sozinha? Não se lembra da promessa que fez à Sra. Reform? ?Mary insistiu com os olhos arregalados e colocando suas mãos em ambos os lados da cintura.

?Não corre nenhum perigo, Srta. Moore. Como pode ver, meu senhor, é incapaz de lhe fazer mal algum e sobre o escabroso assunto de permanecer a sós com um cavalheiro, não tem por que se preocupar. Ninguém nesta casa falará disso depois de salvar a vida do homem que paga seus honorários, lhe garanto.

?Mas... Mas... ?ela tentou dizer.

Shals parecia ter ficado surdo de repente. Depois de fazer uma leve reverência a Philip, caminhou decidido para a porta, fechou depois de sair e uma vez que já não puderam observá-lo, sorriu.


***

Quanto tempo passou desde que eles ficaram sozinhos? Talvez tenha sido apenas por alguns segundos, mas para Mary pareceu que tinha passado uma eternidade. Durante esse breve período não tinha se movido nem um palmo de onde ficou, antes da abrupta saída de Shals. Ele tentou fixar o olhar na porta, na lareira, no chão, mas acabou olhando para o rosto pálido e doentio. Embora Lorde Giesler não parecesse confortável, pois tampouco desviou o olhar dela. Seus olhos se mantiveram imóveis, como se o clorofórmio que lhe administrou não o deixasse movê-los para nenhuma outra área do quarto. Pegou as mãos e torceu-as com força. O que devia fazer? Faria bem se quebrasse aquele silêncio constrangedor?

?Srta. Moore... ?Philip sussurrou enquanto tentava mover a cabeça.

?Não o faça! ?Mary ordenou-lhe com um grito. ?Você não ouviu o seu mordomo? Acabei de operá-lo! ?Insistiu irritada.

?Sim, mas segundo as suas palavras, a intervenção foi muito simples. Por esse motivo, deduzi que...

?Deduções? A sério? Após a quantidade de anestésico que lhe dei, acha que sua mente é capaz de deduzir algo claramente? ?Continuou irritada. — O que precisa fazer é ficar parado por mais algumas horas.

?Quantas?

?Quantas o quê? ?Retrucou caminhando até ele com relutância.

?Quantas horas você acha que serão apropriadas? ?Esclareceu Philip, imensamente satisfeito ao ver como ela voltava a seu lado.

?Eu imagino que quarenta será mais que suficiente. ?Se Colocou no lado direito da cama, cruzou as mãos pelo peito e o olhou esquiva.

?Estou com calor... ?disse Giesler depois de pensar rapidamente uma alternativa que a obrigasse a tocá-lo de novo.

?Pode afastar o lençol, se desejar ?respondeu sem diminuir essa atitude zangada e distante.

?Mas me disse que não me movesse, que permanecesse quarenta...

Poderia rir? Não. Embora desejasse fazê-lo, não era apropriado, pois Mary acabaria cobrindo o rosto com o lençol para que não o observasse nem falasse mais. Por esse motivo, permaneceu calado, gostando de assistir enquanto pegava o pano com as pontas dos dedos e deslizava lentamente até a cintura.

?Melhor? ?Retrucou voltando a posição anterior.

?Água.

?Quer mais água? ?Perguntou arregalando os olhos.

?E remédios. Segundo declarou Shals, devo tomar...

?Cale-se por um momento! ?Mary exclamou desesperada. ?Não diga nem mais uma palavra. Vou dar-lhe a pílula[3] e esse maldito copo de água.

Fazendo movimentos mais bruscos do que deveria, se virou para a maleta, procurou o frasco onde tinha os comprimidos e pegou o copo de água.

?Não tente se mexer, eu te ajudarei. ?Philip a obedeceu. ?Passarei meu braço direito embaixo da cabeça. Precisa manter uma inclinação adequada para que o medicamento não fique preso na sua garganta. Se fizer isso, poderia morrer de asfixia ?comentou com sarcasmo.

?Sei que não permitiria que me acontecesse uma coisa tão horrível ?apontou Philip antes que lhe colocasse a cápsula na boca.

?Não tenha tanta certeza ?resmungou enquanto lhe dava de beber.

Não havia dúvida. Estava no céu e a mulher que ele chamou de bruxa era seu anjo. Sentir a suavidade da pele desse braço feminino em sua nuca, despertou-lhe uma incrível sensação de prazer e bem-estar. Quantas amantes deslizaram suas mãos pelo seu corpo? Dezenas! Quantas delas lhe causaram tanto prazer? Nenhuma. Aquela harpia de olhos azuis e cabelos escuros lhe provocava, com seu mau humor e seus atritos esquivos, uma satisfação inigualável.

Fechou os olhos quando ela deslizou seu braço para se afastar. Honestamente, nada poderia ser comparar. Talvez fosse um efeito colateral do clorofórmio que ela o fez inalar, ou talvez tudo fosse produto daquele período de castidade que se auto infringiu depois de conhecê-la. Fosse o que fosse, precisava senti-lo milhões de vezes mais.

?Obrigado ?lhe disse em voz baixa, quando Mary voltou a manter certa distância entre eles.

?Como disse? ?Retrucou estreitando os olhos.

?Agradeço, Srta. Moore. Mas entendo que não pode me ouvir claramente porque se afastou demais ?respondeu, dissimulando o estado de frenesi que se apoderou dele ao confirmar que encurtava essa separação bruta.

?O ouço perfeitamente, lorde Giesler. Só queria ouvir seus agradecimentos novamente ?respondeu mordaz. ?É bastante paradoxal que você, o homem que me chamou de bruxa em minha própria casa, me mostre tanta gratidão.

?Me jogou alguns tubos de metal. Queria me machucar com eles ?se defendeu.

?Não fiz isso? ?Retrucou ironicamente. Levantou as sobrancelhas escuras e esboçou um sorriso perverso enquanto colocava as mãos na cintura novamente.

?Não ?respondeu Philip. Se deleitando com aquele rosto maravilhosamente diabólico.

?Uma verdadeira lástima! ?Exclamou divertida antes de estalar a língua. ?Porque meu único objetivo naquele dia era machucá-lo.

?Para quê?

?Para que nunca me esquecesse ?respondeu de forma arrogante.

?Não fiz isso ?garantiu, olhando-a sem piscar.

As palavras e a expressão em seus olhos fizeram Mary se sentir intimidada, algo que geralmente não acontecia com facilidade. Mas aquele titã, com um corpo esbelto, cujo tronco bronzeado se mostrava descaradamente diante dela, começou a quebrar todas as barreiras que ela havia construído contra o sexo masculino. Que diabos tinha de especial? Por que seu coração batia loucamente? Não começaria a brotar seu sangue cigano naquele momento, certo? O que lhe disse Anne antes de partir para a cerimônia de casamento de Natalie Bennett? «Quando o sangue de Arany se libertar da pressão a que o submete, esquecerá tudo o que leu em seus amados livros e se tornará uma mulher apaixonada».

?Posso lhe pedir um favor, Srta. Moore? ?Philip perguntou, ao perceber que o olhar de Mary mostrava mais confusão do que medo.

?Quer mais água? Quer que o cubra novamente com o lençol? ?Respondeu ironicamente.

?Não. Minha sede se acalmou e garanto que estou com muito calor. Se não estivesse ao meu lado, afastaria imediatamente esse maldito lençol ?apontou sinceramente.

Comentário que a ruborizou, porque a fez lembrar o que estava escondendo debaixo do tecido.

?O que deseja? ?Quis saber, caminhando vários passos mais para trás.

Não devia permanecer tão perto. Não podia sentir nada. Seu coração precisava se acalmar de uma vez. Por que sua mente não agia? Onde estava seu autocontrole? E seu raciocínio feroz? Acaso haviam desaparecido? Que sangue possuíam naquele momento suas veias o Moore ou o Arany? Quando diabos seu pai chegaria?

?Vê essa cômoda que há no lado direito da lareira? ?Philip apontou com o queixo.

?Se pensa que vou me tornar sua empregada, está muito equivocado. Como bem sabe, meu único propósito tem sido...

?Srta. Moore, pode acatar, pelo menos uma vez na vida, uma ordem sem replicar? ?Philip resmungou.

?Por que devo fazê-lo?

?Porque não posso me mexer.

?O que me pedirá depois? ?Insistiu, franzindo a testa.

?Nada, juro por minha honra ?ele garantiu.

?Está bem! ?Mary sucumbiu caminhando em direção a cômoda. Uma vez que ficou na frente dela, olhou para ele. ?O que faço agora, Lorde Giesler? ?Acrescentou cantarolando.

?Abra a primeira gaveta e levante o lenço vermelho que encontrará à sua esquerda ?ele indicou. Embora não fosse conveniente para ele se mover, apoiou os cotovelos no colchão e, suportando a tremenda dor que esse esforço lhe causou, se inclinou o suficiente para vê-la. Como agiria? Se surpreenderia ao descobri-lo ou iria lançá-lo novamente? O que pensaria dele? O acusaria de ser louco e sairia correndo de lá? Com os olhos fixos nela, prendeu a respiração enquanto ao observa-la abrir a gaveta. Quando Mary levantou o pano, ficou parada e contemplou silenciosamente o que encontrou. ?Não me disse que sua única intenção era lembrá-la pelo resto da minha vida? Pois aí tem a prova, Mary. Não a esqueci, nem vou...

?Lorde Giesler ?Shals interrompeu depois de bater na porta duas vezes e abri-la ?O Sr. Moore acaba de chegar. Deseja recebê-lo?

?Sim, claro. Estávamos esperando por ele ?Philip respondeu sem desviar o olhar dela, que, ao ouvir o mordomo, bateu a gaveta e pulou para trás.


Capítulo IV


Shals se afastou para deixar o médico passar. Uma vez que este entrou no quarto seu olhar se dirigiu, em primeiro lugar, para ela. Respirou aliviado ao ver que permanecia frente à lareira, afastada do lorde. Que Mary tomara a decisão de operá-lo com urgência, quando era consciente de que podia esperar um pouco mais sem que corresse perigo, não lhe provocou tanto torpor como saber que se encontrava no quarto de um homem sozinha. Mas tudo o que havia imaginado desapareceu de sua cabeça ao vê-la tão afastada do paciente. Mary não era como Elizabeth, que colocava sua honra em risco constante. Sua segunda filha era tão fria quanto um bloco de gelo e, por mais atraente que o homem fosse, jamais o olharia de outra maneira que não fosse o de experimentar com ele alguma teoria médica nova. No entanto, não lhe passou despercebido o estupor que exibia. As bochechas queimavam pela proximidade do fogo ou pela emoção que devia sentir ao operar uma pessoa pela primeira vez sem o seu consentimento? Não ousou perguntar... O melhor era não saber mais, além do que seus velhos olhos cansados observavam. Com um passo lento, ele se aproximou de sua filha e depois de fazer uma breve revisão de suas roupas, confirmando as palavras de sua esposa, a cumprimentou.

?Bom dia, filha.

?Bom dia, pai ?ela respondeu.

Esgotado. Mary percebeu que seu pai estava bastante cansado, apesar de apresentar uma imagem decente e correta. Ela não tinha dúvida de que sua mãe o esperara na porta e antes que ele pudesse dar um pequeno passo dentro de sua casa, lhe teria dado a volta, teria arrumado a gravata e a camisa, enquanto lhe explicava o que tinha acontecido. Tinha certeza que quando ouviu lorde Giesler, Mary, doença e residência na mesma frase, nem mesmo seu cansaço o teria impedido de comparecer. Esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao imaginá-los divagando sobre sua conduta quando descobrisse a identidade do homem que devia salvar. Temeriam por sua vida? Não a sua, senão a do paciente. Se assim fosse, deveriam respirar tranquilos porque, nesse momento, não desejava matar ao presunçoso que a chamou de bruxa antes de lhe atirar uns rolos metálicos. Ao recordar esse dia, voltou a ficar tensa. Por que diabos havia guardado um dos objetos que lhe jogou? Por que o escondia sob um tecido de seda? E, como teve o descaramento de mostrá-lo? Queria humilhá-la ou talvez desejava que visse com seus próprios olhos a prova do delito? ¿ Não pensaria que o impacto do rolo originou sua doença, certo? Se acreditasse naquela hipótese absurda, era mais idiota do que pensava.

Enquanto ela divagava em silêncio, Randall atravessou o quarto para ficar ao lado de Philip, exatamente onde sua filha havia passado a noite. Seus dedos ainda estavam entrelaçados na alça da maleta, como se não quisesse se separar dela. Olhou novamente para Mary, depois contemplou o paciente e falou com sinais visíveis de medo:

?Bom dia, milorde. Desculpe a demora. Garanto-lhe que vim assim que fui informado por minha esposa. Como se encontra?

?Muito melhor, Sr. Moore ?Giesler respondeu um pouco confuso com a atitude distante que o médico lhe ofereceu a sua filha.

Mas claro, ele não sabia que ideias o casal considerou sobre Mary e sua maldade quando descobrisse a verdadeira identidade do paciente.

?Imagino que se encontra muito dolorido ?Randall disse depois de relaxar.

Pelo menos não tinha lhe arrancado a língua. Talvez tivesse adotado o comportamento de um médico e não o de uma mulher desprezada, como Sophia pensava. Ele nunca tinha visto sua esposa tão preocupada com a vida de alguém ou rezando para sua mãe criadora para mantê-lo seguro. Lentamente, ele se virou para a mesa e apoiou a maleta pesada.

?O normal após a intervenção que a Srta. Moore realizou ?respondeu com certo sarcasmo. Esperava que suas palavras eliminassem a possível inquietude do médico, mas não foi assim. A velha figura de Moore ficou tensa como uma corda de violino.

?Vou inspecionar a área ?lhe disse no momento em que suas mãos se libertaram da pesada mala de couro preto. Abriu-a e tirou uma tesoura. ?Tenho que tirar o curativo, milorde.

?Por quê? ?Philip retrucou estreitando os olhos.

?Porque preciso ter certeza do estado em que se encontra ?explicou depois de olhar para Mary rapidamente.

?Respiro, falo coerentemente e percebo facilmente a dor que irradia da ferida. Não tenho mais febre e me sinto muito mais forte do que antes. Isso não são sinais suficientes para confirmar que, graças à sua filha, me encontro bem? ?Apontou mordaz.

?Não se trata disso, Milorde ?comentou Mary se aproximando da cama. Mas parou o passo quando seu pai levantou a mão esquerda para ela.

?Tenho que confirmar que o trabalho que minha filha fez foi correto.

?Foi ?Philip garantiu categórico.

Mary não conseguia abrir mais os olhos diante da surpresa causada pelas palavras de lorde Giesler. O que ele pretendia agindo dessa maneira tão irritante? Recusaria a ajuda de seu pai? Por quê? O clorofórmio o deixou tão atordoado que não conseguia pensar com sensatez?

?Não duvido da capacidade da minha filha ?Randall expôs levantando o peito. ?Acredite quando lhe digo que colocaria a minha vida nas suas mãos sem hesitar. Mas caso não esteja ciente disso, Mary não possui a licença médica que lhe dá o poder de agir como tem feito. Se não trabalhou bem, se cometeu um pequeno erro, as repercussões futuras que teria seriam terríveis. Todo mundo falaria de sua ação impetuosa, o desastre que cometeu e a tragédia que Londres sofreria depois de perder um membro distinto da alta sociedade alemã. Quer que minha filha seja condenada por assassinato quando tudo o que ela fez por você foi um ato de misericórdia?

?Disparates... ?Giesler resmungou. ?Sua filha trabalhou perfeitamente. Ninguém falará sobre o que aconteceu hoje à noite aqui. Mas no caso hipotético de que aconteça, me tornarei seu feroz defensor.

?Não o fará se morrer ?Ela interveio mais espantada do que nunca.

Não havia dúvidas. Mary afirmou, depois de ouvi-lo, que os possíveis efeitos colaterais da anestesia eram horríveis. Todos os pacientes reagiam de maneira diferente: alguns pulavam sobre os colchões como se tivessem percevejos no corpo, outros gritavam como se vivessem no tempo de Neandertal, outros se tornavam crianças pequenas, que se consolavam chupando os dedos. No entanto, o caso de lorde Giesler foi a coisa mais insana que ela já vira. Ele só precisava sair da cama e empunhar uma espada, como se fosse um cavaleiro medieval, para proteger a honra de sua esposa!

?Penso como você, milorde. No entanto, tenho que verificar seu trabalho ?reafirmou veementemente. ?Posso cortar de uma vez os curativos ou deseja continuar essa conversa absurda? ?Acrescentou derramando sobre as tesouras e suas mãos um líquido incolor.

?Faça tudo o que precisa para confirmar o bom trabalho de sua filha ?disse finalmente.

Enquanto observava como rasgava as ataduras, Philip teve que admitir que Mary havia herdado o comportamento ousado de seu pai. Nenhum homem teria se dirigido a ele com insolência por temor a uma possível retaliação de sua parte. No entanto, lá estava ele, cortando o curativo, removendo o tecido de seu corpo e verificando o ferimento sem pestanejar depois de dar a entender que ele não estava em condições de pensar com lucidez.

?Você usou catgut[4] como fio de sutura? ?Randall perguntou sem olhar para ela enquanto sentia em volta do corte, confirmando que não havia deixado espaço ao costurá-lo. Se Sophia tivesse o acompanhado, descobriria que outra das habilidades de Mary era a costura, como ela o costurara com grande habilidade.

?Claro! ?ela exclamou se aproximando até ficar ao lado dele.

?Em que estado a encontrou? ?Perseverou, sem deixar de apalpar os arredores da ferida.

?Prestes a explodir. Felizmente, agi na hora certa. Mais algumas horas e seria tarde demais para ele... ?ela garantiu com firmeza.

?Como descobriu? ?Depois de fazer a pergunta, Randall se levantou, procurou uma pequena gaze na caixa de remédios, borrifou-a com antisséptico e colocou sobre a ferida.

?Os indícios eram evidentes. Mas confirmei ao apalpar-lhe a zona. Estava tão inchada como a do falecido Sr. Skinner. No entanto, Lorde Giesler teve mais sorte ?explicou antes de levantar lentamente o queixo e contemplar o rosto abatido do seu paciente.

?Se certificou de que não havia perfuração? ?Randall continuou perguntando sem se referir à comparação que fez entre pacientes.

Não era apropriado que repetisse tantas vezes que poderia ter morrido. Mas Mary, depois do que aconteceu com o Sr. Skinner, não conseguia pensar em mais nada. Por isso, agia sem pensar nas possíveis consequências.

?Sim. Antes de removê-lo, verifiquei várias vezes, mas não encontrei sujeira na superfície ?continuou explicando. ?Então, quando o coloquei na bandeja, confirmei que não havia poros.

?Como fez? Usou o método de Fizt? ?O pai perseverou enquanto pegava outro curativo para cobrir a ferida.

?Não, me baseei no método Moore ?continuou com diversão. Entendendo que seu pai não se divertia tanto quanto ela, continuou: ?Abri, procurei, encontrei, cortei, limpei, cauterizei e fechei ?Mary garantiu, finalmente endireitando as costas. Quando deduziu que seu pai enrolaria o novo curativo no abdômen do lorde, olhou para o mordomo e lhe perguntou: ?Shals, pode ajudá-lo? Meu pai é tão teimoso que acha que pode fazer isso sozinho.

Comentário que fez Philip sorrir, porque encontrou outra semelhança entre eles.

?Sim ?respondeu o mordomo avançando para eles rapidamente.

Randall deu o curativo à filha, colocou-se à direita e esperou que o empregado colocasse um travesseiro sob as pernas do senhor. Com a ajuda de ambos, as mãos de Mary se moveram agilmente sobre os quadris do paciente. Ao fazê-lo, descobriu que Philip a observava estranhamente. Não era angústia, nem raiva, nem desconforto, mas veneração, o que expressavam aqueles olhos tão azuis como os dela.

?Quanto de clorofórmio deu a ele? ?Ele perguntou depois de confirmar que o curativo se agarrava perfeitamente ao corpo. ?Levou em consideração o tamanho do paciente?

?Não no começo ?respondeu com um largo sorriso. ?Mas depois de ouvi-lo gritar, ao cravar a ponta do bisturi, rapidamente corrigi meu erro. Como pode ver, é a primeira vez que sedei um homem com a mesma compleição que um cavalo.

Esse comentário não agradou a Philip. Nem tampouco gostou de ser comparado a um cavalo. Não havia outro animal mais bonito? Uma águia não era adequada para ela?

?Quanto fenol usou?

?Tudo o que tinha na maleta ?Mary admitiu depois de se afastar de Shals e de seu pai. ?Tive que obrigar os empregados que me ajudarem e pulverizar suas mãos depois de lavá-las com sabão.

?Tenho certeza disto ?Shals comentou sorrindo. ?Graças à ordem da Srta. Moore muitos dos servos descobriu que sob a sujeira possuem uma pele tão branca como a madrepérola.

?Conheço o caráter de minha filha e tenho certeza de que ninguém poderia se aproximar sem seguir suas instruções à risca ?indicou Randall sorrindo pela primeira vez desde que apareceu.

?Quanto tempo levarei para me recuperar? ?Philip perguntou ao médico enquanto Shals pegava o travesseiro das pernas e o colocava sob as costas.

?Deve permanecer pelo menos dez dias em repouso ?respondeu. ?É vital não se mexa durante esse tempo. A sutura está perfeita e seria uma pena que, após um trabalho tão cuidadoso, arruinasse-a ao tentar se mover mais do que deveria. Precisará de ajuda para desempenhar suas funções vitais. Mas eu aconselho que, quando terminar, volte para a cama o mais rápido possível.

?Entendi que me recuperaria em quarenta horas ?Philip comentou olhando para Mary, que rapidamente desviou os olhos dele por não ter a decência de cobrir o peito na frente dela.

?Minha filha, como disse, fez um trabalho sublime, milorde, mas não um milagre ?afirmou enquanto pegava a alça da pasta com os dedos da mão direita e esboçava um sorriso largo. ?Vou visitá-lo todos os dias para observar sua evolução. Se a qualquer momento o vômito, a febre ou um desconforto inesperado retornar, peço que você me notifique imediatamente.

?A Srta. Moore nos indicou que deve tomar certos medicamentos para diminuir sua dor ?Shals apontou o dedo para o frasco de vidro que havia sobre a mesa redonda à sua esquerda.

?Forneceu o suficiente? ?Randall perguntou.

?Tem para três doses durante oito dias ?Mary admitiu.

?Perfeito. Quando terminar, se precisar de mais, eu mesmo os trarei... ?explicou o médico dando um passo atrás.

?Sr. Moore, antes de sair, diga ao meu mordomo o valor dos seus honorários. Penso que... ?Philip tentou dizer, mas quando viu o rosto de horror do médico, ficou calado.

?Não tem nada para me pagar, milorde. Como já esclareci, minha filha não tem a licença necessária para realizar esse tipo de trabalho e não posso, nem quero aceitá-lo.

?Insisto! ?Giesler exclamou tentando colocar os cotovelos novamente no colchão, um movimento que o fez grunhir de dor.

?É um asno! ?Mary trovejou desesperada ao observar a intenção do paciente. ?Meu pai não lhe disse que não pode se mover sozinho?

?Mary Moore Arany! ?Randall gritou ao ouvir como se dirigia ao lorde.

?Arany? ?Philip perguntou levantando a sobrancelha direita e sorrindo enquanto a observava corar.

?Cortesia da minha mãe, milorde ?respondeu franzindo a testa e dando ao pai um olhar carregado de represália.

?Um nome muito apropriado ?Philip sussurrou divertido.

?Deseja me fazer mais alguma pergunta? ?Randall interveio rapidamente quando percebeu que sua filha não continuaria mantendo uma atitude cordial por muito tempo.

?Não ?Giesler respondeu sem tirar os olhos dela.

Volátil. A palavra mais apropriada para descrevê-la era volátil. Tudo o que ele precisava descobrir era quando poderia pegá-la com a guarda baixa, para que não jogasse nada que pudesse usar como uma arma. Mas ele se preocuparia com isso mais tarde, justamente quando pudesse se levantar sem a ajuda de ninguém. Então ele a procuraria e agradecia pessoalmente pelo que havia feito por ele.

?Sendo assim, até amanhã ?Randall cedeu estendendo a mão.

?Até amanhã ?Philip respondeu, apertando a palma com aparente dificuldade.

?Mary... ?seu pai disse uma vez que estava ao seu lado ?vamos. É hora de lorde Giesler descansar com tranquilidade.

?Tenha um bom dia, milorde. ?Ela se despediu com tanta frieza que Philip sentiu sua alma congelar.

?Mais uma vez obrigado, Srta. Moore ?respondeu lentamente.

Mary lhe fez uma ligeira reverência e, sem dizer uma só palavra mais, caminhou atrás de Shals e de seu pai. No entanto, antes de fechar a porta, não pôde deixar de olhá-lo de novo. Esse íntimo cruzamento de olhares a oprimiu. Não entendia o motivo pelo qual sua mente lhe alertava que sua história com o lorde não terminaria naquele momento, senão que acabava de começar. Horrorizada ao pensar que voltaria a encontrá-lo, fechou a porta com rapidez e suspirou.

?Deve estar muito orgulhoso de sua filha ?Shals disse ao médico enquanto ambos caminhavam pelo longo corredor. ?Nunca conheci uma mulher tão valente.

?Valente ou demente? ?Randall respondeu.

?Não pensa que sua filha agiu corretamente? ?Shals insistiu confuso.

?Mary sempre age racionalmente, porém, desta vez não tenho tanta certeza disso. Você sabe que tipo de repercussão teria se tivesse cometido um erro?

?Erro? ?Retrucou Shals parando no patamar do primeiro andar. ?Não houve nenhum, Sr. Moore. Testemunhei o trabalho de muitos médicos e garanto-lhe que nunca vi uma pessoa trabalhar como ela.

?Não percebeu que é uma mulher e que não tem licença médica? ?Moore insistiu, impressionado com o apoio e o respeito que o criado mostrava a Mary.

?E? ?Shals perguntou olhando para ele incrédulo. ?Tenho certeza de que se ela tivesse atendido meu amo anterior, ele ainda continuaria respirando ?comentou antes de estender a mão para as escadas.

?Não lhe importa as opiniões que este ato de suposta valentia pode lhe causar? ?O pai insistiu.

?Não. E sobre esse assunto, como lorde Giesler esclareceu, não deve se preocupar. No entanto, lhe aviso que, após a brilhante atitude de sua filha esta noite, receio que ninguém nesta casa receberá, quando estiver doente, outro médico que não seja a Srta. Moore.

?Ela não é médica.

?Para nós sim, ela é ?Shals disse sem rodeios.

?Não falaria assim se a conhecesse melhor... ?Randall disse descendo o primeiro degrau.

?Acredite em mim quando digo que todos descobrimos o caráter afável da Srta. Moore ?Shals explicou divertido.

?De verdade? O que fez desta vez?

Enquanto desciam as escadas, o mordomo contou a ele o momento em que apareceu batendo na porta da residência. Randall não ficou chocado ao saber que jogou o casaco e que, sem a presença de um criado, foi para o quarto do paciente. Tampouco ficou surpreso quando Shals o informou que chamava os criados que pretendiam banhar seu senhor de bando de inúteis. Se tivesse agido de maneira diferente, o teria confundido. Mas apenas lhe descreveu o caráter típico de sua filha e seu desejo de salvar vidas. O mesmo que o seu. Esse reflexo lhe causou grande tristeza. Não era justo que a sociedade não permitisse que uma mulher desempenhasse o papel de um homem, apesar de ter mais conhecimento e habilidades do que eles.

?Srta. Moore, aqui está o seu casaco ?Shals comentou estendendo a roupa para ela.

Naquele momento, Mary arregalou os olhos e lançou uma maldição em alemão. Se virou rapidamente e, sem ouvir a repreensão que seu pai falou ao ouvi-la blasfemar, levantou o vestido com as duas mãos para voltar ao quarto.

Correu pelo corredor até chegar à porta do lorde. Por um momento duvidou se deveria bater ou não. Não o fez porque imaginou que, uma vez que estivesse sozinho e em silêncio, a morfina o teria entorpecido novamente.

Como deduziu, seus olhos estavam fechados e ele estava respirando calmamente. Não seria um problema se aproximar da mesa e levar sua maleta. Na ponta dos pés, atravessou a sala, ficou ao lado do paciente e sorriu quando viu que estava descansando tranquilamente. Sem fazer o mínimo barulho, se virou para a maleta, fechou-a e, ao se virar novamente, ficou sem fôlego quando descobriu que os olhos do homem se abriram e a olhava com uma intensidade desconhecida para ela.

?Desculpe, esqueci... ?Ficou calada ao ver que ele estendia a mão para ela enquanto balbuciava algo incompreensível.

Assustada, caso tivesse piorado durante o breve período de tempo em que permaneceu sozinho, deixou cair a maleta no chão e estendeu a mão esquerda. Mas esse medo se tornou perplexidade quando ele a puxou com tanta força que seus narizes se tocaram.

?É uma mulher fascinante, Mary Moore ?ele sussurrou. ?Fascinantemente inesquecível ?afirmou antes que seus lábios tocassem os dela suavemente.

A resposta de Mary não demorou a chegar. Se afastou rapidamente dele e, apesar do estado de nervosismo que sentiu quando foi beijada pela primeira vez, levantou a palma da mão direita e lhe deu uma bofetada.

?Você é um grosseiro e espero que fascinantemente me esqueça ?Disse antes de levantar o queixo, pegar a maleta, adotar uma postura arrogante e sair dali a grandes passos.

No entanto, uma vez que Mary fechou a porta, se apoiou nela, levou a mão com a qual lhe bateu no coração e suspirou. Por que deu um tapa nele? Por acaso não sabia que o clorofórmio ainda passeava por suas veias? Milorde ainda não estava lúcido e estava agindo sob os efeitos dos narcóticos. Seria uma tragédia para ela que recordasse o que tinha acontecido. Se fosse assim, seria um problema sério. Compaixão, um sentimento que não tinha desde que entendeu a amargura do mundo ao seu redor, brotou de suas entranhas. Mas desapareceu imediatamente ao ouvir uma grande risada vinda de dentro do quarto.

?Verdammter Schurke![5] ?explodiu antes de descer as escadas tão rapidamente quanto subiu.


***

?Sabe que não deveria se sentir tão orgulhosa pelo que tem feito, certo? ?Randall perguntou à filha quando ambos se acomodaram dentro da carruagem e depositaram as respectivas maletas no assento. ?A intervenção foi um sucesso, mas não deveria ter feito isso sozinha.

?Agi por instinto, pai ?ela respondeu olhando pela janela.

?Por instinto? ?retrucou levantando as sobrancelhas. ?Desde quando se deixa levar por esse tipo de coisas?

?Tinha uma enorme inflamação. Os vômitos que observei...

?Não pôde esperar sete miseráveis horas, Mary Moore Arany? ?o pai insistiu irritado ?Você parou para pensar nas consequências que teria se não tivesse trabalhado corretamente? Estamos falando de um lorde!

?Desde quando faz esse tipo de distinção social, pai? ?Respondeu, virando lentamente sua cabeça para ele para olhá-lo. ?Me ensinou que as doenças não têm piedade daqueles que as sofrem. Observa-se, se faz um diagnóstico, se age e quando tudo termina tal como se deseja, volta para casa satisfeito por ter salvo uma vida ?garantiu com firmeza.

?Nu! ?Randall gritou fora de si. ?Aquele homem estava totalmente nu! Como foi capaz de se manter de pé, Mary? Por isso corou ao me ver entrar? Sentia vergonha por estar diante de um homem nu?

?Ist das ein problem, Vater?[6]

?Sim. Para mim isso é um grande problema, filha ?Moore garantiu.

?Caso você não se lembre, desde que eu o acompanho, tenho visto muitos homens nus ?apontou com desdém ?e seu querido lorde não é diferente dos outros.

?Sabe o que acontecerá se alguém daquela casa espalhar que você operou seu senhor enquanto ele estava nu? Sua mãe nos matará, porque eles não falarão mais sobre o caráter azedo de sua segunda filha, mas sobre sua insolência e falta de decoro.

?Queria que fizesse a intervenção com ele vestido? ?Retrucou com raiva.

?Poderia ter estendido o lençol, como fizemos em muitas ocasiões ?Randall manifestou sem diminuir sua raiva. ?Mas não. Você não pôde pensar em uma coisa tão simples...

?Me preocupava mais com a sua vida do que descobrir sua aparência física ?declarou mordaz. Embora a avaliação obtida pelo corpo forte e robusto do lorde fosse mantida para si. Sem contar com a surpresa que teve ao ver, pela primeira vez, um sexo masculino de verdade. ?Não fiz um bom trabalho? Não lhe salvei a vida?

?Isso parece.

?Melhorará? ?Persistiu tenazmente.

?Espero que sim ?Randall comentou com um suspiro.

?Então... vamos esquecer o resto! ?Apontou séria.

?Acha que será tão fácil para lorde Giesler esquecer que uma mulher o viu nu?

?Oh, bem! ?Exclamou com um leve sorriso. ?Realmente acredita que é a primeira vez que se mostra dessa forma diante de uma mulher? Por acaso não lembra que é o melhor amigo de lorde Bennett? Não ouviu o que dizem sobre eles?

?Mary Moore Arany, não fale comigo com esse tom!

?Pai, não seja ingênuo, por favor. Certamente, dentro de algumas horas, quando o efeito do sedativo tiver passado, seu querido lorde Giesler esquecerá o que aconteceu e se concentrará em aplacar a dor que ele deve suportar. ?Disse antes de cruzar os braços e olhar pela janela novamente.

?E se isso não acontecer?

?O fará ?disse incisiva.

No entanto, ela sabia que não. Aquele homem miserável guardou um rolo seu debaixo de um tecido de seda, olhou-a com veneração, defendeu-a como um justiceiro e, para aumentar a lista de eventos horríveis entre eles, a beijou. Só esperava que o tapa o fizesse entender que era melhor esquecê-la se sonhava em viver mais alguns anos.


Capítulo V


?Não posso acreditar! ?Sophia exclamou horrorizada depois de ouvir a explicação do marido. ?Como pôde ser tão imprudente? Operar? Ela sozinha? Por que o fez?

Felizmente para sua filha, assim que chegou em casa, subiu as escadas e se refugiou em seu quarto. Sabia como sua mãe agiria quando ele lhe contasse tudo o que tinha acontecido e, como mulher inteligente que era, decidiu se refugiar do perigo. Mas ele não podia fugir como Mary...

Randall olhou para a sua esposa, ela estava andando de um lado para o outro da sala. O laço de sua bata branca se soltou com os movimentos bruscos e seus cabelos, geralmente lisos e suaves como a seda, se enrolaram ao não deixar de tocá-lo. Sua raiva era compreensível; Mary agiu impulsivamente, sem parar para pensar nas consequências que seu ato de caridade poderia lhe acarretar no futuro. No entanto, ele se sentia muito orgulhoso do trabalho de sua amada menina. Qualquer outra pessoa em seu lugar esperaria a presença de outro médico para corroborar o primeiro diagnóstico. Mas ela não precisava de uma segunda opinião e procedeu com a paixão que mostrava sempre que alguém precisava de sua ajuda. Era verdade que havia cometido uma grande imprudência, isso não podia discutir com Sophia, mas também deviam elogiar seu bom julgamento.

?O salvou ?disse depois de procurar por palavras tão chocantes que diminuíssem a raiva de sua esposa.

?O que disse? ?Ela retrucou, abrindo tanto os olhos que podia ver claramente a dilatação de suas pupilas.

?Nossa filha salvou sua vida ?respondeu calmamente.

?Randall Moore! Você ficou louco? Porque só assim entenderia sua postura inadequada ?gritou angustiada.

?Apesar da minha primeira impressão, duvido muito que lorde Giesler sobrevivesse a uma doença tão perigosa quanto essa. ?Adicionou sem hesitar.

?Mas... não acaba de me dizer que poderia ter esperado até sua chegada? ?Enfatizou frenética. ?Que posição vai tomar, Randall? Sim ou não? ?Acrescentou, estreitando os olhos e colocando as duas mãos na cintura.

?Na minha opinião, penso, acredito e calculo que...

?Não comece a falar comigo dessa maneira, ou juro por Morgana que dormirá no sofá por um mês inteiro! ?O ameaçou.

?A posição é sim. Apoio fortemente a decisão de Mary. É, sem dúvida, o melhor trabalho que já vi em anos ?assumiu orgulho. ?Você acredita que tive que olhar duas vezes para a sutura que ela fez na incisão? Era perfeita!

?Mary... o costurou? ?Retrucou impressionada. ?Mas se não sabe nem enfiar fio na agulha!

?Bem, te garanto que sabe fazê-lo, e muito bem. ?Recostou-se na cadeira, subiu os óculos pela ponte de seu nariz, sorriu levemente e olhou ternamente para a esposa. ?No fundo, acho que ela estava certa...

?Então, agiu corretamente, certo? Lorde Giesler não retaliará contra ela, correto? ?Sophia insistiu desconcertada. O que devia fazer? Castigá-la durante dois anos em seu quarto ou deixar Madeleine preparar um daqueles bolos de que tanto gostava?

?Como já expliquei várias vezes, este tipo de doença é imprevisível... ?começou a explicar enquanto se levantava do cômodo sofá. ?É verdade que, se a fossa não explodisse por dentro, a intervenção poderia ser adiada até minha chegada. Mas como não podemos saber o que está acontecendo sob a nossa pele, até abrirmos, possivelmente sua predição se cumpriria em minutos. Devo esclarecer que essas inflamações são diferentes em cada paciente. Lorde Giesler sofreu dois dias com dor, febre e vômito. O Sr. Skinner faleceu antes que a febre aparecesse.

?Pelo amor de Morgana! Tinha esquecido o Sr. Skinner! ?Exclamou levando as mãos ao rosto. ?Mary ainda não superou, certo?

?Nunca se esqueça da primeira pessoa que morreu em suas mãos, querida. Sem dúvida, foi o pior momento de sua vida e imagino que foi por isso que ela agiu sem o meu consentimento. Reviveu aquela noite e concluiu que tinha que salvar a vida de lorde Giesler, apesar das consequências que teria no futuro.

?Se certificou de que lhe não tirou nada do corpo, exceto a abençoada fossa? ?Perguntou um pouco mais calma. Se fosse verdade, se a sua filha tivesse acalmado a consciência e descansado em paz depois da sua loucura corajosa, não a castigaria, mas também não a recompensaria. Se elogiasse Mary, estava perdida, porque nunca ouviria um conselho sem lembrá-la de que seus motivos alcançaram um tremendo triunfo. ?Depois do que aconteceu entre eles há alguns dias, poderia ter removido metade do estômago para se vingar.

?Que loucura você disse, querida! ?Randall exclamou com uma risada nervosa. ?Como nossa filha faria esse tipo de bobagem?

Mas a verdade era que não o confirmou e foi um descuido de sua parte. Estava tão preocupado em proteger a imprudência de Mary que não notou os restos que havia na bandeja. Ele esperava que sua filha tivesse esquecido a vingança que jurou realizar contra o homem que a chamara de Medusa e que, como sua esposa disse, não aproveitou o momento para lhe arrancar qualquer órgão vital com suas próprias mãos.

?E, como estava quando entrou no quarto dele? ?Perseverou sua esposa.

?Bastante bem ?admitiu finalmente respirando tranquilamente. Se lhe tivesse faltado algo importante, não teria aberto os olhos. ?Bastante bem ?repetiu para garantir sua própria dedução. ?Eu tenho que confessar que seu estado lúcido me deixou perplexo. Em outros pacientes, a recuperação tem sido muito lenta. No entanto, lorde Giesler estava ciente o tempo todo e raciocinava claramente.

?Suponho que, quando lhe anunciou que foi nossa filha quem lhe realizou a intervenção, gritou horrorizado como fez na manhã em que ela lhe atirou os tubos metálicos ?Sophia comentou olhando-o sem piscar.

?Pois não. O oposto. lorde Giesler a defendeu veementemente.

?A defendeu? ?Sophia perguntou boquiaberta.

?Não só ele, mas também o seu mordomo principal. Juro que pensei que o lacaio jogaria um dos castiçais na minha cabeça quando eu a repreendi na frente deles ?explicou Randall estendendo a mão para a esposa.

Tinha que descansar. Estava exausto demais para enfrentar o dia e, como sua amada esposa se acalmara um pouco, era hora de levá-la para o quarto e que o médico assumisse o papel de doente. O que mais um marido poderia querer depois de uma noite sem descanso e a situação que viveu na residência do lorde? Apenas um: adormecer nos braços de sua esposa.

?Lhe explicou tudo o que acontecerá se descobrir que Mary o atendeu? ?Sophia insistiu, aceitando aquele braço.

?Compreendeu-o rapidamente e isso lhe causou um terrível aborrecimento ?ele indicou, abrindo a porta.

?A quem? Lorde Giesler ou o mordomo? ?Ela insistiu sem esclarecer.

?Para ambos. O servo me avisou que ninguém na residência procuraria outro médico além de nossa filha e lorde Giesler disse que se tornaria um feroz protetor de Mary se alguém ousasse reprovar seu bom trabalho.

?O que ele disse? ?Sophia retrucou, arregalando os olhos novamente.

?Que ele se tornaria seu feroz protetor ?Randall repetiu.

?Quanto clorofórmio Mary lhe forneceu? ?Insistiu sua esposa lhe ajudando a subir o primeiro degrau da longa escadaria.

?Quase um quarto do frasco! Você não acha engraçado? Lorde Giesler permanecerá sedado por uma semana inteira! ?Randall comentou com diversão. ?Talvez, quando seu corpo eliminar toda essa quantidade de soníferos, não se lembre que Mary o operou nu ?acrescentou rindo sem parar.

?Como disse? ?Trovejou Sophia parando abruptamente nas escadas. ?Nossa filha viu aquele homem nu?

?Eu disse isso? Não lembra querida.

?Randall Moore... Fale agora mesmo! ?E no meio daquela escada, Sophia se afastou do marido e cruzou os braços.

?Não esteve sozinha em nenhum momento. A irmã do paciente e mais de dez servos presenciaram tudo ?ele comentou, sem saber se devia correr, como Mary havia feito quando chegou, ou voltar para a sala e se trancar até que a nova raiva de sua esposa passasse. ?Portanto, não pode nem deve pensar que eles tiveram um momento íntimo. Todos ali presentes...

?Nu?! ?Esbravejou. ?Minha filha viu aquele homem nu? E acha que lorde Giesler se esquecerá disso? Que ninguém naquela casa comentará que nossa filha, a quem esperamos casar algum dia, teve a indecência de ver um homem nu? ?Sua garganta ficou tão fina e alongada quanto o pescoço dos patos do lago quando via Josephine aparecer com a arma.

?Sophia... querida... Talvez... eu... ?tentou dizer.

?Mary Moore Arany! Nem pense em dormir! Temos que falar! ?Gritou depois de levantar a camisola e subir as escadas num tropel.

?Graças a Deus... ?suspirou o médico retrocedendo muito lentamente os degraus que tinha subido acompanhando sua esposa.

Depois de olhar para o primeiro andar, voltou ao seu escritório. A escolha mais acertada para ele era descansar em um sofá duro, em vez de suportar a disputa que mãe e filha teriam durante as próximas horas...


***

?Se sente bem, milorde? ?Shals perguntou a Philip quando apareceu novamente no quarto.

?Já foram embora? ?Ele perguntou, fazendo um grande esforço para permanecer um pouco inclinado.

?Sim. O Sr. Randall e sua filha voltaram para casa. Como não tinham carruagem, tomei a liberdade de lhes oferecer uma de sua senhoria ?informou-o enquanto caminhava em sua direção.

?Nesse caso... me sinto horrível! ?Trovejou. Finalmente descansou a cabeça no travesseiro e olhou para o teto. ?Isso dói muito!

Shals, confuso com a mudança radical na saúde de seu mestre, pegou o frasco de comprimidos e retirou o que o médico recomendou.

?Pensei, ao vê-lo se inclinar e conversar com o médico, não estava se sentindo tão mal... ?disse aproximando as cápsulas para a boca de Philip. Ele os colocou na língua e lhe aproximou um copo de água.

?Se lembra da infecção que sofri durante minha primeira viagem às ilhas do Caribe? ?Estalou, depois de engolir o medicamento.

?Sim, milorde. Jamais o vi tão fraco e doente. Devo lhe confessar que pensei que não voltaria a Londres... vivo ?explicou consternado.

?Bem, isso é pior... ?suspirou, jogando de novo sua cabeça sobre o travesseiro.

?Quer que chame o Sr. Moore? Com certeza ele saberá...

?Não! Nem pense em fazê-lo! Não quero que ele se preocupe com nada. Certamente culparia sua filha pelo meu desconforto e não vou consentir que isso aconteça.

?Claro, milorde. Tem toda a razão. Depois de presenciar a repreensão contra a Srta. Moore, tenho muito medo de que ela assuma a responsabilidade por tudo e, se naquele momento acalmei o desejo de lhe acertar a cabeça com um dos castiçais que tem na lareira, não duvidarei da próxima vez. Como ele ousa repreendê-la assim? Aquela menina o salvou! ?Comentou com ira. ?Se o próprio pai não é capaz de apoiá-la, quem o fará? ?Acrescentou.

?O Sr. Moore é um fiel defensor de sua filha, junto com o Sr. Flatman. Mas acho que se assustou ?Philip refletiu. ?Talvez seja a primeira vez que ela agiu sem o seu consentimento.

?Estava em perigo, milorde. Ela agiu prontamente porque deduziu que poderia morrer ?informou. ?Depois de ver os seus vômitos, ela colocou as mãos sobre o seu corpo e foi apalpando lentamente a área em que foi operado.

Tocando? Até que Shals não fez referência a sua nudez, ele não reparou nela. Mary havia tocado seu corpo e ele estava inconsciente naquele momento? Isto era imperdoável! Desde quando não sentia as carícias de uma mulher? Ele teria ficado excitado ao notá-la? Com certeza que sim. Seu membro agia por conta própria, sem a necessidade de uma ordem mental. Teria deixado em um bom lugar? Como ela reagiu? De repente, um sorriso de orgulho cobriu seu rosto cansado. Até agora, nenhuma de suas amantes se queixara de sua aparência física; era mais, elas o exaltavam e o admiravam. Mary teria olhado para ele dessa maneira também? Que conclusão havia chegado? Poderia obter a resposta através de Shals, mas precisava ser cauteloso, se não quisesse na sua, os candelabros que queria jogar na cabeça do pai. Bem, por causa da emoção com que ele falou sobre ela, sua admiração era notável.

?Por que minha irmã a chamou? ?Mesmo sabendo a resposta, decidiu começar do início, para descobrir todos os detalhes.

?A Sra. Reform decidiu aparecer na casa dos Moore após seu último estado febril ?Shals começou a explicar, evitando comentar que ele estava gritando o nome da menina como se não houvesse outra mulher no mundo. ?Como já descobriu, o médico não estava em casa e sua filha apareceu. Devo esclarecer que, quando ela entrou e jogou seu casaco na minha cara, eu queria chutá-la daqui ?explicou. Seus lábios se estenderam para mostrar um sorriso travesso enquanto aceitava o convite de seu amo para se sentar na mesma poltrona onde ela passou a noite toda. ?Mas sua irmã impediu que o fizesse. Sem demora, a jovem subiu as escadas de três em três com a maleta na mão e entrou no quarto sem avisar. Foi então que ela encontrou três dos criados o agarrando. Eles estavam apenas tentando cumprir a ordem da Sra. Reform: dar-lhe um banho gelado. No entanto, foram eles que ficaram congelados quando a Srta. Moore gritou lhes chamando de bando de inúteis.

E naquele momento, Philip soltou uma risada que lhe causou mais mal do que diversão.

?Continua ?encorajou-o enquanto ele respirava fundo e colocava a mão esquerda em direção ao curativo.

?Obrigou-os a colocá-lo de novo sobre a cama. Logo se aproximou e começou a inspecioná-lo, tal como lhe disse. Quando ela anunciou à Sra. Reform que deveria operá-lo, sua irmã não deu crédito a suas palavras. Tentou convencê-la, mas, como entendi, é difícil para a Srta. Moore mudar de ideia sobre algo de que ela tem plena certeza.

?E? ?Giesler perguntou sorrindo com mais cuidado.

?E em menos de uma hora, você estava sobre uma mesa sob o olhar atento da jovem médica. Prometo que o tempo se tornou eterno, mesmo que a menina não tenha parado de falar sobre pesquisas que fizeram sobre a doença que sofria. Senti que ela estava narrando para que a Sra. Reform, que estava sentada na poltrona perto da lareira desde o momento em que o viu sangrar, relaxasse. Mas estávamos todos em tensão até que saiu de suas entranhas, o que o prejudicava. Então ela o costurou e desceu para a cozinha para o café da manhã acompanhada por sua irmã.

?Conseguiu comer alguma coisa depois de ver o que guardo dentro de mim? ?Retrucou estupefato pela frieza de Mary.

?Sim senhor. A Srta. Moore tomou duas xícaras de café, três torradas e um ovo escalfado, enquanto a Sra. Reform não conseguia nem terminar o chá que lhe serviram. ?Apontou com alguma diversão.

?Fascinante! ?Giesler exclamou depois de suspirar e encarar o teto.

?Pode acreditar! ?Shals respondeu se levantando da cadeira. O momento que ele esperava havia chegado e, como sabia que reação seu senhor teria, era melhor se afastar dele, porque, apesar de se sentir tão mal, quando ouvisse o que planejava dizer, conseguiria se levantar e estrangulá-lo. ?É uma lástima que não possamos falar sobre o que aconteceu aqui esta noite, milorde.

?Por quê? ?Ele perguntou, estreitando os olhos.

?Essa menina é um verdadeiro tesouro ?declarou aos pés da cama ?e é uma pena que ninguém saiba como é realmente.

?Por quê? ?Repetiu grosseiro.

?Por que... que homem não gostaria de se casar com uma mulher que o libertaria da morte sem hesitar por um segundo? Se os solteiros desta cidade conhecessem o dom daquela jovem, o Sr. Moore teria, às portas de sua casa, inúmeros pretendentes esperando impacientemente ?comentou com entusiasmo.

?Daqui não sairá nem uma palavra! ?Philip garantiu, se levantando apesar da dor que sentia. ?Dei minha palavra a seu pai e a cumprirei!

?Oh, milorde! Não me interprete mal ?Shals se apressou em responder. ?Juro que ninguém nesta casa comentará nada. Todos entenderam que suas posições estão em risco se não conseguirem manter a boca fechada ?acrescentou com aparente tensão.

?Perfeito... ?manifestou Giesler deitando-se de novo.

?Se a sua senhoria não requer dos meus serviços, irei ao...

?Mais uma coisa antes de sair ?interrompeu.

?Sim? ?Ele perguntou, provando o sabor da vitória.

?Quem, dentre todos os que trabalham para mim, pode fazer um trabalho que exige muita discrição?

?Todos, milorde. Ninguém desta casa...

?Bem, escolha um deles e que vigie a Srta. Moore enquanto eu não posso sair deste maldito quarto ?ordenou bruscamente.

?Pensa que pode estar em perigo? Que alguém pode machucá-la? Não me parece que precisa de proteção, senhor. Ela...

?Não me ouviu bem, Shals? Preciso chamar outro lacaio para executar minha ordem sem questionar? ?Ele insistiu, olhando-o ferozmente. ?Eu disse que alguém a vigie e me conte tudo o que ela faz.

?Com certeza, milorde! Agora mesmo me coloco a isso ?ele respondeu antes de fechar a porta.

Quando seu mestre não pôde olhar para ele, sorriu amplamente. Havia entendido a indireta? Ou melhor, devia defini-la como uma grande direta? O que quer que fosse, o plano começou melhor do que esperava...

«Um marido? Pretendentes?»

Philip cerrou os punhos e bateu no colchão. Maldita fosse a sua doença e a incapacidade de se levantar da cama! Quanto tempo o Sr. Moore havia dito que deveria permanecer deitado? Um mês? Bem, ele se recuperaria na metade do tempo! Depois de esperar que Bennett partisse para sua casa no campo com três das irmãs, depois de perguntar sobre ela e ficar impressionado por esse caráter grosseiro e brilhante intelecto, depois de vê-la com aquela camisola e de guardar um objeto seu, fazendo dele seu amuleto... Permitiria que outro homem aparecesse em sua vida? Não, absolutamente não! Se um homem ousasse aparecer na residência Moore lhe pedindo em casamento... lhe arrancaria a cabeça. Mary Moore Arany era sua Medusa, sua bruxa e lutaria para tê-la, mesmo que tivesse que rastejar como uma minhoca pelas ruas de Londres!


Capítulo VI


Não era justo! Por que ela deveria ficar de castigo por duas semanas por uma coisa tão absurda? Sua mãe esqueceu o prodígio que havia feito: salvar a vida de um homem, e só se concentrou no fato de que ela o vira nu. E como iria operá-lo? Com uma venda nos olhos?

Mary bufou pela décima quinta vez e sentou no parapeito da janela. Ela só estava trancada em sua casa por cinco dias e os primeiros sinais de uma loucura monumental apareceram: ela não havia trocado a camisola, nem escovado os cabelos nem uma vez, sorria sem motivo, andava pelo quarto procurando teias de aranha para soprá-las, passava o dedo pelas paredes, para sentir a aspereza delas. Como poderia suportar tanta crueldade por tanto tempo? Ela olhou para fora e bufou. Nos dias anteriores, não teve vontade de sair de casa, porque a chuva a ajudou a superar sua agonia. Mas naquela manhã, para sua desgraça, as nuvens se dissiparam do céu e o sol, apesar de frio, se mostrou em todo o seu esplendor, temperando levemente a cidade. Ela abraçou as pernas, cujos joelhos tocavam seu peito, e focou os olhos na cama de Anne. Senti falta dela. Ansiava as conversas e presença da mais velha de suas irmãs. Certamente que, se estivesse lá quando sua mãe apareceu no quarto com raiva, rapidamente aplacaria sua ira. No entanto, ela teve que enfrentar sozinha e, por mais que insistisse em que não havia reparado naquele corpo masculino, o olhar reprovador de sua mãe expressava que não acreditava nela.

E estava certa...

Como não admiraria um corpo assim? Se era praticamente perfeito! Como admitiu naquela noite, algo que seu cérebro lembrava como se tivessem passado mil anos, Lorde Giesler merecia ser estudado como um exemplar do Homo sapiens perfeito. Não tinha dúvida alguma de que, se tivesse vivido na pré-história, seria o melhor caçador. Caçador? Não! Ele seria o chefe de alguma tribo! Mas de uma em que haveria apenas mulheres. Sim, tinha certeza de que, antes de abrir os olhos, na chegada de um novo dia, ele teria à sua frente mais de dez quadris levantados, esperando serem usados para gerar novos filhos, novos chefes, novos homens com um físico parecido ao de seu procriador. E se tivesse vivido na era grega! Ah, certamente teria sido a musa de centenas de escultores! E os homens o perseguiram... e as mulheres!

Irritada, por compará-lo em diferentes épocas e em situações semelhantes, enrugou a testa e bufou. Era verdade que ele tinha um físico digno de uma divindade: seus braços, pernas e aquele peito duro e forte lhe davam essa condição. Mas... por que deveria notar tanto algo que para ela era trivial? Sempre pensou que, se encontrasse um homem que estivesse mais do que disposto a suportá-la, seria inteligente, um tanto tímido e muito sensato. Lorde Giesler não era nada disso! Tímido? Hah! O próprio canalha fez um grande esforço, comprometendo seu bom trabalho, para beijá-la! Havia sensatez nesse ato? Não, claro que não! Isso já lhe mostrava que o homem não era nada racional. Se tivesse sido, não a teria beijado nem teria feito um sacrifício desnecessário para obter, como presente, um bom tapa. Essa conclusão a levou a outra característica que não possuía: inteligência. Que pessoa inteligente faz um plano tão absurdo para se aproximar dela e beijá-la?

Mary levou a ponta dos dedos da mão direita para a boca e sorriu. Pensou, em algum momento de sua vida, que o cavalheiro que a beijasse pela primeira vez, receberia em troca o impacto de sua mão? Não. Mas também não achava que alguém se atreveria a fazê-lo. Quem iria desejar uma mulher que pudesse matar com um olhar e com algum outro remédio que carregasse em sua maleta? No entanto, mesmo que não quisesse admitir, gostava de se sentir... fascinantemente inesquecível. Foi isso que lorde Giesler lhe confessou antes que pudesse estar consciente do que estava acontecendo ao seu redor. Talvez não tenha antecipado seu plano selvagem, porque ainda estava perturbada ao encontrar um de seus rolos metálicos armazenados como se fosse um tesouro. Se seu pai não tivesse entrado no quarto naquele momento, ela o teria pegado e o teria jogado de novo, para que não esquecesse quão fascinantemente doloroso poderia ser um impacto semelhante.

Irritada, não apenas pelo castigo, mas por se concentrar novamente em lorde Giesler, ela pulou no chão e se afastando da janela. Não deveria eliminar tudo o que sua mente havia cultivado desde anos atrás para preencher essas lacunas mentais com bobagens sobre os homens. Ela havia determinado, desde que tinha uso da razão, que não aceitaria se casar com um, pois todo seu mundo se tornaria trágico. Que marido permitiria que ela fosse às reuniões médicas? Que marido íntegro aceitaria que sua esposa abandonasse a cama para acompanhar seu pai a uma urgência médica? E, que homem suportaria que sua esposa o substituísse por um bom livro? Nenhum! Não nasceu homem capaz de lhe oferecer a vida que esperava! Por causa disso, não pensava, nem procurava um cônjuge. A decepção destruiria as duas vidas, os problemas apareceriam: discussões, raiva, gritos, mentiras, infidelidade, tristezas, decepção e, após anos e anos sofrendo uma agonia infinita, a morte chegaria. A dele, é claro, porque ela não planejava morrer até os noventa anos, pelo menos...

Nervosa, pela agonia dessa prisão obrigatória, ela começou a andar pelo quarto até fixar o olhar na poltrona ao pé da cama. Como lhe tinha ocorrido uma ideia tão descabelada? Não achou que era suficiente castigá-la sem sair de casa e não permitir que ela lesse um único livro que também lhe impunha uma tarefa tão absurda? Jamais tocaria aquele bastidor, nem passaria o tempo bordando! Mas... como pensou que ela costuraria? Em que momento da sua vida pediu que lhe dessem linhas e agulhas? Colocou as mãos nas têmporas e apertou-as, como se desse modo desaparecesse uma dor de cabeça inexistente.

Era tudo culpa dele! Desde que lorde Giesler apareceu em sua vida, esta havia se transformado. E agora, embora não soubesse nada sobre seu paciente há vários dias, porque sua mãe avisou seu pai que, se ele passasse informações, iria dormir para sempre em seu escritório, continuava incomodando-a.

Estava prestes a pegar o pano comprado para bordar, o que poderia servir de colcha para a cama e fazê-la em farrapos quando ouviu barulho do lado de fora. Madeleine não teria pensado em sair, certo? Como superaria a má sorte de que, embora ela precisasse de sua presença, para que sua loucura não aumentasse, a irmã mais nova de suas irmãs decidisse enfrentar sua timidez saindo para a rua. Desesperada, correu para a janela com tanta pressa que sua testa alcançou o vidro antes que o resto do corpo. Seus lábios desenharam um sorriso enorme, o primeiro que mostrava desde que sua mãe fechou a porta antes de lhe gritar que queimaria seus livros se a desobedecesse. Viria por ela? Havia decidido descobrir o que tinha acontecido para não acompanhar seu pai até a casa do seu irmão? Nesse caso, agradecia a... seja lá o que todos acreditassem, que se apresentasse. Não lhe disse que havia se tornado sua primeira admiradora e que os Giesler a protegeriam? Bem, estava com sérios problemas e precisava dessa proteção... imediatamente!

Sem esperar para saber por que ela apareceu em sua casa, foi ao armário e procurou um de seus vestidos. Embora Shira logo aparecesse, porque sua mãe a obrigaria a chamá-la, para que a Sra. Reform não descobrisse o que havia feito com a filha, ela não desejava demorar nem um minuto.


***

Continuava sem acreditar no que estava fazendo...

Quando um servo de Giesler apareceu em sua casa, às oito horas da manhã, avisando-a de que deveria aparecer na casa de seu irmão o mais rápido possível, quase morreu de um ataque cardíaco. Pensou que tinha piorado, e isso que na tarde anterior confirmou que seu estado de saúde havia melhorado. Preocupada, ela começou a dar ordens a todos os empregados da casa, porque quando ela anunciou ao marido que deveria ficar cuidando dos filhos, ele lhe lembrou que tinha uma reunião importante e que não podia atrasar. Sem Trevor... Teve que procurar outras alternativas e preparar sua casa em uma hora! E para que? Para aparecer no quarto de Philip e descobrir que ele não estava doente, mas que teve uma ideia maluca e que precisava de sua ajuda.

?Preciso que vá vê-la ?disse-lhe assim que entrou.

?A quem? ?Ela perguntou erguendo as sobrancelhas. Se lhe pedisse que falasse com alguma de suas amantes, arrancaria seus olhos naquele momento.

?Mary.

Bem, isso a relaxou muito, tanto que ela caminhou lentamente pelo quarto para se sentar na beira da cama e mostrar um leve sorriso.

?Por quê? ?Insistiu em descobrir.

?Sei que algo aconteceu com ela. O Sr. Moore se recusa a falar sobre ela toda vez que toco no assunto e fico surpreso que, depois do que fez, não esteja interessada em descobrir como estou. ?Philip admitiu com angústia.

?Talvez, apenas talvez, não queira saber nada sobre você. Não pensou nessa possibilidade? ?Valeria afirmou com mordacidade.

Estava brava com o grande ego de seu irmão, odiava que fosse tão vaidoso. Era verdade que, para mulheres solteiras, casadas, viúvas e até idosas, ele era descrito como um homem encantador, elegante e sedutor, e com um porte digno de um deus, mas isso carecia de importância. No entanto, por causa disso, seu irmão não pensava em procurar uma esposa digna de um barão e apenas desejava estar nos braços de amantes desavergonhadas. Valeria estava muito preocupada com seu futuro e essa preocupação aumentou depois de ler a última carta que o advogado de seu avô enviou. Ele informou que sua saúde piorou e pediu que ela chamasse a sabedoria de seu irmão. A recusa de Philip estava começando a ser perigosa. Se ele não reivindicasse o título de família, a alma de seu pai não descansaria em paz...

?Já que não posso fazer outra coisa durante o dia exceto pensar, também ponderei essa ideia ?declarou zangado. ?Mas sei que essa não é a resposta. Uma mulher como ela, tão apaixonada, não se pode esquecer, da noite para o dia, a evolução da pessoa a quem salvou da morte.

?Talvez o pai a mantenha informada e ele precise permanecer em silêncio ?Valeria ofereceu.

Embora temesse muito que essa não fosse a resposta certa também. O pouco que sabia de Mary se assemelhava a conclusão de Philip: era apaixonada por seu trabalho e duvidava muito que desconsiderasse seu estado de saúde facilmente, apesar do fato de que, por causa do rosto que colocou quando lhe anunciou na carruagem seu nome, mostrou mais ódio do que misericórdia.

?Há cinco dias que não sai de casa ?Philip anunciou.

?Como sabe? ?Valeria perguntou, arregalando os olhos.

?Encarreguei a tarefa de protegê-la a um de meus servos ?ele declarou, evitando expressar em seu tom mais ansiedade do que deveria mostrar à irmã. Se descobrisse que tinha algum interesse nela, começaria a planejar um casamento, forçaria-o a recuperar a baronia, iria enviá-lo para a Alemanha e, quando voltasse, se tornaria um homem que não desejava ser.

?Proteger ou espioná-la? ?O sorriso malicioso que seus lábios esboçaram, fez Philip entender que todos os seus esforços para não revelar um interesse especial por Mary eram um fracasso.

?Protegê-la ?resmungou. ?Tenho que velar por sua honra. Depois do que fez por mim, não vejo justo que corra perigo...

?Que perigo poderia ter? ?O interrompeu, se levantando da cama. ?Alguém desejaria matá-la por salvar sua vida? Se essa cidade descobrisse o que fez, seria valorizada tal como merece e eles parariam de vê-la como um pária. Sabe quantos homens estariam interessados nela? ?Insistiu com ele. ?Possivelmente, você não está fazendo nenhum bem em esconder o segredo. Talvez deveria...

?Não! ?Rosnou. Em seguida colocou a mão no curativo e apertou para aliviar a dor. ?Não é isso que quero!

?Bem... Diga-me por que me fez sair de casa a essa hora e ter que fazer o trabalho de um dia inteiro em uma hora ?Valeria murmurou.

?Quero que descubra o que acontece com ela. Preciso saber por que não saiu de casa durante esses dias.

?Não pensou que a chuva tivesse algo a ver? ?Soltou, um pouco brava.

?Mary gosta dos dias chuvosos e nem um dilúvio a impediria de sair de casa para comprar os folhetos científicos que coleciona.

?E você sabe tudo isso por que...

?Porque Logan me pediu ?declarou.

?Bennett está interessado nela? ?A vida poderia dar-lhe um chute mais forte em seu traseiro? Se seu melhor amigo tivesse alguma intenção na mulher, seu irmão não intercederia, mesmo que estivesse apaixonado. Mas... Philip poderia se apaixonar?

?Não ?respondeu com um sorriso. A irmã dele tinha que mascarar melhor tudo o que pensava. Ele ainda não entendia como tinha sido tão boa em jogar cartas com Trevor, quando não era capaz de dissimular o que passava em sua cabeça. Não havia dúvida de que seu cunhado era capaz de fazer qualquer coisa para fazê-la feliz. ?Não, Logan está interessado na primogênita das Moore. Precisava descobrir como poderia se aproximar dela sem a interrupção das outras, então me pediu para descobrir tudo o que podia sobre as Moore.

?E era de vital importância que descobrisse seus gostos... ?Valeria apontou ironicamente. Philip assentiu. ?Então, como choveu, o que ela ama, e seu lacaio lhe disse que ela não saiu de casa, você concluiu que algo sério aconteceu com ela.

?Mary não pode sobreviver sem esses artigos médicos. Somente uma doença, que a obrigue a permanecer em sua casa, pode impedi-la de comprá-los. ?Garantiu preocupado.

?Quer que me apresente na residência Moore e descubra o que aconteceu? ?Philip assentiu. ?A troco de que?

?Vai me chantagear, Valeria? ?Retrucou, sem saber muito bem se estava com raiva ou orgulhoso do sangue cigano materno que corria por suas veias. ?É capaz de impor condições a um irmão que te ama e não pode se defender sozinho?

?Se Martin me pedisse, faria sem pensar um só segundo. Mas você ?ela apontou um dedo ?não é ele. Então, sim, vou chantagear você, é o único idioma que você entende.

?O que quer? ?Ele disse depois de subir o lençol até o pescoço.

Medo, sua irmã lhe dava medo, tanto que ele usou o lençol como escudo. Se não errasse em seu palpite, levaria pouco tempo para lembrá-lo de que deveria...

?Na semana passada, recebi uma carta do advogado do nosso avô. ?Philip rosnou quando a ouviu. ?Ele queria nos avisar sobre sua saúde. Aparentemente, sua doença piora e não demorará muito...

?Não! ?Gritou. ?Esqueça esse absurdo, Valeria! Já te disse mil vezes! Não quero!

?Tem razão ?ela disse cruzando os braços ?você me disse não mil, mas um milhão, mas deve admitir que a situação mudou.

?Por isto? ?Apontou com o queixo para a cintura. ?Isso não mudou nada. Minha cabeça ainda está saudável...

?Se tem algum interesse em Mary, deveria considerar a alternativa de se tornar um barão.

Ela nunca havia chamado sua atenção para o assunto, mas incluir ao nome da mulher na frase, ela o fez.

?Não tenho nenhuma intenção de torná-la mi...

?Então, deixe-me falar sobre o que aconteceu aqui. Quando todo mundo souber que realizou um milagre, porque o rumor se espalhará como pólvora, ninguém duvidará de sua grande habilidade. Será convidada para uma infinidade de festas, terá, antes de descer o último degrau de qualquer salão, o cartão cheio de danças e, talvez em um deles, encontre o homem adequado para se casar com...

?Eu disse que não! Maldita seja, Valeria! Não escuta quando falo com você?

Mas... por que diabos todos estavam pensando em encontrar um marido para Mary? Queriam que se levantasse antes de se recuperar? Ou estavam tirando sarro dele? Mary não estaria com ninguém, ela não dançaria com ninguém e ninguém, absolutamente ninguém, descobriria que adorava sentir as gotas de chuva em seu rosto! Lembrando daquele dia, quando pensava que estava sozinha, que ninguém poderia descobri-la, se estremeceu. Nunca na vida viu um sorriso de um anjo até que Mary, sem perceber sua presença, virou o rosto para ele e sorriu.

?Está me ouvindo? ?Replicou. ?Olha ?começou a dizer se aproximando novamente dele ?se pensou em torná-la uma de suas muitas amantes, acredite-me que não fará isso. Essa moça não consentirá uma humilhação semelhante. Lutou com unhas e dentes contra todos os infortúnios que lhe foram apresentados para aceitar uma coisa tão vil. Por acaso não se informou o que fazem os cavaleiros quando a veem, ou só tem perguntado sobre seus gostos?

?Posso garantir que sei muito bem do que falam. ?E Valeria não duvidou por como sua mandíbula endureceu e como seus olhos, azuis com o céu, ficaram escuros, como uma noite sem estrelas. ?Assim como também tenho que confessar que mais de um imbecil trocará de calçada quando a veja, se quiser manter seus bonitos dentes dentro da boca ?garantiu irritado.

?Você gosta! Tem interesse nela? ?Embora apenas parecesse uma pergunta, não era. ?Então, pense em uma coisa...

?Qual? ?Ele perguntou, erguendo as sobrancelhas loiras.

?O que você vai lhe oferecer Philip, que os outros não podem dar?

?Respeito e admiração ?respondeu sem hesitar.

?Oh, bem! ?Exclamou revirando os olhos. ?E pensa que isso será suficiente para ela?

?Sim ?garantiu com firmeza.

?Pois está equivocado! ?Gritou. ?Uma mulher quer ter ao seu lado um marido compreensivo, certo, mas também um lutador. Precisará de um homem que a apoie e que não lhe coloque obstáculos em seu caminho. Sabe qual é o caminho de Mary Moore?

«Mary Moore Arany», pensou Giesler.

?Qual, de acordo com o seu bom julgamento? ?Murmurou Philip.

?Tornar-se alguém que a sociedade não permite ?berrou. ?Não tem olhos em seu rosto, irmão? Realmente pensa que uma mulher que é capaz de deduzir a doença de uma pessoa apenas tocando nela e que tem a coragem de se envolver em uma operação, como ela fez com você, se conformará com um marido que lhe oferecerá respeito e admiração? Já tem um pai que o faz! Mary precisa de um marido para ajudá-la a alcançar o que ela sozinha não pode e... você conhece o paradoxo de tudo isso? Que, nesta maldita cidade, apenas um nobre pode pavimentar esse futuro. Conhece algum aristocrata que pode lutar nessa batalha social ao seu lado?

Silêncio... Por mais de um minuto, os dois irmãos permaneceram em silêncio. Valeria, entendendo que não havia conseguido nada, nem mesmo uma resposta negativa, se virou para a porta e a abriu de uma vez.

?Verá o que lhe acontece ?Philip pediu-lhe olhando para o teto ?e deixe-me pensar.

?Precisará de muito tempo para fazê-lo, querido irmão, pois até que não tenha adoecido, não foi capaz de fazê-lo.

?Ainda tenho dez dias para sair daqui. Quando o fizer, direi o que decidi ?ele garantiu.

Valeria não respondeu. Fechou a porta atrás dela com um forte estrondo. Não foi muito, mas foi mais do que suficiente. Se Philip tinha interesse em Mary, que disso não havia dúvida sobre a maneira de chamá-la quando a febre se apoderou dele, pensaria em como alcançá-la, porque, como lhe disse, ela não era uma de suas amantes que suspirava ao ver um corpo masculino perfeito.


?Bom dia, o que deseja? ?A voz de uma mulher, que não reconheceu, a fez voltar ao presente.

?Bom dia, sou a Sra. Reform. A Srta. Mary Moore pode me receber? ?Perguntou, oferecendo-lhe um sorriso terno e encantador.

?A Srta. ainda não saiu do seu quarto ?comentou Shira sem especificar em excesso. ?Mas posso anunciar à Sra. Moore que deseja visitá-la.

?Se fizer a gentileza ?comentou, entrando por fim no hall. Ofereceu-lhe o casaco e a empregada o pegou.

Depois que a mulher deixou o casaco no guarda-roupa à direita, ela caminhou para uma sala à esquerda. Enquanto informava a esposa do médico sobre sua presença, Valeria suspirou. Durante o trajeto, pensara na mudança de atitude de Philip. Repassou todos os gestos que seu rosto mostrava ao falar sobre Mary, até avaliou o tom de voz que ele usou nas palavras. Bem, uma coisa era certa; Mary era especial para ele e não suportava a ideia de que ela estivesse com outro homem. Agora tinha que se concentrar em aproximá-los sem levantar suspeitas e procurar um motivo eloquente pelo qual aparecera às onze horas na residência dos Moore.


Capítulo VII


Enquanto esperava a criada retornar, Valeria olhou para o primeiro andar. Se Mary permanecia em sua casa e não estava doente, pode observar, através de alguma janela, a chegada de sua carruagem ou até mesmo quando desceu dela. Se queria vê-la, logo apareceria no topo da escada, como na noite em que a conheceu. No entanto, essa alternativa diminuiu com o passar do tempo... Philip estava certo? Porque havia a possibilidade de que não estivesse em casa. Talvez tivesse que comparecer em outra emergência médica e, por isso, não havia vestígios da jovem. Mas essa ideia desapareceu rapidamente, porque ao entrar no jardim dos Moore, encontrou o servo de seu irmão escondido e sem tirar os olhos da entrada, tal como havia recebido a ordem. Então... o que tinha acontecido? Mary não teria decidido fugir dos Giesler, certo? Não, isso também não parecia certo. Era verdade que elas haviam discutido quando decidiu operá-lo, mas após sua magnífica proeza, as duas conversaram como se tivesse se conhecido há uma vida. E com relação ao irmão... Desejava manter distância? Mary, na realidade, era uma covarde? Não. Não era. Se sua intuição feminina não lhe enganava, a filha dos Moore não se assustaria facilmente. Se ela própria se envolveu numa intervenção deste tipo, seria capaz de lutar contra o mundo, se fosse necessário. Tinha que haver outra razão pela qual Mary não saía de casa, uma que, por incrível que pudesse parecer, lhe causava medo.

Valeria parou de olhar para o fim da escada e começou a andar inquieta pelo hall. Já não lhe importava mais a desculpa que lhe ofereceria à Sra. Moore ao aparecer em sua casa tão cedo, mas a causa pela qual Mary não aparecia. Apesar de tudo, a opção de estar em sério perigo começou a tomar força. Como seu irmão agiria se descobrisse que a jovem estava sob alguma ameaça? Pularia da cama para fazê-la desaparecer, mesmo sabendo que colocaria sua vida em risco! Disso não lhe cabia a menor dúvida...

Assim que focou o olhar na porta da entrada, ponderando todas as alternativas possíveis para esse desaparecimento, ouviu o som fraco de sapatos enquanto pisavam no chão. Se virou rapidamente, esperançosa de que fosse Mary, mas não havia ninguém lá. Resignada, ela respirou fundo para se acalmar e...

?Valeria... Olá! Estou aqui em cima! ?Mary sussurrou se escondendo atrás do parapeito de madeira.

?Mary! ?Exclamou eufórica. ?O que está fazendo aí? Por que não desce? Vim falar com você e...

?Não levante a voz ?lhe disse, acompanhando a sua ordem um leve movimento de suas mãos. ?Não pode saber que estou aqui. Se me descobrire, queimará todos os meus livros ?ela adicionou aterrorizada.

?Quem? ?Retrucou arregalando os olhos. Subiu um degrau, para poder vê-la melhor, mas a recusa de Mary a fez retroceder.

?Minha mãe ?bufou. ?Estou de castigo. ?E a vergonha que sentiu naquele momento em confessar o que estava acontecendo fez suas bochechas corarem.

?De castigo? O que você fez? ?Valeria insistiu em saber.

?Não posso falar, Shira aparecerá em breve e não deve me descobrir ?declarou sem afastar o olhar da porta por onde a empregada tinha entrado. ?Então, veio me ver?

?Sim. Meu irmão me pediu para fazê-lo. Ele sabia, de alguma forma, que você não deixou sua casa desde que saiu da dele e estava preocupado.

?Que atencioso da sua parte! ?Exclamou, revirando os olhos.

Faltava apenas, para que seu castigo aumentasse mil anos mais, que lorde Giesler aparecesse em sua casa perguntando por que sua filha continuava trancada. Sua mãe sofreria uma repentina apoplexia!

?Não pode descer? Preciso falar com você, mas jamais imaginei que deveria fazê-lo desta forma ?disse perplexa. Não tinha irmãs, nem primas, mas filhas e elas agiam da mesma maneira quando alguém era castigada.

Estava prestes a responder quando Shira saiu. Mary amaldiçoou baixinho e franziu a testa. Não seria capaz de executar seu plano? Pela primeira vez havia se arrumado decentemente! Embora essa leve raiva tenha desaparecido quando notou que sua governanta voltou para a sala.

?Minha mãe lhe dará uma desculpa para impedir que desça. Você insista que precisa me ver ?começou a dizer enquanto se levantava e saia do esconderijo. ?Quando eu aparecer confirme tudo o que digo ?acrescentou antes de desaparecer tão rapidamente quanto um fantasma deveria.

Valeria desviou o olhar do topo da escada e suspirou. Por que eles a castigaram? Que tipo de trapaça teria feito para enfurecer a sua mãe? E... como ela iria se intrometer na ordem de uma mãe? Não era sensato! O que aconteceria no futuro quando ela estivesse no lugar da Sra. Moore? Deixaria que uma de suas filhas se livrasse de um castigo quando aparecesse alguma amiga procurando-a? E por que Philip e Mary a colocaram em uma situação tão embaraçosa? Só esperava que, depois de tudo o que estava fazendo, seu irmão aceitasse a baronia ou... o mataria!

?Sra. Reform, se fizer a gentileza de me acompanhar, a Sra. Moore ficará encantada em recebê-la ?Shira a informou.

Sem apagar o sorriso gentil do rosto, Valeria se aproximou da porta, pensando em Mary, Philip, na baronia e os castigos de seus filhos. Ela balançou a cabeça levemente, afastando tudo o que sua mente lhe oferecia. Precisava se concentrar no motivo pelo qual tinha aparecido e, logicamente, não podia confessar a verdade. Outro ponto a discutir com Philip, por que... como poderia pedir aos filhos para não mentirem quando ela foi a primeira a fazê-lo? Irritada, tendo que pular todos os princípios morais que ensinou aos pequenos, ficou em frente à entrada e observou a Sra. Moore. Ela permanecia no centro da sala, usando um lindo vestido esmeralda. Seus cabelos, recolhido em um coque esticado, e aqueles olhos claros a perseguindo sem piscar, indicavam que sua presença não era muito desejada.

?Obrigado por me receber, Sra. Moore ?comentou Valeria apertando as mãos entre as suas.

?Obrigado por ter vindo, Sra. Reform ?disse educadamente. Uma vez que se separaram, Sophia apontou para um assento. ?Shira me disse que quer conversar com Mary, mas ela ainda não desceu para o café da manhã. Imagino que esteve a noite toda lendo algum livro sobre medicina ?tagarelou, enquanto a convidada se sentava. ?Se desejar, enquanto a esperamos, podemos tomar um chá.

?Se não for muito incomodo ?considerou ela. Embora soubesse que não chegaria a tomá-lo. A ansiedade que Mary mostrou indicou-lhe que tinha tramado algo em que não incluía uma conversa amável com sua mãe e um chá.

?Nenhum ?Sophia disse sentando-se ao lado de Valeria. ?Shira, por favor, chame...

E então, como se tivesse surgido uma repentina nevasca, Shira se afastou com rapidez da porta, deixando passagem a uma jovem que corria como um galgo.

?Valeria! ?Mary exclamou, entrando na sala com uma urgência incomum. ?Que alegria vê-la novamente!

De onde veio esse rosnado? A família Moore tinha um cachorro escondido na sala? Porque esse barulho costumava ser emitido por Ricardo, o animal de estimação da família, quando Fiona puxava suas longas orelhas e Charles queria usá-lo de cavalo.

?Bom dia, Mary ?ela disse se levantando rapidamente. Como fez com a Sra. Moore, apertou suas mãos com as de sua amiga e aceitou com prazer os dois beijos que a jovem lhe ofereceu nas bochechas. ?Aqui estou ?acrescentou olhando para ela com os olhos bem abertos, esperando descobrir o que havia tramado.

?Bem, você veio no melhor momento ?Comentou com um leve sorriso. Então observou sua mãe, que franzia o cenho e olhava para ela com advertência, mas não se assustou. Ela preferia ouvir milhares de palavrões e ordens há suportar outro dia em seu quarto... costurando? Nem morta! ?Bom dia, mãe ?disse suavemente. Se aproximou dela e lhe deu dois beijos mantendo uma distância segura. Não colocaria a mão em seu braço se arriscando a ser beliscada até que o sangue corresse por aquela área de sua pele.

?Mary... ?Sophia respondeu com aparente tranquilidade. ?Estava oferecendo um chá à nossa convidada. Como ainda não desceu para o café da manhã, pensei que ainda estava dormindo.

?Que nada! Hoje eu acordei muito cedo. Mas nossa querida Shira me serviu café no quarto quando eu a informei que estava acordada ?declarou com certo sufoco, como se realmente sentisse vergonha da insinuação de sua mãe de tratá-la como preguiçosa.

?Já vejo... ?Sophia apontou para o vestido e o penteado de Mary. Ela não tinha passado os dias em uma camisola e despenteada? Que coincidência oportuna! A Sra. Reform apareceu e usava um vestido para passear...

?Ela realmente lhe ofereceu um chá? ?Perguntou, levando a mão na boca, como se a palavra chá fosse horrenda. Então ela olhou para Valeria, que parecia, além de perplexa, indisposta, já que as bochechas dela estavam pálidas. ?Não lhe disse que pode pôr em perigo a sua saúde se beber infusões?

?Em perigo? ?As duas perguntaram ao mesmo tempo.

?Sim. Outro dia me confessou que não tolera bem as infusões, que lhe produzem flatulências severas ?manifestou adotando a atitude própria de um médico.

?Não queria demonstrar desconsideração pela oferta...

E Valeria voltou a recordar seus filhos, a regra de não mentir e a maldita baronia de Philip, acrescentando a esses pensamentos a inoportuna indisposição de... flatulências? Não poderia explicar algo menos embaraçoso?

?Também temos café ?lhe ofereceu Sophia que, ao ver a cara de espanto da Sra. Reform, não pôde concretizar se era devido ao perigo que esteve a ponto de sofrer ou pela invenção de sua filha. Que ficaria de castigo mais duas semanas se a enganasse.

?Mas... não veio me levar para passear? ?Perguntou com um pequeno soluço. Diante do barulho que ofereceu, sua mãe virou-se para ela para lhe falar: ?Na outra noite, depois da minha horrível decisão de falar com lorde Giesler ?declarou com fingido pesar ?Valeria insistiu em me levar até o Gunter’s e tomar um sorvete de... amoras?

?De limão ?Valeria a corrigiu rapidamente.

Bem, a acidez do sorvete poderia se parecer com o que o estômago estava emitindo naquele momento. O que diabos estava fazendo? Por que agia dessa maneira? Ela teria enlouquecido durante o confinamento?

?De limão ?Mary repetiu esboçando um grande sorriso. ?Imagino que não tenha vindo antes por causa da maldita chuva, estou certa? ?Ela perguntou olhando para sua salvadora com olhos suplicantes.

?Se parece bom para você ?começou a dizer à Sra. Moore, que abria a boca e a fechava como se fosse um peixe fora da água ?adoraria cumprir a promessa ?acrescentou, colocando as mãos atrás das costas para poder cruzar os dedos. Ela pagaria por isso! Deus sabia que Mary pagaria a mentira, o constrangimento e a horrível tristeza que ela estava sofrendo! E, infelizmente para a jovem, ela sabia muito bem como pagaria sua dívida. Ah, se pagaria! ?Além disso, também preparei um pequeno almoço em minha casa. Se bem me lembro ?expôs, pegando uma das mãos de Mary em uma atitude carinhosa e afetuosa ?também me prometeu que visitaria minha casa e faria um exame médico completo em meus seis filhos.

?Seis? ?Mary estalou abrindo tanto seus olhos que eles podiam saltar das órbitas.

?Sim ?afirmou a mãe orgulhosa. ?Candie, Charles, Eleonora, Samantha, Fiona e o pequeno Trevor. Todos, para meu pesar, se contagiaram com um resfriado terrível e desejo que sua filha me garanta que não fiquem com sequelas ?acrescentou, esboçando um sorriso de orelha a orelha.

?Então... quer que leve minha maleta? ?Perguntou perplexa.

?Sim, acho que é o mais conveniente... ?Valeria sugeriu.

Agora sim que estava em apuros. Todo o seu plano tinha sido desperdiçado! Filhos? Seis? E teria que verificá-los um a um? Não lhe disse que eram uns trastes, que se pareciam com o pai? Como lidaria com uma tarde cercada por demônios? Só queria comprar suas revistas e tomar um pouco de ar fresco!

Sophia, que até agora permaneceu calada e duvidando da credibilidade das duas, finalmente deu um grande sorriso. O brilho que ela mostrava em seus olhos expressava tanta diversão, que Mary queria sentar no chão e começar a chorar. Seria um bom castigo, o fato de ter que atender seis filhos, e tinha merecido, por usar a pobre mulher como tábua de salvação. No entanto, não podia dar o braço a torcer tão facilmente. Devia mostrar um pouco de... perseverança?

?Se lhe prometeu que visitaria essas crianças, me parece bom manter sua palavra. Mas tenho que lembrá-la o estado em que está. Se voltar com as mãos cheias de livros, também cumprirei a minha ?afirmou, com aquele tom firme que fez os cabelos de sua filha se arrepiarem. ?Sra. Reform, confio no seu bom senso, como mãe, entenderá que uma filha deve obedecer sem reclamar; depois do sofrimento que padecemos no parto, das noites sem dormir, todas as preocupações que nossas mentes nos oferecem para canalizá-las de um jeito bom, uma filha amada e respeitada deve ser fiel aos padrões da família.

?Claro, Sra. Moore. Entendo. Como lhe disse na noite passada, dedico todo o meu bom trabalho para que meus filhos, tão insuportáveis quanto o pai, cumpram com suas obrigações e ordens.

?Sendo assim... ?olhou para Mary de cima a baixo. Ela ainda não explicou como se vestira tão rápido. Não podia alegar uma desculpa para mandá-la para seu quarto, nem atrasar a saída. Tinha que admitir que era muito esperta. Sua segunda filha, para seu arrependimento, herdara a inteligência de seu marido e a astúcia característica de sua família. Gritava alto e se orgulhava de que nem uma gota do sangue Arany corria em suas veias? Ahh! Mary estava muito errada! Faltava apenas uma coisa para sua transformação em cigana ser completa... Uma que, se não estava errada, era a razão pela qual estava de castigo. ?Comporte-se, Mary. E não faça a Sra. Reform se arrepender de ter liberado você de seu castigo ?finalmente expos.

?Obrigada mãe! ?Exclamou se lançando para ela para lhe dar um forte abraço. ?Garanto-lhe que me comportarei adequadamente!

?Não faça promessas que não pode cumprir ?Sophia a repreendeu, tocando lentamente suas costas.

?Vou cumpri-las ?garantiu com firmeza. ?Vou cumpri-las todas ?confirmou.

?Sendo sim, você pode sair. Certamente os pequeninos estarão ansiosos para ver sua mãe novamente ?Sophia disse estendendo as mãos para Valeria.

?Prometo que sua filha terá o remédio que merece ?lhe sussurrou quando lhe deu dois beijos na bochecha.

?Confio nisso ?a Sra. Moore respondeu da mesma maneira.

?Vamos? ?Interrompeu Mary ansiosamente.

?Sim ?Valeria respondeu caminhando em sua direção.

Depois que Shira lhes ofereceu o casaco e a maleta, que sua mãe guardara em algum lugar da casa, as duas desceram as escadas com os braços entrelaçados, mostrando a imagem de amigas que se conheciam desde a infância. Mary, ao sair de casa, fechou os olhos e deixou o sol tocar suas bochechas. Havia ansiado tanto por essa sensação de bem-estar! Mas finalmente conseguia respirar ar puro, desfrutar de um dia tranquilo e... comprar suas revistas!

?Bem ?Valeria começou a dizer quando as duas se acomodaram na carruagem ?pode me dizer por que te castigou?

?Por uma bobagem... ?Mary expressou enquanto dava um pequeno pontapé na maleta.

?Qual? ?Insistiu a Sra. Reform, a quem não passou despercebido o estupor de sua nova melhor amiga.

?Não lhe pareceu correto que operasse o seu irmão nu... ?declarou, encolhendo os ombros, como se ela não tivesse sido prejudicada por tê-lo visto daquela forma.

?E como pretendia que fizesse isso? ?Soltou Valeria com uma mistura de confusão e surpresa.

?Bem, segundo ela, vestido ou com os olhos vendados. ?Depois de suas palavras, soltou uma grande risada. Quando se acalmou, observou de relance Valeria e advertiu que seu rosto não mostrava a mesma diversão que ela. Moveu-se desconfortável no assento, apaziguou o riso e acrescentou: ?realmente quer que eu veja seus filhos?

?Deseja comprar as revistas que comentou? ?Respondeu, olhando para ela sem piscar.

?Claro! ?Exclamou rapidamente. ?Preciso delas urgentemente!

?Pois as terá. Mas antes faremos uma parada.

Encostou a cabeça na almofada, colocou as mãos nas têmporas e as apertou. Que Deus tivesse misericórdia, que ajudasse seus filhos e não os castigasse pelo que ela faria. Mas, depois de tudo o que havia sofrido, teria que fazê-lo ou sofreria a síncope que pobre Sra. Moore aguentou ao descobrir que sua filha tinha visto o corpo nu do seu irmão.

?Que parada? Para onde vamos? Por que esfrega a cabeça? Dói? Sofre com assiduidade de enxaquecas?

?Em primeiro lugar, não sofro de enxaqueca, mas em breve sofrerei... ?comentou, com um halo de mistério.

?Por quê? ?Mary estalou confusa.

?Porque vou ouvir você gritar ?disse fechando os olhos e se preparando para o pior.

?Por quê? ?Repetiu a moça.

?Porque primeiro vamos visitar meu irmão...

Nesse momento, Mary começou a soltar mil palavrões, a amaldiçoar o destino e a caluniar sua má sorte, fazendo Valeria temer a enxaqueca.


Capítulo VIII


Amiga?! Ninguém podia considerar amiga uma pessoa que lhe estende uma armadilha! Porque, definitivamente, foi isso o que a Sra. Reform fez.

Depois de gritar tudo o que lhe passou pela cabeça, Mary cruzou os braços sobre o peito e rosnou. Desde que Valeria deixou claro qual era seu objetivo, toda a felicidade que ela sentiu quando foi libertada da prisão de sua casa, desapareceu. Não havia mais sorrisos em seu rosto, depois de gritar, seus lábios permaneceram fechados, manteve o olhar para fora, bufou sessenta vezes e amaldiçoou lorde Giesler por mais sessenta.

Lorde Giesler! Esse nome denotava perigo para ela. Por sua culpa, ela foi punida e, por sua culpa, teria que atender seis filhos antes de poder comprar seus preciosos folhetos científicos. Sem contar com o fato de que o veria novamente. Havia punição maior no mundo? Certamente, sua mãe, quando descobrisse que havia aparecido na residência do homem proibido, procuraria uma maneira de superá-lo... E, tudo por quê? Porque imaginou que sua suposta amiga a ajudaria a sair do seu cativeiro e a faria passar um dia esplêndido. Mas é claro, tudo tinha sido distorcido, nada sairia como ela planejou.

?Mary... ?Valeria disse a ela quando a carruagem entrou no jardim de Kleyton House ?Prometo que comprará esses artigos e que não terá que suportar meus filhos.

?Promessas... promessas... ?Mary resmungou.

?Isso aconteceu por sua culpa ?ela a repreendeu, encarando-a. ?Só queria falar com você e descobrir por que não saiu de casa. Mas o meu plano foi frustrado ao me pedir que te ajudasse a se liberar do castigo ?garantiu, com o tom de voz que sua mãe usava quando a repreendia por uma atitude ruim. ?Te prometi que compraria essas revistas; e mais, eu mesma te darei pelo inconveniente que isso possa causar. No entanto, acho justo te pedir, depois de me colocar em uma situação tão comprometedora, que confirme o estado de saúde do meu irmão.

?Meu pai a visita todos os dias e ouvi-o dizer a minha mãe que sua evolução é adequada ?murmurou. Com os braços ainda cruzados sobre o peito, virou suavemente a cabeça na direção dela e a olhou como se estivesse procurando a melhor maneira de jogá-la para fora da carruagem sem ter que abrir a porta.

?E... não sente curiosidade e ter certeza com seus próprios olhos? ?continuou Valeria.

Curiosidade? O que sentia naquele momento era o desejo de subir as escadas e enredar as mãos no pescoço de lorde Giesler para sufocá-lo. Mas não era o momento nem o lugar para proclamar seu desejo em voz alta. A melhor coisa, para salvar pelo menos uma parte do dia, era fingir estar preocupada, vê-lo, sorrir para ele e, depois de confirmar que ainda era um arrogante, petulante e estúpido, retornar à carruagem para visitar a livraria do Sr. Slow antes de fechar.

?A verdade é que sim. Tem razão, Valeria. Estou muito intrigada em saber como o seu estado de saúde evoluiu e se cumpriu tudo aquilo que ordenei. ?Depois disso, sorriu.

A Sra. Reform bufou, como uma de suas meninas, entendendo que ouviriam uma repreensão bastante enfadonha. Realmente pensava que suas palavras pareciam convincentes? Só lhe faltava alongar os lábios um pouco mais, para mostrar a imagem de uma mulher digna de ser trancada no hospital psiquiátrico de Bethlem.

A dúvida sobre o plano que havia idealizado a invadiu. Mary ainda não apreciava seu irmão. Mostrou na primeira noite e continuava expressando naquele momento. Realmente não sentia nada por ele? Nem mesmo alguma admiração? Qualquer mulher, além dela, é claro, levaria mil anos para esquecer um corpo tão bonito quanto o de Philip, e procuraria maneiras de fazê-lo entender que lhe devia um grande favor. Muitas delas até tentariam se tornar suas prometidas, amantes ou... o que fosse! No entanto, Mary era imune à virilidade de seu irmão. Só faltava ela bocejar para acentuar essa indiferença. Se Philip imaginava que ela poderia se apaixonar, estava muito errado. Antes colocaria em sua cama uma égua do que a filha do médico.

Elas continuaram em silêncio até a carruagem parar bem perto da entrada principal da residência. Em homenagem a essa discrição mantida pelos funcionários de seu irmão, o cocheiro abriu a porta depois de se certificar de que não havia ninguém por perto. Em primeiro lugar, e isso deixou Valeria confusa, o funcionário ofereceu a mão para Mary. Embora, pela cara que fez, ela estava tão atordoada quanto sua acompanhante.

?Senhorita Moore ?lhe disse o lacaio quando ela aceitou sua ajuda para descer ?tenha cuidado com este último degrau. Não gostaria que sofresse um acidente.

Os olhos de Mary se arregalaram. Não sabia muito bem como tomar aquela atitude considerada. Estaria tirando sarro dela? Queria lhe dizer algo inapropriado, para que o rosto amável exibido pelo cocheiro desaparecesse, mas não ousou dizer nada. Pela primeira vez em sua vida, identificou, com surpresa, que não havia mordacidade, mas ternura e carinho. A única coisa que ela não conseguia descobrir era a razão dessa estranha cordialidade.

?Senhora Reform.

Quando Mary pousou os dois pés no chão e o homem confirmou que ela não sofreria nenhum tropeço, ele estendeu a mão para Valeria e a ajudou a descer.

As duas mulheres subiram lentamente as escadas que levavam à entrada. Surpreendidas e mudas, pois não sabiam o que dizer. Philip teria imaginado que a levaria e ordenou que os servos a tratassem com toda a gentileza que pudessem demonstrar? Não. Ele não sabia nada sobre seu plano. Isso aconteceu quando ela pediu para sair de casa para passear. Então, o que estava acontecendo?

Com milhares de ideias brotando em sua cabeça, Valeria se adiantou a Mary para bater na porta, mas ela não precisou. Quando as pontas dos dedos tocaram a aldrava, esta se abriu.

?Senhorita Moore! ?Shals exclamou ao encontrá-la. ?Que alegria vê-la novamente!

Os olhos de Mary caíram sobre a senhora Reform e então, muito lentamente, ela os dirigiu para o mordomo.

?Estavam me esperando? ?Ela perguntou com uma mistura de espanto e estupor.

?Oh, não! ?Shals respondeu se afastando o suficiente para deixá-las passar. ?O senhor não nos avisou de sua chegada, mas todos nos perguntávamos quando apareceria ?acrescentou, estendendo as mãos para ajudá-la a tirar o casaco.

?Todos? ?Continuou falando perplexa.

?Sim ?ele respondeu. Depois de pegar seu casaco e o de Valeria, para quem ele mal olhou. Shals fez um leve gesto com o queixo no lado esquerdo do primeiro andar. ?Todos ?repetiu.

Isso era uma comitiva de boas-vindas? Por que diabos todo o serviço de lorde Giesler a esperava? Eles queriam linchá-la, como fariam os aldeões ao declarar uma mulher inocente uma bruxa? Com medo, ela deu alguns passos para trás, tentando tocar na porta de entrada com as costas. Mas encontrou a Sra. Reform, que havia parado de respirar.

?O que é tudo isso, Shals? ?Valeria finalmente falou.

?Senhora... ?comentou o homem um pouco envergonhado. ?Peço-lhe mil desculpas se fizemos algo errado. Mas quando a donzela Phiona viu a Srta. Moore sair da carruagem com a maleta, a notícia se espalhou e, bem, estávamos esperando por ela por que... muitos deles precisam... desejam que...

Mary entendeu imediatamente. O que o pobre mordomo estava tentando dizer à fez se sentir tão orgulhosa e feliz que esqueceu a raiva. Eles estavam esperando por ela! Queria que ela os atendesse! Shals não disse a seu pai que nenhum dos criados pediria ajuda a outro médico além de sua filha? Bem, ele não mentiu. Aquelas pessoas fizeram isso. Eles não se importavam que ela fosse uma mulher, que ela não tinha uma licença ou que ela os obrigou a lavar as mãos mil vezes. Eles haviam determinado que somente ela era a pessoa que poderia atendê-los e lá estavam eles, em perfeita ordem de espera, aguardando sua decisão. O prazer, o bem-estar e a emoção que ela sentiu, embaçaram os olhos. Não pensaria em chorar, certo? Ela nunca chorava! Afogando aquele soluço, fazendo desaparecer o nó na garganta que a impedia de respirar, agarrou a maleta com mais força, olhou para Valeria e disse:

?Lorde Giesler pode esperar.

?Obrigado! Obrigada! ?Ouviu os servos dizerem.

?Claro ?Valeria respondeu, suportando aquele grito de felicidade que ela queria liberar. ?Se não se importa, enquanto os atende, subirei até...

Não terminou a frase, Mary não se importava com o que ela ia dizer. Antes de esclarecer qual era sua intenção, a mulher se voltou para os funcionários e começou a perguntar o que estava acontecendo com eles. O Sr. Shals olhou para Valeria e lhe sorriu.

?Se desejar, posso informá-lo que a Srta. Moore acaba de chegar.

?Quer que saia da cama e desça as escadas três em três? ?Perguntou Valeria zombando.

?Tem razão, senhora. É melhor que não descubra o que está acontecendo aqui até que a Srta. Moore termine os exames médicos ?respondeu sem apagar o sorriso.

?Vou fazer café. Acredito que Mary precisará depois dessa incrível recepção ?apontou enquanto se dirigia para a cozinha.

?Deixe-me ajudá-la, porque, como pode ver, a cozinheira é a primeira da fila ?apontou Shals andando atrás dela.

E Valeria soltou uma risada alta.


***

Não aguentaria nem mais um dia trancado naquele quarto. Seu desespero aumentava a cada minuto. A isso, acrescentou a angústia de não saber nada sobre Mary. Por que não havia saído de sua casa por tanto tempo? O que a segurava? A ideia de que ela estivesse doente permanecia latente em sua cabeça, assim como seu desconforto por não poder se levantar, se arrumar e aparecer na residência dos Moore para descobrir pessoalmente o que havia acontecido com ela. Olhou novamente para o relógio de bolso, que Shals lhe enviou, e bufou. Aquilo só lhe informava que o tempo não corria tão depressa como desejava. As horas pareciam dias e dias... anos. Sentou-se muito lentamente no colchão e procurou o livro que Martin lhe deu quando o visitou dois dias depois de Mary operá-lo. Como havia pensado que a teoria sobre a lei de gravitação universal, de um tal de Isaac Newton, poderia aliviar seu desespero? Realmente imaginou que ele passaria horas procurando o motivo pelo qual dois corpos se atraem? Não era necessário ler esse livro para saber a resposta! Ele havia sido atraído tantas vezes que podia refutar qualquer teoria absurda! Os homens atraíam mulheres, estas buscavam a excitação deles e, finalmente, essa proporcionalidade ao produto das suas massas terminava em um encontro íntimo.

?É um belo princípio matemático ?lhe disse quando ele arregalou os olhos ao descobrir o que significava para seu irmão o melhor presente do mundo. ?Você será cativado pela simplicidade da fórmula gravitacional. É, sem dúvida, a mais bela simplicidade que você pode encontrar na vida. ?E depois disso, ele sorriu de orelha a orelha.

?Você já dormiu com uma mulher, Martin? Ou você prefere ir para a cama com... isto? ?Perguntou bruscamente, apontando um dedo para a capa do livro que jogara na colcha como se estivesse queimando.

?Por que essa pergunta, Philip? ?Retrucou, eliminando o sorriso imediatamente.

?Porque não entendo como pode comparar fórmulas matemáticas com a beleza e as maravilhas da natureza. Para mim, isso não se encaixa nessas descrições. Você já dormiu com uma mulher ou ainda é virgem? ?Continuou.

?Claro que não sou! ?Exclamou envergonhado. ?Tenho minhas fraquezas...

?Carnal ou intelectual? Porque não tenho certeza de que você entende a diferença entre um bom par de seios femininos e duas maneiras de calcular o mesmo resultado ?garantiu, cruzando os braços e franzindo a testa.

?Como se atreve a falar comigo dessa maneira? Não sente remorso nem respeito por uma mulher?

?Sim, respeito todas elas. Pode perguntar as minhas amantes se elas foram respeitadas antes de deixá-las exaustas em suas camas. Mas não desvie o assunto, Martin. Você parou de ser...?

?Não vou te responder. Primeiro de tudo, sou um cavalheiro ?ele respondeu com raiva. ?Se estive com uma mulher ou com várias, isso só importa para mim.

?Ou seja, você evita falar sobre isso porque ainda não sabe o que significa prazer carnal ?afirmou enquanto olhava para ele.

?Valeria me avisou que seu humor havia piorado ?comentou indo em direção à porta?, mas nunca imaginei que você atingiria um nível tão alto de imbecilidade.

?Não é imbecilidade, mas aborrecimento ?indicou, sem poder apagar um sorriso malicioso de seu rosto.

?Nesse caso, espero que deixe de se aborrecer em breve ?declarou antes de bater a porta.

E desde aquele dia, não falou com Martin novamente. Shals informou que ele apareceu na residência para perguntar sobre sua saúde, mas, depois do que aconteceu entre eles, não teve coragem de comparecer diante dele.

Abriu o livro na página em que havia deixado na noite anterior, bufou com o aborrecimento que lhe causava e tentou se concentrar na maldita fórmula da força exercida entre dois corpos. Naquele momento, sua mente se afastou da constante gravitação universal, do valor dessa constante e da massa dos sujeitos, para se concentrar em Mary. Sim, de fato, ela foi o resultado de toda a maldita formulação que o livro comentava. Ela exercia uma força de atração até ele que o deslocava, entorpecia e o deixava vulnerável. Desde que ela jogou aqueles tubos, que para assimilá-lo com a teoria eram as massas de atração, ele não conseguiu pensar em outra coisa senão procurar o contato entre os dois. Eles tiveram, é verdade, mas em primeiro lugar ele estava inconsciente e não se lembrava de nada, e em segundo lugar o beijo não foi suficiente para obter um bom resultado. Que poder suas carícias teria em relação a ele? O que sentiria ao ver como as pontas dos seus dedos acariciavam sua pele? Se excitaria ou se incomodaria? Mary seria uma mulher apaixonada ou mostraria a mesma frieza que exibia ao mundo ao seu redor? Teria observando-o com admiração ou calculou apenas a dose apropriada de sedativo para o seu corpo grande? Philip fechou os olhos e recostou-se nos três travesseiros atrás das costas. A imagem dela apareceu sem fazer esforço. Ele a viu rindo do comentário que fez ao pai quando perguntou sobre a quantidade de clorofórmio que havia lhe dado. Um cavalo? Maldita mulher que o comparou a um cavalo! Não havia comparações mais bonitas? Teria sido suficiente com o fato de que ela evocava sua grande magnitude, que sugeria sua forte musculatura, mas não. Mary não conseguia encontrar um símile que o deixasse orgulhoso. Ele teve que se parecer com um animal de quatro patas. Agradecia a Deus por não tê-lo chamado de porco ou bezerro, mesmo assim, ainda estava descontente. Talvez o poder de sedução que ele dava a outras mulheres fosse imune a ela. Talvez ele não tenha percebido por que... Não! Ele se recusava a pensar sobre isso. Não havia nenhum homem para Mary além dele e isso a deixaria saber assim que ele pudesse deixar sua casa. Toda vez que ela saísse de casa, ele a esperaria na porta. Sempre que ela decidisse aparecer nas reuniões que os médicos realizavam as sextas-feiras, ele ficaria sentado ao lado dela, ouvindo-a atentamente e, é claro, a encontraria em todas as festas que ela decidisse comparecer. Ele pediria que ela dançasse uma, ou duas danças, ou talvez tudo o que ela pudesse suportar. Só para deixar bem claro, aos cavalheiros que a olhassem, que não teriam chance com ela. Quando um Giesler encontrava a mulher de sua vida... ninguém ficava no seu caminho!

Esse pensamento só lhe causou mais inquietação e estresse. O lençol o prendia, a suavidade do colchão o incomodava. Até parecia que os travesseiros macios tinham espinhos! Aturdido e nervoso, ele estendeu a mão esquerda para a mesinha e pegou a sineta que Shals colocou ali na mesma noite em que Mary saiu. Ele franziu a testa, apertou a mandíbula e amaldiçoou sua vida. Tudo começava a girar em torno dela. Até o motivo de tocar uma miserável sineta! Não havia dúvida, ele tinha que sair de lá e aparecer na casa dos Moore para vê-la ou ele ficaria louco.

?Maldito seja, Shals! ?Explodiu quando, depois de tocar a sineta mais de vinte vezes, seu mordomo não apareceu. ?Pode-se saber por que ninguém me responde? Ficaram surdos? ?Continuou gritando. Com raiva, afastou o lençol do corpo. Pelo menos eles tiveram a decência de ajudá-lo a vestir calções. Não seria apropriado aparecer no topo da escada nu e gritando alto que todos estavam demitidos. Sem dúvida, Valeria o levaria para fora de seu quarto, sim, mas para levá-lo diretamente a Bethlem.

?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa ?Mary o ameaçou quando, ao abriu a porta, o encontrou em pé ao lado da cama.


CONTINUA

Londres, 28 de outubro de 1882, residência Moore.
Sophia observou pela janela como a carruagem em que estava seu marido se afastava de casa. Deveria estar acostumada que Randall saísse na metade da noite, mas naquele momento teria dado tudo o que tinha para que não saísse do seu lado. Se abraçou e tentou acalmar o calafrio que surgiu ao se sentir tão sozinha. A casa ficou em silêncio, demais para o seu gosto. Desde que suas filhas nasceram, sempre havia ruído pela casa, correndo pelos corredores. No entanto, desde que três delas saíram, aquilo não parecia uma casa, mas uma das bibliotecas que Mary costumava visitar. Fixou seus olhos na lareira, já apagada, e suspirou fundo. Como se encontravam suas meninas? O visconde iria atendê-las com o respeito que mereciam? Esperava que assim fosse e que as três se comportassem adequadamente. O único que não suportaria seria que, depois da saudade que sofria por não poder estar com elas, voltariam com uma infinidade de escândalos em suas costas. Desviou o olhar para as cadeiras que haviam ao redor da mesa da sala de jantar e notou como sua dor aumentava ao observá-las vazias. Em noites como aquela, Anne e Josephine deixavam seus quartos e desciam para acompanhá-la. Costumavam conversar sobre qualquer assunto até o amanhecer e quando o resto de suas filhas aparecia, tomavam o desjejum conversando sobre o que haviam planejado fazer o resto do dia.
Apoiou as costas na janela e suspirou. Sentia falta dos gritos que oferecia a Josephine por ter perfurado outra janela ou por terminar com a valiosa porcelana de Randall. Sentia falta de pedir a Elizabeth que deveria mudar seu comportamento inadequado e sentia falta de aparecer na sala de pintura de Anne para admirar seu novo trabalho. Quantas vezes suplicou que dessem a ela algumas horas de tranquilidade? Muitas! No entanto, agora não queria, pois as usava para pensar em como se encontravam. A pequena soldado se adaptaria a uma vida repleta de protocolos femininos ou talvez o visconde permitisse continuar com seus habituais comportamentos masculinos? Seguiria as instruções Randall? Porque se fosse assim, tinha receio que dormiria e se banharia com a nova arma que lhe comprou. Só esperava que o visconde se mantivesse afastado de Anne para que não desse a Josephine a oportunidade de cumprir as ordens que seu pai lhe dera. E Elizabeth? Agiria de maneira adequada ou continuaria mostrando atrevimento? E Anne? Continuaria sonhando com ele? Se apaixonaria por esse homem?
Eram só perguntas e para seu desespero não encontrava uma única resposta. Somente as encontraria quando voltassem e para que isso acontecesse faltava pouco mais de três semanas.

 

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Uma pontada no estômago a fez apertar as mãos sobre aquela região do corpo. Continuava sem ter certeza de ter agido corretamente. Talvez devesse encontrar uma forma de romper o acordo com o visconde e não desistir tão rapidamente. Mas... que fez? Nada, porque os sonhos de Anne avisavam que não podia impedir aquilo que já estava previsto. No entanto, a dúvida sobre a escolha feita pelo fogo a assaltava a cada momento. Como poderia ser o visconde o homem destinado para Anne? Qual seria o motivo pelo qual Morgana mostrava a Anne que ele era o escolhido? A maldição de Jovenka era muito clara: o sangue contaminado voltaria a ser puro. Que tipo de pureza se referia? Teria entendido errado o juramento? Não, não tinha feito desde que os dois pretendentes de sua filha morreram, tal como sua avó anunciou. Então... porque o visconde, um homem de sangue azul, destruiria a maldição que sua filha suportava desde que nasceu? O que os Bennett escondiam? O que lhes aconteceu? Naquele momento lembrou uma notícia em que afirmavam que os marqueses, dezessete anos depois, reconheciam um jovem como filho legitimo. Segundo o jornal, foi roubado logo após o nascimento e não denunciaram o desaparecimento para não criar um escândalo social. Como poderiam manter em segredo semelhante atrocidade? A aristocracia era tão frívola? Como a marquesa foi capaz de suportar uma dor tão cruel? Sophia franziu a testa e suspirou profundamente. Nenhuma mãe aceitaria uma situação semelhante a menos que não fosse filho dela. Talvez essa fosse a verdadeira razão e não o sequestro. Era mais lógico deduzir que o falecido marquês de Riderland, com uma reconhecida reputação de libertino, mantivesse um idílio com uma mulher, talvez uma cigana, e o visconde era fruto desse romance. Quando a mulher anunciara ao seu amante que teve um filho dele, ele seria rejeitado pelo pai, como todos os bastardos que sua avó Jovenka teve, e o menino vivera com a mãe durante aqueles dezessete anos. O que os fez mudar de ideia? O acidente que sofreu a esposa do seu único filho vivo os incentivou a finalmente reconhecê-lo? Isso seria uma dedução bastante comum entre a aristocracia, pois eram incapazes de se separar do título de nobreza que haviam mantido por gerações. Talvez fosse essa a razão pela qual o falecido marques decidiu assumir a paternidade. Embora ainda houvesse uma questão não resolvida... por que a marquesa, que todo mundo descrevia como uma mulher frívola, aceitou a decisão de seu marido? Se sentira obrigada? Queria evitar uma humilhação social dessa maneira? O que quer que aconteça com a família Bennett, não importava mais, o único de deveria se preocupar era o motivo pelo qual sua mãe criadora provocou uma aproximação entre o visconde e sua filha.

Decidiu voltar para o seu quarto. Ainda podia aproveitar algumas horas de sono antes que Madeleine e Mary decidissem se levantar. Além disso, naquela mesma manhã se propôs a visitar Vianey para falar pessoalmente sobre a viagem de suas filhas com o visconde. Se queria evitar qualquer rumor inadequado sobre sua família, a baronesa era a pessoa ideal. Ela compreenderia melhor que ninguém e ajudaria a proteger a honra de suas filhas porque, se começavam a fofocar sobre a honra de suas meninas, mesmo que o visconde quebrasse a maldição, nenhum homem decente apareceria em sua casa para se comprometer com alguma delas.

O pensamento de vê-las casadas a fez sorrir. Que marido seria apropriado para a destemida Josh? Quem poderia conviver com uma mulher como Mary? Algum cavalheiro seria capaz de eliminar o orgulho de Elizabeth? E o que aconteceria com Madeleine? De acordo com sua visão, ela também encontraria o homem que a amaria tanto que faria desaparecer sua timidez excessiva. Como conseguiria? Quem seria? E, realmente existiam esses valiosos maridos? Porque de uma coisa tinha certeza; suas filhas eram muito especiais e não aceitariam qualquer homem.

Colocou a mão esquerda sobre o corrimão de madeira, pisou no primeiro degrau e prendeu a respiração quando ouviu fortes batidas que vinham da porta da frente. No mesmo instante, voltou até a entrada e permaneceu em silêncio para se certificar que tinha ouvido bem. Estava certa. Alguém tinha aparecido em sua residência e batia na porta com a aldrava. Sophia se olhou de cima a baixo. Não se vestia apropriadamente para receber ninguém àquela hora da noite. Além disso, se a razão pela qual tinha vindo a sua casa era seu marido, não podia fazer nada, pois não voltaria até o dia seguinte. Embora a pessoa que se encontrava fora batesse novamente, tomou a decisão de ignorá-la. Se fosse muito urgente, poderia recorrer a residência do doutor Flatman. Olhou para as escadas e suspirou. Por mais que desejasse, um estranho pressentimento a impedia de avançar e insistia que devia aceitar a visita. Mas... por quê? Quem seria?

?Tem alguém aí? ?Uma voz feminina finalmente perguntou. ?Vejo luz através das janelas. Por favor, preciso de ajuda. Sou a Sra. Reform e estou procurando pelo doutor ?insistiu.

Sophia, ao ouvir a voz de uma mulher virou-se e caminhou para ficar atrás da porta, mas não a abriu até ter certeza de que não era uma farsa para entrar na casa e assaltá-la. Quantas vezes os de seu sangue agiam no meio da noite? Centenas! Eram como vermes. Esperavam pacientemente que a casa de algum Sr. rico permanecesse desprotegida para assaltá-la. Sua própria avó agia nesses roubos como uma reivindicação.

?O doutor não se encontra nesse momento, precisou sair ?Sophia respondeu com cautela.

?Sabe quando volta? Vim até aqui porque um dos meus irmãos precisa de atendimento médico e tenho entendido que o Sr. Moore é o melhor médico que temos em Londres ?Valeria insistiu olhando para a porta e sem dar um só passo para trás.

Não estava disposta a sair sem uma pessoa que pudesse ajudá-la. Philip jamais esteve tão doente, nem prostrado em sua cama por mais de um dia. Isso indicava que sua convalescença não tinha nada a ver com uma ingestão soberana de álcool. Pela primeira vez em sua vida, ele realmente adoecera.

?Amanhã. Talvez possa encontrá-lo ao meio-dia... ?respondeu, revendo mentalmente o tom de voz que a mulher usou para falar com ela. Parecia desesperada, agitada e sincera. Mas... isso seria suficiente para confiar nela?

?Eu imploro. Meu irmão está muito doente e não sei a quem recorrer ?insistiu a Sra. Reform. ?Pode perguntar a Sra. Moore se pode me atender?

?Sou a Sra. Moore ?revelou ?garanto-lhe que deixarei meu marido saber que veio. Se tiver a gentileza de me explicar quem é o doente e onde mora, prometo que irá o mais breve possível ?Sophia sugeriu.

?Sua casa é a Kleyton House localizada na Mount Row. Ele se chama Philip Giesler ?Valeria esclareceu depois de um longo suspiro.

Ao ouvir o nome, Sophia arregalou os olhos e prendeu a respiração novamente. Seria a mesma pessoa que acompanhou o visconde dias atrás? Aquele que foi agredido por suas filhas na entrada? Quantos Philips Giesler poderia residir em Londres? E por que, tendo tantos médicos na cidade, aquela mulher aparecia na frente de sua porta?

?Por que escolheu meu marido se há outros médicos na cidade que podem atendê-la? ?Perguntou, depois de supor que o próprio Giesler lhe dissera para vir e procurá-la como pagamento pelo sofrimento que sofrera devido ao mau comportamento de suas filhas.

?Pode abrir? Não quero gritar, por favor. Além disso, seus vizinhos podem espreitar nas janelas e supor que estamos discutindo ?Valeria explicou com um pouco de serenidade.

?Sra. Reform, não estou apresentável. Como compreenderá, não esperava visita e...

?Estou sozinha, Sra. Moore. Não há homem ao meu redor e o cocheiro ainda continua no seu lugar ?informou. ?Só quero que me ajude. Conhece todos os médicos da cidade e, se explicar os sintomas que meu irmão sofre, poderá me indicar que médico é o mais adequado para curá-lo o quanto antes ?insistiu?. Suplico, tenha compaixão. Prometo-lhe que se me ajudar estarei eternamente agradecida e...

Valeria ficou em silêncio ao ouvir como a Sra. Moore começou a mover o ferrolho. Talvez nem tudo estivesse perdido. Talvez houvesse uma chance de descobrir por que Philip, em seus delírios, nunca deixava de mencionar um nome feminino e o sobrenome do médico.

?Entre, conversaremos aqui dentro ?convidou Sophia, vendo que, na verdade, seu rosto mostrava a mesma angústia que sua voz expressava.

Valeria aceitou o convite e entrou na residência. Mas não se moveu da entrada, embora a esposa do médico, depois de fechar a porta, entendeu a mão até o corredor da esquerda. Estava com pressa para voltar. Se o doutor Moore não podia atendê-lo, precisava com urgência descobrir quem o faria e isso atrasaria muito a sua volta.

?Sra. Moore, por favor, quem acha que posso pedir ajuda?

?É assim tão grave? ?Sophia a olhou com relutância. Talvez tenha entendido mal quando ouviu o parentesco que a unia com lorde Giesler, pois os dois eram muito diferentes. Onde o cavalheiro usava uma cabeleira tão loura como os raios do sol, o da mulher era tão escuro quanto os dela. Sem contar a tonalidade de seus olhos. Não havia nada que pudesse se assemelhar a ele. Estaria enganando-a? Seria na realidade sua amante desesperada?

?Sim ?Valeria respondeu apertando as mãos com força. ?Está há vários dias na cama. No começo pensei que sua última saída terminou pior do que esperava. Se é que me entende... Um homem solteiro, sem responsabilidades familiares e amantes da liberdade... Mas depois que apareci em sua casa, depois de ser informada pelos criados, para repreendê-lo, como uma irmã preocupada faria, descobri que não se tratava de uma embriagues soberana. Ele estava realmente doente.

?Como já lhe disse, meu marido não estará de volta até o meio-dia. O único que posso aconselhar é que vá à casa do Sr. Flatman. Certamente que o encontrará em sua casa, pois nunca comparece a uma emergência, a menos que seja exigido pela nobreza. ?Sophia apontou como alternativa.

?Mas o meu irmão não quer. Ele disse o seu nome ?revelou a Sra. Reform.

?Meu nome? ?Ela estranhou.

?Não, o de seu marido. Quando a febre aumenta muito e provoca delírios, murmura o sobrenome do seu marido. Por isso estou aqui. Acredito que ele deseja que o seu marido o visite.

Não podia contar a verdade porque parecia estranho até para ela. Quando Philip delirava, as únicas palavras que saíam de sua boca eram Mary e o sobrenome Moore. Como era lógico, perguntou sobre isso. Finalmente, depois de varias horas perguntando a conhecidos, descobriu que se tratava do sobrenome de um médico de Londres que morava fora da cidade, que era pai de cinco meninas e que uma delas se chamava Mary. Então deduziu que em sua inconsciência tinha se confundido, portanto tinha que ter mencionado o nome de Randall Moore em vez de se referir a uma de suas filhas.

Sophia confirmou sua suspeita ao ouvir a declaração. Já não tinha dúvidas que lorde Giesler queria que seu marido pagasse o trágico encontro que teve na manhã em que apareceu com o visconde. Talvez pensasse que, depois de ser atendido por ele, ouviria o que aconteceu e manteria em segredo o comportamento inapropriado de suas filhas, mas... o que poderia fazer se Ronald não estava?

?Prometo que meu marido irá à casa do seu irmão assim que voltar. Enquanto isso, para baixar a febre, aconselho que coloque panos mergulhados na água fria. Isso o acalmará...

Sophia ficou em silêncio quando ouviu um pequeno ruído no alto da escada. Olhou para cima e quando viu a camisola de Mary se escondendo atrás da parede, franziu a testa. Por que tinha levantado? Continuaria lendo apesar do castigo que lhe impôs? Será que nunca atendia suas ordens? Como podia fazê-la ouvir a razão? Que tipo de reprimenda seria adequado para uma menina como ela? Havia algo no mundo que a mortificaria tanto que a fizesse ver a razão? Que vingança seria apropriada? De repente, um sorriso maligno se desenhou em sua boca. Era uma ideia excessivamente maligna até para ela, mas... não queria dar-lhe uma lição? Mary jamais se negaria a atender um doente e se não confessasse quem era o paciente, desceria as escadas agarrando sua maleta sem se dar conta que vestia uma camisola. Seu sorriso perverso se alargou ainda mais ao lembrar a profecia de Madeleine: «Tinha visto Mary apaixonada, embora tentará deter os sentimentos que esse homem lhe provocará desde o momento em que se encontrem pela primeira vez». O que poderia perder? Se aquele homem não era o escolhido para Mary, pelo menos aproveitaria com a vingança. No entanto, a dúvida sobre o comportamento de sua filha a invadiu. O que aconteceria quando Mary descobrisse que o cavalheiro que deveria curar era o mesmo que não afastou seus olhos dela, mesmo que Josephine lhe apontasse com a arma? Possivelmente o envenenaria, ou o curaria primeiro para matá-lo depois. No entanto, se o destino voltava a cruzá-los... quem era ela para impedir?

Olhou para a Sra. Reform e adotou uma postura seria e tranquila. Se oferecesse a sua filha, precisava adotar uma atitude decidida, pois não poderia colocar em perigo a honra dela, mas também a reputação de seu próprio marido estava em perigo.

?Existe uma opção possível. Se estivesse em seu lugar, aceitaria sem duvidar um só segundo ?manifestou sem vacilar.

?Farei qualquer coisa, Sra. Moore! ?Valeria exclamou desesperada. ?Diga-me o que pensou e juro que não demorarei nem um só segundo.

?Mas deve me prometer que ela não permanecerá em nenhum momento sozinha com ele ?Sophia prosseguiu.

?Ela? ?Valeria perguntou arregalando os olhos.

?Sim, uma de minhas filhas, Mary. Ela acompanha meu marido em todas as suas visitas médicas. Ela curou muitos doentes e garanto que é tão habilidosa em medicina quanto seu pai. Ela descobrirá, se você considerar apropriado, o que acontece com seu irmão e atribuirá um tratamento enquanto meu marido volta.

?Tem certeza? ?E ali estava a resposta para sua pergunta! Seu irmão não estava perturbado pela febre, somente gritava o nome da pessoa que desejava ter ao seu lado. Como diabos sabia que a filha do médico poderia ajudar-lhe? Se conheciam? De onde? Quando?

?Tenho. Tudo que preciso saber é se você admite que uma mulher aja como médica sem importar...

?Pelo amor de Deus! Não vê que sou uma mulher? Acha que rejeitaria a ajuda de alguém, ou que seria capaz de menosprezar seu trabalho por não ser homem? ?Valeria retrucou ofendida. ?Te garanto que meu marido não seria quem é hoje se não tivesse casado comigo.

?Está certo, tudo bem que a chame?

?Com certeza!

?E me promete que zelara por sua honra? Tenha em mente que estamos falando de uma jovem solteira que permanecerá na casa de um homem solteiro e isso poderá causar problemas sem fim no futuro ?Sophia concluiu desconfiada.

?Sra. Moore, meu irmão precisa de um médico, não uma esposa ?Valeria garantiu com aparente indignação.

?Sendo assim, espere dez minutos. Subirei ao seu quarto e perguntarei se está disposta a...

?Sim! ?Mary exclamou do alto da escada. ?Vou! Coloco um vestido e desço em menos de cinco minutos ?acrescentou feliz.

?Mary Moore! Quantas vezes tenho que dizer que não deve espiar? ?A mãe gritou repreendendo-a.

?Milhares! ?Respondeu enquanto voltava correndo até seu quarto.

?Filhas... ?bufou Sophia. ?Por mais que cresçam, sempre serão crianças pequenas. Tinha esperança de que quando ficassem mais velhas mudariam de atitude, mas como pôde comprovar, não fizeram isso ?afirmou fingindo pesar.

?Eu tenho quatro e se forem como seu pai, teriam quarenta anos e continuariam sendo umas meninas extravagantes e teimosas ?apontou a Sra. Reform um pouco mais calma.

Enquanto esperavam a presença de Mary, Sophia fez uma investigação à Sra. Reform. Descobriu que era filha de uma espanhola e um alemão. Que tinham chegado à Londres fugindo da família do pai. Que tinha dois irmãos muito diferentes fisicamente e que tinha se casado anos atrás com Trevor Reform, o antigo dono do clube de cavalheiros Reform. Então, ela informou que lorde Giesler tinha chamado seu marido e Valeria contou-lhe a história do baronato que seu irmão devia ocupar na Alemanha.

?Mas como bem comentou, nunca crescem como se deseja e meu irmão é incapaz de aceitar o título ?Valeria comentou com pesar. ?Tentei de tudo... ?suspirou ?no entanto, essa atitude alemã que possui o impede de salvar o seu orgulho e assumir o que um dia herdará por direito.

Isso acalmaria a mãe? Por que não tinha parado de lhe fazer perguntas. Obviamente, tinha respondido todas. Não queria que pensasse que Mary se encontraria com pessoas sem escrúpulos. Precisava deixar claro que sua família era muito respeitável e que protegeria sua filha como se fosse uma das suas.

?Não se preocupe, certeza que em breve terá que desistir. Os homens são, por natureza, muito teimosos e tem que encontrar um incentivo para avançar esse passo que ambos se recusam a dar ?Sophia comentou, à alusão do baronato, com falso tom sereno e calmo.

Giesler era um barão alemão? Por isso seu marido fez referência ao tratamento de lorde? Os barões alemães possuíam as mesmas conotações que os ingleses? Tinha que assimilar muitas coisas depois dessa informação. Além disso, se a premonição de Madeleine estava certa, se lorde Giesler era o homem destinado para Mary... se tornaria uma baronesa inglesa ou alemã? Como agiria se alcançasse essa posição social? O que aconteceria com todos aqueles homens que a humilharam no passado? Se esqueceria deles ou encontraria uma maneira de se vingar? Um frio repentino fez com que os pelos do seu corpo se arrepiassem. Se isso acontecesse, a melhor opção era que partisse para a Alemanha, porque se ela ficasse, os cavalheiros que a desprezaram estariam em grave perigo...

?Já estou aqui! ?Mary gritou descendo as escadas.

Sophia a olhou de cima a baixo. Não podia repreendê-la porque não estava mais usando a camisola, mas usava o vestido azul que tinha colocado no dia anterior. Um que lhe dava a aparência de uma governanta, mas por causa da maneira como o tecido se agarrava ao seu corpo, não havia dúvida de que ela não tinha colocado o espartilho ou as anáguas. Mantinha o cabelo em um coque desastroso e em sua mão direita segurava a maleta que Randall a presenteou ao completar dezoito anos. Levaria dentro um frasco de cicuta? Porque se fosse assim, temia que gastasse essa mesma noite quando descobrisse a identidade do doente.

?Lembra querida, o que sempre comentei com seu pai ?ela disse suavemente enquanto a ajudava a vestir o casaco que tirara do armário.

?Boa noite ?primeiro saudou a mulher e logo se voltou até sua mãe com um olhar interrogativo. ?O pai me disse muitas coisas, pode ser mais especifica...

?Que não importa o paciente que precisa de atendimento, tem que fazer um bom trabalho ?lembrou antes de lhe dar um beijo na bochecha.

?Não sei por que diz essas coisas ?resmungou, corando rapidamente. ?Jamais me neguei a atender alguém.

?Espero que também não faça nesta ocasião ?Sophia insistiu puxando-a até a saída.

?Tem algum tipo de preconceito, Srta. Moore? ?Valeria interveio um pouco desconfortável ao ouvir as estranhas palavras da esposa do médico.

?Nem um pouco! ?Mary respondeu rapidamente, se colocando ao lado da Sra. Reform. ?É muito comum minha mãe me lembrar de que eu não devo ser descortês com as pessoas.

?Enquanto possa salvá-lo, não me importa o caráter que possua ?Valeria afirmou. ?Sra. Moore, boa noite. Garanto que sua filha estará em boas mãos.

?Obrigada, Sra. Reform, embora neste momento não tema por Mary, mas pelo doente ?Sophia garantiu.

?Mas mãe! ?Ela respondeu com raiva. ?Por favor, não vamos perder mais tempo. Preciso ver o paciente o quanto antes. Se não se importa, Sra. Reform, durante o caminho, me explica os sintomas que tem, essa conversa será mais que ouvir os lembretes morais da minha mãe. ?Boa noite, mãe.

?Boa noite, filha.

Assim que se despediram de Sophia, a duas andaram até a carruagem. A Sra. Moore permaneceu na porta até o veículo sair de seus domínios. Fechou a porta e suspirou fundo. A vida de sua segunda filha mudaria, a única coisa que podia garantir era se ela estava preparada para assumir essa mudança...

Mary se acomodou no assento e observou de canto de olho a sua acompanhante. Parecia tão preocupada que queria lhe dizer algo que pudesse acalmá-la. No entanto, ela não tinha o dom de tranquilizar as pessoas, mas de curá-las.

?Desculpe-me por tê-la tirado de sua casa a esta hora tão inapropriada, mas sua mãe, depois de lhe explicar o que aconteceu, insistiu que você é a mulher adequada para atendê-lo.

?Não foi problema nenhum, pelo contrário, sinto-me muito honrada por poder ajudá-la ?Mary respondeu, acrescentando um leve movimento com a mão enluvada ao comentário. ?Ficarei feliz em descobrir que doença seu marido tem e indicar-lhe o tratamento adequado.

?Meu marido? ?Espetou Valeria arregalando os olhos. ?Não é meu marido que está doente, mas meu irmão.

?Desculpe, devo ter entendido errado. De lá, não consegui ouvir bem suas palavras ?Mary comentou, ruborizando no mesmo instante. ?Às vezes, quando fico empolgada, não presto muita atenção.

?Não se preocupe, isso geralmente acontece comigo também. Acho que é muito comum mulheres inteligentes selecionarem o que as interessa.

Diante desse comentário, Mary relaxou e soltou uma gargalhada. Quando se recuperou, voltou a olhar a Sra. Reform e esperou que lhe revelasse o nome do seu irmão, mas ela se manteve em silêncio.

?E, a quem devo atender? ?Finalmente perguntou.

?Talvez o conheça, Srta. Moore.

?Mary, por favor, me chame de Mary.

?Obrigada, bem, o que disse Mary, possivelmente tenha ouvido falar sobre ele, porque é um homem bem conhecido nesta cidade. Trabalhou na Scotland Yard durante alguns anos, mas quando estava prestes a conseguir um cargo importante, se recusou a fazê-lo e decidiu se tornar um marinheiro ?declarou com pesar enquanto observava como Mary continuava negando com a cabeça.

?Confesso que sou uma mulher antissocial. Mal saio de minha casa e quando o faço não tenho entre os meus objetivos me relacionar com as pessoas que conheço, exceto se tiver que curá-las ?acrescentou espirituosamente.

?Entendo... ?Valeria apontou ainda mais intrigada. Se a moça não o conhecia, por que seu irmão não parava de chamá-la quando lhe subia a febre? Espalhou a saia do vestido para que não enrugasse, depois colocou as duas mãos no colo e olhou para a jovem sem piscar. ?Mas acredito que sim, que conhece meu irmão ?insistiu.

?Se me disser o nome, posso responder com mais certeza ?Mary declarou com a voz cansada.

Para que tanto mistério? Por que proteger sua identidade? Teria que atender um criminoso fugitivo da justiça? Seria um parente direto do próprio Gilles de Rais?[1]

?Meu irmão é Philip Giesler ?Valeria finalmente declarou.

Naquele exato momento, Mary sentiu o queixo cair e ouviu uma voz em sua cabeça gritar que preferia enfrentar um depravado como o Barão de Rais do que salvar o homem que a chamou de bruxa.


Capítulo I


?Sabe de quem estou falando? ?Valeria lhe perguntou ao observar o sorriso de desagrado que mostrou em seu rosto. ?O conhece?

?Vagamente... ?Mary murmurou.

Por isso sua mãe a recordou que devia atendê-lo como mais um? Ela sabia de quem se tratava? «Por todos os diabos!», gritou mentalmente. Quando voltasse falaria muito seriamente com ela e lhe deixaria bem claro que jamais atenderia, mesmo que estivesse a ponto de morrer, imbecis como lorde Giesler.

?De onde? ?Valeria insistiu, apesar do mau humor que a jovem demonstrava e do tom áspero que usou ao respondê-la.

?Há alguns dias, seis para ser exata, seu irmão apareceu em nossa casa junto com o visconde de Devon ?respondeu sem diminuir sua aspereza. ?Nós dois tivemos a oportunidade de nos conhecermos e conversar por um curto período de tempo...

Pouco, mas o suficiente para odiá-lo e desejar que apodrecesse no inferno. No entanto, essa parte da história não era apropriada para expor naquele momento. Para o bem dela e de seu futuro paciente, deveria se acalmar e mostrar um caráter afável, tal como seu pai insistia: «Pode ser a mulher mais inteligente do mundo, mas ninguém a respeitará se continuar se comportando de maneira tão irascível».

?Entendo... ?a Sra. Reform sussurrou fixando seu olhar na janela.

?Disse que está doente há quanto tempo? Que sintomas têm apresentado? ?Mary perguntou para tentar esquecer o ódio que sentia pelo paciente e se concentrar em descobrir a possível doença. Porque se tudo fosse uma mentira, se a fez sair de sua casa para continuar zombando dela, antes de três horas passadas, seu sofrimento seria real, assim como a terrível dor que apareceria em sua virilha.

?Dois dias. A febre não diminui. Tem tanto calor que saíram bolhas na sua pele. Delira, tem suores, não para de vomitar e faz movimentos involuntários muito bruscos. Antes de pedir ajuda na sua casa, seus olhos estavam em branco por causa do novo aumento de temperatura, por isso disse a vários criados que preparassem um banho de água fria. Espero que com isso acalme...

?Realmente ordenou tal insensatez? ?Mary disse horrorizada. ?Que absurdo!

?Desculpe? ?Valeria retrucou com uma mistura de surpresa e assombro com a súbita mudança de atitude. Estava chamando-a de estúpida por ter mandado fazer uma coisa tão frequente em estados febris? ?O que quer dizer com essas palavras Srta. Moore? ?Resmungou, adotando novamente uma atitude distante.

?Como lhe ocorreu tal incoerência? Uma pessoa com febre alta não pode entrar em uma banheira com água fria, mas morna e, uma vez que seu corpo se adapte a essa breve mudança de temperatura, se acrescenta gradativamente gelo, mas nunca de uma vez! ?Falou irritada.

?Bem, agora entendo porque sua vida social é tão escassa... ?murmurou em voz alta. ?Espero que os servos tenham sido mais sensatos do que eu e não o congelem antes da sua chegada.

?-Isso espero! ?Mary disse, cruzando os braços sobre o peito.

A conversa entre as duas mulheres cessou naquele momento. O silêncio reinou dentro da carruagem, embora ocasionalmente se ouvisse os grunhidos exasperados de Mary. Valeria não podia afastar o olhar dela e de se perguntar se seu irmão era consciente do verdadeiro caráter da mulher que ele invocou inconscientemente. Talvez quando se conheceram, a jovem em idade de casar, contemplou um homem tão bonito e galã, tirou todas as suas armas de sedução para apanhá-lo. Só esperava que, ao tratá-lo novamente, Philip entenderia que os escorpiões tinham menos veneno no ferrão do que ela em sua língua.

Uma vez que a carruagem estacionou na entrada da residência, o cocheiro abriu a porta para ajudar em primeiro lugar a Sra. Reform, no entanto, a filha dos Moore se esqueceu do bom protocolo e, depois de um movimento brusco, saltou para o chão sem observar a cara de espanto do empregado.

?Onde disse que se encontra seu irmão? ?Mary perguntou, agarrando a pasta com força.

?Não lhe disse ?Valeria garantiu mal humorada. ?Mas imagino que continua em seu quarto, onde o deixei antes de procurar por seu pai.

?Não há tempo a perder! Devemos impedir esse absurdo congelamento! ?afirmou, caminhando até a entrada sem esperá-la. Assim que chegou à porta, Mary pegou a aldrava e bateu até que um mordomo a abriu. ?Diga-me agora mesmo, onde se encontra o doente ?lhe perguntou assim que o viu. Entrou na casa sem ser convidada, rapidamente tirou o casaco, jogou no mordomo e olhou em volta tentando descobrir em qual lugar da casa deveria avançar.

Shals, o criado principal, fixou seus olhos cinzentos na Sra. Reform, quem apareceu depois na estranha, e perguntou-lhe com aquele olhar se deveria responder a sua exigência. Quando ela assentiu, respondeu:

?Em cima, terceira porta a direita. Se desejar que a acompanhe...

Não conseguiu terminar a frase porque Mary ergueu o vestido com a mão esquerda e subiu as escadas tão rápido que, antes de piscar duas vezes, já estava no andar de cima.

?Sra... ?disse a Valeria ?Quem é essa moça? Não será uma das amigas do Sr. certo? Já sabe que estamos proibidos de aceitar a entrada de mulheres de moral duvidosa.

?Não se preocupe. Não acredito que meu irmão a declare como amiga e tampouco é de moral duvidosa. Além disso, imagino que nem saiba o que essas duas palavras podem significar ?respondeu, oferecendo-lhe o casaco. ?É uma das filhas do doutor Moore que veio em seu lugar. Segundo me informou a esposa do médico, ela tem experiência suficiente para descobrir o que acontece com Philip e o atenderá até que seu pai apareça.

?Como disse? ?Retrucou Shals mais espantando se possível. ?Uma mulher médica? Tem certeza? Seu comportamento não me pareceu...

?Também não a achei muito adequada, mas se é capaz de descobrir o que acontece com Philip, esquecerei esse comportamento grosseiro e insolente que exibe com tanto orgulho. A propósito, sabe se poderiam colocá-lo na banheira?

?Acabaram de subir vários criados para levantá-lo da cama. Como bem sabe, as dimensões do Sr. são...

?Nem pense nisso! Deixem-no novamente sobre esse maldito colchão, bando de inúteis! ?Mary gritou com tanta força que Valeria e Shals a ouviram como se ela ainda estivesse no corredor.

?Meu Deus! ?O mordomo exclamou horrorizado. ?Continua dizendo que esta mulher é a certa para salvá-lo?

?Não ?garantiu antes de levantar o vestido com as duas mãos e subir os degraus o mais rápido que podia.

Quando chegou ao quarto, Valeria se apoiou no batente da porta para tomar ar. Enquanto sua respiração normalizava, seus olhos se cravaram dentro do quarto. Os três criados, quem tinham tentando mover o corpo de seu irmão, estavam ao pé da cama e olhavam para Mary como se ela fosse louca, pois nenhuma mulher sensata gritaria em uma casa desconhecida nem permaneceria em frente a um homem nu, embora o lençol escondesse a parte inferior de seu irmão. No entanto, Valeria ficou perplexa pela atitude fria da Srta. A filha do médico não o contemplava como uma mulher faria, mas como um médico que procurava a origem da doença que padecia seu paciente. Depois de tocar a testa, continuou com o peito. Suas mãos apalparam o peito de Philip sem nenhum tipo de sensualidade. Sensualidade? Aquela mulher não sabia o que era isso! Mas os olhos de Valeria se arregalaram e os três servos exclamaram horrorizados quando ela baixou os lençóis até os quadris. Os pelos loiros encaracolados de seu irmão ficaram descobertos. Colocou as mãos no rosto e deus graças a Deus que estava inconsciente, porque só culparia ela de tê-la levado ao seu quarto e que ela tomou certas liberdades inadequadas enquanto ele não podia se defender.

Sem afastar os olhos de Mary, notou como seus dedos largos se concentraram na parte da virilha direita. Com uma suavidade improvável apalpou durante um bom tempo, logo as afastou, andou para trás, levantou o rosto, olhou para os servos espantados e lhes perguntou:

?Onde estão os vômitos do seu Sr.? ?Como ninguém era capaz de respondê-la, pois não podiam falar por causa de seu espanto, ela começou a procurar o recipiente embaixo da cama. Quando o encontrou, pegou-o e levou até a luz da cabeceira. ?Desde quando está assim?

?Faz um dia ?Valeria respondeu entrando lentamente. ?Primeiro foram as febres e depois os...

?Se queixou de dor abdominal? ?Mary insistiu voltando para a cama com a bacia nas mãos.

Depositou-a no chão. Depois, apesar dos olhares reprovadores dos servos, colocou as palmas das mãos novamente na região da virilha afetada e justo quando seus dedos pressionaram essa parte com mais força, Giesler, que estava inconsciente até agora, gritou de dor.

?Parece que sim, se queixa... ?Valeria comentou sarcástica ao observar como seu irmão finalmente abria os olhos e agarrava com força a mão direita da jovem.

?Acalme-se, lorde Giesler. Sou Mary Moore ?começou a falar com ele ao descobrir que a olhava assombrado, como se achasse que estava vivendo uma alucinação. ?Sua irmã apareceu em minha casa para pedir ajuda ao meu pai. Como ele não se encontrava, vim no seu lugar. ?Puxou a mão, dirigiu-se a sua maleta e procurou pelo estetoscópio. Uma vez que o encontrou, voltou até o doente, colocou a campainha larga em seu abdômen e ouviu atentamente.

?Mary... ?Giesler sussurrou, apoiando novamente a cabeça sobre o travesseiro e incapaz de afastar os olhos dela.

?Chist! Preciso de silencio ?ordenou.

Philip observou-a atordoado até que Valeria se acomodou ao seu lado. Não querendo fazer nem um mísero barulho, para não desobedecer a ordem da mulher feroz, lentamente virou a cabeça até seu irmão. Ela encolheu os ombros e o olhou com simpatia, como se estivesse pedindo perdão por tê-la levado. No entanto, apesar do estado atordoado que Philip estava e da dor que percorria seu grande corpo, ele sorriu antes de desmaiar de novo.

?Acredito que ele tem a fossa ilíaca direita inflamada ?Mary comentou depositando o instrumento na maleta.

?E? —Valeria perguntou, pegando o pano que estava em uma mesa de cabeceira para limpar suavemente o rosto suado de Philip.

?Tem que fazer uma incisão nessa parte do corpo, cortar e extrair a fossa afetada, limpar bem o interior, cauterizar e costurar ?explicou, como se estivesse descrevendo uma tarefa tão simples quanto encher um copo de água embaixo da torneira.

?Como podemos aliviar a dor enquanto seu pai não chega? ?Valeria apontou, terminando a tarefa que estava fazendo.

?Não deveríamos esperar tanto. Se a fossa não estiver perfurada, há muita possibilidade que sobreviva, mas se estiver... aconselho-lhe que realize todos os preparativos pertinentes para um próximo funeral ?declarou com grosseria.

?Como ousa falar dessa forma, Srta Moore? Está se referindo ao meu irmão! Por acaso não tem compaixão? ?Clamou horrorizada por sua falta de tato.

?Sou uma mulher racional e sincera, Sra. Reform. Esclareço o que há e enfatizo que, se não agirmos rapidamente, a vida do seu irmão terminará em apenas três dias. ?Colocou as mãos na cintura e olhou com frieza. ?Não concorda com meu diagnóstico? Bem... corra! Procure o doutor Flatman para que verifique minha conclusão! Talvez seja muito tarde para ele... ?insistiu com mais crueldade do que deveria mostrar.

Por acaso estava desesperada para salvar a vida do homem que a chamara de bruxa? Por quê? Teria mudado de ideia ao ver como seus olhos azuis a observavam como se a idolatrasse? Havia em seu coração um pouquinho de piedade? Ou queria salvá-lo para depois lhe recordar que tinha um divida de vida com ela? O que quer que fosse, era a primeira vez que misturava sentimentos e trabalho...

?Está me dizendo que a vida do meu irmão está em minhas mãos? ?Valeria enfatizou se levantando do colchão.

?Não. A vida do seu irmão está nas minhas, porque serei eu quem realiza a intervenção. Você deve dar seu consentimento. Embora também possa esbofetear lorde Giesler até que aceite minha decisão ?afirmou virando até o paciente como se tivesse a intenção de lhe bater.

?Não se atreva a tocá-lo! ?Valeria explodiu andando até ela. ?Se fizer isso, garanto-lhe que não ficará um único fio de cabelo na sua cabeça.

?Não me importa ficar careca, Sra. Reform, caso não saiba, em menos de um ano vou usar outra linda cabeleira, mas se não operar seu irmão imediatamente, ele estará no subsolo, decompondo e alimentando todos os tipos de microorga...

?Maldita seja! ?Valeria gritou desesperada. ?O que quer que faça?

?Que consinta o que vou fazer ?Mary disse satisfeita.

?E se morrer durante a intervenção?

?Morrerá de qualquer maneira ?disse sem hesitar nem um único segundo.

?Está bem! Que todo mundo siga as instruções da Srta Moore! ?Valeria finalmente decidiu. ?Espero que não morra em suas mãos...

?Ele não vai ?Mary determinou antes de se colocar na frente de sua maleta e preparar todos os instrumentos que precisava para aquela operação apressada.


***

Valeria não podia acreditar no que via. Era tão improvável que mais de uma vez acreditou viver um pesadelo. Depois que a Srta. Moore ordenou acender todas as luzes que havia no quarto e que fechasse as janelas, pediu aos servos que colocassem duas mesas grandes em frente à lareira. Foi nela onde colocaram Philip. Então os obrigou a lavarem suas mãos em sete recipientes que havia cheio de água e sabão. Mas não se conformou com essa exaustiva limpeza, também os obrigou a borrifar suas palmas com um liquido que chamava desinfetante. Os lacaios fizeram isso sem questionar, porque ficou muito claro o caráter azedo e autoritário da mulher. Dois deles, que a olhavam como se fosse o próprio diabo, foram encarregados de limpar o sangue que caia no chão e de avivar o fogo. Quando tudo estava pronto, começou a trabalhar. Se até esse momento havia pensando que era uma pessoa única, o comportamento que manteve depois, confirmou. Enquanto que ela não podia permanecer de pé nem dois minutos ao presenciar a pequena incisão que fez no corpo de Philip, Mary nem piscou. Parecia que tudo ao redor deixou de existir para ela, embora falasse sem parar sobre certas descobertas cientificas sobre a operação que realizava. A jovem se concentrou no trabalho com tanta segurança e precisão que ficou fascinada. Nem em seus partos o médico que a atendeu foi tão firme e profissional! Não havia dúvidas, Mary tinha um dom e, por muito estranho que lhe parecesse, Philip sabia. Talvez por essa razão ele murmurasse tantas vezes seu nome. Mas... como e quando a descobriu? Falaram sobre medicina nesse primeiro encontro? Não, essa opção estava descartada, desde que seu irmão não tinha conhecimento sobre esse assunto. Além disso, a filha do médico não lhe agradou lembrar aquele momento, como se tivesse sido o pior de sua vida... Por que Philip sabia da incrível capacidade da mulher? Perguntaria sobre ela depois daquele dia? Por qual motivo? Esperava que, se ele se salvasse, respondesse a todas as suas perguntas, porque era a primeira vez que Philip lhe ocultava algo sobre mulheres e isso a fazia suspeitar que talvez esse encontro fora mais importante para ele que para ela.

Durante as quatro horas seguintes, Mary não foi capaz de afastar o olhar do corpo de seu paciente. Depois de sedá-lo, para o que teve que usar quase todo o clorofórmio que tinha, porque não tinha levado em conta as dimensões do paciente até que o ouviu gritar depois de apertar a ponta da escarpa em sua pele, fez a incisão na região e procurou a fossa ilíaca. Tal como pensou, pelo inchaço que apresentava a olho nu, não estava perfurada, os resíduos continuavam armazenados no pequeno apêndice vermiforme. Enquanto removia e cauterizava a borda com uma faca em brasa, falava com a desconfortável Sra. Reform sobre os descobrimentos egípcios e como registraram essa doença nas mumificações. Então mencionou os estudos que Lorenz Heriste realizou, um discípulo de Herman Boerhaave, e finalizou o monólogo cientifico com as pesquisas realizadas por Reginald H. Fitz, um famoso professor de anatomia patológica da Universidade de Harvard. Mas a única coisa que saía da boca da irmã o tempo todo era «que não morra», de modo que Mary deduziu que ela não ouviu uma única palavra de sua ampla e contundente exposição científica sobre a descoberta do apêndice inflamado.

?Agulha e linha ?pediu, uma vez que finalizou a limpeza por dentro.

?Aqui está ?respondeu o criado que havia permanecido ao seu lado em todo o momento.

?Desinfetou isto? ?Perguntou depois de segurá-lo e esticar o fio para que não tivesse nós.

?Sim, fiz tal como indicou ?informou, afastando-se rapidamente dela.

?Lavou as mãos antes de fazê-lo? Porque, mesmo que não seja visto a olho nu, nossa pele pode estar contaminada por...

?Garanto, Srta. Moore, que jamais tive minhas mãos tão limpas ?interrompeu a criada com relutância, repetindo todas as ordens sete vezes, como se não pudessem entendê-la a princípio.

Com um sorriso que cruzava o rosto, Mary começou a fechar a abertura enquanto a Sra. Reform finalmente se levantava da cadeira em que havia permanecido durante a intervenção. Quando finalizou a sutura, pegou o bisturi, cortou o fio em excesso e colocou-o na bandeja onde estava o pedaço de intestino removido.

?Agora só precisa de muito repouso. Deve tomar o remédio que deixarei sobre a mesa de cabeceira. Os banhos frios acabaram durante uma boa temporada. Recomendo que limpe seu corpo com panos em água quente e se aparecerem algumas crostas brancas em volta da ferida, tem que...

?Vai embora? Pretende deixa-lo assim? ?Valeria espetou chocada olhando para o corpo convalescente de Philip.

Reconhecia que a atitude da filha dos Moore fosse sublime e que a Sra. Moore tinha razão ao recomendá-la. No entanto, não permitiria que saísse tão cedo. Precisava que ficasse durante a noite. Ela, melhor do que ninguém, poderia atendê-lo quando acordasse.

?Meu trabalho acabou Sra. Reform. Agora cabe a vocês cuidarem do doente. Se seguir minhas instruções, em dois dias poderá se levantar e dez dias depois continuará com seu estilo de vida habitual ?respondeu retirando o suor da testa com a manga direita do vestido. ?Além disso, meu pai aparecerá em algumas horas para verificar seu estado. Se tiver alguma dúvida sobre...

?Você fica! ?Garantiu a irmã. Ao perceber que não havia usado o tom adequado para falar, pois as rugas em sua testa indicavam que jamais admitiria uma imposição, suavizou a voz. ?Srta. Moore, Mary, peço-lhe que não saia até ele abrir os olhos. Já descobriu que sou incapaz de me manter firme quando vejo sangue e se tenho que trocar o curativo ou limpar...

?A troca de curativo pode ser feita pelo meu pai dentro de alguns dias, e lembro que não é apropriado que permaneça desnecessariamente. Não tenho dúvidas de que seu irmão melhorará se seguir minhas instruções... ?Mary comentou visivelmente sufocada.

Não queria estar presente quando aquele titã loiro abrisse os olhos, preferia se manter distante do homem que a chamara de bruxa. Além disso, não podia perder tempo cuidando da pessoa que odiava. Era verdade que o salvara de uma morte certa, que tinha abrandado ao ver como ele a olhava, mas até aí chegava a sua benevolência. Quanto antes saísse daquela casa, antes poderia esquecer que o conhecia e que havia contemplado aquele imenso corpo nu. Como era possível que suas pupilas se fixassem em certas regiões indecorosas? Havia atendido muitos homens doentes, mas ele era diferente de todos eles. A largura de seu torso, de seus braços, a magnitude e a força de suas pernas... toda aquela aparência dignificava-o. Qualquer mulher, que desejasse ter filhos robustos e saudáveis, procuraria um marido como ele. Mas ela não seria essa futura esposa. Tudo o que queria era colocar alguma distância entre os dois e que sua mente esquecesse tudo o que havia observado.

?Se teme por sua honra, lhe garanto que ninguém desta casa falará sobre sua visita ?Valeria afirmou se aproximando dela.

?Honra? ?Mary perguntou divertida. ?Nunca me interessei por esse tipo de besteira! Sou a pessoa mais honrada do planeta, por isso ninguém é capaz de me suportar. Não se trata disso, Sra. Reform, está mais para privacidade. Seu irmão e você precisam de privacidade para realizar os cuidados apropriados. O que seu irmão pensaria quando me visse em seu quarto?

?Que salvou a sua vida. Só isso. E estará tão agradecido como eu estou.

?Mas não é adequado que uma mulher permaneça sozinha no dormitório de um homem ?Mary insistiu, limpando o sangue de suas mãos na bacia que um dos empregados aproximou.

?É puritana, Mary? Depois do que fez, tenta me convencer de que é uma mulher recatada? Porque se fosse, eu não teria suportado as quatro horas que a intervenção durou com tanta solenidade ?Valeria insistiu.

?Está recriminando mina atitude? Porque tenho que lembrá-la de que acabei de salvar-lhe a vida ?concluiu, assinalando Giesler com um dedo de sua mão direita.

?Não interprete mal minhas palavras, por favor. Estou e serei eternamente agradecida. Tudo que eu quero é que permaneça ao seu lado esta noite. Estou tão cansada, depois desses dias, não sei se posso agir corretamente. É por isso que suplico que me ajude. Sabe como me sentiria se depois de seu brilhante trabalho ele não se recuperar por minha causa? ?Valeria retrucou visivelmente preocupada.

?Aceitarei esse pedido como um elogio... ?Mary respondeu cruzando os braços sobre o peito. ?Mas insisto que não sou a pessoa adequada para cuidar do seu irmão.

?Pedirei a um criado para acompanhá-la em todos os momentos. Assim nunca estará sozinha e será capaz de lhe dizer tudo o que quiser ?Valeria informou-a um pouco mais calma. ?Se amanhã, quando seu pai aparecer, decidir que não deve continuar na residência, procuraremos outra pessoa para assumir o seu lugar.

?Não se trata de ficar sozinha com ele, mas sobre a reação que terá quando abrir os olhos e me encontrar ao seu lado ?Mary explicou estendendo os braços para o chão. Então voltou para onde Philip estava, coberto até o peito com um lençol que um dos servos havia colocado, e o observou em silencio. Faria a coisa certa ficando aquela noite? O que poderia acontecer? A princípio, depois de usar tanto clorofórmio, não acordaria até a chegada do novo dia, momento em que seu pai poderia se ocupar dele. Mas... e se acordasse? O que faria quando a visse? Olharia novamente para ela com ternura ou gritaria para que saísse?

?Meu irmão não vai julgá-la, Mary. Depois do que fez por ele, por que acha que reagirá negativamente? ?Valeria insistiu se aproximando dela.

?Lembra-se de uma das perguntas que me fez na carruagem? ?Mary continuou deixando Giesler para encontrar a Sra. Reform no meio do quarto.

?Agradeceria se fosse mais especifica, porque tudo que eu pensava antes de sua atitude, foi apagado da minha mente ?disse com sinceridade. Não mentia. Tudo aquilo que pensava sobre Mary desapareceu de sua cabeça ao vê-la agir.

?Me perguntou se nos conhecemos e eu lhe disse brevemente. Bem, garanto-lhe que o nosso encontro foi suficiente para eliminar qualquer amizade cordial entre os nós dois. ?Mary olhou de lado para Philip e suspirou. Parecia tão dócil naquela situação, que até ela duvidava que fosse um ogro, mas era.

?Tenho certeza que meu irmão esquecerá qualquer incidente que tiveram no passado quando descobrir que você salvou sua vida ?Valeria esclareceu indicando com a mão a saída, para que ambas saíssem juntas.

?Não estou muito convencida disso... ?murmurou caminhando até a porta. ?Você seria capaz de perdoar a pessoa que tentou matá-la?

?O que disse? ?Valeria retrucou arregalando os olhos e parando atrás dela. ?Queria matá-lo. Por quê?

?Porque me chamou de bruxa ?Mary explicou avançando rapidamente. Se a irmã começasse a gritar, era melhor que o fizesse fora do quarto para não despertá-lo antes do previsto.

?Faria sem pensar. Em defesa do meu irmão, tenho que lhe dizer que ele é muito atencioso com as mulheres, muito para meu bom entendimento... ?Valeria esclareceu, tomando novamente o caminho para fora. Ao fechar a porta, se colocou ao lado de Mary e a olhou por um momento. Por que a chamou de bruxa? O que aconteceu entre eles? Se quisesse conhecer a verdade e descobrir o motivo pelo qual seu irmão havia chamando-a dessa forma e porque sorriu ao descobrir que ela estava ao seu lado, tinha que se esforçar o suficiente para que entre elas duas crescesse uma pequena amizade. ?Me daria a honra de tomar um chá? Depois de tantas horas sem comer, estou faminta.

?Não gosto de chá, prefiro o café e se acrescentar a isso uns ovos mexidos e torradas, estarei encantada em acompanhá-la ?Mary disse parando no alto da escada.

?Vejo que não sou a única que tem fome ?Valeria afirmou sorrindo. ?Não se preocupe, o serviço é incapaz de dormir desde que meu irmão ficou doente e certamente a cozinheira ficará feliz em preparar tudo o que quisermos. ?Enlaçou o braço direito com o esquerdo de Mary e desceram as escadas juntas. ?Sabe? Philip é incapaz de sair de seu quarto sem primeiro tomar duas xícaras de café. Segundo me explicou, as pessoas que o tomam são mais inteligentes e ativas. E depois do que fez, penso que tem razão. E você é uma mulher muito lúcida e perspicaz.

?Tentando me elogiar, Valeria? Não pareço mais uma mulher tão horrível? Esqueceu meu mau caráter? Porque posso lhe garantir que não será a primeira ou a última vez que me comportarei de maneira tão grosseira. Como bem sabe, minhas habilidades sociais são bastante escassas, o que não me preocupa em nada.

Diante dessa afirmação, a Sra. Reform soltou uma risada alta, apertou Mary com mais força em direção a ela e avançaram até que pisaram no corredor.

?Depois de sua atitude, tenho que lhe dizer que possui mais qualidades positivas que negativas, embora tema que não está acostumada a esse tipo de bajulação em relação a sua pessoa, estou errada?

?Não sei muito bem o que responder a isso porque acho mais fácil enfrentar críticas do que elogios ?respondeu com sua habitual sinceridade.

?Então se acostume com isso, Mary. Se realmente salvou a vida do meu irmão, ele se transformará em seu fiel protetor e eu em sua principal admiradora. Acha que qualquer um de nós permitirá que voltem a menosprezá-la por realizar um trabalho que até agora só realizavam homens? Ninguém será tão tolo em lidar com a protegida de Giesler ?garantiu enquanto a dirigia para a cozinha.

?Se você diz... ?Mary declarou um pouco desconcertada.


Capítulo II


Tinha que admitir que a conversa que manteve com a Sra. Reform se mostrou muito agradável. Além das numerosas atenções afetuosas, que lhe fizeram desconfortável mais de uma vez por não estar a costumada a tanta cortesia, a conversa foi muito reveladora para ela. Descobriu que os Giesler procediam de uma casta de barões alemães, que o pai se apaixonou por uma cigana espanhola e que ambos saíram da Alemanha para viverem seu romance. Uma bela história que terminou com três filhos: Valeria, Philip e Martin. Este último não o conhecia pessoalmente, mas tinha ouvido falar dele pelo excelente trabalho como professor de matemática avançada na Universidade de Oxford. Aparentemente, era uma celebridade, apesar de ser tão jovem. Isso só aconteceu porque tinha nascido homem...

Pegou o vestido com as duas mãos e subiu novamente as escadas. Nesta ocasião não foi acompanhada pela Sra. Reform, pois lhe insistiu que fosse a sua casa para descansar. Tal como Valeria garantiu com autoridade, só ela poderia ajudar o paciente se ele piorasse. A princípio se negou a deixá-la sozinha, pois fez uma promessa a sua mãe. No entanto, depois de uma intensa discussão, concordaram que Shals, o principal mordomo de lorde Giesler, permaneceria ao seu lado durante toda a noite. Mary sorriu novamente ao lembrar o memento em que o servo entrou na cozinha e ouviu a decisão de Valeria. Se naquele momento Anne estivesse junto para contemplar aquele rosto, tê-lo-ia pintado entre gargalhadas. Jamais admirou olhos tão abertos e uma boca tão grande. Na verdade, não pretendia que agradecesse por ter salvo a vida do homem que pagava o seu salário, mas tampouco esperava que reagisse com tanto medo e surpresa, como se estivesse em frente ao próprio Lúcifer. O fiel empregado acreditava que, no meio da noite, ela mudaria de ideia e, depois de pegar seu bisturi, retalharia seu senhor da cintura até a garganta? Embora essa ideia parecesse agradável na manhã em que o conheceu, havia mudado de opinião. Talvez o fato de saber que suas mães tinham algo em comum ou descobrir que não era tão invencível como lhe pareceu naquele dia, suavizou seu temperamento. Quem teria imaginado que um homem com esse aspecto se encontraria apertando a mão da morte? Possivelmente seu sangue espanhol, o único legado da mãe, porque não tinha dúvida de que Lorde Giesler herdara o físico de seu pai, que o mantivera vivo até sua chegada. Ambos os pais haviam passado por situações muito parecidas: a mãe fugiu dos ciganos para se casar com um médico e a cigana espanhola com um barão alemão. Sem dúvida alguma, ambas as mulheres tiveram a sorte de encontrar os homens que as amariam e respeitariam até a morte.

Quando chegou ao patamar no primeiro andar, caminhou lentamente até o quarto onde passaria as próximas horas. Só tinha que respirar fundo e agir com naturalidade até que seu pai chegasse. Uma vez que ele confirmasse que o paciente estava bem e que evoluiria normalmente, sairia de lá sem olhar para trás. Não era bom para ela permanecer ao lado de um homem que havia desejado odiar depois de lhe salvar a vida e descobrir que tinham muitas coisas em comum.

Colocou a mão na maçaneta e virou-a devagar, para não fazer muito barulho. Os criados, exceto Shals, haviam se retirado para descansar e não queria tirá-los de seus quartos se perguntando o que havia feito desta vez a filha do médico. Ao abrir a porta, ao olhar para dentro do quarto, levou as duas mãos até a boca e a pressionou com força para que seu grito não se ouvisse. Por que diabos fizeram tal coisa? Se não falhava a memória, jurava que os havia ordenado que não movessem o recém operado até que acordasse? Bem, eles a ignoraram! Os lacaios, aqueles a quem lavara as mãos tanto que pôde observar como alguns pedaços de pele morta caíram no chão, ergueram o grande corpo de seu paciente para colocá-lo no confortável colchão. Por acaso estava trabalhando com um bando de teimosos? Não eram capazes de entender suas palavras? Bem, terminariam compreendendo cada letra! No dia seguinte, assim que a Sra. Reform aparecesse, pediria que convocasse uma reunião com os servos. Uma vez que todos estivessem em silencio e atentos as suas palavras, escolheria uma linguagem muito simples para que pudessem compreender melhor as ordens.

Obrigou-se a se concentrar no bem estar de seu paciente. Andou pelo quarto pisando com força e não parou até se posicionar ao lado direito da cama. «Verdammt![2]», exclamou horrorizada ao descobrir que seus dedos, por mais que esticasse seus braços, de onde estava não alcançava o curativo, porque o haviam deitado exatamente no centro da imensa cama. Mas como podiam ser tão inúteis? Não deduziram que ela tinha que subir no colchão para tocar sua testa ou para verificar se a ferida não havia sido aberta ao deslocá-lo? Não! Como poderiam calcular uma lógica tão simples? O único que desejavam era que seu senhor acordasse confortavelmente em sua cama enorme, sem se importar com a inconveniência que a pessoa que salvara sua vida encontraria durante a noite. Por acaso não podia proteger sua honra? O fato de que Valeria mostrasse que sua presença deveria ser mantida em segredo para o bem de todos, não lhes dava o direito de tratá-la como se ela não estivesse. Depois de bufar como um cavalo ao final de uma interminável corrida, seguiu em direção a lareira, onde se encontrava um caldeirão com água limpa e quente. Colocou as mãos e tirou rapidamente ao sentir como sua pele queimava. Olhou com raiva para o paciente, como se estivesse rindo dela e voltou a resmungar. Sim, essa reunião com os empregados deveria se realizar o quanto antes e quem não acatasse suas ordens, ela mesma expulsaria a patadas da residência.

Irritada com a inépcia dos lacaios, ela voltou para a cama para garantir que o paciente não sangrasse. Só faltava que depois do que aconteceu nesse dia, lorde Giesler morresse depois da sua intervenção. O que comentariam aqueles que sempre zombaram da sua inteligência e capacidade? Não suportaria uma humilhação semelhante e seu pai teria que procurar outro capitão de navio que não levasse somente Anne a França, mas ela também. Olhou para a porta, que ainda permanecia fechada, e deixou de respirar, para aguçar o sentido da audição. Depois de comprovar que não havia ruído ao seu redor, subiu com muito cuidado na cama, se ajoelhou sobre o colchão, afastou rapidamente o lençol do corpo de Giesler e cravou seus olhos no curativo. Tinha várias manchas de sangue nele, mas eram normais depois de uma operação desse tipo. Talvez aqueles que o moveram foram mais atentos do que pensou. Assim que confirmou que o curativo continuava firme na cintura, apoiou a mão direita sobre a cama para descer. No entanto, seus olhos seguiam fixos no imenso e forte peito de Giesler. Como havia deduzido antes, era um homem bastante robusto e bonito. Poderia classificá-lo até como atraente, embora naquele momento precisasse de um bom banho para eliminar o suor que tinha emanado do seu corpo. Sua mata de cabelos loiros, que cobria desde seu peito até a cintura, possuía uma tonalidade mais escura que a de seu cabelo, permanecia preso à pele pela transpiração. Então reviu seus ombros, admitindo que o volume deles permanecia de acordo com a solidez de seus braços. Valeria não tinha dito que acompanhava o visconde em suas viagens? Bem, a cor de sua pele e a musculatura confirmavam que não passava as longas viagens protegido em um camarote. Sem dúvida alguma, se transformaria em um corsário vulgar uma vez que zarpassem. Pela diferença de tom entre o peito e a cintura, não tinha dúvidas de que lorde Giesler mostrava seu grande peito sem pudor, fazendo com que o sol e a brisa marinha alcançassem sua pele. Entendia o motivo pelo qual a cigana espanhola se apaixonou pelo barão alemão a primeira vista. Se seu filho tivesse herdado o físico paterno, tal como Valeria disse, não haveria mulher que resistisse a um homem tão atraente. Exceto ela, claro. Pois era imune a sedução masculina. Afastou o olhar do peito e fixou em seu rosto. Seus traços viris se acentuavam com a barba loira que cresceu desde que adoeceu. Seria grosseiro como o caráter que ofereceu no dia que se conheceram ou seria tão suave quanto o toque do lençol? Intrigada para descobrir que sensação tinha, levou os dedos de sua mão direita até o rosto de Philip e o acariciou lentamente. Surpreendentemente, ele virou a cabeça para a palma da sua mão quando sentiu o contato e, embora tivesse que retirá-la rapidamente, para o caso de ele acordar, a manteve até que ouviu a porta abrir.

?Srta Moore... ?disse Shals ao encontrá-la naquela posição tão pouco adequada. ?O que está fazendo? O senhor está acordado?

Dissimulando o espanto que lhe causou ser descoberta dessa maneira tão afetuosa, esticou o lençol para cobrir o pescoço e saiu da cama com menos delicadeza do que quando subiu.

?Estava confirmando que, ao movê-lo, a ferida não se abriu ?explicou com uma serenidade fingida. Colocou os pés no chão e deu vários passos para trás.

?E fez isso? ?Perguntou o mordomo entrando no quarto com uma enorme poltrona em suas mãos.

?Por sorte não. Mas foi imprudente movê-lo tão depressa ?Mary respondeu, se afastando o suficiente para que o criado colocasse a pesada poltrona ao seu dela. ?Para quem é isto? ?Perguntou curiosa.

?A Sra. Reform, antes de sair, me pediu que subisse a poltrona mais confortável que nosso senhor tem em seu escritório ?respondeu depois de deixá-la no chão e colocar as mãos nas costas, como se tivesse se machucado ao transportá-la.

?Dói? ?Mary disse se aproximando dele. ?Não deveria tê-la trazido sozinho. Deveria pedir ajuda a outro lacaio. ?Antes de ouvir a resposta de Shals, andou até o caldeirão quente que estava em frente à lareira, mergulhou um pano e, aguentando a alta temperatura, voltou para onde o empregado estava. ?Tire seu casaco e suba a camisa, por favor. Isto acalmará a dor.

?Mas... mas... ?ele gaguejou.

?Ou faz por vontade própria ou lhe garanto que não me importará tirá-la eu mes...

?Está bem. Farei o que me pede ?desistiu. Apesar do desconforto que sentiu, não só se separando de seu traje na frente de uma mulher, mas também pela indisposição em sua cintura, tirou o paletó e levantou a camisa para o meio das costas. Shals fechou os olhos quando notou um leve alívio quando Mary colocou o pano em sua pele.

?Não quero que você interprete mal minhas palavras, mas você está velho demais para fazer semelhante esforço ?alegou pressionando o pano úmido sobre a pele.

?Sempre fala dessa forma, Srta Moore? ?Shals estalou olhando por cima do ombro. Vendo que ela estava sorrindo, como se não se importasse com a pergunta mordaz, ele também sorriu.

?Como disse a Sra. Reform, sou uma pessoa muito racional e sincera. –Com a mão direita pegou a do mordomo e a colocou sobre o pano, então fez o mesmo com a outra. ?Aguente por mais alguns minutos. Se ainda continuar doendo, posso te dar um analgésico que tenho na maleta.

?Obrigado, com isto será o suficiente ?Shals respondeu depois de se virar para ela. —Posso fazer-lhe uma pergunta?

?Pode fazê-la, mas não prometo que a responda ?disse antes de circundar a cama, se aproximando de Giesler novamente, alongando seu corpo até que pudesse pegar seu pulso e confirmar que era adequado.

?Como aprendeu tudo o que sabe? ?Perguntou sem poder afastar o olhar dela. ?Seu pai a ensinou como se fosse um homem?

O sorriso que havia mostrado até esse momento, desapareceu. Levantou o queixo e olhou para o criado como se quisesse fuzilá-lo.

?Por acaso acredita que as mulheres nasceram sem cérebro e que a função dos homens é criá-las a sua conveniência? ?Disse levantando a voz.

?Não! Não! Por favor, Srta Moore, não interprete mal minhas palavras ?declarou Shals em voz baixa. ?Juro que não quero magoá-la ?argumentou, afastando o pano de suas costas.

?Disse para não tirá-lo ?repreendeu quando viu que, devido ao nervosismo, ele havia desobedecido a sua ordem.

?Sinto muito... outra vez ?Shals declarou acatando a ordem de Mary enquanto abaixava a cabeça, envergonhado.

?Tem filhos? ?Mary continuou falando enquanto voltava a poltrona que havia trazido. Se sentou e levantou o queixo para continuar observando o mordomo.

?Não.

?Então deduzo que é absurdo explicar as decisões que meu pai tomou depois de ser pai de cinco filhas ?se recostou na poltrona, cruzou os braços e encarou o paciente, que ainda estava descansando tranquilamente.

?Tenho sobrinhas, se isso lhe serve de algo ?Shals explicou passando atrás da poltrona para chegar até a lareira.

Se o pano quente acalmava um pouco a sua dor, imaginou que estar em frente ao fogo, faria desaparecer. Além disso, aquele lugar era ideal se a Srta Moore sofria outro ataque de raiva por seus comentários inapropriados.

?Como seus pais se comportam com elas? ?Mary perguntou, virando na poltrona o suficiente para observar o servo.

?Nascemos em uma família que sempre se dedicou a servir, Srta Moore. Pode concluir que minha irmã e meu cunhado as instruem para continuar essa tradição ?explicou com cautela.

?Felizmente para nós, nossos pais têm uma visão mais precisa do futuro de suas filhas ?Mary suspirou.

E ela também agradecia ao bom senso que ambos possuíam. Nem sua mãe nem seu pai teriam educando-as para se tornarem as futuras esposas de senhores odiosos que não as valorizassem. Único objetivo para jovens burguesas ou aristocratas. No entanto, graças a uma educação tão liberal, as cinco puderam desfrutar de algo que poucas mulheres possuíam: a felicidade. Como seriam suas vidas se tivessem sido instruídas sob a absurda opressão social? Tediosa, com certeza, e todas tinham lutado para conseguir a liberdade que precisavam.

?Fico feliz por você ?Shals comentou ocupando finalmente uma poltrona sem encosto que estava do seu lado direito. ?É muito estranho descobrir que alguns pais não são influenciados pelos costumes que nos cercam.

?Meu pai sempre teve uma visão diferente da vida ?Mary continuou um pouco mais relaxada. ?Desde que éramos meninas, nos ensinou a cuidar de nós mesmas e aceitou o caráter com o qual nascemos.

?Em seu caso, o amor pela medicina, certo? ?Shals insistiu e devido à calma de sua dor e ao tom suave da mulher, começou a relaxar.

?Não pense que foi fácil admitir meus interesses. No começo ele estava relutante em me ensinar tudo o que sabia, mas com o tempo lhe mostrei que minhas habilidades são adequadas para tal função ?explicou com orgulho.

?E afirmo-o ?o mordomo garantiu, fixando seus olhos em Giesler. ?Confesso que estou impressionado.

?Pela operação? ?Mary retrucou rindo. ?Não foi nada... Um corte longo, um mais curto, remover, limpar e cauterizar.

?Diz isso com tanta normalidade que dá a sensação que qualquer um pode fazê-lo e não é assim. Srta Moore, tem que compreender que fez algo maravilhoso e incrível. Tenho certeza que nenhum médico poderia ter realizado uma intervenção urgente com a serenidade que você manteve em todo o momento. Graças a Deus, a Sra. Reform, depois de ouvir as palavras que o senhor pronunciou em seus delírios, foi buscá-la.

?O que disse? ?Mary perguntou se inclinando para frente, para observar melhor a expressão no rosto de Shals.

?A senhora não lhe disse? ?O mordomo respondeu com certa inquietação ao deduzir que havia cometido um grande erro.

?A senhora falou em procurar meu pai, Randall Moore, mas não me disse que Lorde Giesler mencionou meu nome em seus delírios febris ?declarou com surpresa.

?Não! Não! Não me referia ao seu nome ?Shals mentiu ?mas seu sobrenome. Meu senhor, não parava de repetir o sobrenome de seu pai. Por isso a senhora foi a sua busca.

?Já percebi... ?comentou enquanto voltava a se recostar na poltrona e fixava seus olhos no paciente. Não lhe teria ocorrido falar sobre ela, certo? Porque se fosse assim, esperaria que se curasse para deixá-lo doente de novo.

?Como descobriu, tão rapidamente, a doença do meu senhor? ?Shals, ao confirmar que suas palavras a haviam relaxado novamente, mudou de assunto. Não desejava se envolver em um problema em que se confrontaria com o caráter daquela moça e do homem ao qual servia há vários anos, porque a única coisa que conseguiria seria uma demissão iminente.

?Conto a versão entendida, que abrange desde a época egípcia ou se conforma com o momento em que apalpei meus dedos na inflamação? ?Mary disse divertida.

?Com queira. Lembre que temos que permanecer acordados toda a noite e minha única tarefa é ficar com você neste quarto ?Shals respondeu com o mesmo tom jocoso.

?Sendo assim, começarei com os estudos que se realizaram depois de algumas descobertas em certos túmulos egípcios...

Durante um pouco mais de duas horas, Mary explicou sem parar tudo o que conhecia do assunto: seus descobrimentos, quem os estudou, suas conclusões e como os resolviam durante diferentes séculos. Em várias ocasiões o mordomo se aproximou dela para servir-lhe um copo de água fresca, mas ela não percebeu esse detalhe de cortesia. Mary estava incrivelmente emocionada porque era a primeira vez que alguém a escutava falar sobre medicina com atenção e até fazia perguntas sensatas. Se sentiu tão confortável que terminou confessando tudo o que lhe perguntava sobre sua infância: o dia em que seu pai a descobriu com um livro de medicina, os gritos de Shira ao descobri-la dissecando o corpo de um gato morto, as contínuas ameaças de sua mãe com seus livros, as reuniões de medicina que assistia. Falou tanto e se encontrava tão satisfeita que não reparou em Giesler exceto quando este emitiu um leve gemido. Nesse instante, Shals abandonou rapidamente a banqueta na qual permaneceu e se aproximou dos pés da cama enquanto observava como ela o atendia.

?O que acontece ?perguntou inquieto.

?Nada estranho ?ela respondeu depois de tocar sua testa e verificar que seu estado era normal. ?O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar. ?Deixou a cama, se dirigiu até a mesa de cabeceira onde havia deixado o copo que Shals enchia continuamente e voltou até Philip.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo... ?enfiou os dedos da mão direita dentro do copo, molhou-os e, depois de levantá-los, colocou-os sobre a boca de Giesler.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

?A Sra. Cheap tem um unguento a base de gordura animal que usa para que as mãos não rachem. Se quiser, posso pedir-lhe para...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaico. Terá mais que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção ?comentou com certo tom de amargura.

?Srta Moore, não me interprete mal, te suplico. Só desejo facilitar em tudo que possa seu excelente trabalho. Imagino que seja um pouco incomodo subir na cama do meu senhor, se ajoelhar ao seu lado e se inclinar até sua boca para umedecê-la com seus próprios dedos ?Shals explicou surpreso ao descobrir que ela era tão inocente que não era cuidadosa com a imagem que oferecia. Mais que um médico hidratando os lábios de um doente, parecia uma concubina fazendo alguma brincadeira erótica no seu cliente.

?Olhando a partir dessa perspectiva, parece que estou fazendo uma coisa horrível e tudo que pretendo é...

Mary ficou muda ao sentir uns dedos apertando em torno de seu pulso direito. Continuava olhando Shals, que já não expressava assombro, mas pavor. Tampouco fixava seus olhos nela, mas os dirigia até o lugar do colchão onde se encontrava lorde Giesler. Mary tragou a saliva e virou lentamente sua cabeça em direção ao rosto do homem que, inexplicavelmente, já havia acordado. Quando seus olhares se cruzaram, o coração paralisou. Aquele homem voltava a olhá-la como no dia em que se conheceram. Não havia ternura sem seus olhos, senão ódio e raiva. Por que diabos não lhe deu mais clorofórmio? E... de todas as maneiras possíveis para encontrá-la, teria que ser dessa maneira? O que passaria por sua cabeça ao vê-la sobre sua cama e ajoelhada ao seu lado? Pensaria que começaria a chorar como uma amante dramática ao ver a vida de seu amor em perigo? Por que Shals não falava? Por que não lhe oferecia o atiçador da lareira para que ela pudesse bater na cabeça dele e deixá-lo inconsciente de novo?

?Senhor... Milorde... ?Shals tentou finalmente dizer ao ver como lorde Giesler olhava a Srta Moore. ?Ela... é...

?Quem lhe salvou a vida ?Mary garantiu antes de fazer um movimento brusco com a mão, para se livrar do aperto, e descer da cama rapidamente.


Capítulo III


Não podia se mexer. Era incapaz de separar os cílios para observar quem se encontrava ao seu lado. Sua mente estava completamente adormecida e seu corpo parecia ter perdido toda a força. Não tentou nem desejou realizar nenhum esforço, pois pressentia que não conseguiria. Com os olhos fechados e imóvel, tentou lembrar o que havia acontecido. Mas não conseguiu nada, exceto que dias atrás se encontrava muito indisposto e que, de repente, seu corpo não se mantinha em pé. Em que dia da semana estava? Tinha perdido também a consciência? Quando? Respirou fundo, aplacando lentamente a angustia que sentia ao se sentir tão fraco. Pelo menos estava em casa, em seu quarto. A maciez característica do seu colchão e o cheiro do seu perfume atestavam isso. Deixando de lado a incerteza do que poderia acontecer, se concentrou nas vozes. A princípio parecia distante, mas com o passar do tempo ficaram mais nítidas e próximas. Duas. Ao seu lado permaneciam duas pessoas. Uma sem dúvida alguma era Shals. Poderia reconhecer sua voz, mesmo que ele estivesse trancado em uma caixa de metal. No entanto, se concentrou na outra. Uma mulher. Sim, aquele tom suave, mas ao mesmo tempo estridente, apenas uma fêmea poderia oferecê-lo. Conteve novamente a respiração, acalmando qualquer som que ele mesmo produzisse, para descobrir de quem poderia ser. Não teria ocorrido a Shals a ideia horrível de levar suas antigas amantes para cuidar dele, certo? Se ele tivesse tomado essa decisão, sua posição estava em perigo.

?Por que pensou em dissecar o pobre animal? ?Ouviu perguntar a estranha que, pela proximidade de sua voz, devia estar muito perto.

?Por curiosidade ?ela respondeu antes de soltar um sorriso suave. ?Precisava ver com meus próprios olhos o que escondia embaixo do pelo e da gordura. Além disso, estudar um coração na imagem de um livro não é o mesmo que tê-lo em suas mãos.

?Descobriu?

?Sim, até que Shira gritou horrorizada. ?Ela se divertiu ao lembrar aquele episódio de sua vida. —De acordo com ela, estava cometendo uma barbárie, então fui forçada a deixar o corpo e correr sem parar até chegar ao meu quarto.

?Imagino que sua mãe a castigou ?Shals deduziu.

?Somente até meu pai chegar. Quando expliquei a razão pela qual fiz isso e mostrei a ele todas as anotações que havia feito em um caderno pequeno, a punição acabou imediatamente. Daquele dia em diante, ele me ajudou a satisfazer minha curiosidade científica. Mas não me permitiu, até que completasse dezoito anos e depois de me presentear com a maleta que trouxe hoje, acompanhá-lo em suas consultas médicas.

?Atendeu aos doentes nessa idade tão jovem? ?Shals perguntou surpreso.

?Não. Eu apenas observava a atitude do meu pai e ouvia com atenção todas as suas explicações. No entanto, tenho que lhe assegurar que a grande maioria dos conhecimentos que possuo, consegui através dos livros que tenho lido sobre medicina.

?Você é uma mulher muito especial, Srta Moore.

?Obrigada ?ela respondeu, aceitando o elogio com prazer.

«Srta Moore...» Philip sentiu como seu peito se comprimia ao ouvir aquelas palavras. Seria ela? A bruxa de cabelos escuros tinha ido a sua casa para curá-lo? Por quê? Quem lhe havia pedido ajuda? Porque aceitou o pedido depois do terrível episódio que viveram dias atrás? Tentou se levantar para confirmar que não era uma alucinação, que sua mente distorcida não o enganava, mas continuava fraco, muito até mesmo para levantar um dedo. Assumindo que a única coisa que poderia fazer era ouvir com atenção a conversa da filha erudita do Dr. Moore, se concentrou em não perder nenhuma palavra. No entanto, uma pontada aguda de dor em sua cintura o fez rosnar, chamando a atenção de ambos.

?O que aconteceu? ?Ouviu Shals perguntar.

?Nada de estranho. O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar.

Philip percebeu como o colchão se inclinou ligeiramente para a sua esquerda. Depois disso, uma mão macia e quente tocou sua testa.

Mary...

Ela subiu na cama para confirmar que não estava piorando. Se deixou levar pela sensação de prazer que notou na leve carícia. Nunca se sentiu tão tranquilo e protegido por uma pessoa. Sempre foi ele quem velava pela segurança dos outros. Mas naquele momento, sua figura desamparada estava sob a proteção da mulher a quem ele gritou e admirou, em partes iguais. Ele apertou mais as pálpebras quando percebeu que estava se afastando. Uma estranha frieza percorreu seu corpo, causando um tremor intenso. Até suas vísceras reivindicavam essas carícias tão relaxantes. Não demorou em voltar. Para seu prazer, Mary ficou ao seu lado novamente.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo...

Tudo o que uma vez descreveu como maravilhoso desapareceu de sua mente quando sentiu a suavidade dos dedos molhados tocando seus lábios. Queria gemer de prazer, mas permaneceu quieto e calado. Não queria quebrar um momento tão terno, tão esplêndido. Possivelmente seria o único momento em que ela se comportaria de maneira tão afetuosa porque, uma vez que descobrisse que havia acordado, a mulher árida e gélida retornaria.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

Seu ferimento, o que ela mencionou, não sangraria. O que estava sangrando era sua alma. Porque lá estava ela, a mulher que jogou aqueles rolos de metal, saciando sua sede com os próprios dedos. Esse ato poderia defini-lo como o maior bem-estar que ele poderia sonhar? Talvez ele tivesse morrido e sua visão da vida eterna fosse ter aquela bruxa ao seu lado que ele não podia esquecer desde que a conheceu.

?A Sra. Cheap tem uma pomada à base de gordura animal que ela usa para evitar que as mãos rachem. Se desejar, posso pedir-lhe para que me...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaicos ?interrompeu-o?. Terá mais do que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção.

«Não!» Philip quis gritar com a opção que Shals lhe oferecia. Ele não queria que ela se afastasse dele, ou que seus lábios fossem borrifados com qualquer coisa, menos a água fresca de seus dedos. Ele precisava que ela continuasse com aquele ato íntimo, para tê-la por perto, sentir o perfume que ela exalava e a suavidade de seus dedos molhados.

Shals continuou falando. Ele explicou que não era apropriado que ela adotasse uma certa postura. Que postura seria? Estaria desconfortável? A inquietação tomou conta dele ao pensar que ela sofreria alguma doença por sua culpa. Muito lentamente, ele separou as pálpebras. A princípio, sua visão não era clara. Pelo contrário, parecia ter uma teia de aranha sobre as pupilas. Ele piscou várias vezes até alcançar a nitidez que desejava. Quando a viu, sentiu que não apenas sua alma estava sangrando, mas também seu coração. Mary estava ajoelhada na cama, estendendo a mão para a boca, hidratando-a, tal como explicava a Shals. Lentamente, seus olhos se desviaram para o peito feminino escondido sob um vestido que ele não conseguia distinguir claramente sua cor. Preto... talvez azul. Seus braços longos e delicados estavam nus, porque em algum momento decidiu enrolar as mangas até os cotovelos. A visão daquela pele esbranquiçada parecia requintada, atraente e tremendamente maravilhosa. Se estava morto, não tentaria voltar ao mundo dos vivos, pois o que vivia era ideal para ele. No entanto, justamente quando Shals percebeu que era capaz de observá-los, deduziu que sua situação idílica havia chegado ao fim. Ele lentamente levantou a mão esquerda para o pulso de Mary, agarrou-a e ela parou de falar.

Seus olhos se encontraram e se entreolharam por um momento. Ele queria transmitir através deles a felicidade que sentia ao encontrá-la ao seu lado, para cuida-lo. Mas o medo e a confusão mostrados pelo olhar de Mary o surpreenderam.

?Sr.... milorde... Ela é...

As palavras de seu mordomo ouviram-nas longe, como se não estivesse ao pé da cama, mas a 160 quilômetros de distância. Não quis prestar atenção à desculpa que Shals ofereceria ao encontrá-la em uma postura tão comprometedora. Tudo o que ele desejava era continuar contemplando a imagem perfeita de Mary: ao seu lado, em sua cama, acariciando sua boca com os dedos, saciando sua sede... Esse sentimento de felicidade se tornou em pavor quando percebeu sua mudança abrupta de atitude. Ela voltava a levantar o muro que os separou naquele dia.

?Quem salvou sua vida.

Manifestou em um tom de voz que Philip odiou. Lutou até libertar a mão de seu pulso e se afastou da cama, de seu lado. Continuou a olhá-la. Não podia afastar os olhos dela. Precisava observar todas as expressões que mostrava seu rosto. Surpresa, alegria, tristeza, compaixão? O que seria? Por qual escolher?

?Shals... ?murmurou lentamente. ?A... água... ?terminou de dizer.

O mordomo se aproximou rapidamente da cama, pegou o copo no qual Mary colocara os dedos e, quando ia lhe oferecer, ela gritou de horror.

?Nem pense em fazê-lo!

?Srta Moore, o senhor está me pedindo...

?E lhe dará, mas não dessa. Certamente que está contaminada depois de colocar meus dedos.

?Duvido muito que esteja depois de como foi lavado ?Shals apontou com um pouco de diversão.

Enquanto Mary estava em frente à lareira, onde podia observar claramente o paciente e permanecer distante, a criada esvaziou a água do copo na bacia e voltou a enchê-lo do jarro que havia sobre a mesinha. Se aproximou de lorde Giesler, segurou-lhe a cabeça e com muita delicadeza lhe deu de beber.

?Obrigado... ?ele disse uma vez que saciou sua sede. ?Shals, me ajude a sentar.

?Srta Moore, ?ele começou a dizer olhando para ela com os olhos arregalados ?acha que é uma boa ideia fazê-lo?

?Não. ?Garantiu indulgentemente. ?Precisa ficar deitado mais algumas horas.

O suficiente até que seu pai aparecesse e ela pudesse sair dali. Não podia enfrentar de novo esse olhar ameaçador. Só de pensar que continuava a odiá-la, a amarga e ressentida Mary voltaria para causar outro grande escândalo.

?Ficarei satisfeito se levantar um pouco minha cabeça. Não quero ficar o tempo todo olhando para o teto. ?Philip solicitou, a modo de queixa, a seu empregado, que acabou concordando com esse pedido, apesar de ouvir como a mulher bufava. ?O que aconteceu comigo?

?Um milagre! ?Shals exclamou dando um passo para trás, depois de acomodar o travesseiro.

?Que absurdo! ?Mary comentou, virando-se para não mostrar a raiva que tinha ao ouvir uma palavra tão estúpida para ela.

?Milagre? ?Philip retrucou olhando para a figura feminina. ?O que você quis dizer?

?Milorde, está acamado há pouco mais de dois dias. A Sra. Reform ficou ao seu lado esse tempo todo. Tentou curá-lo, mas, admitindo que precisava da ajuda de um médico, foi procurar o Dr. Moore. No entanto, ele não pôde comparecer e, em vez disso, a Srta Moore veio. Ela... ?Shals respirou fundo, olhou para a jovem e falou com orgulho, como se fosse seu próprio pai. ?Ela descobriu rapidamente que doença sofria e agiu imediatamente. Ela o operou, senhor. Ela salvou sua vida...

Giesler não tirou os olhos dela em nenhum momento. Algo dentro dele cresceu tão intensamente que seu peito expandiu. Felicidade? Agradecimento? Não sabia ao certo em que consistia essa emoção que inclusive lhe proporcionava forças para se levantar. Mas ele ficou parado, olhando-a sem piscar. Se ela descobrisse que estava começando a melhorar, iria embora e não estava disposto a se separar da mulher tão rapidamente que, rudemente, lhe dava as costas.

?Tinha a fossa ilíaca inflamada. ?Mary começou a dizer, olhando para o fogo. ?Tudo o que fiz foi tirá-la do seu corpo antes que fosse tarde demais.

?Pelo amor de Deus! ?Shals exclamou novamente. ?Explica como se fosse uma coisa muito simples e não foi. Sua intervenção durou pouco mais de quatro horas e posso garantir-lhe que, em nenhum momento, a Srta Moore diminuiu sua vontade de salvá-lo.

?Não preciso que me lisonjeie. ?Ela recriminou, ainda de costas para Giesler. ?Qualquer médico teria realizado essa operação com a mesma capacidade e eficiência que eu.

?Mas falamos de uma mulher... ?Shals sussurrou a seu senhor, comentário que fez Philip sorrir. Não só por afirmar algo evidente, mas pela forma temerosa de dizê-lo. Assustava-o? Conhecia o caráter especial da filha do médico?

Sem apagar o sorriso do rosto, ele continuou a admirá-la até seus olhos oferecerem uma imagem que ele nunca esqueceria. Se sua mente nunca parasse de mostrar a ele o momento em que se conheceram, e como o tecido de sua camisola se encaixava em sua figura, o fato de ficar na frente do fogo e que a luz das chamas atravessasse o tecido de seu vestido, concedeu a ele uma nova e esplêndida visão de suas pernas e quadris. Ela não usava anáguas? Por quê?

?Diga-me o que aconteceu ?Philip disse para Shals.

?Desde o início? ?estalou o mordomo se acomodando na cadeira onde Mary havia ficado antes que acordasse.

?Sim ?Giesler garantiu sem desviar o olhar daquela imagem espetacular.

Tal como pediu, Shals contou-lhe com todos os detalhes o que tinha acontecido desde que o encontraram caído no quarto. Os cuidados oferecidos por sua irmã, febre, vômito e convulsões. Evidentemente, ele não fez referência às palavras que evocou durante seus delírios. Mas, para dar uma explicação lógica do motivo pelo qual a Sra. Reform foi procurar o Dr. Moore, indicou que um funcionário havia ouvido que o médico seria o mais adequado para ajudá-lo, dada a fama que adquirira em Londres. Nesse momento Shals advertiu que Mary pegou o atiçador, o levantou e logo moveu as brasas com certa beligerância. Ele não quis perguntar o motivo pelo qual ela estava realizando esse ato brusco, decidiu continuar lhe falando sobre a saída de sua irmã para a residência do doutor e a chegada desta com a Srta. Moore. Explicou como gritou com os funcionários que se propunham a banhá-lo em água fria, como se aproximou dele e o espanto que todos mostraram quando a ouviu explicar que doença estava sofrendo. Narrou de maneira engraçada o momento em que ela forçou os servos a lavar as mãos em caldeirões diferentes e como insistia que fossem borrifados com um líquido que ela guardava na pasta. Philip não sorriu ao escutá-lo. Seu rosto estava rígido e seus olhos estavam fixos nela. Descobrir que havia tomado uma decisão tão importante, apesar de ambos não terem sido cordiais naquele dia, o deixou atordoado. Ele não tinha dúvida de que os rumores sobre seu intelecto eram verdadeiros, assim como afirmou aquilo que concluiu depois de investigá-la: os homens, que zombavam dela e a humilhavam constantemente, agiam dessa maneira porque a temiam. Eles estavam muito conscientes de que ela poderia superá-los, mesmo com os olhos fechados.

E isso que tinha crescido nele, que ainda não podia definir, aumentou.

?Obrigado. ?Lhe disse quando Shals concluiu a história. ?Te devo minha vida, Srta. Moore.

?Bobagem! ?Exclamou finalmente virando-se para ele. ?Não me deve nada. Como disse a seu mordomo, qualquer pessoa em meu lugar teria agido de maneira semelhante.

?Mas você enfrentou com valentia a Sra. Reform ?Shals interveio. Ao observar o rosto desconcertado de seu senhor, esclareceu: ?Sua irmã queria esperar o Sr. Moore, mas a Srta. insistiu em agir rapidamente. Além disso, lhe garantiu que morreria se não intervisse imediatamente.

Mary notou como suas bochechas coravam. Não arderam pelo calor do fogo, mas pelo embaraço que estava sofrendo. Aquele homem, imaginando que estava fazendo um ato de bondade para com ela, a descreveu como uma pessoa obstinada, teimosa e incapaz de aceitar a decisão da irmã do paciente. Outra característica que deveria adicionar à sua extensa lista de defeitos. Era melhor resolver o problema de uma só vez. Não podia suportar, nem por um momento mais, tantos elogios desnecessários ou daquele olhar hermético oferecido pelo homem que lhe salvara de uma morte certa.

?Como observei que está muito melhor e que o seu mordomo pode atendê-lo adequadamente, descerei ao primeiro andar. Já amanheceu há algum tempo e estou certa de que a Sra. Reform aparecerá em breve.

?Não! ?Philip gritou ao observar que ela se dirigia para a porta. Esse ligeiro movimento fez que lhe doesse a ferida. Ele colocou as mãos naquela área do corpo e olhou para ela novamente. ?Por favor... ?Sussurrou.

?Não se preocupe ?comentou Shals?, eu mesmo descerei para recebê-la. Você pode seguir atendendo Lorde Giesler. Agora que acordou, ele mesmo lhe dirá onde lhe dói e poderá lhe administrar o remédio que guarda na maleta.

?Vai me deixar sozinha? Não se lembra da promessa que fez à Sra. Reform? ?Mary insistiu com os olhos arregalados e colocando suas mãos em ambos os lados da cintura.

?Não corre nenhum perigo, Srta. Moore. Como pode ver, meu senhor, é incapaz de lhe fazer mal algum e sobre o escabroso assunto de permanecer a sós com um cavalheiro, não tem por que se preocupar. Ninguém nesta casa falará disso depois de salvar a vida do homem que paga seus honorários, lhe garanto.

?Mas... Mas... ?ela tentou dizer.

Shals parecia ter ficado surdo de repente. Depois de fazer uma leve reverência a Philip, caminhou decidido para a porta, fechou depois de sair e uma vez que já não puderam observá-lo, sorriu.


***

Quanto tempo passou desde que eles ficaram sozinhos? Talvez tenha sido apenas por alguns segundos, mas para Mary pareceu que tinha passado uma eternidade. Durante esse breve período não tinha se movido nem um palmo de onde ficou, antes da abrupta saída de Shals. Ele tentou fixar o olhar na porta, na lareira, no chão, mas acabou olhando para o rosto pálido e doentio. Embora Lorde Giesler não parecesse confortável, pois tampouco desviou o olhar dela. Seus olhos se mantiveram imóveis, como se o clorofórmio que lhe administrou não o deixasse movê-los para nenhuma outra área do quarto. Pegou as mãos e torceu-as com força. O que devia fazer? Faria bem se quebrasse aquele silêncio constrangedor?

?Srta. Moore... ?Philip sussurrou enquanto tentava mover a cabeça.

?Não o faça! ?Mary ordenou-lhe com um grito. ?Você não ouviu o seu mordomo? Acabei de operá-lo! ?Insistiu irritada.

?Sim, mas segundo as suas palavras, a intervenção foi muito simples. Por esse motivo, deduzi que...

?Deduções? A sério? Após a quantidade de anestésico que lhe dei, acha que sua mente é capaz de deduzir algo claramente? ?Continuou irritada. — O que precisa fazer é ficar parado por mais algumas horas.

?Quantas?

?Quantas o quê? ?Retrucou caminhando até ele com relutância.

?Quantas horas você acha que serão apropriadas? ?Esclareceu Philip, imensamente satisfeito ao ver como ela voltava a seu lado.

?Eu imagino que quarenta será mais que suficiente. ?Se Colocou no lado direito da cama, cruzou as mãos pelo peito e o olhou esquiva.

?Estou com calor... ?disse Giesler depois de pensar rapidamente uma alternativa que a obrigasse a tocá-lo de novo.

?Pode afastar o lençol, se desejar ?respondeu sem diminuir essa atitude zangada e distante.

?Mas me disse que não me movesse, que permanecesse quarenta...

Poderia rir? Não. Embora desejasse fazê-lo, não era apropriado, pois Mary acabaria cobrindo o rosto com o lençol para que não o observasse nem falasse mais. Por esse motivo, permaneceu calado, gostando de assistir enquanto pegava o pano com as pontas dos dedos e deslizava lentamente até a cintura.

?Melhor? ?Retrucou voltando a posição anterior.

?Água.

?Quer mais água? ?Perguntou arregalando os olhos.

?E remédios. Segundo declarou Shals, devo tomar...

?Cale-se por um momento! ?Mary exclamou desesperada. ?Não diga nem mais uma palavra. Vou dar-lhe a pílula[3] e esse maldito copo de água.

Fazendo movimentos mais bruscos do que deveria, se virou para a maleta, procurou o frasco onde tinha os comprimidos e pegou o copo de água.

?Não tente se mexer, eu te ajudarei. ?Philip a obedeceu. ?Passarei meu braço direito embaixo da cabeça. Precisa manter uma inclinação adequada para que o medicamento não fique preso na sua garganta. Se fizer isso, poderia morrer de asfixia ?comentou com sarcasmo.

?Sei que não permitiria que me acontecesse uma coisa tão horrível ?apontou Philip antes que lhe colocasse a cápsula na boca.

?Não tenha tanta certeza ?resmungou enquanto lhe dava de beber.

Não havia dúvida. Estava no céu e a mulher que ele chamou de bruxa era seu anjo. Sentir a suavidade da pele desse braço feminino em sua nuca, despertou-lhe uma incrível sensação de prazer e bem-estar. Quantas amantes deslizaram suas mãos pelo seu corpo? Dezenas! Quantas delas lhe causaram tanto prazer? Nenhuma. Aquela harpia de olhos azuis e cabelos escuros lhe provocava, com seu mau humor e seus atritos esquivos, uma satisfação inigualável.

Fechou os olhos quando ela deslizou seu braço para se afastar. Honestamente, nada poderia ser comparar. Talvez fosse um efeito colateral do clorofórmio que ela o fez inalar, ou talvez tudo fosse produto daquele período de castidade que se auto infringiu depois de conhecê-la. Fosse o que fosse, precisava senti-lo milhões de vezes mais.

?Obrigado ?lhe disse em voz baixa, quando Mary voltou a manter certa distância entre eles.

?Como disse? ?Retrucou estreitando os olhos.

?Agradeço, Srta. Moore. Mas entendo que não pode me ouvir claramente porque se afastou demais ?respondeu, dissimulando o estado de frenesi que se apoderou dele ao confirmar que encurtava essa separação bruta.

?O ouço perfeitamente, lorde Giesler. Só queria ouvir seus agradecimentos novamente ?respondeu mordaz. ?É bastante paradoxal que você, o homem que me chamou de bruxa em minha própria casa, me mostre tanta gratidão.

?Me jogou alguns tubos de metal. Queria me machucar com eles ?se defendeu.

?Não fiz isso? ?Retrucou ironicamente. Levantou as sobrancelhas escuras e esboçou um sorriso perverso enquanto colocava as mãos na cintura novamente.

?Não ?respondeu Philip. Se deleitando com aquele rosto maravilhosamente diabólico.

?Uma verdadeira lástima! ?Exclamou divertida antes de estalar a língua. ?Porque meu único objetivo naquele dia era machucá-lo.

?Para quê?

?Para que nunca me esquecesse ?respondeu de forma arrogante.

?Não fiz isso ?garantiu, olhando-a sem piscar.

As palavras e a expressão em seus olhos fizeram Mary se sentir intimidada, algo que geralmente não acontecia com facilidade. Mas aquele titã, com um corpo esbelto, cujo tronco bronzeado se mostrava descaradamente diante dela, começou a quebrar todas as barreiras que ela havia construído contra o sexo masculino. Que diabos tinha de especial? Por que seu coração batia loucamente? Não começaria a brotar seu sangue cigano naquele momento, certo? O que lhe disse Anne antes de partir para a cerimônia de casamento de Natalie Bennett? «Quando o sangue de Arany se libertar da pressão a que o submete, esquecerá tudo o que leu em seus amados livros e se tornará uma mulher apaixonada».

?Posso lhe pedir um favor, Srta. Moore? ?Philip perguntou, ao perceber que o olhar de Mary mostrava mais confusão do que medo.

?Quer mais água? Quer que o cubra novamente com o lençol? ?Respondeu ironicamente.

?Não. Minha sede se acalmou e garanto que estou com muito calor. Se não estivesse ao meu lado, afastaria imediatamente esse maldito lençol ?apontou sinceramente.

Comentário que a ruborizou, porque a fez lembrar o que estava escondendo debaixo do tecido.

?O que deseja? ?Quis saber, caminhando vários passos mais para trás.

Não devia permanecer tão perto. Não podia sentir nada. Seu coração precisava se acalmar de uma vez. Por que sua mente não agia? Onde estava seu autocontrole? E seu raciocínio feroz? Acaso haviam desaparecido? Que sangue possuíam naquele momento suas veias o Moore ou o Arany? Quando diabos seu pai chegaria?

?Vê essa cômoda que há no lado direito da lareira? ?Philip apontou com o queixo.

?Se pensa que vou me tornar sua empregada, está muito equivocado. Como bem sabe, meu único propósito tem sido...

?Srta. Moore, pode acatar, pelo menos uma vez na vida, uma ordem sem replicar? ?Philip resmungou.

?Por que devo fazê-lo?

?Porque não posso me mexer.

?O que me pedirá depois? ?Insistiu, franzindo a testa.

?Nada, juro por minha honra ?ele garantiu.

?Está bem! ?Mary sucumbiu caminhando em direção a cômoda. Uma vez que ficou na frente dela, olhou para ele. ?O que faço agora, Lorde Giesler? ?Acrescentou cantarolando.

?Abra a primeira gaveta e levante o lenço vermelho que encontrará à sua esquerda ?ele indicou. Embora não fosse conveniente para ele se mover, apoiou os cotovelos no colchão e, suportando a tremenda dor que esse esforço lhe causou, se inclinou o suficiente para vê-la. Como agiria? Se surpreenderia ao descobri-lo ou iria lançá-lo novamente? O que pensaria dele? O acusaria de ser louco e sairia correndo de lá? Com os olhos fixos nela, prendeu a respiração enquanto ao observa-la abrir a gaveta. Quando Mary levantou o pano, ficou parada e contemplou silenciosamente o que encontrou. ?Não me disse que sua única intenção era lembrá-la pelo resto da minha vida? Pois aí tem a prova, Mary. Não a esqueci, nem vou...

?Lorde Giesler ?Shals interrompeu depois de bater na porta duas vezes e abri-la ?O Sr. Moore acaba de chegar. Deseja recebê-lo?

?Sim, claro. Estávamos esperando por ele ?Philip respondeu sem desviar o olhar dela, que, ao ouvir o mordomo, bateu a gaveta e pulou para trás.


Capítulo IV


Shals se afastou para deixar o médico passar. Uma vez que este entrou no quarto seu olhar se dirigiu, em primeiro lugar, para ela. Respirou aliviado ao ver que permanecia frente à lareira, afastada do lorde. Que Mary tomara a decisão de operá-lo com urgência, quando era consciente de que podia esperar um pouco mais sem que corresse perigo, não lhe provocou tanto torpor como saber que se encontrava no quarto de um homem sozinha. Mas tudo o que havia imaginado desapareceu de sua cabeça ao vê-la tão afastada do paciente. Mary não era como Elizabeth, que colocava sua honra em risco constante. Sua segunda filha era tão fria quanto um bloco de gelo e, por mais atraente que o homem fosse, jamais o olharia de outra maneira que não fosse o de experimentar com ele alguma teoria médica nova. No entanto, não lhe passou despercebido o estupor que exibia. As bochechas queimavam pela proximidade do fogo ou pela emoção que devia sentir ao operar uma pessoa pela primeira vez sem o seu consentimento? Não ousou perguntar... O melhor era não saber mais, além do que seus velhos olhos cansados observavam. Com um passo lento, ele se aproximou de sua filha e depois de fazer uma breve revisão de suas roupas, confirmando as palavras de sua esposa, a cumprimentou.

?Bom dia, filha.

?Bom dia, pai ?ela respondeu.

Esgotado. Mary percebeu que seu pai estava bastante cansado, apesar de apresentar uma imagem decente e correta. Ela não tinha dúvida de que sua mãe o esperara na porta e antes que ele pudesse dar um pequeno passo dentro de sua casa, lhe teria dado a volta, teria arrumado a gravata e a camisa, enquanto lhe explicava o que tinha acontecido. Tinha certeza que quando ouviu lorde Giesler, Mary, doença e residência na mesma frase, nem mesmo seu cansaço o teria impedido de comparecer. Esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao imaginá-los divagando sobre sua conduta quando descobrisse a identidade do homem que devia salvar. Temeriam por sua vida? Não a sua, senão a do paciente. Se assim fosse, deveriam respirar tranquilos porque, nesse momento, não desejava matar ao presunçoso que a chamou de bruxa antes de lhe atirar uns rolos metálicos. Ao recordar esse dia, voltou a ficar tensa. Por que diabos havia guardado um dos objetos que lhe jogou? Por que o escondia sob um tecido de seda? E, como teve o descaramento de mostrá-lo? Queria humilhá-la ou talvez desejava que visse com seus próprios olhos a prova do delito? ¿ Não pensaria que o impacto do rolo originou sua doença, certo? Se acreditasse naquela hipótese absurda, era mais idiota do que pensava.

Enquanto ela divagava em silêncio, Randall atravessou o quarto para ficar ao lado de Philip, exatamente onde sua filha havia passado a noite. Seus dedos ainda estavam entrelaçados na alça da maleta, como se não quisesse se separar dela. Olhou novamente para Mary, depois contemplou o paciente e falou com sinais visíveis de medo:

?Bom dia, milorde. Desculpe a demora. Garanto-lhe que vim assim que fui informado por minha esposa. Como se encontra?

?Muito melhor, Sr. Moore ?Giesler respondeu um pouco confuso com a atitude distante que o médico lhe ofereceu a sua filha.

Mas claro, ele não sabia que ideias o casal considerou sobre Mary e sua maldade quando descobrisse a verdadeira identidade do paciente.

?Imagino que se encontra muito dolorido ?Randall disse depois de relaxar.

Pelo menos não tinha lhe arrancado a língua. Talvez tivesse adotado o comportamento de um médico e não o de uma mulher desprezada, como Sophia pensava. Ele nunca tinha visto sua esposa tão preocupada com a vida de alguém ou rezando para sua mãe criadora para mantê-lo seguro. Lentamente, ele se virou para a mesa e apoiou a maleta pesada.

?O normal após a intervenção que a Srta. Moore realizou ?respondeu com certo sarcasmo. Esperava que suas palavras eliminassem a possível inquietude do médico, mas não foi assim. A velha figura de Moore ficou tensa como uma corda de violino.

?Vou inspecionar a área ?lhe disse no momento em que suas mãos se libertaram da pesada mala de couro preto. Abriu-a e tirou uma tesoura. ?Tenho que tirar o curativo, milorde.

?Por quê? ?Philip retrucou estreitando os olhos.

?Porque preciso ter certeza do estado em que se encontra ?explicou depois de olhar para Mary rapidamente.

?Respiro, falo coerentemente e percebo facilmente a dor que irradia da ferida. Não tenho mais febre e me sinto muito mais forte do que antes. Isso não são sinais suficientes para confirmar que, graças à sua filha, me encontro bem? ?Apontou mordaz.

?Não se trata disso, Milorde ?comentou Mary se aproximando da cama. Mas parou o passo quando seu pai levantou a mão esquerda para ela.

?Tenho que confirmar que o trabalho que minha filha fez foi correto.

?Foi ?Philip garantiu categórico.

Mary não conseguia abrir mais os olhos diante da surpresa causada pelas palavras de lorde Giesler. O que ele pretendia agindo dessa maneira tão irritante? Recusaria a ajuda de seu pai? Por quê? O clorofórmio o deixou tão atordoado que não conseguia pensar com sensatez?

?Não duvido da capacidade da minha filha ?Randall expôs levantando o peito. ?Acredite quando lhe digo que colocaria a minha vida nas suas mãos sem hesitar. Mas caso não esteja ciente disso, Mary não possui a licença médica que lhe dá o poder de agir como tem feito. Se não trabalhou bem, se cometeu um pequeno erro, as repercussões futuras que teria seriam terríveis. Todo mundo falaria de sua ação impetuosa, o desastre que cometeu e a tragédia que Londres sofreria depois de perder um membro distinto da alta sociedade alemã. Quer que minha filha seja condenada por assassinato quando tudo o que ela fez por você foi um ato de misericórdia?

?Disparates... ?Giesler resmungou. ?Sua filha trabalhou perfeitamente. Ninguém falará sobre o que aconteceu hoje à noite aqui. Mas no caso hipotético de que aconteça, me tornarei seu feroz defensor.

?Não o fará se morrer ?Ela interveio mais espantada do que nunca.

Não havia dúvidas. Mary afirmou, depois de ouvi-lo, que os possíveis efeitos colaterais da anestesia eram horríveis. Todos os pacientes reagiam de maneira diferente: alguns pulavam sobre os colchões como se tivessem percevejos no corpo, outros gritavam como se vivessem no tempo de Neandertal, outros se tornavam crianças pequenas, que se consolavam chupando os dedos. No entanto, o caso de lorde Giesler foi a coisa mais insana que ela já vira. Ele só precisava sair da cama e empunhar uma espada, como se fosse um cavaleiro medieval, para proteger a honra de sua esposa!

?Penso como você, milorde. No entanto, tenho que verificar seu trabalho ?reafirmou veementemente. ?Posso cortar de uma vez os curativos ou deseja continuar essa conversa absurda? ?Acrescentou derramando sobre as tesouras e suas mãos um líquido incolor.

?Faça tudo o que precisa para confirmar o bom trabalho de sua filha ?disse finalmente.

Enquanto observava como rasgava as ataduras, Philip teve que admitir que Mary havia herdado o comportamento ousado de seu pai. Nenhum homem teria se dirigido a ele com insolência por temor a uma possível retaliação de sua parte. No entanto, lá estava ele, cortando o curativo, removendo o tecido de seu corpo e verificando o ferimento sem pestanejar depois de dar a entender que ele não estava em condições de pensar com lucidez.

?Você usou catgut[4] como fio de sutura? ?Randall perguntou sem olhar para ela enquanto sentia em volta do corte, confirmando que não havia deixado espaço ao costurá-lo. Se Sophia tivesse o acompanhado, descobriria que outra das habilidades de Mary era a costura, como ela o costurara com grande habilidade.

?Claro! ?ela exclamou se aproximando até ficar ao lado dele.

?Em que estado a encontrou? ?Perseverou, sem deixar de apalpar os arredores da ferida.

?Prestes a explodir. Felizmente, agi na hora certa. Mais algumas horas e seria tarde demais para ele... ?ela garantiu com firmeza.

?Como descobriu? ?Depois de fazer a pergunta, Randall se levantou, procurou uma pequena gaze na caixa de remédios, borrifou-a com antisséptico e colocou sobre a ferida.

?Os indícios eram evidentes. Mas confirmei ao apalpar-lhe a zona. Estava tão inchada como a do falecido Sr. Skinner. No entanto, Lorde Giesler teve mais sorte ?explicou antes de levantar lentamente o queixo e contemplar o rosto abatido do seu paciente.

?Se certificou de que não havia perfuração? ?Randall continuou perguntando sem se referir à comparação que fez entre pacientes.

Não era apropriado que repetisse tantas vezes que poderia ter morrido. Mas Mary, depois do que aconteceu com o Sr. Skinner, não conseguia pensar em mais nada. Por isso, agia sem pensar nas possíveis consequências.

?Sim. Antes de removê-lo, verifiquei várias vezes, mas não encontrei sujeira na superfície ?continuou explicando. ?Então, quando o coloquei na bandeja, confirmei que não havia poros.

?Como fez? Usou o método de Fizt? ?O pai perseverou enquanto pegava outro curativo para cobrir a ferida.

?Não, me baseei no método Moore ?continuou com diversão. Entendendo que seu pai não se divertia tanto quanto ela, continuou: ?Abri, procurei, encontrei, cortei, limpei, cauterizei e fechei ?Mary garantiu, finalmente endireitando as costas. Quando deduziu que seu pai enrolaria o novo curativo no abdômen do lorde, olhou para o mordomo e lhe perguntou: ?Shals, pode ajudá-lo? Meu pai é tão teimoso que acha que pode fazer isso sozinho.

Comentário que fez Philip sorrir, porque encontrou outra semelhança entre eles.

?Sim ?respondeu o mordomo avançando para eles rapidamente.

Randall deu o curativo à filha, colocou-se à direita e esperou que o empregado colocasse um travesseiro sob as pernas do senhor. Com a ajuda de ambos, as mãos de Mary se moveram agilmente sobre os quadris do paciente. Ao fazê-lo, descobriu que Philip a observava estranhamente. Não era angústia, nem raiva, nem desconforto, mas veneração, o que expressavam aqueles olhos tão azuis como os dela.

?Quanto de clorofórmio deu a ele? ?Ele perguntou depois de confirmar que o curativo se agarrava perfeitamente ao corpo. ?Levou em consideração o tamanho do paciente?

?Não no começo ?respondeu com um largo sorriso. ?Mas depois de ouvi-lo gritar, ao cravar a ponta do bisturi, rapidamente corrigi meu erro. Como pode ver, é a primeira vez que sedei um homem com a mesma compleição que um cavalo.

Esse comentário não agradou a Philip. Nem tampouco gostou de ser comparado a um cavalo. Não havia outro animal mais bonito? Uma águia não era adequada para ela?

?Quanto fenol usou?

?Tudo o que tinha na maleta ?Mary admitiu depois de se afastar de Shals e de seu pai. ?Tive que obrigar os empregados que me ajudarem e pulverizar suas mãos depois de lavá-las com sabão.

?Tenho certeza disto ?Shals comentou sorrindo. ?Graças à ordem da Srta. Moore muitos dos servos descobriu que sob a sujeira possuem uma pele tão branca como a madrepérola.

?Conheço o caráter de minha filha e tenho certeza de que ninguém poderia se aproximar sem seguir suas instruções à risca ?indicou Randall sorrindo pela primeira vez desde que apareceu.

?Quanto tempo levarei para me recuperar? ?Philip perguntou ao médico enquanto Shals pegava o travesseiro das pernas e o colocava sob as costas.

?Deve permanecer pelo menos dez dias em repouso ?respondeu. ?É vital não se mexa durante esse tempo. A sutura está perfeita e seria uma pena que, após um trabalho tão cuidadoso, arruinasse-a ao tentar se mover mais do que deveria. Precisará de ajuda para desempenhar suas funções vitais. Mas eu aconselho que, quando terminar, volte para a cama o mais rápido possível.

?Entendi que me recuperaria em quarenta horas ?Philip comentou olhando para Mary, que rapidamente desviou os olhos dele por não ter a decência de cobrir o peito na frente dela.

?Minha filha, como disse, fez um trabalho sublime, milorde, mas não um milagre ?afirmou enquanto pegava a alça da pasta com os dedos da mão direita e esboçava um sorriso largo. ?Vou visitá-lo todos os dias para observar sua evolução. Se a qualquer momento o vômito, a febre ou um desconforto inesperado retornar, peço que você me notifique imediatamente.

?A Srta. Moore nos indicou que deve tomar certos medicamentos para diminuir sua dor ?Shals apontou o dedo para o frasco de vidro que havia sobre a mesa redonda à sua esquerda.

?Forneceu o suficiente? ?Randall perguntou.

?Tem para três doses durante oito dias ?Mary admitiu.

?Perfeito. Quando terminar, se precisar de mais, eu mesmo os trarei... ?explicou o médico dando um passo atrás.

?Sr. Moore, antes de sair, diga ao meu mordomo o valor dos seus honorários. Penso que... ?Philip tentou dizer, mas quando viu o rosto de horror do médico, ficou calado.

?Não tem nada para me pagar, milorde. Como já esclareci, minha filha não tem a licença necessária para realizar esse tipo de trabalho e não posso, nem quero aceitá-lo.

?Insisto! ?Giesler exclamou tentando colocar os cotovelos novamente no colchão, um movimento que o fez grunhir de dor.

?É um asno! ?Mary trovejou desesperada ao observar a intenção do paciente. ?Meu pai não lhe disse que não pode se mover sozinho?

?Mary Moore Arany! ?Randall gritou ao ouvir como se dirigia ao lorde.

?Arany? ?Philip perguntou levantando a sobrancelha direita e sorrindo enquanto a observava corar.

?Cortesia da minha mãe, milorde ?respondeu franzindo a testa e dando ao pai um olhar carregado de represália.

?Um nome muito apropriado ?Philip sussurrou divertido.

?Deseja me fazer mais alguma pergunta? ?Randall interveio rapidamente quando percebeu que sua filha não continuaria mantendo uma atitude cordial por muito tempo.

?Não ?Giesler respondeu sem tirar os olhos dela.

Volátil. A palavra mais apropriada para descrevê-la era volátil. Tudo o que ele precisava descobrir era quando poderia pegá-la com a guarda baixa, para que não jogasse nada que pudesse usar como uma arma. Mas ele se preocuparia com isso mais tarde, justamente quando pudesse se levantar sem a ajuda de ninguém. Então ele a procuraria e agradecia pessoalmente pelo que havia feito por ele.

?Sendo assim, até amanhã ?Randall cedeu estendendo a mão.

?Até amanhã ?Philip respondeu, apertando a palma com aparente dificuldade.

?Mary... ?seu pai disse uma vez que estava ao seu lado ?vamos. É hora de lorde Giesler descansar com tranquilidade.

?Tenha um bom dia, milorde. ?Ela se despediu com tanta frieza que Philip sentiu sua alma congelar.

?Mais uma vez obrigado, Srta. Moore ?respondeu lentamente.

Mary lhe fez uma ligeira reverência e, sem dizer uma só palavra mais, caminhou atrás de Shals e de seu pai. No entanto, antes de fechar a porta, não pôde deixar de olhá-lo de novo. Esse íntimo cruzamento de olhares a oprimiu. Não entendia o motivo pelo qual sua mente lhe alertava que sua história com o lorde não terminaria naquele momento, senão que acabava de começar. Horrorizada ao pensar que voltaria a encontrá-lo, fechou a porta com rapidez e suspirou.

?Deve estar muito orgulhoso de sua filha ?Shals disse ao médico enquanto ambos caminhavam pelo longo corredor. ?Nunca conheci uma mulher tão valente.

?Valente ou demente? ?Randall respondeu.

?Não pensa que sua filha agiu corretamente? ?Shals insistiu confuso.

?Mary sempre age racionalmente, porém, desta vez não tenho tanta certeza disso. Você sabe que tipo de repercussão teria se tivesse cometido um erro?

?Erro? ?Retrucou Shals parando no patamar do primeiro andar. ?Não houve nenhum, Sr. Moore. Testemunhei o trabalho de muitos médicos e garanto-lhe que nunca vi uma pessoa trabalhar como ela.

?Não percebeu que é uma mulher e que não tem licença médica? ?Moore insistiu, impressionado com o apoio e o respeito que o criado mostrava a Mary.

?E? ?Shals perguntou olhando para ele incrédulo. ?Tenho certeza de que se ela tivesse atendido meu amo anterior, ele ainda continuaria respirando ?comentou antes de estender a mão para as escadas.

?Não lhe importa as opiniões que este ato de suposta valentia pode lhe causar? ?O pai insistiu.

?Não. E sobre esse assunto, como lorde Giesler esclareceu, não deve se preocupar. No entanto, lhe aviso que, após a brilhante atitude de sua filha esta noite, receio que ninguém nesta casa receberá, quando estiver doente, outro médico que não seja a Srta. Moore.

?Ela não é médica.

?Para nós sim, ela é ?Shals disse sem rodeios.

?Não falaria assim se a conhecesse melhor... ?Randall disse descendo o primeiro degrau.

?Acredite em mim quando digo que todos descobrimos o caráter afável da Srta. Moore ?Shals explicou divertido.

?De verdade? O que fez desta vez?

Enquanto desciam as escadas, o mordomo contou a ele o momento em que apareceu batendo na porta da residência. Randall não ficou chocado ao saber que jogou o casaco e que, sem a presença de um criado, foi para o quarto do paciente. Tampouco ficou surpreso quando Shals o informou que chamava os criados que pretendiam banhar seu senhor de bando de inúteis. Se tivesse agido de maneira diferente, o teria confundido. Mas apenas lhe descreveu o caráter típico de sua filha e seu desejo de salvar vidas. O mesmo que o seu. Esse reflexo lhe causou grande tristeza. Não era justo que a sociedade não permitisse que uma mulher desempenhasse o papel de um homem, apesar de ter mais conhecimento e habilidades do que eles.

?Srta. Moore, aqui está o seu casaco ?Shals comentou estendendo a roupa para ela.

Naquele momento, Mary arregalou os olhos e lançou uma maldição em alemão. Se virou rapidamente e, sem ouvir a repreensão que seu pai falou ao ouvi-la blasfemar, levantou o vestido com as duas mãos para voltar ao quarto.

Correu pelo corredor até chegar à porta do lorde. Por um momento duvidou se deveria bater ou não. Não o fez porque imaginou que, uma vez que estivesse sozinho e em silêncio, a morfina o teria entorpecido novamente.

Como deduziu, seus olhos estavam fechados e ele estava respirando calmamente. Não seria um problema se aproximar da mesa e levar sua maleta. Na ponta dos pés, atravessou a sala, ficou ao lado do paciente e sorriu quando viu que estava descansando tranquilamente. Sem fazer o mínimo barulho, se virou para a maleta, fechou-a e, ao se virar novamente, ficou sem fôlego quando descobriu que os olhos do homem se abriram e a olhava com uma intensidade desconhecida para ela.

?Desculpe, esqueci... ?Ficou calada ao ver que ele estendia a mão para ela enquanto balbuciava algo incompreensível.

Assustada, caso tivesse piorado durante o breve período de tempo em que permaneceu sozinho, deixou cair a maleta no chão e estendeu a mão esquerda. Mas esse medo se tornou perplexidade quando ele a puxou com tanta força que seus narizes se tocaram.

?É uma mulher fascinante, Mary Moore ?ele sussurrou. ?Fascinantemente inesquecível ?afirmou antes que seus lábios tocassem os dela suavemente.

A resposta de Mary não demorou a chegar. Se afastou rapidamente dele e, apesar do estado de nervosismo que sentiu quando foi beijada pela primeira vez, levantou a palma da mão direita e lhe deu uma bofetada.

?Você é um grosseiro e espero que fascinantemente me esqueça ?Disse antes de levantar o queixo, pegar a maleta, adotar uma postura arrogante e sair dali a grandes passos.

No entanto, uma vez que Mary fechou a porta, se apoiou nela, levou a mão com a qual lhe bateu no coração e suspirou. Por que deu um tapa nele? Por acaso não sabia que o clorofórmio ainda passeava por suas veias? Milorde ainda não estava lúcido e estava agindo sob os efeitos dos narcóticos. Seria uma tragédia para ela que recordasse o que tinha acontecido. Se fosse assim, seria um problema sério. Compaixão, um sentimento que não tinha desde que entendeu a amargura do mundo ao seu redor, brotou de suas entranhas. Mas desapareceu imediatamente ao ouvir uma grande risada vinda de dentro do quarto.

?Verdammter Schurke![5] ?explodiu antes de descer as escadas tão rapidamente quanto subiu.


***

?Sabe que não deveria se sentir tão orgulhosa pelo que tem feito, certo? ?Randall perguntou à filha quando ambos se acomodaram dentro da carruagem e depositaram as respectivas maletas no assento. ?A intervenção foi um sucesso, mas não deveria ter feito isso sozinha.

?Agi por instinto, pai ?ela respondeu olhando pela janela.

?Por instinto? ?retrucou levantando as sobrancelhas. ?Desde quando se deixa levar por esse tipo de coisas?

?Tinha uma enorme inflamação. Os vômitos que observei...

?Não pôde esperar sete miseráveis horas, Mary Moore Arany? ?o pai insistiu irritado ?Você parou para pensar nas consequências que teria se não tivesse trabalhado corretamente? Estamos falando de um lorde!

?Desde quando faz esse tipo de distinção social, pai? ?Respondeu, virando lentamente sua cabeça para ele para olhá-lo. ?Me ensinou que as doenças não têm piedade daqueles que as sofrem. Observa-se, se faz um diagnóstico, se age e quando tudo termina tal como se deseja, volta para casa satisfeito por ter salvo uma vida ?garantiu com firmeza.

?Nu! ?Randall gritou fora de si. ?Aquele homem estava totalmente nu! Como foi capaz de se manter de pé, Mary? Por isso corou ao me ver entrar? Sentia vergonha por estar diante de um homem nu?

?Ist das ein problem, Vater?[6]

?Sim. Para mim isso é um grande problema, filha ?Moore garantiu.

?Caso você não se lembre, desde que eu o acompanho, tenho visto muitos homens nus ?apontou com desdém ?e seu querido lorde não é diferente dos outros.

?Sabe o que acontecerá se alguém daquela casa espalhar que você operou seu senhor enquanto ele estava nu? Sua mãe nos matará, porque eles não falarão mais sobre o caráter azedo de sua segunda filha, mas sobre sua insolência e falta de decoro.

?Queria que fizesse a intervenção com ele vestido? ?Retrucou com raiva.

?Poderia ter estendido o lençol, como fizemos em muitas ocasiões ?Randall manifestou sem diminuir sua raiva. ?Mas não. Você não pôde pensar em uma coisa tão simples...

?Me preocupava mais com a sua vida do que descobrir sua aparência física ?declarou mordaz. Embora a avaliação obtida pelo corpo forte e robusto do lorde fosse mantida para si. Sem contar com a surpresa que teve ao ver, pela primeira vez, um sexo masculino de verdade. ?Não fiz um bom trabalho? Não lhe salvei a vida?

?Isso parece.

?Melhorará? ?Persistiu tenazmente.

?Espero que sim ?Randall comentou com um suspiro.

?Então... vamos esquecer o resto! ?Apontou séria.

?Acha que será tão fácil para lorde Giesler esquecer que uma mulher o viu nu?

?Oh, bem! ?Exclamou com um leve sorriso. ?Realmente acredita que é a primeira vez que se mostra dessa forma diante de uma mulher? Por acaso não lembra que é o melhor amigo de lorde Bennett? Não ouviu o que dizem sobre eles?

?Mary Moore Arany, não fale comigo com esse tom!

?Pai, não seja ingênuo, por favor. Certamente, dentro de algumas horas, quando o efeito do sedativo tiver passado, seu querido lorde Giesler esquecerá o que aconteceu e se concentrará em aplacar a dor que ele deve suportar. ?Disse antes de cruzar os braços e olhar pela janela novamente.

?E se isso não acontecer?

?O fará ?disse incisiva.

No entanto, ela sabia que não. Aquele homem miserável guardou um rolo seu debaixo de um tecido de seda, olhou-a com veneração, defendeu-a como um justiceiro e, para aumentar a lista de eventos horríveis entre eles, a beijou. Só esperava que o tapa o fizesse entender que era melhor esquecê-la se sonhava em viver mais alguns anos.


Capítulo V


?Não posso acreditar! ?Sophia exclamou horrorizada depois de ouvir a explicação do marido. ?Como pôde ser tão imprudente? Operar? Ela sozinha? Por que o fez?

Felizmente para sua filha, assim que chegou em casa, subiu as escadas e se refugiou em seu quarto. Sabia como sua mãe agiria quando ele lhe contasse tudo o que tinha acontecido e, como mulher inteligente que era, decidiu se refugiar do perigo. Mas ele não podia fugir como Mary...

Randall olhou para a sua esposa, ela estava andando de um lado para o outro da sala. O laço de sua bata branca se soltou com os movimentos bruscos e seus cabelos, geralmente lisos e suaves como a seda, se enrolaram ao não deixar de tocá-lo. Sua raiva era compreensível; Mary agiu impulsivamente, sem parar para pensar nas consequências que seu ato de caridade poderia lhe acarretar no futuro. No entanto, ele se sentia muito orgulhoso do trabalho de sua amada menina. Qualquer outra pessoa em seu lugar esperaria a presença de outro médico para corroborar o primeiro diagnóstico. Mas ela não precisava de uma segunda opinião e procedeu com a paixão que mostrava sempre que alguém precisava de sua ajuda. Era verdade que havia cometido uma grande imprudência, isso não podia discutir com Sophia, mas também deviam elogiar seu bom julgamento.

?O salvou ?disse depois de procurar por palavras tão chocantes que diminuíssem a raiva de sua esposa.

?O que disse? ?Ela retrucou, abrindo tanto os olhos que podia ver claramente a dilatação de suas pupilas.

?Nossa filha salvou sua vida ?respondeu calmamente.

?Randall Moore! Você ficou louco? Porque só assim entenderia sua postura inadequada ?gritou angustiada.

?Apesar da minha primeira impressão, duvido muito que lorde Giesler sobrevivesse a uma doença tão perigosa quanto essa. ?Adicionou sem hesitar.

?Mas... não acaba de me dizer que poderia ter esperado até sua chegada? ?Enfatizou frenética. ?Que posição vai tomar, Randall? Sim ou não? ?Acrescentou, estreitando os olhos e colocando as duas mãos na cintura.

?Na minha opinião, penso, acredito e calculo que...

?Não comece a falar comigo dessa maneira, ou juro por Morgana que dormirá no sofá por um mês inteiro! ?O ameaçou.

?A posição é sim. Apoio fortemente a decisão de Mary. É, sem dúvida, o melhor trabalho que já vi em anos ?assumiu orgulho. ?Você acredita que tive que olhar duas vezes para a sutura que ela fez na incisão? Era perfeita!

?Mary... o costurou? ?Retrucou impressionada. ?Mas se não sabe nem enfiar fio na agulha!

?Bem, te garanto que sabe fazê-lo, e muito bem. ?Recostou-se na cadeira, subiu os óculos pela ponte de seu nariz, sorriu levemente e olhou ternamente para a esposa. ?No fundo, acho que ela estava certa...

?Então, agiu corretamente, certo? Lorde Giesler não retaliará contra ela, correto? ?Sophia insistiu desconcertada. O que devia fazer? Castigá-la durante dois anos em seu quarto ou deixar Madeleine preparar um daqueles bolos de que tanto gostava?

?Como já expliquei várias vezes, este tipo de doença é imprevisível... ?começou a explicar enquanto se levantava do cômodo sofá. ?É verdade que, se a fossa não explodisse por dentro, a intervenção poderia ser adiada até minha chegada. Mas como não podemos saber o que está acontecendo sob a nossa pele, até abrirmos, possivelmente sua predição se cumpriria em minutos. Devo esclarecer que essas inflamações são diferentes em cada paciente. Lorde Giesler sofreu dois dias com dor, febre e vômito. O Sr. Skinner faleceu antes que a febre aparecesse.

?Pelo amor de Morgana! Tinha esquecido o Sr. Skinner! ?Exclamou levando as mãos ao rosto. ?Mary ainda não superou, certo?

?Nunca se esqueça da primeira pessoa que morreu em suas mãos, querida. Sem dúvida, foi o pior momento de sua vida e imagino que foi por isso que ela agiu sem o meu consentimento. Reviveu aquela noite e concluiu que tinha que salvar a vida de lorde Giesler, apesar das consequências que teria no futuro.

?Se certificou de que lhe não tirou nada do corpo, exceto a abençoada fossa? ?Perguntou um pouco mais calma. Se fosse verdade, se a sua filha tivesse acalmado a consciência e descansado em paz depois da sua loucura corajosa, não a castigaria, mas também não a recompensaria. Se elogiasse Mary, estava perdida, porque nunca ouviria um conselho sem lembrá-la de que seus motivos alcançaram um tremendo triunfo. ?Depois do que aconteceu entre eles há alguns dias, poderia ter removido metade do estômago para se vingar.

?Que loucura você disse, querida! ?Randall exclamou com uma risada nervosa. ?Como nossa filha faria esse tipo de bobagem?

Mas a verdade era que não o confirmou e foi um descuido de sua parte. Estava tão preocupado em proteger a imprudência de Mary que não notou os restos que havia na bandeja. Ele esperava que sua filha tivesse esquecido a vingança que jurou realizar contra o homem que a chamara de Medusa e que, como sua esposa disse, não aproveitou o momento para lhe arrancar qualquer órgão vital com suas próprias mãos.

?E, como estava quando entrou no quarto dele? ?Perseverou sua esposa.

?Bastante bem ?admitiu finalmente respirando tranquilamente. Se lhe tivesse faltado algo importante, não teria aberto os olhos. ?Bastante bem ?repetiu para garantir sua própria dedução. ?Eu tenho que confessar que seu estado lúcido me deixou perplexo. Em outros pacientes, a recuperação tem sido muito lenta. No entanto, lorde Giesler estava ciente o tempo todo e raciocinava claramente.

?Suponho que, quando lhe anunciou que foi nossa filha quem lhe realizou a intervenção, gritou horrorizado como fez na manhã em que ela lhe atirou os tubos metálicos ?Sophia comentou olhando-o sem piscar.

?Pois não. O oposto. lorde Giesler a defendeu veementemente.

?A defendeu? ?Sophia perguntou boquiaberta.

?Não só ele, mas também o seu mordomo principal. Juro que pensei que o lacaio jogaria um dos castiçais na minha cabeça quando eu a repreendi na frente deles ?explicou Randall estendendo a mão para a esposa.

Tinha que descansar. Estava exausto demais para enfrentar o dia e, como sua amada esposa se acalmara um pouco, era hora de levá-la para o quarto e que o médico assumisse o papel de doente. O que mais um marido poderia querer depois de uma noite sem descanso e a situação que viveu na residência do lorde? Apenas um: adormecer nos braços de sua esposa.

?Lhe explicou tudo o que acontecerá se descobrir que Mary o atendeu? ?Sophia insistiu, aceitando aquele braço.

?Compreendeu-o rapidamente e isso lhe causou um terrível aborrecimento ?ele indicou, abrindo a porta.

?A quem? Lorde Giesler ou o mordomo? ?Ela insistiu sem esclarecer.

?Para ambos. O servo me avisou que ninguém na residência procuraria outro médico além de nossa filha e lorde Giesler disse que se tornaria um feroz protetor de Mary se alguém ousasse reprovar seu bom trabalho.

?O que ele disse? ?Sophia retrucou, arregalando os olhos novamente.

?Que ele se tornaria seu feroz protetor ?Randall repetiu.

?Quanto clorofórmio Mary lhe forneceu? ?Insistiu sua esposa lhe ajudando a subir o primeiro degrau da longa escadaria.

?Quase um quarto do frasco! Você não acha engraçado? Lorde Giesler permanecerá sedado por uma semana inteira! ?Randall comentou com diversão. ?Talvez, quando seu corpo eliminar toda essa quantidade de soníferos, não se lembre que Mary o operou nu ?acrescentou rindo sem parar.

?Como disse? ?Trovejou Sophia parando abruptamente nas escadas. ?Nossa filha viu aquele homem nu?

?Eu disse isso? Não lembra querida.

?Randall Moore... Fale agora mesmo! ?E no meio daquela escada, Sophia se afastou do marido e cruzou os braços.

?Não esteve sozinha em nenhum momento. A irmã do paciente e mais de dez servos presenciaram tudo ?ele comentou, sem saber se devia correr, como Mary havia feito quando chegou, ou voltar para a sala e se trancar até que a nova raiva de sua esposa passasse. ?Portanto, não pode nem deve pensar que eles tiveram um momento íntimo. Todos ali presentes...

?Nu?! ?Esbravejou. ?Minha filha viu aquele homem nu? E acha que lorde Giesler se esquecerá disso? Que ninguém naquela casa comentará que nossa filha, a quem esperamos casar algum dia, teve a indecência de ver um homem nu? ?Sua garganta ficou tão fina e alongada quanto o pescoço dos patos do lago quando via Josephine aparecer com a arma.

?Sophia... querida... Talvez... eu... ?tentou dizer.

?Mary Moore Arany! Nem pense em dormir! Temos que falar! ?Gritou depois de levantar a camisola e subir as escadas num tropel.

?Graças a Deus... ?suspirou o médico retrocedendo muito lentamente os degraus que tinha subido acompanhando sua esposa.

Depois de olhar para o primeiro andar, voltou ao seu escritório. A escolha mais acertada para ele era descansar em um sofá duro, em vez de suportar a disputa que mãe e filha teriam durante as próximas horas...


***

?Se sente bem, milorde? ?Shals perguntou a Philip quando apareceu novamente no quarto.

?Já foram embora? ?Ele perguntou, fazendo um grande esforço para permanecer um pouco inclinado.

?Sim. O Sr. Randall e sua filha voltaram para casa. Como não tinham carruagem, tomei a liberdade de lhes oferecer uma de sua senhoria ?informou-o enquanto caminhava em sua direção.

?Nesse caso... me sinto horrível! ?Trovejou. Finalmente descansou a cabeça no travesseiro e olhou para o teto. ?Isso dói muito!

Shals, confuso com a mudança radical na saúde de seu mestre, pegou o frasco de comprimidos e retirou o que o médico recomendou.

?Pensei, ao vê-lo se inclinar e conversar com o médico, não estava se sentindo tão mal... ?disse aproximando as cápsulas para a boca de Philip. Ele os colocou na língua e lhe aproximou um copo de água.

?Se lembra da infecção que sofri durante minha primeira viagem às ilhas do Caribe? ?Estalou, depois de engolir o medicamento.

?Sim, milorde. Jamais o vi tão fraco e doente. Devo lhe confessar que pensei que não voltaria a Londres... vivo ?explicou consternado.

?Bem, isso é pior... ?suspirou, jogando de novo sua cabeça sobre o travesseiro.

?Quer que chame o Sr. Moore? Com certeza ele saberá...

?Não! Nem pense em fazê-lo! Não quero que ele se preocupe com nada. Certamente culparia sua filha pelo meu desconforto e não vou consentir que isso aconteça.

?Claro, milorde. Tem toda a razão. Depois de presenciar a repreensão contra a Srta. Moore, tenho muito medo de que ela assuma a responsabilidade por tudo e, se naquele momento acalmei o desejo de lhe acertar a cabeça com um dos castiçais que tem na lareira, não duvidarei da próxima vez. Como ele ousa repreendê-la assim? Aquela menina o salvou! ?Comentou com ira. ?Se o próprio pai não é capaz de apoiá-la, quem o fará? ?Acrescentou.

?O Sr. Moore é um fiel defensor de sua filha, junto com o Sr. Flatman. Mas acho que se assustou ?Philip refletiu. ?Talvez seja a primeira vez que ela agiu sem o seu consentimento.

?Estava em perigo, milorde. Ela agiu prontamente porque deduziu que poderia morrer ?informou. ?Depois de ver os seus vômitos, ela colocou as mãos sobre o seu corpo e foi apalpando lentamente a área em que foi operado.

Tocando? Até que Shals não fez referência a sua nudez, ele não reparou nela. Mary havia tocado seu corpo e ele estava inconsciente naquele momento? Isto era imperdoável! Desde quando não sentia as carícias de uma mulher? Ele teria ficado excitado ao notá-la? Com certeza que sim. Seu membro agia por conta própria, sem a necessidade de uma ordem mental. Teria deixado em um bom lugar? Como ela reagiu? De repente, um sorriso de orgulho cobriu seu rosto cansado. Até agora, nenhuma de suas amantes se queixara de sua aparência física; era mais, elas o exaltavam e o admiravam. Mary teria olhado para ele dessa maneira também? Que conclusão havia chegado? Poderia obter a resposta através de Shals, mas precisava ser cauteloso, se não quisesse na sua, os candelabros que queria jogar na cabeça do pai. Bem, por causa da emoção com que ele falou sobre ela, sua admiração era notável.

?Por que minha irmã a chamou? ?Mesmo sabendo a resposta, decidiu começar do início, para descobrir todos os detalhes.

?A Sra. Reform decidiu aparecer na casa dos Moore após seu último estado febril ?Shals começou a explicar, evitando comentar que ele estava gritando o nome da menina como se não houvesse outra mulher no mundo. ?Como já descobriu, o médico não estava em casa e sua filha apareceu. Devo esclarecer que, quando ela entrou e jogou seu casaco na minha cara, eu queria chutá-la daqui ?explicou. Seus lábios se estenderam para mostrar um sorriso travesso enquanto aceitava o convite de seu amo para se sentar na mesma poltrona onde ela passou a noite toda. ?Mas sua irmã impediu que o fizesse. Sem demora, a jovem subiu as escadas de três em três com a maleta na mão e entrou no quarto sem avisar. Foi então que ela encontrou três dos criados o agarrando. Eles estavam apenas tentando cumprir a ordem da Sra. Reform: dar-lhe um banho gelado. No entanto, foram eles que ficaram congelados quando a Srta. Moore gritou lhes chamando de bando de inúteis.

E naquele momento, Philip soltou uma risada que lhe causou mais mal do que diversão.

?Continua ?encorajou-o enquanto ele respirava fundo e colocava a mão esquerda em direção ao curativo.

?Obrigou-os a colocá-lo de novo sobre a cama. Logo se aproximou e começou a inspecioná-lo, tal como lhe disse. Quando ela anunciou à Sra. Reform que deveria operá-lo, sua irmã não deu crédito a suas palavras. Tentou convencê-la, mas, como entendi, é difícil para a Srta. Moore mudar de ideia sobre algo de que ela tem plena certeza.

?E? ?Giesler perguntou sorrindo com mais cuidado.

?E em menos de uma hora, você estava sobre uma mesa sob o olhar atento da jovem médica. Prometo que o tempo se tornou eterno, mesmo que a menina não tenha parado de falar sobre pesquisas que fizeram sobre a doença que sofria. Senti que ela estava narrando para que a Sra. Reform, que estava sentada na poltrona perto da lareira desde o momento em que o viu sangrar, relaxasse. Mas estávamos todos em tensão até que saiu de suas entranhas, o que o prejudicava. Então ela o costurou e desceu para a cozinha para o café da manhã acompanhada por sua irmã.

?Conseguiu comer alguma coisa depois de ver o que guardo dentro de mim? ?Retrucou estupefato pela frieza de Mary.

?Sim senhor. A Srta. Moore tomou duas xícaras de café, três torradas e um ovo escalfado, enquanto a Sra. Reform não conseguia nem terminar o chá que lhe serviram. ?Apontou com alguma diversão.

?Fascinante! ?Giesler exclamou depois de suspirar e encarar o teto.

?Pode acreditar! ?Shals respondeu se levantando da cadeira. O momento que ele esperava havia chegado e, como sabia que reação seu senhor teria, era melhor se afastar dele, porque, apesar de se sentir tão mal, quando ouvisse o que planejava dizer, conseguiria se levantar e estrangulá-lo. ?É uma lástima que não possamos falar sobre o que aconteceu aqui esta noite, milorde.

?Por quê? ?Ele perguntou, estreitando os olhos.

?Essa menina é um verdadeiro tesouro ?declarou aos pés da cama ?e é uma pena que ninguém saiba como é realmente.

?Por quê? ?Repetiu grosseiro.

?Por que... que homem não gostaria de se casar com uma mulher que o libertaria da morte sem hesitar por um segundo? Se os solteiros desta cidade conhecessem o dom daquela jovem, o Sr. Moore teria, às portas de sua casa, inúmeros pretendentes esperando impacientemente ?comentou com entusiasmo.

?Daqui não sairá nem uma palavra! ?Philip garantiu, se levantando apesar da dor que sentia. ?Dei minha palavra a seu pai e a cumprirei!

?Oh, milorde! Não me interprete mal ?Shals se apressou em responder. ?Juro que ninguém nesta casa comentará nada. Todos entenderam que suas posições estão em risco se não conseguirem manter a boca fechada ?acrescentou com aparente tensão.

?Perfeito... ?manifestou Giesler deitando-se de novo.

?Se a sua senhoria não requer dos meus serviços, irei ao...

?Mais uma coisa antes de sair ?interrompeu.

?Sim? ?Ele perguntou, provando o sabor da vitória.

?Quem, dentre todos os que trabalham para mim, pode fazer um trabalho que exige muita discrição?

?Todos, milorde. Ninguém desta casa...

?Bem, escolha um deles e que vigie a Srta. Moore enquanto eu não posso sair deste maldito quarto ?ordenou bruscamente.

?Pensa que pode estar em perigo? Que alguém pode machucá-la? Não me parece que precisa de proteção, senhor. Ela...

?Não me ouviu bem, Shals? Preciso chamar outro lacaio para executar minha ordem sem questionar? ?Ele insistiu, olhando-o ferozmente. ?Eu disse que alguém a vigie e me conte tudo o que ela faz.

?Com certeza, milorde! Agora mesmo me coloco a isso ?ele respondeu antes de fechar a porta.

Quando seu mestre não pôde olhar para ele, sorriu amplamente. Havia entendido a indireta? Ou melhor, devia defini-la como uma grande direta? O que quer que fosse, o plano começou melhor do que esperava...

«Um marido? Pretendentes?»

Philip cerrou os punhos e bateu no colchão. Maldita fosse a sua doença e a incapacidade de se levantar da cama! Quanto tempo o Sr. Moore havia dito que deveria permanecer deitado? Um mês? Bem, ele se recuperaria na metade do tempo! Depois de esperar que Bennett partisse para sua casa no campo com três das irmãs, depois de perguntar sobre ela e ficar impressionado por esse caráter grosseiro e brilhante intelecto, depois de vê-la com aquela camisola e de guardar um objeto seu, fazendo dele seu amuleto... Permitiria que outro homem aparecesse em sua vida? Não, absolutamente não! Se um homem ousasse aparecer na residência Moore lhe pedindo em casamento... lhe arrancaria a cabeça. Mary Moore Arany era sua Medusa, sua bruxa e lutaria para tê-la, mesmo que tivesse que rastejar como uma minhoca pelas ruas de Londres!


Capítulo VI


Não era justo! Por que ela deveria ficar de castigo por duas semanas por uma coisa tão absurda? Sua mãe esqueceu o prodígio que havia feito: salvar a vida de um homem, e só se concentrou no fato de que ela o vira nu. E como iria operá-lo? Com uma venda nos olhos?

Mary bufou pela décima quinta vez e sentou no parapeito da janela. Ela só estava trancada em sua casa por cinco dias e os primeiros sinais de uma loucura monumental apareceram: ela não havia trocado a camisola, nem escovado os cabelos nem uma vez, sorria sem motivo, andava pelo quarto procurando teias de aranha para soprá-las, passava o dedo pelas paredes, para sentir a aspereza delas. Como poderia suportar tanta crueldade por tanto tempo? Ela olhou para fora e bufou. Nos dias anteriores, não teve vontade de sair de casa, porque a chuva a ajudou a superar sua agonia. Mas naquela manhã, para sua desgraça, as nuvens se dissiparam do céu e o sol, apesar de frio, se mostrou em todo o seu esplendor, temperando levemente a cidade. Ela abraçou as pernas, cujos joelhos tocavam seu peito, e focou os olhos na cama de Anne. Senti falta dela. Ansiava as conversas e presença da mais velha de suas irmãs. Certamente que, se estivesse lá quando sua mãe apareceu no quarto com raiva, rapidamente aplacaria sua ira. No entanto, ela teve que enfrentar sozinha e, por mais que insistisse em que não havia reparado naquele corpo masculino, o olhar reprovador de sua mãe expressava que não acreditava nela.

E estava certa...

Como não admiraria um corpo assim? Se era praticamente perfeito! Como admitiu naquela noite, algo que seu cérebro lembrava como se tivessem passado mil anos, Lorde Giesler merecia ser estudado como um exemplar do Homo sapiens perfeito. Não tinha dúvida alguma de que, se tivesse vivido na pré-história, seria o melhor caçador. Caçador? Não! Ele seria o chefe de alguma tribo! Mas de uma em que haveria apenas mulheres. Sim, tinha certeza de que, antes de abrir os olhos, na chegada de um novo dia, ele teria à sua frente mais de dez quadris levantados, esperando serem usados para gerar novos filhos, novos chefes, novos homens com um físico parecido ao de seu procriador. E se tivesse vivido na era grega! Ah, certamente teria sido a musa de centenas de escultores! E os homens o perseguiram... e as mulheres!

Irritada, por compará-lo em diferentes épocas e em situações semelhantes, enrugou a testa e bufou. Era verdade que ele tinha um físico digno de uma divindade: seus braços, pernas e aquele peito duro e forte lhe davam essa condição. Mas... por que deveria notar tanto algo que para ela era trivial? Sempre pensou que, se encontrasse um homem que estivesse mais do que disposto a suportá-la, seria inteligente, um tanto tímido e muito sensato. Lorde Giesler não era nada disso! Tímido? Hah! O próprio canalha fez um grande esforço, comprometendo seu bom trabalho, para beijá-la! Havia sensatez nesse ato? Não, claro que não! Isso já lhe mostrava que o homem não era nada racional. Se tivesse sido, não a teria beijado nem teria feito um sacrifício desnecessário para obter, como presente, um bom tapa. Essa conclusão a levou a outra característica que não possuía: inteligência. Que pessoa inteligente faz um plano tão absurdo para se aproximar dela e beijá-la?

Mary levou a ponta dos dedos da mão direita para a boca e sorriu. Pensou, em algum momento de sua vida, que o cavalheiro que a beijasse pela primeira vez, receberia em troca o impacto de sua mão? Não. Mas também não achava que alguém se atreveria a fazê-lo. Quem iria desejar uma mulher que pudesse matar com um olhar e com algum outro remédio que carregasse em sua maleta? No entanto, mesmo que não quisesse admitir, gostava de se sentir... fascinantemente inesquecível. Foi isso que lorde Giesler lhe confessou antes que pudesse estar consciente do que estava acontecendo ao seu redor. Talvez não tenha antecipado seu plano selvagem, porque ainda estava perturbada ao encontrar um de seus rolos metálicos armazenados como se fosse um tesouro. Se seu pai não tivesse entrado no quarto naquele momento, ela o teria pegado e o teria jogado de novo, para que não esquecesse quão fascinantemente doloroso poderia ser um impacto semelhante.

Irritada, não apenas pelo castigo, mas por se concentrar novamente em lorde Giesler, ela pulou no chão e se afastando da janela. Não deveria eliminar tudo o que sua mente havia cultivado desde anos atrás para preencher essas lacunas mentais com bobagens sobre os homens. Ela havia determinado, desde que tinha uso da razão, que não aceitaria se casar com um, pois todo seu mundo se tornaria trágico. Que marido permitiria que ela fosse às reuniões médicas? Que marido íntegro aceitaria que sua esposa abandonasse a cama para acompanhar seu pai a uma urgência médica? E, que homem suportaria que sua esposa o substituísse por um bom livro? Nenhum! Não nasceu homem capaz de lhe oferecer a vida que esperava! Por causa disso, não pensava, nem procurava um cônjuge. A decepção destruiria as duas vidas, os problemas apareceriam: discussões, raiva, gritos, mentiras, infidelidade, tristezas, decepção e, após anos e anos sofrendo uma agonia infinita, a morte chegaria. A dele, é claro, porque ela não planejava morrer até os noventa anos, pelo menos...

Nervosa, pela agonia dessa prisão obrigatória, ela começou a andar pelo quarto até fixar o olhar na poltrona ao pé da cama. Como lhe tinha ocorrido uma ideia tão descabelada? Não achou que era suficiente castigá-la sem sair de casa e não permitir que ela lesse um único livro que também lhe impunha uma tarefa tão absurda? Jamais tocaria aquele bastidor, nem passaria o tempo bordando! Mas... como pensou que ela costuraria? Em que momento da sua vida pediu que lhe dessem linhas e agulhas? Colocou as mãos nas têmporas e apertou-as, como se desse modo desaparecesse uma dor de cabeça inexistente.

Era tudo culpa dele! Desde que lorde Giesler apareceu em sua vida, esta havia se transformado. E agora, embora não soubesse nada sobre seu paciente há vários dias, porque sua mãe avisou seu pai que, se ele passasse informações, iria dormir para sempre em seu escritório, continuava incomodando-a.

Estava prestes a pegar o pano comprado para bordar, o que poderia servir de colcha para a cama e fazê-la em farrapos quando ouviu barulho do lado de fora. Madeleine não teria pensado em sair, certo? Como superaria a má sorte de que, embora ela precisasse de sua presença, para que sua loucura não aumentasse, a irmã mais nova de suas irmãs decidisse enfrentar sua timidez saindo para a rua. Desesperada, correu para a janela com tanta pressa que sua testa alcançou o vidro antes que o resto do corpo. Seus lábios desenharam um sorriso enorme, o primeiro que mostrava desde que sua mãe fechou a porta antes de lhe gritar que queimaria seus livros se a desobedecesse. Viria por ela? Havia decidido descobrir o que tinha acontecido para não acompanhar seu pai até a casa do seu irmão? Nesse caso, agradecia a... seja lá o que todos acreditassem, que se apresentasse. Não lhe disse que havia se tornado sua primeira admiradora e que os Giesler a protegeriam? Bem, estava com sérios problemas e precisava dessa proteção... imediatamente!

Sem esperar para saber por que ela apareceu em sua casa, foi ao armário e procurou um de seus vestidos. Embora Shira logo aparecesse, porque sua mãe a obrigaria a chamá-la, para que a Sra. Reform não descobrisse o que havia feito com a filha, ela não desejava demorar nem um minuto.


***

Continuava sem acreditar no que estava fazendo...

Quando um servo de Giesler apareceu em sua casa, às oito horas da manhã, avisando-a de que deveria aparecer na casa de seu irmão o mais rápido possível, quase morreu de um ataque cardíaco. Pensou que tinha piorado, e isso que na tarde anterior confirmou que seu estado de saúde havia melhorado. Preocupada, ela começou a dar ordens a todos os empregados da casa, porque quando ela anunciou ao marido que deveria ficar cuidando dos filhos, ele lhe lembrou que tinha uma reunião importante e que não podia atrasar. Sem Trevor... Teve que procurar outras alternativas e preparar sua casa em uma hora! E para que? Para aparecer no quarto de Philip e descobrir que ele não estava doente, mas que teve uma ideia maluca e que precisava de sua ajuda.

?Preciso que vá vê-la ?disse-lhe assim que entrou.

?A quem? ?Ela perguntou erguendo as sobrancelhas. Se lhe pedisse que falasse com alguma de suas amantes, arrancaria seus olhos naquele momento.

?Mary.

Bem, isso a relaxou muito, tanto que ela caminhou lentamente pelo quarto para se sentar na beira da cama e mostrar um leve sorriso.

?Por quê? ?Insistiu em descobrir.

?Sei que algo aconteceu com ela. O Sr. Moore se recusa a falar sobre ela toda vez que toco no assunto e fico surpreso que, depois do que fez, não esteja interessada em descobrir como estou. ?Philip admitiu com angústia.

?Talvez, apenas talvez, não queira saber nada sobre você. Não pensou nessa possibilidade? ?Valeria afirmou com mordacidade.

Estava brava com o grande ego de seu irmão, odiava que fosse tão vaidoso. Era verdade que, para mulheres solteiras, casadas, viúvas e até idosas, ele era descrito como um homem encantador, elegante e sedutor, e com um porte digno de um deus, mas isso carecia de importância. No entanto, por causa disso, seu irmão não pensava em procurar uma esposa digna de um barão e apenas desejava estar nos braços de amantes desavergonhadas. Valeria estava muito preocupada com seu futuro e essa preocupação aumentou depois de ler a última carta que o advogado de seu avô enviou. Ele informou que sua saúde piorou e pediu que ela chamasse a sabedoria de seu irmão. A recusa de Philip estava começando a ser perigosa. Se ele não reivindicasse o título de família, a alma de seu pai não descansaria em paz...

?Já que não posso fazer outra coisa durante o dia exceto pensar, também ponderei essa ideia ?declarou zangado. ?Mas sei que essa não é a resposta. Uma mulher como ela, tão apaixonada, não se pode esquecer, da noite para o dia, a evolução da pessoa a quem salvou da morte.

?Talvez o pai a mantenha informada e ele precise permanecer em silêncio ?Valeria ofereceu.

Embora temesse muito que essa não fosse a resposta certa também. O pouco que sabia de Mary se assemelhava a conclusão de Philip: era apaixonada por seu trabalho e duvidava muito que desconsiderasse seu estado de saúde facilmente, apesar do fato de que, por causa do rosto que colocou quando lhe anunciou na carruagem seu nome, mostrou mais ódio do que misericórdia.

?Há cinco dias que não sai de casa ?Philip anunciou.

?Como sabe? ?Valeria perguntou, arregalando os olhos.

?Encarreguei a tarefa de protegê-la a um de meus servos ?ele declarou, evitando expressar em seu tom mais ansiedade do que deveria mostrar à irmã. Se descobrisse que tinha algum interesse nela, começaria a planejar um casamento, forçaria-o a recuperar a baronia, iria enviá-lo para a Alemanha e, quando voltasse, se tornaria um homem que não desejava ser.

?Proteger ou espioná-la? ?O sorriso malicioso que seus lábios esboçaram, fez Philip entender que todos os seus esforços para não revelar um interesse especial por Mary eram um fracasso.

?Protegê-la ?resmungou. ?Tenho que velar por sua honra. Depois do que fez por mim, não vejo justo que corra perigo...

?Que perigo poderia ter? ?O interrompeu, se levantando da cama. ?Alguém desejaria matá-la por salvar sua vida? Se essa cidade descobrisse o que fez, seria valorizada tal como merece e eles parariam de vê-la como um pária. Sabe quantos homens estariam interessados nela? ?Insistiu com ele. ?Possivelmente, você não está fazendo nenhum bem em esconder o segredo. Talvez deveria...

?Não! ?Rosnou. Em seguida colocou a mão no curativo e apertou para aliviar a dor. ?Não é isso que quero!

?Bem... Diga-me por que me fez sair de casa a essa hora e ter que fazer o trabalho de um dia inteiro em uma hora ?Valeria murmurou.

?Quero que descubra o que acontece com ela. Preciso saber por que não saiu de casa durante esses dias.

?Não pensou que a chuva tivesse algo a ver? ?Soltou, um pouco brava.

?Mary gosta dos dias chuvosos e nem um dilúvio a impediria de sair de casa para comprar os folhetos científicos que coleciona.

?E você sabe tudo isso por que...

?Porque Logan me pediu ?declarou.

?Bennett está interessado nela? ?A vida poderia dar-lhe um chute mais forte em seu traseiro? Se seu melhor amigo tivesse alguma intenção na mulher, seu irmão não intercederia, mesmo que estivesse apaixonado. Mas... Philip poderia se apaixonar?

?Não ?respondeu com um sorriso. A irmã dele tinha que mascarar melhor tudo o que pensava. Ele ainda não entendia como tinha sido tão boa em jogar cartas com Trevor, quando não era capaz de dissimular o que passava em sua cabeça. Não havia dúvida de que seu cunhado era capaz de fazer qualquer coisa para fazê-la feliz. ?Não, Logan está interessado na primogênita das Moore. Precisava descobrir como poderia se aproximar dela sem a interrupção das outras, então me pediu para descobrir tudo o que podia sobre as Moore.

?E era de vital importância que descobrisse seus gostos... ?Valeria apontou ironicamente. Philip assentiu. ?Então, como choveu, o que ela ama, e seu lacaio lhe disse que ela não saiu de casa, você concluiu que algo sério aconteceu com ela.

?Mary não pode sobreviver sem esses artigos médicos. Somente uma doença, que a obrigue a permanecer em sua casa, pode impedi-la de comprá-los. ?Garantiu preocupado.

?Quer que me apresente na residência Moore e descubra o que aconteceu? ?Philip assentiu. ?A troco de que?

?Vai me chantagear, Valeria? ?Retrucou, sem saber muito bem se estava com raiva ou orgulhoso do sangue cigano materno que corria por suas veias. ?É capaz de impor condições a um irmão que te ama e não pode se defender sozinho?

?Se Martin me pedisse, faria sem pensar um só segundo. Mas você ?ela apontou um dedo ?não é ele. Então, sim, vou chantagear você, é o único idioma que você entende.

?O que quer? ?Ele disse depois de subir o lençol até o pescoço.

Medo, sua irmã lhe dava medo, tanto que ele usou o lençol como escudo. Se não errasse em seu palpite, levaria pouco tempo para lembrá-lo de que deveria...

?Na semana passada, recebi uma carta do advogado do nosso avô. ?Philip rosnou quando a ouviu. ?Ele queria nos avisar sobre sua saúde. Aparentemente, sua doença piora e não demorará muito...

?Não! ?Gritou. ?Esqueça esse absurdo, Valeria! Já te disse mil vezes! Não quero!

?Tem razão ?ela disse cruzando os braços ?você me disse não mil, mas um milhão, mas deve admitir que a situação mudou.

?Por isto? ?Apontou com o queixo para a cintura. ?Isso não mudou nada. Minha cabeça ainda está saudável...

?Se tem algum interesse em Mary, deveria considerar a alternativa de se tornar um barão.

Ela nunca havia chamado sua atenção para o assunto, mas incluir ao nome da mulher na frase, ela o fez.

?Não tenho nenhuma intenção de torná-la mi...

?Então, deixe-me falar sobre o que aconteceu aqui. Quando todo mundo souber que realizou um milagre, porque o rumor se espalhará como pólvora, ninguém duvidará de sua grande habilidade. Será convidada para uma infinidade de festas, terá, antes de descer o último degrau de qualquer salão, o cartão cheio de danças e, talvez em um deles, encontre o homem adequado para se casar com...

?Eu disse que não! Maldita seja, Valeria! Não escuta quando falo com você?

Mas... por que diabos todos estavam pensando em encontrar um marido para Mary? Queriam que se levantasse antes de se recuperar? Ou estavam tirando sarro dele? Mary não estaria com ninguém, ela não dançaria com ninguém e ninguém, absolutamente ninguém, descobriria que adorava sentir as gotas de chuva em seu rosto! Lembrando daquele dia, quando pensava que estava sozinha, que ninguém poderia descobri-la, se estremeceu. Nunca na vida viu um sorriso de um anjo até que Mary, sem perceber sua presença, virou o rosto para ele e sorriu.

?Está me ouvindo? ?Replicou. ?Olha ?começou a dizer se aproximando novamente dele ?se pensou em torná-la uma de suas muitas amantes, acredite-me que não fará isso. Essa moça não consentirá uma humilhação semelhante. Lutou com unhas e dentes contra todos os infortúnios que lhe foram apresentados para aceitar uma coisa tão vil. Por acaso não se informou o que fazem os cavaleiros quando a veem, ou só tem perguntado sobre seus gostos?

?Posso garantir que sei muito bem do que falam. ?E Valeria não duvidou por como sua mandíbula endureceu e como seus olhos, azuis com o céu, ficaram escuros, como uma noite sem estrelas. ?Assim como também tenho que confessar que mais de um imbecil trocará de calçada quando a veja, se quiser manter seus bonitos dentes dentro da boca ?garantiu irritado.

?Você gosta! Tem interesse nela? ?Embora apenas parecesse uma pergunta, não era. ?Então, pense em uma coisa...

?Qual? ?Ele perguntou, erguendo as sobrancelhas loiras.

?O que você vai lhe oferecer Philip, que os outros não podem dar?

?Respeito e admiração ?respondeu sem hesitar.

?Oh, bem! ?Exclamou revirando os olhos. ?E pensa que isso será suficiente para ela?

?Sim ?garantiu com firmeza.

?Pois está equivocado! ?Gritou. ?Uma mulher quer ter ao seu lado um marido compreensivo, certo, mas também um lutador. Precisará de um homem que a apoie e que não lhe coloque obstáculos em seu caminho. Sabe qual é o caminho de Mary Moore?

«Mary Moore Arany», pensou Giesler.

?Qual, de acordo com o seu bom julgamento? ?Murmurou Philip.

?Tornar-se alguém que a sociedade não permite ?berrou. ?Não tem olhos em seu rosto, irmão? Realmente pensa que uma mulher que é capaz de deduzir a doença de uma pessoa apenas tocando nela e que tem a coragem de se envolver em uma operação, como ela fez com você, se conformará com um marido que lhe oferecerá respeito e admiração? Já tem um pai que o faz! Mary precisa de um marido para ajudá-la a alcançar o que ela sozinha não pode e... você conhece o paradoxo de tudo isso? Que, nesta maldita cidade, apenas um nobre pode pavimentar esse futuro. Conhece algum aristocrata que pode lutar nessa batalha social ao seu lado?

Silêncio... Por mais de um minuto, os dois irmãos permaneceram em silêncio. Valeria, entendendo que não havia conseguido nada, nem mesmo uma resposta negativa, se virou para a porta e a abriu de uma vez.

?Verá o que lhe acontece ?Philip pediu-lhe olhando para o teto ?e deixe-me pensar.

?Precisará de muito tempo para fazê-lo, querido irmão, pois até que não tenha adoecido, não foi capaz de fazê-lo.

?Ainda tenho dez dias para sair daqui. Quando o fizer, direi o que decidi ?ele garantiu.

Valeria não respondeu. Fechou a porta atrás dela com um forte estrondo. Não foi muito, mas foi mais do que suficiente. Se Philip tinha interesse em Mary, que disso não havia dúvida sobre a maneira de chamá-la quando a febre se apoderou dele, pensaria em como alcançá-la, porque, como lhe disse, ela não era uma de suas amantes que suspirava ao ver um corpo masculino perfeito.


?Bom dia, o que deseja? ?A voz de uma mulher, que não reconheceu, a fez voltar ao presente.

?Bom dia, sou a Sra. Reform. A Srta. Mary Moore pode me receber? ?Perguntou, oferecendo-lhe um sorriso terno e encantador.

?A Srta. ainda não saiu do seu quarto ?comentou Shira sem especificar em excesso. ?Mas posso anunciar à Sra. Moore que deseja visitá-la.

?Se fizer a gentileza ?comentou, entrando por fim no hall. Ofereceu-lhe o casaco e a empregada o pegou.

Depois que a mulher deixou o casaco no guarda-roupa à direita, ela caminhou para uma sala à esquerda. Enquanto informava a esposa do médico sobre sua presença, Valeria suspirou. Durante o trajeto, pensara na mudança de atitude de Philip. Repassou todos os gestos que seu rosto mostrava ao falar sobre Mary, até avaliou o tom de voz que ele usou nas palavras. Bem, uma coisa era certa; Mary era especial para ele e não suportava a ideia de que ela estivesse com outro homem. Agora tinha que se concentrar em aproximá-los sem levantar suspeitas e procurar um motivo eloquente pelo qual aparecera às onze horas na residência dos Moore.


Capítulo VII


Enquanto esperava a criada retornar, Valeria olhou para o primeiro andar. Se Mary permanecia em sua casa e não estava doente, pode observar, através de alguma janela, a chegada de sua carruagem ou até mesmo quando desceu dela. Se queria vê-la, logo apareceria no topo da escada, como na noite em que a conheceu. No entanto, essa alternativa diminuiu com o passar do tempo... Philip estava certo? Porque havia a possibilidade de que não estivesse em casa. Talvez tivesse que comparecer em outra emergência médica e, por isso, não havia vestígios da jovem. Mas essa ideia desapareceu rapidamente, porque ao entrar no jardim dos Moore, encontrou o servo de seu irmão escondido e sem tirar os olhos da entrada, tal como havia recebido a ordem. Então... o que tinha acontecido? Mary não teria decidido fugir dos Giesler, certo? Não, isso também não parecia certo. Era verdade que elas haviam discutido quando decidiu operá-lo, mas após sua magnífica proeza, as duas conversaram como se tivesse se conhecido há uma vida. E com relação ao irmão... Desejava manter distância? Mary, na realidade, era uma covarde? Não. Não era. Se sua intuição feminina não lhe enganava, a filha dos Moore não se assustaria facilmente. Se ela própria se envolveu numa intervenção deste tipo, seria capaz de lutar contra o mundo, se fosse necessário. Tinha que haver outra razão pela qual Mary não saía de casa, uma que, por incrível que pudesse parecer, lhe causava medo.

Valeria parou de olhar para o fim da escada e começou a andar inquieta pelo hall. Já não lhe importava mais a desculpa que lhe ofereceria à Sra. Moore ao aparecer em sua casa tão cedo, mas a causa pela qual Mary não aparecia. Apesar de tudo, a opção de estar em sério perigo começou a tomar força. Como seu irmão agiria se descobrisse que a jovem estava sob alguma ameaça? Pularia da cama para fazê-la desaparecer, mesmo sabendo que colocaria sua vida em risco! Disso não lhe cabia a menor dúvida...

Assim que focou o olhar na porta da entrada, ponderando todas as alternativas possíveis para esse desaparecimento, ouviu o som fraco de sapatos enquanto pisavam no chão. Se virou rapidamente, esperançosa de que fosse Mary, mas não havia ninguém lá. Resignada, ela respirou fundo para se acalmar e...

?Valeria... Olá! Estou aqui em cima! ?Mary sussurrou se escondendo atrás do parapeito de madeira.

?Mary! ?Exclamou eufórica. ?O que está fazendo aí? Por que não desce? Vim falar com você e...

?Não levante a voz ?lhe disse, acompanhando a sua ordem um leve movimento de suas mãos. ?Não pode saber que estou aqui. Se me descobrire, queimará todos os meus livros ?ela adicionou aterrorizada.

?Quem? ?Retrucou arregalando os olhos. Subiu um degrau, para poder vê-la melhor, mas a recusa de Mary a fez retroceder.

?Minha mãe ?bufou. ?Estou de castigo. ?E a vergonha que sentiu naquele momento em confessar o que estava acontecendo fez suas bochechas corarem.

?De castigo? O que você fez? ?Valeria insistiu em saber.

?Não posso falar, Shira aparecerá em breve e não deve me descobrir ?declarou sem afastar o olhar da porta por onde a empregada tinha entrado. ?Então, veio me ver?

?Sim. Meu irmão me pediu para fazê-lo. Ele sabia, de alguma forma, que você não deixou sua casa desde que saiu da dele e estava preocupado.

?Que atencioso da sua parte! ?Exclamou, revirando os olhos.

Faltava apenas, para que seu castigo aumentasse mil anos mais, que lorde Giesler aparecesse em sua casa perguntando por que sua filha continuava trancada. Sua mãe sofreria uma repentina apoplexia!

?Não pode descer? Preciso falar com você, mas jamais imaginei que deveria fazê-lo desta forma ?disse perplexa. Não tinha irmãs, nem primas, mas filhas e elas agiam da mesma maneira quando alguém era castigada.

Estava prestes a responder quando Shira saiu. Mary amaldiçoou baixinho e franziu a testa. Não seria capaz de executar seu plano? Pela primeira vez havia se arrumado decentemente! Embora essa leve raiva tenha desaparecido quando notou que sua governanta voltou para a sala.

?Minha mãe lhe dará uma desculpa para impedir que desça. Você insista que precisa me ver ?começou a dizer enquanto se levantava e saia do esconderijo. ?Quando eu aparecer confirme tudo o que digo ?acrescentou antes de desaparecer tão rapidamente quanto um fantasma deveria.

Valeria desviou o olhar do topo da escada e suspirou. Por que eles a castigaram? Que tipo de trapaça teria feito para enfurecer a sua mãe? E... como ela iria se intrometer na ordem de uma mãe? Não era sensato! O que aconteceria no futuro quando ela estivesse no lugar da Sra. Moore? Deixaria que uma de suas filhas se livrasse de um castigo quando aparecesse alguma amiga procurando-a? E por que Philip e Mary a colocaram em uma situação tão embaraçosa? Só esperava que, depois de tudo o que estava fazendo, seu irmão aceitasse a baronia ou... o mataria!

?Sra. Reform, se fizer a gentileza de me acompanhar, a Sra. Moore ficará encantada em recebê-la ?Shira a informou.

Sem apagar o sorriso gentil do rosto, Valeria se aproximou da porta, pensando em Mary, Philip, na baronia e os castigos de seus filhos. Ela balançou a cabeça levemente, afastando tudo o que sua mente lhe oferecia. Precisava se concentrar no motivo pelo qual tinha aparecido e, logicamente, não podia confessar a verdade. Outro ponto a discutir com Philip, por que... como poderia pedir aos filhos para não mentirem quando ela foi a primeira a fazê-lo? Irritada, tendo que pular todos os princípios morais que ensinou aos pequenos, ficou em frente à entrada e observou a Sra. Moore. Ela permanecia no centro da sala, usando um lindo vestido esmeralda. Seus cabelos, recolhido em um coque esticado, e aqueles olhos claros a perseguindo sem piscar, indicavam que sua presença não era muito desejada.

?Obrigado por me receber, Sra. Moore ?comentou Valeria apertando as mãos entre as suas.

?Obrigado por ter vindo, Sra. Reform ?disse educadamente. Uma vez que se separaram, Sophia apontou para um assento. ?Shira me disse que quer conversar com Mary, mas ela ainda não desceu para o café da manhã. Imagino que esteve a noite toda lendo algum livro sobre medicina ?tagarelou, enquanto a convidada se sentava. ?Se desejar, enquanto a esperamos, podemos tomar um chá.

?Se não for muito incomodo ?considerou ela. Embora soubesse que não chegaria a tomá-lo. A ansiedade que Mary mostrou indicou-lhe que tinha tramado algo em que não incluía uma conversa amável com sua mãe e um chá.

?Nenhum ?Sophia disse sentando-se ao lado de Valeria. ?Shira, por favor, chame...

E então, como se tivesse surgido uma repentina nevasca, Shira se afastou com rapidez da porta, deixando passagem a uma jovem que corria como um galgo.

?Valeria! ?Mary exclamou, entrando na sala com uma urgência incomum. ?Que alegria vê-la novamente!

De onde veio esse rosnado? A família Moore tinha um cachorro escondido na sala? Porque esse barulho costumava ser emitido por Ricardo, o animal de estimação da família, quando Fiona puxava suas longas orelhas e Charles queria usá-lo de cavalo.

?Bom dia, Mary ?ela disse se levantando rapidamente. Como fez com a Sra. Moore, apertou suas mãos com as de sua amiga e aceitou com prazer os dois beijos que a jovem lhe ofereceu nas bochechas. ?Aqui estou ?acrescentou olhando para ela com os olhos bem abertos, esperando descobrir o que havia tramado.

?Bem, você veio no melhor momento ?Comentou com um leve sorriso. Então observou sua mãe, que franzia o cenho e olhava para ela com advertência, mas não se assustou. Ela preferia ouvir milhares de palavrões e ordens há suportar outro dia em seu quarto... costurando? Nem morta! ?Bom dia, mãe ?disse suavemente. Se aproximou dela e lhe deu dois beijos mantendo uma distância segura. Não colocaria a mão em seu braço se arriscando a ser beliscada até que o sangue corresse por aquela área de sua pele.

?Mary... ?Sophia respondeu com aparente tranquilidade. ?Estava oferecendo um chá à nossa convidada. Como ainda não desceu para o café da manhã, pensei que ainda estava dormindo.

?Que nada! Hoje eu acordei muito cedo. Mas nossa querida Shira me serviu café no quarto quando eu a informei que estava acordada ?declarou com certo sufoco, como se realmente sentisse vergonha da insinuação de sua mãe de tratá-la como preguiçosa.

?Já vejo... ?Sophia apontou para o vestido e o penteado de Mary. Ela não tinha passado os dias em uma camisola e despenteada? Que coincidência oportuna! A Sra. Reform apareceu e usava um vestido para passear...

?Ela realmente lhe ofereceu um chá? ?Perguntou, levando a mão na boca, como se a palavra chá fosse horrenda. Então ela olhou para Valeria, que parecia, além de perplexa, indisposta, já que as bochechas dela estavam pálidas. ?Não lhe disse que pode pôr em perigo a sua saúde se beber infusões?

?Em perigo? ?As duas perguntaram ao mesmo tempo.

?Sim. Outro dia me confessou que não tolera bem as infusões, que lhe produzem flatulências severas ?manifestou adotando a atitude própria de um médico.

?Não queria demonstrar desconsideração pela oferta...

E Valeria voltou a recordar seus filhos, a regra de não mentir e a maldita baronia de Philip, acrescentando a esses pensamentos a inoportuna indisposição de... flatulências? Não poderia explicar algo menos embaraçoso?

?Também temos café ?lhe ofereceu Sophia que, ao ver a cara de espanto da Sra. Reform, não pôde concretizar se era devido ao perigo que esteve a ponto de sofrer ou pela invenção de sua filha. Que ficaria de castigo mais duas semanas se a enganasse.

?Mas... não veio me levar para passear? ?Perguntou com um pequeno soluço. Diante do barulho que ofereceu, sua mãe virou-se para ela para lhe falar: ?Na outra noite, depois da minha horrível decisão de falar com lorde Giesler ?declarou com fingido pesar ?Valeria insistiu em me levar até o Gunter’s e tomar um sorvete de... amoras?

?De limão ?Valeria a corrigiu rapidamente.

Bem, a acidez do sorvete poderia se parecer com o que o estômago estava emitindo naquele momento. O que diabos estava fazendo? Por que agia dessa maneira? Ela teria enlouquecido durante o confinamento?

?De limão ?Mary repetiu esboçando um grande sorriso. ?Imagino que não tenha vindo antes por causa da maldita chuva, estou certa? ?Ela perguntou olhando para sua salvadora com olhos suplicantes.

?Se parece bom para você ?começou a dizer à Sra. Moore, que abria a boca e a fechava como se fosse um peixe fora da água ?adoraria cumprir a promessa ?acrescentou, colocando as mãos atrás das costas para poder cruzar os dedos. Ela pagaria por isso! Deus sabia que Mary pagaria a mentira, o constrangimento e a horrível tristeza que ela estava sofrendo! E, infelizmente para a jovem, ela sabia muito bem como pagaria sua dívida. Ah, se pagaria! ?Além disso, também preparei um pequeno almoço em minha casa. Se bem me lembro ?expôs, pegando uma das mãos de Mary em uma atitude carinhosa e afetuosa ?também me prometeu que visitaria minha casa e faria um exame médico completo em meus seis filhos.

?Seis? ?Mary estalou abrindo tanto seus olhos que eles podiam saltar das órbitas.

?Sim ?afirmou a mãe orgulhosa. ?Candie, Charles, Eleonora, Samantha, Fiona e o pequeno Trevor. Todos, para meu pesar, se contagiaram com um resfriado terrível e desejo que sua filha me garanta que não fiquem com sequelas ?acrescentou, esboçando um sorriso de orelha a orelha.

?Então... quer que leve minha maleta? ?Perguntou perplexa.

?Sim, acho que é o mais conveniente... ?Valeria sugeriu.

Agora sim que estava em apuros. Todo o seu plano tinha sido desperdiçado! Filhos? Seis? E teria que verificá-los um a um? Não lhe disse que eram uns trastes, que se pareciam com o pai? Como lidaria com uma tarde cercada por demônios? Só queria comprar suas revistas e tomar um pouco de ar fresco!

Sophia, que até agora permaneceu calada e duvidando da credibilidade das duas, finalmente deu um grande sorriso. O brilho que ela mostrava em seus olhos expressava tanta diversão, que Mary queria sentar no chão e começar a chorar. Seria um bom castigo, o fato de ter que atender seis filhos, e tinha merecido, por usar a pobre mulher como tábua de salvação. No entanto, não podia dar o braço a torcer tão facilmente. Devia mostrar um pouco de... perseverança?

?Se lhe prometeu que visitaria essas crianças, me parece bom manter sua palavra. Mas tenho que lembrá-la o estado em que está. Se voltar com as mãos cheias de livros, também cumprirei a minha ?afirmou, com aquele tom firme que fez os cabelos de sua filha se arrepiarem. ?Sra. Reform, confio no seu bom senso, como mãe, entenderá que uma filha deve obedecer sem reclamar; depois do sofrimento que padecemos no parto, das noites sem dormir, todas as preocupações que nossas mentes nos oferecem para canalizá-las de um jeito bom, uma filha amada e respeitada deve ser fiel aos padrões da família.

?Claro, Sra. Moore. Entendo. Como lhe disse na noite passada, dedico todo o meu bom trabalho para que meus filhos, tão insuportáveis quanto o pai, cumpram com suas obrigações e ordens.

?Sendo assim... ?olhou para Mary de cima a baixo. Ela ainda não explicou como se vestira tão rápido. Não podia alegar uma desculpa para mandá-la para seu quarto, nem atrasar a saída. Tinha que admitir que era muito esperta. Sua segunda filha, para seu arrependimento, herdara a inteligência de seu marido e a astúcia característica de sua família. Gritava alto e se orgulhava de que nem uma gota do sangue Arany corria em suas veias? Ahh! Mary estava muito errada! Faltava apenas uma coisa para sua transformação em cigana ser completa... Uma que, se não estava errada, era a razão pela qual estava de castigo. ?Comporte-se, Mary. E não faça a Sra. Reform se arrepender de ter liberado você de seu castigo ?finalmente expos.

?Obrigada mãe! ?Exclamou se lançando para ela para lhe dar um forte abraço. ?Garanto-lhe que me comportarei adequadamente!

?Não faça promessas que não pode cumprir ?Sophia a repreendeu, tocando lentamente suas costas.

?Vou cumpri-las ?garantiu com firmeza. ?Vou cumpri-las todas ?confirmou.

?Sendo sim, você pode sair. Certamente os pequeninos estarão ansiosos para ver sua mãe novamente ?Sophia disse estendendo as mãos para Valeria.

?Prometo que sua filha terá o remédio que merece ?lhe sussurrou quando lhe deu dois beijos na bochecha.

?Confio nisso ?a Sra. Moore respondeu da mesma maneira.

?Vamos? ?Interrompeu Mary ansiosamente.

?Sim ?Valeria respondeu caminhando em sua direção.

Depois que Shira lhes ofereceu o casaco e a maleta, que sua mãe guardara em algum lugar da casa, as duas desceram as escadas com os braços entrelaçados, mostrando a imagem de amigas que se conheciam desde a infância. Mary, ao sair de casa, fechou os olhos e deixou o sol tocar suas bochechas. Havia ansiado tanto por essa sensação de bem-estar! Mas finalmente conseguia respirar ar puro, desfrutar de um dia tranquilo e... comprar suas revistas!

?Bem ?Valeria começou a dizer quando as duas se acomodaram na carruagem ?pode me dizer por que te castigou?

?Por uma bobagem... ?Mary expressou enquanto dava um pequeno pontapé na maleta.

?Qual? ?Insistiu a Sra. Reform, a quem não passou despercebido o estupor de sua nova melhor amiga.

?Não lhe pareceu correto que operasse o seu irmão nu... ?declarou, encolhendo os ombros, como se ela não tivesse sido prejudicada por tê-lo visto daquela forma.

?E como pretendia que fizesse isso? ?Soltou Valeria com uma mistura de confusão e surpresa.

?Bem, segundo ela, vestido ou com os olhos vendados. ?Depois de suas palavras, soltou uma grande risada. Quando se acalmou, observou de relance Valeria e advertiu que seu rosto não mostrava a mesma diversão que ela. Moveu-se desconfortável no assento, apaziguou o riso e acrescentou: ?realmente quer que eu veja seus filhos?

?Deseja comprar as revistas que comentou? ?Respondeu, olhando para ela sem piscar.

?Claro! ?Exclamou rapidamente. ?Preciso delas urgentemente!

?Pois as terá. Mas antes faremos uma parada.

Encostou a cabeça na almofada, colocou as mãos nas têmporas e as apertou. Que Deus tivesse misericórdia, que ajudasse seus filhos e não os castigasse pelo que ela faria. Mas, depois de tudo o que havia sofrido, teria que fazê-lo ou sofreria a síncope que pobre Sra. Moore aguentou ao descobrir que sua filha tinha visto o corpo nu do seu irmão.

?Que parada? Para onde vamos? Por que esfrega a cabeça? Dói? Sofre com assiduidade de enxaquecas?

?Em primeiro lugar, não sofro de enxaqueca, mas em breve sofrerei... ?comentou, com um halo de mistério.

?Por quê? ?Mary estalou confusa.

?Porque vou ouvir você gritar ?disse fechando os olhos e se preparando para o pior.

?Por quê? ?Repetiu a moça.

?Porque primeiro vamos visitar meu irmão...

Nesse momento, Mary começou a soltar mil palavrões, a amaldiçoar o destino e a caluniar sua má sorte, fazendo Valeria temer a enxaqueca.


Capítulo VIII


Amiga?! Ninguém podia considerar amiga uma pessoa que lhe estende uma armadilha! Porque, definitivamente, foi isso o que a Sra. Reform fez.

Depois de gritar tudo o que lhe passou pela cabeça, Mary cruzou os braços sobre o peito e rosnou. Desde que Valeria deixou claro qual era seu objetivo, toda a felicidade que ela sentiu quando foi libertada da prisão de sua casa, desapareceu. Não havia mais sorrisos em seu rosto, depois de gritar, seus lábios permaneceram fechados, manteve o olhar para fora, bufou sessenta vezes e amaldiçoou lorde Giesler por mais sessenta.

Lorde Giesler! Esse nome denotava perigo para ela. Por sua culpa, ela foi punida e, por sua culpa, teria que atender seis filhos antes de poder comprar seus preciosos folhetos científicos. Sem contar com o fato de que o veria novamente. Havia punição maior no mundo? Certamente, sua mãe, quando descobrisse que havia aparecido na residência do homem proibido, procuraria uma maneira de superá-lo... E, tudo por quê? Porque imaginou que sua suposta amiga a ajudaria a sair do seu cativeiro e a faria passar um dia esplêndido. Mas é claro, tudo tinha sido distorcido, nada sairia como ela planejou.

?Mary... ?Valeria disse a ela quando a carruagem entrou no jardim de Kleyton House ?Prometo que comprará esses artigos e que não terá que suportar meus filhos.

?Promessas... promessas... ?Mary resmungou.

?Isso aconteceu por sua culpa ?ela a repreendeu, encarando-a. ?Só queria falar com você e descobrir por que não saiu de casa. Mas o meu plano foi frustrado ao me pedir que te ajudasse a se liberar do castigo ?garantiu, com o tom de voz que sua mãe usava quando a repreendia por uma atitude ruim. ?Te prometi que compraria essas revistas; e mais, eu mesma te darei pelo inconveniente que isso possa causar. No entanto, acho justo te pedir, depois de me colocar em uma situação tão comprometedora, que confirme o estado de saúde do meu irmão.

?Meu pai a visita todos os dias e ouvi-o dizer a minha mãe que sua evolução é adequada ?murmurou. Com os braços ainda cruzados sobre o peito, virou suavemente a cabeça na direção dela e a olhou como se estivesse procurando a melhor maneira de jogá-la para fora da carruagem sem ter que abrir a porta.

?E... não sente curiosidade e ter certeza com seus próprios olhos? ?continuou Valeria.

Curiosidade? O que sentia naquele momento era o desejo de subir as escadas e enredar as mãos no pescoço de lorde Giesler para sufocá-lo. Mas não era o momento nem o lugar para proclamar seu desejo em voz alta. A melhor coisa, para salvar pelo menos uma parte do dia, era fingir estar preocupada, vê-lo, sorrir para ele e, depois de confirmar que ainda era um arrogante, petulante e estúpido, retornar à carruagem para visitar a livraria do Sr. Slow antes de fechar.

?A verdade é que sim. Tem razão, Valeria. Estou muito intrigada em saber como o seu estado de saúde evoluiu e se cumpriu tudo aquilo que ordenei. ?Depois disso, sorriu.

A Sra. Reform bufou, como uma de suas meninas, entendendo que ouviriam uma repreensão bastante enfadonha. Realmente pensava que suas palavras pareciam convincentes? Só lhe faltava alongar os lábios um pouco mais, para mostrar a imagem de uma mulher digna de ser trancada no hospital psiquiátrico de Bethlem.

A dúvida sobre o plano que havia idealizado a invadiu. Mary ainda não apreciava seu irmão. Mostrou na primeira noite e continuava expressando naquele momento. Realmente não sentia nada por ele? Nem mesmo alguma admiração? Qualquer mulher, além dela, é claro, levaria mil anos para esquecer um corpo tão bonito quanto o de Philip, e procuraria maneiras de fazê-lo entender que lhe devia um grande favor. Muitas delas até tentariam se tornar suas prometidas, amantes ou... o que fosse! No entanto, Mary era imune à virilidade de seu irmão. Só faltava ela bocejar para acentuar essa indiferença. Se Philip imaginava que ela poderia se apaixonar, estava muito errado. Antes colocaria em sua cama uma égua do que a filha do médico.

Elas continuaram em silêncio até a carruagem parar bem perto da entrada principal da residência. Em homenagem a essa discrição mantida pelos funcionários de seu irmão, o cocheiro abriu a porta depois de se certificar de que não havia ninguém por perto. Em primeiro lugar, e isso deixou Valeria confusa, o funcionário ofereceu a mão para Mary. Embora, pela cara que fez, ela estava tão atordoada quanto sua acompanhante.

?Senhorita Moore ?lhe disse o lacaio quando ela aceitou sua ajuda para descer ?tenha cuidado com este último degrau. Não gostaria que sofresse um acidente.

Os olhos de Mary se arregalaram. Não sabia muito bem como tomar aquela atitude considerada. Estaria tirando sarro dela? Queria lhe dizer algo inapropriado, para que o rosto amável exibido pelo cocheiro desaparecesse, mas não ousou dizer nada. Pela primeira vez em sua vida, identificou, com surpresa, que não havia mordacidade, mas ternura e carinho. A única coisa que ela não conseguia descobrir era a razão dessa estranha cordialidade.

?Senhora Reform.

Quando Mary pousou os dois pés no chão e o homem confirmou que ela não sofreria nenhum tropeço, ele estendeu a mão para Valeria e a ajudou a descer.

As duas mulheres subiram lentamente as escadas que levavam à entrada. Surpreendidas e mudas, pois não sabiam o que dizer. Philip teria imaginado que a levaria e ordenou que os servos a tratassem com toda a gentileza que pudessem demonstrar? Não. Ele não sabia nada sobre seu plano. Isso aconteceu quando ela pediu para sair de casa para passear. Então, o que estava acontecendo?

Com milhares de ideias brotando em sua cabeça, Valeria se adiantou a Mary para bater na porta, mas ela não precisou. Quando as pontas dos dedos tocaram a aldrava, esta se abriu.

?Senhorita Moore! ?Shals exclamou ao encontrá-la. ?Que alegria vê-la novamente!

Os olhos de Mary caíram sobre a senhora Reform e então, muito lentamente, ela os dirigiu para o mordomo.

?Estavam me esperando? ?Ela perguntou com uma mistura de espanto e estupor.

?Oh, não! ?Shals respondeu se afastando o suficiente para deixá-las passar. ?O senhor não nos avisou de sua chegada, mas todos nos perguntávamos quando apareceria ?acrescentou, estendendo as mãos para ajudá-la a tirar o casaco.

?Todos? ?Continuou falando perplexa.

?Sim ?ele respondeu. Depois de pegar seu casaco e o de Valeria, para quem ele mal olhou. Shals fez um leve gesto com o queixo no lado esquerdo do primeiro andar. ?Todos ?repetiu.

Isso era uma comitiva de boas-vindas? Por que diabos todo o serviço de lorde Giesler a esperava? Eles queriam linchá-la, como fariam os aldeões ao declarar uma mulher inocente uma bruxa? Com medo, ela deu alguns passos para trás, tentando tocar na porta de entrada com as costas. Mas encontrou a Sra. Reform, que havia parado de respirar.

?O que é tudo isso, Shals? ?Valeria finalmente falou.

?Senhora... ?comentou o homem um pouco envergonhado. ?Peço-lhe mil desculpas se fizemos algo errado. Mas quando a donzela Phiona viu a Srta. Moore sair da carruagem com a maleta, a notícia se espalhou e, bem, estávamos esperando por ela por que... muitos deles precisam... desejam que...

Mary entendeu imediatamente. O que o pobre mordomo estava tentando dizer à fez se sentir tão orgulhosa e feliz que esqueceu a raiva. Eles estavam esperando por ela! Queria que ela os atendesse! Shals não disse a seu pai que nenhum dos criados pediria ajuda a outro médico além de sua filha? Bem, ele não mentiu. Aquelas pessoas fizeram isso. Eles não se importavam que ela fosse uma mulher, que ela não tinha uma licença ou que ela os obrigou a lavar as mãos mil vezes. Eles haviam determinado que somente ela era a pessoa que poderia atendê-los e lá estavam eles, em perfeita ordem de espera, aguardando sua decisão. O prazer, o bem-estar e a emoção que ela sentiu, embaçaram os olhos. Não pensaria em chorar, certo? Ela nunca chorava! Afogando aquele soluço, fazendo desaparecer o nó na garganta que a impedia de respirar, agarrou a maleta com mais força, olhou para Valeria e disse:

?Lorde Giesler pode esperar.

?Obrigado! Obrigada! ?Ouviu os servos dizerem.

?Claro ?Valeria respondeu, suportando aquele grito de felicidade que ela queria liberar. ?Se não se importa, enquanto os atende, subirei até...

Não terminou a frase, Mary não se importava com o que ela ia dizer. Antes de esclarecer qual era sua intenção, a mulher se voltou para os funcionários e começou a perguntar o que estava acontecendo com eles. O Sr. Shals olhou para Valeria e lhe sorriu.

?Se desejar, posso informá-lo que a Srta. Moore acaba de chegar.

?Quer que saia da cama e desça as escadas três em três? ?Perguntou Valeria zombando.

?Tem razão, senhora. É melhor que não descubra o que está acontecendo aqui até que a Srta. Moore termine os exames médicos ?respondeu sem apagar o sorriso.

?Vou fazer café. Acredito que Mary precisará depois dessa incrível recepção ?apontou enquanto se dirigia para a cozinha.

?Deixe-me ajudá-la, porque, como pode ver, a cozinheira é a primeira da fila ?apontou Shals andando atrás dela.

E Valeria soltou uma risada alta.


***

Não aguentaria nem mais um dia trancado naquele quarto. Seu desespero aumentava a cada minuto. A isso, acrescentou a angústia de não saber nada sobre Mary. Por que não havia saído de sua casa por tanto tempo? O que a segurava? A ideia de que ela estivesse doente permanecia latente em sua cabeça, assim como seu desconforto por não poder se levantar, se arrumar e aparecer na residência dos Moore para descobrir pessoalmente o que havia acontecido com ela. Olhou novamente para o relógio de bolso, que Shals lhe enviou, e bufou. Aquilo só lhe informava que o tempo não corria tão depressa como desejava. As horas pareciam dias e dias... anos. Sentou-se muito lentamente no colchão e procurou o livro que Martin lhe deu quando o visitou dois dias depois de Mary operá-lo. Como havia pensado que a teoria sobre a lei de gravitação universal, de um tal de Isaac Newton, poderia aliviar seu desespero? Realmente imaginou que ele passaria horas procurando o motivo pelo qual dois corpos se atraem? Não era necessário ler esse livro para saber a resposta! Ele havia sido atraído tantas vezes que podia refutar qualquer teoria absurda! Os homens atraíam mulheres, estas buscavam a excitação deles e, finalmente, essa proporcionalidade ao produto das suas massas terminava em um encontro íntimo.

?É um belo princípio matemático ?lhe disse quando ele arregalou os olhos ao descobrir o que significava para seu irmão o melhor presente do mundo. ?Você será cativado pela simplicidade da fórmula gravitacional. É, sem dúvida, a mais bela simplicidade que você pode encontrar na vida. ?E depois disso, ele sorriu de orelha a orelha.

?Você já dormiu com uma mulher, Martin? Ou você prefere ir para a cama com... isto? ?Perguntou bruscamente, apontando um dedo para a capa do livro que jogara na colcha como se estivesse queimando.

?Por que essa pergunta, Philip? ?Retrucou, eliminando o sorriso imediatamente.

?Porque não entendo como pode comparar fórmulas matemáticas com a beleza e as maravilhas da natureza. Para mim, isso não se encaixa nessas descrições. Você já dormiu com uma mulher ou ainda é virgem? ?Continuou.

?Claro que não sou! ?Exclamou envergonhado. ?Tenho minhas fraquezas...

?Carnal ou intelectual? Porque não tenho certeza de que você entende a diferença entre um bom par de seios femininos e duas maneiras de calcular o mesmo resultado ?garantiu, cruzando os braços e franzindo a testa.

?Como se atreve a falar comigo dessa maneira? Não sente remorso nem respeito por uma mulher?

?Sim, respeito todas elas. Pode perguntar as minhas amantes se elas foram respeitadas antes de deixá-las exaustas em suas camas. Mas não desvie o assunto, Martin. Você parou de ser...?

?Não vou te responder. Primeiro de tudo, sou um cavalheiro ?ele respondeu com raiva. ?Se estive com uma mulher ou com várias, isso só importa para mim.

?Ou seja, você evita falar sobre isso porque ainda não sabe o que significa prazer carnal ?afirmou enquanto olhava para ele.

?Valeria me avisou que seu humor havia piorado ?comentou indo em direção à porta?, mas nunca imaginei que você atingiria um nível tão alto de imbecilidade.

?Não é imbecilidade, mas aborrecimento ?indicou, sem poder apagar um sorriso malicioso de seu rosto.

?Nesse caso, espero que deixe de se aborrecer em breve ?declarou antes de bater a porta.

E desde aquele dia, não falou com Martin novamente. Shals informou que ele apareceu na residência para perguntar sobre sua saúde, mas, depois do que aconteceu entre eles, não teve coragem de comparecer diante dele.

Abriu o livro na página em que havia deixado na noite anterior, bufou com o aborrecimento que lhe causava e tentou se concentrar na maldita fórmula da força exercida entre dois corpos. Naquele momento, sua mente se afastou da constante gravitação universal, do valor dessa constante e da massa dos sujeitos, para se concentrar em Mary. Sim, de fato, ela foi o resultado de toda a maldita formulação que o livro comentava. Ela exercia uma força de atração até ele que o deslocava, entorpecia e o deixava vulnerável. Desde que ela jogou aqueles tubos, que para assimilá-lo com a teoria eram as massas de atração, ele não conseguiu pensar em outra coisa senão procurar o contato entre os dois. Eles tiveram, é verdade, mas em primeiro lugar ele estava inconsciente e não se lembrava de nada, e em segundo lugar o beijo não foi suficiente para obter um bom resultado. Que poder suas carícias teria em relação a ele? O que sentiria ao ver como as pontas dos seus dedos acariciavam sua pele? Se excitaria ou se incomodaria? Mary seria uma mulher apaixonada ou mostraria a mesma frieza que exibia ao mundo ao seu redor? Teria observando-o com admiração ou calculou apenas a dose apropriada de sedativo para o seu corpo grande? Philip fechou os olhos e recostou-se nos três travesseiros atrás das costas. A imagem dela apareceu sem fazer esforço. Ele a viu rindo do comentário que fez ao pai quando perguntou sobre a quantidade de clorofórmio que havia lhe dado. Um cavalo? Maldita mulher que o comparou a um cavalo! Não havia comparações mais bonitas? Teria sido suficiente com o fato de que ela evocava sua grande magnitude, que sugeria sua forte musculatura, mas não. Mary não conseguia encontrar um símile que o deixasse orgulhoso. Ele teve que se parecer com um animal de quatro patas. Agradecia a Deus por não tê-lo chamado de porco ou bezerro, mesmo assim, ainda estava descontente. Talvez o poder de sedução que ele dava a outras mulheres fosse imune a ela. Talvez ele não tenha percebido por que... Não! Ele se recusava a pensar sobre isso. Não havia nenhum homem para Mary além dele e isso a deixaria saber assim que ele pudesse deixar sua casa. Toda vez que ela saísse de casa, ele a esperaria na porta. Sempre que ela decidisse aparecer nas reuniões que os médicos realizavam as sextas-feiras, ele ficaria sentado ao lado dela, ouvindo-a atentamente e, é claro, a encontraria em todas as festas que ela decidisse comparecer. Ele pediria que ela dançasse uma, ou duas danças, ou talvez tudo o que ela pudesse suportar. Só para deixar bem claro, aos cavalheiros que a olhassem, que não teriam chance com ela. Quando um Giesler encontrava a mulher de sua vida... ninguém ficava no seu caminho!

Esse pensamento só lhe causou mais inquietação e estresse. O lençol o prendia, a suavidade do colchão o incomodava. Até parecia que os travesseiros macios tinham espinhos! Aturdido e nervoso, ele estendeu a mão esquerda para a mesinha e pegou a sineta que Shals colocou ali na mesma noite em que Mary saiu. Ele franziu a testa, apertou a mandíbula e amaldiçoou sua vida. Tudo começava a girar em torno dela. Até o motivo de tocar uma miserável sineta! Não havia dúvida, ele tinha que sair de lá e aparecer na casa dos Moore para vê-la ou ele ficaria louco.

?Maldito seja, Shals! ?Explodiu quando, depois de tocar a sineta mais de vinte vezes, seu mordomo não apareceu. ?Pode-se saber por que ninguém me responde? Ficaram surdos? ?Continuou gritando. Com raiva, afastou o lençol do corpo. Pelo menos eles tiveram a decência de ajudá-lo a vestir calções. Não seria apropriado aparecer no topo da escada nu e gritando alto que todos estavam demitidos. Sem dúvida, Valeria o levaria para fora de seu quarto, sim, mas para levá-lo diretamente a Bethlem.

?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa ?Mary o ameaçou quando, ao abriu a porta, o encontrou em pé ao lado da cama.


CONTINUA

Londres, 28 de outubro de 1882, residência Moore.
Sophia observou pela janela como a carruagem em que estava seu marido se afastava de casa. Deveria estar acostumada que Randall saísse na metade da noite, mas naquele momento teria dado tudo o que tinha para que não saísse do seu lado. Se abraçou e tentou acalmar o calafrio que surgiu ao se sentir tão sozinha. A casa ficou em silêncio, demais para o seu gosto. Desde que suas filhas nasceram, sempre havia ruído pela casa, correndo pelos corredores. No entanto, desde que três delas saíram, aquilo não parecia uma casa, mas uma das bibliotecas que Mary costumava visitar. Fixou seus olhos na lareira, já apagada, e suspirou fundo. Como se encontravam suas meninas? O visconde iria atendê-las com o respeito que mereciam? Esperava que assim fosse e que as três se comportassem adequadamente. O único que não suportaria seria que, depois da saudade que sofria por não poder estar com elas, voltariam com uma infinidade de escândalos em suas costas. Desviou o olhar para as cadeiras que haviam ao redor da mesa da sala de jantar e notou como sua dor aumentava ao observá-las vazias. Em noites como aquela, Anne e Josephine deixavam seus quartos e desciam para acompanhá-la. Costumavam conversar sobre qualquer assunto até o amanhecer e quando o resto de suas filhas aparecia, tomavam o desjejum conversando sobre o que haviam planejado fazer o resto do dia.
Apoiou as costas na janela e suspirou. Sentia falta dos gritos que oferecia a Josephine por ter perfurado outra janela ou por terminar com a valiosa porcelana de Randall. Sentia falta de pedir a Elizabeth que deveria mudar seu comportamento inadequado e sentia falta de aparecer na sala de pintura de Anne para admirar seu novo trabalho. Quantas vezes suplicou que dessem a ela algumas horas de tranquilidade? Muitas! No entanto, agora não queria, pois as usava para pensar em como se encontravam. A pequena soldado se adaptaria a uma vida repleta de protocolos femininos ou talvez o visconde permitisse continuar com seus habituais comportamentos masculinos? Seguiria as instruções Randall? Porque se fosse assim, tinha receio que dormiria e se banharia com a nova arma que lhe comprou. Só esperava que o visconde se mantivesse afastado de Anne para que não desse a Josephine a oportunidade de cumprir as ordens que seu pai lhe dera. E Elizabeth? Agiria de maneira adequada ou continuaria mostrando atrevimento? E Anne? Continuaria sonhando com ele? Se apaixonaria por esse homem?
Eram só perguntas e para seu desespero não encontrava uma única resposta. Somente as encontraria quando voltassem e para que isso acontecesse faltava pouco mais de três semanas.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_DESEJO_DE_MARY.jpg

 

Uma pontada no estômago a fez apertar as mãos sobre aquela região do corpo. Continuava sem ter certeza de ter agido corretamente. Talvez devesse encontrar uma forma de romper o acordo com o visconde e não desistir tão rapidamente. Mas... que fez? Nada, porque os sonhos de Anne avisavam que não podia impedir aquilo que já estava previsto. No entanto, a dúvida sobre a escolha feita pelo fogo a assaltava a cada momento. Como poderia ser o visconde o homem destinado para Anne? Qual seria o motivo pelo qual Morgana mostrava a Anne que ele era o escolhido? A maldição de Jovenka era muito clara: o sangue contaminado voltaria a ser puro. Que tipo de pureza se referia? Teria entendido errado o juramento? Não, não tinha feito desde que os dois pretendentes de sua filha morreram, tal como sua avó anunciou. Então... porque o visconde, um homem de sangue azul, destruiria a maldição que sua filha suportava desde que nasceu? O que os Bennett escondiam? O que lhes aconteceu? Naquele momento lembrou uma notícia em que afirmavam que os marqueses, dezessete anos depois, reconheciam um jovem como filho legitimo. Segundo o jornal, foi roubado logo após o nascimento e não denunciaram o desaparecimento para não criar um escândalo social. Como poderiam manter em segredo semelhante atrocidade? A aristocracia era tão frívola? Como a marquesa foi capaz de suportar uma dor tão cruel? Sophia franziu a testa e suspirou profundamente. Nenhuma mãe aceitaria uma situação semelhante a menos que não fosse filho dela. Talvez essa fosse a verdadeira razão e não o sequestro. Era mais lógico deduzir que o falecido marquês de Riderland, com uma reconhecida reputação de libertino, mantivesse um idílio com uma mulher, talvez uma cigana, e o visconde era fruto desse romance. Quando a mulher anunciara ao seu amante que teve um filho dele, ele seria rejeitado pelo pai, como todos os bastardos que sua avó Jovenka teve, e o menino vivera com a mãe durante aqueles dezessete anos. O que os fez mudar de ideia? O acidente que sofreu a esposa do seu único filho vivo os incentivou a finalmente reconhecê-lo? Isso seria uma dedução bastante comum entre a aristocracia, pois eram incapazes de se separar do título de nobreza que haviam mantido por gerações. Talvez fosse essa a razão pela qual o falecido marques decidiu assumir a paternidade. Embora ainda houvesse uma questão não resolvida... por que a marquesa, que todo mundo descrevia como uma mulher frívola, aceitou a decisão de seu marido? Se sentira obrigada? Queria evitar uma humilhação social dessa maneira? O que quer que aconteça com a família Bennett, não importava mais, o único de deveria se preocupar era o motivo pelo qual sua mãe criadora provocou uma aproximação entre o visconde e sua filha.

Decidiu voltar para o seu quarto. Ainda podia aproveitar algumas horas de sono antes que Madeleine e Mary decidissem se levantar. Além disso, naquela mesma manhã se propôs a visitar Vianey para falar pessoalmente sobre a viagem de suas filhas com o visconde. Se queria evitar qualquer rumor inadequado sobre sua família, a baronesa era a pessoa ideal. Ela compreenderia melhor que ninguém e ajudaria a proteger a honra de suas filhas porque, se começavam a fofocar sobre a honra de suas meninas, mesmo que o visconde quebrasse a maldição, nenhum homem decente apareceria em sua casa para se comprometer com alguma delas.

O pensamento de vê-las casadas a fez sorrir. Que marido seria apropriado para a destemida Josh? Quem poderia conviver com uma mulher como Mary? Algum cavalheiro seria capaz de eliminar o orgulho de Elizabeth? E o que aconteceria com Madeleine? De acordo com sua visão, ela também encontraria o homem que a amaria tanto que faria desaparecer sua timidez excessiva. Como conseguiria? Quem seria? E, realmente existiam esses valiosos maridos? Porque de uma coisa tinha certeza; suas filhas eram muito especiais e não aceitariam qualquer homem.

Colocou a mão esquerda sobre o corrimão de madeira, pisou no primeiro degrau e prendeu a respiração quando ouviu fortes batidas que vinham da porta da frente. No mesmo instante, voltou até a entrada e permaneceu em silêncio para se certificar que tinha ouvido bem. Estava certa. Alguém tinha aparecido em sua residência e batia na porta com a aldrava. Sophia se olhou de cima a baixo. Não se vestia apropriadamente para receber ninguém àquela hora da noite. Além disso, se a razão pela qual tinha vindo a sua casa era seu marido, não podia fazer nada, pois não voltaria até o dia seguinte. Embora a pessoa que se encontrava fora batesse novamente, tomou a decisão de ignorá-la. Se fosse muito urgente, poderia recorrer a residência do doutor Flatman. Olhou para as escadas e suspirou. Por mais que desejasse, um estranho pressentimento a impedia de avançar e insistia que devia aceitar a visita. Mas... por quê? Quem seria?

?Tem alguém aí? ?Uma voz feminina finalmente perguntou. ?Vejo luz através das janelas. Por favor, preciso de ajuda. Sou a Sra. Reform e estou procurando pelo doutor ?insistiu.

Sophia, ao ouvir a voz de uma mulher virou-se e caminhou para ficar atrás da porta, mas não a abriu até ter certeza de que não era uma farsa para entrar na casa e assaltá-la. Quantas vezes os de seu sangue agiam no meio da noite? Centenas! Eram como vermes. Esperavam pacientemente que a casa de algum Sr. rico permanecesse desprotegida para assaltá-la. Sua própria avó agia nesses roubos como uma reivindicação.

?O doutor não se encontra nesse momento, precisou sair ?Sophia respondeu com cautela.

?Sabe quando volta? Vim até aqui porque um dos meus irmãos precisa de atendimento médico e tenho entendido que o Sr. Moore é o melhor médico que temos em Londres ?Valeria insistiu olhando para a porta e sem dar um só passo para trás.

Não estava disposta a sair sem uma pessoa que pudesse ajudá-la. Philip jamais esteve tão doente, nem prostrado em sua cama por mais de um dia. Isso indicava que sua convalescença não tinha nada a ver com uma ingestão soberana de álcool. Pela primeira vez em sua vida, ele realmente adoecera.

?Amanhã. Talvez possa encontrá-lo ao meio-dia... ?respondeu, revendo mentalmente o tom de voz que a mulher usou para falar com ela. Parecia desesperada, agitada e sincera. Mas... isso seria suficiente para confiar nela?

?Eu imploro. Meu irmão está muito doente e não sei a quem recorrer ?insistiu a Sra. Reform. ?Pode perguntar a Sra. Moore se pode me atender?

?Sou a Sra. Moore ?revelou ?garanto-lhe que deixarei meu marido saber que veio. Se tiver a gentileza de me explicar quem é o doente e onde mora, prometo que irá o mais breve possível ?Sophia sugeriu.

?Sua casa é a Kleyton House localizada na Mount Row. Ele se chama Philip Giesler ?Valeria esclareceu depois de um longo suspiro.

Ao ouvir o nome, Sophia arregalou os olhos e prendeu a respiração novamente. Seria a mesma pessoa que acompanhou o visconde dias atrás? Aquele que foi agredido por suas filhas na entrada? Quantos Philips Giesler poderia residir em Londres? E por que, tendo tantos médicos na cidade, aquela mulher aparecia na frente de sua porta?

?Por que escolheu meu marido se há outros médicos na cidade que podem atendê-la? ?Perguntou, depois de supor que o próprio Giesler lhe dissera para vir e procurá-la como pagamento pelo sofrimento que sofrera devido ao mau comportamento de suas filhas.

?Pode abrir? Não quero gritar, por favor. Além disso, seus vizinhos podem espreitar nas janelas e supor que estamos discutindo ?Valeria explicou com um pouco de serenidade.

?Sra. Reform, não estou apresentável. Como compreenderá, não esperava visita e...

?Estou sozinha, Sra. Moore. Não há homem ao meu redor e o cocheiro ainda continua no seu lugar ?informou. ?Só quero que me ajude. Conhece todos os médicos da cidade e, se explicar os sintomas que meu irmão sofre, poderá me indicar que médico é o mais adequado para curá-lo o quanto antes ?insistiu?. Suplico, tenha compaixão. Prometo-lhe que se me ajudar estarei eternamente agradecida e...

Valeria ficou em silêncio ao ouvir como a Sra. Moore começou a mover o ferrolho. Talvez nem tudo estivesse perdido. Talvez houvesse uma chance de descobrir por que Philip, em seus delírios, nunca deixava de mencionar um nome feminino e o sobrenome do médico.

?Entre, conversaremos aqui dentro ?convidou Sophia, vendo que, na verdade, seu rosto mostrava a mesma angústia que sua voz expressava.

Valeria aceitou o convite e entrou na residência. Mas não se moveu da entrada, embora a esposa do médico, depois de fechar a porta, entendeu a mão até o corredor da esquerda. Estava com pressa para voltar. Se o doutor Moore não podia atendê-lo, precisava com urgência descobrir quem o faria e isso atrasaria muito a sua volta.

?Sra. Moore, por favor, quem acha que posso pedir ajuda?

?É assim tão grave? ?Sophia a olhou com relutância. Talvez tenha entendido mal quando ouviu o parentesco que a unia com lorde Giesler, pois os dois eram muito diferentes. Onde o cavalheiro usava uma cabeleira tão loura como os raios do sol, o da mulher era tão escuro quanto os dela. Sem contar a tonalidade de seus olhos. Não havia nada que pudesse se assemelhar a ele. Estaria enganando-a? Seria na realidade sua amante desesperada?

?Sim ?Valeria respondeu apertando as mãos com força. ?Está há vários dias na cama. No começo pensei que sua última saída terminou pior do que esperava. Se é que me entende... Um homem solteiro, sem responsabilidades familiares e amantes da liberdade... Mas depois que apareci em sua casa, depois de ser informada pelos criados, para repreendê-lo, como uma irmã preocupada faria, descobri que não se tratava de uma embriagues soberana. Ele estava realmente doente.

?Como já lhe disse, meu marido não estará de volta até o meio-dia. O único que posso aconselhar é que vá à casa do Sr. Flatman. Certamente que o encontrará em sua casa, pois nunca comparece a uma emergência, a menos que seja exigido pela nobreza. ?Sophia apontou como alternativa.

?Mas o meu irmão não quer. Ele disse o seu nome ?revelou a Sra. Reform.

?Meu nome? ?Ela estranhou.

?Não, o de seu marido. Quando a febre aumenta muito e provoca delírios, murmura o sobrenome do seu marido. Por isso estou aqui. Acredito que ele deseja que o seu marido o visite.

Não podia contar a verdade porque parecia estranho até para ela. Quando Philip delirava, as únicas palavras que saíam de sua boca eram Mary e o sobrenome Moore. Como era lógico, perguntou sobre isso. Finalmente, depois de varias horas perguntando a conhecidos, descobriu que se tratava do sobrenome de um médico de Londres que morava fora da cidade, que era pai de cinco meninas e que uma delas se chamava Mary. Então deduziu que em sua inconsciência tinha se confundido, portanto tinha que ter mencionado o nome de Randall Moore em vez de se referir a uma de suas filhas.

Sophia confirmou sua suspeita ao ouvir a declaração. Já não tinha dúvidas que lorde Giesler queria que seu marido pagasse o trágico encontro que teve na manhã em que apareceu com o visconde. Talvez pensasse que, depois de ser atendido por ele, ouviria o que aconteceu e manteria em segredo o comportamento inapropriado de suas filhas, mas... o que poderia fazer se Ronald não estava?

?Prometo que meu marido irá à casa do seu irmão assim que voltar. Enquanto isso, para baixar a febre, aconselho que coloque panos mergulhados na água fria. Isso o acalmará...

Sophia ficou em silêncio quando ouviu um pequeno ruído no alto da escada. Olhou para cima e quando viu a camisola de Mary se escondendo atrás da parede, franziu a testa. Por que tinha levantado? Continuaria lendo apesar do castigo que lhe impôs? Será que nunca atendia suas ordens? Como podia fazê-la ouvir a razão? Que tipo de reprimenda seria adequado para uma menina como ela? Havia algo no mundo que a mortificaria tanto que a fizesse ver a razão? Que vingança seria apropriada? De repente, um sorriso maligno se desenhou em sua boca. Era uma ideia excessivamente maligna até para ela, mas... não queria dar-lhe uma lição? Mary jamais se negaria a atender um doente e se não confessasse quem era o paciente, desceria as escadas agarrando sua maleta sem se dar conta que vestia uma camisola. Seu sorriso perverso se alargou ainda mais ao lembrar a profecia de Madeleine: «Tinha visto Mary apaixonada, embora tentará deter os sentimentos que esse homem lhe provocará desde o momento em que se encontrem pela primeira vez». O que poderia perder? Se aquele homem não era o escolhido para Mary, pelo menos aproveitaria com a vingança. No entanto, a dúvida sobre o comportamento de sua filha a invadiu. O que aconteceria quando Mary descobrisse que o cavalheiro que deveria curar era o mesmo que não afastou seus olhos dela, mesmo que Josephine lhe apontasse com a arma? Possivelmente o envenenaria, ou o curaria primeiro para matá-lo depois. No entanto, se o destino voltava a cruzá-los... quem era ela para impedir?

Olhou para a Sra. Reform e adotou uma postura seria e tranquila. Se oferecesse a sua filha, precisava adotar uma atitude decidida, pois não poderia colocar em perigo a honra dela, mas também a reputação de seu próprio marido estava em perigo.

?Existe uma opção possível. Se estivesse em seu lugar, aceitaria sem duvidar um só segundo ?manifestou sem vacilar.

?Farei qualquer coisa, Sra. Moore! ?Valeria exclamou desesperada. ?Diga-me o que pensou e juro que não demorarei nem um só segundo.

?Mas deve me prometer que ela não permanecerá em nenhum momento sozinha com ele ?Sophia prosseguiu.

?Ela? ?Valeria perguntou arregalando os olhos.

?Sim, uma de minhas filhas, Mary. Ela acompanha meu marido em todas as suas visitas médicas. Ela curou muitos doentes e garanto que é tão habilidosa em medicina quanto seu pai. Ela descobrirá, se você considerar apropriado, o que acontece com seu irmão e atribuirá um tratamento enquanto meu marido volta.

?Tem certeza? ?E ali estava a resposta para sua pergunta! Seu irmão não estava perturbado pela febre, somente gritava o nome da pessoa que desejava ter ao seu lado. Como diabos sabia que a filha do médico poderia ajudar-lhe? Se conheciam? De onde? Quando?

?Tenho. Tudo que preciso saber é se você admite que uma mulher aja como médica sem importar...

?Pelo amor de Deus! Não vê que sou uma mulher? Acha que rejeitaria a ajuda de alguém, ou que seria capaz de menosprezar seu trabalho por não ser homem? ?Valeria retrucou ofendida. ?Te garanto que meu marido não seria quem é hoje se não tivesse casado comigo.

?Está certo, tudo bem que a chame?

?Com certeza!

?E me promete que zelara por sua honra? Tenha em mente que estamos falando de uma jovem solteira que permanecerá na casa de um homem solteiro e isso poderá causar problemas sem fim no futuro ?Sophia concluiu desconfiada.

?Sra. Moore, meu irmão precisa de um médico, não uma esposa ?Valeria garantiu com aparente indignação.

?Sendo assim, espere dez minutos. Subirei ao seu quarto e perguntarei se está disposta a...

?Sim! ?Mary exclamou do alto da escada. ?Vou! Coloco um vestido e desço em menos de cinco minutos ?acrescentou feliz.

?Mary Moore! Quantas vezes tenho que dizer que não deve espiar? ?A mãe gritou repreendendo-a.

?Milhares! ?Respondeu enquanto voltava correndo até seu quarto.

?Filhas... ?bufou Sophia. ?Por mais que cresçam, sempre serão crianças pequenas. Tinha esperança de que quando ficassem mais velhas mudariam de atitude, mas como pôde comprovar, não fizeram isso ?afirmou fingindo pesar.

?Eu tenho quatro e se forem como seu pai, teriam quarenta anos e continuariam sendo umas meninas extravagantes e teimosas ?apontou a Sra. Reform um pouco mais calma.

Enquanto esperavam a presença de Mary, Sophia fez uma investigação à Sra. Reform. Descobriu que era filha de uma espanhola e um alemão. Que tinham chegado à Londres fugindo da família do pai. Que tinha dois irmãos muito diferentes fisicamente e que tinha se casado anos atrás com Trevor Reform, o antigo dono do clube de cavalheiros Reform. Então, ela informou que lorde Giesler tinha chamado seu marido e Valeria contou-lhe a história do baronato que seu irmão devia ocupar na Alemanha.

?Mas como bem comentou, nunca crescem como se deseja e meu irmão é incapaz de aceitar o título ?Valeria comentou com pesar. ?Tentei de tudo... ?suspirou ?no entanto, essa atitude alemã que possui o impede de salvar o seu orgulho e assumir o que um dia herdará por direito.

Isso acalmaria a mãe? Por que não tinha parado de lhe fazer perguntas. Obviamente, tinha respondido todas. Não queria que pensasse que Mary se encontraria com pessoas sem escrúpulos. Precisava deixar claro que sua família era muito respeitável e que protegeria sua filha como se fosse uma das suas.

?Não se preocupe, certeza que em breve terá que desistir. Os homens são, por natureza, muito teimosos e tem que encontrar um incentivo para avançar esse passo que ambos se recusam a dar ?Sophia comentou, à alusão do baronato, com falso tom sereno e calmo.

Giesler era um barão alemão? Por isso seu marido fez referência ao tratamento de lorde? Os barões alemães possuíam as mesmas conotações que os ingleses? Tinha que assimilar muitas coisas depois dessa informação. Além disso, se a premonição de Madeleine estava certa, se lorde Giesler era o homem destinado para Mary... se tornaria uma baronesa inglesa ou alemã? Como agiria se alcançasse essa posição social? O que aconteceria com todos aqueles homens que a humilharam no passado? Se esqueceria deles ou encontraria uma maneira de se vingar? Um frio repentino fez com que os pelos do seu corpo se arrepiassem. Se isso acontecesse, a melhor opção era que partisse para a Alemanha, porque se ela ficasse, os cavalheiros que a desprezaram estariam em grave perigo...

?Já estou aqui! ?Mary gritou descendo as escadas.

Sophia a olhou de cima a baixo. Não podia repreendê-la porque não estava mais usando a camisola, mas usava o vestido azul que tinha colocado no dia anterior. Um que lhe dava a aparência de uma governanta, mas por causa da maneira como o tecido se agarrava ao seu corpo, não havia dúvida de que ela não tinha colocado o espartilho ou as anáguas. Mantinha o cabelo em um coque desastroso e em sua mão direita segurava a maleta que Randall a presenteou ao completar dezoito anos. Levaria dentro um frasco de cicuta? Porque se fosse assim, temia que gastasse essa mesma noite quando descobrisse a identidade do doente.

?Lembra querida, o que sempre comentei com seu pai ?ela disse suavemente enquanto a ajudava a vestir o casaco que tirara do armário.

?Boa noite ?primeiro saudou a mulher e logo se voltou até sua mãe com um olhar interrogativo. ?O pai me disse muitas coisas, pode ser mais especifica...

?Que não importa o paciente que precisa de atendimento, tem que fazer um bom trabalho ?lembrou antes de lhe dar um beijo na bochecha.

?Não sei por que diz essas coisas ?resmungou, corando rapidamente. ?Jamais me neguei a atender alguém.

?Espero que também não faça nesta ocasião ?Sophia insistiu puxando-a até a saída.

?Tem algum tipo de preconceito, Srta. Moore? ?Valeria interveio um pouco desconfortável ao ouvir as estranhas palavras da esposa do médico.

?Nem um pouco! ?Mary respondeu rapidamente, se colocando ao lado da Sra. Reform. ?É muito comum minha mãe me lembrar de que eu não devo ser descortês com as pessoas.

?Enquanto possa salvá-lo, não me importa o caráter que possua ?Valeria afirmou. ?Sra. Moore, boa noite. Garanto que sua filha estará em boas mãos.

?Obrigada, Sra. Reform, embora neste momento não tema por Mary, mas pelo doente ?Sophia garantiu.

?Mas mãe! ?Ela respondeu com raiva. ?Por favor, não vamos perder mais tempo. Preciso ver o paciente o quanto antes. Se não se importa, Sra. Reform, durante o caminho, me explica os sintomas que tem, essa conversa será mais que ouvir os lembretes morais da minha mãe. ?Boa noite, mãe.

?Boa noite, filha.

Assim que se despediram de Sophia, a duas andaram até a carruagem. A Sra. Moore permaneceu na porta até o veículo sair de seus domínios. Fechou a porta e suspirou fundo. A vida de sua segunda filha mudaria, a única coisa que podia garantir era se ela estava preparada para assumir essa mudança...

Mary se acomodou no assento e observou de canto de olho a sua acompanhante. Parecia tão preocupada que queria lhe dizer algo que pudesse acalmá-la. No entanto, ela não tinha o dom de tranquilizar as pessoas, mas de curá-las.

?Desculpe-me por tê-la tirado de sua casa a esta hora tão inapropriada, mas sua mãe, depois de lhe explicar o que aconteceu, insistiu que você é a mulher adequada para atendê-lo.

?Não foi problema nenhum, pelo contrário, sinto-me muito honrada por poder ajudá-la ?Mary respondeu, acrescentando um leve movimento com a mão enluvada ao comentário. ?Ficarei feliz em descobrir que doença seu marido tem e indicar-lhe o tratamento adequado.

?Meu marido? ?Espetou Valeria arregalando os olhos. ?Não é meu marido que está doente, mas meu irmão.

?Desculpe, devo ter entendido errado. De lá, não consegui ouvir bem suas palavras ?Mary comentou, ruborizando no mesmo instante. ?Às vezes, quando fico empolgada, não presto muita atenção.

?Não se preocupe, isso geralmente acontece comigo também. Acho que é muito comum mulheres inteligentes selecionarem o que as interessa.

Diante desse comentário, Mary relaxou e soltou uma gargalhada. Quando se recuperou, voltou a olhar a Sra. Reform e esperou que lhe revelasse o nome do seu irmão, mas ela se manteve em silêncio.

?E, a quem devo atender? ?Finalmente perguntou.

?Talvez o conheça, Srta. Moore.

?Mary, por favor, me chame de Mary.

?Obrigada, bem, o que disse Mary, possivelmente tenha ouvido falar sobre ele, porque é um homem bem conhecido nesta cidade. Trabalhou na Scotland Yard durante alguns anos, mas quando estava prestes a conseguir um cargo importante, se recusou a fazê-lo e decidiu se tornar um marinheiro ?declarou com pesar enquanto observava como Mary continuava negando com a cabeça.

?Confesso que sou uma mulher antissocial. Mal saio de minha casa e quando o faço não tenho entre os meus objetivos me relacionar com as pessoas que conheço, exceto se tiver que curá-las ?acrescentou espirituosamente.

?Entendo... ?Valeria apontou ainda mais intrigada. Se a moça não o conhecia, por que seu irmão não parava de chamá-la quando lhe subia a febre? Espalhou a saia do vestido para que não enrugasse, depois colocou as duas mãos no colo e olhou para a jovem sem piscar. ?Mas acredito que sim, que conhece meu irmão ?insistiu.

?Se me disser o nome, posso responder com mais certeza ?Mary declarou com a voz cansada.

Para que tanto mistério? Por que proteger sua identidade? Teria que atender um criminoso fugitivo da justiça? Seria um parente direto do próprio Gilles de Rais?[1]

?Meu irmão é Philip Giesler ?Valeria finalmente declarou.

Naquele exato momento, Mary sentiu o queixo cair e ouviu uma voz em sua cabeça gritar que preferia enfrentar um depravado como o Barão de Rais do que salvar o homem que a chamou de bruxa.


Capítulo I


?Sabe de quem estou falando? ?Valeria lhe perguntou ao observar o sorriso de desagrado que mostrou em seu rosto. ?O conhece?

?Vagamente... ?Mary murmurou.

Por isso sua mãe a recordou que devia atendê-lo como mais um? Ela sabia de quem se tratava? «Por todos os diabos!», gritou mentalmente. Quando voltasse falaria muito seriamente com ela e lhe deixaria bem claro que jamais atenderia, mesmo que estivesse a ponto de morrer, imbecis como lorde Giesler.

?De onde? ?Valeria insistiu, apesar do mau humor que a jovem demonstrava e do tom áspero que usou ao respondê-la.

?Há alguns dias, seis para ser exata, seu irmão apareceu em nossa casa junto com o visconde de Devon ?respondeu sem diminuir sua aspereza. ?Nós dois tivemos a oportunidade de nos conhecermos e conversar por um curto período de tempo...

Pouco, mas o suficiente para odiá-lo e desejar que apodrecesse no inferno. No entanto, essa parte da história não era apropriada para expor naquele momento. Para o bem dela e de seu futuro paciente, deveria se acalmar e mostrar um caráter afável, tal como seu pai insistia: «Pode ser a mulher mais inteligente do mundo, mas ninguém a respeitará se continuar se comportando de maneira tão irascível».

?Entendo... ?a Sra. Reform sussurrou fixando seu olhar na janela.

?Disse que está doente há quanto tempo? Que sintomas têm apresentado? ?Mary perguntou para tentar esquecer o ódio que sentia pelo paciente e se concentrar em descobrir a possível doença. Porque se tudo fosse uma mentira, se a fez sair de sua casa para continuar zombando dela, antes de três horas passadas, seu sofrimento seria real, assim como a terrível dor que apareceria em sua virilha.

?Dois dias. A febre não diminui. Tem tanto calor que saíram bolhas na sua pele. Delira, tem suores, não para de vomitar e faz movimentos involuntários muito bruscos. Antes de pedir ajuda na sua casa, seus olhos estavam em branco por causa do novo aumento de temperatura, por isso disse a vários criados que preparassem um banho de água fria. Espero que com isso acalme...

?Realmente ordenou tal insensatez? ?Mary disse horrorizada. ?Que absurdo!

?Desculpe? ?Valeria retrucou com uma mistura de surpresa e assombro com a súbita mudança de atitude. Estava chamando-a de estúpida por ter mandado fazer uma coisa tão frequente em estados febris? ?O que quer dizer com essas palavras Srta. Moore? ?Resmungou, adotando novamente uma atitude distante.

?Como lhe ocorreu tal incoerência? Uma pessoa com febre alta não pode entrar em uma banheira com água fria, mas morna e, uma vez que seu corpo se adapte a essa breve mudança de temperatura, se acrescenta gradativamente gelo, mas nunca de uma vez! ?Falou irritada.

?Bem, agora entendo porque sua vida social é tão escassa... ?murmurou em voz alta. ?Espero que os servos tenham sido mais sensatos do que eu e não o congelem antes da sua chegada.

?-Isso espero! ?Mary disse, cruzando os braços sobre o peito.

A conversa entre as duas mulheres cessou naquele momento. O silêncio reinou dentro da carruagem, embora ocasionalmente se ouvisse os grunhidos exasperados de Mary. Valeria não podia afastar o olhar dela e de se perguntar se seu irmão era consciente do verdadeiro caráter da mulher que ele invocou inconscientemente. Talvez quando se conheceram, a jovem em idade de casar, contemplou um homem tão bonito e galã, tirou todas as suas armas de sedução para apanhá-lo. Só esperava que, ao tratá-lo novamente, Philip entenderia que os escorpiões tinham menos veneno no ferrão do que ela em sua língua.

Uma vez que a carruagem estacionou na entrada da residência, o cocheiro abriu a porta para ajudar em primeiro lugar a Sra. Reform, no entanto, a filha dos Moore se esqueceu do bom protocolo e, depois de um movimento brusco, saltou para o chão sem observar a cara de espanto do empregado.

?Onde disse que se encontra seu irmão? ?Mary perguntou, agarrando a pasta com força.

?Não lhe disse ?Valeria garantiu mal humorada. ?Mas imagino que continua em seu quarto, onde o deixei antes de procurar por seu pai.

?Não há tempo a perder! Devemos impedir esse absurdo congelamento! ?afirmou, caminhando até a entrada sem esperá-la. Assim que chegou à porta, Mary pegou a aldrava e bateu até que um mordomo a abriu. ?Diga-me agora mesmo, onde se encontra o doente ?lhe perguntou assim que o viu. Entrou na casa sem ser convidada, rapidamente tirou o casaco, jogou no mordomo e olhou em volta tentando descobrir em qual lugar da casa deveria avançar.

Shals, o criado principal, fixou seus olhos cinzentos na Sra. Reform, quem apareceu depois na estranha, e perguntou-lhe com aquele olhar se deveria responder a sua exigência. Quando ela assentiu, respondeu:

?Em cima, terceira porta a direita. Se desejar que a acompanhe...

Não conseguiu terminar a frase porque Mary ergueu o vestido com a mão esquerda e subiu as escadas tão rápido que, antes de piscar duas vezes, já estava no andar de cima.

?Sra... ?disse a Valeria ?Quem é essa moça? Não será uma das amigas do Sr. certo? Já sabe que estamos proibidos de aceitar a entrada de mulheres de moral duvidosa.

?Não se preocupe. Não acredito que meu irmão a declare como amiga e tampouco é de moral duvidosa. Além disso, imagino que nem saiba o que essas duas palavras podem significar ?respondeu, oferecendo-lhe o casaco. ?É uma das filhas do doutor Moore que veio em seu lugar. Segundo me informou a esposa do médico, ela tem experiência suficiente para descobrir o que acontece com Philip e o atenderá até que seu pai apareça.

?Como disse? ?Retrucou Shals mais espantando se possível. ?Uma mulher médica? Tem certeza? Seu comportamento não me pareceu...

?Também não a achei muito adequada, mas se é capaz de descobrir o que acontece com Philip, esquecerei esse comportamento grosseiro e insolente que exibe com tanto orgulho. A propósito, sabe se poderiam colocá-lo na banheira?

?Acabaram de subir vários criados para levantá-lo da cama. Como bem sabe, as dimensões do Sr. são...

?Nem pense nisso! Deixem-no novamente sobre esse maldito colchão, bando de inúteis! ?Mary gritou com tanta força que Valeria e Shals a ouviram como se ela ainda estivesse no corredor.

?Meu Deus! ?O mordomo exclamou horrorizado. ?Continua dizendo que esta mulher é a certa para salvá-lo?

?Não ?garantiu antes de levantar o vestido com as duas mãos e subir os degraus o mais rápido que podia.

Quando chegou ao quarto, Valeria se apoiou no batente da porta para tomar ar. Enquanto sua respiração normalizava, seus olhos se cravaram dentro do quarto. Os três criados, quem tinham tentando mover o corpo de seu irmão, estavam ao pé da cama e olhavam para Mary como se ela fosse louca, pois nenhuma mulher sensata gritaria em uma casa desconhecida nem permaneceria em frente a um homem nu, embora o lençol escondesse a parte inferior de seu irmão. No entanto, Valeria ficou perplexa pela atitude fria da Srta. A filha do médico não o contemplava como uma mulher faria, mas como um médico que procurava a origem da doença que padecia seu paciente. Depois de tocar a testa, continuou com o peito. Suas mãos apalparam o peito de Philip sem nenhum tipo de sensualidade. Sensualidade? Aquela mulher não sabia o que era isso! Mas os olhos de Valeria se arregalaram e os três servos exclamaram horrorizados quando ela baixou os lençóis até os quadris. Os pelos loiros encaracolados de seu irmão ficaram descobertos. Colocou as mãos no rosto e deus graças a Deus que estava inconsciente, porque só culparia ela de tê-la levado ao seu quarto e que ela tomou certas liberdades inadequadas enquanto ele não podia se defender.

Sem afastar os olhos de Mary, notou como seus dedos largos se concentraram na parte da virilha direita. Com uma suavidade improvável apalpou durante um bom tempo, logo as afastou, andou para trás, levantou o rosto, olhou para os servos espantados e lhes perguntou:

?Onde estão os vômitos do seu Sr.? ?Como ninguém era capaz de respondê-la, pois não podiam falar por causa de seu espanto, ela começou a procurar o recipiente embaixo da cama. Quando o encontrou, pegou-o e levou até a luz da cabeceira. ?Desde quando está assim?

?Faz um dia ?Valeria respondeu entrando lentamente. ?Primeiro foram as febres e depois os...

?Se queixou de dor abdominal? ?Mary insistiu voltando para a cama com a bacia nas mãos.

Depositou-a no chão. Depois, apesar dos olhares reprovadores dos servos, colocou as palmas das mãos novamente na região da virilha afetada e justo quando seus dedos pressionaram essa parte com mais força, Giesler, que estava inconsciente até agora, gritou de dor.

?Parece que sim, se queixa... ?Valeria comentou sarcástica ao observar como seu irmão finalmente abria os olhos e agarrava com força a mão direita da jovem.

?Acalme-se, lorde Giesler. Sou Mary Moore ?começou a falar com ele ao descobrir que a olhava assombrado, como se achasse que estava vivendo uma alucinação. ?Sua irmã apareceu em minha casa para pedir ajuda ao meu pai. Como ele não se encontrava, vim no seu lugar. ?Puxou a mão, dirigiu-se a sua maleta e procurou pelo estetoscópio. Uma vez que o encontrou, voltou até o doente, colocou a campainha larga em seu abdômen e ouviu atentamente.

?Mary... ?Giesler sussurrou, apoiando novamente a cabeça sobre o travesseiro e incapaz de afastar os olhos dela.

?Chist! Preciso de silencio ?ordenou.

Philip observou-a atordoado até que Valeria se acomodou ao seu lado. Não querendo fazer nem um mísero barulho, para não desobedecer a ordem da mulher feroz, lentamente virou a cabeça até seu irmão. Ela encolheu os ombros e o olhou com simpatia, como se estivesse pedindo perdão por tê-la levado. No entanto, apesar do estado atordoado que Philip estava e da dor que percorria seu grande corpo, ele sorriu antes de desmaiar de novo.

?Acredito que ele tem a fossa ilíaca direita inflamada ?Mary comentou depositando o instrumento na maleta.

?E? —Valeria perguntou, pegando o pano que estava em uma mesa de cabeceira para limpar suavemente o rosto suado de Philip.

?Tem que fazer uma incisão nessa parte do corpo, cortar e extrair a fossa afetada, limpar bem o interior, cauterizar e costurar ?explicou, como se estivesse descrevendo uma tarefa tão simples quanto encher um copo de água embaixo da torneira.

?Como podemos aliviar a dor enquanto seu pai não chega? ?Valeria apontou, terminando a tarefa que estava fazendo.

?Não deveríamos esperar tanto. Se a fossa não estiver perfurada, há muita possibilidade que sobreviva, mas se estiver... aconselho-lhe que realize todos os preparativos pertinentes para um próximo funeral ?declarou com grosseria.

?Como ousa falar dessa forma, Srta Moore? Está se referindo ao meu irmão! Por acaso não tem compaixão? ?Clamou horrorizada por sua falta de tato.

?Sou uma mulher racional e sincera, Sra. Reform. Esclareço o que há e enfatizo que, se não agirmos rapidamente, a vida do seu irmão terminará em apenas três dias. ?Colocou as mãos na cintura e olhou com frieza. ?Não concorda com meu diagnóstico? Bem... corra! Procure o doutor Flatman para que verifique minha conclusão! Talvez seja muito tarde para ele... ?insistiu com mais crueldade do que deveria mostrar.

Por acaso estava desesperada para salvar a vida do homem que a chamara de bruxa? Por quê? Teria mudado de ideia ao ver como seus olhos azuis a observavam como se a idolatrasse? Havia em seu coração um pouquinho de piedade? Ou queria salvá-lo para depois lhe recordar que tinha um divida de vida com ela? O que quer que fosse, era a primeira vez que misturava sentimentos e trabalho...

?Está me dizendo que a vida do meu irmão está em minhas mãos? ?Valeria enfatizou se levantando do colchão.

?Não. A vida do seu irmão está nas minhas, porque serei eu quem realiza a intervenção. Você deve dar seu consentimento. Embora também possa esbofetear lorde Giesler até que aceite minha decisão ?afirmou virando até o paciente como se tivesse a intenção de lhe bater.

?Não se atreva a tocá-lo! ?Valeria explodiu andando até ela. ?Se fizer isso, garanto-lhe que não ficará um único fio de cabelo na sua cabeça.

?Não me importa ficar careca, Sra. Reform, caso não saiba, em menos de um ano vou usar outra linda cabeleira, mas se não operar seu irmão imediatamente, ele estará no subsolo, decompondo e alimentando todos os tipos de microorga...

?Maldita seja! ?Valeria gritou desesperada. ?O que quer que faça?

?Que consinta o que vou fazer ?Mary disse satisfeita.

?E se morrer durante a intervenção?

?Morrerá de qualquer maneira ?disse sem hesitar nem um único segundo.

?Está bem! Que todo mundo siga as instruções da Srta Moore! ?Valeria finalmente decidiu. ?Espero que não morra em suas mãos...

?Ele não vai ?Mary determinou antes de se colocar na frente de sua maleta e preparar todos os instrumentos que precisava para aquela operação apressada.


***

Valeria não podia acreditar no que via. Era tão improvável que mais de uma vez acreditou viver um pesadelo. Depois que a Srta. Moore ordenou acender todas as luzes que havia no quarto e que fechasse as janelas, pediu aos servos que colocassem duas mesas grandes em frente à lareira. Foi nela onde colocaram Philip. Então os obrigou a lavarem suas mãos em sete recipientes que havia cheio de água e sabão. Mas não se conformou com essa exaustiva limpeza, também os obrigou a borrifar suas palmas com um liquido que chamava desinfetante. Os lacaios fizeram isso sem questionar, porque ficou muito claro o caráter azedo e autoritário da mulher. Dois deles, que a olhavam como se fosse o próprio diabo, foram encarregados de limpar o sangue que caia no chão e de avivar o fogo. Quando tudo estava pronto, começou a trabalhar. Se até esse momento havia pensando que era uma pessoa única, o comportamento que manteve depois, confirmou. Enquanto que ela não podia permanecer de pé nem dois minutos ao presenciar a pequena incisão que fez no corpo de Philip, Mary nem piscou. Parecia que tudo ao redor deixou de existir para ela, embora falasse sem parar sobre certas descobertas cientificas sobre a operação que realizava. A jovem se concentrou no trabalho com tanta segurança e precisão que ficou fascinada. Nem em seus partos o médico que a atendeu foi tão firme e profissional! Não havia dúvidas, Mary tinha um dom e, por muito estranho que lhe parecesse, Philip sabia. Talvez por essa razão ele murmurasse tantas vezes seu nome. Mas... como e quando a descobriu? Falaram sobre medicina nesse primeiro encontro? Não, essa opção estava descartada, desde que seu irmão não tinha conhecimento sobre esse assunto. Além disso, a filha do médico não lhe agradou lembrar aquele momento, como se tivesse sido o pior de sua vida... Por que Philip sabia da incrível capacidade da mulher? Perguntaria sobre ela depois daquele dia? Por qual motivo? Esperava que, se ele se salvasse, respondesse a todas as suas perguntas, porque era a primeira vez que Philip lhe ocultava algo sobre mulheres e isso a fazia suspeitar que talvez esse encontro fora mais importante para ele que para ela.

Durante as quatro horas seguintes, Mary não foi capaz de afastar o olhar do corpo de seu paciente. Depois de sedá-lo, para o que teve que usar quase todo o clorofórmio que tinha, porque não tinha levado em conta as dimensões do paciente até que o ouviu gritar depois de apertar a ponta da escarpa em sua pele, fez a incisão na região e procurou a fossa ilíaca. Tal como pensou, pelo inchaço que apresentava a olho nu, não estava perfurada, os resíduos continuavam armazenados no pequeno apêndice vermiforme. Enquanto removia e cauterizava a borda com uma faca em brasa, falava com a desconfortável Sra. Reform sobre os descobrimentos egípcios e como registraram essa doença nas mumificações. Então mencionou os estudos que Lorenz Heriste realizou, um discípulo de Herman Boerhaave, e finalizou o monólogo cientifico com as pesquisas realizadas por Reginald H. Fitz, um famoso professor de anatomia patológica da Universidade de Harvard. Mas a única coisa que saía da boca da irmã o tempo todo era «que não morra», de modo que Mary deduziu que ela não ouviu uma única palavra de sua ampla e contundente exposição científica sobre a descoberta do apêndice inflamado.

?Agulha e linha ?pediu, uma vez que finalizou a limpeza por dentro.

?Aqui está ?respondeu o criado que havia permanecido ao seu lado em todo o momento.

?Desinfetou isto? ?Perguntou depois de segurá-lo e esticar o fio para que não tivesse nós.

?Sim, fiz tal como indicou ?informou, afastando-se rapidamente dela.

?Lavou as mãos antes de fazê-lo? Porque, mesmo que não seja visto a olho nu, nossa pele pode estar contaminada por...

?Garanto, Srta. Moore, que jamais tive minhas mãos tão limpas ?interrompeu a criada com relutância, repetindo todas as ordens sete vezes, como se não pudessem entendê-la a princípio.

Com um sorriso que cruzava o rosto, Mary começou a fechar a abertura enquanto a Sra. Reform finalmente se levantava da cadeira em que havia permanecido durante a intervenção. Quando finalizou a sutura, pegou o bisturi, cortou o fio em excesso e colocou-o na bandeja onde estava o pedaço de intestino removido.

?Agora só precisa de muito repouso. Deve tomar o remédio que deixarei sobre a mesa de cabeceira. Os banhos frios acabaram durante uma boa temporada. Recomendo que limpe seu corpo com panos em água quente e se aparecerem algumas crostas brancas em volta da ferida, tem que...

?Vai embora? Pretende deixa-lo assim? ?Valeria espetou chocada olhando para o corpo convalescente de Philip.

Reconhecia que a atitude da filha dos Moore fosse sublime e que a Sra. Moore tinha razão ao recomendá-la. No entanto, não permitiria que saísse tão cedo. Precisava que ficasse durante a noite. Ela, melhor do que ninguém, poderia atendê-lo quando acordasse.

?Meu trabalho acabou Sra. Reform. Agora cabe a vocês cuidarem do doente. Se seguir minhas instruções, em dois dias poderá se levantar e dez dias depois continuará com seu estilo de vida habitual ?respondeu retirando o suor da testa com a manga direita do vestido. ?Além disso, meu pai aparecerá em algumas horas para verificar seu estado. Se tiver alguma dúvida sobre...

?Você fica! ?Garantiu a irmã. Ao perceber que não havia usado o tom adequado para falar, pois as rugas em sua testa indicavam que jamais admitiria uma imposição, suavizou a voz. ?Srta. Moore, Mary, peço-lhe que não saia até ele abrir os olhos. Já descobriu que sou incapaz de me manter firme quando vejo sangue e se tenho que trocar o curativo ou limpar...

?A troca de curativo pode ser feita pelo meu pai dentro de alguns dias, e lembro que não é apropriado que permaneça desnecessariamente. Não tenho dúvidas de que seu irmão melhorará se seguir minhas instruções... ?Mary comentou visivelmente sufocada.

Não queria estar presente quando aquele titã loiro abrisse os olhos, preferia se manter distante do homem que a chamara de bruxa. Além disso, não podia perder tempo cuidando da pessoa que odiava. Era verdade que o salvara de uma morte certa, que tinha abrandado ao ver como ele a olhava, mas até aí chegava a sua benevolência. Quanto antes saísse daquela casa, antes poderia esquecer que o conhecia e que havia contemplado aquele imenso corpo nu. Como era possível que suas pupilas se fixassem em certas regiões indecorosas? Havia atendido muitos homens doentes, mas ele era diferente de todos eles. A largura de seu torso, de seus braços, a magnitude e a força de suas pernas... toda aquela aparência dignificava-o. Qualquer mulher, que desejasse ter filhos robustos e saudáveis, procuraria um marido como ele. Mas ela não seria essa futura esposa. Tudo o que queria era colocar alguma distância entre os dois e que sua mente esquecesse tudo o que havia observado.

?Se teme por sua honra, lhe garanto que ninguém desta casa falará sobre sua visita ?Valeria afirmou se aproximando dela.

?Honra? ?Mary perguntou divertida. ?Nunca me interessei por esse tipo de besteira! Sou a pessoa mais honrada do planeta, por isso ninguém é capaz de me suportar. Não se trata disso, Sra. Reform, está mais para privacidade. Seu irmão e você precisam de privacidade para realizar os cuidados apropriados. O que seu irmão pensaria quando me visse em seu quarto?

?Que salvou a sua vida. Só isso. E estará tão agradecido como eu estou.

?Mas não é adequado que uma mulher permaneça sozinha no dormitório de um homem ?Mary insistiu, limpando o sangue de suas mãos na bacia que um dos empregados aproximou.

?É puritana, Mary? Depois do que fez, tenta me convencer de que é uma mulher recatada? Porque se fosse, eu não teria suportado as quatro horas que a intervenção durou com tanta solenidade ?Valeria insistiu.

?Está recriminando mina atitude? Porque tenho que lembrá-la de que acabei de salvar-lhe a vida ?concluiu, assinalando Giesler com um dedo de sua mão direita.

?Não interprete mal minhas palavras, por favor. Estou e serei eternamente agradecida. Tudo que eu quero é que permaneça ao seu lado esta noite. Estou tão cansada, depois desses dias, não sei se posso agir corretamente. É por isso que suplico que me ajude. Sabe como me sentiria se depois de seu brilhante trabalho ele não se recuperar por minha causa? ?Valeria retrucou visivelmente preocupada.

?Aceitarei esse pedido como um elogio... ?Mary respondeu cruzando os braços sobre o peito. ?Mas insisto que não sou a pessoa adequada para cuidar do seu irmão.

?Pedirei a um criado para acompanhá-la em todos os momentos. Assim nunca estará sozinha e será capaz de lhe dizer tudo o que quiser ?Valeria informou-a um pouco mais calma. ?Se amanhã, quando seu pai aparecer, decidir que não deve continuar na residência, procuraremos outra pessoa para assumir o seu lugar.

?Não se trata de ficar sozinha com ele, mas sobre a reação que terá quando abrir os olhos e me encontrar ao seu lado ?Mary explicou estendendo os braços para o chão. Então voltou para onde Philip estava, coberto até o peito com um lençol que um dos servos havia colocado, e o observou em silencio. Faria a coisa certa ficando aquela noite? O que poderia acontecer? A princípio, depois de usar tanto clorofórmio, não acordaria até a chegada do novo dia, momento em que seu pai poderia se ocupar dele. Mas... e se acordasse? O que faria quando a visse? Olharia novamente para ela com ternura ou gritaria para que saísse?

?Meu irmão não vai julgá-la, Mary. Depois do que fez por ele, por que acha que reagirá negativamente? ?Valeria insistiu se aproximando dela.

?Lembra-se de uma das perguntas que me fez na carruagem? ?Mary continuou deixando Giesler para encontrar a Sra. Reform no meio do quarto.

?Agradeceria se fosse mais especifica, porque tudo que eu pensava antes de sua atitude, foi apagado da minha mente ?disse com sinceridade. Não mentia. Tudo aquilo que pensava sobre Mary desapareceu de sua cabeça ao vê-la agir.

?Me perguntou se nos conhecemos e eu lhe disse brevemente. Bem, garanto-lhe que o nosso encontro foi suficiente para eliminar qualquer amizade cordial entre os nós dois. ?Mary olhou de lado para Philip e suspirou. Parecia tão dócil naquela situação, que até ela duvidava que fosse um ogro, mas era.

?Tenho certeza que meu irmão esquecerá qualquer incidente que tiveram no passado quando descobrir que você salvou sua vida ?Valeria esclareceu indicando com a mão a saída, para que ambas saíssem juntas.

?Não estou muito convencida disso... ?murmurou caminhando até a porta. ?Você seria capaz de perdoar a pessoa que tentou matá-la?

?O que disse? ?Valeria retrucou arregalando os olhos e parando atrás dela. ?Queria matá-lo. Por quê?

?Porque me chamou de bruxa ?Mary explicou avançando rapidamente. Se a irmã começasse a gritar, era melhor que o fizesse fora do quarto para não despertá-lo antes do previsto.

?Faria sem pensar. Em defesa do meu irmão, tenho que lhe dizer que ele é muito atencioso com as mulheres, muito para meu bom entendimento... ?Valeria esclareceu, tomando novamente o caminho para fora. Ao fechar a porta, se colocou ao lado de Mary e a olhou por um momento. Por que a chamou de bruxa? O que aconteceu entre eles? Se quisesse conhecer a verdade e descobrir o motivo pelo qual seu irmão havia chamando-a dessa forma e porque sorriu ao descobrir que ela estava ao seu lado, tinha que se esforçar o suficiente para que entre elas duas crescesse uma pequena amizade. ?Me daria a honra de tomar um chá? Depois de tantas horas sem comer, estou faminta.

?Não gosto de chá, prefiro o café e se acrescentar a isso uns ovos mexidos e torradas, estarei encantada em acompanhá-la ?Mary disse parando no alto da escada.

?Vejo que não sou a única que tem fome ?Valeria afirmou sorrindo. ?Não se preocupe, o serviço é incapaz de dormir desde que meu irmão ficou doente e certamente a cozinheira ficará feliz em preparar tudo o que quisermos. ?Enlaçou o braço direito com o esquerdo de Mary e desceram as escadas juntas. ?Sabe? Philip é incapaz de sair de seu quarto sem primeiro tomar duas xícaras de café. Segundo me explicou, as pessoas que o tomam são mais inteligentes e ativas. E depois do que fez, penso que tem razão. E você é uma mulher muito lúcida e perspicaz.

?Tentando me elogiar, Valeria? Não pareço mais uma mulher tão horrível? Esqueceu meu mau caráter? Porque posso lhe garantir que não será a primeira ou a última vez que me comportarei de maneira tão grosseira. Como bem sabe, minhas habilidades sociais são bastante escassas, o que não me preocupa em nada.

Diante dessa afirmação, a Sra. Reform soltou uma risada alta, apertou Mary com mais força em direção a ela e avançaram até que pisaram no corredor.

?Depois de sua atitude, tenho que lhe dizer que possui mais qualidades positivas que negativas, embora tema que não está acostumada a esse tipo de bajulação em relação a sua pessoa, estou errada?

?Não sei muito bem o que responder a isso porque acho mais fácil enfrentar críticas do que elogios ?respondeu com sua habitual sinceridade.

?Então se acostume com isso, Mary. Se realmente salvou a vida do meu irmão, ele se transformará em seu fiel protetor e eu em sua principal admiradora. Acha que qualquer um de nós permitirá que voltem a menosprezá-la por realizar um trabalho que até agora só realizavam homens? Ninguém será tão tolo em lidar com a protegida de Giesler ?garantiu enquanto a dirigia para a cozinha.

?Se você diz... ?Mary declarou um pouco desconcertada.


Capítulo II


Tinha que admitir que a conversa que manteve com a Sra. Reform se mostrou muito agradável. Além das numerosas atenções afetuosas, que lhe fizeram desconfortável mais de uma vez por não estar a costumada a tanta cortesia, a conversa foi muito reveladora para ela. Descobriu que os Giesler procediam de uma casta de barões alemães, que o pai se apaixonou por uma cigana espanhola e que ambos saíram da Alemanha para viverem seu romance. Uma bela história que terminou com três filhos: Valeria, Philip e Martin. Este último não o conhecia pessoalmente, mas tinha ouvido falar dele pelo excelente trabalho como professor de matemática avançada na Universidade de Oxford. Aparentemente, era uma celebridade, apesar de ser tão jovem. Isso só aconteceu porque tinha nascido homem...

Pegou o vestido com as duas mãos e subiu novamente as escadas. Nesta ocasião não foi acompanhada pela Sra. Reform, pois lhe insistiu que fosse a sua casa para descansar. Tal como Valeria garantiu com autoridade, só ela poderia ajudar o paciente se ele piorasse. A princípio se negou a deixá-la sozinha, pois fez uma promessa a sua mãe. No entanto, depois de uma intensa discussão, concordaram que Shals, o principal mordomo de lorde Giesler, permaneceria ao seu lado durante toda a noite. Mary sorriu novamente ao lembrar o memento em que o servo entrou na cozinha e ouviu a decisão de Valeria. Se naquele momento Anne estivesse junto para contemplar aquele rosto, tê-lo-ia pintado entre gargalhadas. Jamais admirou olhos tão abertos e uma boca tão grande. Na verdade, não pretendia que agradecesse por ter salvo a vida do homem que pagava o seu salário, mas tampouco esperava que reagisse com tanto medo e surpresa, como se estivesse em frente ao próprio Lúcifer. O fiel empregado acreditava que, no meio da noite, ela mudaria de ideia e, depois de pegar seu bisturi, retalharia seu senhor da cintura até a garganta? Embora essa ideia parecesse agradável na manhã em que o conheceu, havia mudado de opinião. Talvez o fato de saber que suas mães tinham algo em comum ou descobrir que não era tão invencível como lhe pareceu naquele dia, suavizou seu temperamento. Quem teria imaginado que um homem com esse aspecto se encontraria apertando a mão da morte? Possivelmente seu sangue espanhol, o único legado da mãe, porque não tinha dúvida de que Lorde Giesler herdara o físico de seu pai, que o mantivera vivo até sua chegada. Ambos os pais haviam passado por situações muito parecidas: a mãe fugiu dos ciganos para se casar com um médico e a cigana espanhola com um barão alemão. Sem dúvida alguma, ambas as mulheres tiveram a sorte de encontrar os homens que as amariam e respeitariam até a morte.

Quando chegou ao patamar no primeiro andar, caminhou lentamente até o quarto onde passaria as próximas horas. Só tinha que respirar fundo e agir com naturalidade até que seu pai chegasse. Uma vez que ele confirmasse que o paciente estava bem e que evoluiria normalmente, sairia de lá sem olhar para trás. Não era bom para ela permanecer ao lado de um homem que havia desejado odiar depois de lhe salvar a vida e descobrir que tinham muitas coisas em comum.

Colocou a mão na maçaneta e virou-a devagar, para não fazer muito barulho. Os criados, exceto Shals, haviam se retirado para descansar e não queria tirá-los de seus quartos se perguntando o que havia feito desta vez a filha do médico. Ao abrir a porta, ao olhar para dentro do quarto, levou as duas mãos até a boca e a pressionou com força para que seu grito não se ouvisse. Por que diabos fizeram tal coisa? Se não falhava a memória, jurava que os havia ordenado que não movessem o recém operado até que acordasse? Bem, eles a ignoraram! Os lacaios, aqueles a quem lavara as mãos tanto que pôde observar como alguns pedaços de pele morta caíram no chão, ergueram o grande corpo de seu paciente para colocá-lo no confortável colchão. Por acaso estava trabalhando com um bando de teimosos? Não eram capazes de entender suas palavras? Bem, terminariam compreendendo cada letra! No dia seguinte, assim que a Sra. Reform aparecesse, pediria que convocasse uma reunião com os servos. Uma vez que todos estivessem em silencio e atentos as suas palavras, escolheria uma linguagem muito simples para que pudessem compreender melhor as ordens.

Obrigou-se a se concentrar no bem estar de seu paciente. Andou pelo quarto pisando com força e não parou até se posicionar ao lado direito da cama. «Verdammt![2]», exclamou horrorizada ao descobrir que seus dedos, por mais que esticasse seus braços, de onde estava não alcançava o curativo, porque o haviam deitado exatamente no centro da imensa cama. Mas como podiam ser tão inúteis? Não deduziram que ela tinha que subir no colchão para tocar sua testa ou para verificar se a ferida não havia sido aberta ao deslocá-lo? Não! Como poderiam calcular uma lógica tão simples? O único que desejavam era que seu senhor acordasse confortavelmente em sua cama enorme, sem se importar com a inconveniência que a pessoa que salvara sua vida encontraria durante a noite. Por acaso não podia proteger sua honra? O fato de que Valeria mostrasse que sua presença deveria ser mantida em segredo para o bem de todos, não lhes dava o direito de tratá-la como se ela não estivesse. Depois de bufar como um cavalo ao final de uma interminável corrida, seguiu em direção a lareira, onde se encontrava um caldeirão com água limpa e quente. Colocou as mãos e tirou rapidamente ao sentir como sua pele queimava. Olhou com raiva para o paciente, como se estivesse rindo dela e voltou a resmungar. Sim, essa reunião com os empregados deveria se realizar o quanto antes e quem não acatasse suas ordens, ela mesma expulsaria a patadas da residência.

Irritada com a inépcia dos lacaios, ela voltou para a cama para garantir que o paciente não sangrasse. Só faltava que depois do que aconteceu nesse dia, lorde Giesler morresse depois da sua intervenção. O que comentariam aqueles que sempre zombaram da sua inteligência e capacidade? Não suportaria uma humilhação semelhante e seu pai teria que procurar outro capitão de navio que não levasse somente Anne a França, mas ela também. Olhou para a porta, que ainda permanecia fechada, e deixou de respirar, para aguçar o sentido da audição. Depois de comprovar que não havia ruído ao seu redor, subiu com muito cuidado na cama, se ajoelhou sobre o colchão, afastou rapidamente o lençol do corpo de Giesler e cravou seus olhos no curativo. Tinha várias manchas de sangue nele, mas eram normais depois de uma operação desse tipo. Talvez aqueles que o moveram foram mais atentos do que pensou. Assim que confirmou que o curativo continuava firme na cintura, apoiou a mão direita sobre a cama para descer. No entanto, seus olhos seguiam fixos no imenso e forte peito de Giesler. Como havia deduzido antes, era um homem bastante robusto e bonito. Poderia classificá-lo até como atraente, embora naquele momento precisasse de um bom banho para eliminar o suor que tinha emanado do seu corpo. Sua mata de cabelos loiros, que cobria desde seu peito até a cintura, possuía uma tonalidade mais escura que a de seu cabelo, permanecia preso à pele pela transpiração. Então reviu seus ombros, admitindo que o volume deles permanecia de acordo com a solidez de seus braços. Valeria não tinha dito que acompanhava o visconde em suas viagens? Bem, a cor de sua pele e a musculatura confirmavam que não passava as longas viagens protegido em um camarote. Sem dúvida alguma, se transformaria em um corsário vulgar uma vez que zarpassem. Pela diferença de tom entre o peito e a cintura, não tinha dúvidas de que lorde Giesler mostrava seu grande peito sem pudor, fazendo com que o sol e a brisa marinha alcançassem sua pele. Entendia o motivo pelo qual a cigana espanhola se apaixonou pelo barão alemão a primeira vista. Se seu filho tivesse herdado o físico paterno, tal como Valeria disse, não haveria mulher que resistisse a um homem tão atraente. Exceto ela, claro. Pois era imune a sedução masculina. Afastou o olhar do peito e fixou em seu rosto. Seus traços viris se acentuavam com a barba loira que cresceu desde que adoeceu. Seria grosseiro como o caráter que ofereceu no dia que se conheceram ou seria tão suave quanto o toque do lençol? Intrigada para descobrir que sensação tinha, levou os dedos de sua mão direita até o rosto de Philip e o acariciou lentamente. Surpreendentemente, ele virou a cabeça para a palma da sua mão quando sentiu o contato e, embora tivesse que retirá-la rapidamente, para o caso de ele acordar, a manteve até que ouviu a porta abrir.

?Srta Moore... ?disse Shals ao encontrá-la naquela posição tão pouco adequada. ?O que está fazendo? O senhor está acordado?

Dissimulando o espanto que lhe causou ser descoberta dessa maneira tão afetuosa, esticou o lençol para cobrir o pescoço e saiu da cama com menos delicadeza do que quando subiu.

?Estava confirmando que, ao movê-lo, a ferida não se abriu ?explicou com uma serenidade fingida. Colocou os pés no chão e deu vários passos para trás.

?E fez isso? ?Perguntou o mordomo entrando no quarto com uma enorme poltrona em suas mãos.

?Por sorte não. Mas foi imprudente movê-lo tão depressa ?Mary respondeu, se afastando o suficiente para que o criado colocasse a pesada poltrona ao seu dela. ?Para quem é isto? ?Perguntou curiosa.

?A Sra. Reform, antes de sair, me pediu que subisse a poltrona mais confortável que nosso senhor tem em seu escritório ?respondeu depois de deixá-la no chão e colocar as mãos nas costas, como se tivesse se machucado ao transportá-la.

?Dói? ?Mary disse se aproximando dele. ?Não deveria tê-la trazido sozinho. Deveria pedir ajuda a outro lacaio. ?Antes de ouvir a resposta de Shals, andou até o caldeirão quente que estava em frente à lareira, mergulhou um pano e, aguentando a alta temperatura, voltou para onde o empregado estava. ?Tire seu casaco e suba a camisa, por favor. Isto acalmará a dor.

?Mas... mas... ?ele gaguejou.

?Ou faz por vontade própria ou lhe garanto que não me importará tirá-la eu mes...

?Está bem. Farei o que me pede ?desistiu. Apesar do desconforto que sentiu, não só se separando de seu traje na frente de uma mulher, mas também pela indisposição em sua cintura, tirou o paletó e levantou a camisa para o meio das costas. Shals fechou os olhos quando notou um leve alívio quando Mary colocou o pano em sua pele.

?Não quero que você interprete mal minhas palavras, mas você está velho demais para fazer semelhante esforço ?alegou pressionando o pano úmido sobre a pele.

?Sempre fala dessa forma, Srta Moore? ?Shals estalou olhando por cima do ombro. Vendo que ela estava sorrindo, como se não se importasse com a pergunta mordaz, ele também sorriu.

?Como disse a Sra. Reform, sou uma pessoa muito racional e sincera. –Com a mão direita pegou a do mordomo e a colocou sobre o pano, então fez o mesmo com a outra. ?Aguente por mais alguns minutos. Se ainda continuar doendo, posso te dar um analgésico que tenho na maleta.

?Obrigado, com isto será o suficiente ?Shals respondeu depois de se virar para ela. —Posso fazer-lhe uma pergunta?

?Pode fazê-la, mas não prometo que a responda ?disse antes de circundar a cama, se aproximando de Giesler novamente, alongando seu corpo até que pudesse pegar seu pulso e confirmar que era adequado.

?Como aprendeu tudo o que sabe? ?Perguntou sem poder afastar o olhar dela. ?Seu pai a ensinou como se fosse um homem?

O sorriso que havia mostrado até esse momento, desapareceu. Levantou o queixo e olhou para o criado como se quisesse fuzilá-lo.

?Por acaso acredita que as mulheres nasceram sem cérebro e que a função dos homens é criá-las a sua conveniência? ?Disse levantando a voz.

?Não! Não! Por favor, Srta Moore, não interprete mal minhas palavras ?declarou Shals em voz baixa. ?Juro que não quero magoá-la ?argumentou, afastando o pano de suas costas.

?Disse para não tirá-lo ?repreendeu quando viu que, devido ao nervosismo, ele havia desobedecido a sua ordem.

?Sinto muito... outra vez ?Shals declarou acatando a ordem de Mary enquanto abaixava a cabeça, envergonhado.

?Tem filhos? ?Mary continuou falando enquanto voltava a poltrona que havia trazido. Se sentou e levantou o queixo para continuar observando o mordomo.

?Não.

?Então deduzo que é absurdo explicar as decisões que meu pai tomou depois de ser pai de cinco filhas ?se recostou na poltrona, cruzou os braços e encarou o paciente, que ainda estava descansando tranquilamente.

?Tenho sobrinhas, se isso lhe serve de algo ?Shals explicou passando atrás da poltrona para chegar até a lareira.

Se o pano quente acalmava um pouco a sua dor, imaginou que estar em frente ao fogo, faria desaparecer. Além disso, aquele lugar era ideal se a Srta Moore sofria outro ataque de raiva por seus comentários inapropriados.

?Como seus pais se comportam com elas? ?Mary perguntou, virando na poltrona o suficiente para observar o servo.

?Nascemos em uma família que sempre se dedicou a servir, Srta Moore. Pode concluir que minha irmã e meu cunhado as instruem para continuar essa tradição ?explicou com cautela.

?Felizmente para nós, nossos pais têm uma visão mais precisa do futuro de suas filhas ?Mary suspirou.

E ela também agradecia ao bom senso que ambos possuíam. Nem sua mãe nem seu pai teriam educando-as para se tornarem as futuras esposas de senhores odiosos que não as valorizassem. Único objetivo para jovens burguesas ou aristocratas. No entanto, graças a uma educação tão liberal, as cinco puderam desfrutar de algo que poucas mulheres possuíam: a felicidade. Como seriam suas vidas se tivessem sido instruídas sob a absurda opressão social? Tediosa, com certeza, e todas tinham lutado para conseguir a liberdade que precisavam.

?Fico feliz por você ?Shals comentou ocupando finalmente uma poltrona sem encosto que estava do seu lado direito. ?É muito estranho descobrir que alguns pais não são influenciados pelos costumes que nos cercam.

?Meu pai sempre teve uma visão diferente da vida ?Mary continuou um pouco mais relaxada. ?Desde que éramos meninas, nos ensinou a cuidar de nós mesmas e aceitou o caráter com o qual nascemos.

?Em seu caso, o amor pela medicina, certo? ?Shals insistiu e devido à calma de sua dor e ao tom suave da mulher, começou a relaxar.

?Não pense que foi fácil admitir meus interesses. No começo ele estava relutante em me ensinar tudo o que sabia, mas com o tempo lhe mostrei que minhas habilidades são adequadas para tal função ?explicou com orgulho.

?E afirmo-o ?o mordomo garantiu, fixando seus olhos em Giesler. ?Confesso que estou impressionado.

?Pela operação? ?Mary retrucou rindo. ?Não foi nada... Um corte longo, um mais curto, remover, limpar e cauterizar.

?Diz isso com tanta normalidade que dá a sensação que qualquer um pode fazê-lo e não é assim. Srta Moore, tem que compreender que fez algo maravilhoso e incrível. Tenho certeza que nenhum médico poderia ter realizado uma intervenção urgente com a serenidade que você manteve em todo o momento. Graças a Deus, a Sra. Reform, depois de ouvir as palavras que o senhor pronunciou em seus delírios, foi buscá-la.

?O que disse? ?Mary perguntou se inclinando para frente, para observar melhor a expressão no rosto de Shals.

?A senhora não lhe disse? ?O mordomo respondeu com certa inquietação ao deduzir que havia cometido um grande erro.

?A senhora falou em procurar meu pai, Randall Moore, mas não me disse que Lorde Giesler mencionou meu nome em seus delírios febris ?declarou com surpresa.

?Não! Não! Não me referia ao seu nome ?Shals mentiu ?mas seu sobrenome. Meu senhor, não parava de repetir o sobrenome de seu pai. Por isso a senhora foi a sua busca.

?Já percebi... ?comentou enquanto voltava a se recostar na poltrona e fixava seus olhos no paciente. Não lhe teria ocorrido falar sobre ela, certo? Porque se fosse assim, esperaria que se curasse para deixá-lo doente de novo.

?Como descobriu, tão rapidamente, a doença do meu senhor? ?Shals, ao confirmar que suas palavras a haviam relaxado novamente, mudou de assunto. Não desejava se envolver em um problema em que se confrontaria com o caráter daquela moça e do homem ao qual servia há vários anos, porque a única coisa que conseguiria seria uma demissão iminente.

?Conto a versão entendida, que abrange desde a época egípcia ou se conforma com o momento em que apalpei meus dedos na inflamação? ?Mary disse divertida.

?Com queira. Lembre que temos que permanecer acordados toda a noite e minha única tarefa é ficar com você neste quarto ?Shals respondeu com o mesmo tom jocoso.

?Sendo assim, começarei com os estudos que se realizaram depois de algumas descobertas em certos túmulos egípcios...

Durante um pouco mais de duas horas, Mary explicou sem parar tudo o que conhecia do assunto: seus descobrimentos, quem os estudou, suas conclusões e como os resolviam durante diferentes séculos. Em várias ocasiões o mordomo se aproximou dela para servir-lhe um copo de água fresca, mas ela não percebeu esse detalhe de cortesia. Mary estava incrivelmente emocionada porque era a primeira vez que alguém a escutava falar sobre medicina com atenção e até fazia perguntas sensatas. Se sentiu tão confortável que terminou confessando tudo o que lhe perguntava sobre sua infância: o dia em que seu pai a descobriu com um livro de medicina, os gritos de Shira ao descobri-la dissecando o corpo de um gato morto, as contínuas ameaças de sua mãe com seus livros, as reuniões de medicina que assistia. Falou tanto e se encontrava tão satisfeita que não reparou em Giesler exceto quando este emitiu um leve gemido. Nesse instante, Shals abandonou rapidamente a banqueta na qual permaneceu e se aproximou dos pés da cama enquanto observava como ela o atendia.

?O que acontece ?perguntou inquieto.

?Nada estranho ?ela respondeu depois de tocar sua testa e verificar que seu estado era normal. ?O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar. ?Deixou a cama, se dirigiu até a mesa de cabeceira onde havia deixado o copo que Shals enchia continuamente e voltou até Philip.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo... ?enfiou os dedos da mão direita dentro do copo, molhou-os e, depois de levantá-los, colocou-os sobre a boca de Giesler.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

?A Sra. Cheap tem um unguento a base de gordura animal que usa para que as mãos não rachem. Se quiser, posso pedir-lhe para...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaico. Terá mais que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção ?comentou com certo tom de amargura.

?Srta Moore, não me interprete mal, te suplico. Só desejo facilitar em tudo que possa seu excelente trabalho. Imagino que seja um pouco incomodo subir na cama do meu senhor, se ajoelhar ao seu lado e se inclinar até sua boca para umedecê-la com seus próprios dedos ?Shals explicou surpreso ao descobrir que ela era tão inocente que não era cuidadosa com a imagem que oferecia. Mais que um médico hidratando os lábios de um doente, parecia uma concubina fazendo alguma brincadeira erótica no seu cliente.

?Olhando a partir dessa perspectiva, parece que estou fazendo uma coisa horrível e tudo que pretendo é...

Mary ficou muda ao sentir uns dedos apertando em torno de seu pulso direito. Continuava olhando Shals, que já não expressava assombro, mas pavor. Tampouco fixava seus olhos nela, mas os dirigia até o lugar do colchão onde se encontrava lorde Giesler. Mary tragou a saliva e virou lentamente sua cabeça em direção ao rosto do homem que, inexplicavelmente, já havia acordado. Quando seus olhares se cruzaram, o coração paralisou. Aquele homem voltava a olhá-la como no dia em que se conheceram. Não havia ternura sem seus olhos, senão ódio e raiva. Por que diabos não lhe deu mais clorofórmio? E... de todas as maneiras possíveis para encontrá-la, teria que ser dessa maneira? O que passaria por sua cabeça ao vê-la sobre sua cama e ajoelhada ao seu lado? Pensaria que começaria a chorar como uma amante dramática ao ver a vida de seu amor em perigo? Por que Shals não falava? Por que não lhe oferecia o atiçador da lareira para que ela pudesse bater na cabeça dele e deixá-lo inconsciente de novo?

?Senhor... Milorde... ?Shals tentou finalmente dizer ao ver como lorde Giesler olhava a Srta Moore. ?Ela... é...

?Quem lhe salvou a vida ?Mary garantiu antes de fazer um movimento brusco com a mão, para se livrar do aperto, e descer da cama rapidamente.


Capítulo III


Não podia se mexer. Era incapaz de separar os cílios para observar quem se encontrava ao seu lado. Sua mente estava completamente adormecida e seu corpo parecia ter perdido toda a força. Não tentou nem desejou realizar nenhum esforço, pois pressentia que não conseguiria. Com os olhos fechados e imóvel, tentou lembrar o que havia acontecido. Mas não conseguiu nada, exceto que dias atrás se encontrava muito indisposto e que, de repente, seu corpo não se mantinha em pé. Em que dia da semana estava? Tinha perdido também a consciência? Quando? Respirou fundo, aplacando lentamente a angustia que sentia ao se sentir tão fraco. Pelo menos estava em casa, em seu quarto. A maciez característica do seu colchão e o cheiro do seu perfume atestavam isso. Deixando de lado a incerteza do que poderia acontecer, se concentrou nas vozes. A princípio parecia distante, mas com o passar do tempo ficaram mais nítidas e próximas. Duas. Ao seu lado permaneciam duas pessoas. Uma sem dúvida alguma era Shals. Poderia reconhecer sua voz, mesmo que ele estivesse trancado em uma caixa de metal. No entanto, se concentrou na outra. Uma mulher. Sim, aquele tom suave, mas ao mesmo tempo estridente, apenas uma fêmea poderia oferecê-lo. Conteve novamente a respiração, acalmando qualquer som que ele mesmo produzisse, para descobrir de quem poderia ser. Não teria ocorrido a Shals a ideia horrível de levar suas antigas amantes para cuidar dele, certo? Se ele tivesse tomado essa decisão, sua posição estava em perigo.

?Por que pensou em dissecar o pobre animal? ?Ouviu perguntar a estranha que, pela proximidade de sua voz, devia estar muito perto.

?Por curiosidade ?ela respondeu antes de soltar um sorriso suave. ?Precisava ver com meus próprios olhos o que escondia embaixo do pelo e da gordura. Além disso, estudar um coração na imagem de um livro não é o mesmo que tê-lo em suas mãos.

?Descobriu?

?Sim, até que Shira gritou horrorizada. ?Ela se divertiu ao lembrar aquele episódio de sua vida. —De acordo com ela, estava cometendo uma barbárie, então fui forçada a deixar o corpo e correr sem parar até chegar ao meu quarto.

?Imagino que sua mãe a castigou ?Shals deduziu.

?Somente até meu pai chegar. Quando expliquei a razão pela qual fiz isso e mostrei a ele todas as anotações que havia feito em um caderno pequeno, a punição acabou imediatamente. Daquele dia em diante, ele me ajudou a satisfazer minha curiosidade científica. Mas não me permitiu, até que completasse dezoito anos e depois de me presentear com a maleta que trouxe hoje, acompanhá-lo em suas consultas médicas.

?Atendeu aos doentes nessa idade tão jovem? ?Shals perguntou surpreso.

?Não. Eu apenas observava a atitude do meu pai e ouvia com atenção todas as suas explicações. No entanto, tenho que lhe assegurar que a grande maioria dos conhecimentos que possuo, consegui através dos livros que tenho lido sobre medicina.

?Você é uma mulher muito especial, Srta Moore.

?Obrigada ?ela respondeu, aceitando o elogio com prazer.

«Srta Moore...» Philip sentiu como seu peito se comprimia ao ouvir aquelas palavras. Seria ela? A bruxa de cabelos escuros tinha ido a sua casa para curá-lo? Por quê? Quem lhe havia pedido ajuda? Porque aceitou o pedido depois do terrível episódio que viveram dias atrás? Tentou se levantar para confirmar que não era uma alucinação, que sua mente distorcida não o enganava, mas continuava fraco, muito até mesmo para levantar um dedo. Assumindo que a única coisa que poderia fazer era ouvir com atenção a conversa da filha erudita do Dr. Moore, se concentrou em não perder nenhuma palavra. No entanto, uma pontada aguda de dor em sua cintura o fez rosnar, chamando a atenção de ambos.

?O que aconteceu? ?Ouviu Shals perguntar.

?Nada de estranho. O clorofórmio começa a desaparecer e não demorará muito para acordar.

Philip percebeu como o colchão se inclinou ligeiramente para a sua esquerda. Depois disso, uma mão macia e quente tocou sua testa.

Mary...

Ela subiu na cama para confirmar que não estava piorando. Se deixou levar pela sensação de prazer que notou na leve carícia. Nunca se sentiu tão tranquilo e protegido por uma pessoa. Sempre foi ele quem velava pela segurança dos outros. Mas naquele momento, sua figura desamparada estava sob a proteção da mulher a quem ele gritou e admirou, em partes iguais. Ele apertou mais as pálpebras quando percebeu que estava se afastando. Uma estranha frieza percorreu seu corpo, causando um tremor intenso. Até suas vísceras reivindicavam essas carícias tão relaxantes. Não demorou em voltar. Para seu prazer, Mary ficou ao seu lado novamente.

?Um homem pode beber enquanto dorme? ?Shals perguntou muito confuso.

?Não, obviamente se engasgaria. Mas não se preocupe. Minhas intenções, por agora, não é assassiná-lo. A única coisa que pretendo...

Tudo o que uma vez descreveu como maravilhoso desapareceu de sua mente quando sentiu a suavidade dos dedos molhados tocando seus lábios. Queria gemer de prazer, mas permaneceu quieto e calado. Não queria quebrar um momento tão terno, tão esplêndido. Possivelmente seria o único momento em que ela se comportaria de maneira tão afetuosa porque, uma vez que descobrisse que havia acordado, a mulher árida e gélida retornaria.

?É? ?Shals insistiu arregalando os olhos ao observá-la realizar um ato muito íntimo.

?Hidratar seus lábios. Não quero que este resmungão acorde e, quando gritar de dor, a pele dos seus lábios rache. Tenho certeza que acabará sangrando mais pela boca que pela ferida em sua cintura ?explicou enquanto repetia sua ação.

Seu ferimento, o que ela mencionou, não sangraria. O que estava sangrando era sua alma. Porque lá estava ela, a mulher que jogou aqueles rolos de metal, saciando sua sede com os próprios dedos. Esse ato poderia defini-lo como o maior bem-estar que ele poderia sonhar? Talvez ele tivesse morrido e sua visão da vida eterna fosse ter aquela bruxa ao seu lado que ele não podia esquecer desde que a conheceu.

?A Sra. Cheap tem uma pomada à base de gordura animal que ela usa para evitar que as mãos rachem. Se desejar, posso pedir-lhe para que me...

?Lorde Giesler não precisa desse tipo de unguento tão arcaicos ?interrompeu-o?. Terá mais do que o suficiente com a água, meus dedos e minha boa intenção.

«Não!» Philip quis gritar com a opção que Shals lhe oferecia. Ele não queria que ela se afastasse dele, ou que seus lábios fossem borrifados com qualquer coisa, menos a água fresca de seus dedos. Ele precisava que ela continuasse com aquele ato íntimo, para tê-la por perto, sentir o perfume que ela exalava e a suavidade de seus dedos molhados.

Shals continuou falando. Ele explicou que não era apropriado que ela adotasse uma certa postura. Que postura seria? Estaria desconfortável? A inquietação tomou conta dele ao pensar que ela sofreria alguma doença por sua culpa. Muito lentamente, ele separou as pálpebras. A princípio, sua visão não era clara. Pelo contrário, parecia ter uma teia de aranha sobre as pupilas. Ele piscou várias vezes até alcançar a nitidez que desejava. Quando a viu, sentiu que não apenas sua alma estava sangrando, mas também seu coração. Mary estava ajoelhada na cama, estendendo a mão para a boca, hidratando-a, tal como explicava a Shals. Lentamente, seus olhos se desviaram para o peito feminino escondido sob um vestido que ele não conseguia distinguir claramente sua cor. Preto... talvez azul. Seus braços longos e delicados estavam nus, porque em algum momento decidiu enrolar as mangas até os cotovelos. A visão daquela pele esbranquiçada parecia requintada, atraente e tremendamente maravilhosa. Se estava morto, não tentaria voltar ao mundo dos vivos, pois o que vivia era ideal para ele. No entanto, justamente quando Shals percebeu que era capaz de observá-los, deduziu que sua situação idílica havia chegado ao fim. Ele lentamente levantou a mão esquerda para o pulso de Mary, agarrou-a e ela parou de falar.

Seus olhos se encontraram e se entreolharam por um momento. Ele queria transmitir através deles a felicidade que sentia ao encontrá-la ao seu lado, para cuida-lo. Mas o medo e a confusão mostrados pelo olhar de Mary o surpreenderam.

?Sr.... milorde... Ela é...

As palavras de seu mordomo ouviram-nas longe, como se não estivesse ao pé da cama, mas a 160 quilômetros de distância. Não quis prestar atenção à desculpa que Shals ofereceria ao encontrá-la em uma postura tão comprometedora. Tudo o que ele desejava era continuar contemplando a imagem perfeita de Mary: ao seu lado, em sua cama, acariciando sua boca com os dedos, saciando sua sede... Esse sentimento de felicidade se tornou em pavor quando percebeu sua mudança abrupta de atitude. Ela voltava a levantar o muro que os separou naquele dia.

?Quem salvou sua vida.

Manifestou em um tom de voz que Philip odiou. Lutou até libertar a mão de seu pulso e se afastou da cama, de seu lado. Continuou a olhá-la. Não podia afastar os olhos dela. Precisava observar todas as expressões que mostrava seu rosto. Surpresa, alegria, tristeza, compaixão? O que seria? Por qual escolher?

?Shals... ?murmurou lentamente. ?A... água... ?terminou de dizer.

O mordomo se aproximou rapidamente da cama, pegou o copo no qual Mary colocara os dedos e, quando ia lhe oferecer, ela gritou de horror.

?Nem pense em fazê-lo!

?Srta Moore, o senhor está me pedindo...

?E lhe dará, mas não dessa. Certamente que está contaminada depois de colocar meus dedos.

?Duvido muito que esteja depois de como foi lavado ?Shals apontou com um pouco de diversão.

Enquanto Mary estava em frente à lareira, onde podia observar claramente o paciente e permanecer distante, a criada esvaziou a água do copo na bacia e voltou a enchê-lo do jarro que havia sobre a mesinha. Se aproximou de lorde Giesler, segurou-lhe a cabeça e com muita delicadeza lhe deu de beber.

?Obrigado... ?ele disse uma vez que saciou sua sede. ?Shals, me ajude a sentar.

?Srta Moore, ?ele começou a dizer olhando para ela com os olhos arregalados ?acha que é uma boa ideia fazê-lo?

?Não. ?Garantiu indulgentemente. ?Precisa ficar deitado mais algumas horas.

O suficiente até que seu pai aparecesse e ela pudesse sair dali. Não podia enfrentar de novo esse olhar ameaçador. Só de pensar que continuava a odiá-la, a amarga e ressentida Mary voltaria para causar outro grande escândalo.

?Ficarei satisfeito se levantar um pouco minha cabeça. Não quero ficar o tempo todo olhando para o teto. ?Philip solicitou, a modo de queixa, a seu empregado, que acabou concordando com esse pedido, apesar de ouvir como a mulher bufava. ?O que aconteceu comigo?

?Um milagre! ?Shals exclamou dando um passo para trás, depois de acomodar o travesseiro.

?Que absurdo! ?Mary comentou, virando-se para não mostrar a raiva que tinha ao ouvir uma palavra tão estúpida para ela.

?Milagre? ?Philip retrucou olhando para a figura feminina. ?O que você quis dizer?

?Milorde, está acamado há pouco mais de dois dias. A Sra. Reform ficou ao seu lado esse tempo todo. Tentou curá-lo, mas, admitindo que precisava da ajuda de um médico, foi procurar o Dr. Moore. No entanto, ele não pôde comparecer e, em vez disso, a Srta Moore veio. Ela... ?Shals respirou fundo, olhou para a jovem e falou com orgulho, como se fosse seu próprio pai. ?Ela descobriu rapidamente que doença sofria e agiu imediatamente. Ela o operou, senhor. Ela salvou sua vida...

Giesler não tirou os olhos dela em nenhum momento. Algo dentro dele cresceu tão intensamente que seu peito expandiu. Felicidade? Agradecimento? Não sabia ao certo em que consistia essa emoção que inclusive lhe proporcionava forças para se levantar. Mas ele ficou parado, olhando-a sem piscar. Se ela descobrisse que estava começando a melhorar, iria embora e não estava disposto a se separar da mulher tão rapidamente que, rudemente, lhe dava as costas.

?Tinha a fossa ilíaca inflamada. ?Mary começou a dizer, olhando para o fogo. ?Tudo o que fiz foi tirá-la do seu corpo antes que fosse tarde demais.

?Pelo amor de Deus! ?Shals exclamou novamente. ?Explica como se fosse uma coisa muito simples e não foi. Sua intervenção durou pouco mais de quatro horas e posso garantir-lhe que, em nenhum momento, a Srta Moore diminuiu sua vontade de salvá-lo.

?Não preciso que me lisonjeie. ?Ela recriminou, ainda de costas para Giesler. ?Qualquer médico teria realizado essa operação com a mesma capacidade e eficiência que eu.

?Mas falamos de uma mulher... ?Shals sussurrou a seu senhor, comentário que fez Philip sorrir. Não só por afirmar algo evidente, mas pela forma temerosa de dizê-lo. Assustava-o? Conhecia o caráter especial da filha do médico?

Sem apagar o sorriso do rosto, ele continuou a admirá-la até seus olhos oferecerem uma imagem que ele nunca esqueceria. Se sua mente nunca parasse de mostrar a ele o momento em que se conheceram, e como o tecido de sua camisola se encaixava em sua figura, o fato de ficar na frente do fogo e que a luz das chamas atravessasse o tecido de seu vestido, concedeu a ele uma nova e esplêndida visão de suas pernas e quadris. Ela não usava anáguas? Por quê?

?Diga-me o que aconteceu ?Philip disse para Shals.

?Desde o início? ?estalou o mordomo se acomodando na cadeira onde Mary havia ficado antes que acordasse.

?Sim ?Giesler garantiu sem desviar o olhar daquela imagem espetacular.

Tal como pediu, Shals contou-lhe com todos os detalhes o que tinha acontecido desde que o encontraram caído no quarto. Os cuidados oferecidos por sua irmã, febre, vômito e convulsões. Evidentemente, ele não fez referência às palavras que evocou durante seus delírios. Mas, para dar uma explicação lógica do motivo pelo qual a Sra. Reform foi procurar o Dr. Moore, indicou que um funcionário havia ouvido que o médico seria o mais adequado para ajudá-lo, dada a fama que adquirira em Londres. Nesse momento Shals advertiu que Mary pegou o atiçador, o levantou e logo moveu as brasas com certa beligerância. Ele não quis perguntar o motivo pelo qual ela estava realizando esse ato brusco, decidiu continuar lhe falando sobre a saída de sua irmã para a residência do doutor e a chegada desta com a Srta. Moore. Explicou como gritou com os funcionários que se propunham a banhá-lo em água fria, como se aproximou dele e o espanto que todos mostraram quando a ouviu explicar que doença estava sofrendo. Narrou de maneira engraçada o momento em que ela forçou os servos a lavar as mãos em caldeirões diferentes e como insistia que fossem borrifados com um líquido que ela guardava na pasta. Philip não sorriu ao escutá-lo. Seu rosto estava rígido e seus olhos estavam fixos nela. Descobrir que havia tomado uma decisão tão importante, apesar de ambos não terem sido cordiais naquele dia, o deixou atordoado. Ele não tinha dúvida de que os rumores sobre seu intelecto eram verdadeiros, assim como afirmou aquilo que concluiu depois de investigá-la: os homens, que zombavam dela e a humilhavam constantemente, agiam dessa maneira porque a temiam. Eles estavam muito conscientes de que ela poderia superá-los, mesmo com os olhos fechados.

E isso que tinha crescido nele, que ainda não podia definir, aumentou.

?Obrigado. ?Lhe disse quando Shals concluiu a história. ?Te devo minha vida, Srta. Moore.

?Bobagem! ?Exclamou finalmente virando-se para ele. ?Não me deve nada. Como disse a seu mordomo, qualquer pessoa em meu lugar teria agido de maneira semelhante.

?Mas você enfrentou com valentia a Sra. Reform ?Shals interveio. Ao observar o rosto desconcertado de seu senhor, esclareceu: ?Sua irmã queria esperar o Sr. Moore, mas a Srta. insistiu em agir rapidamente. Além disso, lhe garantiu que morreria se não intervisse imediatamente.

Mary notou como suas bochechas coravam. Não arderam pelo calor do fogo, mas pelo embaraço que estava sofrendo. Aquele homem, imaginando que estava fazendo um ato de bondade para com ela, a descreveu como uma pessoa obstinada, teimosa e incapaz de aceitar a decisão da irmã do paciente. Outra característica que deveria adicionar à sua extensa lista de defeitos. Era melhor resolver o problema de uma só vez. Não podia suportar, nem por um momento mais, tantos elogios desnecessários ou daquele olhar hermético oferecido pelo homem que lhe salvara de uma morte certa.

?Como observei que está muito melhor e que o seu mordomo pode atendê-lo adequadamente, descerei ao primeiro andar. Já amanheceu há algum tempo e estou certa de que a Sra. Reform aparecerá em breve.

?Não! ?Philip gritou ao observar que ela se dirigia para a porta. Esse ligeiro movimento fez que lhe doesse a ferida. Ele colocou as mãos naquela área do corpo e olhou para ela novamente. ?Por favor... ?Sussurrou.

?Não se preocupe ?comentou Shals?, eu mesmo descerei para recebê-la. Você pode seguir atendendo Lorde Giesler. Agora que acordou, ele mesmo lhe dirá onde lhe dói e poderá lhe administrar o remédio que guarda na maleta.

?Vai me deixar sozinha? Não se lembra da promessa que fez à Sra. Reform? ?Mary insistiu com os olhos arregalados e colocando suas mãos em ambos os lados da cintura.

?Não corre nenhum perigo, Srta. Moore. Como pode ver, meu senhor, é incapaz de lhe fazer mal algum e sobre o escabroso assunto de permanecer a sós com um cavalheiro, não tem por que se preocupar. Ninguém nesta casa falará disso depois de salvar a vida do homem que paga seus honorários, lhe garanto.

?Mas... Mas... ?ela tentou dizer.

Shals parecia ter ficado surdo de repente. Depois de fazer uma leve reverência a Philip, caminhou decidido para a porta, fechou depois de sair e uma vez que já não puderam observá-lo, sorriu.


***

Quanto tempo passou desde que eles ficaram sozinhos? Talvez tenha sido apenas por alguns segundos, mas para Mary pareceu que tinha passado uma eternidade. Durante esse breve período não tinha se movido nem um palmo de onde ficou, antes da abrupta saída de Shals. Ele tentou fixar o olhar na porta, na lareira, no chão, mas acabou olhando para o rosto pálido e doentio. Embora Lorde Giesler não parecesse confortável, pois tampouco desviou o olhar dela. Seus olhos se mantiveram imóveis, como se o clorofórmio que lhe administrou não o deixasse movê-los para nenhuma outra área do quarto. Pegou as mãos e torceu-as com força. O que devia fazer? Faria bem se quebrasse aquele silêncio constrangedor?

?Srta. Moore... ?Philip sussurrou enquanto tentava mover a cabeça.

?Não o faça! ?Mary ordenou-lhe com um grito. ?Você não ouviu o seu mordomo? Acabei de operá-lo! ?Insistiu irritada.

?Sim, mas segundo as suas palavras, a intervenção foi muito simples. Por esse motivo, deduzi que...

?Deduções? A sério? Após a quantidade de anestésico que lhe dei, acha que sua mente é capaz de deduzir algo claramente? ?Continuou irritada. — O que precisa fazer é ficar parado por mais algumas horas.

?Quantas?

?Quantas o quê? ?Retrucou caminhando até ele com relutância.

?Quantas horas você acha que serão apropriadas? ?Esclareceu Philip, imensamente satisfeito ao ver como ela voltava a seu lado.

?Eu imagino que quarenta será mais que suficiente. ?Se Colocou no lado direito da cama, cruzou as mãos pelo peito e o olhou esquiva.

?Estou com calor... ?disse Giesler depois de pensar rapidamente uma alternativa que a obrigasse a tocá-lo de novo.

?Pode afastar o lençol, se desejar ?respondeu sem diminuir essa atitude zangada e distante.

?Mas me disse que não me movesse, que permanecesse quarenta...

Poderia rir? Não. Embora desejasse fazê-lo, não era apropriado, pois Mary acabaria cobrindo o rosto com o lençol para que não o observasse nem falasse mais. Por esse motivo, permaneceu calado, gostando de assistir enquanto pegava o pano com as pontas dos dedos e deslizava lentamente até a cintura.

?Melhor? ?Retrucou voltando a posição anterior.

?Água.

?Quer mais água? ?Perguntou arregalando os olhos.

?E remédios. Segundo declarou Shals, devo tomar...

?Cale-se por um momento! ?Mary exclamou desesperada. ?Não diga nem mais uma palavra. Vou dar-lhe a pílula[3] e esse maldito copo de água.

Fazendo movimentos mais bruscos do que deveria, se virou para a maleta, procurou o frasco onde tinha os comprimidos e pegou o copo de água.

?Não tente se mexer, eu te ajudarei. ?Philip a obedeceu. ?Passarei meu braço direito embaixo da cabeça. Precisa manter uma inclinação adequada para que o medicamento não fique preso na sua garganta. Se fizer isso, poderia morrer de asfixia ?comentou com sarcasmo.

?Sei que não permitiria que me acontecesse uma coisa tão horrível ?apontou Philip antes que lhe colocasse a cápsula na boca.

?Não tenha tanta certeza ?resmungou enquanto lhe dava de beber.

Não havia dúvida. Estava no céu e a mulher que ele chamou de bruxa era seu anjo. Sentir a suavidade da pele desse braço feminino em sua nuca, despertou-lhe uma incrível sensação de prazer e bem-estar. Quantas amantes deslizaram suas mãos pelo seu corpo? Dezenas! Quantas delas lhe causaram tanto prazer? Nenhuma. Aquela harpia de olhos azuis e cabelos escuros lhe provocava, com seu mau humor e seus atritos esquivos, uma satisfação inigualável.

Fechou os olhos quando ela deslizou seu braço para se afastar. Honestamente, nada poderia ser comparar. Talvez fosse um efeito colateral do clorofórmio que ela o fez inalar, ou talvez tudo fosse produto daquele período de castidade que se auto infringiu depois de conhecê-la. Fosse o que fosse, precisava senti-lo milhões de vezes mais.

?Obrigado ?lhe disse em voz baixa, quando Mary voltou a manter certa distância entre eles.

?Como disse? ?Retrucou estreitando os olhos.

?Agradeço, Srta. Moore. Mas entendo que não pode me ouvir claramente porque se afastou demais ?respondeu, dissimulando o estado de frenesi que se apoderou dele ao confirmar que encurtava essa separação bruta.

?O ouço perfeitamente, lorde Giesler. Só queria ouvir seus agradecimentos novamente ?respondeu mordaz. ?É bastante paradoxal que você, o homem que me chamou de bruxa em minha própria casa, me mostre tanta gratidão.

?Me jogou alguns tubos de metal. Queria me machucar com eles ?se defendeu.

?Não fiz isso? ?Retrucou ironicamente. Levantou as sobrancelhas escuras e esboçou um sorriso perverso enquanto colocava as mãos na cintura novamente.

?Não ?respondeu Philip. Se deleitando com aquele rosto maravilhosamente diabólico.

?Uma verdadeira lástima! ?Exclamou divertida antes de estalar a língua. ?Porque meu único objetivo naquele dia era machucá-lo.

?Para quê?

?Para que nunca me esquecesse ?respondeu de forma arrogante.

?Não fiz isso ?garantiu, olhando-a sem piscar.

As palavras e a expressão em seus olhos fizeram Mary se sentir intimidada, algo que geralmente não acontecia com facilidade. Mas aquele titã, com um corpo esbelto, cujo tronco bronzeado se mostrava descaradamente diante dela, começou a quebrar todas as barreiras que ela havia construído contra o sexo masculino. Que diabos tinha de especial? Por que seu coração batia loucamente? Não começaria a brotar seu sangue cigano naquele momento, certo? O que lhe disse Anne antes de partir para a cerimônia de casamento de Natalie Bennett? «Quando o sangue de Arany se libertar da pressão a que o submete, esquecerá tudo o que leu em seus amados livros e se tornará uma mulher apaixonada».

?Posso lhe pedir um favor, Srta. Moore? ?Philip perguntou, ao perceber que o olhar de Mary mostrava mais confusão do que medo.

?Quer mais água? Quer que o cubra novamente com o lençol? ?Respondeu ironicamente.

?Não. Minha sede se acalmou e garanto que estou com muito calor. Se não estivesse ao meu lado, afastaria imediatamente esse maldito lençol ?apontou sinceramente.

Comentário que a ruborizou, porque a fez lembrar o que estava escondendo debaixo do tecido.

?O que deseja? ?Quis saber, caminhando vários passos mais para trás.

Não devia permanecer tão perto. Não podia sentir nada. Seu coração precisava se acalmar de uma vez. Por que sua mente não agia? Onde estava seu autocontrole? E seu raciocínio feroz? Acaso haviam desaparecido? Que sangue possuíam naquele momento suas veias o Moore ou o Arany? Quando diabos seu pai chegaria?

?Vê essa cômoda que há no lado direito da lareira? ?Philip apontou com o queixo.

?Se pensa que vou me tornar sua empregada, está muito equivocado. Como bem sabe, meu único propósito tem sido...

?Srta. Moore, pode acatar, pelo menos uma vez na vida, uma ordem sem replicar? ?Philip resmungou.

?Por que devo fazê-lo?

?Porque não posso me mexer.

?O que me pedirá depois? ?Insistiu, franzindo a testa.

?Nada, juro por minha honra ?ele garantiu.

?Está bem! ?Mary sucumbiu caminhando em direção a cômoda. Uma vez que ficou na frente dela, olhou para ele. ?O que faço agora, Lorde Giesler? ?Acrescentou cantarolando.

?Abra a primeira gaveta e levante o lenço vermelho que encontrará à sua esquerda ?ele indicou. Embora não fosse conveniente para ele se mover, apoiou os cotovelos no colchão e, suportando a tremenda dor que esse esforço lhe causou, se inclinou o suficiente para vê-la. Como agiria? Se surpreenderia ao descobri-lo ou iria lançá-lo novamente? O que pensaria dele? O acusaria de ser louco e sairia correndo de lá? Com os olhos fixos nela, prendeu a respiração enquanto ao observa-la abrir a gaveta. Quando Mary levantou o pano, ficou parada e contemplou silenciosamente o que encontrou. ?Não me disse que sua única intenção era lembrá-la pelo resto da minha vida? Pois aí tem a prova, Mary. Não a esqueci, nem vou...

?Lorde Giesler ?Shals interrompeu depois de bater na porta duas vezes e abri-la ?O Sr. Moore acaba de chegar. Deseja recebê-lo?

?Sim, claro. Estávamos esperando por ele ?Philip respondeu sem desviar o olhar dela, que, ao ouvir o mordomo, bateu a gaveta e pulou para trás.


Capítulo IV


Shals se afastou para deixar o médico passar. Uma vez que este entrou no quarto seu olhar se dirigiu, em primeiro lugar, para ela. Respirou aliviado ao ver que permanecia frente à lareira, afastada do lorde. Que Mary tomara a decisão de operá-lo com urgência, quando era consciente de que podia esperar um pouco mais sem que corresse perigo, não lhe provocou tanto torpor como saber que se encontrava no quarto de um homem sozinha. Mas tudo o que havia imaginado desapareceu de sua cabeça ao vê-la tão afastada do paciente. Mary não era como Elizabeth, que colocava sua honra em risco constante. Sua segunda filha era tão fria quanto um bloco de gelo e, por mais atraente que o homem fosse, jamais o olharia de outra maneira que não fosse o de experimentar com ele alguma teoria médica nova. No entanto, não lhe passou despercebido o estupor que exibia. As bochechas queimavam pela proximidade do fogo ou pela emoção que devia sentir ao operar uma pessoa pela primeira vez sem o seu consentimento? Não ousou perguntar... O melhor era não saber mais, além do que seus velhos olhos cansados observavam. Com um passo lento, ele se aproximou de sua filha e depois de fazer uma breve revisão de suas roupas, confirmando as palavras de sua esposa, a cumprimentou.

?Bom dia, filha.

?Bom dia, pai ?ela respondeu.

Esgotado. Mary percebeu que seu pai estava bastante cansado, apesar de apresentar uma imagem decente e correta. Ela não tinha dúvida de que sua mãe o esperara na porta e antes que ele pudesse dar um pequeno passo dentro de sua casa, lhe teria dado a volta, teria arrumado a gravata e a camisa, enquanto lhe explicava o que tinha acontecido. Tinha certeza que quando ouviu lorde Giesler, Mary, doença e residência na mesma frase, nem mesmo seu cansaço o teria impedido de comparecer. Esteve a ponto de soltar uma gargalhada ao imaginá-los divagando sobre sua conduta quando descobrisse a identidade do homem que devia salvar. Temeriam por sua vida? Não a sua, senão a do paciente. Se assim fosse, deveriam respirar tranquilos porque, nesse momento, não desejava matar ao presunçoso que a chamou de bruxa antes de lhe atirar uns rolos metálicos. Ao recordar esse dia, voltou a ficar tensa. Por que diabos havia guardado um dos objetos que lhe jogou? Por que o escondia sob um tecido de seda? E, como teve o descaramento de mostrá-lo? Queria humilhá-la ou talvez desejava que visse com seus próprios olhos a prova do delito? ¿ Não pensaria que o impacto do rolo originou sua doença, certo? Se acreditasse naquela hipótese absurda, era mais idiota do que pensava.

Enquanto ela divagava em silêncio, Randall atravessou o quarto para ficar ao lado de Philip, exatamente onde sua filha havia passado a noite. Seus dedos ainda estavam entrelaçados na alça da maleta, como se não quisesse se separar dela. Olhou novamente para Mary, depois contemplou o paciente e falou com sinais visíveis de medo:

?Bom dia, milorde. Desculpe a demora. Garanto-lhe que vim assim que fui informado por minha esposa. Como se encontra?

?Muito melhor, Sr. Moore ?Giesler respondeu um pouco confuso com a atitude distante que o médico lhe ofereceu a sua filha.

Mas claro, ele não sabia que ideias o casal considerou sobre Mary e sua maldade quando descobrisse a verdadeira identidade do paciente.

?Imagino que se encontra muito dolorido ?Randall disse depois de relaxar.

Pelo menos não tinha lhe arrancado a língua. Talvez tivesse adotado o comportamento de um médico e não o de uma mulher desprezada, como Sophia pensava. Ele nunca tinha visto sua esposa tão preocupada com a vida de alguém ou rezando para sua mãe criadora para mantê-lo seguro. Lentamente, ele se virou para a mesa e apoiou a maleta pesada.

?O normal após a intervenção que a Srta. Moore realizou ?respondeu com certo sarcasmo. Esperava que suas palavras eliminassem a possível inquietude do médico, mas não foi assim. A velha figura de Moore ficou tensa como uma corda de violino.

?Vou inspecionar a área ?lhe disse no momento em que suas mãos se libertaram da pesada mala de couro preto. Abriu-a e tirou uma tesoura. ?Tenho que tirar o curativo, milorde.

?Por quê? ?Philip retrucou estreitando os olhos.

?Porque preciso ter certeza do estado em que se encontra ?explicou depois de olhar para Mary rapidamente.

?Respiro, falo coerentemente e percebo facilmente a dor que irradia da ferida. Não tenho mais febre e me sinto muito mais forte do que antes. Isso não são sinais suficientes para confirmar que, graças à sua filha, me encontro bem? ?Apontou mordaz.

?Não se trata disso, Milorde ?comentou Mary se aproximando da cama. Mas parou o passo quando seu pai levantou a mão esquerda para ela.

?Tenho que confirmar que o trabalho que minha filha fez foi correto.

?Foi ?Philip garantiu categórico.

Mary não conseguia abrir mais os olhos diante da surpresa causada pelas palavras de lorde Giesler. O que ele pretendia agindo dessa maneira tão irritante? Recusaria a ajuda de seu pai? Por quê? O clorofórmio o deixou tão atordoado que não conseguia pensar com sensatez?

?Não duvido da capacidade da minha filha ?Randall expôs levantando o peito. ?Acredite quando lhe digo que colocaria a minha vida nas suas mãos sem hesitar. Mas caso não esteja ciente disso, Mary não possui a licença médica que lhe dá o poder de agir como tem feito. Se não trabalhou bem, se cometeu um pequeno erro, as repercussões futuras que teria seriam terríveis. Todo mundo falaria de sua ação impetuosa, o desastre que cometeu e a tragédia que Londres sofreria depois de perder um membro distinto da alta sociedade alemã. Quer que minha filha seja condenada por assassinato quando tudo o que ela fez por você foi um ato de misericórdia?

?Disparates... ?Giesler resmungou. ?Sua filha trabalhou perfeitamente. Ninguém falará sobre o que aconteceu hoje à noite aqui. Mas no caso hipotético de que aconteça, me tornarei seu feroz defensor.

?Não o fará se morrer ?Ela interveio mais espantada do que nunca.

Não havia dúvidas. Mary afirmou, depois de ouvi-lo, que os possíveis efeitos colaterais da anestesia eram horríveis. Todos os pacientes reagiam de maneira diferente: alguns pulavam sobre os colchões como se tivessem percevejos no corpo, outros gritavam como se vivessem no tempo de Neandertal, outros se tornavam crianças pequenas, que se consolavam chupando os dedos. No entanto, o caso de lorde Giesler foi a coisa mais insana que ela já vira. Ele só precisava sair da cama e empunhar uma espada, como se fosse um cavaleiro medieval, para proteger a honra de sua esposa!

?Penso como você, milorde. No entanto, tenho que verificar seu trabalho ?reafirmou veementemente. ?Posso cortar de uma vez os curativos ou deseja continuar essa conversa absurda? ?Acrescentou derramando sobre as tesouras e suas mãos um líquido incolor.

?Faça tudo o que precisa para confirmar o bom trabalho de sua filha ?disse finalmente.

Enquanto observava como rasgava as ataduras, Philip teve que admitir que Mary havia herdado o comportamento ousado de seu pai. Nenhum homem teria se dirigido a ele com insolência por temor a uma possível retaliação de sua parte. No entanto, lá estava ele, cortando o curativo, removendo o tecido de seu corpo e verificando o ferimento sem pestanejar depois de dar a entender que ele não estava em condições de pensar com lucidez.

?Você usou catgut[4] como fio de sutura? ?Randall perguntou sem olhar para ela enquanto sentia em volta do corte, confirmando que não havia deixado espaço ao costurá-lo. Se Sophia tivesse o acompanhado, descobriria que outra das habilidades de Mary era a costura, como ela o costurara com grande habilidade.

?Claro! ?ela exclamou se aproximando até ficar ao lado dele.

?Em que estado a encontrou? ?Perseverou, sem deixar de apalpar os arredores da ferida.

?Prestes a explodir. Felizmente, agi na hora certa. Mais algumas horas e seria tarde demais para ele... ?ela garantiu com firmeza.

?Como descobriu? ?Depois de fazer a pergunta, Randall se levantou, procurou uma pequena gaze na caixa de remédios, borrifou-a com antisséptico e colocou sobre a ferida.

?Os indícios eram evidentes. Mas confirmei ao apalpar-lhe a zona. Estava tão inchada como a do falecido Sr. Skinner. No entanto, Lorde Giesler teve mais sorte ?explicou antes de levantar lentamente o queixo e contemplar o rosto abatido do seu paciente.

?Se certificou de que não havia perfuração? ?Randall continuou perguntando sem se referir à comparação que fez entre pacientes.

Não era apropriado que repetisse tantas vezes que poderia ter morrido. Mas Mary, depois do que aconteceu com o Sr. Skinner, não conseguia pensar em mais nada. Por isso, agia sem pensar nas possíveis consequências.

?Sim. Antes de removê-lo, verifiquei várias vezes, mas não encontrei sujeira na superfície ?continuou explicando. ?Então, quando o coloquei na bandeja, confirmei que não havia poros.

?Como fez? Usou o método de Fizt? ?O pai perseverou enquanto pegava outro curativo para cobrir a ferida.

?Não, me baseei no método Moore ?continuou com diversão. Entendendo que seu pai não se divertia tanto quanto ela, continuou: ?Abri, procurei, encontrei, cortei, limpei, cauterizei e fechei ?Mary garantiu, finalmente endireitando as costas. Quando deduziu que seu pai enrolaria o novo curativo no abdômen do lorde, olhou para o mordomo e lhe perguntou: ?Shals, pode ajudá-lo? Meu pai é tão teimoso que acha que pode fazer isso sozinho.

Comentário que fez Philip sorrir, porque encontrou outra semelhança entre eles.

?Sim ?respondeu o mordomo avançando para eles rapidamente.

Randall deu o curativo à filha, colocou-se à direita e esperou que o empregado colocasse um travesseiro sob as pernas do senhor. Com a ajuda de ambos, as mãos de Mary se moveram agilmente sobre os quadris do paciente. Ao fazê-lo, descobriu que Philip a observava estranhamente. Não era angústia, nem raiva, nem desconforto, mas veneração, o que expressavam aqueles olhos tão azuis como os dela.

?Quanto de clorofórmio deu a ele? ?Ele perguntou depois de confirmar que o curativo se agarrava perfeitamente ao corpo. ?Levou em consideração o tamanho do paciente?

?Não no começo ?respondeu com um largo sorriso. ?Mas depois de ouvi-lo gritar, ao cravar a ponta do bisturi, rapidamente corrigi meu erro. Como pode ver, é a primeira vez que sedei um homem com a mesma compleição que um cavalo.

Esse comentário não agradou a Philip. Nem tampouco gostou de ser comparado a um cavalo. Não havia outro animal mais bonito? Uma águia não era adequada para ela?

?Quanto fenol usou?

?Tudo o que tinha na maleta ?Mary admitiu depois de se afastar de Shals e de seu pai. ?Tive que obrigar os empregados que me ajudarem e pulverizar suas mãos depois de lavá-las com sabão.

?Tenho certeza disto ?Shals comentou sorrindo. ?Graças à ordem da Srta. Moore muitos dos servos descobriu que sob a sujeira possuem uma pele tão branca como a madrepérola.

?Conheço o caráter de minha filha e tenho certeza de que ninguém poderia se aproximar sem seguir suas instruções à risca ?indicou Randall sorrindo pela primeira vez desde que apareceu.

?Quanto tempo levarei para me recuperar? ?Philip perguntou ao médico enquanto Shals pegava o travesseiro das pernas e o colocava sob as costas.

?Deve permanecer pelo menos dez dias em repouso ?respondeu. ?É vital não se mexa durante esse tempo. A sutura está perfeita e seria uma pena que, após um trabalho tão cuidadoso, arruinasse-a ao tentar se mover mais do que deveria. Precisará de ajuda para desempenhar suas funções vitais. Mas eu aconselho que, quando terminar, volte para a cama o mais rápido possível.

?Entendi que me recuperaria em quarenta horas ?Philip comentou olhando para Mary, que rapidamente desviou os olhos dele por não ter a decência de cobrir o peito na frente dela.

?Minha filha, como disse, fez um trabalho sublime, milorde, mas não um milagre ?afirmou enquanto pegava a alça da pasta com os dedos da mão direita e esboçava um sorriso largo. ?Vou visitá-lo todos os dias para observar sua evolução. Se a qualquer momento o vômito, a febre ou um desconforto inesperado retornar, peço que você me notifique imediatamente.

?A Srta. Moore nos indicou que deve tomar certos medicamentos para diminuir sua dor ?Shals apontou o dedo para o frasco de vidro que havia sobre a mesa redonda à sua esquerda.

?Forneceu o suficiente? ?Randall perguntou.

?Tem para três doses durante oito dias ?Mary admitiu.

?Perfeito. Quando terminar, se precisar de mais, eu mesmo os trarei... ?explicou o médico dando um passo atrás.

?Sr. Moore, antes de sair, diga ao meu mordomo o valor dos seus honorários. Penso que... ?Philip tentou dizer, mas quando viu o rosto de horror do médico, ficou calado.

?Não tem nada para me pagar, milorde. Como já esclareci, minha filha não tem a licença necessária para realizar esse tipo de trabalho e não posso, nem quero aceitá-lo.

?Insisto! ?Giesler exclamou tentando colocar os cotovelos novamente no colchão, um movimento que o fez grunhir de dor.

?É um asno! ?Mary trovejou desesperada ao observar a intenção do paciente. ?Meu pai não lhe disse que não pode se mover sozinho?

?Mary Moore Arany! ?Randall gritou ao ouvir como se dirigia ao lorde.

?Arany? ?Philip perguntou levantando a sobrancelha direita e sorrindo enquanto a observava corar.

?Cortesia da minha mãe, milorde ?respondeu franzindo a testa e dando ao pai um olhar carregado de represália.

?Um nome muito apropriado ?Philip sussurrou divertido.

?Deseja me fazer mais alguma pergunta? ?Randall interveio rapidamente quando percebeu que sua filha não continuaria mantendo uma atitude cordial por muito tempo.

?Não ?Giesler respondeu sem tirar os olhos dela.

Volátil. A palavra mais apropriada para descrevê-la era volátil. Tudo o que ele precisava descobrir era quando poderia pegá-la com a guarda baixa, para que não jogasse nada que pudesse usar como uma arma. Mas ele se preocuparia com isso mais tarde, justamente quando pudesse se levantar sem a ajuda de ninguém. Então ele a procuraria e agradecia pessoalmente pelo que havia feito por ele.

?Sendo assim, até amanhã ?Randall cedeu estendendo a mão.

?Até amanhã ?Philip respondeu, apertando a palma com aparente dificuldade.

?Mary... ?seu pai disse uma vez que estava ao seu lado ?vamos. É hora de lorde Giesler descansar com tranquilidade.

?Tenha um bom dia, milorde. ?Ela se despediu com tanta frieza que Philip sentiu sua alma congelar.

?Mais uma vez obrigado, Srta. Moore ?respondeu lentamente.

Mary lhe fez uma ligeira reverência e, sem dizer uma só palavra mais, caminhou atrás de Shals e de seu pai. No entanto, antes de fechar a porta, não pôde deixar de olhá-lo de novo. Esse íntimo cruzamento de olhares a oprimiu. Não entendia o motivo pelo qual sua mente lhe alertava que sua história com o lorde não terminaria naquele momento, senão que acabava de começar. Horrorizada ao pensar que voltaria a encontrá-lo, fechou a porta com rapidez e suspirou.

?Deve estar muito orgulhoso de sua filha ?Shals disse ao médico enquanto ambos caminhavam pelo longo corredor. ?Nunca conheci uma mulher tão valente.

?Valente ou demente? ?Randall respondeu.

?Não pensa que sua filha agiu corretamente? ?Shals insistiu confuso.

?Mary sempre age racionalmente, porém, desta vez não tenho tanta certeza disso. Você sabe que tipo de repercussão teria se tivesse cometido um erro?

?Erro? ?Retrucou Shals parando no patamar do primeiro andar. ?Não houve nenhum, Sr. Moore. Testemunhei o trabalho de muitos médicos e garanto-lhe que nunca vi uma pessoa trabalhar como ela.

?Não percebeu que é uma mulher e que não tem licença médica? ?Moore insistiu, impressionado com o apoio e o respeito que o criado mostrava a Mary.

?E? ?Shals perguntou olhando para ele incrédulo. ?Tenho certeza de que se ela tivesse atendido meu amo anterior, ele ainda continuaria respirando ?comentou antes de estender a mão para as escadas.

?Não lhe importa as opiniões que este ato de suposta valentia pode lhe causar? ?O pai insistiu.

?Não. E sobre esse assunto, como lorde Giesler esclareceu, não deve se preocupar. No entanto, lhe aviso que, após a brilhante atitude de sua filha esta noite, receio que ninguém nesta casa receberá, quando estiver doente, outro médico que não seja a Srta. Moore.

?Ela não é médica.

?Para nós sim, ela é ?Shals disse sem rodeios.

?Não falaria assim se a conhecesse melhor... ?Randall disse descendo o primeiro degrau.

?Acredite em mim quando digo que todos descobrimos o caráter afável da Srta. Moore ?Shals explicou divertido.

?De verdade? O que fez desta vez?

Enquanto desciam as escadas, o mordomo contou a ele o momento em que apareceu batendo na porta da residência. Randall não ficou chocado ao saber que jogou o casaco e que, sem a presença de um criado, foi para o quarto do paciente. Tampouco ficou surpreso quando Shals o informou que chamava os criados que pretendiam banhar seu senhor de bando de inúteis. Se tivesse agido de maneira diferente, o teria confundido. Mas apenas lhe descreveu o caráter típico de sua filha e seu desejo de salvar vidas. O mesmo que o seu. Esse reflexo lhe causou grande tristeza. Não era justo que a sociedade não permitisse que uma mulher desempenhasse o papel de um homem, apesar de ter mais conhecimento e habilidades do que eles.

?Srta. Moore, aqui está o seu casaco ?Shals comentou estendendo a roupa para ela.

Naquele momento, Mary arregalou os olhos e lançou uma maldição em alemão. Se virou rapidamente e, sem ouvir a repreensão que seu pai falou ao ouvi-la blasfemar, levantou o vestido com as duas mãos para voltar ao quarto.

Correu pelo corredor até chegar à porta do lorde. Por um momento duvidou se deveria bater ou não. Não o fez porque imaginou que, uma vez que estivesse sozinho e em silêncio, a morfina o teria entorpecido novamente.

Como deduziu, seus olhos estavam fechados e ele estava respirando calmamente. Não seria um problema se aproximar da mesa e levar sua maleta. Na ponta dos pés, atravessou a sala, ficou ao lado do paciente e sorriu quando viu que estava descansando tranquilamente. Sem fazer o mínimo barulho, se virou para a maleta, fechou-a e, ao se virar novamente, ficou sem fôlego quando descobriu que os olhos do homem se abriram e a olhava com uma intensidade desconhecida para ela.

?Desculpe, esqueci... ?Ficou calada ao ver que ele estendia a mão para ela enquanto balbuciava algo incompreensível.

Assustada, caso tivesse piorado durante o breve período de tempo em que permaneceu sozinho, deixou cair a maleta no chão e estendeu a mão esquerda. Mas esse medo se tornou perplexidade quando ele a puxou com tanta força que seus narizes se tocaram.

?É uma mulher fascinante, Mary Moore ?ele sussurrou. ?Fascinantemente inesquecível ?afirmou antes que seus lábios tocassem os dela suavemente.

A resposta de Mary não demorou a chegar. Se afastou rapidamente dele e, apesar do estado de nervosismo que sentiu quando foi beijada pela primeira vez, levantou a palma da mão direita e lhe deu uma bofetada.

?Você é um grosseiro e espero que fascinantemente me esqueça ?Disse antes de levantar o queixo, pegar a maleta, adotar uma postura arrogante e sair dali a grandes passos.

No entanto, uma vez que Mary fechou a porta, se apoiou nela, levou a mão com a qual lhe bateu no coração e suspirou. Por que deu um tapa nele? Por acaso não sabia que o clorofórmio ainda passeava por suas veias? Milorde ainda não estava lúcido e estava agindo sob os efeitos dos narcóticos. Seria uma tragédia para ela que recordasse o que tinha acontecido. Se fosse assim, seria um problema sério. Compaixão, um sentimento que não tinha desde que entendeu a amargura do mundo ao seu redor, brotou de suas entranhas. Mas desapareceu imediatamente ao ouvir uma grande risada vinda de dentro do quarto.

?Verdammter Schurke![5] ?explodiu antes de descer as escadas tão rapidamente quanto subiu.


***

?Sabe que não deveria se sentir tão orgulhosa pelo que tem feito, certo? ?Randall perguntou à filha quando ambos se acomodaram dentro da carruagem e depositaram as respectivas maletas no assento. ?A intervenção foi um sucesso, mas não deveria ter feito isso sozinha.

?Agi por instinto, pai ?ela respondeu olhando pela janela.

?Por instinto? ?retrucou levantando as sobrancelhas. ?Desde quando se deixa levar por esse tipo de coisas?

?Tinha uma enorme inflamação. Os vômitos que observei...

?Não pôde esperar sete miseráveis horas, Mary Moore Arany? ?o pai insistiu irritado ?Você parou para pensar nas consequências que teria se não tivesse trabalhado corretamente? Estamos falando de um lorde!

?Desde quando faz esse tipo de distinção social, pai? ?Respondeu, virando lentamente sua cabeça para ele para olhá-lo. ?Me ensinou que as doenças não têm piedade daqueles que as sofrem. Observa-se, se faz um diagnóstico, se age e quando tudo termina tal como se deseja, volta para casa satisfeito por ter salvo uma vida ?garantiu com firmeza.

?Nu! ?Randall gritou fora de si. ?Aquele homem estava totalmente nu! Como foi capaz de se manter de pé, Mary? Por isso corou ao me ver entrar? Sentia vergonha por estar diante de um homem nu?

?Ist das ein problem, Vater?[6]

?Sim. Para mim isso é um grande problema, filha ?Moore garantiu.

?Caso você não se lembre, desde que eu o acompanho, tenho visto muitos homens nus ?apontou com desdém ?e seu querido lorde não é diferente dos outros.

?Sabe o que acontecerá se alguém daquela casa espalhar que você operou seu senhor enquanto ele estava nu? Sua mãe nos matará, porque eles não falarão mais sobre o caráter azedo de sua segunda filha, mas sobre sua insolência e falta de decoro.

?Queria que fizesse a intervenção com ele vestido? ?Retrucou com raiva.

?Poderia ter estendido o lençol, como fizemos em muitas ocasiões ?Randall manifestou sem diminuir sua raiva. ?Mas não. Você não pôde pensar em uma coisa tão simples...

?Me preocupava mais com a sua vida do que descobrir sua aparência física ?declarou mordaz. Embora a avaliação obtida pelo corpo forte e robusto do lorde fosse mantida para si. Sem contar com a surpresa que teve ao ver, pela primeira vez, um sexo masculino de verdade. ?Não fiz um bom trabalho? Não lhe salvei a vida?

?Isso parece.

?Melhorará? ?Persistiu tenazmente.

?Espero que sim ?Randall comentou com um suspiro.

?Então... vamos esquecer o resto! ?Apontou séria.

?Acha que será tão fácil para lorde Giesler esquecer que uma mulher o viu nu?

?Oh, bem! ?Exclamou com um leve sorriso. ?Realmente acredita que é a primeira vez que se mostra dessa forma diante de uma mulher? Por acaso não lembra que é o melhor amigo de lorde Bennett? Não ouviu o que dizem sobre eles?

?Mary Moore Arany, não fale comigo com esse tom!

?Pai, não seja ingênuo, por favor. Certamente, dentro de algumas horas, quando o efeito do sedativo tiver passado, seu querido lorde Giesler esquecerá o que aconteceu e se concentrará em aplacar a dor que ele deve suportar. ?Disse antes de cruzar os braços e olhar pela janela novamente.

?E se isso não acontecer?

?O fará ?disse incisiva.

No entanto, ela sabia que não. Aquele homem miserável guardou um rolo seu debaixo de um tecido de seda, olhou-a com veneração, defendeu-a como um justiceiro e, para aumentar a lista de eventos horríveis entre eles, a beijou. Só esperava que o tapa o fizesse entender que era melhor esquecê-la se sonhava em viver mais alguns anos.


Capítulo V


?Não posso acreditar! ?Sophia exclamou horrorizada depois de ouvir a explicação do marido. ?Como pôde ser tão imprudente? Operar? Ela sozinha? Por que o fez?

Felizmente para sua filha, assim que chegou em casa, subiu as escadas e se refugiou em seu quarto. Sabia como sua mãe agiria quando ele lhe contasse tudo o que tinha acontecido e, como mulher inteligente que era, decidiu se refugiar do perigo. Mas ele não podia fugir como Mary...

Randall olhou para a sua esposa, ela estava andando de um lado para o outro da sala. O laço de sua bata branca se soltou com os movimentos bruscos e seus cabelos, geralmente lisos e suaves como a seda, se enrolaram ao não deixar de tocá-lo. Sua raiva era compreensível; Mary agiu impulsivamente, sem parar para pensar nas consequências que seu ato de caridade poderia lhe acarretar no futuro. No entanto, ele se sentia muito orgulhoso do trabalho de sua amada menina. Qualquer outra pessoa em seu lugar esperaria a presença de outro médico para corroborar o primeiro diagnóstico. Mas ela não precisava de uma segunda opinião e procedeu com a paixão que mostrava sempre que alguém precisava de sua ajuda. Era verdade que havia cometido uma grande imprudência, isso não podia discutir com Sophia, mas também deviam elogiar seu bom julgamento.

?O salvou ?disse depois de procurar por palavras tão chocantes que diminuíssem a raiva de sua esposa.

?O que disse? ?Ela retrucou, abrindo tanto os olhos que podia ver claramente a dilatação de suas pupilas.

?Nossa filha salvou sua vida ?respondeu calmamente.

?Randall Moore! Você ficou louco? Porque só assim entenderia sua postura inadequada ?gritou angustiada.

?Apesar da minha primeira impressão, duvido muito que lorde Giesler sobrevivesse a uma doença tão perigosa quanto essa. ?Adicionou sem hesitar.

?Mas... não acaba de me dizer que poderia ter esperado até sua chegada? ?Enfatizou frenética. ?Que posição vai tomar, Randall? Sim ou não? ?Acrescentou, estreitando os olhos e colocando as duas mãos na cintura.

?Na minha opinião, penso, acredito e calculo que...

?Não comece a falar comigo dessa maneira, ou juro por Morgana que dormirá no sofá por um mês inteiro! ?O ameaçou.

?A posição é sim. Apoio fortemente a decisão de Mary. É, sem dúvida, o melhor trabalho que já vi em anos ?assumiu orgulho. ?Você acredita que tive que olhar duas vezes para a sutura que ela fez na incisão? Era perfeita!

?Mary... o costurou? ?Retrucou impressionada. ?Mas se não sabe nem enfiar fio na agulha!

?Bem, te garanto que sabe fazê-lo, e muito bem. ?Recostou-se na cadeira, subiu os óculos pela ponte de seu nariz, sorriu levemente e olhou ternamente para a esposa. ?No fundo, acho que ela estava certa...

?Então, agiu corretamente, certo? Lorde Giesler não retaliará contra ela, correto? ?Sophia insistiu desconcertada. O que devia fazer? Castigá-la durante dois anos em seu quarto ou deixar Madeleine preparar um daqueles bolos de que tanto gostava?

?Como já expliquei várias vezes, este tipo de doença é imprevisível... ?começou a explicar enquanto se levantava do cômodo sofá. ?É verdade que, se a fossa não explodisse por dentro, a intervenção poderia ser adiada até minha chegada. Mas como não podemos saber o que está acontecendo sob a nossa pele, até abrirmos, possivelmente sua predição se cumpriria em minutos. Devo esclarecer que essas inflamações são diferentes em cada paciente. Lorde Giesler sofreu dois dias com dor, febre e vômito. O Sr. Skinner faleceu antes que a febre aparecesse.

?Pelo amor de Morgana! Tinha esquecido o Sr. Skinner! ?Exclamou levando as mãos ao rosto. ?Mary ainda não superou, certo?

?Nunca se esqueça da primeira pessoa que morreu em suas mãos, querida. Sem dúvida, foi o pior momento de sua vida e imagino que foi por isso que ela agiu sem o meu consentimento. Reviveu aquela noite e concluiu que tinha que salvar a vida de lorde Giesler, apesar das consequências que teria no futuro.

?Se certificou de que lhe não tirou nada do corpo, exceto a abençoada fossa? ?Perguntou um pouco mais calma. Se fosse verdade, se a sua filha tivesse acalmado a consciência e descansado em paz depois da sua loucura corajosa, não a castigaria, mas também não a recompensaria. Se elogiasse Mary, estava perdida, porque nunca ouviria um conselho sem lembrá-la de que seus motivos alcançaram um tremendo triunfo. ?Depois do que aconteceu entre eles há alguns dias, poderia ter removido metade do estômago para se vingar.

?Que loucura você disse, querida! ?Randall exclamou com uma risada nervosa. ?Como nossa filha faria esse tipo de bobagem?

Mas a verdade era que não o confirmou e foi um descuido de sua parte. Estava tão preocupado em proteger a imprudência de Mary que não notou os restos que havia na bandeja. Ele esperava que sua filha tivesse esquecido a vingança que jurou realizar contra o homem que a chamara de Medusa e que, como sua esposa disse, não aproveitou o momento para lhe arrancar qualquer órgão vital com suas próprias mãos.

?E, como estava quando entrou no quarto dele? ?Perseverou sua esposa.

?Bastante bem ?admitiu finalmente respirando tranquilamente. Se lhe tivesse faltado algo importante, não teria aberto os olhos. ?Bastante bem ?repetiu para garantir sua própria dedução. ?Eu tenho que confessar que seu estado lúcido me deixou perplexo. Em outros pacientes, a recuperação tem sido muito lenta. No entanto, lorde Giesler estava ciente o tempo todo e raciocinava claramente.

?Suponho que, quando lhe anunciou que foi nossa filha quem lhe realizou a intervenção, gritou horrorizado como fez na manhã em que ela lhe atirou os tubos metálicos ?Sophia comentou olhando-o sem piscar.

?Pois não. O oposto. lorde Giesler a defendeu veementemente.

?A defendeu? ?Sophia perguntou boquiaberta.

?Não só ele, mas também o seu mordomo principal. Juro que pensei que o lacaio jogaria um dos castiçais na minha cabeça quando eu a repreendi na frente deles ?explicou Randall estendendo a mão para a esposa.

Tinha que descansar. Estava exausto demais para enfrentar o dia e, como sua amada esposa se acalmara um pouco, era hora de levá-la para o quarto e que o médico assumisse o papel de doente. O que mais um marido poderia querer depois de uma noite sem descanso e a situação que viveu na residência do lorde? Apenas um: adormecer nos braços de sua esposa.

?Lhe explicou tudo o que acontecerá se descobrir que Mary o atendeu? ?Sophia insistiu, aceitando aquele braço.

?Compreendeu-o rapidamente e isso lhe causou um terrível aborrecimento ?ele indicou, abrindo a porta.

?A quem? Lorde Giesler ou o mordomo? ?Ela insistiu sem esclarecer.

?Para ambos. O servo me avisou que ninguém na residência procuraria outro médico além de nossa filha e lorde Giesler disse que se tornaria um feroz protetor de Mary se alguém ousasse reprovar seu bom trabalho.

?O que ele disse? ?Sophia retrucou, arregalando os olhos novamente.

?Que ele se tornaria seu feroz protetor ?Randall repetiu.

?Quanto clorofórmio Mary lhe forneceu? ?Insistiu sua esposa lhe ajudando a subir o primeiro degrau da longa escadaria.

?Quase um quarto do frasco! Você não acha engraçado? Lorde Giesler permanecerá sedado por uma semana inteira! ?Randall comentou com diversão. ?Talvez, quando seu corpo eliminar toda essa quantidade de soníferos, não se lembre que Mary o operou nu ?acrescentou rindo sem parar.

?Como disse? ?Trovejou Sophia parando abruptamente nas escadas. ?Nossa filha viu aquele homem nu?

?Eu disse isso? Não lembra querida.

?Randall Moore... Fale agora mesmo! ?E no meio daquela escada, Sophia se afastou do marido e cruzou os braços.

?Não esteve sozinha em nenhum momento. A irmã do paciente e mais de dez servos presenciaram tudo ?ele comentou, sem saber se devia correr, como Mary havia feito quando chegou, ou voltar para a sala e se trancar até que a nova raiva de sua esposa passasse. ?Portanto, não pode nem deve pensar que eles tiveram um momento íntimo. Todos ali presentes...

?Nu?! ?Esbravejou. ?Minha filha viu aquele homem nu? E acha que lorde Giesler se esquecerá disso? Que ninguém naquela casa comentará que nossa filha, a quem esperamos casar algum dia, teve a indecência de ver um homem nu? ?Sua garganta ficou tão fina e alongada quanto o pescoço dos patos do lago quando via Josephine aparecer com a arma.

?Sophia... querida... Talvez... eu... ?tentou dizer.

?Mary Moore Arany! Nem pense em dormir! Temos que falar! ?Gritou depois de levantar a camisola e subir as escadas num tropel.

?Graças a Deus... ?suspirou o médico retrocedendo muito lentamente os degraus que tinha subido acompanhando sua esposa.

Depois de olhar para o primeiro andar, voltou ao seu escritório. A escolha mais acertada para ele era descansar em um sofá duro, em vez de suportar a disputa que mãe e filha teriam durante as próximas horas...


***

?Se sente bem, milorde? ?Shals perguntou a Philip quando apareceu novamente no quarto.

?Já foram embora? ?Ele perguntou, fazendo um grande esforço para permanecer um pouco inclinado.

?Sim. O Sr. Randall e sua filha voltaram para casa. Como não tinham carruagem, tomei a liberdade de lhes oferecer uma de sua senhoria ?informou-o enquanto caminhava em sua direção.

?Nesse caso... me sinto horrível! ?Trovejou. Finalmente descansou a cabeça no travesseiro e olhou para o teto. ?Isso dói muito!

Shals, confuso com a mudança radical na saúde de seu mestre, pegou o frasco de comprimidos e retirou o que o médico recomendou.

?Pensei, ao vê-lo se inclinar e conversar com o médico, não estava se sentindo tão mal... ?disse aproximando as cápsulas para a boca de Philip. Ele os colocou na língua e lhe aproximou um copo de água.

?Se lembra da infecção que sofri durante minha primeira viagem às ilhas do Caribe? ?Estalou, depois de engolir o medicamento.

?Sim, milorde. Jamais o vi tão fraco e doente. Devo lhe confessar que pensei que não voltaria a Londres... vivo ?explicou consternado.

?Bem, isso é pior... ?suspirou, jogando de novo sua cabeça sobre o travesseiro.

?Quer que chame o Sr. Moore? Com certeza ele saberá...

?Não! Nem pense em fazê-lo! Não quero que ele se preocupe com nada. Certamente culparia sua filha pelo meu desconforto e não vou consentir que isso aconteça.

?Claro, milorde. Tem toda a razão. Depois de presenciar a repreensão contra a Srta. Moore, tenho muito medo de que ela assuma a responsabilidade por tudo e, se naquele momento acalmei o desejo de lhe acertar a cabeça com um dos castiçais que tem na lareira, não duvidarei da próxima vez. Como ele ousa repreendê-la assim? Aquela menina o salvou! ?Comentou com ira. ?Se o próprio pai não é capaz de apoiá-la, quem o fará? ?Acrescentou.

?O Sr. Moore é um fiel defensor de sua filha, junto com o Sr. Flatman. Mas acho que se assustou ?Philip refletiu. ?Talvez seja a primeira vez que ela agiu sem o seu consentimento.

?Estava em perigo, milorde. Ela agiu prontamente porque deduziu que poderia morrer ?informou. ?Depois de ver os seus vômitos, ela colocou as mãos sobre o seu corpo e foi apalpando lentamente a área em que foi operado.

Tocando? Até que Shals não fez referência a sua nudez, ele não reparou nela. Mary havia tocado seu corpo e ele estava inconsciente naquele momento? Isto era imperdoável! Desde quando não sentia as carícias de uma mulher? Ele teria ficado excitado ao notá-la? Com certeza que sim. Seu membro agia por conta própria, sem a necessidade de uma ordem mental. Teria deixado em um bom lugar? Como ela reagiu? De repente, um sorriso de orgulho cobriu seu rosto cansado. Até agora, nenhuma de suas amantes se queixara de sua aparência física; era mais, elas o exaltavam e o admiravam. Mary teria olhado para ele dessa maneira também? Que conclusão havia chegado? Poderia obter a resposta através de Shals, mas precisava ser cauteloso, se não quisesse na sua, os candelabros que queria jogar na cabeça do pai. Bem, por causa da emoção com que ele falou sobre ela, sua admiração era notável.

?Por que minha irmã a chamou? ?Mesmo sabendo a resposta, decidiu começar do início, para descobrir todos os detalhes.

?A Sra. Reform decidiu aparecer na casa dos Moore após seu último estado febril ?Shals começou a explicar, evitando comentar que ele estava gritando o nome da menina como se não houvesse outra mulher no mundo. ?Como já descobriu, o médico não estava em casa e sua filha apareceu. Devo esclarecer que, quando ela entrou e jogou seu casaco na minha cara, eu queria chutá-la daqui ?explicou. Seus lábios se estenderam para mostrar um sorriso travesso enquanto aceitava o convite de seu amo para se sentar na mesma poltrona onde ela passou a noite toda. ?Mas sua irmã impediu que o fizesse. Sem demora, a jovem subiu as escadas de três em três com a maleta na mão e entrou no quarto sem avisar. Foi então que ela encontrou três dos criados o agarrando. Eles estavam apenas tentando cumprir a ordem da Sra. Reform: dar-lhe um banho gelado. No entanto, foram eles que ficaram congelados quando a Srta. Moore gritou lhes chamando de bando de inúteis.

E naquele momento, Philip soltou uma risada que lhe causou mais mal do que diversão.

?Continua ?encorajou-o enquanto ele respirava fundo e colocava a mão esquerda em direção ao curativo.

?Obrigou-os a colocá-lo de novo sobre a cama. Logo se aproximou e começou a inspecioná-lo, tal como lhe disse. Quando ela anunciou à Sra. Reform que deveria operá-lo, sua irmã não deu crédito a suas palavras. Tentou convencê-la, mas, como entendi, é difícil para a Srta. Moore mudar de ideia sobre algo de que ela tem plena certeza.

?E? ?Giesler perguntou sorrindo com mais cuidado.

?E em menos de uma hora, você estava sobre uma mesa sob o olhar atento da jovem médica. Prometo que o tempo se tornou eterno, mesmo que a menina não tenha parado de falar sobre pesquisas que fizeram sobre a doença que sofria. Senti que ela estava narrando para que a Sra. Reform, que estava sentada na poltrona perto da lareira desde o momento em que o viu sangrar, relaxasse. Mas estávamos todos em tensão até que saiu de suas entranhas, o que o prejudicava. Então ela o costurou e desceu para a cozinha para o café da manhã acompanhada por sua irmã.

?Conseguiu comer alguma coisa depois de ver o que guardo dentro de mim? ?Retrucou estupefato pela frieza de Mary.

?Sim senhor. A Srta. Moore tomou duas xícaras de café, três torradas e um ovo escalfado, enquanto a Sra. Reform não conseguia nem terminar o chá que lhe serviram. ?Apontou com alguma diversão.

?Fascinante! ?Giesler exclamou depois de suspirar e encarar o teto.

?Pode acreditar! ?Shals respondeu se levantando da cadeira. O momento que ele esperava havia chegado e, como sabia que reação seu senhor teria, era melhor se afastar dele, porque, apesar de se sentir tão mal, quando ouvisse o que planejava dizer, conseguiria se levantar e estrangulá-lo. ?É uma lástima que não possamos falar sobre o que aconteceu aqui esta noite, milorde.

?Por quê? ?Ele perguntou, estreitando os olhos.

?Essa menina é um verdadeiro tesouro ?declarou aos pés da cama ?e é uma pena que ninguém saiba como é realmente.

?Por quê? ?Repetiu grosseiro.

?Por que... que homem não gostaria de se casar com uma mulher que o libertaria da morte sem hesitar por um segundo? Se os solteiros desta cidade conhecessem o dom daquela jovem, o Sr. Moore teria, às portas de sua casa, inúmeros pretendentes esperando impacientemente ?comentou com entusiasmo.

?Daqui não sairá nem uma palavra! ?Philip garantiu, se levantando apesar da dor que sentia. ?Dei minha palavra a seu pai e a cumprirei!

?Oh, milorde! Não me interprete mal ?Shals se apressou em responder. ?Juro que ninguém nesta casa comentará nada. Todos entenderam que suas posições estão em risco se não conseguirem manter a boca fechada ?acrescentou com aparente tensão.

?Perfeito... ?manifestou Giesler deitando-se de novo.

?Se a sua senhoria não requer dos meus serviços, irei ao...

?Mais uma coisa antes de sair ?interrompeu.

?Sim? ?Ele perguntou, provando o sabor da vitória.

?Quem, dentre todos os que trabalham para mim, pode fazer um trabalho que exige muita discrição?

?Todos, milorde. Ninguém desta casa...

?Bem, escolha um deles e que vigie a Srta. Moore enquanto eu não posso sair deste maldito quarto ?ordenou bruscamente.

?Pensa que pode estar em perigo? Que alguém pode machucá-la? Não me parece que precisa de proteção, senhor. Ela...

?Não me ouviu bem, Shals? Preciso chamar outro lacaio para executar minha ordem sem questionar? ?Ele insistiu, olhando-o ferozmente. ?Eu disse que alguém a vigie e me conte tudo o que ela faz.

?Com certeza, milorde! Agora mesmo me coloco a isso ?ele respondeu antes de fechar a porta.

Quando seu mestre não pôde olhar para ele, sorriu amplamente. Havia entendido a indireta? Ou melhor, devia defini-la como uma grande direta? O que quer que fosse, o plano começou melhor do que esperava...

«Um marido? Pretendentes?»

Philip cerrou os punhos e bateu no colchão. Maldita fosse a sua doença e a incapacidade de se levantar da cama! Quanto tempo o Sr. Moore havia dito que deveria permanecer deitado? Um mês? Bem, ele se recuperaria na metade do tempo! Depois de esperar que Bennett partisse para sua casa no campo com três das irmãs, depois de perguntar sobre ela e ficar impressionado por esse caráter grosseiro e brilhante intelecto, depois de vê-la com aquela camisola e de guardar um objeto seu, fazendo dele seu amuleto... Permitiria que outro homem aparecesse em sua vida? Não, absolutamente não! Se um homem ousasse aparecer na residência Moore lhe pedindo em casamento... lhe arrancaria a cabeça. Mary Moore Arany era sua Medusa, sua bruxa e lutaria para tê-la, mesmo que tivesse que rastejar como uma minhoca pelas ruas de Londres!


Capítulo VI


Não era justo! Por que ela deveria ficar de castigo por duas semanas por uma coisa tão absurda? Sua mãe esqueceu o prodígio que havia feito: salvar a vida de um homem, e só se concentrou no fato de que ela o vira nu. E como iria operá-lo? Com uma venda nos olhos?

Mary bufou pela décima quinta vez e sentou no parapeito da janela. Ela só estava trancada em sua casa por cinco dias e os primeiros sinais de uma loucura monumental apareceram: ela não havia trocado a camisola, nem escovado os cabelos nem uma vez, sorria sem motivo, andava pelo quarto procurando teias de aranha para soprá-las, passava o dedo pelas paredes, para sentir a aspereza delas. Como poderia suportar tanta crueldade por tanto tempo? Ela olhou para fora e bufou. Nos dias anteriores, não teve vontade de sair de casa, porque a chuva a ajudou a superar sua agonia. Mas naquela manhã, para sua desgraça, as nuvens se dissiparam do céu e o sol, apesar de frio, se mostrou em todo o seu esplendor, temperando levemente a cidade. Ela abraçou as pernas, cujos joelhos tocavam seu peito, e focou os olhos na cama de Anne. Senti falta dela. Ansiava as conversas e presença da mais velha de suas irmãs. Certamente que, se estivesse lá quando sua mãe apareceu no quarto com raiva, rapidamente aplacaria sua ira. No entanto, ela teve que enfrentar sozinha e, por mais que insistisse em que não havia reparado naquele corpo masculino, o olhar reprovador de sua mãe expressava que não acreditava nela.

E estava certa...

Como não admiraria um corpo assim? Se era praticamente perfeito! Como admitiu naquela noite, algo que seu cérebro lembrava como se tivessem passado mil anos, Lorde Giesler merecia ser estudado como um exemplar do Homo sapiens perfeito. Não tinha dúvida alguma de que, se tivesse vivido na pré-história, seria o melhor caçador. Caçador? Não! Ele seria o chefe de alguma tribo! Mas de uma em que haveria apenas mulheres. Sim, tinha certeza de que, antes de abrir os olhos, na chegada de um novo dia, ele teria à sua frente mais de dez quadris levantados, esperando serem usados para gerar novos filhos, novos chefes, novos homens com um físico parecido ao de seu procriador. E se tivesse vivido na era grega! Ah, certamente teria sido a musa de centenas de escultores! E os homens o perseguiram... e as mulheres!

Irritada, por compará-lo em diferentes épocas e em situações semelhantes, enrugou a testa e bufou. Era verdade que ele tinha um físico digno de uma divindade: seus braços, pernas e aquele peito duro e forte lhe davam essa condição. Mas... por que deveria notar tanto algo que para ela era trivial? Sempre pensou que, se encontrasse um homem que estivesse mais do que disposto a suportá-la, seria inteligente, um tanto tímido e muito sensato. Lorde Giesler não era nada disso! Tímido? Hah! O próprio canalha fez um grande esforço, comprometendo seu bom trabalho, para beijá-la! Havia sensatez nesse ato? Não, claro que não! Isso já lhe mostrava que o homem não era nada racional. Se tivesse sido, não a teria beijado nem teria feito um sacrifício desnecessário para obter, como presente, um bom tapa. Essa conclusão a levou a outra característica que não possuía: inteligência. Que pessoa inteligente faz um plano tão absurdo para se aproximar dela e beijá-la?

Mary levou a ponta dos dedos da mão direita para a boca e sorriu. Pensou, em algum momento de sua vida, que o cavalheiro que a beijasse pela primeira vez, receberia em troca o impacto de sua mão? Não. Mas também não achava que alguém se atreveria a fazê-lo. Quem iria desejar uma mulher que pudesse matar com um olhar e com algum outro remédio que carregasse em sua maleta? No entanto, mesmo que não quisesse admitir, gostava de se sentir... fascinantemente inesquecível. Foi isso que lorde Giesler lhe confessou antes que pudesse estar consciente do que estava acontecendo ao seu redor. Talvez não tenha antecipado seu plano selvagem, porque ainda estava perturbada ao encontrar um de seus rolos metálicos armazenados como se fosse um tesouro. Se seu pai não tivesse entrado no quarto naquele momento, ela o teria pegado e o teria jogado de novo, para que não esquecesse quão fascinantemente doloroso poderia ser um impacto semelhante.

Irritada, não apenas pelo castigo, mas por se concentrar novamente em lorde Giesler, ela pulou no chão e se afastando da janela. Não deveria eliminar tudo o que sua mente havia cultivado desde anos atrás para preencher essas lacunas mentais com bobagens sobre os homens. Ela havia determinado, desde que tinha uso da razão, que não aceitaria se casar com um, pois todo seu mundo se tornaria trágico. Que marido permitiria que ela fosse às reuniões médicas? Que marido íntegro aceitaria que sua esposa abandonasse a cama para acompanhar seu pai a uma urgência médica? E, que homem suportaria que sua esposa o substituísse por um bom livro? Nenhum! Não nasceu homem capaz de lhe oferecer a vida que esperava! Por causa disso, não pensava, nem procurava um cônjuge. A decepção destruiria as duas vidas, os problemas apareceriam: discussões, raiva, gritos, mentiras, infidelidade, tristezas, decepção e, após anos e anos sofrendo uma agonia infinita, a morte chegaria. A dele, é claro, porque ela não planejava morrer até os noventa anos, pelo menos...

Nervosa, pela agonia dessa prisão obrigatória, ela começou a andar pelo quarto até fixar o olhar na poltrona ao pé da cama. Como lhe tinha ocorrido uma ideia tão descabelada? Não achou que era suficiente castigá-la sem sair de casa e não permitir que ela lesse um único livro que também lhe impunha uma tarefa tão absurda? Jamais tocaria aquele bastidor, nem passaria o tempo bordando! Mas... como pensou que ela costuraria? Em que momento da sua vida pediu que lhe dessem linhas e agulhas? Colocou as mãos nas têmporas e apertou-as, como se desse modo desaparecesse uma dor de cabeça inexistente.

Era tudo culpa dele! Desde que lorde Giesler apareceu em sua vida, esta havia se transformado. E agora, embora não soubesse nada sobre seu paciente há vários dias, porque sua mãe avisou seu pai que, se ele passasse informações, iria dormir para sempre em seu escritório, continuava incomodando-a.

Estava prestes a pegar o pano comprado para bordar, o que poderia servir de colcha para a cama e fazê-la em farrapos quando ouviu barulho do lado de fora. Madeleine não teria pensado em sair, certo? Como superaria a má sorte de que, embora ela precisasse de sua presença, para que sua loucura não aumentasse, a irmã mais nova de suas irmãs decidisse enfrentar sua timidez saindo para a rua. Desesperada, correu para a janela com tanta pressa que sua testa alcançou o vidro antes que o resto do corpo. Seus lábios desenharam um sorriso enorme, o primeiro que mostrava desde que sua mãe fechou a porta antes de lhe gritar que queimaria seus livros se a desobedecesse. Viria por ela? Havia decidido descobrir o que tinha acontecido para não acompanhar seu pai até a casa do seu irmão? Nesse caso, agradecia a... seja lá o que todos acreditassem, que se apresentasse. Não lhe disse que havia se tornado sua primeira admiradora e que os Giesler a protegeriam? Bem, estava com sérios problemas e precisava dessa proteção... imediatamente!

Sem esperar para saber por que ela apareceu em sua casa, foi ao armário e procurou um de seus vestidos. Embora Shira logo aparecesse, porque sua mãe a obrigaria a chamá-la, para que a Sra. Reform não descobrisse o que havia feito com a filha, ela não desejava demorar nem um minuto.


***

Continuava sem acreditar no que estava fazendo...

Quando um servo de Giesler apareceu em sua casa, às oito horas da manhã, avisando-a de que deveria aparecer na casa de seu irmão o mais rápido possível, quase morreu de um ataque cardíaco. Pensou que tinha piorado, e isso que na tarde anterior confirmou que seu estado de saúde havia melhorado. Preocupada, ela começou a dar ordens a todos os empregados da casa, porque quando ela anunciou ao marido que deveria ficar cuidando dos filhos, ele lhe lembrou que tinha uma reunião importante e que não podia atrasar. Sem Trevor... Teve que procurar outras alternativas e preparar sua casa em uma hora! E para que? Para aparecer no quarto de Philip e descobrir que ele não estava doente, mas que teve uma ideia maluca e que precisava de sua ajuda.

?Preciso que vá vê-la ?disse-lhe assim que entrou.

?A quem? ?Ela perguntou erguendo as sobrancelhas. Se lhe pedisse que falasse com alguma de suas amantes, arrancaria seus olhos naquele momento.

?Mary.

Bem, isso a relaxou muito, tanto que ela caminhou lentamente pelo quarto para se sentar na beira da cama e mostrar um leve sorriso.

?Por quê? ?Insistiu em descobrir.

?Sei que algo aconteceu com ela. O Sr. Moore se recusa a falar sobre ela toda vez que toco no assunto e fico surpreso que, depois do que fez, não esteja interessada em descobrir como estou. ?Philip admitiu com angústia.

?Talvez, apenas talvez, não queira saber nada sobre você. Não pensou nessa possibilidade? ?Valeria afirmou com mordacidade.

Estava brava com o grande ego de seu irmão, odiava que fosse tão vaidoso. Era verdade que, para mulheres solteiras, casadas, viúvas e até idosas, ele era descrito como um homem encantador, elegante e sedutor, e com um porte digno de um deus, mas isso carecia de importância. No entanto, por causa disso, seu irmão não pensava em procurar uma esposa digna de um barão e apenas desejava estar nos braços de amantes desavergonhadas. Valeria estava muito preocupada com seu futuro e essa preocupação aumentou depois de ler a última carta que o advogado de seu avô enviou. Ele informou que sua saúde piorou e pediu que ela chamasse a sabedoria de seu irmão. A recusa de Philip estava começando a ser perigosa. Se ele não reivindicasse o título de família, a alma de seu pai não descansaria em paz...

?Já que não posso fazer outra coisa durante o dia exceto pensar, também ponderei essa ideia ?declarou zangado. ?Mas sei que essa não é a resposta. Uma mulher como ela, tão apaixonada, não se pode esquecer, da noite para o dia, a evolução da pessoa a quem salvou da morte.

?Talvez o pai a mantenha informada e ele precise permanecer em silêncio ?Valeria ofereceu.

Embora temesse muito que essa não fosse a resposta certa também. O pouco que sabia de Mary se assemelhava a conclusão de Philip: era apaixonada por seu trabalho e duvidava muito que desconsiderasse seu estado de saúde facilmente, apesar do fato de que, por causa do rosto que colocou quando lhe anunciou na carruagem seu nome, mostrou mais ódio do que misericórdia.

?Há cinco dias que não sai de casa ?Philip anunciou.

?Como sabe? ?Valeria perguntou, arregalando os olhos.

?Encarreguei a tarefa de protegê-la a um de meus servos ?ele declarou, evitando expressar em seu tom mais ansiedade do que deveria mostrar à irmã. Se descobrisse que tinha algum interesse nela, começaria a planejar um casamento, forçaria-o a recuperar a baronia, iria enviá-lo para a Alemanha e, quando voltasse, se tornaria um homem que não desejava ser.

?Proteger ou espioná-la? ?O sorriso malicioso que seus lábios esboçaram, fez Philip entender que todos os seus esforços para não revelar um interesse especial por Mary eram um fracasso.

?Protegê-la ?resmungou. ?Tenho que velar por sua honra. Depois do que fez por mim, não vejo justo que corra perigo...

?Que perigo poderia ter? ?O interrompeu, se levantando da cama. ?Alguém desejaria matá-la por salvar sua vida? Se essa cidade descobrisse o que fez, seria valorizada tal como merece e eles parariam de vê-la como um pária. Sabe quantos homens estariam interessados nela? ?Insistiu com ele. ?Possivelmente, você não está fazendo nenhum bem em esconder o segredo. Talvez deveria...

?Não! ?Rosnou. Em seguida colocou a mão no curativo e apertou para aliviar a dor. ?Não é isso que quero!

?Bem... Diga-me por que me fez sair de casa a essa hora e ter que fazer o trabalho de um dia inteiro em uma hora ?Valeria murmurou.

?Quero que descubra o que acontece com ela. Preciso saber por que não saiu de casa durante esses dias.

?Não pensou que a chuva tivesse algo a ver? ?Soltou, um pouco brava.

?Mary gosta dos dias chuvosos e nem um dilúvio a impediria de sair de casa para comprar os folhetos científicos que coleciona.

?E você sabe tudo isso por que...

?Porque Logan me pediu ?declarou.

?Bennett está interessado nela? ?A vida poderia dar-lhe um chute mais forte em seu traseiro? Se seu melhor amigo tivesse alguma intenção na mulher, seu irmão não intercederia, mesmo que estivesse apaixonado. Mas... Philip poderia se apaixonar?

?Não ?respondeu com um sorriso. A irmã dele tinha que mascarar melhor tudo o que pensava. Ele ainda não entendia como tinha sido tão boa em jogar cartas com Trevor, quando não era capaz de dissimular o que passava em sua cabeça. Não havia dúvida de que seu cunhado era capaz de fazer qualquer coisa para fazê-la feliz. ?Não, Logan está interessado na primogênita das Moore. Precisava descobrir como poderia se aproximar dela sem a interrupção das outras, então me pediu para descobrir tudo o que podia sobre as Moore.

?E era de vital importância que descobrisse seus gostos... ?Valeria apontou ironicamente. Philip assentiu. ?Então, como choveu, o que ela ama, e seu lacaio lhe disse que ela não saiu de casa, você concluiu que algo sério aconteceu com ela.

?Mary não pode sobreviver sem esses artigos médicos. Somente uma doença, que a obrigue a permanecer em sua casa, pode impedi-la de comprá-los. ?Garantiu preocupado.

?Quer que me apresente na residência Moore e descubra o que aconteceu? ?Philip assentiu. ?A troco de que?

?Vai me chantagear, Valeria? ?Retrucou, sem saber muito bem se estava com raiva ou orgulhoso do sangue cigano materno que corria por suas veias. ?É capaz de impor condições a um irmão que te ama e não pode se defender sozinho?

?Se Martin me pedisse, faria sem pensar um só segundo. Mas você ?ela apontou um dedo ?não é ele. Então, sim, vou chantagear você, é o único idioma que você entende.

?O que quer? ?Ele disse depois de subir o lençol até o pescoço.

Medo, sua irmã lhe dava medo, tanto que ele usou o lençol como escudo. Se não errasse em seu palpite, levaria pouco tempo para lembrá-lo de que deveria...

?Na semana passada, recebi uma carta do advogado do nosso avô. ?Philip rosnou quando a ouviu. ?Ele queria nos avisar sobre sua saúde. Aparentemente, sua doença piora e não demorará muito...

?Não! ?Gritou. ?Esqueça esse absurdo, Valeria! Já te disse mil vezes! Não quero!

?Tem razão ?ela disse cruzando os braços ?você me disse não mil, mas um milhão, mas deve admitir que a situação mudou.

?Por isto? ?Apontou com o queixo para a cintura. ?Isso não mudou nada. Minha cabeça ainda está saudável...

?Se tem algum interesse em Mary, deveria considerar a alternativa de se tornar um barão.

Ela nunca havia chamado sua atenção para o assunto, mas incluir ao nome da mulher na frase, ela o fez.

?Não tenho nenhuma intenção de torná-la mi...

?Então, deixe-me falar sobre o que aconteceu aqui. Quando todo mundo souber que realizou um milagre, porque o rumor se espalhará como pólvora, ninguém duvidará de sua grande habilidade. Será convidada para uma infinidade de festas, terá, antes de descer o último degrau de qualquer salão, o cartão cheio de danças e, talvez em um deles, encontre o homem adequado para se casar com...

?Eu disse que não! Maldita seja, Valeria! Não escuta quando falo com você?

Mas... por que diabos todos estavam pensando em encontrar um marido para Mary? Queriam que se levantasse antes de se recuperar? Ou estavam tirando sarro dele? Mary não estaria com ninguém, ela não dançaria com ninguém e ninguém, absolutamente ninguém, descobriria que adorava sentir as gotas de chuva em seu rosto! Lembrando daquele dia, quando pensava que estava sozinha, que ninguém poderia descobri-la, se estremeceu. Nunca na vida viu um sorriso de um anjo até que Mary, sem perceber sua presença, virou o rosto para ele e sorriu.

?Está me ouvindo? ?Replicou. ?Olha ?começou a dizer se aproximando novamente dele ?se pensou em torná-la uma de suas muitas amantes, acredite-me que não fará isso. Essa moça não consentirá uma humilhação semelhante. Lutou com unhas e dentes contra todos os infortúnios que lhe foram apresentados para aceitar uma coisa tão vil. Por acaso não se informou o que fazem os cavaleiros quando a veem, ou só tem perguntado sobre seus gostos?

?Posso garantir que sei muito bem do que falam. ?E Valeria não duvidou por como sua mandíbula endureceu e como seus olhos, azuis com o céu, ficaram escuros, como uma noite sem estrelas. ?Assim como também tenho que confessar que mais de um imbecil trocará de calçada quando a veja, se quiser manter seus bonitos dentes dentro da boca ?garantiu irritado.

?Você gosta! Tem interesse nela? ?Embora apenas parecesse uma pergunta, não era. ?Então, pense em uma coisa...

?Qual? ?Ele perguntou, erguendo as sobrancelhas loiras.

?O que você vai lhe oferecer Philip, que os outros não podem dar?

?Respeito e admiração ?respondeu sem hesitar.

?Oh, bem! ?Exclamou revirando os olhos. ?E pensa que isso será suficiente para ela?

?Sim ?garantiu com firmeza.

?Pois está equivocado! ?Gritou. ?Uma mulher quer ter ao seu lado um marido compreensivo, certo, mas também um lutador. Precisará de um homem que a apoie e que não lhe coloque obstáculos em seu caminho. Sabe qual é o caminho de Mary Moore?

«Mary Moore Arany», pensou Giesler.

?Qual, de acordo com o seu bom julgamento? ?Murmurou Philip.

?Tornar-se alguém que a sociedade não permite ?berrou. ?Não tem olhos em seu rosto, irmão? Realmente pensa que uma mulher que é capaz de deduzir a doença de uma pessoa apenas tocando nela e que tem a coragem de se envolver em uma operação, como ela fez com você, se conformará com um marido que lhe oferecerá respeito e admiração? Já tem um pai que o faz! Mary precisa de um marido para ajudá-la a alcançar o que ela sozinha não pode e... você conhece o paradoxo de tudo isso? Que, nesta maldita cidade, apenas um nobre pode pavimentar esse futuro. Conhece algum aristocrata que pode lutar nessa batalha social ao seu lado?

Silêncio... Por mais de um minuto, os dois irmãos permaneceram em silêncio. Valeria, entendendo que não havia conseguido nada, nem mesmo uma resposta negativa, se virou para a porta e a abriu de uma vez.

?Verá o que lhe acontece ?Philip pediu-lhe olhando para o teto ?e deixe-me pensar.

?Precisará de muito tempo para fazê-lo, querido irmão, pois até que não tenha adoecido, não foi capaz de fazê-lo.

?Ainda tenho dez dias para sair daqui. Quando o fizer, direi o que decidi ?ele garantiu.

Valeria não respondeu. Fechou a porta atrás dela com um forte estrondo. Não foi muito, mas foi mais do que suficiente. Se Philip tinha interesse em Mary, que disso não havia dúvida sobre a maneira de chamá-la quando a febre se apoderou dele, pensaria em como alcançá-la, porque, como lhe disse, ela não era uma de suas amantes que suspirava ao ver um corpo masculino perfeito.


?Bom dia, o que deseja? ?A voz de uma mulher, que não reconheceu, a fez voltar ao presente.

?Bom dia, sou a Sra. Reform. A Srta. Mary Moore pode me receber? ?Perguntou, oferecendo-lhe um sorriso terno e encantador.

?A Srta. ainda não saiu do seu quarto ?comentou Shira sem especificar em excesso. ?Mas posso anunciar à Sra. Moore que deseja visitá-la.

?Se fizer a gentileza ?comentou, entrando por fim no hall. Ofereceu-lhe o casaco e a empregada o pegou.

Depois que a mulher deixou o casaco no guarda-roupa à direita, ela caminhou para uma sala à esquerda. Enquanto informava a esposa do médico sobre sua presença, Valeria suspirou. Durante o trajeto, pensara na mudança de atitude de Philip. Repassou todos os gestos que seu rosto mostrava ao falar sobre Mary, até avaliou o tom de voz que ele usou nas palavras. Bem, uma coisa era certa; Mary era especial para ele e não suportava a ideia de que ela estivesse com outro homem. Agora tinha que se concentrar em aproximá-los sem levantar suspeitas e procurar um motivo eloquente pelo qual aparecera às onze horas na residência dos Moore.


Capítulo VII


Enquanto esperava a criada retornar, Valeria olhou para o primeiro andar. Se Mary permanecia em sua casa e não estava doente, pode observar, através de alguma janela, a chegada de sua carruagem ou até mesmo quando desceu dela. Se queria vê-la, logo apareceria no topo da escada, como na noite em que a conheceu. No entanto, essa alternativa diminuiu com o passar do tempo... Philip estava certo? Porque havia a possibilidade de que não estivesse em casa. Talvez tivesse que comparecer em outra emergência médica e, por isso, não havia vestígios da jovem. Mas essa ideia desapareceu rapidamente, porque ao entrar no jardim dos Moore, encontrou o servo de seu irmão escondido e sem tirar os olhos da entrada, tal como havia recebido a ordem. Então... o que tinha acontecido? Mary não teria decidido fugir dos Giesler, certo? Não, isso também não parecia certo. Era verdade que elas haviam discutido quando decidiu operá-lo, mas após sua magnífica proeza, as duas conversaram como se tivesse se conhecido há uma vida. E com relação ao irmão... Desejava manter distância? Mary, na realidade, era uma covarde? Não. Não era. Se sua intuição feminina não lhe enganava, a filha dos Moore não se assustaria facilmente. Se ela própria se envolveu numa intervenção deste tipo, seria capaz de lutar contra o mundo, se fosse necessário. Tinha que haver outra razão pela qual Mary não saía de casa, uma que, por incrível que pudesse parecer, lhe causava medo.

Valeria parou de olhar para o fim da escada e começou a andar inquieta pelo hall. Já não lhe importava mais a desculpa que lhe ofereceria à Sra. Moore ao aparecer em sua casa tão cedo, mas a causa pela qual Mary não aparecia. Apesar de tudo, a opção de estar em sério perigo começou a tomar força. Como seu irmão agiria se descobrisse que a jovem estava sob alguma ameaça? Pularia da cama para fazê-la desaparecer, mesmo sabendo que colocaria sua vida em risco! Disso não lhe cabia a menor dúvida...

Assim que focou o olhar na porta da entrada, ponderando todas as alternativas possíveis para esse desaparecimento, ouviu o som fraco de sapatos enquanto pisavam no chão. Se virou rapidamente, esperançosa de que fosse Mary, mas não havia ninguém lá. Resignada, ela respirou fundo para se acalmar e...

?Valeria... Olá! Estou aqui em cima! ?Mary sussurrou se escondendo atrás do parapeito de madeira.

?Mary! ?Exclamou eufórica. ?O que está fazendo aí? Por que não desce? Vim falar com você e...

?Não levante a voz ?lhe disse, acompanhando a sua ordem um leve movimento de suas mãos. ?Não pode saber que estou aqui. Se me descobrire, queimará todos os meus livros ?ela adicionou aterrorizada.

?Quem? ?Retrucou arregalando os olhos. Subiu um degrau, para poder vê-la melhor, mas a recusa de Mary a fez retroceder.

?Minha mãe ?bufou. ?Estou de castigo. ?E a vergonha que sentiu naquele momento em confessar o que estava acontecendo fez suas bochechas corarem.

?De castigo? O que você fez? ?Valeria insistiu em saber.

?Não posso falar, Shira aparecerá em breve e não deve me descobrir ?declarou sem afastar o olhar da porta por onde a empregada tinha entrado. ?Então, veio me ver?

?Sim. Meu irmão me pediu para fazê-lo. Ele sabia, de alguma forma, que você não deixou sua casa desde que saiu da dele e estava preocupado.

?Que atencioso da sua parte! ?Exclamou, revirando os olhos.

Faltava apenas, para que seu castigo aumentasse mil anos mais, que lorde Giesler aparecesse em sua casa perguntando por que sua filha continuava trancada. Sua mãe sofreria uma repentina apoplexia!

?Não pode descer? Preciso falar com você, mas jamais imaginei que deveria fazê-lo desta forma ?disse perplexa. Não tinha irmãs, nem primas, mas filhas e elas agiam da mesma maneira quando alguém era castigada.

Estava prestes a responder quando Shira saiu. Mary amaldiçoou baixinho e franziu a testa. Não seria capaz de executar seu plano? Pela primeira vez havia se arrumado decentemente! Embora essa leve raiva tenha desaparecido quando notou que sua governanta voltou para a sala.

?Minha mãe lhe dará uma desculpa para impedir que desça. Você insista que precisa me ver ?começou a dizer enquanto se levantava e saia do esconderijo. ?Quando eu aparecer confirme tudo o que digo ?acrescentou antes de desaparecer tão rapidamente quanto um fantasma deveria.

Valeria desviou o olhar do topo da escada e suspirou. Por que eles a castigaram? Que tipo de trapaça teria feito para enfurecer a sua mãe? E... como ela iria se intrometer na ordem de uma mãe? Não era sensato! O que aconteceria no futuro quando ela estivesse no lugar da Sra. Moore? Deixaria que uma de suas filhas se livrasse de um castigo quando aparecesse alguma amiga procurando-a? E por que Philip e Mary a colocaram em uma situação tão embaraçosa? Só esperava que, depois de tudo o que estava fazendo, seu irmão aceitasse a baronia ou... o mataria!

?Sra. Reform, se fizer a gentileza de me acompanhar, a Sra. Moore ficará encantada em recebê-la ?Shira a informou.

Sem apagar o sorriso gentil do rosto, Valeria se aproximou da porta, pensando em Mary, Philip, na baronia e os castigos de seus filhos. Ela balançou a cabeça levemente, afastando tudo o que sua mente lhe oferecia. Precisava se concentrar no motivo pelo qual tinha aparecido e, logicamente, não podia confessar a verdade. Outro ponto a discutir com Philip, por que... como poderia pedir aos filhos para não mentirem quando ela foi a primeira a fazê-lo? Irritada, tendo que pular todos os princípios morais que ensinou aos pequenos, ficou em frente à entrada e observou a Sra. Moore. Ela permanecia no centro da sala, usando um lindo vestido esmeralda. Seus cabelos, recolhido em um coque esticado, e aqueles olhos claros a perseguindo sem piscar, indicavam que sua presença não era muito desejada.

?Obrigado por me receber, Sra. Moore ?comentou Valeria apertando as mãos entre as suas.

?Obrigado por ter vindo, Sra. Reform ?disse educadamente. Uma vez que se separaram, Sophia apontou para um assento. ?Shira me disse que quer conversar com Mary, mas ela ainda não desceu para o café da manhã. Imagino que esteve a noite toda lendo algum livro sobre medicina ?tagarelou, enquanto a convidada se sentava. ?Se desejar, enquanto a esperamos, podemos tomar um chá.

?Se não for muito incomodo ?considerou ela. Embora soubesse que não chegaria a tomá-lo. A ansiedade que Mary mostrou indicou-lhe que tinha tramado algo em que não incluía uma conversa amável com sua mãe e um chá.

?Nenhum ?Sophia disse sentando-se ao lado de Valeria. ?Shira, por favor, chame...

E então, como se tivesse surgido uma repentina nevasca, Shira se afastou com rapidez da porta, deixando passagem a uma jovem que corria como um galgo.

?Valeria! ?Mary exclamou, entrando na sala com uma urgência incomum. ?Que alegria vê-la novamente!

De onde veio esse rosnado? A família Moore tinha um cachorro escondido na sala? Porque esse barulho costumava ser emitido por Ricardo, o animal de estimação da família, quando Fiona puxava suas longas orelhas e Charles queria usá-lo de cavalo.

?Bom dia, Mary ?ela disse se levantando rapidamente. Como fez com a Sra. Moore, apertou suas mãos com as de sua amiga e aceitou com prazer os dois beijos que a jovem lhe ofereceu nas bochechas. ?Aqui estou ?acrescentou olhando para ela com os olhos bem abertos, esperando descobrir o que havia tramado.

?Bem, você veio no melhor momento ?Comentou com um leve sorriso. Então observou sua mãe, que franzia o cenho e olhava para ela com advertência, mas não se assustou. Ela preferia ouvir milhares de palavrões e ordens há suportar outro dia em seu quarto... costurando? Nem morta! ?Bom dia, mãe ?disse suavemente. Se aproximou dela e lhe deu dois beijos mantendo uma distância segura. Não colocaria a mão em seu braço se arriscando a ser beliscada até que o sangue corresse por aquela área de sua pele.

?Mary... ?Sophia respondeu com aparente tranquilidade. ?Estava oferecendo um chá à nossa convidada. Como ainda não desceu para o café da manhã, pensei que ainda estava dormindo.

?Que nada! Hoje eu acordei muito cedo. Mas nossa querida Shira me serviu café no quarto quando eu a informei que estava acordada ?declarou com certo sufoco, como se realmente sentisse vergonha da insinuação de sua mãe de tratá-la como preguiçosa.

?Já vejo... ?Sophia apontou para o vestido e o penteado de Mary. Ela não tinha passado os dias em uma camisola e despenteada? Que coincidência oportuna! A Sra. Reform apareceu e usava um vestido para passear...

?Ela realmente lhe ofereceu um chá? ?Perguntou, levando a mão na boca, como se a palavra chá fosse horrenda. Então ela olhou para Valeria, que parecia, além de perplexa, indisposta, já que as bochechas dela estavam pálidas. ?Não lhe disse que pode pôr em perigo a sua saúde se beber infusões?

?Em perigo? ?As duas perguntaram ao mesmo tempo.

?Sim. Outro dia me confessou que não tolera bem as infusões, que lhe produzem flatulências severas ?manifestou adotando a atitude própria de um médico.

?Não queria demonstrar desconsideração pela oferta...

E Valeria voltou a recordar seus filhos, a regra de não mentir e a maldita baronia de Philip, acrescentando a esses pensamentos a inoportuna indisposição de... flatulências? Não poderia explicar algo menos embaraçoso?

?Também temos café ?lhe ofereceu Sophia que, ao ver a cara de espanto da Sra. Reform, não pôde concretizar se era devido ao perigo que esteve a ponto de sofrer ou pela invenção de sua filha. Que ficaria de castigo mais duas semanas se a enganasse.

?Mas... não veio me levar para passear? ?Perguntou com um pequeno soluço. Diante do barulho que ofereceu, sua mãe virou-se para ela para lhe falar: ?Na outra noite, depois da minha horrível decisão de falar com lorde Giesler ?declarou com fingido pesar ?Valeria insistiu em me levar até o Gunter’s e tomar um sorvete de... amoras?

?De limão ?Valeria a corrigiu rapidamente.

Bem, a acidez do sorvete poderia se parecer com o que o estômago estava emitindo naquele momento. O que diabos estava fazendo? Por que agia dessa maneira? Ela teria enlouquecido durante o confinamento?

?De limão ?Mary repetiu esboçando um grande sorriso. ?Imagino que não tenha vindo antes por causa da maldita chuva, estou certa? ?Ela perguntou olhando para sua salvadora com olhos suplicantes.

?Se parece bom para você ?começou a dizer à Sra. Moore, que abria a boca e a fechava como se fosse um peixe fora da água ?adoraria cumprir a promessa ?acrescentou, colocando as mãos atrás das costas para poder cruzar os dedos. Ela pagaria por isso! Deus sabia que Mary pagaria a mentira, o constrangimento e a horrível tristeza que ela estava sofrendo! E, infelizmente para a jovem, ela sabia muito bem como pagaria sua dívida. Ah, se pagaria! ?Além disso, também preparei um pequeno almoço em minha casa. Se bem me lembro ?expôs, pegando uma das mãos de Mary em uma atitude carinhosa e afetuosa ?também me prometeu que visitaria minha casa e faria um exame médico completo em meus seis filhos.

?Seis? ?Mary estalou abrindo tanto seus olhos que eles podiam saltar das órbitas.

?Sim ?afirmou a mãe orgulhosa. ?Candie, Charles, Eleonora, Samantha, Fiona e o pequeno Trevor. Todos, para meu pesar, se contagiaram com um resfriado terrível e desejo que sua filha me garanta que não fiquem com sequelas ?acrescentou, esboçando um sorriso de orelha a orelha.

?Então... quer que leve minha maleta? ?Perguntou perplexa.

?Sim, acho que é o mais conveniente... ?Valeria sugeriu.

Agora sim que estava em apuros. Todo o seu plano tinha sido desperdiçado! Filhos? Seis? E teria que verificá-los um a um? Não lhe disse que eram uns trastes, que se pareciam com o pai? Como lidaria com uma tarde cercada por demônios? Só queria comprar suas revistas e tomar um pouco de ar fresco!

Sophia, que até agora permaneceu calada e duvidando da credibilidade das duas, finalmente deu um grande sorriso. O brilho que ela mostrava em seus olhos expressava tanta diversão, que Mary queria sentar no chão e começar a chorar. Seria um bom castigo, o fato de ter que atender seis filhos, e tinha merecido, por usar a pobre mulher como tábua de salvação. No entanto, não podia dar o braço a torcer tão facilmente. Devia mostrar um pouco de... perseverança?

?Se lhe prometeu que visitaria essas crianças, me parece bom manter sua palavra. Mas tenho que lembrá-la o estado em que está. Se voltar com as mãos cheias de livros, também cumprirei a minha ?afirmou, com aquele tom firme que fez os cabelos de sua filha se arrepiarem. ?Sra. Reform, confio no seu bom senso, como mãe, entenderá que uma filha deve obedecer sem reclamar; depois do sofrimento que padecemos no parto, das noites sem dormir, todas as preocupações que nossas mentes nos oferecem para canalizá-las de um jeito bom, uma filha amada e respeitada deve ser fiel aos padrões da família.

?Claro, Sra. Moore. Entendo. Como lhe disse na noite passada, dedico todo o meu bom trabalho para que meus filhos, tão insuportáveis quanto o pai, cumpram com suas obrigações e ordens.

?Sendo assim... ?olhou para Mary de cima a baixo. Ela ainda não explicou como se vestira tão rápido. Não podia alegar uma desculpa para mandá-la para seu quarto, nem atrasar a saída. Tinha que admitir que era muito esperta. Sua segunda filha, para seu arrependimento, herdara a inteligência de seu marido e a astúcia característica de sua família. Gritava alto e se orgulhava de que nem uma gota do sangue Arany corria em suas veias? Ahh! Mary estava muito errada! Faltava apenas uma coisa para sua transformação em cigana ser completa... Uma que, se não estava errada, era a razão pela qual estava de castigo. ?Comporte-se, Mary. E não faça a Sra. Reform se arrepender de ter liberado você de seu castigo ?finalmente expos.

?Obrigada mãe! ?Exclamou se lançando para ela para lhe dar um forte abraço. ?Garanto-lhe que me comportarei adequadamente!

?Não faça promessas que não pode cumprir ?Sophia a repreendeu, tocando lentamente suas costas.

?Vou cumpri-las ?garantiu com firmeza. ?Vou cumpri-las todas ?confirmou.

?Sendo sim, você pode sair. Certamente os pequeninos estarão ansiosos para ver sua mãe novamente ?Sophia disse estendendo as mãos para Valeria.

?Prometo que sua filha terá o remédio que merece ?lhe sussurrou quando lhe deu dois beijos na bochecha.

?Confio nisso ?a Sra. Moore respondeu da mesma maneira.

?Vamos? ?Interrompeu Mary ansiosamente.

?Sim ?Valeria respondeu caminhando em sua direção.

Depois que Shira lhes ofereceu o casaco e a maleta, que sua mãe guardara em algum lugar da casa, as duas desceram as escadas com os braços entrelaçados, mostrando a imagem de amigas que se conheciam desde a infância. Mary, ao sair de casa, fechou os olhos e deixou o sol tocar suas bochechas. Havia ansiado tanto por essa sensação de bem-estar! Mas finalmente conseguia respirar ar puro, desfrutar de um dia tranquilo e... comprar suas revistas!

?Bem ?Valeria começou a dizer quando as duas se acomodaram na carruagem ?pode me dizer por que te castigou?

?Por uma bobagem... ?Mary expressou enquanto dava um pequeno pontapé na maleta.

?Qual? ?Insistiu a Sra. Reform, a quem não passou despercebido o estupor de sua nova melhor amiga.

?Não lhe pareceu correto que operasse o seu irmão nu... ?declarou, encolhendo os ombros, como se ela não tivesse sido prejudicada por tê-lo visto daquela forma.

?E como pretendia que fizesse isso? ?Soltou Valeria com uma mistura de confusão e surpresa.

?Bem, segundo ela, vestido ou com os olhos vendados. ?Depois de suas palavras, soltou uma grande risada. Quando se acalmou, observou de relance Valeria e advertiu que seu rosto não mostrava a mesma diversão que ela. Moveu-se desconfortável no assento, apaziguou o riso e acrescentou: ?realmente quer que eu veja seus filhos?

?Deseja comprar as revistas que comentou? ?Respondeu, olhando para ela sem piscar.

?Claro! ?Exclamou rapidamente. ?Preciso delas urgentemente!

?Pois as terá. Mas antes faremos uma parada.

Encostou a cabeça na almofada, colocou as mãos nas têmporas e as apertou. Que Deus tivesse misericórdia, que ajudasse seus filhos e não os castigasse pelo que ela faria. Mas, depois de tudo o que havia sofrido, teria que fazê-lo ou sofreria a síncope que pobre Sra. Moore aguentou ao descobrir que sua filha tinha visto o corpo nu do seu irmão.

?Que parada? Para onde vamos? Por que esfrega a cabeça? Dói? Sofre com assiduidade de enxaquecas?

?Em primeiro lugar, não sofro de enxaqueca, mas em breve sofrerei... ?comentou, com um halo de mistério.

?Por quê? ?Mary estalou confusa.

?Porque vou ouvir você gritar ?disse fechando os olhos e se preparando para o pior.

?Por quê? ?Repetiu a moça.

?Porque primeiro vamos visitar meu irmão...

Nesse momento, Mary começou a soltar mil palavrões, a amaldiçoar o destino e a caluniar sua má sorte, fazendo Valeria temer a enxaqueca.


Capítulo VIII


Amiga?! Ninguém podia considerar amiga uma pessoa que lhe estende uma armadilha! Porque, definitivamente, foi isso o que a Sra. Reform fez.

Depois de gritar tudo o que lhe passou pela cabeça, Mary cruzou os braços sobre o peito e rosnou. Desde que Valeria deixou claro qual era seu objetivo, toda a felicidade que ela sentiu quando foi libertada da prisão de sua casa, desapareceu. Não havia mais sorrisos em seu rosto, depois de gritar, seus lábios permaneceram fechados, manteve o olhar para fora, bufou sessenta vezes e amaldiçoou lorde Giesler por mais sessenta.

Lorde Giesler! Esse nome denotava perigo para ela. Por sua culpa, ela foi punida e, por sua culpa, teria que atender seis filhos antes de poder comprar seus preciosos folhetos científicos. Sem contar com o fato de que o veria novamente. Havia punição maior no mundo? Certamente, sua mãe, quando descobrisse que havia aparecido na residência do homem proibido, procuraria uma maneira de superá-lo... E, tudo por quê? Porque imaginou que sua suposta amiga a ajudaria a sair do seu cativeiro e a faria passar um dia esplêndido. Mas é claro, tudo tinha sido distorcido, nada sairia como ela planejou.

?Mary... ?Valeria disse a ela quando a carruagem entrou no jardim de Kleyton House ?Prometo que comprará esses artigos e que não terá que suportar meus filhos.

?Promessas... promessas... ?Mary resmungou.

?Isso aconteceu por sua culpa ?ela a repreendeu, encarando-a. ?Só queria falar com você e descobrir por que não saiu de casa. Mas o meu plano foi frustrado ao me pedir que te ajudasse a se liberar do castigo ?garantiu, com o tom de voz que sua mãe usava quando a repreendia por uma atitude ruim. ?Te prometi que compraria essas revistas; e mais, eu mesma te darei pelo inconveniente que isso possa causar. No entanto, acho justo te pedir, depois de me colocar em uma situação tão comprometedora, que confirme o estado de saúde do meu irmão.

?Meu pai a visita todos os dias e ouvi-o dizer a minha mãe que sua evolução é adequada ?murmurou. Com os braços ainda cruzados sobre o peito, virou suavemente a cabeça na direção dela e a olhou como se estivesse procurando a melhor maneira de jogá-la para fora da carruagem sem ter que abrir a porta.

?E... não sente curiosidade e ter certeza com seus próprios olhos? ?continuou Valeria.

Curiosidade? O que sentia naquele momento era o desejo de subir as escadas e enredar as mãos no pescoço de lorde Giesler para sufocá-lo. Mas não era o momento nem o lugar para proclamar seu desejo em voz alta. A melhor coisa, para salvar pelo menos uma parte do dia, era fingir estar preocupada, vê-lo, sorrir para ele e, depois de confirmar que ainda era um arrogante, petulante e estúpido, retornar à carruagem para visitar a livraria do Sr. Slow antes de fechar.

?A verdade é que sim. Tem razão, Valeria. Estou muito intrigada em saber como o seu estado de saúde evoluiu e se cumpriu tudo aquilo que ordenei. ?Depois disso, sorriu.

A Sra. Reform bufou, como uma de suas meninas, entendendo que ouviriam uma repreensão bastante enfadonha. Realmente pensava que suas palavras pareciam convincentes? Só lhe faltava alongar os lábios um pouco mais, para mostrar a imagem de uma mulher digna de ser trancada no hospital psiquiátrico de Bethlem.

A dúvida sobre o plano que havia idealizado a invadiu. Mary ainda não apreciava seu irmão. Mostrou na primeira noite e continuava expressando naquele momento. Realmente não sentia nada por ele? Nem mesmo alguma admiração? Qualquer mulher, além dela, é claro, levaria mil anos para esquecer um corpo tão bonito quanto o de Philip, e procuraria maneiras de fazê-lo entender que lhe devia um grande favor. Muitas delas até tentariam se tornar suas prometidas, amantes ou... o que fosse! No entanto, Mary era imune à virilidade de seu irmão. Só faltava ela bocejar para acentuar essa indiferença. Se Philip imaginava que ela poderia se apaixonar, estava muito errado. Antes colocaria em sua cama uma égua do que a filha do médico.

Elas continuaram em silêncio até a carruagem parar bem perto da entrada principal da residência. Em homenagem a essa discrição mantida pelos funcionários de seu irmão, o cocheiro abriu a porta depois de se certificar de que não havia ninguém por perto. Em primeiro lugar, e isso deixou Valeria confusa, o funcionário ofereceu a mão para Mary. Embora, pela cara que fez, ela estava tão atordoada quanto sua acompanhante.

?Senhorita Moore ?lhe disse o lacaio quando ela aceitou sua ajuda para descer ?tenha cuidado com este último degrau. Não gostaria que sofresse um acidente.

Os olhos de Mary se arregalaram. Não sabia muito bem como tomar aquela atitude considerada. Estaria tirando sarro dela? Queria lhe dizer algo inapropriado, para que o rosto amável exibido pelo cocheiro desaparecesse, mas não ousou dizer nada. Pela primeira vez em sua vida, identificou, com surpresa, que não havia mordacidade, mas ternura e carinho. A única coisa que ela não conseguia descobrir era a razão dessa estranha cordialidade.

?Senhora Reform.

Quando Mary pousou os dois pés no chão e o homem confirmou que ela não sofreria nenhum tropeço, ele estendeu a mão para Valeria e a ajudou a descer.

As duas mulheres subiram lentamente as escadas que levavam à entrada. Surpreendidas e mudas, pois não sabiam o que dizer. Philip teria imaginado que a levaria e ordenou que os servos a tratassem com toda a gentileza que pudessem demonstrar? Não. Ele não sabia nada sobre seu plano. Isso aconteceu quando ela pediu para sair de casa para passear. Então, o que estava acontecendo?

Com milhares de ideias brotando em sua cabeça, Valeria se adiantou a Mary para bater na porta, mas ela não precisou. Quando as pontas dos dedos tocaram a aldrava, esta se abriu.

?Senhorita Moore! ?Shals exclamou ao encontrá-la. ?Que alegria vê-la novamente!

Os olhos de Mary caíram sobre a senhora Reform e então, muito lentamente, ela os dirigiu para o mordomo.

?Estavam me esperando? ?Ela perguntou com uma mistura de espanto e estupor.

?Oh, não! ?Shals respondeu se afastando o suficiente para deixá-las passar. ?O senhor não nos avisou de sua chegada, mas todos nos perguntávamos quando apareceria ?acrescentou, estendendo as mãos para ajudá-la a tirar o casaco.

?Todos? ?Continuou falando perplexa.

?Sim ?ele respondeu. Depois de pegar seu casaco e o de Valeria, para quem ele mal olhou. Shals fez um leve gesto com o queixo no lado esquerdo do primeiro andar. ?Todos ?repetiu.

Isso era uma comitiva de boas-vindas? Por que diabos todo o serviço de lorde Giesler a esperava? Eles queriam linchá-la, como fariam os aldeões ao declarar uma mulher inocente uma bruxa? Com medo, ela deu alguns passos para trás, tentando tocar na porta de entrada com as costas. Mas encontrou a Sra. Reform, que havia parado de respirar.

?O que é tudo isso, Shals? ?Valeria finalmente falou.

?Senhora... ?comentou o homem um pouco envergonhado. ?Peço-lhe mil desculpas se fizemos algo errado. Mas quando a donzela Phiona viu a Srta. Moore sair da carruagem com a maleta, a notícia se espalhou e, bem, estávamos esperando por ela por que... muitos deles precisam... desejam que...

Mary entendeu imediatamente. O que o pobre mordomo estava tentando dizer à fez se sentir tão orgulhosa e feliz que esqueceu a raiva. Eles estavam esperando por ela! Queria que ela os atendesse! Shals não disse a seu pai que nenhum dos criados pediria ajuda a outro médico além de sua filha? Bem, ele não mentiu. Aquelas pessoas fizeram isso. Eles não se importavam que ela fosse uma mulher, que ela não tinha uma licença ou que ela os obrigou a lavar as mãos mil vezes. Eles haviam determinado que somente ela era a pessoa que poderia atendê-los e lá estavam eles, em perfeita ordem de espera, aguardando sua decisão. O prazer, o bem-estar e a emoção que ela sentiu, embaçaram os olhos. Não pensaria em chorar, certo? Ela nunca chorava! Afogando aquele soluço, fazendo desaparecer o nó na garganta que a impedia de respirar, agarrou a maleta com mais força, olhou para Valeria e disse:

?Lorde Giesler pode esperar.

?Obrigado! Obrigada! ?Ouviu os servos dizerem.

?Claro ?Valeria respondeu, suportando aquele grito de felicidade que ela queria liberar. ?Se não se importa, enquanto os atende, subirei até...

Não terminou a frase, Mary não se importava com o que ela ia dizer. Antes de esclarecer qual era sua intenção, a mulher se voltou para os funcionários e começou a perguntar o que estava acontecendo com eles. O Sr. Shals olhou para Valeria e lhe sorriu.

?Se desejar, posso informá-lo que a Srta. Moore acaba de chegar.

?Quer que saia da cama e desça as escadas três em três? ?Perguntou Valeria zombando.

?Tem razão, senhora. É melhor que não descubra o que está acontecendo aqui até que a Srta. Moore termine os exames médicos ?respondeu sem apagar o sorriso.

?Vou fazer café. Acredito que Mary precisará depois dessa incrível recepção ?apontou enquanto se dirigia para a cozinha.

?Deixe-me ajudá-la, porque, como pode ver, a cozinheira é a primeira da fila ?apontou Shals andando atrás dela.

E Valeria soltou uma risada alta.


***

Não aguentaria nem mais um dia trancado naquele quarto. Seu desespero aumentava a cada minuto. A isso, acrescentou a angústia de não saber nada sobre Mary. Por que não havia saído de sua casa por tanto tempo? O que a segurava? A ideia de que ela estivesse doente permanecia latente em sua cabeça, assim como seu desconforto por não poder se levantar, se arrumar e aparecer na residência dos Moore para descobrir pessoalmente o que havia acontecido com ela. Olhou novamente para o relógio de bolso, que Shals lhe enviou, e bufou. Aquilo só lhe informava que o tempo não corria tão depressa como desejava. As horas pareciam dias e dias... anos. Sentou-se muito lentamente no colchão e procurou o livro que Martin lhe deu quando o visitou dois dias depois de Mary operá-lo. Como havia pensado que a teoria sobre a lei de gravitação universal, de um tal de Isaac Newton, poderia aliviar seu desespero? Realmente imaginou que ele passaria horas procurando o motivo pelo qual dois corpos se atraem? Não era necessário ler esse livro para saber a resposta! Ele havia sido atraído tantas vezes que podia refutar qualquer teoria absurda! Os homens atraíam mulheres, estas buscavam a excitação deles e, finalmente, essa proporcionalidade ao produto das suas massas terminava em um encontro íntimo.

?É um belo princípio matemático ?lhe disse quando ele arregalou os olhos ao descobrir o que significava para seu irmão o melhor presente do mundo. ?Você será cativado pela simplicidade da fórmula gravitacional. É, sem dúvida, a mais bela simplicidade que você pode encontrar na vida. ?E depois disso, ele sorriu de orelha a orelha.

?Você já dormiu com uma mulher, Martin? Ou você prefere ir para a cama com... isto? ?Perguntou bruscamente, apontando um dedo para a capa do livro que jogara na colcha como se estivesse queimando.

?Por que essa pergunta, Philip? ?Retrucou, eliminando o sorriso imediatamente.

?Porque não entendo como pode comparar fórmulas matemáticas com a beleza e as maravilhas da natureza. Para mim, isso não se encaixa nessas descrições. Você já dormiu com uma mulher ou ainda é virgem? ?Continuou.

?Claro que não sou! ?Exclamou envergonhado. ?Tenho minhas fraquezas...

?Carnal ou intelectual? Porque não tenho certeza de que você entende a diferença entre um bom par de seios femininos e duas maneiras de calcular o mesmo resultado ?garantiu, cruzando os braços e franzindo a testa.

?Como se atreve a falar comigo dessa maneira? Não sente remorso nem respeito por uma mulher?

?Sim, respeito todas elas. Pode perguntar as minhas amantes se elas foram respeitadas antes de deixá-las exaustas em suas camas. Mas não desvie o assunto, Martin. Você parou de ser...?

?Não vou te responder. Primeiro de tudo, sou um cavalheiro ?ele respondeu com raiva. ?Se estive com uma mulher ou com várias, isso só importa para mim.

?Ou seja, você evita falar sobre isso porque ainda não sabe o que significa prazer carnal ?afirmou enquanto olhava para ele.

?Valeria me avisou que seu humor havia piorado ?comentou indo em direção à porta?, mas nunca imaginei que você atingiria um nível tão alto de imbecilidade.

?Não é imbecilidade, mas aborrecimento ?indicou, sem poder apagar um sorriso malicioso de seu rosto.

?Nesse caso, espero que deixe de se aborrecer em breve ?declarou antes de bater a porta.

E desde aquele dia, não falou com Martin novamente. Shals informou que ele apareceu na residência para perguntar sobre sua saúde, mas, depois do que aconteceu entre eles, não teve coragem de comparecer diante dele.

Abriu o livro na página em que havia deixado na noite anterior, bufou com o aborrecimento que lhe causava e tentou se concentrar na maldita fórmula da força exercida entre dois corpos. Naquele momento, sua mente se afastou da constante gravitação universal, do valor dessa constante e da massa dos sujeitos, para se concentrar em Mary. Sim, de fato, ela foi o resultado de toda a maldita formulação que o livro comentava. Ela exercia uma força de atração até ele que o deslocava, entorpecia e o deixava vulnerável. Desde que ela jogou aqueles tubos, que para assimilá-lo com a teoria eram as massas de atração, ele não conseguiu pensar em outra coisa senão procurar o contato entre os dois. Eles tiveram, é verdade, mas em primeiro lugar ele estava inconsciente e não se lembrava de nada, e em segundo lugar o beijo não foi suficiente para obter um bom resultado. Que poder suas carícias teria em relação a ele? O que sentiria ao ver como as pontas dos seus dedos acariciavam sua pele? Se excitaria ou se incomodaria? Mary seria uma mulher apaixonada ou mostraria a mesma frieza que exibia ao mundo ao seu redor? Teria observando-o com admiração ou calculou apenas a dose apropriada de sedativo para o seu corpo grande? Philip fechou os olhos e recostou-se nos três travesseiros atrás das costas. A imagem dela apareceu sem fazer esforço. Ele a viu rindo do comentário que fez ao pai quando perguntou sobre a quantidade de clorofórmio que havia lhe dado. Um cavalo? Maldita mulher que o comparou a um cavalo! Não havia comparações mais bonitas? Teria sido suficiente com o fato de que ela evocava sua grande magnitude, que sugeria sua forte musculatura, mas não. Mary não conseguia encontrar um símile que o deixasse orgulhoso. Ele teve que se parecer com um animal de quatro patas. Agradecia a Deus por não tê-lo chamado de porco ou bezerro, mesmo assim, ainda estava descontente. Talvez o poder de sedução que ele dava a outras mulheres fosse imune a ela. Talvez ele não tenha percebido por que... Não! Ele se recusava a pensar sobre isso. Não havia nenhum homem para Mary além dele e isso a deixaria saber assim que ele pudesse deixar sua casa. Toda vez que ela saísse de casa, ele a esperaria na porta. Sempre que ela decidisse aparecer nas reuniões que os médicos realizavam as sextas-feiras, ele ficaria sentado ao lado dela, ouvindo-a atentamente e, é claro, a encontraria em todas as festas que ela decidisse comparecer. Ele pediria que ela dançasse uma, ou duas danças, ou talvez tudo o que ela pudesse suportar. Só para deixar bem claro, aos cavalheiros que a olhassem, que não teriam chance com ela. Quando um Giesler encontrava a mulher de sua vida... ninguém ficava no seu caminho!

Esse pensamento só lhe causou mais inquietação e estresse. O lençol o prendia, a suavidade do colchão o incomodava. Até parecia que os travesseiros macios tinham espinhos! Aturdido e nervoso, ele estendeu a mão esquerda para a mesinha e pegou a sineta que Shals colocou ali na mesma noite em que Mary saiu. Ele franziu a testa, apertou a mandíbula e amaldiçoou sua vida. Tudo começava a girar em torno dela. Até o motivo de tocar uma miserável sineta! Não havia dúvida, ele tinha que sair de lá e aparecer na casa dos Moore para vê-la ou ele ficaria louco.

?Maldito seja, Shals! ?Explodiu quando, depois de tocar a sineta mais de vinte vezes, seu mordomo não apareceu. ?Pode-se saber por que ninguém me responde? Ficaram surdos? ?Continuou gritando. Com raiva, afastou o lençol do corpo. Pelo menos eles tiveram a decência de ajudá-lo a vestir calções. Não seria apropriado aparecer no topo da escada nu e gritando alto que todos estavam demitidos. Sem dúvida, Valeria o levaria para fora de seu quarto, sim, mas para levá-lo diretamente a Bethlem.

?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa ?Mary o ameaçou quando, ao abriu a porta, o encontrou em pé ao lado da cama.

 

 

 


CONTINUA