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Capítulo IX
Mary sorriu quando Shals apareceu com a quarta xícara de café. Era a primeira vez que ela se sentia admirada e amada. Portanto, em nenhum momento disse algo que pudesse machucá-los, embora quisesse repreender mais de um por resmungar como uma criança pequena. Para ser honesta consigo mesma, ela começou a se sentir confortável com a atenção incontável que lhe mostravam.
A cozinheira, quando a Sra. Reform anunciou que, devido à hora, eles teriam que almoçar lá, lhe perguntou qual prato era o favorito dela, qual bolo ela queria e ordenou a um lacaio que pegasse o melhor vinho que lorde Giesler mantinha na adega. Uma das donzelas não deixou de elogiar a grande habilidade que suas mãos possuíam quando espalhou um creme sobre as fendas de seus antebraços. Para que deixassem de elogiá-la, disse que sua irmã Elisabeth havia feito a pomada com as flores que ela cultivava em sua estufa e contou, com orgulho sincero, as inúmeras qualidades que Eli possuía para criar novas flores e pomadas curativas. Quando chegou a vez do cocheiro, ele sorriu para ela. Então ele explicou que tinha um leve desconforto na garganta. Depois de inspecionar essa área, ela indicou que deveria tomar infusões com mel e que precisava abandonar o hábito absurdo de fumar. Logicamente, a segunda ordem não agradou o lacaio gentil que, depois de ouvi-la, enrugou a testa. No entanto, não respondeu. Fez uma leve reverência, como se fosse uma dama, e se foi. Mary temia que, quando saísse, aliviaria sua raiva com outro cigarro.
Valeria, depois de voltar da cozinha pela quarta vez, sentou-se ao lado dela e observou com expectativa o que estava fazendo. Ela a acompanhou em suas gargalhadas, apoiou sua repreensão e garantiu que todos seguiriam suas ordens.
?Prometi a você que não visitaria meus filhos, mas acho que essa opção foi pior. ?A senhora Reform comentou quando as duas ficaram sozinhas na sala, onde Mary decidiu acomodar suas consultas repentinas.
?Não precisa se desculpar pelo que aconteceu, garanto que foi a melhor coisa que aconteceu comigo em cinco dias ?comentou antes de pegar a xícara. Ela tomou um gole leve e fechou os olhos para apreciar o sabor delicioso.
?Juro que não sabia de nada e que tudo isso me surpreendeu tanto quanto você Valeria insistiu.
?Shals disse ao meu pai que, depois do que fiz com lorde Giesler, ninguém nesta casa procuraria outro médico para vê-los e, como vi, não mentiu. ?disse sorrindo e curiosamente feliz.
?Shals é um bom homem... ?Valeria refletiu. ?E teve muita paciência com meu irmão ?acrescentou.
?Não ficará com raiva pelo que fiz, certo? ?Mary de repente soltou, depositando a xícara na mesa.
?Quem? Meu irmão? ?Mary assentiu. ?Não, claro que não! Philip é incapaz de ser cruel com as pessoas que trabalham para ele! Ao contrário! Se não acredita em mim, pode perguntar a eles. ?Diante do beicinho de irritação que Mary fez, ela continuou: ?Não sei o que aconteceu entre vocês dois, mas tenho certeza que não foi agradável. De qualquer forma, eu gostaria que desse a ele uma chance para mudar sua opinião sobre ele. ?Pegou sua xícara e tomou lentamente, sem desviar o olhar da jovem. Ela parecia estar reconsiderando suas palavras. Mas, pela maneira como franzia a testa, a esperança de que esquecesse qualquer coisa negativa se dissipou. ?Como disse na noite em que nos conhecemos, meus irmãos e eu crescemos em Brink Lane. Nossos pais, depois de deixarem a Alemanha, se estabeleceram lá e sobrevivemos com o pouco que obtinham dos trabalhos que lhes confiavam ?começou a narrar com o objetivo de amolecer aquele coração duro.
?Deve ter sido muito difícil para seu pai se adaptar a uma vida de necessidades depois de ter nascido e criado como um barão ?Mary declarou, tentando não lhe causar muito dano diante da lembrança.
?Estava muito apaixonado pela minha mãe e isso era a única coisa que precisava até que morreu ?suspirou triste. ?Te contei que morreu em seus braços e que minha mãe não quis se afastar dele, pois acreditava que, a qualquer momento, acordaria?
E uma emoção estranha para Mary oprimiu-lhe o peito.
?Se amavam muito? ?Perguntou perplexa.
?Eu nunca vi um casamento que se amassem tanto, e isso que eu daria minha vida por Trevor. Onde quer que estejam, certamente nada e ninguém poderá separar esse amor intenso e verdadeiro.
E essa era outra razão pela qual nunca se apaixonaria. Ela, por decreto da sociedade, teria que ocupar um segundo lugar no casamento. Seria obrigada a deixar tudo o que amava para atender às demandas de seu marido. Tal responsabilidade, como sempre havia imaginado, a transformaria em uma desgraçada. Procuraria uma maneira de não ter filhos, para que eles não fossem os reflexos de sua tristeza. Não. Absolutamente, ela não se casaria jamais. Mesmo depois de sua mãe ter sofrido mil apoplexias quando presumiu que sua segunda filha tinha decidido ser uma solteirona.
?Como conseguiu superar sua morte? ?Disse depois de afastar rapidamente suas próprias suposições.
?Não superou ?Valeria respondeu se levantando da cadeira. ?Minha mãe morreu logo depois.
?Que doença tinha? ?Mary insistiu, também se levantando da cadeira.
?Tristeza. Uma que nenhum médico pode curar com medicamentos ou operações.
?Sinto muito... ?murmurou envergonhada.
?Não sinta, eu parei de fazer isso há muitos anos. Ela queria estar com ele, queria ficar ao seu lado e lutou até que conseguiu.
?Como sobreviveram? ?Perguntou e, em seguida, se arrependeu de fazê-lo.
Não estava ciente da dor que Valeria mostrava em seu rosto? Por que insistia? Estava interessada em saber que vida lorde Giesler teve no passado? Não podia imaginá-lo mendigando nas ruas! Era tão... e se mostrava com tanto... Impossível!
?Ainda estou me perguntando. Talvez eles se tornaram nossos anjos da guarda e fizeram tudo o que puderam para que seus filhos vivessem, ou talvez o destino teve piedade de três pobres órfãos. ?Ela deu de ombros e, apesar da tristeza que sentia quando se lembrava daqueles anos, esboçou um sorriso. ?Quem sabe o que a vida nos reserva, Mary? Hoje pensa uma coisa, amanhã surge outra e, quando abre os olhos no terceiro dia, decide algo que não pensava antes.
?Bem, nisto tem razão. No entanto, tenho que lhe dizer que não há dia em que eu acorde e confirme um pensamento ?comentou, finalmente esboçando um grande sorriso.
?Qual? ?Valeria quis saber enquanto caminhavam em direção à porta.
Estava na hora de Mary visitar seu irmão. Se não estava enganada logo começaria a chamar Shals para perguntar se tinha notícias dela. Como agiria ao vê-la? Ele ficaria perplexo? Pensaria que estava vivendo um sonho? O que quer que fosse, apenas esperava que se lembrasse de que sua amada irmã a levara até ele e que a questão do baronato ainda estava pendente.
?Quer saber qual é a única ideia que consolidei ao longo dos anos? ?Mary respondeu com diversão.
?Sim.
?O de não procurar um marido. Nenhum homem será bom o suficiente para...
Não terminou sua estudada e perfeita exposição, pois, ao sair no corredor, observou que Shals subia e descia indeciso as escadas.
?Shals? ?Ela perguntou andando com firmeza em direção ao homem. ?O que aconteceu?
E a resposta foi dada pela voz de um Titã mal-humorado.
?Maldito seja! Ficaram surdos? ?Ouviu tão claramente que parecia que lorde Giesler estava ao seu lado.
?É um asno! Mas que modos são esses? ?Com raiva, arregaçou as mangas do vestido e subiu as escadas. ?Darei a ele a bronca que merece! Como pode ser tão insolente?
?Senhora... Faça algo! ?Shals pediu suplicando a Valeria. ?Não pode aparecer assim! Vai matá-lo!
?Seus planos e os meus não são os mesmos? ?Valeria perguntou com um sorriso de orelha a orelha.
?Senhora... não sei a que se refere? ?O mordomo abaixou ligeiramente a cabeça.
?Shals... você não tem por que se envergonhar. Eu li em seus olhos quando você a viu chegar. Você, tal como eu, quer que a Srta. Moore repare no meu irmão, certo?
?Senhora, tenha certeza que sim. Mas não acho que goste muito da ideia que tem a senhorita Moore agora mesmo sobre... reparar no meu senhor ?comentou com medo.
?O que você aposta que o deixa tão manso quanto um cordeirinho?
?Jamais apostarei com a esposa do antigo dono de um clube! ?Shals exclamou com aparente raiva.
?Porque sabe que perderia... certo??Insistiu, estreitando os olhos.
?Até os cílios, senhora Reform! Com você, perderia até os cílios! ?reiterou antes de seguir para a cozinha.
Valeria olhou para o primeiro andar. Mary já havia se virado para o corredor. Temia que a vida entediante de seu irmão cessasse no momento em que ela abrisse a porta e... que coincidência inoportuna que Mary o visitasse justamente quando todos tinham tarefas importantes a fazer! Pena que eles não pudessem estar presentes! Que pouco decoro! Uma mulher solteira ficar dentro do quarto de um homem... nu! O que pensariam da hospitalidade dos Giesler?
Sorriu de orelha a orelha, apertou os punhos em sinal de vitória e virou-se para a cozinha.
***
Todos os palavrões que decidiu soltar quando abrisse a porta desapareceram instantaneamente. Mary soltou abruptamente o ar que continha seus pulmões e fechou a boca com força. Ficou imóvel, paralisada da cabeça aos pés quando o viu em pé, de costas para ela. O quarto estava iluminado, porque alguma donzela abriu as cortinas e as janelas, permitindo-lhe observar claramente o quarto. Uma brisa suave, produzida pela corrente entre a porta e a janela, a recebeu assim que chegou. Mas ela não prestou atenção em como as belas cortinas se moviam, ou como a luz do sol refletia no espelho colocado em uma cômoda grande, ou se os móveis eram escuros, foscos ou devorados por cupins. Seus olhos focaram apenas nele, fazendo com que uma voz em sua cabeça evocasse a palavra perigo. Tudo o que tinha pensado gritar-lhe enquanto chegava desapareceu instantaneamente. Que palavras tinha escolhido? Que insultos lhe ocorreram? Nada. Ela não se lembrava de nada... No profundo suspiro que deu logo que o viu, a mulher enfurecida desapareceu, a pessoa que tinha infinitos palavrões mentais e, e em seu lugar se acomodou uma mulher que não podia afastar os olhos de um homem por sentir... desejo. Seu coração acelerou tanto que podia sair do peito, sem ter que usar um bisturi para abri-lo. Um calor raro subiu do centro das pernas para as bochechas, transformando-as em duas chamas de fogo. Respirou fundo para aplacar aquela emoção incomum. Não conseguiu. Seu batimento cardíaco ainda estava acelerado, suas bochechas continuavam acesas e a leve dor abdominal, que lembrava a que sofria toda vez que ia dormir sem janta, ficou mais torturante. Ela o comparou com o chefe de uma tribo da pré-história? Bem, essa ideia ainda era verdadeira. Concluiu que se tivesse vivido na era grega, lorde Giesler teria sido o muso de inúmeros escultores? Bem, isso também seria verdade. Mesmo que não quisesse reconhecê-lo, embora negasse essa ideia pelo resto da vida, morreria sabendo que esse homem era o único no mundo que lhe causava algum interesse pecaminoso. Que mulher seria incapaz de admitir que não sente atração por esse corpo? Era um espécime perfeito: suas pernas eram fortes e longas, assim como seus braços e ombros. Ele tinha uma cintura estreita, como os quadris. Que, felizmente para ela, permaneceram escondidos sob os calções. Disse que era perigoso? Bem, confirmava. Esse homem emanava perigo, não para os outros, mas apenas para ela, porque a atração por ele se tornava mais intensa, menos suportável. Deu um pequeno passo entrando no quarto, rezando pela primeira vez em sua vida ao Deus em que todos acreditavam, para que se virasse e quebrasse seu mutismo absurdo, seu encantamento, o feitiço... Mas ele não fez isso. Somente quando percebeu que se inclinava um pouco para a frente e colocava as mãos no curativo em volta da cintura, como se fosse uma faixa bonita, aquele bom senso, que saíra de sua cabeça, voltou a avisá-la de que o lorde estava prestes a realizar o maior disparate do mundo. Ela franziu a testa, como havia feito durante a subida nas escadas e na pequena corrida pelo corredor, e finalmente ela pôde gritar:
?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa.
?Mary? ?Giesler perguntou atordoado quando se virou muito lentamente em sua direção.
Mary engoliu em seco enquanto contemplava aquele rosto masculino. Ele estava sorrindo. Sim, seus lábios esboçaram o sorriso mais maravilhoso do mundo e, embora nunca tenha imaginado que a receberia com entusiasmo, porque ninguém no mundo, exceto sua família, a recebia com amor, ele estava fazendo isso. Havia visto alguma vez uma boca tão bonita, tão gloriosa? E para sua perdição e deleite, havia descoberto a suavidade daqueles lábios...
?Senhorita Moore.?O corrigiu, adotando a postura de uma mulher fria. ?Lembro-lhe que não deve me tratar com tanta familiaridade, lorde Giesler ?Acrescentou andando altivamente em direção aos pés da cama. Ela colocou as duas mãos na cintura e olhou para ele como se quisesse lhe arrancar os olhos. ?Que diabos está fazendo? Que parte de... “não deve se mexer”, não entendeu? Por acaso ficou surdo? Talvez seja por isso que pensa que seus fiéis funcionários estão ?garantiu com firmeza.
?Mary... ?sussurrou repleto de felicidade, como se ao seu lado estivesse um anjo iluminado por uma luz divina, em vez de uma mulher que o ameaçara lhe dar outro grande tapa. ?O que faz aqui? Como você está?
?Definitivamente... está surdo! ?Explodiu, revirando os olhos. ?Explodiu, revirando os olhos. Disse para não me chamar pelo meu nome e não preciso que se preocupe comigo, é você quem deve permanecer deitado na cama.
?Pretendia... ?Philip começou a dizer enquanto tentava se sentar novamente, um ato que o fez rosnar de dor.
?Maldição! ?Exclamou Mary indo em sua direção o mais rápido possível.
Sem pensar duas vezes, segurou os braços de Philip com força e o ajudou a se sentar o mais devagar possível. Depois que ele conseguiu, levantou as pernas e as estendeu no colchão. Quando se virou para ele, para gritar com ele até ficar sem voz, ficou sem palavras novamente, pois descobriu que os olhos azuis do lorde brilhavam, como se os raios do sol que passavam pela janela os impactassem neles. Seu rosto, recém barbeado, o tornava mais atraente, como se fosse possível, e seu cabelo não era mais escuro, mas brilhante e... lindo. Desviou o olhar quando uma rara dor no estômago a trouxe de volta ao mundo frívolo da sensatez. Não devia se deixar levar por atrações absurdas, nem por deslumbramentos miseráveis. Era uma Moore da cabeça aos pés e nela não podia surgir algo tão absurdo quanto o desejo por um homem!
?Segundo entendi, sua melhora é notória. Quer que todos os avanços que teve durante estes cinco dias retrocedam por tentar caminhar sem ajuda? ?Comentou com um tom menos rude enquanto lutava para acomodar as pernas que já estavam bem colocadas.
Aquilo que cheirava era loção de barbear ou perfume? Estava prestes a fechar os olhos e inspirar profundamente, mas a sensatez agiu novamente. Ela se afastou um pouco e, com as pontas dos dedos, pegou a parte de baixo do lençol para estendê-lo até cobrir o queixo. Quanto menos pudesse observar, menos tentação sentiria. Porque aquele corpo fazia seu sangue ferver, pensar em coisas impuras e, acima de tudo, a fazia perder a cabeça. Pelo menos, quando sua mãe a repreendesse por se colocar em outra situação comprometedora, podia se defender dizendo que ela o havia coberto e que ele estava usando calções que escondia seus atributos masculinos.
?Pensei que tinha perdido o interesse em mim ?Philip apontou em uma voz queixosa enquanto afastava o lençol.
Queria sufocá-lo? Porque teve essa impressão ao ver como tentava cobri-lo até o pescoço. Ou talvez houvesse outro motivo menos... sinistro? Suportou uma risada repentina e, muito lentamente, se descobriu até a cintura, exibindo a imagem completa de seu peito robusto. Queria descobrir o que havia se perguntado tantas vezes. Mas o leve sorriso, que foi incapaz de esboçar, se dissipou quando viu que ela estava voltando para o pé da cama e ainda demonstrava repulsa. Tão desagradável estava?
?Deixei-o em boas mãos, milorde. Meu pai, caso não se lembre, tem a habilidade de curar pessoas ?respondeu.
?Mas você me operou e, segundo entendi, lutou contra todos aqueles que se opuseram para não me deixar morrer ?contestou.
?Sou... como diria? Uma pessoa de bom coração? ?Respondeu, colocando as mãos no dossel de madeira.
Por que não conseguia parar de olhar para os lábios dele? Sua parte insensata queria senti-los novamente? Quantas vezes relembrou aquele momento? Um milhão? E, quantas vezes disse a si mesma, que o tapa havia sido a melhor coisa que tinha feito em sua vida? Uma, talvez? No caso hipotético de que estivesse pensado, pois não tinha mais certeza se o fez durante o confinamento forçado. Contou teias de aranha ou enumerou todos os possíveis defeitos de lorde Giesler? E por que sua mente não parava de imaginar como teria sido um beijo mais intenso? Essa pergunta aumentou muito seu desejo carnal... Maldita fosse, a parte primitiva do ser humano! Haviam construído grandes edifícios, navios para viajar de um continente a outro, chapéus horríveis com penas de pavão, mas... haviam conseguido fazer desaparecer o instinto carnal absurdo com o qual todo ser humano nascia? Não! As pessoas ainda eram primatas movidos por uma necessidade sexual absurda...
?O que tem, Mary ?enfatizou seu nome, embora ela não gostasse de ouvi-lo dizer. ?É uma habilidade mágica. Agradeço a Deus todos os dias pelo fato de aparecer e ter decidido salvar minha vida. ?Ele declarou com toda a sinceridade que podia oferecer naquele momento, porque sua mente procurava palavras que a deixassem orgulhosa enquanto um desejo masculino lutava para tirá-lo da cama, pegá-la nos braços, apoiá-la contra a parede e beijá-la com tanta paixão que os dois ficariam sem respiração.
?Não... Não deve... me dizer essas coisas, milorde.
Gaguejava? Ela?! Por que diabos fazia isso? Os servos não haviam oferecido milhares de elogios? Não começava a se acostumar com esses elogios? Então... por que ela se sentiu tão intimidada ao ouvir isso dele? E, naquele momento, toda a força, toda a raiva e toda a firmeza que sentia sempre que corria perigo, desapareceu como a neblina quando o sol aparece. Tinha que sair de lá o mais rápido possível. Até o ar parecia mais denso que nem conseguia respirar! Havia prometido a Valeria que iria visitá-lo, pois faria isso. Confirmaria o bom trabalho de seu pai e sairia mais rápido do que quando entrou.
?É verdade ?Philip garantiu, e não passou despercebido que, pela primeira vez desde que a conhecia, o escudo que protegia a mulher que ele desejava descobrir, desapareceu. ?É uma mulher engenhosa, corajosa e incrível. Uma mulher a quem devo minha vida ?garantiu solenemente. ?Estou em dívida com você. Pode me pedir o que quiser que encontrarei uma maneira de consegui-lo.
?Peço a lua, lorde Giesler ?disse.
Se recuperou o mais rápido que pôde para não mostrar uma imagem que estava escondendo desde que descobriu a maldade das pessoas. Ela não sofreria como Anne ou Elizabeth. Ela era diferente!
?Prometo que vou alcançá-la... ?Ao tentar se reclinar, outra cãibra terrível o nocauteou. Ele jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e respirou fundo.
?Relaxe, por favor ?lhe pediu em voz baixa quando veio até ele. ?Não deve fazer esforços desnecessários ?acrescentou, enquanto colocava as duas mãos sobre o curativo e apalpava lentamente para confirmar que não havia umidade.
?Me pediu a Lua, Mary Moore Arany, e eu juro que te darei ?comentou, sem abrir os olhos. Não queria assustá-la, não queria que se afastasse do seu lado e se para isso tivesse que ficar doente a vida toda, que Deus o concedesse!
?Estou satisfeita em poder comprar as publicações médicas que o Sr. Slow terá guardado para mim ?sussurrou, enquanto tomava a decisão de remover o curativo e confirmar que a ferida ainda estava fechada.
Olhou em volta e franziu o cenho. Onde diabos estava sua maleta? Era mais fácil para ela cortá-lo com a tesoura do que desembaraçá-lo gradualmente porque, dessa forma, ela precisaria tocá-lo, precisaria se aproximar o suficiente para poder inspirar aquele cheiro muito atraente para ela e que... Não havia lido em algum volume científico que o ser humano descobria a atração por uma pessoa simplesmente pelo cheiro? Bem, se essa teoria era verdadeira, tinha que concluir que não era ódio que sentia por lorde Giesler, mas... Algo mais próprio das Arany do que dos Moore! Irritada consigo mesma, desamarrou o nó que seu pai havia feito com as pontas do curativo e desenrolou-o com os olhos fechados. Enquanto não olhasse, a situação estaria sob controle...
?Por que não saiu de sua casa durante esses cinco dias?
A pergunta fez Mary abrir os olhos e olhá-lo ferozmente. Ele queria rir dela? Queria ridicularizá-la? Porque se lhe dissesse o motivo, nenhuma humilhação passada seria tão imensa quanto a que ela sofreria no presente. No entanto, ao descobrir que ele não a olhava, que mantinha seus cílios louros preciosos e longos unidos, relaxou e continuou a tarefa, envolvendo-se novamente em um estado de bem-estar ilógico para ela.
?Esteve doente? ?Insistiu em descobrir.
?Não ?respondeu.
?Então? ?Entreabriu o olho esquerdo e sorriu ao observar a raiva que exibia seu rosto. Não entendia muito bem se era devido à pergunta ou à repulsa diante da sua proximidade. Se fosse a segunda opção, ele estava morto. Porque, ao contrário de Mary, ele estava voando sem asas e pisando nas nuvens sem atravessa-las. Como o resto da humanidade definiria uma emoção semelhante?
?Estava de castigo ?finalmente declarou. Fixou os olhos no peito de Giesler, tentando definir se sua respiração ficaria agitada ao segurar uma risada. No entanto, permaneceu sereno, calmo e isso a incentivou a continuar: ?Minha mãe não achou engraçado que sua segunda filha, quem ela queria ver casada um dia, operasse um homem solteiro enquanto ele estava nu.
Ele ainda estava calmo, como se suas palavras não o afetassem. Ele não soltaria uma risada ou zombaria disso? Apoiaria a decisão de sua mãe? No entanto, quando colocou sua mão direita sobre o lado, para realizar um leve puxão e tirar o resto do curativo, observou que estava fingindo essa tranquilidade, já que seu batimento cardíaco era tão rápido quanto o dela. O que essa alteração significava? Concordava com o castigo ou se sentia culpado?
?Explicou que me deixou dormindo, que sua raiva não tinha raciocínio lógico? ?Ele perguntou, suportando estoicamente a dor que apareceu em seu peito quando descobriu que Mary havia sido injustamente punida por causa dele.
?Sim ?respondeu pouco antes de se ajoelhar para poder observar, de uma posição mais próxima, a ferida.
Como o pai lhe explicou, a sutura foi excelente. Ele mal teria uma linha branca fina no futuro. Sem dúvida, essa costura, apesar dos nervos que sofreu, era perfeita, como se estivesse costurado a vida toda. De repente, ela começou a rir enquanto deduzia a razão pela qual sua mãe havia levado o bastidor, os fios e o enorme tecido para o seu quarto.
?O que é tão engraçado, Mary? ?Philip estalou movendo-se suavemente para observá-la melhor.
?É incrível! ?Exclamou, incapaz de parar de rir. ?Só ela pode inventar uma tolice semelhante!
Intrigado, Philip queria se virar para Mary, mas ela o impediu, colocando novamente uma de suas mãos no centro daquele peito masculino e largo.
?Não se mexa, milorde. Agora é muito perigoso ?ela pediu, com uma voz suave.
?Então me responda ?ele implorou, num tom tão suplicante que Mary sentiu o desejo de abandonar toda a frieza que ela havia decidido mostrar, sentar ao lado dele e conversar como se fossem dois bons amigos.
?Já lhe disse que estive de castigo... ?começou a dizer.
?E que o motivo foi injusto porque, apesar de me ver nu, eu estava inconsciente e não era perigoso para você ?a interrompeu.
?Você não é perigoso, lorde Giesler, mas arrogante ?declarou, com um sorriso de orelha a orelha.
?Bem! Acaba de destroçar meu ego, Mary Moore Arany! ?Ele exclamou, colocando as mãos no peito. Ele a tocou. Havia chegado perto o suficiente daquela mão macia para roçar seus dedos suaves. Mas, para sua decepção, ela a afastou rapidamente. ?Tantos anos pensando que sou irresistível para as mulheres e agora acontece que alguém me garante que não sou tão sedutor quanto acreditei durante todo esse tempo ?acrescentou ironicamente.
?Vi muitos homens que...
?Quantos? ?Perguntou, arregalando os olhos e se levantando.
?Não vai me ouvir? ?Respondeu assim que jogou o curativo em algum canto do quarto. Se levantou do chão e colocou as duas mãos no peito de Giesler, para forçá-lo a se reclinar novamente na cama.
«Maldita insistência!» Mary pensou ao sentir como suas mãos aumentavam de temperatura, ao perceber a aspereza daquele pelo masculino e perceber que a respiração de lorde Giesler estava alterada, como se ele tivesse corrido atrás de um galgo.
?Quantos homens você viu nu, Mary Moore Arany? ?Insistiu, entrelaçando os dedos de cada mão nos pulsos dela.
?Isso importa para você, lorde Giesler? ?Se aventurou a dizer.
De repente, ela sentiu que os polegares do homem acariciavam aquela parte de sua pele, queimando-a sem compaixão. Queria se afastar, queria se distanciar, precisava evocar seu bom senso! Mas... não podia. Ele arrebatou toda a força que teve até agora, deixando-a vulnerável, fraca.
?Sim, me importa ?Philip sussurrou enquanto fixava os olhos naqueles belos lábios vermelhos.
?Por quê? ?Mary insistiu em uma voz que não podia reconhecer como sua.
?Porque quero saber quantos homens duelarei em breve ?afirmou antes de agarrar com força os pulsos e estendê-los para ambos os lados, fazendo com que ela caísse de bruços sobre ele. Com tão bom acerto que aquela preciosa boca impactou sobre a sua.
Antes que Mary tivesse tempo suficiente para reagir, Philips soltou os pulsos. Ele colocou uma mão atrás da nuca e a outra nas costas dela, imobilizando-a. Seus maravilhosos olhos azuis a observavam incrédulo e parecia que saltariam de suas orbitas. Ele hesitou. Por um segundo, duvidou da decisão que havia tomado, mas imediatamente a apagou da sua cabeça. A amava, desejava, precisava e queria que ela fosse... sua. Lentamente, ele pressionou seus lábios nos dela, pedindo-lhe para separá-los, mas Mary não entendeu bem o propósito que se havia definido. Ninguém a beijou com paixão? Mary foi sincera? Que Deus se compadecesse de sua alma perdida porque iria desfrutar muito ensinando-lhe o que significava a palavra prazer!
Atordoada não era a palavra que a definia exatamente. Nem mesmo outra poderia descrevê-la perfeitamente! Sua boca pressionava a dele, notava o calor do ar que fazia ao respirar tocar suas bochechas e percebia, com incrível precisão, como os batimentos de seu coração e os do lorde palpitavam juntos. Tentou se separar quando suas mãos ficaram livres, mas não conseguiu se mexer. Aquele perverso colocou uma de suas grandes mãos na nuca e a outra nas costas, impedindo-a de fazer qualquer movimento para se distanciar. Em pânico, ela abriu os olhos e tentou gritar, no entanto, algo aconteceu que a deixou tão confusa que a silenciou. Esse algo tinha um nome: língua. A ponta desse órgão muscular masculino tocou seus lábios, incentivando-a a separá-los. O que se propunha? O que devia fazer? Poderia considerar esse momento como um teste médico? Oh sim! Claro! E o adicionaria a qualquer manual sobre as interações sexuais entre um homem e uma mulher! Apertou os lábios com força, certificando-se de não deixar a língua ousada e descarada passar.
No entanto, essa ideia firme foi suprimida de sua mente quando as pontas dos dedos, colocadas em seu pescoço, começaram a acariciá-la lentamente. Encantada por essas carícias suaves, seu corpo relaxou e mergulhou em um improvável estado de bem-estar. Era consciente de como seus pelos se arrepiavam, como o calor nascido em seu sexo aumentava e como todo o seu ser ansiava por algo que ela nunca havia provado. Pela primeira vez, ela estava em um estado de fluidez e despreocupação, como se aquele homem a mantivesse protegida, segura e não existissem problemas a enfrentar. Havia apenas eles... dois. Lorde Giesler aproveitou esse momento de embriaguez erótico para invadir o interior da boca dela. Aquela língua masculina a possuiu, a acariciou com anseio, com desejo e com tanta paixão que finalmente fechou os olhos e se deixou levar. Nunca imaginou que uma coisa tão ridícula pudesse provocar algo tão grandioso! Agora entendia a razão pela qual Anne havia sucumbido com tanta facilidade. Se um homem a tivesse beijado dessa maneira, nada e ninguém a impediria de acabar consumindo a paixão iniciada. De repente, ouviu um rugido brotar da garganta masculina. Quando tentou se concentrar no motivo pelo qual fez esse som, outro saiu ainda mais alto. Se lorde Giesler tivesse sido o chefe de uma tribo, esse som poderia defini-lo como um chamado de posse, territorialidade, orgulho e glória, tornando-a sua única companheira de vida. Mas... Isso devia ser uma tolice, certo? Ele não podia reivindicá-la como sua, não havia nada científico que pudesse explicar tal suposição.
No entanto, mesmo que tudo fosse imaginário, era bonito deixar seu corpo relaxar e ser enganado acreditando que sua casa estava nos braços daquele homem. Um lar fictício, é claro, pois ela nunca pensou em morar naquele corpo masculino. Com coragem e vontade de experimentar, ela imitou os movimentos da pecaminosa língua viril até que ambas se encontraram. O sabor do café, que havia tomado antes de subir, se expandiu pelas bocas. Era como se estivesse tomando novamente um gole daquele líquido delicioso adoçado com o sabor rico dele. Foi nesse momento que admitiu com resignação que nunca mais tomaria um café tão gostoso e excitante. Os beijos eram sempre assim? Davam tanto prazer as duas pessoas? Porque não queria parar, era mais, doía ter que fazê-lo, mas a necessidade de respirar se tornou inegável. Quando abriu os olhos, notou que as pupilas de lorde Giesler haviam se dilatado e que suas íris estavam escuras, expressando um sentimento muito diferente da indiferença...
No momento em que sua mente começou a enumerar as possíveis razões pelas quais ele a olhava com tanto ardor, ele pegou seu rosto com as duas mãos e aproximou-o o suficiente para notar novamente o calor da respiração e a suavidade dos seus lábios.
?Vou te dar a lua, Mary ?ele declarou antes de beijá-la novamente e repetir um beijo atrevido, ousado, indecente e maravilhoso.
Mas tudo o que é belo não dura para sempre...
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou Shals batendo à porta com insistência.
?Não! ?Ele respondeu.
?Sim! ?Ela disse, se afastando rapidamente do seu lado.
Capítulo X
Ele devia lealdade ao seu senhor...
Desde que o contratou, catorze anos atrás, ele nunca o deixou indefeso e nessa ocasião também não o faria. Ele saiu da biblioteca, onde havia se escondido os últimos dez minutos para evitar encontrar a Sra. Reform e, depois de confirmar que não havia ninguém, caminhou rapidamente pelo corredor. Ele carregava a maleta da senhorita Moore na mão direita, essa era a desculpa que daria quando aparecesse no quarto. Depois de confirmar o estado de seu senhor, a agonia que estava sofrendo desde que a jovem subiu as escadas, pronta para colocar lorde Giesler em seu lugar, desapareceu. Com a agilidade de um ladrão habilidoso e um sorriso de satisfação que cruzava seu velho rosto, Shals começou a subir as escadas, fazendo o menor ruído possível. No entanto, seus olhos se arregalaram quando ouviu alguém bater na porta. Ele esperou o tempo suficiente, plantado lá, para confirmar que, exceto ele, ninguém mais ouvira as batidas insistentes da aldrava na madeira. Ele bufou, pois seu dever como mordomo principal o acusava de não cumprir a tarefa que lhe fora confiada. Pôs a maleta no degrau e recuou tudo o que lhe custara tanto. Parou em frente à entrada, esticou o colete de seu traje e mostrando a severidade própria do homem de confiança do lorde, abriu.
?Shals! Ainda bem que me ouviu! Estou há mais de cinco minutos batendo na porta! ?Martin disse enquanto tirava o casaco para oferecer a ele.
?Sinto muito, senhor, mas hoje temos a casa um tanto agitada ?comentou como um pedido de desculpas.
?Philip tem piorado? ?Ele perguntou inquieto olhando para o andar de cima enquanto tirava as luvas.
?Não, para alívio de todos nós, nosso senhor está muito bem ?explicou depois de pendurar o casaco de Martin no cabide e colocar as luvas na gaveta da cômoda da entrada. ?A causa da agitação se deve a...
?Martín! ?Valeria gritou quando apareceu no corredor. ?Que alegria vê-lo novamente! Desde quando está em Londres? Por que não veio me visitar? Esqueceu que tem seis sobrinhos esperando a presença de seu tio favorito? ?Acrescentou antes de envolvê-lo em um forte abraço maternal.
?Cheguei há alguns dias, peço desculpas por não ter aparecido em sua casa neste momento, mas tinha um assunto importante para resolver e não podia atrasá-lo ?desculpou-se, esboçando o sorriso mais terno e mais doce que um irmão que amava sua irmã poderia mostrar.
?Que assunto? ?Valeria entrelaçou seu braço esquerdo no direito de Martin.
?Falaremos depois disso, se não se importar. Eu gostaria muito que Philip estivesse presente quando oficializasse.
?Vai casar? ?Perguntou erguendo as sobrancelhas. ?Você conheceu uma mulher?
?Realmente pensa que sou incapaz de tirar os olhos dos livros? ?Perguntou com aversão.
?Eu não disse isso! Sei que, quando fizer isso, levantar seus olhos bonitos dos livros, encontrará a mulher que espera e nesse dia...
Shals aproveitou a distração dos irmãos para subir as escadas novamente. Teria que acabar com a agonia que sofria por não saber o que estava acontecendo no quarto do lorde. Ele precisava confirmar que a Srta. Moore não tinha gritado com ele, cuspido ou... matado. Daí que permanecessem em silêncio absoluto. Ele pegou a maleta e subiu os últimos degraus. Caminhou pelo corredor o mais rápido que seus pés o permitiam e, quando alcançou a porta do quarto do senhor que estava aberta, ficou surpreso ao ver a imagem que era oferecida lá dentro. Eles não eram capazes de ver a imagem que mostravam, pois ambos tinham os olhos fechados. Mas ele foi a única testemunha de um milagre. Em silêncio observou-os com tanto afeto que sentiu como seu coração lhe dava uma reviravolta. Seu senhor, o homem que negava o amor, dizendo que só podia trazer tragédias desastrosas ao mundo, aninhava o rosto da senhorita Moore em suas grandes mãos, enquanto as dela repousavam pacificamente em seu peito nu, como era habitual desde que adoeceu. A janela permanecia aberta, talvez Phiona a abriu ao amanhecer, para que o senhor admirasse o belo dia. No entanto, a beleza de fora era mínima se comparado a imagem dos dois. A brisa movia levemente as cortinas, a luz do sol atingia os dois, como se todos aqueles elementos naturais quisessem glorificar um momento tão bonito.
?Vou te dar a lua, Mary ?Lorde Giesler disse à mulher antes de beijá-la.
Ele poderia ter se virado e desaparecido sem ser visto ou ouvido, mas a voz da Sra. Reform indicava que os irmãos de seu senhor estavam indo visitá-lo. Deu um passo à frente, pegou na maçaneta com a ponta dos dedos e fechou a porta até ficar apenas uma pequena abertura. Essa opção seria mais adequada que apresentar-se sem avisar e fazer com que a senhorita Moore se encontrasse em um grande apuro. Seus lábios permaneceriam selados, embora jamais esqueceria o brilho que seu amo mostrou nos olhos ao olhá-la, nem a declaração dessas palavras tão firmes e seguras. Tinha se apaixonado. Finalmente! E de uma mulher que todo o serviço adorava, apesar de ter um comportamento tão áspero quanto a lixa de um ferreiro. Ele olhou para trás para garantir que a visita prematura chegasse ao patamar no primeiro andar. Que lorde Giesler o perdoasse, mas era mais sensato pôr um fim àquele momento romântico do que serem encontrados daquela maneira. Ele agarrou a maleta com força, colocou os nós dos dedos da outra mão na porta e bateu quase sem movê-la do lugar.
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou.
?Não! ?Ele gritou.
?Sim! ?Disse ela.
?Desculpe pela interrupção, excelência ?Shals comentou entrando rapidamente no quarto ?mas presumi que a senhorita Moore precisasse de sua maleta.
?Obrigada, Shals ?a jovem respondeu, depois de alisar as rugas do vestido com as mãos, ela sorriu e estendeu a palma da mão para pegar a maleta. ?Você é muito atencioso ?acrescentou se virando.
Colocou-a sobre a mesa pequena que estava ao seu lado e suspirou. Suas bochechas ainda estavam ardendo, seu coração ainda estava acelerado e suas mãos tremiam. Como foi capaz de enredar os dedos na alça da maleta se não podia controlá-los? Olhou para fora e uma brisa leve acalmou aquele estado de excitação que havia liberado segundos antes. Não podia acreditar no que tinha feito. Não apenas se deixou levar por um beijo, mas também ansiava por mais. Odiou o momento em que escolheu usar um vestido de mangas compridas, porque seus antebraços não podiam tocar o peito masculino, amaldiçoou o momento em que a costureira indicou que o decote era apropriado, porque queria descobrir se lorde Giesler gostaria de ver seu peito, como ela gostava de observar o dele, e estava com raiva de si mesma por não ser capaz de parar aquela situação.
?Milorde, desejo anunciar que seu irmão decidiu visitá-lo esta manhã ?prosseguiu falando o mordomo, que se colocou em frente aos pés da cama. ?E que aparecerá com a senhora Reform em breve...
?De fato, Martin, —disse Valeria, ao entrar no quarto. —A Srta. Moore decidiu visitar nosso irmão e confirmar que ele evolui satisfatoriamente.
Naquele momento, Mary queria pular pela janela e correr sem olhar para trás até chegar em casa, mas tudo o que fez foi respirar fundo, dirigir-se às pessoas que entravam no quarto e mostrar seu melhor sorriso.
?Mary, tenho a grande honra de apresentá-la ao nosso irmão mais novo, Martin Giesler.
Antes que ela pudesse dar um passo em direção a eles, o jovem, que se parecia muito com lorde Giesler, exceto que usava óculos e sua compleição era menos robusta, avançou em direção a ela, pegou uma das mãos e beijou os nós dos dedos.
?Cara Srta. Moore, é um prazer finalmente conhecê-la. Quero agradecer pessoalmente pelo fato de ter salvado a vida de meu irmão. ?Disse num tom gentil.
Com essas palavras muito cordiais e afetuosas, Mary corou, piscou várias vezes e deu um sorriso coquete. Enquanto isso, Philip estendeu a mão direita até encontrar o livro, que tentava ler até decidir se levantar, e pensou em jogá-lo em Martin. Mas ele se conteve. Seu irmão não era um rival para ele, certo?
?A honra e o prazer são meus ?ela respondeu com alguma timidez. Deu um passo atrás para manter distância e agarrou suas mãos.
?Porque motivo? ?Ele retrucou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?É uma grande satisfação para mim que um homem com seu talento me parabenize.
?Com meu talento? ?Martin insistiu, erguendo a sobrancelha direita.
?Sua fama é notória em toda a Inglaterra. Não há ninguém neste país que não tenha lido e admirado sua última publicação. Devo confessar que fiquei surpresa ao ler sua definição e cálculos em uma interseção variável em dois planos curvos. Foi esplêndido, se me permite o elogio, lord...
?Não sou lorde, apenas Martin Giesler ?ele a corrigiu rapidamente. ?É ele quem ostentará, se decidir fazê-lo algum dia ?concluiu?o título de Freiher Von Giesler. No entanto, lhe peço encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal, não acha? ?E sorriu para ela.
?Sendo assim, pode me chamar de Mary, e obrigada pelo elogio. Fico lisonjeada ao descobrir que há um homem neste mundo que não se intimida com o intelecto de uma mulher ?respondeu, acrescentando às suas palavras um sorriso fraco.
?Informava ao meu irmão ?Valeria interveio, que suportou o máximo que pôde a risada que queria explodir quando viu como Philip se contorcia na cama ?que aceitou o convite para almoçar conosco.
?Almoçar? ?Philip se intrometeu. ?Não seria educado ou apropriado, pois o anfitrião desta casa, que paga seus bons funcionários e a comida que colocam na mesa, não pode se comportar como tal devido a sua doença e indisponibilidade ?salientou.
?Oh, Philip! ?Exclamou Valeria com um sorriso fingido e movendo a mão direita com desdém. ?Sempre tão brincalhão! Não se preocupe Mary, não há nenhum problema. Além disso, desfrutaremos da agradável companhia de Martin. Sabe que foi o rapaz mais jovem que contrataram na Universidade? ?Enroscou o braço direito no esquerdo da moça e a fez caminhar em direção à porta. ?Nós já sabíamos que ele se tornaria uma pessoa muito importante, porque quando criança ele sempre pensava e raciocinava como um homem adulto. Em vez disso, Philip... Oh, Deus! Não sabe os problemas que tive que suportar por sua culpa! ?Exclamou novamente com aparente pesar. Quando estava a um passo de fazê-la sair do quarto, parou e olhou para ela. ?A propósito, você terminou? Talvez tenhamos interrompido a consulta e não conseguiu finalizá-la...
?Não se preocupe, tinha acabado de verificar quando apareceram. Só tenho que colocar um novo curativo, mas Shals pode fazer isso durante o dia ?garantiu.
Por nada no mundo, ficaria sozinha com ele novamente! Ela gostou do beijo? Sim! Tinha gostado de ver que havia um homem que a desejava? Sim! Mas aí concluía sua história. Não poderia se deixar levar pela emoção que lorde Giesler lhe causava. Era um homem perigoso para ela, demais para ficar sozinho com ele novamente.
?Que conclusão chegou? ?Valeria insistiu, acelerando o ritmo. ?Acha que logo poderá se levantar e deixar essa maldita cama?
?Conseguirá se permanecer deitado pelo tempo recomendado ?Mary alegou antes de sair de lá sem sequer se despedir com um olhar fugaz.
***
Os dois irmãos ficaram olhando para a porta e só se viraram quando Valeria e Mary desapareceram.
?Milorde ?Shals interveio, que permaneceu escondido em um canto do quarto o tempo todo ?com sua permissão, devo confirmar que o almoço está devidamente preparado. ?Deu um passo para a cama, fez uma rápida reverência e saiu dali antes que...
?Qual é o problema?! ?Martin gritou quando sentiu uma dor terrível no peito, causada pelo impacto de um livro voador inesperado.
?Qual é o problema? Você dirá... o que acontece com você? ?Explodiu. Apoiou os cotovelos sobre o colchão e acabou por se sentar.
?Não sei a que se refere ?disse agachado para pegar o livro que, após a colisão, tinha caído no chão aberto.
?Peço-lhe encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal ?repetiu as palavras que seu irmão usou como se estivesse mastigando a sola de um sapato.
?Isso? ?Ele retrucou, depois de depositar o livro na lareira. ?É considerado educação e respeito por uma mulher inteligente que, felizmente, salvou a vida de um ente querido.
Ele caminhou parando na frente de Philip e se apoiou com o ombro direito em um dossel de madeira. Poderia deixar escapar uma risada enorme? Porque Deus bem sabia que ele queria fazer isso! Se pegasse o espelho, que estava na cômoda, e o colocasse na frente de seu irmão, descobriria que os demônios realmente existiam. Como prometeu a Valeria, ele ofereceu uma atitude receptiva em relação a Mary, para que Philip reagisse. No entanto, admitiu que estava fascinado ao descobrir que ela havia lido sua última publicação.
?Educação e respeito? Você quase voa como se fosse um querubim em sua direção para beijar a mão dela! Beijar a mão dela! ?Repetiu, percebendo como uma estranha acidez queimava seu estômago.
?Não me disse algo sobre não distinguir entre dois bons seios femininos e duas formas de calcular um mesmo resultado? ?Ele comentou, mesmo sabendo que o inferno dividiria a terra em dois e que o próprio Satanás puxaria sua mão para arrancar sua alma. ?Bem, pela primeira vez na vida, tenho que provar que você está certo. A senhorita... Mary parece ter herdado um busto generoso e firme. Embora seu vestido azul não tivesse um decote muito ousado. Apesar de tudo, acho que quando me aproximei para beijar aquela mão doce e macia, nossos peitos se aproximaram o suficiente para calcular suas medidas. Você me pediu para contemplar também a largura dos quadris de uma mulher? Porque eu acreditava que... ?terminou de falar quando um travesseiro voou, das costas de Philip, para impactar seu rosto, fazendo com que seus óculos fossem atirados no meio do quarto. Como diabos ele estava se movendo com tanta agilidade se ainda estava convalescente?
?Não se aproxime dela! Entendido? ?Berrou. ?Ou juro por Deus que essa conversa será a última que temos pelo resto de nossas vidas.
Martin pegou os óculos do chão, colocou-os e olhou para o irmão. Pela primeira vez, uma ameaça a sua pessoa apareceu em seu rosto. Seria conveniente informá-lo de que Valeria havia planejado sua atuação em relação a Mary? E se decidisse se vingar dos dois? Se havia algo inquebrável em Philip, era sua necessidade dar uma lição às pessoas que o desafiavam. Um exemplo claro disso poderia ser assegurado pelo homem que, quando era adolescente, Philip o chamou de trapaceiro em um jogo de cartas que jogou no antigo clube de seu cunhado. Demorou quase quinze anos para encontrá-lo e, depois desse momento, o cavalheiro não conseguiu levantar a aba do chapéu por dois longos meses. De acordo com a versão de seu irmão, o Sr. Manther colidiu com seu ombro duro no momento em que saiu de White´s e, logicamente, não se afastou rapidamente para evitar um impacto inconveniente e doloroso no olho direito. Então, se não desejava usar um chapéu de abas largas por vários meses, era melhor dizer a verdade.
?Essa farsa foi ideia de Valeria ?finalmente confessou.
?O que significa ... esta farsa? ?perguntou estreitando os olhos.
?O de flertar com Mary ?esclareceu.
?Maldita mente perversa! ?Philip exclamou com raiva.
?Não tinha pensado falar com a senhorita Moore, já sabe que não sou muito versado em manter uma conversa agradável com as mulheres, mas Valeria, depois de encontrá-la no corredor, não parou de falar e falar... Me disse que havia deixado vocês algum tempo sozinhos e que assim lhe devia um grande favor. Que precisava da minha ajuda para descobrir se o seu interesse por essa moça era verdadeiro. Imagino que colocou suas esperanças nela para aceitar maldita baronia.
?Típico dela... ?Philip murmurou.
?Juro que minha presença tinha outro objetivo. Queria pedir conselhos sobre um assunto que tenho nas mãos ?Ele disse sem tirar os olhos do irmão. Relaxada a tensão entre ambos, Martin adotou uma postura mais calma: cruzou os braços na frente do peito e os pés à altura dos tornozelos.
?O que você precisa? ?Philip estalou, olhando para ele sem piscar.
A vida poderia dar algo doce e acido ao mesmo tempo? Porque é assim que se sentia. Ela passou de ter nos lábios a doce boca de Mary para a acidez de lutar com seu irmão para consegui-la. Agora, apesar de saber que tudo tinha sido um truque de Valeria, ainda não conseguia sentir novamente a ansiada doçura.
?Um em troca do outro, como quando éramos crianças? ?Observou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?Um em troca de outro ?admitiu enquanto seu corpo relaxava consideravelmente.
?Bom. Eu decidi estabelecer minha nova residência aqui em Londres ?Martin começou a dizer enquanto se aventurava a sentar ao lado de seu irmão. ?Conversei com Lawford Jr. e ele me disse que poderia investir na propriedade dos Bohanm. Como me informou, é um casal bastante antigo e deseja partir à sua casa de campo para desfrutar de um pouco de paz no tempo que lhe resta de vida.
?Sabe quais vizinhos terá? ?Philip estalou, franzindo a testa e olhando para ele... de novo.
?Ainda não vi, então...
?Os Moore! ?Explodiu de novo.
?De verdade? ?Ele perguntou, arregalando os olhos. ?Inferno de coincidência!
?Você não me disse que agiu de acordo com o plano de Valeria? ?Rosnou.
?Juro pela alma dos nossos pais que sim e que não fazia ideia que a família da Mary seria meus novos vizinhos. Só quero um lar tranquilo, onde possa continuar com... ?Ele se levantou, deu as costas para o irmão, caminhou até a varanda e ficou em silêncio.
?Com? ?Philip insistiu.
?Eu deixei o trabalho na Universidade ?ele disse finalmente, sem desviar o olhar do lado de fora.
?O que disse? Por quê? Você ficou louco? Você precisa de mim para isso? Não é capaz de enfrentar a ira de Valeria? Porque ficará com raiva quando descobrir e me culpará de sua decisão ?Philip comentou, mal respirando.
?Não te culpará de nada, porque lhe explicarei que me ofereceram mais uma alternativa... ?«Obrigatório?», pensou Martin. Não, não poderia dizer isso, era vital para o bem-estar da família que ninguém soubesse a verdade.
?Mas? ?Philip insistiu em saber.
?Tranquilo ?Ele respondeu, virando-se para o irmão. ?É verdade que o trabalho que fiz na Universidade foi gratificante, mas mal aproveitei o tempo livre. Anseio por uma casa, anseio por sua companhia, quero me casar, formar uma família e... viver ?lhe garantiu. Embora a verdadeira razão pela qual decidiu se estabelecer não tivesse nada a ver com a vida, mas com a morte, e não de uma pessoa, mas centenas, talvez milhares...
?Quando você pretende realizar seu novo futuro? ?Perguntou intrigado.
?Em uma semana, no máximo ?ele declarou depois de colocar as duas mãos nos bolsos e puxar os painéis frontais da jaqueta azul marinho. —O tempo que leva para Lawford confirmar a compra dessa residência.
?Bem... ?Philip murmurou acariciando uma barba inexistente. ?Embora Valeria fique brava com você por um longo tempo, devo confessar que é a melhor decisão que você tomou até agora. Já era hora de você voltar e decidir procurar uma esposa, que não será Mary, é claro ?Ele apontou examinando o rosto de seu irmão.
?Não será Mary, te garanto isso. ?Sorriu. ?De certa forma, foi responsável por esta decisão. ?Ao ver que seu irmão levantava uma sobrancelha em sinal de pergunta, acrescentou: ?Sofri muito ao pensar que poderia ter morrido. Tenho me perguntado todos estes dias o que teria acontecido se você... ?não terminou a frase, doía muito fazê-lo. ?Tinha pensado oferecer minha carta de demissão quando terminasse o curso, mas a enviei no mesmo dia que Pierre me fez chegar a missiva de Valeria para me informar sobre sua doença. ?Não era bem verdade, ele o escrevera vários meses antes, quando o estrangeiro apareceu em sua antiga casa e lhe disse que tinha menos de seis meses para aceitar a nova posição oferecida a ele. O anúncio da situação de Philip acelerou o processo. ?O tempo é curto e acho que devo aproveitar para viver com as pessoas que amo ?concluiu. Ele voltou para o lado do irmão e sentou-se novamente no canto inferior da cama?. Então, aqui estou eu, esperando um papel para realizar um sonho... ?refletiu. ?Agora é sua vez, irmão. Diga-me que segredo você mantém ?apelou.
?Vou aceitar a maldita baronia ?comentou depois de jogar a cabeça para trás, até tocar na cabeceira de madeira e suspirar.
?De verdade? Tem certeza? Valeria vai chorar de emoção! Está a muitos anos esperando você tomar essa decisão! ?Comentou feliz.
?Mas somente se eu puder me casar com ela ?disse uma vez que os olhos de ambos encontraram.
?Então... você gosta??Discorreu Martin acomodando os pés sobre a cama, como costumavam fazer quando eram crianças.
?Estou apaixonado, Martin. Não sei quando, nem como, nem por que aconteceu, mas concluí que não poderia viver sem ela. ?Ele admitiu, com um sorriso nos lábios.
?Eu tenho que te dizer uma coisa, Philip, ?ele começou a dizer adotando o tom que costumava falar com seus alunos —há um estudo e um termo médico que, até o momento, não foram levados em consideração, mas seria interessante se você o conhecesse.
?Qual? ?Sua voz soou como se estivesse a ponto de defender-se de um ataque repentino.
?O choque de gratidão. O que sofre um paciente que, ao ser salvo de uma morte certa, acredita que se apaixonou por seu salvador e...[7]
?Bobagens! ?Philip o interrompeu. ?Eu me apaixonei por Mary desde o momento em que a vi pela primeira vez. O que aconteceu a seguir apenas confirmou que ela é a única mulher que eu quero ter ao meu lado pelo resto da minha vida ?garantiu a ele.
?E por que vai assumir a baronia quando se casar com ela??Estalou intrigado.
?Porque me pediu a Lua e só poderei dá-la se me converter em um miserável aristocrata ?ele alegou antes de olhar para a maleta que, novamente, havia sido esquecida por sua dona.
Capítulo XI
Como ela poderia se comportar de uma maneira tão irracional? Por que era incapaz de sentir felicidade quando deixou a residência do lorde? Qual seria a razão médica pela qual notava uma forte pressão no peito? Estaria prestes a sofrer um derrame depois do que aconteceu com aquele homem?
Mary não tirou os olhos da janela enquanto voltava para casa acompanhada de Valeria. Tal como ela lhe prometeu, depois do almoço, conduziu-a até à livraria do senhor Slow e deu-lhe as três crônicas médicas que havia reservado. Deveria mostrar felicidade por ter conseguido tanto o que queria nos cinco dias de castigo, mas não foi assim. Pegou as revistas e as colocou dentro da pasta sem parar para ler seus títulos. Reagiu de modo automático, sem emoção. Talvez porque sua cabeça se recusava a se concentrar em outra coisa que não fosse... ele.
Acreditou, inutilmente, que todas as emoções e sensações produzidas durante o beijo desapareceriam uma vez que abandonasse o quarto. Errado. Ela os reviveu tantas vezes que sofreu inúmeras ondas de calor no almoço. Embora a conversa que teve com Martin tenha sido bastante agradável, não foi esplêndida nem maravilhosa. Apenas prestou atenção à conversa exaustiva que lhe ofereceu sobre o algoritmo quantitativo em diferentes equações. No fundo, e isso parecia inédito, ficou entediada. Em algum momento dessa explicação, sua alma deixou seu corpo para sair da sala de jantar, subir as escadas, correr pelo corredor para voltar aos braços de lorde Giesler. Seus lábios sentiram novamente a suavidade daquela boca masculina, provaram aquele maravilhoso sabor de café, sua língua dançou outra dança de carícias e, por isso, prazer e paixão retornaram.
Tal como concluiu, a melhor opção para manter um bem-estar mental e físico era evitar outro encontro com ele e eliminar de sua mente todos aqueles pensamentos tão inapropriados. Nunca se sentira tão atraída ou intimidada por um homem. Jamais deixou em um segundo plano quem era e em quem desejava se converter. No entanto, desde que aquele homem apareceu em sua vida, tudo se tornou um caos, pois não era capaz de se concentrar em nada exceto nele. Quantas vezes, desde que seu pai lhe deu a maleta, se esqueceu dela? Até que lorde Giesler se cruzou em seu caminho, nunca. Se havia noites que até dormia com ela na cama! Isso também tinha mudado, porque durante sua inesperada visita abandonou seu precioso presente em várias ocasiões...
Sem afastar o olhar do lado de fora suspirou fundo. Estava muito decepcionada por não ter sido capaz de controlar nem sua mente e nem seu corpo quando permaneceram juntos. Ela estava sempre atenta às traições que os outros podiam gerar, mas nunca imaginou que ela mesma seria a maior traidora de sua pessoa. Desde que Anne sofreu a angústia da morte de Dick ou do engano que Elizabeth padeceu por Archie, ela se esforçou para lutar contra tudo o que envolvia um relacionamento afetuoso com um homem. Tudo o que podiam obter dela eram conversas e discussões médicas. Qualquer sentimento afetivo estava vetado, negado, fechado. No entanto, lorde Giesler quebrou todas as barreiras que ela havia construído ao longo dos anos. Aquele gigante de olhos azuis e cabelos loiros havia se tornado seu ponto fraco, porque havia encontrado uma maneira de transformá-la, através de seus beijos e carícias, em um ser vulnerável, frágil e comum.
Ela se mexeu desconfortavelmente no assento enquanto apertava as mãos com força, que estavam no colo. Se não estava errada, como começava a ser habitual nela, suas bochechas já mostrariam um leve rubor por causa de suas divagações. Valeria poderia supor que isso se devia à ansiedade que lhe provocava chegar em casa e enfrentar novamente o castigo estabelecido por sua mãe. Mas essa não era a razão pela qual as bochechas pareciam duas pequenas chamas de fogo. A lembrança de como o corpo dela reagiu durante os beijos a alterou e a enfureceu a ponto de elevar a temperatura do corpo em mais de dez graus. Se tocasse o termômetro que guardava na maleta, o mercúrio aumentaria tanto que o pequeno tubo de vidro explodiria em suas mãos. Como se deixou levar tão facilmente? Por que seu cérebro foi incapaz de impedir isso? Não havia lido que a amígdala cerebral ajudava a encontrar a estratégia necessária para resolver uma situação de estresse, medo ou perigo? Então, por que a dela estava inativa quando lorde Giesler se encontrava próximo a ela? Bufou pelo nariz. Ansiava procurar respostas médicas para todas as suas perguntas e tinha uma solução para isso: procuraria o livro que seu pai mantinha na prateleira de seu escritório. Se bem lembrava, o médico e cientista francês Paul Broca explicaria como o sistema límbico funcionava. Talvez descobrisse qual dos seus quatro componentes era responsável pelas respostas emocionais. Depois que encontrasse o problema, lutaria contra ele. E se para isso tivesse que usar aqueles dolorosos choques elétricos, se submeteria sem hesitar um segundo. Ela precisava fazer tudo ao seu alcance para ser a Mary de sempre e se afastar de quem se tornara. Ela nunca foi uma mulher apaixonada, mas uma jovem respeitável que raciocinava, entendia e observava o mundo de uma perspectiva lógica. Não podia se transformar, da noite para o dia, na desavergonhada que havia percebido um certo prazer entre as pernas ou que ansiava que as mãos do homem viajassem cada centímetro de sua pele. De modo algum voltaria a desejar algo que tinha decidido não ter em sua vida. Por esse motivo, lorde Giesler tinha que morrer para ela.
?Mary? ?Valeria perguntou estreitando os olhos.
?Sim? ?Ela respondeu, virando-se para a companheira e desenhando um enorme sorriso. A consequente ao ter a certeza de uma vitória próxima.
?Está bem?
?Sim, muito bem. Por que pergunta? ?Continuou falando sem apagar o leve sorriso dos lábios. Esperava que seu rosto não decidisse traí-la também, porque não queria ser interrogada pelos poucos minutos restantes, para chegar em casa, sobre o motivo de estar tão ausente.
?Percebo você... distante ?Valeria alegou.
?É o meu estado normal ?respondeu enquanto estendia a mão para a alça da maleta e a colocou sobre as pernas. ?Minha cabeça não para de pensar sobre o que esses preciosos artigos médicos registram.
?No que você está pensando agora? ?Estalou com uma mistura de decepção e raiva.
?Claro! ?Mary exclamou, arregalando os olhos para enfatizar sua decepção. ?Estou ansiosa para descobrir que nova doença encontrara na Europa e me informar de como pode ser eliminada. Embora ultimamente não tenham encontrado muitos casos importantes. No mês passado, os quatro artigos que adquiri na livraria do senhor Slow falavam sobre o ensaio realizado por Henry Gray em mil oitocentos e quarenta e oito, intitulado A origem, conexões e distribuição dos nervos do olho humano. Uma descoberta magnífica para um jovem anatomista e cirurgião britânico. Sabia que tinha a minha idade quando foi eleito Membro da Royal Society? Embora ele tenha morrido cedo demais. Uma verdadeira tragédia para a sociedade médica. Mas... Quem iria supor que morreria de varíola aos trinta e cinco anos? Segundo dizem, foi transmitido por um sobrinho que ele cuidava e...
Valeria não soube o que dizer a respeito. Tinha assumido, ao vê-la tão calada e embaraçada, que estava revivendo o tempo que passou a sós com seu irmão, mas se equivocava. A jovem era imune aos encantos de Philip. E era a primeira mulher a fazer isso! Mas não desistiria tão cedo. O que estava em jogo era o baronato e, diante disso, lutaria incansavelmente.
?Você se lembrou do ensaio porque viu algo perigoso nos olhos do meu irmão? ?A interrompeu.
?Como? ?Mary estalou confusa.
?Eu me perguntava se o fato de você evocar esse livro médico tem algo a ver com alguma doença que tenha apreciado nos olhos de Philip ?insistiu.
?Não! Nada disso! ?Disse rapidamente.
?Menos mal! Porque, pelo que entendi, pessoas que têm olhos castanhos podem...
?Castanhos? ?Mary soltou. ?Pelo que me lembro, lorde Giesler tem íris azuis claras, muito parecidas com as minhas ?acrescentou.
Bom. Pelo menos, ela havia notado esse detalhe. Agora tinha que continuar com seu plano.
?Certo. Às vezes me confundo com os de meu marido ?se desculpou. ?Então imagino que seu pensamento não tem nada a ver com outra possível doença, certo?
?Exato! ?Garantiu. ?Seu irmão está muito recuperado e abandonará o quarto se permanecer uns dias mais em repouso. Para ser sincera, continuo fascinada com sua evolução.
?De verdade? ?Valeria continuou. Se ela tivesse que falar sobre doenças para que se concentrasse em Philip, faria isso sem hesitar por um único segundo. ?Observou a ferida? Acha que requer muita atenção? Não posso estar todos os dias em sua casa. Meus filhos e meu marido são um desastre se me ausento mais de três horas de minha casa. Não ficaria surpresa que, ao voltar, tenham queimado algum cômodo.
?Não se preocupes. A ferida está perfeita. Apenas ficará uma fina cicatriz. Tenho certeza de que meu pai, quando o visitar hoje à noite, confirmará minha opinião. Só espero que Shals não demore muito para enfaixá-lo para que não entre sujeira na fissura.
?Não precisa se preocupar com isso. As empregadas limpam o quarto todos os dias ?Valeria disse.
?Não se trata desse tipo de limpeza ?disse antes de soltar uma pequena risada. ?Centenas de bactérias foram descobertas que pululam pelo ambiente e são invisíveis ao olho humano. Uma delas pode entrar na ferida e infectá-la.
?E sabendo disso... como não lhe ocorreu enfaixá-lo você mesma? ?Valeria perguntou perplexa.
?Porque me arrastou para a sala de refeições e durante o almoço não me pareceu correto me ausentar no meio da maravilhosa conversa sobre algoritmos que Martin me ofereceu. Além disso, tenho certeza de que Shals o enfaixou depois de confirmar que a comida estava preparada. Como você me explicou, ele é um mordomo muito eficiente ?explicou com certeza.
?Ainda assim, acho que seria conveniente que voltasse amanhã para confirmar sua suposição ?Valeria expôs uma vez que olhou pela janela e observou os telhados da residência Moore. ?Não gostaria que Philip tivesse uma infecção agora que começa a melhorar.
?Não vejo necessidade de voltar ?manifestou com angústia. ?Mas prometo que, quando falar com meu pai, informarei o que aconteceu para confirmar que o curativo foi feito corretamente.
?Não quer ter certeza de que meu irmão evolui favoravelmente? Negligencia com tanta facilidade as pessoas que atende? ?Insistiu.
A carruagem parou na entrada de sua casa. Devia esperar que o cocheiro abrisse a porta e desdobrasse as escadas de metal, mas se sentia tão ansiosa para sair de lá que, como demorava um segundo a mais, ela mesma o faria.
?Como te disse, meu pai cuidará dele como fez até agora ?comentou com mais ênfase do que deveria. ?Além disso, lembre-se que ainda estou de castigo e quando minha mãe descobrir que me levou para a casa de seu irmão em vez de consultar seus filhos, não poderei sair de casa até que complete os trinta anos.
Graças a Deus o cocheiro já tinha aberto a porta! Com a maleta na mão, baixou o mais rápido que pôde, alisou a saia de seu vestido e se virou para Valeria, que ainda continuava imóvel em seu assento.
?Foi um dia magnífico, Valeria. E eu insisto que você não deve se preocupar com seu irmão, certamente ele voltará em breve à vida que tinha antes de ficar doente.
?Mas... não quer que eu vá com você até a porta? O que sua mãe vai dizer sobre mim? Prometi a ela que cuidaria de você e a levaria até ela sã e salva.
?Despeço-me em seu nome. Além disso, quando lhe explicar que estava com pressa de chegar em casa, caso algum dos seus filhos tenha incendiado um quarto, ela entenderá. Boa tarde e obrigada pelo presente ?disse antes de fechar a porta e caminhar a grandes passos para sua casa, seu santuário, seu lugar protegido e do qual nunca deveria ter saído.
***
?Não se preocupe com elas, mãe. Garanto-lhe que todas estão perfeitamente bem.
A afirmação de Madeleine fez com que Sophia levantasse o olhar do bastidor e o fixasse na mais nova de suas filhas. Permaneceu em silêncio, observando-a sem piscar. Logo, depois de descobrir aquele brilho tão bonito e sincero em seus olhos verdes, sorriu e voltou para a costura.
?Eu sei ?garantiu. ?Mas é inevitável me preocupar com elas.
?Continua inquieta pela visão que tive sobre Anne? Pensa que me equivoquei sobre lorde Bennett? Porque lhe prometo que era ele. Esse homem nos salvará da maldição ?declarou solene. Fechou a caderneta em que anotou a última receita que havia preparado naquela manhã, se levantou lentamente da cadeira e foi até a mãe para se sentar ao seu lado.
?Confio em suas visões, Madeleine. Se acredita que lorde Bennett é o homem destinado a Anne, esperarei que sua profecia seja cumprida.
?Desaparecerá algum dia? ?Perguntou depois de alguns minutos de silêncio que os utilizou para refletir e entrelaçou seus brancos dedos sobre a saia de seu vestido celeste. Um de cetim mate com rendas nos punhos e pescoço. ?Me refiro ao meu dom. Será que irá da mesma maneira que veio, sem avisar?
?O meu está comigo desde que nasci. Embora tenha desaparecido durante a gravidez, porque toda a minha energia se concentrou em criar uma nova vida, mas voltou uma vez que vieram ao mundo.
?Nunca desejou ter nascido normal? ?Insistiu.
?Você não se define assim? ?Sophia retrucou deixando a costura à esquerda e virando-se para a filha.
?Não ?respondeu sem hesitar um único segundo. ?Quem, de todas as pessoas que conhecemos, pode ter sonhos que preveem o que acontecerá a seguir?
?Madeleine... ?sussurrou, segurando as duas mãos para apertá-las entre as suas ?é uma menina muito especial e não deveria se sentir mal por ter nascido com uma habilidade tão magnífica. Esqueceu o que aconteceu naquele dia? O que você fez por aquela criança?
Madeleine fixou seus olhos nas mãos e mordeu ligeiramente o lábio inferior. Não, não havia esquecido. Jamais poderia fazer uma coisa semelhante! Mas foi nesse momento que seu dom tomou força, o controle de sua vida e não encontrava uma forma de pará-lo. Era verdade que naquele dia ela se sentiu feliz e orgulhosa de si mesma. No entanto, nem todas as suas visões eram boas. Muitas noites ela se levantava banhada em suor, tremendo e chorando inconsolavelmente porque a maldade a dominava.
?Essa criatura pode ser salva graças a você, pequena ?Sophia disse suavemente enquanto acariciava os dedos longos da filha com os polegares. ?Sua alma recorreu para a única pessoa que podia ouvi-la... ?acrescentou.
?Eu sei... ?murmurou, abaixando a cabeça.
?E também foi à razão pela qual Anne desistiu de sair naquele momento. Se você não tivesse nos contado o que viu, ela não estaria mais conosco. ?É verdade que nem todos os seus sonhos serão bons, mas você terá que se esforçar para dominá-los. Uma alma como a sua evocará forças boas e más. Sua missão é saber como filtrá-las.
?Como farei algo assim?
?Imagino que levará muito tempo para você conseguir, assim como eu fiz para desenvolver o meu. ?Ao ver que seus olhos se entristeciam, apertou com mais força suas mãos. ?Mas uma Arany sempre consegue o que se propõe, e não nasceu uma cigana que se renda sem antes lutar.
Madeleine suspirou profundamente e agradeceu as palavras reconfortantes de sua mãe com um leve sorriso. Esperava que tivesse razão, que não se confundisse porque realmente necessitava eliminar certos aspectos de seu dom. Rara era a noite que não ficava acordada, sentada sobre a cama, abraçando os joelhos enquanto se perguntava o que aconteceria uma vez que fechasse os olhos. Essa incerteza era a culpa de seu comportamento. Sempre ficava esquiva de todas as pessoas que se aproximavam dela. Não podia tocá-las, nem olhá-las sem descobrir, mediante aqueles malditos sonhos, algo sobre elas. Algumas vezes a faziam feliz, mas a maldade das pessoas não tinha limites. Seu coração começou a bater com força ao lembrar a tarde que o primeiro noivo de Anne lhe tocou uma mão para cumprimentá-la. Nessa noite, os seus sonhos foram sombrios, tenebrosos e insuportáveis. Seu espírito se desprendeu de seu corpo e saiu à rua, mostrando-lhe o que aconteceria depois de várias semanas. Não foi capaz de explicar a sua família, e nem muito menos a Anne, o que tinha visto. Talvez porque nem ela mesma acreditou. Mas Dick morreu... E como consequência de tudo isso se retraiu ainda mais do mundo.
?Mary acabou de chegar ?comentou Sophia se levantando rapidamente do sofá.
Caminhou para a janela e afastou lentamente a cortina para confirmar que, tal como intuiu, a carruagem da senhora Reform tinha parado no jardim. Olhou o relógio que havia sobre a lareira e franziu a testa. Já eram quatro horas da tarde e, embora tenha sido informada de que a filha almoçaria fora, estava com muita raiva de Mary. Ela deveria procurar qualquer desculpa para recusar o convite. Não era apropriado que ficasse fora de casa por tanto tempo com uma pessoa que mal conhecia, mesmo que estivesse muito agradecida por ter salvado a vida de seu irmão. Mas tinha que confiar em sua filha. Tinha certeza de que, se tivesse se encontrado em uma situação comprometedora, teria agido com sensatez. Embora depois de operar lorde Giesler completamente nu, ela não tivesse mais certeza do bom senso de sua filha.
Saiu silenciosamente da sala de costura e foi em direção à porta para recebê-las. Durante o breve trajeto, lembrou o momento em que a Sra. Reform apareceu em sua casa horas antes. Sua mente evocou a expressão serena que ela exibiu ao se apresentar e como mudou depois que a filha chegou. Como não percebeu isso? Por que seu instinto não a alertou para uma coisa dessas? «Morgana!», exclamou mentalmente enquanto avançava em direção à entrada, abrindo a porta ela mesma, para não demorar muito para descobrir se sua intuição era verdadeira.
?Boa tarde, mãe ?lhe disse Mary uma vez que se encontraram de frente.
?E Sra. Reform? ?Perguntou olhando para a carruagem.
?Disse-lhe que não me acompanhasse, que não era necessário que se incomodasse ?explicou enquanto entrava no hall.
?O que você fez? ?Esbravejou Sophia batendo a porta.
?Eu? Nada! Como pode pensar isso de mim? ?Disse com raiva.
?Porque as duas vezes que vi essa mulher nunca me pareceu uma pessoa desrespeitosa ?a mãe insistiu.
?Precisava voltar para casa o mais rápido possível. Como me disse, seus filhos podem atear fogo em qualquer cômodo da casa, se ficarem mais de três horas longe dela. ?Explicou enquanto dava o casaco a Shira, que apareceu sem fazer barulho.
?Mas... você não iria examiná-los? Porque, se bem me lembro, a senhora Reform disse que haviam sofrido um resfriado e queria confirmar que não teria nenhuma consequência ?Sophia disse, arregalando os olhos.
?Não. No final, me livrei da presença daqueles demônios ?Mary declarou antes de levantar as sobrancelhas castanhas várias vezes. Observando as bochechas e os olhos da mãe começarem a ficar avermelhados, ela decidiu que era hora de escapar. No entanto, quando ela deu um passo à frente, em direção às escadas, uma mão a parou.
?Onde você esteve Mary Moore? Por que não é capaz de me olhar na cara? O que esconde de mim? O que aconteceu?
?Ainda continuo de castigo, certo? ?Sophia estreitou os olhos em resposta. ?Bem, apenas lhe direi que curei pessoas, mas não foram filhos da Sra. Reform, mas os servos de lorde Giesler ?confessou com dignidade.
?Desobedeceu minha ordem e retornou naquele lugar? Por quê?
?A verdade? ?Mary soltou.
?Sim.
?Cheguei à conclusão de que Valeria estava muito assustada com o que aconteceu com o irmão e precisava que eu confirmasse que nosso pai está fazendo um bom trabalho.
?E? ?insistiu Sophia.
?E, como sempre, nunca fico satisfeita em fazer apenas uma coisa. Então, terminei por apresentar duas opiniões em vez de uma.
?Quais? ?Sophia percebeu como a filha estava ficando cada vez mais irritada. Até agora, nunca havia chegado em casa depois de visitar um paciente com tanta irascibilidade. O habitual era que estivesse excessivamente emocionada. Mas tinha que lembrar que o homem doente que visitou era lorde Giesler, o motivo pelo qual estava de castigo.
?A primeira foi que, de fato, a cura desse presunçoso está sendo espetacular e que nosso pai é o melhor no mundo. A segunda... ?Ela respirou fundo e, pela primeira vez em sua vida, olhou para a mãe com raiva, como se ela fosse a única culpada por fazê-la sofrer todas as emoções e sensações que nasceram nela quando foi beijada por lorde Giesler. ?Deve se sentir muito feliz em entender que sempre esteve certa sobre mim...
?Eu? Razão sobre você? Em quê? ?Sophia disse com uma mistura de surpresa e perplexidade.
?Que, embora nunca quis reconhecê-lo, hoje entendeu que por suas veias também corre sangue Arany.
A resposta saiu da boca de Madeleine. Sophia observou Mary dar-lhe um olhar furioso. Mas a menininha não se intimidou com essa ameaça silenciosa. Exibiu um sorriso enorme antes de colocar as mãos atrás das costas, girar nos calcanhares e seguir em direção à cozinha, esticando as pernas excessivamente.
?Se sente muito orgulhosa, certo? ?Mary soltou cerrando os dentes.
?Filha, por favor me diga o que aconteceu ?Sophia pediu, estendendo a mão para Mary, para que a aceitasse e poder lhe transmitir desse modo um pouco de paz.
?Posso resumir em algumas frases: nunca mais sairei de casa, nunca mais verei lorde Giesler e nunca deixarei o sangue de Arany tomar conta de mim ?hesitou antes de agarrar a alça da maleta e subir as escadas o mais rápido que podia.
Capítulo XII
Ela ficou trancada na biblioteca por horas tentando estudar o novo ensaio médico que havia adquirido, mas não conseguiu ler nem duas frases seguidas. A maldita voz alegre insistia em interrompê-la toda vez que começava a leitura. Resignada por não conseguir alcançar o que se propôs, ela fechou o livro e acariciou a longa trança do cabelo com as duas mãos enquanto contemplava as escassas brasas. Depois do que aconteceu com lorde Giesler, sua mãe, depois de considerar que os tubos de metal eram muito perigosos em suas mãos, proibiu Shira de usá-los nela e insistiu que fosse amarrado com um laço azul inofensivo. Embora, de acordo com Josephine, fosse a arma mais eficaz para estrangular qualquer malfeitor. Mary sorriu levemente ao se lembrar da manhã em que jogou seus tubos no lorde Giesler como se fossem projéteis. Mas aquele leve sorriso de diversão desapareceu quando ela também se lembrou de ter encontrado um deles guardado em uma gaveta da cômoda do lorde. Por que o escondia como se fosse um tesouro? Estaria esperando o momento para devolvê-lo? Com que finalidade? Que plano ele tinha em suas mãos? Mary se recostou no sofá e suspirou. Não tinha respostas para suas perguntas. Na verdade, era a primeira vez que não as encontrava. Seu mundo, baseado em executar uma rotina severa para facilitar o seu cérebro a admissão de novos conceitos médicos, mergulhou em um profundo caos desde que aquele homem irrompeu em sua vida. Nem se reconhecia quando se olhava no espelho! Não só seus olhos brilhavam de uma maneira estranha, mas até sua pele se contraiu tanto que parecia cinco anos mais jovem. Se isso consistia na natureza feminina, em rejuvenescer para seduzir os homens, que lhe durasse cinquenta anos mais...
Ela fechou os olhos, cansada de submetê-los por várias horas a uma luz fraca, e tentou sucumbir ao leve sono que a dominava. Mas foi incapaz de alcançá-lo porque havia a voz novamente, que não deixava de cantarolar uma canção absurda no dialeto Zíngaro sobre a salvação que lhe traria um maldito fogo. Fogo? Onde? E que salvação se referia? O único que precisava era eliminar um titã com cabelos loiros e olhos azuis da cabeça. Mas... como conseguiria uma proeza tão simples? Se ela, com o caráter e a determinação que possuía, não pudesse eliminá-lo de sua mente, como faria com o maldito fogo? O queimaria? Faria lorde Giesler entrar nele até que seu grandioso corpo se transformasse em cinzas? Essa ideia, bastante macabra, a fez sorrir novamente. Exceto em certas reuniões médicas, quando alguma promessa médica jovem se impunha pela força a seus argumentos, seu instinto assassino não aparecia. Ela proporcionava vida, não morte. No entanto, esse homem era o culpado por seu lado criminoso permanecer latente desde que acordava até adormecer.
Desesperada, porque a voz não parava de cantar, ela abriu os olhos e se levantou do sofá. Se não podia ler, pelo menos procuraria a pessoa que a interrompia para calá-la de uma vez por todas. Relutantemente colocou o livro sobre o sofá, amarrou o laço da bata branca e saiu da biblioteca.
Para sua surpresa no corredor, não havia ninguém. No entanto, a voz estava tão perto dela que parecia tê-la ao seu lado. Determinada, ela caminhou devagar até chegar ao pé da escada, olhou para o segundo andar e franziu a testa. Onde estaria? Quem seria? Só tinha duas alternativas possíveis: sua mãe e Madeleine. As duas eram as únicas pessoas na casa que costumavam falar em Romani. Quando colocou o pé no primeiro degrau, ouviu as badaladas do relógio. Eram duas da manhã, tarde demais para a irmãzinha ficar acordada. Normalmente, depois de se retirar para o quarto, permanecia até o amanhecer. No entanto, desde que Josephine partiu, ela ficou bastante inquieta e confusa. Talvez, incapaz de dormir, ela decidiu caminhar até que o cansaço a vencesse.
Encorajada para descobrir se Madeleine era a arquiteta de seu desespero, ela subiu as escadas, atravessou o corredor, ficou em frente à porta do quarto das gêmeas e a abriu muito lentamente. Não, não era ela. A menina se encontrava sobre a cama coberta com o lençol até a cabeça e tão quieta como uma estátua. Com discrição, saiu dali tal como entrou. Como sua primeira opção foi descartada, ainda lhe restava outra: sua mãe. Talvez a mente materna ainda estivesse nervosa após a partida de três de suas filhas. Talvez sua mãe não tenha conseguido adormecer facilmente ou... Sim, essa alternativa também se encaixava. O termo médico para definir a terceira opção era sonambulismo, embora seu pai nunca tenha falado sobre esse tipo de distúrbio na família. No entanto, tudo poderia acontecer com os Arany. Os Moore, felizmente para ela, sabiam controlar até as atividades que realizavam inconscientemente. Admitindo a possibilidade de encontrar sua mãe sonâmbula, ela lembrou o caso de Albert Tirrell, que foi absolvido de assassinato por alegar que estava sonâmbulo quando cometeu o crime. Certamente sua mãe não pensaria em matar ninguém, embora não lhe faltasse vontade. Era mais provável que a mente agitada a levasse à sua época juvenil, quando cantarolava absurdas canções ciganas enquanto lavava a roupa em um rio próximo do povoado.
Do alto da escada, Mary olhou para baixo. Nada. Sophia também não estava lá. Mas incrivelmente a voz, daquela área da casa, era ouvida mais claramente.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e contemplará seu destino. No fogo encontrará o que tanto deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
Fogo? Salvação? Mas por que não parava de uma vez por todas a maldita voz? Que tipo de babá instava a buscar uma fogueira? Isso nunca faria alguém dormir, mas sim incentivá-los a sair de suas camas e investigar os arredores.
Descansou a mão direita no corrimão de madeira enquanto olhava para a porta de entrada. Encontraria sua mãe lá fora? A porta se fecharia quando saiu? Não, não poderia dar essa opção como válida. Se isso tivesse acontecido, Sophia teria acordado rapidamente. Ninguém continuaria dormindo ao ouvir os gritos de uma cigana zangada. Essa reflexão a fez entender que sua mãe não deveria ser a autora dessa música e que, fora de sua casa, havia uma pessoa estranha. Por um momento duvidou sobre descer e resolver o enigma ou voltar para seu quarto. A segunda alternativa era a mais sensata e a teria tomado se a Mary do passado não tivesse desaparecido. No entanto, não era mais a mesma pessoa. Lorde Giesler a transformou completamente. Odiando ainda mais a causa de suas irracionalidades, desceu lentamente, sentindo na planta dos pés descalços a frieza e dureza de cada degrau. A melodia ficou tão forte e poderosa que, no meio da escada, ela não conseguiu mais mudar de ideia. Seu corpo estava preso, enfeitiçado pela voz harmoniosa. Pensando nesse fato irracional, ficou em frente à entrada, estendeu as mãos para as fechaduras e as girou uma a uma.
Quando abriu a porta, fechou os olhos quando sentiu a carícia de uma brisa noturna suave em seu rosto. A bata se moveu para trás, mas o laço impediu que se afastasse dela. Jamais havia sentido tanta paz, tanta tranquilidade. Era como se toda a inquietação que tinha vivido no passado nunca tivesse existido. Levou as mãos ao peito, captando como seu coração batia com lentidão. Continuava sem compreender a si mesma. Qualquer pessoa em sua situação estaria à beira da loucura. No entanto, ela desfrutava de um estado de repouso inverossímil.
«Abra os olhos, estenda suas mãos e aceite o destino que lhe ofereço. Toque nele; abrace-o... Encontre sua salvação...».
Tal como lhe indicaram as frases dessa canção que não parava, Mary abriu os olhos lentamente e ficou imóvel ao descobrir duas coisas: uma enorme fogueira no meio do jardim, que ardia sem a necessidade de lenha, e o maior corvo que tinha visto em sua vida, apoiado no corrimão de mármore. Aquela tranquilidade, aquela calma que notara percorrendo todas as partes de seu ser desapareceram quando viu como aquele imenso pássaro abria suas asas. Assustada com a aversão que sentia por esses tipos de animais, ela recuou, na esperança de entrar na sua casa novamente sem deixar o pássaro irritado. Mas não foi fácil avançar porque a porta, de maneira inexplicável, tinha se fechado. Com as costas apoiadas na madeira, fixou seus olhos de novo no animal. Este escondeu de novo as asas e a olhou. Quando os dois olhos se encontraram, Mary prendeu a respiração enquanto contemplava um fato inédito. Os corvos não tinham olhos negros? Então... por que os daquele animal eram azuis, muito parecidos, se não iguais aos do homem em que não queria pensar?
?Não tem nada melhor para fazer? Vá embora, pássaro miserável! Deixe-me em paz! ?Recriminou, num ato de valentia, o pássaro com a esperança de que se afastasse dela.
No entanto, o corvo não foi embora. Depois de ouvi-la, ele expandiu suas enormes asas novamente e as bateu com avidez. De repente, a brisa suave se tornou um tornado angustiante, elevando todas as folhas secas no chão para o céu. Horrorizada, ela fechou os olhos e colocou as mãos na frente do rosto para não se machucar. No instante em que se preparou para gritar que parasse, a tranquilidade voltou. Muito devagar, o mais lento que pôde, ela abriu os olhos, expulsou todo o ar retido em seus pulmões e afastou os braços. Então observou algo que a deixou paralisada. O maldito pássaro, aquele que queria ver longe dela, voou sobre o fogo desenhando enormes círculos.
?Não! ?Ela gritou enquanto corria em sua direção. Uma coisa era odiar esse tipo de animais e outra muito diferente era lhe desejar a morte. ?Afaste-se! Vai se queimar! —Continuou dizendo até ficar na frente da estranha fogueira.
Como da última vez, o corvo a ignorou e continuou seu voo sobre as chamas. A luz da grande fogueira alcançou a plumagem negra e a fez brilhar como uma estrela. De repente, seu olhar encontrou o do animal novamente. Mary começou a tremer, antecipando a terrível situação que veria em breve. Não podia testemunhar um ato tão horrendo. Por mais que não gostasse de tais pássaros, não seria capaz de viver com a dor de não ter evitado tal catástrofe. Reunindo a pouca força que tinha, levantou as mãos e começou a agitá-las, numa tentativa absurda de assustá-lo. No entanto, o corvo subiu ao céu, como se fosse um foguete, e logo mudou de direção, dirigindo-se para o interior do fogo em um mergulho.
?Não! ?Mary gritou horrorizada.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e você contemplará seu destino. Nas chamas você encontrará tanto o que deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
O animal não parou. Entrou na fogueira e ardeu. O que aconteceu depois deixou Mary muito confusa. Enquanto a voz continuava cantando, enquanto lágrimas de tristeza vagavam por seu rosto, a cor do fogo passou de laranja e vermelho para o branco e azul. Chocada ou perplexa, não conseguia descrever com precisão o estado em que estava. Talvez não houvesse uma palavra capaz de explicar que tipo de emoções e sensações a dominavam naquele momento.
«Não se afaste... Aí está... Sua salvação vem... Toque-o! Toque nele!».
A voz cantante insistia repetidamente. Sem tirar os olhos do fogo, enfeitiçada pela música e enfeitiçada pelo estranho fenômeno que testemunhou, aceitou a ordem e estendeu as mãos para as chamas brancas e azuis. As pontas de seus dedos não sentiram calor ou dor. O oposto. Uma leve cócega os recebeu quando passou por eles. Deu outro passo em direção ao fogo, desejando sentir aquele toque maravilhoso em todo o corpo. Se colocou no centro, no meio daquela fogueira incomum e começou a notar carícias fascinantes em sua pele. Nem a bata nem a camisola a impediram de sentir aquele toque magnífico. Cativada por esse estado de prazer, ela fechou os olhos e se rendeu à suavidade que a percorria. De repente, exatamente quando pensou que poderia morrer de prazer, seus lábios foram atacados e pressionados por uma boca. Ela parou de respirar, porque sua mente a informou sobre quem poderia beijá-la dessa maneira. Essa pressão, essa paixão e o ardor de tomá-la tinham um sobrenome único: Giesler. Tentou abrir os olhos para confirmar as suas suspeitas, mas não fez isso. Desejava continuar a sentir essa boca sobre a sua e que a liberdade que brotava em seu interior aumentasse. Por que lhe era tão agradável estar com ele? Por que não o odiava como se empenhava em fazer? E, por que não se retirava e voltava para casa? Todas as perguntas foram resolvidas com uma única resposta: porque o desejava. Sim, mesmo que lhe parecesse estranho, mesmo que tivesse dificuldade em admitir, ela desejava lorde Giesler. Mas... realmente que ele era sua salvação? A música se referia a esse homem específico? Como podia resgatá-la quem lhe converteu em uma mulher diferente? Até agora, sempre se gabou de ser uma Moore, de não ter em suas veias nem uma só gota de sangue Arany. No entanto, essa forma de reagir era mais própria de sua mãe que de seu pai... Com raiva da sua reflexão, abriu os olhos. A princípio, suas pupilas não lhe ofereceram uma imagem clara do lorde, mas com o passar dos segundos, o rosto ficou tão claro quanto a água de um rio. Assustada, porque seu corpo ardia de desejo de continuar em seus braços, de sentir o contato de seu robusto peito nu e de perceber a força de sua boca sobre a dela, deu um passo para trás e o olhou com estranheza. As chamas continuaram a cercá-lo, sua luz continuou iluminando a silhueta masculina que a tinha tão cativada. Alguma vez pôde imaginar que um homem como ele teria a coragem de admirá-la e desejá-la dessa maneira? Até que ponto devia sentir-se honrada ou apreciada? Devia aceitá-lo sem mais nem menos? E, o que estava vivendo? Sofreria algum transtorno mental? Porque não podia encontrar outra explicação ao que estava vendo e vivendo.
?Mary... vem... ?ele sussurrou com uma voz aveludada. ?Não saia do meu lado, meu amor... ?ele acrescentou, estendendo as mãos para ela.
Mary o observou em silêncio. O que devia fazer? O que desejava fazer? Suspirou fundo, para aplacar seu estado de excitação. Não conseguiu. Seu coração palpitava tão rápido que seu corpo se movia ao compasso daqueles batimentos. Sua pele buscava o contato que ele lhe proporcionava e sua boca ansiava aqueles lábios. Desviou o olhar do homem e o fixou no chão. Era uma alucinação, um sonho que o subconsciente lhe oferecia para entender de uma vez por todas que deveria se render a uma necessidade tão básica quanto o prazer carnal. Talvez o que a música estivesse tentando explicar fosse que ela só poderia ser salva aceitando em sonhos o que não poderia alcançar na vida real. Então... por que ela continuou se reprimindo? Porque construía muros quando tudo o que tinha a fazer era derrubá-los? Levantou seu rosto muito devagar, até que ambos os olhares se cruzaram novamente. Enfeitiçada não era a palavra exata para definir o que sentia por aquele homem. Tampouco era atração, nem desejo. Mas se negava a denominar algo tão imenso com um termo tão simples. Não. Ela não podia apaixonar-se por Lorde Giesler. Jamais o faria! A única coisa que tinha que fazer, era satisfazer essa parte de seu cérebro que a transtornava e que a normalidade retornasse a ela. Uma Moore! Já! Agora, mais do que nunca, seu sangue Arany a convidava a desfrutar do proibido, do imoral, do insano.
?Mary... ?voltou a dizer.
E desta vez não pensou, nem procurou os prós nem os contras da ação que realizaria. Se lançou a seus braços, aceitando com submissão o que aconteceria entre os dois.
?Sou sua! ?Gritou quando lorde Giesler a pegou nos braços.
?Para sempre? ?Perguntou ele aproximando essa boca que adorava a sua.
?Para sempre?Admitiu antes de lhe rodear com seus braços o pescoço e aproximar seus lábios aos do homem.
?Mary! Acorde de uma vez!
A voz de Madeleine e a sacudida que ela a sujeitou lhe fizeram voltar para sua casa, sua cama, seu quarto amado. Depois de abrir os olhos e ver a menininha ao seu lado, parecendo assustada, Mary se sentou e cobriu seu corpo excitado com o lençol.
?O que faz aqui? ?Perguntou com uma mistura de angústia e alívio.
?Tem que admitir que é a única que costuma ficar acordada a estas horas ?disse enquanto se sentava sobre a cama. ?Está bem? Você tem as bochechas vermelhas como as papoulas que Elizabeth cuida no jardim e seu cabelo está... molhado. ?Depois de dizer essas frases, se inclinou para Mary, estendeu a mão direita para a testa e rapidamente a afastou quando sentiu muito calor. ?Está doente! ?Exclamou espantada. ?Quer que chame a mãe? Te trago panos frescos?
?Não! ?Respondeu afastando os lençóis de seu corpo. Pulou da cama, caminhou em direção à janela enquanto aplacava o constrangimento e, uma vez que não conseguia se afastar da pequenina, virou-se para ela. O que poderia dizer a ela? Era certo falar sobre o sonho? Não, era melhor ficar calada. Pelo menos até encontrar uma explicação lógica para o que aconteceu. ?Apenas... Foi apenas um pesadelo ?disse apertando as mãos.
Madeleine ficou em silêncio por alguns segundos, observando a reação da irmã. Era estranho, apesar de Mary já ter se comportado de maneira diferente do resto do mundo. No entanto, algo não se encaixava. Ela nunca mentiu, como estava fazendo nesse momento. Mary era uma das pessoas que falava claramente, embora suas palavras magoassem o ser mais cruel da Terra. Por que agia assim? O que teria visto no sonho para assustá-la tanto? Havia apenas uma coisa que podia assustá-la, algo que ela zombava toda vez que o assunto aparecia: homens.
?Mary... ?começou a dizer enquanto colocava as mãos nos joelhos. ?Nesse pesadelo... viu fogo?
?Não!?Negou rapidamente a segunda das Moore.
?Um corvo??A pequena insistiu.
?Como te ocorre perguntar esse tipo de tolices? ?Respondeu indignada.
?Porque, de acordo com a mãe, quando ela sonhava com nosso pai, ela o viu deixar uma fogueira imensa e foi um corvo que a levou até ele.
?Disparates! ?Exclamou, acariciando seu rosto em desespero. ?Sonhos são produtos irreais. A parte inconsciente do nosso cérebro age quando estamos no estado de sonolência. Sonhos ou alucinações, querida intrometida, são vagas lembranças de acontecimentos que vivemos e nos produziu certa inquietação ou excitação. Da minha parte, tive um pesadelo com lorde Grayson. Como sempre, queria me humilhar em um debate sobre enxertos de pele em cicatrizes infectadas ?declarou categoricamente quando voltou para a cama. ?Então, não vi nenhum corvo ou fogo. Embora, agora que penso nisso... Os cabelos oleosos de Grayson não se parecem com penas molhadas? ?Acrescentou mordaz.
?Bem... lamento. Eu sei que o cavalheiro é um monstro. Papai sempre nos diz a coragem que você mostra quando o enfrenta ?Madeleine declarou sem desviar o olhar da irmã.
?Tolices!?Exclamou fazendo um movimento desdenhoso com a mão esquerda. ?Não é coragem, mas inteligência. Até um mosquito pode superar os debates desse petulante.
?Um mosquito? ?Retrucou Madeleine. ?Não dizem que os corvos são pássaros bastante inteligentes? ?Insistiu no assunto.
?Também comentam que um dia a raça humana aprenderá a respeitar e viver em paz para sempre. Mas não vamos falar sobre futuras falácias. Diga-me, qual foi o motivo da sua insônia? ?Mudou rapidamente a conversa.
?Eu senti Josephine aqui. ?Apontou para o peito. ?Algo aconteceu com ela.
?O que significa algo? ?Perguntou Mary. Não havia estudos científicos sobre isso, mas era verdade que todos falavam sobre a intensa relação que se formava no útero entre gêmeos e gêmeos idênticos. Essa união, essa percepção conjunta, apesar de não ser metodicamente estudada, ofereciam causas e efeitos reais.
?Seu coração ficou louco e fez o meu fazer isso também ?respondeu, subindo na cama para abraçar as pernas. ?Eu acho que ela encontrou o homem que se tornará seu marido. Embora também sinta que o conheceu de uma maneira pouco convencional. Eu percebi sua raiva, mas também um estranho... desejo ?alegou antes de suspirar.
?Mas... não disse que nunca encontraríamos um marido porque fomos submetidas à maldição que Jovenka nos enviou?
?Quebrou ?explicou olhando a camisola. ?Anne conseguiu derrotá-la graças a lorde Bennett. É por isso que, por alguns dias, todas vivemos num constante vaivém de sensações.
?O que quer dizer com isso? ?Perguntou, moendo o travesseiro com mais força do que o necessário.
?Não sentiu nada estranho? Não apreciou certas mudanças em seu corpo?
?Não ?mentiu.
Claro que tinha notado, sentido ou percebido! Mas não tinham nada a ver com maldições, mas com desejos carnais em relação a lorde Giesler. Seu corpo nu era a causa da perturbação mental que ela sofria! Agora entendia por que sua mãe estava com raiva de descobrir o que tinha acontecido. Não queria recriminar o fato de que ela o salvou, mas protegê-la da tentação!
?Pois eu sim ?Madeleine disse antes de jogar a cabeça para trás e suspirar novamente. ?Só espero que nenhuma de nós sofra e que Morgana nos ajude a encontrar o caminho certo.
?No caso hipotético de você estar certa... ?Mary começou a dizer enquanto acariciava o lençol com aparente tranquilidade. ?O que poderia acontecer?
?A visão que lhe contei alguns anos atrás seria cumprida ?Madeleine disse, fixando os olhos no rosto pálido da irmã.
?Entendo... ?Mary sussurrou enquanto tamborilava com as duas mãos o lençol. ?Mas é possível que não se cumpra ?insistiu. ?Lembre-se de que Elizabeth estava determinada a se casar com uma aristocrata e, realmente poderá cumprir seu desejo?
?Todas sabemos a razão pela qual Eli está determinada a alcançar essa classe social ?apontou a menina franzindo a testa. ?Mas, felizmente para ela, se apaixonará por um homem que a tratará como uma rainha.
?Disse a ela? Porque acho que isso pode confortá-la muito... ?disse zombando.
?Você sabe tão bem quanto eu que ela sofreu muito desde que Archie a traiu e essa foi a razão pela qual uma promessa tão absurda foi feita. No entanto, esquecerá o passado quando ele aparecer... ?revelou em tom de mistério.
?E você realmente acha que existe um homem que pode tolerar o comportamento de Josephine? ?Mary respondeu.
?Se existe alguém para você, por que não deveria haver para Josh? ?Respondeu com raiva.
?Certo. Essa tese carece de discussão. Se puder encontrar um homem capaz de suportar meu intelecto, Josh poderá encontrar alguém que possa dormir tranquilo enquanto tira brilho ao cano de sua nova arma. ?E depois dessas palavras, ela soltou uma risada.
?Não acredita em mim, certo??A jovem apontou tristemente. ?Para você, tudo o que posso ver são... visões infantis.
?O melhor que tem a doce fase infantil e inclusive a juvenil é que se pode fazer e dizer tudo o que lhe agrade, pois os mais velhos alegarão que são coisas da idade. No meu caso, por muito que pese aos nossos amados pais, considero que continuo na segunda. Por esse motivo faço e digo o que quero sem parar para pensar nas consequências desse comportamento ?garantiu.
?Mas logo terminará a etapa em que admite viver ?Madeleine disse esboçando um grande sorriso.
?Oh, que horror! Está insinuando que, quando me levantar, serei uma mulher adulta? ?E riu de novo. Quando terminou de rir, inclinou-se para a irmã, estendeu as mãos e colocou-as sobre as de Madeleine. ?Se veio para me divertir, conseguiu ?acrescentou dando tapinhas.
?Como pode ser tão cínica? ?A pequena a repreendeu enquanto se levantava da cama.
?O cinismo é apropriado para viver no mundo real. É lógico que, por sua idade, ainda não o tenha e que sonhe com uma vida cheia de fantasia e amor ?zombou. ?Garanto que adoro o teu positivismo, mas seja realista Madeleine, quem pode casar com uma mulher que antes de tomar banho tem que ter todas as suas armas limpas? Quem aceitará Anne, depois da morte de seus pretendentes? E Elizabeth? Você realmente acha que existe um homem que se renderá a seus pés quando descobrir que possui um coração negro sob sua beleza?
?E eu? Porque... quem vai aceitar uma moça que não pode tocar em ninguém, certo? ?Pulou da cama.
?O seu é um problema psíquico e tem uma solução. Basta usar luvas para...
?Você é uma mulher perversa! ?Madeleine retrucou. ?Tanto quanto foi Jovenka!
?Não fique nervosa... ?tentou acalmá-la. ?Certamente você age apenas para o nosso bem. Mas eu não gostaria que você se decepcionasse quando...
?Três dias! ?Gritou enquanto se dirigia para a porta. ?Em três dias tudo estará resolvido! E, nesse momento, serei eu quem ri, Mary.
?Três dias? Terei que esperar setenta e duas horas para confirmar que estou certa? ?Disse mordaz.
?Você se casará com o homem que viu esta noite em seus sonhos. ?Essa declaração deixou Mary tensa, mas ela tentou não mostrar a surpresa que as palavras haviam produzido. ?Ele lhe dará o que você nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!
?Por todos os livros que li! ?Continuou aparentemente divertida, embora ainda estivesse pasma com a alegação de Madeleine. ?Você acabou de me jogar uma maldição? Já não tivemos o suficiente com Anne?
?Continue assim, Mary. Continue pensando que nada vai mudar, que você é tão poderosa que pode controlar o mundo. Mas você esta errada ?disse enquanto abria a porta. ?Em três dias nossas irmãs voltarão e darão a nossos pais uma grande notícia. Quando isso acontecer... Sua vida cínica desaparecerá para sempre! ?Acrescentou antes de sair do quarto batendo a porta.
Mary não desviou o olhar da porta até que ouviu Madeleine fechar a sua. Era a primeira vez que discutiam. Jamais lhe fez mal, pois assumia que bastante dor lhe causava suportar dia após dia um comportamento tão abstraído e tímido. No entanto, desde que conheceu lorde Giesler, perdeu a cabeça. Não apenas sentia coisas indevidas, imorais e inapropriadas para ela, mas também o cinismo, enfatizado pela irmãzinha, aumentara. Talvez se tratasse de um mecanismo de defesa. Muitas pessoas agiam de maneira estranha para não mostrar ao mundo sua debilidade. Mas ela... Desde quando se tornou uma mulher fraca?
Irritada e decepcionada consigo mesma, afastou o lençol para o lado e caminhou lentamente em direção à janela. Não precisou fechar as cortinas para subir no peitoril da janela. Sua mãe ordenou que Shira as amarrasse nos dois lados para que a luz do dia chegasse ao quarto e a acordasse antes das nove da manhã. Subiu a camisola até as coxas e se sentou sobre o frio parapeito. Abraçou os joelhos e apoiou o queixo neles. Por que agiu assim com Madeleine? O que provocou sua fúria? A resposta surgiu sem a necessidade de esforço: Porque se tivesse razão, se a jovem vidente estivesse certa, o desejo, pelo qual lutou durante tantos anos, desapareceria e, tudo por quê? Por um homem. Esse gênero humano que odiava com todas suas forças porque a humilharam, a ultrajaram e, em mais de uma ocasião, cuspiram perto de seus sapatos para lhe deixar claro que não tinha valor algum, embora os seus conhecimentos fossem superiores aos deles.
Fechou os olhos e suspirou fundo, como se fosse uma anciã a ponto de expirar. Madeleine pensava que ela seria feliz com lorde Giesler? Duvidava. Era certo que a atração sexual entre ambos era ilógica, mas ninguém podia viver décadas junto a uma pessoa baseando-se na paixão. Ela, nos poucos momentos em que pensou em casamento, sonhava em conseguir o que seus pais possuíam: um casamento cheio de amor, respeito, consideração, apoio e acima de tudo confiança. Obviamente, não podia confiar em lorde Giesler, sua reputação como libertino era bastante considerável. Hoje poderia morrer beijando-a, tocando-a ou possuindo-a, mas... e amanhã? Bufou diante da reflexão tão anormal que tinha chegado, voltou para a cama, subiu nos lençóis e se cobriu com eles. Uma vez que notou o leve calor do sono, fechou os olhos e... abriu-os! Como se um dragão tivesse aparecido aos pés da cama, afastou os lençóis, se sentou e olhou para a porta.
?Como diabos soube? Como descobriu que sonhei com o corvo, com o fogo e com o lorde Giesler? ?Esbravejou antes de permanecer nessa posição o resto da noite.
Capítulo XIII
Nunca tinha vivido uma situação tão exasperante com Madeleine. Talvez porque, sendo a caçula das irmãs, o tratamento com ela sempre fora diferente. Nunca houve uma palavra ou um ato malicioso de sua parte, pelo contrário, raro era o dia em que não era obrigada a mimar ou protegê-la devido ao seu comportamento frágil. No entanto, durante os próximos dois dias, a doce e tenra Madeleine se tornou a vilã mais cruel do planeta. Toda vez que tinha a chance de conversar com ela, virava o rosto e levantava o queixo com orgulho. Todos os esforços que fez para suavizar a convivência entre as duas não obtiveram os resultados desejados. Madeleine nunca agiu assim. Era a primeira vez que tirava, de algum lugar de sua timidez, coragem e ousadia tão característica na família.
Se levantou da poltrona e esticou os braços, observando como suas trinta e três vértebras tomaram o lugar certo na coluna vertebral. Depois do chá, e depois de sofrer outra rejeição de Madeleine, decidiu se trancar na biblioteca e deixar o tempo passar antes de causar outra abordagem entre elas. Esperava que, durante aquelas três horas e antes da chegada do pôr do sol, Madeleine tivesse consciência de que havia cometido um erro. É claro que, uma vez que sua antiga relação retornasse, não haveria menção à bendita previsão. Tinha certeza de que o fracasso a humilharia a ponto de agravar seu caráter retraído.
Sob nenhuma circunstância duvidou sobre o que aconteceria quando o prazo indicado por sua irmã expirasse. A parte Moore, tão racional e sensata como sempre, afastou de sua mente qualquer assunto sobre previsões, bruxaria, magia ou feitiços e os manteve em alguma área do cérebro que usava como informação desnecessária. Tudo ao seu redor tinha uma explicação lógica, até a suposta maldição de Anne: isso nada mais era do que a conclusão de um compêndio de circunstâncias infelizes criados pelos dois noivos. Apesar disso, era uma lástima que Anne tivesse que sofrer as consequências de ações que não lhe correspondiam. Mas era assim que a sociedade hipócrita agia. Como não podiam culpar os mortos, porque consideravam falta de moralidade, dirigiam seus olhares e sussurros para os vivos, independentemente da inocência e do impacto sobre eles.
Depois de depositar o livro sobre a mesa à direita, se levantou do sofá e caminhou pela sala. Sentia um formigamento irritante nas pernas por mantê-las na mesma posição por tanto tempo. Muito lentamente, levantou a saia do descarado vestido azul, um que sua mãe comprou como castigo por sua contínua rebeldia, e mexeu os pés e o tornozelo. Felizmente, seu conhecimento profundo do corpo humano a alertou que não estavam machucados, mas contraídos pela falta de atividade. Deixou cair o tecido, cobrindo de novo os sapatos de couro que tinha decidido colocar nesse dia. Faltava apenas uma vassoura, um gorro cônico e um caldeirão para exibir a imagem de uma bruxa da qual todo mundo falava quando encontravam com ela na rua. Essa comparação, e a mistura real de sangue que possuíam as Moore, lhe fez sorrir. No fundo, não estavam mal encaminhadas. Se a premonição de Madeleine tivesse sido cumprida, até ela teria presumido que tinha origens mágicas. Talvez até admitisse que sua capacidade médica se devia, de certa forma, à origem cigana. Mas, felizmente, não era assim. Ela sempre soube que adquirir conhecimento seria a melhor ferramenta para realizar seu sonho: tornar-se uma pessoa tão extraordinária quanto seu pai. Portanto, durante suas leituras, nunca invocou nenhum espírito para ajudá-la a entender melhor os ensaios médicos. Era o suficiente ler e raciocinar. Essa era sua única habilidade e segredo. No entanto, apesar de ninguém mudar de ideia sobre a racionalidade necessária para a compreensão de todos os fatos, ela continuava dando voltas a um assunto. Como Madeleine descobriu os três elementos fundamentais de seu sonho? Embora considerasse a possibilidade de falar enquanto sua irmã tentava despertá-la, não terminava por aceitar essa afirmação como válida. Até o dia em que Anne partiu, esta nunca lhe fez referência a esse hábito inconsciente, e isso que dormia com ela desde que tinha uso da razão. Além disso, não tinha dúvida de que, se tivesse feito isso, teria a censurado assim que abrisse os olhos. Anne era a única das irmãs que não se sentia desvalorizada por sua inteligência e a confrontava sem piedade. Por esse motivo, toda vez que estava errada, havia a mais velha das Moore para lembrá-la de que, apesar de seu grande intelecto, tinha mais defeitos do que virtudes.
?Senhorita Mary! ?Shira exclamou abrindo a porta da biblioteca sem bater. ?Saia! Rápido!
?O que aconteceu? ?Perguntou, virando-se para ela tão rapidamente que suas pernas dobraram por falta de forças.
?Suas irmãs! Suas irmãs voltaram! ?Gritou feliz.
?Como disse? ?Mary retrucou arregalando os olhos.
?O que ouve! Exatamente agora, acaba de chegar uma carruagem com o brasão do visconde de Devon ?continuou eufórica. Vendo que a menina não era capaz de reagir, pois permanecia congelada no lugar e seu rosto empalideceu até adquirir a cor do leite, deu um passo em sua direção. ?Está bem? Já lhe disse mil vezes que não deve gastar tantas horas lendo esses livros. Ficará cega e sua pele desbotará. ?Shira estendeu a mão para Mary, mas ela deu um passo atrás, evitando qualquer contato. ?Sua mãe e Madeleine saíram para recebê-las ?lhe informou antes de se virar e seguir para a porta. ?Irá acompanhá-las ou explicou que decidiu continuar trancada na biblioteca?
?Sairei em breve ?comentou quase sem voz.
?Não faça elas esperarem senhorita Mary, ou temo que sua mãe a castigue novamente sem sair de casa por mais dois anos. ?Avisou antes de caminhar rapidamente para o corredor.
Haviam chegado! Estavam lá! Como era possível que Madeleine soubesse? Angustiada e atordoada, fechou os olhos e contou os dias que passaram desde que suas irmãs se foram. Não, ainda não tinha terminado o prazo que o visconde considerou oportuno para realizar o trabalho. Ainda restavam doze dias para o esperado retorno. Mantendo os olhos fechados, levou as mãos para o rosto e esfregou-o desesperada enquanto perambulava pelo centro da sala. Tinha que encontrar, o mais rápido possível, uma explicação lógica que a salvasse do atordoamento mental que sofria. Mas não encontrava com a rapidez que requeria. A opção de que Madeleine sabia desse fato antes dela não era válida. Nem a menininha saiu para a rua, nem ela saiu de casa, exceto quando Valéria a enganou para levá-la para a residência do irmão. Seria informada sobre o retorno durante a sua ausência? Não. Isso também não era plausível. Sua mãe não conseguia guardar um segredo que pertencia à família. Nada a faria calar, nem expressar a euforia que teria sentido depois de receber a notícia. No entanto, apesar de qualquer concepção surrealista, tinha acontecido. Suas irmãs estavam na entrada exatamente no dia que Madeleine mencionou. Realmente possuiria um dom Zíngaro? E se fosse assim... que lugar a lógica teria no mundo? Se o futuro pudesse ser previsto, deixariam de existir surpresas, os avanços médicos ou as preocupações para descobrir coisas novas. Bastaria procurar pessoas com a habilidade de Madeleine para que respondessem às perguntas que surgissem ao longo dos anos. O mundo se renderia a pensamentos transcendentais, deixaria de lado o real e basearia suas vidas na busca do imaginário, assim como fizeram os grandes pensadores. Refletindo sobre essa opção, tirou as mãos do rosto e arregalou os olhos. As teorias filosóficas seriam verdadeiras? Esses grandes gênios evocariam a verdade? Teriam o mesmo dom que sua irmã e, por esse motivo, viveram e pensaram de maneira tão diferente? Talvez Platão, Sócrates, Aristóteles e até o próprio Emanuel Kant proclamaram suas ideias depois de visualizá-las ou apresentá-las. Desesperada, apertou tanto os punhos que as unhas se cravaram nas palmas das mãos. Não devia refletir sobre o passado, mas sim no futuro. Segundo Madeleine, ela se casaria com lorde Giesler, seria feliz e ele a ajudaria a conseguir tudo o que sempre quis. Isso faria qualquer mulher feliz que, entre seus planos, abrigasse a possibilidade de conseguir um bom casamento. Mas ela nunca considerou uma ideia tão absurda. Apesar da afirmação de sua irmã, sabia que, uma vez que aceitasse o sobrenome Giesler, este a converteria em uma pessoa sem decisão, sem autoridade. Em poucas palavras: a anularia em todos os sentidos. Furiosa, correu para a janela, de onde podia contemplar o lado de fora de sua casa sem ser descoberta. Seu coração parou de bater quando viu que sua mãe abraçava Anne e ambas davam pequenos saltinhos de alegria. Junto a elas, Madeleine fazia o mesmo com Josh, que continuava vestindo roupas mais próprias de homens que de mulheres. Então viu como Elizabeth saía da carruagem. Embora escondesse o rosto com a aba larga do bonito chapéu branco, Mary notou que seus olhos estavam fixos no chão, como se tivesse vergonha de voltar para sua humilde casa. A mãe, ao vê-la, se afastou de Anne e a abraçou. Elizabeth não evitou o abraço, mas manteve os braços estendidos, como se não tivesse forças para abraçá-la. Um comportamento atípico nela porque, embora sempre se considerasse superior as outras por causa de sua beleza exuberante, nunca rejeitou uma carícia ou um abraço materno. Fechou os olhos, deixando para trás a estranha atitude de Elizabeth e se concentrando na questão que a preocupava. Como deveria agir? Como lutaria contra algo que ainda não havia chegado e que não se deseja? Quando obteve a resposta, arregalou os olhos e exibiu o sorriso mais maligno que sua boca pode esboçar em um momento tão exasperado. Ela tinha a solução para o problema. Felizmente para ela, sua mente ainda estava lúcida, apesar do colapso que suportava. O objetivo era muito simples: lutar com unhas e dentes para que a profecia de Madeleine não se cumprisse. Essa era uma das vantagens de conhecer o futuro, que se podia encontrar a maneira mais eficaz de evitá-lo. Satisfeita, feliz e cheia de energia, se virou para a porta e caminhou pela sala, juntando a ponta do pé esquerdo com o calcanhar do lado direito e vice-versa. Se suas irmãs entrassem em casa sem que ela as cumprimentasse corretamente, sua mãe ficaria com tanta raiva que aumentaria o castigo por mais alguns meses. E assim começava o plano para destruir seu futuro. Quanto mais castigos recebesse, menos chances teria de sair de casa e, é claro, as chances de encontrar aquele gigante com olhos claros e cabelos loiros seriam tão reduzidas que os chamaria de nada.
?Mary! ?Anne gritou quando ela entrou na biblioteca. ?Por que não veio nos receber? Estava de novo absorta em outra teoria sobre a radicalização de doenças infecciosas? ?Antes de receber uma resposta, avançou até ela, a abraçou e a fez girar. ?Senti sua falta, rata de biblioteca! ?acrescentou depois de lhe dar dois beijos estalados.
?Certeza? ?Estalou cética.
Enquanto as gêmeas falavam com Elizabeth na galeria, que lhes informou que se retirava ao seu quarto para descansar, Mary observou o rosto de Anne. Tinha um brilho especial nos olhos e, pela primeira vez desde a morte de Dick, irradiava felicidade. Então voltou sua atenção para Madeleine que, depois de esperar que Eli subisse para seu quarto, caminhou com Josh para onde elas estavam. Quando se entreolharam, a bruxinha deu a ela um sorriso tão pérfido que a deixou congelada. Esse gesto expressou tanta diversão e triunfo, que a perplexidade entre as profecias absurdas e o desaparecimento da razão voltou à sua mente.
?Por que não saiu para recebê-las? ?Esbravejou sua mãe, colocando as mãos na cintura. ?Quer ficar trancada pelo resto da vida? Porque eu garanto que é o castigo que você merece.
?Sinto muito, mãe. Fiquei tão surpresa com a chegada de minhas irmãs que fui incapaz de reagir. ?Nesse momento, Madeleine soltou uma sonora gargalhada. ?Mas se acha que devo ser castigada, desta vez não discutirei ?Mary persistiu antes de ser agarrada pelos braços fortes de Josh.
?Oh, mãe! ?Anne interveio, pegando as mãos de Sophia. ?Eu imploro, não a castigue hoje. Tenho que lhe dar ótimas notícias e não gostaria que Mary ficasse triste em um dia tão importante para mim.
«Para o inferno, Anne! ?pensou Mary. ?Não é um bom momento para assumir a postura de irmã solidária e protetora».
?Do que se trata? ?A mãe perguntou curiosa, fazendo desaparecer a raiva que causou a desobediência da segunda de suas filhas. ?Talvez seja por isso que voltaram tão cedo? ?Insistiu, sem afastar os olhos de Anne que tinha se separado dela o suficiente para começar a dar voltas.
?Vai se casar com o Visconde! ?Declarou Josh ao retornar ao lado de sua irmã gêmea. Se apoiou na moldura da porta, adotou uma postura típica masculina e olhou para sua mãe. ?Ele pediu e ela não pôde recusar ?acrescentou.
?De verdade? ?Perguntou a mãe surpresa, colocando as mãos nos ombros de Anne para fazê-la parar. ?Está certa da decisão que tomou?
?Sim ?respondeu, abaixando um pouco o rosto para esconder o rubor. ?Nunca estive tão segura de algo. Logan é o homem que esperei por toda a minha vida e o único que nos salvará da maldição. ?E aí terminou sua explicação. Era responsabilidade de Logan revelar ou não sua origem. Embora sua mãe deveria entender que, se ela o aceitou depois do que aconteceu no passado, o motivo era mais que evidente.
?Acho que já nos livrou dela ?Madeleine admitiu dando um passo à frente.
?Por que diz isso? ?Josh fez a pergunta que, quando a ouviu falar, se afastou do batente da porta, descruzou os braços e as pernas e seguiu a irmã gêmea.
?Pressenti faz alguns dias ?continuou dizendo a mais nova. ?Percebi que a escuridão ao nosso redor desapareceu. Agora só há luz sobre nós.
?Percebeu mais alguma coisa? ?Josh queria saber, e Madeleine se aproximou de por trás e falou entre sussurros.
?Você quer dizer a mudança emocional que sofreu ultimamente? Ou quer me perguntar sobre os sentimentos que teve em relação a um jovem mais severo do que um batalhão de soldados? ?Murmurou, antes de sorrir de orelha a orelha.
?Maldita seja! ?resmungou, revirando os olhos. ?Um dia poderei ter um segredo só para mim?
?Nunca ?Madeleine respondeu antes de se virar para ela e abraçá-la novamente.
?Há algo mais que eu deveria saber? ?Sophia disse, estreitando os olhos ao ver as duas menores sussurrando secretamente.
?Não! ?Josephine negou rapidamente se separando de Madeleine.
?Bem, Josh preciso lhe contar algo sobre o novo membro da família ?Anne interveio zombando.
?Novo membro??soltou a mãe arregalando os olhos. ?A que se refere?
?Se chama Galeón ?Josh respondeu feliz. ?É um dos cavalos que o visconde tem na residência e, devido à conexão que tivemos, me presenteou.
?Um cavalo? ?Mary estalou surpresa. ?E onde diabos pensou em mantê-lo, no seu quarto?
Sophia recuperou a cor do rosto, que empalideceu ao interpretar a afirmação de forma inadequada e respirou calmamente. Nunca considerou a possibilidade de que Josh se comportasse inadequadamente, mas depois de ouvir que a maldição se foi, tudo poderia acontecer...
?De verdade? ?Interveio Madeleine. ?E, como é?
?Ele é muito bom e inteligente ?declarou olhando para Mary. ?Cavalguei sobre ele durante toda a viagem. Não o viu? Amarrei-o em um dos ramos da árvore da entrada. Se quiser, podemos sair para que o conheça.
?Claro! ?A menina exclamou. ?Mal posso esperar para conhecer o novo membro Moore. Além disso, tenho o pressentimento de que esse cavalo te ajudará a conseguir aquilo que tanto sonhou ?lhe assegurou enquanto ambas caminhavam para a saída.
?É outra de suas visões? ?Josh estalou estreitando os olhos.
?Não. Desta vez é apenas um palpite... ?ela alegou misteriosamente enquanto a pegava pelo braço e a levava para fora.
Mas antes das duas saírem, Madeleine virou seu rosto para Mary. Quando ambas se encontraram com o olhar, a jovem separou os lábios para lhe lançar uma mensagem que só ela pôde captar: «Começa sua mudança». Essas três palavras lhe causaram um calafrio tão mortal que tentou apaziguá-lo, concentrando-se na irmã ausente.
?A propósito, onde está Elizabeth??Perguntou virando-se para Anne.
?Sofre uma tremenda dor de cabeça ?respondeu enquanto se sentava. ?Sofre desde sábado à noite. Embora me ofereci para aliviar sua dor, não quis aceitar qualquer ajuda da minha parte. Sinceramente, não é a mesma desde aquele dia ?comentou reflexiva. ?Durante a primeira viagem a Londres, decidiu viajar na segunda carruagem, acompanhada por Howlett, valete de Logan. Pensei que a dor desapareceria, porque o jovem me disse que tinha a solução para isso, mas não foi assim. Na última pousada que paramos para descansar, ficou todo o tempo dentro do veículo e não saiu dali até que teve que entrar no que viemos. Insisti em oferecer-lhe um analgésico, mas não aceitou. Se inclinou na direção da janela, fechou os olhos e não os abriu até que lhe anunciei que havíamos chegado ?explicou Anne com tristeza. Nutria a esperança de que Elizabeth não agisse dessa forma depois da notícia de seu compromisso com Logan. No entanto, nada podia ser dado como certo com ela.
?A viagem lhe provocou isso... ?concordou Sophia após assumir que, pela primeira vez, a inveja podia estar causando a Elizabeth um terrível desapego familiar.
?Se quiser, posso aparecer no seu quarto e descobrir ?declarou Mary colocando-se na frente delas.
?Temo que essa dor não desapareça com nenhum remédio seu ?Anne respondeu enquanto enroscava os dedos na saia do vestido.
?Por que diz isso??A mãe retrucou inquieta.
?Porque acho que não lhe agradou a notícia do meu compromisso. Você sabe que, desde o que aconteceu com Archie, ela insiste em se casar com um aristocrata e talvez o fato de eu ter conseguido sem pretender e sem sonhar...
?Bobagens! ?Mary a interrompeu. ?Elizabeth é uma presunçosa, uma petulante e um pouco estúpida, como os dessa bendita classe social, mas por suas veias e as nossas corre o mesmo sangue. Estou certa de que a dor de cabeça tem uma causa lógica. Não tenho a menor dúvida de que agirá como sempre uma vez que desapareça ?alegou como se fosse uma advogada defendendo seu cliente.
?Mas se você sair agora, não ouvirá o que aconteceu comigo durante esses dias. Não quer saber como Logan me pediu em casamento? ?Anne estalou estreitando os olhos.
?Certamente posso adivinhar a história sem precisar da ajuda de Madeleine... ?Mary disse colocando um dedo no queixo, enquanto batia no chão com a ponta de seu pé direito e fixava os olhos no teto. ?Como não teve que cuidar de sua virtude, porque Dick lhe tirou isso, o seduziu até que caísse aos seus pés. Após vários encontros clandestinos, decidiu que, devido à sua constituição e força, não encontraria outro homem que a satisfizesse na cama tanto quanto ele. Então você usou sua origem cigana para lançar um feitiço. Este agiu imediatamente, fazendo com que o pobre visconde se apaixonasse por você e te pedisse casamento, estou certa? ?Explicou mordaz.
?Mary Moore Arany!?Clamou sua mãe se levantando de um salto. ?Como se atreve a falar com sua irmã de maneira tão descarada e inapropriada? Por que não seleciona tudo o que aparece em sua mente e escolhe a coisa certa a cada momento?
?Vai me castigar? ?Teimou fingindo medo. ?Tenho certeza que mereço por cometer tanta insolência ?insistiu.
?Foi isso mesmo que aconteceu ?Anne interrompeu a conversa entre sua mãe zangada e Mary, esboçando um grande sorriso. Se os anos de experiência com ela não a enganavam, ela tentou executar um plano que implicava a palavra castigo. O que havia acontecido durante sua ausência? Por que agia dessa forma tão pouco racional? O melhor era descobrir antes que Logan aparecesse para pedir formalmente sua mão e se encontrasse no meio de uma grave disputa familiar. ?Embora você esteja errada sobre uma coisa, eu não o seduzi, ele foi quem me cativou e ambos chegamos à conclusão que, devido à nossa afinidade sexual, era conveniente compartilhar o resto de nossas vidas sob o mesmo quarto antes de manter encontros secretos e esporádicos.
Essa resposta deixou Sophia sem palavras, mas elas causaram mais estranheza em Mary. Como poderia falar assim na frente de sua mãe? Sua irmã havia perdido o pouco juízo que tinha? Se, como Madeleine disse, a maldição desapareceu, arrastou a baixa moralidade e bom senso de Anne com ela. Jovenka não teve mais de cem amantes? Bem, depois de ouvi-la, não lhe cabia a menor dúvida que, se o visconde corria a mesma sorte que os dois anteriores pretendentes, Anne superaria a velha cigana.
?Visite Elizabeth e descubra o que acontece com ela ?comentou Sophia uma vez que acalmou o imenso sufoco. ?Em seguida, tranque-se no seu quarto até eu chamá-la para jantar. Preciso conversar com seu pai sobre a atitude que você está adotando desde que operou lorde Giesler. Creio que...
?Operar? ?Anne disse surpresa. ?Lorde Giesler? E continua vivo?
?Sim ?Mary afirmou com orgulho. ?Lorde Giesler está são e salvo graças a minha sábia decisão e talento ?continuou com soberba.
?Tem que me contar tudo! ?Perguntou Anne se levantando da poltrona.
?Fará, mas quando terminar de me contar o que aconteceu durante sua ausência ?Sophia respondeu com autoridade.
?Então, se me desculparem, seria conveniente que visite Elizabeth ?disse Mary dando grandes passos para a porta antes que Anne interviesse de novo e sua mãe mudasse de opinião.
?Não vá muito longe ?Anne avisou quando sua irmã se aproximou da porta. ?Temos uma conversa pendente.
?Certamente não será tão divertida como a tua... ?apontou antes de sair e fechar.
Capítulo XIV
Depois que ouviu Anne começar sua história, ela encostou as costas na porta e suspirou profundamente. Nada, que sua primeira tentativa para que a castigassem saiu como esperava. Como conseguiu isso? Se tivesse falado com Anne dessa maneira descarada, antes que todas pensassem que a bendita maldição terminou, teria tido tal retaliação que nada nem ninguém a teria consolado em anos. No entanto, lá estava ela, ilesa, apesar do seu esforço para se magoar. Olhou para o andar de cima e franziu a testa ao lembrar que Elizabeth não se apresentou na biblioteca para cumprimentá-la. Ainda estava se comportando de maneira estranha. Até o momento, a irmã arrogante sempre agia como uma verdadeira aristocrata, incluindo, aquele comportamento arrogante, a hipocrisia que a classe social mostrava ao cumprimentar mesmo quando não queriam. Mas, por algum motivo, não reagiu como de costume. Não importava se sua cabeça doía, que estava enjoada ou que tinha quebrado um ombro, Elizabeth nunca evitava um encontro em família e menos depois de uma viagem como a que ela acabou de fazer. Quantas vezes saiu para fazer compras e, depois de voltar, aparecia diante dela para lhe contar tudo o que fez sem esquecer um mísero detalhe? Tantas que não se lembrava. No entanto, parecia que a viagem a transformou até o ponto de esquecer um princípio tão básico como era a cordialidade. De repente, a resposta que estava procurando para obter o castigo desejado apareceu. Talvez, se ela a censurasse por esse comportamento inadequado, sua mãe abandonaria a atitude passiva que adotava e retornaria a mulher que, com apenas um olhar, fazia suas filhas tremerem. Só esperava que Eli não agisse com a mesma benevolência que Anne. Realmente não precisava da compaixão de nenhuma de suas irmãs dessa vez.
Sem poder apagar o sorriso que sua boca desenhou ao ter outra alternativa entre as mãos, subiu as escadas de dois em dois. Mal respirou quando correu pelo corredor, nem quando se colocou na frente da porta. Tinha um novo objetivo e devia realizá-lo o quanto antes. Desesperada, agarrou a maçaneta, virou e entrou sem pedir permissão. Mas toda a emoção e felicidade que viveu durante a corrida, desapareceu de repente ao ver que Elizabeth não se encontrava onde ela esperava. O edredom permanecia encolhido aos pés da cama, o lençol jogado para o lado direito e o vestido que sua irmã usava quando chegou, estava no chão, jogado descuidadamente. Esse detalhe deixou Mary bastante confusa. Nunca, desde que se lembrava, Elizabeth havia tratado um vestido assim. Cuidava deles e os mimava como se fossem seus filhos. Às vezes, ela até supervisionava Shira quando os passava e engomava. O que teria acontecido com ela para agir dessa maneira? Seu coração começou a bater rapidamente, alertando-a de que a resposta que teria não seria do seu agrado. Tentou afastar aquele palpite, mais típico de Arany do que do sangue Moore, e se concentrou em tudo aquilo que observava. Não se deixaria levar por especulações absurdas, sua experiência no campo da medicina lhe sugeria que devia analisar tudo aquilo que encontrava para chegar a uma conclusão real.
Caminhou lentamente até a almofada, levantou-a e abriu a boca quando viu que a camisola não estava no lugar. Desde quando Elizabeth saía do quarto sem usar um de seus lindos vestidos ou sem arrumar mil vezes o penteado? Mais preocupada se possível, ela se dirigiu para a penteadeira. Sua irmã tinha uma grande variedade de utensílios para usar e embelezar um penteado, além de quatro chapéus de cores diferentes, expostos com muito cuidado no cabideiro que seu pai colocou em cima do espelho e quatro pincéis de diferentes materiais e formas. No entanto, Mary não prestou atenção aos objetos que prolongavam a harmonia da sala, mas ao que estava quebrado: o chapeuzinho que Elizabeth usava quando voltou. Ele se abaixou devagar e o pegou do chão. O que aconteceu? A ideia que Anne comentou ganhou força e intensidade. Apesar de não querer admiti-lo, todas as provas apontavam para essa opção. Irritada, porque não podia tolerar o ciúme tomando conta de Eli e sua terrível resposta emocional arruinando a pacífica vida familiar, ela deixou o chapéu branco na penteadeira e saiu rapidamente do quarto. Agora sua mãe não teria escolha senão castiga-la, porque os gritos de censura que ela daria a terceira das Moore seriam ouvidos até na própria Alemanha.
Pisando o chão como se quisesse quebrá-lo, percorreu o corredor de forma apressada. Levantou a saia do atrevido vestido e desceu as escadas com tal rapidez, que parecia ter brotado asas nos tornozelos. A situação seria resolvida no momento em que a encontrasse, e se tivesse que procurar em todos os cantos de sua casa, ela faria.
Mas não a encontrou... Elizabeth não estava dentro de casa.
Depois de percorrer cada esconderijo, por pouco mais de meia hora, não encontrou sinal da moça. Só havia um lugar para procurá-la: a estufa. Mary passou pela porta da biblioteca e ouviu como Anne continuava contando sua linda história de amor com o visconde, enquanto sua mãe se mantinha em silêncio. Nenhuma das duas suspeitava que a terceira das irmãs houvesse desaparecido. Tinham certeza que estava em seu quarto, descansando e sofrendo uma terrível dor de cabeça. Por alguns segundos, pensou em alertá-las sobre o problema, mas depois descartou essa opção. Se queria ser castigada, teria que reprovar o comportamento infantil da irmã. Depois de bufar, porque não gostava de ocupar o papel de mãe e muito menos quando procurava uma reprimenda, foi até a porta de saída. Uma vez que a abriu, foi incapaz de afastar o olhar da imagem que se produzia do lado de fora.
Madeleine estava no meio do jardim, aplaudindo a atitude de Josh. A gêmea cavalgava ao redor dela, dirigindo o animal com temperança e segurança, como um autêntico soldado. Mantinha as costas retas, enquanto seu corpo subia e descia ao ritmo do trote. Mary fixou os olhos no rosto da jovem e contemplou um orgulho e uma satisfação que invejou por alguns segundos. Então assistiu o movimento compassado de sua trança. O cabelo branco que Josh tanto detestava a fazia tão bonita, que qualquer homem ficaria prostrado a seus pés. Não entendia como ela ainda se chamava a irmã mais feia quando na verdade era uma jovem muito bonita. Por que eram obrigadas a pensar que só alcançariam uma beleza real e feminina se possuíssem os traços que ditavam os cânones sociais? Josh, apesar de sua contínua negação, era preciosa não só por sua diferença física, mas também por seu caráter. E inclusive esse comportamento selvagem que apresentava diariamente engrandecia esse esplendor feminino.
Admiração. Esse sentimento brotou em Mary ao contemplar a majestosa habilidade de Josh que, como acontecia a ela no campo da medicina, era difícil de superar. Não importava que todo mundo alegasse que seu dom era mais próprio de um homem que o de uma mulher, ela o possuía e exibia com muita dignidade. Mary suspirou fundo, refletindo sobre o futuro da jovem. Qual seria o seu destino? Se ela admitisse que a maldição existia, o que ainda não fez, confiaria que encontraria um marido capaz de aceitar seu comportamento estranho, mas ela sabia que isso não seria possível. Nenhum homem, dos que tinha conhecido até o momento, suportaria que sua esposa fosse mais preparada em temas masculinos que ele.
Deu um passo em frente, sem poder desviar o olhar dessa união entre humano e animal. Nunca se referiu a uma atividade tão branda para ela como expectadora, mas foi assim no fim. Majestade, beleza, divindade ou qualquer palavra que procurasse para defini-la não alcançaria a realidade. Josephine era, sem dúvida, uma amazona, uma guerreira, uma deusa a cavalo e onde ambos expressavam, num ato tão simples quanto correr, uma cumplicidade tão extraordinária que qualquer cavaleiro enlouqueceria para alcançar. No entanto, a magia da situação celestial desapareceu quando Mary percebeu como os quatro cascos do animal se cravavam repetidamente na grama, aquela que seus pais tão bem cuidavam.
?Mas como te ocorreu cavalgar por nosso jardim! ?Gritou para Josephine caminhando em sua direção. ?Não se lembra do esforço que nossos pais fizeram para mantê-lo desta forma? Demoraram anos para mantê-lo assim!
Josh, ao ouvi-la, moveu as rédeas de Galeão para que este se dirigisse para a irmã berrante. Uma vez que se colocou diante dela, e a observou tão pequenina e assustada, um sorriso maléfico se desenhou em seu rosto.
?Afasta agora mesmo esse perisodáctilo do meu lado! ?Lhe pediu enquanto andava para trás. Só parou quando suas costas tocaram o grosso muro de pedra que dividia o jardim da casa.
?Peri... o quê? ?Josh perguntou, descansando os antebraços na crina do cavalo. ?Se chama Galeón.
?Perisodáctilo ?Mary repetiu sem diminuir a raiva ou o medo que sentia na presença do grande animal, que a olhava com seus enormes olhos castanhos. ?Assim se denomina os mamíferos placentários. Aqueles que possuem em suas extremidades um número ímpar de dedos. Como pode ver, seu novo amigo tem um em cada perna e este se denomina casco.
?Gosta de ser chamado desse modo estranho, Galeón? ?Josh lhe perguntou, inclinando-se para a orelha esquerda do animal. Este, como resposta, relinchou e moveu a cabeça. Atitude que deixou Mary mais surpresa se isso fosse possível. ?Não volte a chamá-lo por esse nome porque não gosta.
?Pois não me importa se gosta ou não! ?Respondeu, movendo-se muito lentamente para a esquerda para sair daquela encruzilhada mortal.
?Para onde vai? ?Josh retrucou, depois de açoitar Galleon para andar atrás de sua irmã.
?Não me siga! Por acaso não sabe que esse quadrúpede pode me matar? ?Esbravejou sem olhar para ela e sem parar de andar.
?Galeón é inofensivo...
?Sim, é claro, como as benditas armas que você dorme até levantar ?respondeu se virando para as duas em um ato de coragem. ?Devo deduzir que esqueceu seu velho hábito de jogar com espadas, adagas ou pistolas para substituí-lo por... isso? ?Argumentou, apontando para o animal com um dedo.
?Você realmente acha que eu esqueci delas? ?Respondeu antes de soltar uma risada leve e levantar a perna da calça para mostrar a faca que estava escondendo na bota. ?Sempre estarão comigo, Mary. São e serão meus únicos aliados na luta contra um mundo injusto ?declarou firmemente.
?Quer lutar contra as injustiças? ?Repreendeu. -?Bem, precisará de um bom arsenal, Josh, porque posso garantir que encontrará, ao longo de sua vida, mais de um milhão.
?Vou comprá-los assim que... ?tentou responder, mas ficou em silêncio quando observou a presença de Madeleine que, como era habitual nela, apareceu sem fazer nenhum ruído.
?Aonde você vai Mary? ?A menina perguntou depois de acariciar o pescoço de Galeón. ?Está procurando sua mudança? ?Acrescentou sarcástica.
?Não ?negou veementemente. ?Estou procurando Elizabeth, e sobre minha mudança, posso garantir que sei como detê-la ?murmurou altiva.
?Se você diz... ?Madeleine respondeu exibindo um grande sorriso.
?Se retirou para seu quarto ?Josh interveio enquanto descia do cavalo. ?Sofre de uma terrível dor de cabeça desde...
?Sábado. Sim, eu sei ?Mary a cortou. ?Por esse motivo, minha mãe ordenou que eu a visitasse. Quer que eu a ajude a acalmar sua dor. No entanto, quando apareci no seu quarto, não a encontrei ?continuou.
?Estará na estufa ?Josh disse sem mostrar nenhum sinal de preocupação. ?Sabe que as ervas que cultiva são muito importantes para ela. Durante esses dias, se perguntou se Madeleine seria capaz de cuidar delas, como indicou. Talvez, apesar da dor de cabeça, quis confirmar que não quebrou um caule ou caiu uma folha ?acrescentou sorrindo enquanto pegava as rédeas e as enrolava entre os dedos.
?Quer que te acompanhe? ?Madeleine se ofereceu. ?Me fará bem falar com ela. Não quero que se zangue por algo que puder fazer.
?Não. Me interessa mais que passe seu tempo vigiando ao Josh e a esse bicho. Não sei onde pretende colocá-lo, mas não creio que a escolha que tenha tomado seja adequada...
?Pedirei ao pai para construirmos um estábulo ?assinalou a referida, virando Galeón em direção ao portão externo do jardim. ?Há espaço suficiente para...
Mary parou de ouvir a ideia futurista de Josh quando Madeleine a agarrou pelo braço e a puxou.
?Não esqueça o que eu te disse. Aceite de uma vez por todas o seu destino.
?Não, se puder evitar ?resmungou antes de se soltar daquele aperto e caminhar em direção à estufa enquanto ouvia a criança dar uma grande risada novamente.
***
Se pensou, por um momento, que o seu mau humor desapareceria durante o caminho para a estufa, se equivocou. Após a perseverança de Madeleine, sua raiva atingiu um nível insuperável. Ela estava com tanta raiva que podia aparecer diante de Elizabeth e, sem dizer uma única palavra, pegá-la pelos cabelos para arrastá-la para dentro de casa, como se fosse uma mulher da Pré-História. Pretendia esmagá-la? Bem, não o fez! Tudo o que conseguiu foi atormentá-la para alcançar a maneira de destruir o suposto futuro.
Com as bochechas tão vermelhas quanto as pétalas de uma Gerbera, ela apareceu na frente da porta da estufa e a abriu com tanta brusquidão que as paredes de vidro tremeram e a saia do vestido foi puxada para trás. Sem fechar, deu dois passos à frente e olhou em volta, procurando a familiar silhueta feminina. Mas não a encontrou com tanta facilidade.
Depois de fechar, começou a murmurar mais de uma dezena de impróprios inadequados para uma mulher. Logo caminhou decidida pelo estreito corredor que levava ao lago que seu pai encomendou a construção. A cada passo, seu nariz capturava um cheiro diferente, tornando-a incapaz de descobrir qual flor emitia uma fragrância específica. Parou no meio do caminho e observou tanto o que encontrou a sua direita como a sua esquerda. Um éden. Elizabeth construíra, sob aquelas paredes envidraçadas, um belo lugar cheio de cores e perfumes. Se concentrou em seu alvo e avançou lentamente, sem desviar o olhar do arco-íris floral dos dois lados. Antes de chegar à pequena cisterna, teve que desviar dos grandes galhos da única árvore que sua irmã plantou. Sorriu ao se lembrar do dia em que ela apareceu com aquela mudinha de laranjeira. Não tinha mais de seis anos e mostrava tal entusiasmo que seus olhos brilhavam como duas estrelas. Depois que explicou aos pais o que pretendia fazer com o pequeno talo, Elizabeth saiu para o jardim, olhou para o céu e seguiu para o lado esquerdo da casa. Depois cavou um buraco com suas próprias mãos para plantá-lo enquanto seus pais a observavam em silêncio. Dois meses depois, começaram a construir a estufa e, quando terminaram, Elizabeth se tornou a fada das plantas. Não podia calcular quantas classes possuía nem o que podia fazer com elas, mas sim admitia que seu dom havia se desenvolvido com grande mestria.
Com a imagem do maravilhoso rosto infantil coberto de terra, era estranho o dia em que não chegava manchado em sua casa, e pensando sobre a mudança que sofreu após a traição de Archie, avançou. Então, enquanto o som da roda que movia a água da lagoa alcançava seus ouvidos, encontrou a silhueta que procurava.
As frases que escolheu para reprovar seu comportamento inapropriado, desapareceram de imediato ao contemplá-la daquela maneira. Sua suposição foi confirmada e, em vez de se sentir feliz, conjecturando outra teoria correta, entristeceu. Como deduziu, Eli tinha saído de camisola. Mas não pensou que a encontraria com um aspecto tão desleixado. O seu cabelo, habitualmente recolhido com cuidado, estava solto e frisado, como se não o tivesse escovado em dias. Depois observou a planta dos pés e franziu a testa ao vê-las tão sujas e com manchas de sangue. A mão esquerda de Elizabeth estendia-se frouxa, sem forças, sobre essa parte de seu corpo, enquanto a outra se movia em círculos sobre a água do diminuto lago.
Por um segundo, duvidou se deveria insistir no motivo de sua presença ou deixá-la sozinha com seus pensamentos. Não teve que pensar muito a resposta, pois esta apareceu no momento que a ouviu soluçar.
?Eli? ?Perguntou reduzindo a distância entre elas. ?Está tudo bem? ?Esperou que lhe respondesse, ao não fazê-lo, prosseguiu: ?Anne me disse que sofre uma terrível dor de cabeça e vim para acalmar essa dor.
?Pode ir, Mary. Minha dor não desaparecerá com nada... ?disse depois de alguns segundos angustiantes.
?Duvido ?afirmou colocando a mão direita no ombro esquerdo de Elizabeth. ?Sabe que, quando me empenho, nenhuma dor ou doença suportará mi...
Mary ficou em silêncio enquanto olhava o rosto da irmã. Onde estava a moça bonita? Não havia um pequeno traço dessa beleza com a qual nasceu. Seus olhos azuis não tinham luz, talvez porque as olheiras ao redor eliminaram todo o brilho. Suas bochechas, descritas por ela mesma como perfeitas, agora não passavam de pele sobre ossos, e seus lábios não tinham a cor vermelha intensa que ela tanto admirava porque haviam perdido a tonalidade ao ponto da palidez. Sem pensar duas vezes, afastou a mão do ombro e a colocou na testa, para verificar se estava com febre. Mas Elizabeth não estava quente, muito pelo contrário. Estava tão fria quanto uma estátua de mármore.
?O que diabos aconteceu com você? ?Esbravejou com uma mistura de horror e angustia. ?Por que está assim? ?Antes que Elizabeth pudesse responder, Mary fixou os olhos na mão que ela mantinha submersa na água e instintivamente colocou as suas no peito. ?O que está fazendo com isso? Em que está pensando?
?Pelo que entendi, nossos pais nos dão a vida, mas o destino é quem dita quando deve terminar ?expôs voltando o olhar para a água. ?Talvez a minha deva terminar antes de...
?Não diga bobagens! ?Clamou antes de se inclinar para a adaga e puxá-la dos dedos. ?Este não é o fim, Elizabeth Moore Arany! É o começo de tudo! Como pode pensar em algo tão horrível! Você enlouqueceu? ?E jogou a arma na porta com tanta força que a lâmina de metal se rompeu ao impactar no chão. ?O que aconteceu? ?Insistiu sacudindo-a. ?O que essa cabeça maldita pensa?
E Elizabeth começou a chorar. Escondeu o rosto abatido com as mãos e não conseguiu se consolar até que Mary se sentou ao lado dela e a abraçou com força.
?Anne pensa que está assim porque se comprometeu com o visconde ?explicou enquanto lhe acariciava a mata de cabelo loiro emaranhado. ?Mas eu sei que não é verdade. Apesar desse comportamento repugnante que mostra, no fundo a pequena Elizabeth ainda vive em você. Aquele que corria para cá para descobrir se a nova semente havia germinado ou se as pétalas de uma flor se abriram antes da chegada do amanhecer.
?Eu sou horrível, Mary! ?Soluçou em seu peito. ?Sou a mulher mais horrível que já existiu no mundo!
?Não, querida. Você não é horrível. As circunstâncias fizeram você assim. Você nasceu bonita, como seu físico. O que acontece é...
?Mary... ?sussurrou levantando o rosto para ela. ?Sou horrível, juro pelo sangue que corre em nossas veias. Eu fiz... aconteceu... ?Mas não teve forças para falar, apoiou de novo a testa sobre o peito de sua irmã e continuou chorando sem consolo.
Como superaria isso? Como poderia contar para Mary o que havia acontecido? Não, não conseguia. Tinha que manter isso em segredo. Não só por seu bem, mas também pelo da família.
?Sabe? ?Mary começou a dizer enquanto a segurava com força. ?A vida é cruel para todo mundo. Por mais que tentemos lutar para nos libertar do que nos mantém presos, não obtemos sucesso. A felicidade, essa que muitas pessoas se orgulham de possuir, é uma mentira, uma ilusão fictícia. Ninguém consegue algo tão idílico.
?Então... pelo que vivemos, Mary? Por que ainda estamos neste mundo cruel? ?Perguntou sem levantar o rosto.
?Olhe para mim, Eli! ?Lhe pediu depois de colocar as mãos sobre seus ombros. ?Conte-me o que aconteceu com você, para que não tenha diante de mim a irmã que sempre quis chutar a bunda por ser presunçosa. Onde está a força que expressava? E esse caráter repulsivamente aristocrático.
?Desapareceu... ?murmurou abaixando a cabeça.
?Quem fez isso com você? ?Perseverou, erguendo o rosto com as duas mãos.
?Como o...? ?estalou perplexa.
?Você viu? O destino o colocou de volta em seu caminho? ?Insistiu. ?Porque se assim for, juro que desta vez o matarei com minhas próprias mãos!
?Não! ?Elizabeth respondeu, se levantando da borda empedrada que rodeava o lago. Sem olhar para Mary, esfregou as mãos, olhou para o chão e suspirou. ?Não sei nada de Archie desde que recebi aquela carta.
?Bom. Fico feliz em saber que o pai não terá que me visitar na prisão... por enquanto ?respondeu Mary levantando-se também. Pegou-a por trás e a abraçou com força. ?Se esse filho da puta não é o motivo da sua depressão, o que é?
?Não acredito que possa me amar se te contar ?lhe disse inclinando os ombros para frente.
?Você me ama? ?Lhe perguntou fazendo-a virar para ela. ?Me ama apesar de tudo o que digo ou faço?
?Claro! Você é minha irmã e sabe que te adoro, apesar de todas as coisas estranhas que faz ou diz.
?Exato! ?cortou-a. ?Sempre, apesar de todas as discussões que tivemos, nos amamos. Nisso consiste a família, Eli. E nada, nem ninguém pode eliminar esse vínculo existente entre nós. Podemos ser muito diferentes, felizmente para todas, mas essa desigualdade fez com que nos respeitemos e nos compreendamos. ?Respirou fundo e olhou-a com ternura. ?Por causa dessa compreensão de que falo, sei que sua dor de cabeça é falsa e que as especulações de Anne também são. Sua alma está quebrada. Algo horrível aconteceu com você nessa viagem e te machucou tanto que não será capaz de superá-lo sem ajuda. Só me resta dizer que estou aqui, contigo, e que juntas superaremos tudo.
?Tem sido... horrível ?expressou antes que as lágrimas aparecessem de novo.
?Minha intuição diz como se sente. Mas preciso que me conte tudo, só assim poderemos encontrar a melhor solução ?garantiu com firmeza.
?E se não pode me ajudar? E se for algo tão assustador que só possa ser resolvido com a minha morte ou voltando no tempo?
?Responda-me apenas uma coisa, Elizabeth ?comentou olhando-a nos olhos e tomando-a com ternura dos ombros. ?Essa coisa horrível nos fará procurar e tirar do galpão o berço onde nossos pais nos colocaram no nascimento?
?Não! ?Elizabeth gritou horrorizada.
?Então, querida irmã, todo o resto tem uma solução ?disse antes de abraçá-la e ouvir como Eli suspirava em seus braços.
Capítulo XV
Nos dez dias seguintes, não teve uma mera hora livre para estudar os ensaios que a Sra. Reform lhe deu. Sua mãe tornou-se tirana e continuou ordenando mil tarefas que ela tinha que terminar antes do anoitecer. Para assombro do resto da família, realizou todas, pois nenhuma implicava se afastar de sua casa. Enquanto pudesse estar ao cuidado de Elizabeth e se manter afastada de lorde Giesler, cumpriria sem questionar. Pelo contrário, Anne saía e entrava continuamente de casa. Às vezes, visitava os parentes de seu noivo e outras vezes, chamava urgentemente a costureira que, em sua opinião, não deveria ter muita experiência, pois a fazia experimentar o vestido várias vezes ao dia. Josh e Madeleine, com a desculpa de serem as menores, mal tinham responsabilidades. A única coisa que lhes foi confiada era controlar o novo membro da família. Ainda não dava crédito aos mimos e cuidados que o animal recebia. Acolheram-no com tanto amor, que nem sequer reparavam no fedorento cheiro que invadia o jardim depois de este defecar onde lhe apetecesse. Até seu pai se uniu à louca felicidade! Desde que o visconde colocou o anel em um dos dedos de sua primogênita, vestia-se com elegância e repassava o nó da gravata mil vezes, antes de transitar pelas ruas de Londres no interior da carruagem que seu futuro genro lhe deu. Todos viviam num eterno caos, num infinito disparate. No entanto, admitia que esse estado de desorientação e confusão familiar foi proveitoso para Elizabeth. Apenas reparavam em suas contínuas ausências ou que, cada vez que se reunia com eles, não via um de seus descarados vestidos, mas aqueles que Mary guardava no armário. Talvez evitassem falar do assunto ao dar por confiável a hipótese de Anne e Josh. Aquela em que Elizabeth chorava de ciúmes ao não ser ela quem casava com um aristocrata. Mas ela conhecia a verdade e sofria a agonia de sua irmã em suas próprias entranhas. Desde a tarde que passaram juntas na estufa, não pôde dormir nem uma só noite. Passava horas pensando no medo que Eli suportou e na solidão que se encontrou até aparecer o valete do visconde. Não se importava se ela se culpava por ter encorajado o miserável. A única coisa em que pensou foi que, se era verdade que Morgana cuidava dos de seu sangue, devia matar o gajo justo quando uma de suas mãos desagradáveis a tocou pela primeira vez.
Mary olhou de novo a cortina marrom, que a dona do comércio utilizava para separar a loja da oficina, e respirou com aborrecimento. Se aquela risonha vendedora não a atendesse em breve, sofreria uma apoplexia. Ela não deveria estar lá. Seu tempo era muito valioso para perder sentada em uma cadeira desconfortável e, como seguissem ignorando-a, o escândalo que lhe anunciou a sua mãe, se cumpriria em breve.
?Coloque um casaco e pegue o pedido ?Sophia ordenou depois de encontrá-la escondida no armário. ?A costureira está esperando por você.
?Anne não pode cuidar dessa tarefa? Hoje certamente terá que experimentar o vestido novamente e não será necessário nenhum esforço para suportar o peso de quatro bolsas ?propôs enquanto saía das sombras que lhe proporcionou o inútil esconderijo.
?Hoje não a visitará ?respondeu andando atrás de sua filha. ?Deve comparecer ao almoço oferecido pela Marquesa de Riderland em sua homenagem.
?E as gêmeas? ?Sugeriu se virando para sua mãe.
?Ainda são muito pequenas para passear sozinhas pelas ruas ?Sophia respondeu levantando o tom da voz e erguendo a sobrancelha direita.
?E eu sim posso fazê-lo? ?Disse com falso espanto. ?Não lhe preocupa a opinião que terão as pessoas de mim quando me virem caminhando sem proteção por Cover Garden?
?Desde quando se importa com que dirão, Mary? ?Espetou sua mãe cruzando os braços na frente do peito.
?Desde que minha honorável e maravilhosa irmã mais velha se comprometeu com um visconde ?expôs como se a resposta tivesse sido estudada mil vezes.
?Então... você faz isso por sua irmã? ?Sophia perguntou olhando para ela sem piscar.
?Claro! Você realmente pensou que eu faço isso para meu próprio benefício? ?Respondeu, fingindo estar ofendida. ?Temos que agir corretamente, pelo bem de Anne. Já sabe como a aristocracia gosta dos mexericos e fofocas; pensa que não fofocarão sobre a desproteção de uma das irmãs da futura Viscondessa de Devon? Será um verdadeiro escândalo! ?Acrescentou com aparente angústia.
Mary estava prestes a pular de alegria ao observar sua mãe refletir sobre o assunto. Tinha encontrado o ponto fraco: as fofocas. Até agora, Sophia só estava interessada em cuidar da reputação do marido, no entanto, desde o noivado, tudo mudou.
?Por um momento, apenas por um momento, pensei que era sincera, Mary Moore Arany. Mas, felizmente para mim, o sangue que nos une me adverte que sua intenção é diferente da que você diz. Limpe a farinha da saia, arrume o cabelo e vista o casaco. Quero os vestidos em nossa casa antes que Eugine termine de cozinhar as perdizes, entendido? ?Disse com raiva. Virou as costas e caminhou em direção à lareira.
?E se alguém quiser me machucar? ?Mary perseverou.
?Depois do que fez ao jovem Wang, acredito que ninguém tenha coragem suficiente para falar ou cumprimentar você ?disse Sophia atiçando o fogo.
Que o inferno congelasse! Mas, por que não o havia esquecido? Quanto tempo tinha passado, três, quatro anos? Era certo que a síncope que sofreu, quando abriu a porta e a encontrou escoltada por dois agentes, foi tão grande que seu pai teve que lhe administrar uma pequena dose de clorofórmio. Certamente, ela ficou de castigo em seu quarto por três dias, os mesmos que ela passou lendo e desfrutando de uma bela solidão. Quando ela pôde explicar o que aconteceu, seu pai caiu na gargalhada. Talvez porque ele foi o único que entendeu sua posição sobre doenças causadas por distúrbios celulares. Em vez disso, sua mãe só pediu a Morgana que a sociedade londrina ficasse surda e cega por duas semanas. Ela estava muito preocupada com a repercussão que seu marido sofreria quando as pessoas soubessem que a segunda de suas filhas havia golpeado, até quebrar o guarda-chuva, a carruagem do jovem Wang, que de dentro, pedia socorro. Logicamente, não podia culpá-la por desconhecer a importância que tinha a teoria da Patologia Celular em medicina, mas aquele petulante sim e por esse motivo, ao ouvi-lo dizer que se tratava de uma conjectura sem sentido para explicar as doenças dos organismos, perdeu o controle. Como podia falar dessa forma o filho de um médico que foi à universidade com Rudolf Virchow? Só um tolo, como Wang, podia soltar por sua boca semelhantes tolices. Obviamente, o temor de sua mãe apareceu antes do imaginado. As pessoas falaram sobre a agressão da filha perturbada do doutor Moore ao encantador Wang. Desde aquele dia, não importava se andava sozinha ou de noite, ninguém se aproximava e atravessavam a rua, quando levava um guarda-chuva na mão.
?Senhorita Moore?
A pergunta que a vendedora lançou ao ar, depois de sair pela décima quinta vez da sala dos fundos, tirou Mary de seus pensamentos. Ela se levantou da cadeira, onde estivera mais de uma hora, e se aproximou do balcão.
?Finalmente descobriram que estou aqui! ?Disse sarcasticamente. ?Pensei que me confundi de estabelecimento porque, apesar de ser a primeira, atenderam outras clientes antes de mim.
?Para fazer um excelente trabalho, é preciso ter paciência e tempo ?a funcionária manifestou, colocando sobre a bancada envernizada as bolsas que levava nas mãos.
?Não discuto isso. Mas garanto-lhe que tiveram tempo suficiente para confeccionar dois vestidos e emplumar quatro chapéus ?Mary insistiu, enquanto confirmava que as roupas que lhe oferecia eram as mesmas que fora buscar. Nas bolsas estava o vestido rosa pálido de Madeleine, o malva claro de Josephine, o marrom de sua mãe e quando observou o seu, franziu a testa e olhou à empregada como se buscasse a forma mais rápida de lhe quebrar o pescoço. Depois pegou com dois dedos o tecido daquela roupa verde, colocou-a frente ao nariz da trabalhadora e perguntou-lhe com raiva: ?Não lhe indicaram que este vestido devia ser azul marinho? Por que, não é? Acaso a costureira sofre de discromatopsia?[8]
?Expliquei a sua mãe que não era uma cor apropriada para um casamento tão importante e que todos os convidados à cerimônia pensariam que a jovem em questão se encontraria em período de luto ?explicou com orgulho enquanto a olhava de baixo a cima. ?Foi por isso que lhe pedi que reconsiderasse e, para satisfação pessoal, fez o mesmo. A senhora Moore é uma mulher muito inteligente e selecionou uma tonalidade bastante atual e...
?Estúpida? ?Mary a interrompeu. ?Porque não há outra maneira de descrevê-la. Agora, em vez de mostrar a imagem de uma jovem séria, correta e virtuosa, parecerei a garrafa que algum bucaneiro bêbado de Whitechapel leva em uma mão.
?Como ousa falar desse modo? ?Perguntou chocada. ?Nenhuma de nossas clientes se comparou com semelhante barbaridade! Todas estão encantadas com nosso trabalho! Minha oficina é única na cidade!
?Única? Certamente minha governanta conserta remendos menos emaranhadas do que estes ?comentou mal-humorada enquanto empilhava as bolsas com as duas mãos. ?E não se mostre tão ofuscada por uma crítica construtiva. Deve saber que será muito rentável para o seu negócio ouvir as opiniões dos clientes. Só assim obterão a perfeição da qual se vangloriam. Espero que a próxima vez que lhe encomendem uma peça de roupa de uma cor determinada, você morda a língua e não opine.
?Santo Deus! ?Exclamou horrorizada levando as mãos ao peito. ?Não a compararão com uma garrafa, mas com a filha do próprio diabo! Agora entendo por que desejava uma cor tão escura, combinaria com sua alma.
?Tenha cuidado com o que pensa... ?Mary lhe disse uma vez que abriu a porta. ?Pode ser que esta filha do diabo invoque a umas quantas almas errantes para que incomodem seus dóceis clientes.
Antes de fechar a porta, observou divertida como a vendedora não deixava de se benzer, ato ao qual estava bastante acostumada. As pessoas costumavam fazer isso depois de ouvi-la falar. Uma vez que saiu da loja, ela soltou uma grande risada e seguiu para a carruagem. Ela teria que usar um vestido horrível, mas a funcionária viveria assustada por um longo tempo. Satisfeita e orgulhosa de ser uma mulher tão sincera, ela avançou até que o cocheiro a viu chegar e saiu do veículo. Ele abriu a porta, desceu as escadas, esperando que ela subisse, mas não o fez.
Mary ficou de pé junto à carruagem, segurando as bolsas. Seus olhos, embora estivessem se movendo em direção ao interior da carruagem, não observaram nada em particular. Estava ausente, pensando silenciosamente sobre a ideia que acabava de aparecer em sua cabeça. Levantou o queixo e sentiu em seu rosto as carícias do leve vento que previa uma rápida chuva. Era o momento ideal. Se não, quando teria outra chance? Ela ficou trancada por um longo tempo, aceitando sem objeção tudo o que sua mãe ordenava, pois nada, exceto o que ela pediu horas antes, a afastava de seu propósito. Mas estava fora, sob um céu tão cinza como o mercúrio de um termômetro. De repente, pensou em seu pai e nas conversas que manteve com sua mãe sobre o incansável trabalho do mordomo de lorde Giesler. Segundo entendia, este realizava tudo o que lhe foi dito para que a recuperação de seu senhor fosse rápida e adequada. Claro, isso implicava também protegê-lo de uma possível chuva...
Ao deduzir que seu maior problema não ocorreria, jogou as bolsas dentro da carruagem, abotoou o casaco e disse ao empregado sem olhá-lo:
?Voltarei andando.
?Andando? ?Ele respondeu bastante surpreso.
?Sim, andando. É uma das habilidades físicas que caracterizam o ser humano. Por que acredita que nascemos com duas pernas? ?Garantiu sagaz.
?Não digo por isso, Srta. Moore. Permita-me informá-la que não seria certo deixá-la sozinha com esse tempo ?disse o amável trabalhador depois de fechar a porta. ?Se observar as nuvens, descobrirá que não tardará em chover e a senhora não gostará que uma de suas filhas adoeça dois dias antes da cerimônia.
?Não se preocupe com minha saúde, Owen. Asseguro-lhe que se aparecer essa chuva alugarei uma carruagem ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Deseja, pelo menos, que lhe ofereça um guarda-chuva? Sua mãe não lhe repreenderá se lhe explicar que se resguardou...
?Não! Sem guarda-chuva! ?Respondeu como se tivesse sido picada na bunda com um alfinete. ?Prometo que ela ficará mais zangada se eu o tiver.
?Como desejar ?terminou de lhe dizer antes de subir e açoitar o cavalo.
Mary se virou para sua esquerda e, enquanto escutava como se afastava a carruagem, observou com entusiasmo tudo o que tinha diante de seus olhos. Felizmente para ela, a rua estava muito calma. Talvez porque, como disse o empregado, a ameaça de chuva assustou muitos londrinos. No entanto, os poucos atrevidos que encontrou passavam ao seu lado sem reparar nela. Ato que agradeceu porque não queria observar rostos de espanto, assombro ou estranheza. Precisava, depois de tantos dias enclausurada em sua casa, sentir um pouco de liberdade e tranquilidade.
Com a mão direita ligeiramente levantada, pois a alça de sua retícula se encaixara na dobra de seu cotovelo, se dirigiu em primeiro lugar para a enorme fachada do Teatro Real de Drury Lane. Uma vez que se colocou em frente à porta, levantou o rosto para admirá-lo. Indubitavelmente, era um edifício grandioso. Segundo tinha lido, podia abrigar três mil e seiscentos espectadores e depois do último incêndio, ocorrido em 1809, os arquitetos encarregados da reconstrução usaram colunas de ferro para substituir aquelas de madeira que sustentam os cinco níveis das galerias. Mas se esses dados lhe pareceram extraordinários, o fato de saber que ali se celebravam, desde dois anos atrás, os melhores espetáculos e melodramas, a deixou sem palavras. Olhou intrigada o cartaz que alguém colocou na direita do pórtico e suspirou. Em outra ocasião, quando sua vida fosse menos agitada, poderia desfrutar da música que tocaria a orquestra que anunciava esse cartaz. Com uma inevitável sensação de saudade, já que desejava que a normalidade voltasse à casa dos Moore, continuou o caminho, se esquivando das bancas de frutas e verduras que encontrou.
Covent Garden era um lugar muito estimulante, como indicavam os jornais. Embora não parecesse tão perigoso quanto insistiam em descrever. Onde estavam as prostitutas, os bandidos e os criminosos que perseguiam os cantos do mercado em busca de uma vítima para assaltar? Porque ela não os via. A única coisa que tinha diante de seus olhos eram pessoas comuns e mundanas e que ofereciam suas mercadorias aos poucos clientes que andavam perto de suas bancas.
Continuou naquele lado da calçada e justamente quando determinou que o passeio deveria terminar, seu nariz capturou um maravilhoso aroma de café. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Insuperável... Se a bebida fosse tão boa quanto o aroma que emitia, não poderia voltar para casa sem saborear uma boa xícara. Com o nariz levantado, como se fosse um cão de caça, seguiu para o estabelecimento que o servia. Quando chegou, sorriu ao ver que não era a única pessoa que abandonava suas obrigações para deleitar-se com um costume tão pouco inglês. Talvez a maravilhosa tradição de ingerir só chá iniciava uma época de declínio, ou talvez houvesse mais gente tão estranha quanto ela.
Enquanto esperava sua vez, se apoiou na parede de maneira descontraída e procurou algumas moedas para pagar pela compra.
?Quanto me custaria passar uma hora com você, Srta. Moore? Garanto-lhe que pagarei com prazer.
Mary, muito lentamente, tirou a mão da retícula, se afastou da parede, levantou o rosto e olhou com altivez para o dono daquela voz. Ali estava o maior idiota do mundo, vestido com um traje cinza escuro, tal como ditava a moda nesse momento. Peter Wang a observava com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casaco e mostrava com orgulho um repugnante bigode louro, cujas extremidades se enrolavam para cima.
?O que disse? ?Perguntou tão indignada e furiosa que suas bochechas mudaram de cor pelo sufoco.
?Digo-lhe, senhorita Moore, que estou disposto a pagar tudo o que me peça se me oferecer algo interessante em troca ?Wang disse, verificando o vestido grosseiro de Mary. Depois de sorrir com malícia, avançou para ela. ?Imagino que seja por isso que está sozinha nesta parte de Londres, não é verdade? ?Falou olhando levemente ao redor. ?Finalmente assumiu que nunca alcançaria seu sonho e adotou a posição mais sensata para sua idade: recuperar o tempo perdido tornando-se amante de um distinto cavalheiro.
?Bom dia, senhorita, o que deseja tomar? ?Interveio a amável vendedora alheia, até o momento, da situação que se vivia na frente do posto.
?Bom Dia. Importa-se de me servir a maior xícara de café que você oferece aos seus clientes, por favor? ?Mary respondeu sem olhar para ela.
?Café? ?Perguntou Wang sem tirar os olhos dela. ?Como é normal em você, me confunde. Tinha deduzido, erroneamente, claro, que se tratava de uma mulher que adorava passar as horas do dia tomando chá com doces, dado o volume desproporcionado que tomaram seus quadris desde a última vez que nos vimos.
?Deus bendito! ?A vendedora soltou horrorizada ao ouvi-lo.
Gorda e prostituta. Até esse preciso instante a tinham dedicado muitos adjetivos e substantivos repugnantes, mas nenhum superava a brilhante descrição daquele energúmeno. Mary olhou de relance para a trabalhadora envergonhada. Ela colocou a xícara que pedira no balcão de metal com as mãos trêmulas e se afastou, como se estivesse lendo seus pensamentos. Sem prestar atenção às palavras de Wang, que perseverou em informar que sua robustez aumentara tanto que não seria bom para sua saúde, ela se virou para a esquerda, pegou a xícara e jogou nele.
?Maldita aberração! ?Exclamou. ?Como ousa falar comigo com tanta insolência? ?Vociferou. ?Você é o homem mais estúpido que eu já conheci na minha vida!
?É uma rameira! ?Wang esbravejou quando suas mãos com luvas pretas desabotoaram os botões do casaco.
Tudo o que aconteceu desde o momento em que atirou o café sobre Wang, transcorreu muito lentamente para Mary. O filho do médico tirou algumas roupas e as jogou no chão. Então gritou milhares de maldições quando não conseguiu acalmar as queimaduras que seu peito sofreu. Ele olhou para ela com tanta raiva que qualquer mulher teria morrido de medo. Avançou para ela, levantou o braço direito e estendeu os dedos para lhe acertar um bofetão. Mas não chegou a tocá-la. Uma mão enorme, que ela reconheceu rapidamente, apertou o pulso do agressor e o puxou com uma força tão grande que ele caiu no chão junto com suas roupas.
***
?Como foi capaz de fazer uma coisa dessas? ?Philip gritou pulando da cadeira. ?Aquela mãe ficou louca?
?Não creio que o termo louca seja muito apropriado para descrever a senhora Moore, milorde ?Disse Shals antes de dar uma gorjeta ao menino que lhe fez chegar a notícia. Quando este partiu, virou-se para o angustiado lorde e prosseguiu: ?Primeiro, devo descobrir o que aconteceu para que a senhorita Moore saísse sem proteção. Certamente você encontrará uma explicação tão divertida que estará rindo por vários dias...
Nem ele mesmo acreditava em suas próprias palavras! Como uma mãe, sabendo qual era a opinião da sociedade sobre a sua filha, deixava-a sair de casa sem acompanhante? Queria que chegasse o juízo final? Porque isso mesmo ia acontecer. Não só pelo que aquela moça poderia fazer, mas pelo que estava a ponto de realizar seu amo.
?Shals? ?Giesler perguntou ao vê-lo imóvel na frente do cabide.
?Sim senhor. Eu já tenho ?respondeu. Mostrou-lhe a jaqueta que havia pegado e caminhou até ele.
?Não há explicação... ?Philip continuou a falar enquanto o mordomo o ajudava a vestir a jaqueta. ?Mary não pode passear pelas ruas sem proteção. Além disso... não disse que começaria a chover em breve? ?Retrucou quando se virou para que Shals abotoasse os botões.
?De fato, milorde. As nuvens são tão cinzentas como a cinza que há em uma lareira depois de um enorme fogo. Se o vento não as mover, logo aparecerão as primeiras gotas. ?Terminou de colocar a jaqueta e correu para a porta do escritório para deixar passar o homem que, apesar de não estar totalmente recuperado de uma operação, percorreria Londres a pé para proteger a mulher que amava em segredo.
?Diga ao cocheiro que esteja pronto em um minuto ?ordenou Philip antes de entrar na sala de jantar e desabotoar a jaqueta.
Não fechou ao entrar. Não era hora de se preocupar em buscar um pouco de privacidade, mas de agir rapidamente. Ele foi até a vitrine de mogno, colocou a mão direita na borda e moveu os dedos até encontrar a chave. Uma vez que a encaixou na fechadura, virou-a para a direita e abriu a estreita e longa porta de vidro. O cheiro de pólvora atingiu seu nariz, fazendo-o lembrar diferentes episódios importantes de sua vida. Em qualquer outro momento, ele teria sorrido para inspirar a segurança e a diversão que esse perfume em particular transmitia. Mas agora isso só lhe dava um aroma, o de Mary, e expressava um desejo: cuidar dela.
Como tinha sido tão insensata de passear por Cover Garden sem proteção? Não gostava tanto de ler? Então, por que não havia lido nos jornais as críticas que fizeram sobre essa região em particular da cidade? Ainda bem que seu empregado foi sensato e lhe fez chegar a informação através daquele pequeno batedor de carteira. Sabia que ele agiria com rapidez e que nem uma chuva de ratos infectados com lepra lhe impediria ir buscá-la. Levantou a arma com a mão direita até que a culatra de marfim branca ficou à altura de seus olhos e com a outra mão carregou a munição, o projétil e o bloco de papel através do cano. Uma vez que ficou carregada e pronta, ele a guardou no bolso interior da jaqueta, fechou a porta da vitrine, colocou a chave no lugar, virou-se para a porta e enquanto saía, fechou ele mesmo a jaqueta.
?Tudo pronto, meu senhor ?Shals disse oferecendo-lhe o casaco. ?Quer que o acompanhe? Seguro que posso me ausentar algumas horas... ?acrescentou uma vez que o ajudou a colocá-lo.
?Não. Prefiro que esteja aqui caso apareça Valeria ou Martin ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Se isso acontecer, deseja que conte a versão real ou mais uma... ilusória? ?Sugeriu enquanto colocava o chapéu nas mãos.
?Real ?declarou antes de colocá-lo sobre a cabeça e sair de lá.
Shals encarou a grande figura de seu senhor até que ele entrou na carruagem com a ajuda do cocheiro. Nas duas semanas anteriores, lorde Giesler permaneceu muito calmo em sua residência, recuperando-se da operação. Ele próprio acreditava que, se continuasse assim, seu senhor morreria de tédio, porque nunca ficava em casa por tanto tempo, exceto quando chegava tão bêbado que não conseguia se lembrar de seu nome. No entanto, sua atitude mudou tanto que o serviço murmurava incessantemente sobre o estranho comportamento do homem que pagava seus honorários. Até chegaram a pensar que a senhorita Moore, durante a operação, lhe arrancou não só um pedaço de tripa envenenada, mas também a virilidade. Ninguém, exceto ele, entendia o motivo pelo qual ficava várias horas sentado em um sofá, prostrado em sua cama ou caminhando pela casa com muito cuidado para não se machucar: a senhorita Moore. Desde o dia em que os encontrou no quarto, em circunstâncias comprometedoras, lorde Giesler não tinha pensado em nada, exceto em curá-lo com rapidez e cortejá-la como era devido. Até tinha lido livros de medicina! Seu novo propósito consistia em que, a próxima vez que se encontrassem, a jovem se apaixonasse por ele tal como ele estava apaixonado por ela. No entanto, tinha a sensação de que seu primeiro encontro social não seria tão romântico quanto ele esperava...
Apesar de tudo, confiava na sabedoria da senhorita Moore e rezava para que não se metesse em nenhum problema. Se isso acontecesse, se seu senhor testemunhasse alguma ofensa contra ela... Que Deus tenha piedade do insensato! A arma que tinha guardado no bolso era de um tiro e só o usaria como advertência. Para ser sincero, não temia pelos danos que aquela bala poderia causar, mas o que aquelas duas mãos fortes e grandes poderiam fazer.
Shals suspirou quando a carruagem se perdeu na distância. Fechou devagar a porta, virou-se e caminhou pelo corredor como se algum empregado tivesse pedido sua ajuda.
Capítulo XVI
Philip observou, de sua carruagem e atrás da cortiça marrom escura, como Mary abandonava a loja na qual havia permanecido desde que ele chegou. Quando ele pretendia respirar com calma, coisa que não havia feito desde que soube que ela saíra de casa sozinha, observou, pasmo, que ela depositou as malas dentro da carruagem e se afastou. Antecipando o que aconteceria a seguir, colocou a mão esquerda com luvas na maçaneta da porta e abriu. Enquanto ele pisava nos paralelepípedos da calçada com seus sapatos pretos brilhantes, Mary conversava com o funcionário. Então, ela apertou os botões do casaco, virou e começou a descer a rua.
?Milorde? ?Lhe perguntou o cocheiro um tanto confuso ao descobrir que seu senhor abria a porta e saía da carruagem sem ajuda.
?Me espere aqui, Thenders. Se eu não aparecer em 10 minutos, você tem minha permissão para voltar ?lhe ordenou sem afastar seus olhos azulados da mulher.
?Como quiser senhor ?o servo respondeu depois de depositar as rédeas no assento.
Philip caminhou atrás de Mary, mantendo uma distância suficiente para que lhe não descobrisse, mas o apropriado para agir rapidamente, se necessário. Por mais que tentasse, era incapaz de tirar os olhos do corpo com o qual sonhara quase todas as noites. Suas mãos, exatamente como fizeram nessas alucinações eróticas, foram em sua direção para tocá-la, mas ele as bateu nos dois lados do casaco quando percebeu o que estava fazendo. Irritado com a perda incomum de controle, ele os colocou nos bolsos e os apertou. Sentia falta dela. Sim ele fez! Não havia manhã em que acordasse e se perguntasse que sentimento o invadiria se ela permanecesse ao seu lado. Mas essa melancolia não terminava quando se levantava da cama. A cada hora, a cada minuto, a cada segundo do dia sentia falta de inspirar o perfume feminino misturado com essências medicinais, desejava notar as carícias suaves de seus lábios e a necessidade de tê-la ao seu lado aumentou tanto que estava ficando louco. Como conseguiu o que muitas mulheres desejavam alcançar? Era sua paixão, seu intelecto ou talvez esse jeito tão especial que tinha de olhá-lo? Embora seus olhos emitissem raiva, ele sabia que a raiva não era real. Desejava-o, tanto ou mais do que ele desejava a ela. Só esperava o momento em que se rendesse a suas paixões. Uma vez que conseguisse romper essa rígida barreira, lutaria com todas as armas que tivesse a seu alcance para fazê-la sua para sempre.
Enquanto sua mente perversa lhe fez reviver algumas cenas que teve em seus sonhos lascivos, observou como Mary parava em frente à entrada do teatro. Depois de ler a placa à direita e pensar em algo que queria saber, continuou a caminhada sem ver como as pessoas, que caminhavam ao seu lado, a olhavam de canto de olho. Sem dúvida, todo mundo estava fazendo a mesma pergunta: que diabos uma mulher como ela estava fazendo sem vigilância? Mas ele não conseguia responder. Não sabia o motivo pelo qual a senhora Moore, uma mãe a quem descrevia como coerente, permitiu que sua filha andasse sem proteção por uma região bastante perigosa de Londres. De repente, esse desejo primitivo de cuidar dela se intensificou. Precisava fazê-los entender, a quem a olhava com receio, que não estava desprotegida, que ele a vigiava. No entanto, se obrigou a manter distância, porque se Mary o descobrisse, não lhe cabia nenhuma dúvida de que o atacaria como uma leoa recém parida.
Um enorme sorriso se desenhou em seu rosto ao apreciar como erguia o queixo, fechava os olhos suavemente e inspirava o cheiro de café, que emitia um estabelecimento localizado a três barracas de verduras. Como Shals o informou, sentia uma certa fraqueza por aquela bebida. Quantas xícaras tinha tomado no último dia em que o visitou? Não se lembrava se eram quatro ou cinco, mas seu fiel mordomo disse que precisou fazer duas cafeteiras para si mesma.
Sem poder apagar aquele pequeno sorriso de felicidade, pois esse pequeno gosto comum os unia mais do que aquilo que um anel de noivado poderia unir, ficou parado na frente dela. Claro, estava tão entusiasmada em procurar as moedas com que pagaria à vendedora que não reparou na sua presença.
Philip encostou o ombro esquerdo num poste, ficou de braços cruzados e continuou a observá-la. As pessoas mais atrevidas, ao passar por seu lado, o olhavam de relance. Os temerosos se afastavam. Talvez seu traje escuro, sua altura ou a ruga que apareceu em sua testa, ao contemplar como um jovem se aproximava de Mary com um sorriso irônico, avisasse que, se quisessem ficar seguros, deveriam se afastar dele rapidamente. Quando o rapaz ficou na frente dela, Giesler descruzou os braços, afastou-se do poste e deu um grande passo. Não atendeu à blasfêmia que um cocheiro soltou quando puxou com força as rédeas de seus cavalos para não atropelá-lo. Estava tão concentrado naquela cena, que tudo à sua volta desapareceu. Deu outro passo, ficando no meio da via, tirou uma luva e a jogou no chão. Logo, no passo seguinte, se desfez da outra. Mais um passo... Só restavam três e poderia escutar o que dizia aquele estranho para Mary para que se mostrasse tão tensa. Sua futura esposa, porque assim a denominou desde que entendeu que não podia ter em sua cama outra mulher que não fosse ela, sempre enfrentava o mundo com a bravura de um dragão. Entretanto, notava que nesta ocasião estava se contendo. Então, sua valente guerreira brotou. Se virou para a vendedora, que havia colocado uma xícara enorme de café no pequeno balcão de sua loja, o pegou e jogou no rapaz em questão.
Os três passos que faltavam até alcançá-los, Philip os converteu em um ao ouvir como aquele insensato a chamava de rameira e levantava seu braço para golpeá-la. Quando se colocou atrás do rapaz, lhe agarrou o pulso do braço levantado e o puxou com tanta força que este ficou estendido no chão, junto com as roupas que tirou.
?Lorde Giesler! ?Exclamou Mary. ?Não!
Mas Philip não a ouviu, nem percebeu como ela o agarrou pelas costas do casaco para detê-lo. Com um rápido movimento de ombros, deslizou o pesado casaco preto até que se soltar dele. Depois, desabotoou o casaco e atirou-o ao chão. Uma vez que deixou de sentir a pressão que aquelas roupas exerciam em seus braços, estendeu as mãos para o menino, o agarrou e o levantou sem pouco esforço.
?Como a chamou? ?Ele gritou, levantando tanto o jovem que seus pés não tocavam o chão.
?Milorde! Me solte! ?Wang gritou desesperado. ?Me solte! ?Repetiu.
?Como a chamou? ?Voltou a rosnar.
?Por acaso não viu? Essa desgraçada me jogou uma xícara de café fervendo! ?Tentou justificar.
?Rameira ?a vendedora terminou, que havia deixado seu posto e agarrado Mary pelos ombros para confortá-la. ?Chamou a senhorita de rameira e gorda.
?Cale a boca! ?Lhe gritou Mary afastando-se dela.
Aterrorizada, deu um passo em frente e justo quando ia abrir a boca para ordenar ao Titã de cabelos louros que o soltasse, seu sapato direito tropeçou com algo duro. Olhou para o chão e arregalou os olhos ao ver a coronha perolada de uma arma. Sua angústia cresceu tanto que ficou muda. Presa desse pânico que começava a brotar do mais fundo de sua alma, jogou o casaco negro, que havia tirado do lorde, e o jogou sobre a jaqueta, para que ninguém reparasse na presença dessa arma.
?Você ia bater nela? ?Perseverou Philip alheio aos movimentos dela.
?Lorde Giesler, lhe imploro, não precisa fazer um espetáculo por algo tão insignificante. Tudo estava esclarecido no instante em que... ?Tentou explicar, mas teve que calar-se quando seu agressor a interrompeu.
?Merece uma lição! ?Wang gritou olhando em volta, procurando uma pessoa para defendê-lo.
Philip o soltou e quando o jovem apoiou as plantas dos sapatos no chão, levantou seu braço direito e lhe deu uma bofetada que lhe cruzou a cara.
?Como esse? ?Berrou fora de si.
?Ninguém vai separá-los? ?Mary gritou desesperada.
A princípio, o tumulto que os cercava permaneceu silencioso, mas quando lorde Giesler deu um tapa no rosto, o clima mudou e começou a se ouvir gritos encorajadores daqueles que os observavam. Ninguém queria parar o confronto masculino, apesar de estar ciente de que não havia igualdade física entre eles. Enquanto Wang era um rapaz alto, mas bastante esquálido, o lorde superava em altura e seu corpo dobrava seu oponente em musculatura.
?Vamos! ?Philip insistiu enquanto arregaçava as mangas da camisa. ?Me devolva o tapa! O que espera, maldito rato? Onde está agora a coragem que mostrava ao atacar uma mulher? Mostre-a com um homem!
?Não vou lutar com você... ?disse Wang caminhando para trás. ?Não por essa!
?Não! ?Mary gritou novamente enquanto observava Philip se aproximar de Wang e começar a espancá-lo sem piedade.
Olhou aterrorizada ao seu redor, procurando alguém grande e valente o suficiente para impedi-lo. Mas ninguém se atrevia a intervir em uma briga em que um dos combatentes exibia a imagem de um deus irritado. Preferiam ser meros espectadores a serem feridos. Supondo que a única pessoa que podia terminar a luta era ela mesma, saltou para frente e agarrou-se ao pescoço de lorde Giesler.
?Solte-o! Solte-o! ?Repetiu uma e outra vez.
No entanto, ele não a ouvia. Seu corpo parecia um pêndulo. Movia-se da direita para a esquerda, conforme batia. Abriu a boca, com a pretensão de lhe morder o pescoço, mas logo pensou melhor. Seu pai não lhe disse que, se apertasse com força o pescoço de uma pessoa, esta deixava de respirar e podia perder a consciência? Pois isso mesmo faria. Evitando não cair, estendeu seu braço direito sobre a garganta do lorde e apertou com a intensidade suficiente para que sua agitada respiração se tornasse algo mais pausada.
Giesler, ao sentir como lhe faltava o ar, deu um passo para trás, olhou o rosto machucado do homem e sorriu satisfeito ao comprovar que o olho direito estava tão inchado que não poderia ver com clareza por várias semanas. Mas sua alegria aumentou ao observar dois fios de sangue sob seu nariz. Depois, muito devagar, olhou por cima do ombro para confirmar que os braços que rodeavam seu pescoço pertenciam a Mary. Quem, se não ela, teria o valor suficiente para freá-lo de uma maneira tão pouco usual? Estendeu os braços para trás e acolheu com suas mãos grandes os gostosos glúteos femininos. A falta de oxigênio o deixou tão nublado que não ouviu com clareza como ela gemeu diante do contato. A única coisa em que ele se concentrou foi que Mary não se machucasse ao deitá-la no chão. Enquanto as pessoas encorajavam o ato violento, o corpo de Mary desceu ao chão, roçando o seu. Em outro momento, enlouqueceria de desejo, no entanto, este não era. Precisava confirmar que não estava ferida.
?Está bem? Se machucou? ?Perguntou-lhe quando se virou para ela. Acariciou-lhe a bochecha esquerda e enfiou uma mecha desse cabelo negro despenteado atrás da orelha.
?Eu?! ?Estalou sem poder afastar seus olhos dele. ?. Eu estou perfeitamente, é ele quem não está! ?Acrescentou apontando com um dedo da mão esquerda para o filho do médico.
?Esse tolo importa menos para mim do que uma casca de ovo, Mary. A única coisa que me interessa é saber se você está bem ou tenho que continuar batendo nele até que não sem lembre como se chama ?afirmou enquanto olhava para aquele rosto corado de raiva e vergonha.
E o escândalo oferecido por aqueles que incentivaram a luta desapareceu para dar lugar a um estranho silêncio.
?Afastem-se! ?Ordenou um homem depois de soprar várias vezes com seu apito. ?Afastem-se do nosso caminho!
Philip virou-se para aqueles que tranquilizaram a multidão, escondeu Mary atrás do seu corpo e olhou para o local na rua onde dois agentes apareceram. Estes, ao reconhecê-lo, aproximaram-se dele e levaram a mão direita ao chapéu que cobriam suas cabeças.
?Giesler... ?Um dos policiais se referiu a ele pelo sobrenome devido à amizade que mantiveram durante vários anos.
?Thomas...
?O que aconteceu? ?Ele perguntou depois de dar um forte aperto de mão.
?Este estúpido quis bater em uma mulher ?Philip murmurou, dirigindo-se a Wang com um olhar de reprovação e ódio.
?Qual delas? ?O outro parceiro queria saber enquanto observava o rosto de todas as mulheres que estavam na frente da banca de café.
?Ela... ?declarou Philip afastando-se para o lado para que seus dois antigos companheiros da Scotland Yard descobrissem a quem se referia.
?Por Deus, senhorita Moore! É você de novo? ?Estalou Thomas atordoado. ?Mas por que agrediu novamente o senhor Wang? O que usou desta vez, essa bolsa? ?Acrescentou divertido.
?Não senhor. Desta vez o encharquei com uma xícara de café quente ?comentou Mary levantando o queixo de maneira altiva. ?Mas em minha defesa alegarei que eu não tive a culpa deste acidente. Ele veio até mim e me insultou.
?O que lhe disse desta vez para irritá-la, senhor Wang? ?Perseverou o outro agente com voz cansada enquanto o ajudava a levantar-se.
?Gorda e rameira ?a vendedora interveio. ?Assim a chamou diante dos meus clientes.
?Maldito bastardo! ?Philip deu um passo em direção a ele. Mas não podia chegar perto tudo o que ele desejava porque Thomas agiu rapidamente e ficou entre os dois.
?Muito obrigada pela ajuda ?Mary murmurou com sarcasmo à vendedora.
?De nada, senhorita. Nós mulheres devemos nos apoiar diante deste tipo de monstros ?a jovem disse sem perceber o tom acusatório de sua voz.
?E bem? ?Thomas perguntou a Wang. ?Tem algo a alegar?
Wang, que já estava segurando a roupa suja em um braço, retirou o sangue que saía do nariz com a manga esquerda da camisa e olhou para o seu agressor, depois para Mary, depois para as pessoas que se reuniram ao redor dele e terminou por encarar o agente que insistia em descobrir o que aconteceu. Ao deduzir que havia certa camaradagem entre lorde Giesler e os agentes, pela maneira como se cumprimentaram, determinou que a melhor maneira de resolver o problema era falar com alguma eloquência, mas sem esquecer seu objetivo: humilhar a sabe-tudo Moore.
?Só um infeliz incidente que foi mal interpretado com demasiada rapidez ?ele começou a dizer enquanto sacudia a poeira de suas roupas. ?Devo confessar que, desde que me tornei um médico qualificado, fiquei obcecado em encontrar um local adequado para cuidar de meus pacientes. ?Ele sorriu tanto que todo mundo admirou seus dentes brancos manchados de sangue. ?Por esse motivo caminhava distraído. Estava concentrado nesse edifício aí quando me topei com a senhorita Moore. Ela, que tinha comprado uma xícara de café, tampouco advertiu minha presença e quando se virou, derramou sem querer esse líquido quente sobre minhas roupas. Como não queria me queimar, porque as feridas de uma queimadura são terrivelmente dolorosas, tirei minhas roupas manchadas. Naquele momento, todos os presentes começaram a gritar, talvez pensassem que a puniria por um ato que, sem dúvida, ninguém poderia prever. No momento em que a Srta. Moore e eu íamos pedir desculpas, lorde Giesler apareceu perguntando o que estava acontecendo. Quando me virei para responder, tropecei em uma pedra e caí de bruços na calçada. Portanto, tenho rosto inchado e o nariz está quebrado e sangrando. ?comentou sem apagar um repugnante sorriso de sua boca.
?Então... não há nenhum caso? Não registrará uma denúncia? ?Thomas insistiu, que aceitou a história sem discordar porque libertaria seu amigo de ficar na prisão por algumas horas.
?A quem? ?Wang perguntou antes de soltar uma risada, que parou rapidamente quando sentiu uma leve dor na mandíbula. ?Não há denúncia possível, agente! A menos que queira levar diante de um juiz a felicidade que enfrento desde que consegui me formar em medicina ?respondeu Wang olhando de relance para Mary, quem o observava com os olhos injetados em sangue.
?Nesse caso... ?o outro guarda disse ?não temos nada para fazer aqui, certo?
?Se eu ainda usasse o uniforme ?Philip disse a Thomas ?o escoltaria até sua casa. O estado de felicidade que diz viver pode lhe provocar outro desafortunado incidente e garanto que não gostará, ao futuro doutor ?respondeu com ironia?que sua cabeça sofra um golpe tão forte que esqueça tudo o que tem conseguido até o momento.
Mary suspirou surpresa ao descobrir que lorde Giesler também entendeu as palavras envenenadas de Wang. Assombrada, olhou-o com admiração durante uns instantes e um sentimento estranho brotou do mais profundo de seu ser. Em seguida, sentiu um tremor em seu estômago e concluiu, estupefata e prestes a desmaiar, que era a primeira vez que se orgulhava de conhecer um homem que não fosse seu pai. Não só adorou aquele ato brutal e primitivo de proteção, pensamento que meditaria quando chegasse em sua casa, mas que a encantou descobrir que, debaixo daquela longa mata de cabelos dourados, havia uma mente lúcida e sensata.
?Agradeço a sua preocupação ?Wang apontou com relutância. ?É verdade que um médico não pode tentar duas vezes a sorte... se quiser continuar sendo, claro. ?Sorriu novamente. ?Senhorita Moore... ?se dirigiu a ela com uma leve reverência e sem eliminar o sorriso ?Sinto muito tê-la assustado e espero que este pequeno desentendimento não a impeça de comparecer na próxima sexta-feira à assembleia.
?Claro que assistirei! ?Mary respondeu furiosa. ?Como bem afirmou, sou inocente e tem sido sua falta de jeito, uma condição que deve estudar se quiser se tornar um bom médico, a causa desse alvoroço.
?Giesler? ?Thomas perguntou-lhe para confirmar que ele também deu por encerrado a discussão.
?Sem problemas. Assim que o levarem, acompanharei a senhorita Moore a sua casa ?declarou se aproximando de Mary novamente.
?Uma vez que este assunto está esclarecido e resolvido, desejo a ambos um bom dia ?concluiu Thomas enquanto apertava de novo a mão de seu amigo e se despedia de Mary com um leve movimento de cabeça. Então ficou ao lado de Wang e, sob o olhar atento daquela multidão silenciosa, o acompanhou pela rua junto com seu parceiro.
CONTINUA
Capítulo IX
Mary sorriu quando Shals apareceu com a quarta xícara de café. Era a primeira vez que ela se sentia admirada e amada. Portanto, em nenhum momento disse algo que pudesse machucá-los, embora quisesse repreender mais de um por resmungar como uma criança pequena. Para ser honesta consigo mesma, ela começou a se sentir confortável com a atenção incontável que lhe mostravam.
A cozinheira, quando a Sra. Reform anunciou que, devido à hora, eles teriam que almoçar lá, lhe perguntou qual prato era o favorito dela, qual bolo ela queria e ordenou a um lacaio que pegasse o melhor vinho que lorde Giesler mantinha na adega. Uma das donzelas não deixou de elogiar a grande habilidade que suas mãos possuíam quando espalhou um creme sobre as fendas de seus antebraços. Para que deixassem de elogiá-la, disse que sua irmã Elisabeth havia feito a pomada com as flores que ela cultivava em sua estufa e contou, com orgulho sincero, as inúmeras qualidades que Eli possuía para criar novas flores e pomadas curativas. Quando chegou a vez do cocheiro, ele sorriu para ela. Então ele explicou que tinha um leve desconforto na garganta. Depois de inspecionar essa área, ela indicou que deveria tomar infusões com mel e que precisava abandonar o hábito absurdo de fumar. Logicamente, a segunda ordem não agradou o lacaio gentil que, depois de ouvi-la, enrugou a testa. No entanto, não respondeu. Fez uma leve reverência, como se fosse uma dama, e se foi. Mary temia que, quando saísse, aliviaria sua raiva com outro cigarro.
Valeria, depois de voltar da cozinha pela quarta vez, sentou-se ao lado dela e observou com expectativa o que estava fazendo. Ela a acompanhou em suas gargalhadas, apoiou sua repreensão e garantiu que todos seguiriam suas ordens.
?Prometi a você que não visitaria meus filhos, mas acho que essa opção foi pior. ?A senhora Reform comentou quando as duas ficaram sozinhas na sala, onde Mary decidiu acomodar suas consultas repentinas.
?Não precisa se desculpar pelo que aconteceu, garanto que foi a melhor coisa que aconteceu comigo em cinco dias ?comentou antes de pegar a xícara. Ela tomou um gole leve e fechou os olhos para apreciar o sabor delicioso.
?Juro que não sabia de nada e que tudo isso me surpreendeu tanto quanto você Valeria insistiu.
?Shals disse ao meu pai que, depois do que fiz com lorde Giesler, ninguém nesta casa procuraria outro médico para vê-los e, como vi, não mentiu. ?disse sorrindo e curiosamente feliz.
?Shals é um bom homem... ?Valeria refletiu. ?E teve muita paciência com meu irmão ?acrescentou.
?Não ficará com raiva pelo que fiz, certo? ?Mary de repente soltou, depositando a xícara na mesa.
?Quem? Meu irmão? ?Mary assentiu. ?Não, claro que não! Philip é incapaz de ser cruel com as pessoas que trabalham para ele! Ao contrário! Se não acredita em mim, pode perguntar a eles. ?Diante do beicinho de irritação que Mary fez, ela continuou: ?Não sei o que aconteceu entre vocês dois, mas tenho certeza que não foi agradável. De qualquer forma, eu gostaria que desse a ele uma chance para mudar sua opinião sobre ele. ?Pegou sua xícara e tomou lentamente, sem desviar o olhar da jovem. Ela parecia estar reconsiderando suas palavras. Mas, pela maneira como franzia a testa, a esperança de que esquecesse qualquer coisa negativa se dissipou. ?Como disse na noite em que nos conhecemos, meus irmãos e eu crescemos em Brink Lane. Nossos pais, depois de deixarem a Alemanha, se estabeleceram lá e sobrevivemos com o pouco que obtinham dos trabalhos que lhes confiavam ?começou a narrar com o objetivo de amolecer aquele coração duro.
?Deve ter sido muito difícil para seu pai se adaptar a uma vida de necessidades depois de ter nascido e criado como um barão ?Mary declarou, tentando não lhe causar muito dano diante da lembrança.
?Estava muito apaixonado pela minha mãe e isso era a única coisa que precisava até que morreu ?suspirou triste. ?Te contei que morreu em seus braços e que minha mãe não quis se afastar dele, pois acreditava que, a qualquer momento, acordaria?
E uma emoção estranha para Mary oprimiu-lhe o peito.
?Se amavam muito? ?Perguntou perplexa.
?Eu nunca vi um casamento que se amassem tanto, e isso que eu daria minha vida por Trevor. Onde quer que estejam, certamente nada e ninguém poderá separar esse amor intenso e verdadeiro.
E essa era outra razão pela qual nunca se apaixonaria. Ela, por decreto da sociedade, teria que ocupar um segundo lugar no casamento. Seria obrigada a deixar tudo o que amava para atender às demandas de seu marido. Tal responsabilidade, como sempre havia imaginado, a transformaria em uma desgraçada. Procuraria uma maneira de não ter filhos, para que eles não fossem os reflexos de sua tristeza. Não. Absolutamente, ela não se casaria jamais. Mesmo depois de sua mãe ter sofrido mil apoplexias quando presumiu que sua segunda filha tinha decidido ser uma solteirona.
?Como conseguiu superar sua morte? ?Disse depois de afastar rapidamente suas próprias suposições.
?Não superou ?Valeria respondeu se levantando da cadeira. ?Minha mãe morreu logo depois.
?Que doença tinha? ?Mary insistiu, também se levantando da cadeira.
?Tristeza. Uma que nenhum médico pode curar com medicamentos ou operações.
?Sinto muito... ?murmurou envergonhada.
?Não sinta, eu parei de fazer isso há muitos anos. Ela queria estar com ele, queria ficar ao seu lado e lutou até que conseguiu.
?Como sobreviveram? ?Perguntou e, em seguida, se arrependeu de fazê-lo.
Não estava ciente da dor que Valeria mostrava em seu rosto? Por que insistia? Estava interessada em saber que vida lorde Giesler teve no passado? Não podia imaginá-lo mendigando nas ruas! Era tão... e se mostrava com tanto... Impossível!
?Ainda estou me perguntando. Talvez eles se tornaram nossos anjos da guarda e fizeram tudo o que puderam para que seus filhos vivessem, ou talvez o destino teve piedade de três pobres órfãos. ?Ela deu de ombros e, apesar da tristeza que sentia quando se lembrava daqueles anos, esboçou um sorriso. ?Quem sabe o que a vida nos reserva, Mary? Hoje pensa uma coisa, amanhã surge outra e, quando abre os olhos no terceiro dia, decide algo que não pensava antes.
?Bem, nisto tem razão. No entanto, tenho que lhe dizer que não há dia em que eu acorde e confirme um pensamento ?comentou, finalmente esboçando um grande sorriso.
?Qual? ?Valeria quis saber enquanto caminhavam em direção à porta.
Estava na hora de Mary visitar seu irmão. Se não estava enganada logo começaria a chamar Shals para perguntar se tinha notícias dela. Como agiria ao vê-la? Ele ficaria perplexo? Pensaria que estava vivendo um sonho? O que quer que fosse, apenas esperava que se lembrasse de que sua amada irmã a levara até ele e que a questão do baronato ainda estava pendente.
?Quer saber qual é a única ideia que consolidei ao longo dos anos? ?Mary respondeu com diversão.
?Sim.
?O de não procurar um marido. Nenhum homem será bom o suficiente para...
Não terminou sua estudada e perfeita exposição, pois, ao sair no corredor, observou que Shals subia e descia indeciso as escadas.
?Shals? ?Ela perguntou andando com firmeza em direção ao homem. ?O que aconteceu?
E a resposta foi dada pela voz de um Titã mal-humorado.
?Maldito seja! Ficaram surdos? ?Ouviu tão claramente que parecia que lorde Giesler estava ao seu lado.
?É um asno! Mas que modos são esses? ?Com raiva, arregaçou as mangas do vestido e subiu as escadas. ?Darei a ele a bronca que merece! Como pode ser tão insolente?
?Senhora... Faça algo! ?Shals pediu suplicando a Valeria. ?Não pode aparecer assim! Vai matá-lo!
?Seus planos e os meus não são os mesmos? ?Valeria perguntou com um sorriso de orelha a orelha.
?Senhora... não sei a que se refere? ?O mordomo abaixou ligeiramente a cabeça.
?Shals... você não tem por que se envergonhar. Eu li em seus olhos quando você a viu chegar. Você, tal como eu, quer que a Srta. Moore repare no meu irmão, certo?
?Senhora, tenha certeza que sim. Mas não acho que goste muito da ideia que tem a senhorita Moore agora mesmo sobre... reparar no meu senhor ?comentou com medo.
?O que você aposta que o deixa tão manso quanto um cordeirinho?
?Jamais apostarei com a esposa do antigo dono de um clube! ?Shals exclamou com aparente raiva.
?Porque sabe que perderia... certo??Insistiu, estreitando os olhos.
?Até os cílios, senhora Reform! Com você, perderia até os cílios! ?reiterou antes de seguir para a cozinha.
Valeria olhou para o primeiro andar. Mary já havia se virado para o corredor. Temia que a vida entediante de seu irmão cessasse no momento em que ela abrisse a porta e... que coincidência inoportuna que Mary o visitasse justamente quando todos tinham tarefas importantes a fazer! Pena que eles não pudessem estar presentes! Que pouco decoro! Uma mulher solteira ficar dentro do quarto de um homem... nu! O que pensariam da hospitalidade dos Giesler?
Sorriu de orelha a orelha, apertou os punhos em sinal de vitória e virou-se para a cozinha.
***
Todos os palavrões que decidiu soltar quando abrisse a porta desapareceram instantaneamente. Mary soltou abruptamente o ar que continha seus pulmões e fechou a boca com força. Ficou imóvel, paralisada da cabeça aos pés quando o viu em pé, de costas para ela. O quarto estava iluminado, porque alguma donzela abriu as cortinas e as janelas, permitindo-lhe observar claramente o quarto. Uma brisa suave, produzida pela corrente entre a porta e a janela, a recebeu assim que chegou. Mas ela não prestou atenção em como as belas cortinas se moviam, ou como a luz do sol refletia no espelho colocado em uma cômoda grande, ou se os móveis eram escuros, foscos ou devorados por cupins. Seus olhos focaram apenas nele, fazendo com que uma voz em sua cabeça evocasse a palavra perigo. Tudo o que tinha pensado gritar-lhe enquanto chegava desapareceu instantaneamente. Que palavras tinha escolhido? Que insultos lhe ocorreram? Nada. Ela não se lembrava de nada... No profundo suspiro que deu logo que o viu, a mulher enfurecida desapareceu, a pessoa que tinha infinitos palavrões mentais e, e em seu lugar se acomodou uma mulher que não podia afastar os olhos de um homem por sentir... desejo. Seu coração acelerou tanto que podia sair do peito, sem ter que usar um bisturi para abri-lo. Um calor raro subiu do centro das pernas para as bochechas, transformando-as em duas chamas de fogo. Respirou fundo para aplacar aquela emoção incomum. Não conseguiu. Seu batimento cardíaco ainda estava acelerado, suas bochechas continuavam acesas e a leve dor abdominal, que lembrava a que sofria toda vez que ia dormir sem janta, ficou mais torturante. Ela o comparou com o chefe de uma tribo da pré-história? Bem, essa ideia ainda era verdadeira. Concluiu que se tivesse vivido na era grega, lorde Giesler teria sido o muso de inúmeros escultores? Bem, isso também seria verdade. Mesmo que não quisesse reconhecê-lo, embora negasse essa ideia pelo resto da vida, morreria sabendo que esse homem era o único no mundo que lhe causava algum interesse pecaminoso. Que mulher seria incapaz de admitir que não sente atração por esse corpo? Era um espécime perfeito: suas pernas eram fortes e longas, assim como seus braços e ombros. Ele tinha uma cintura estreita, como os quadris. Que, felizmente para ela, permaneceram escondidos sob os calções. Disse que era perigoso? Bem, confirmava. Esse homem emanava perigo, não para os outros, mas apenas para ela, porque a atração por ele se tornava mais intensa, menos suportável. Deu um pequeno passo entrando no quarto, rezando pela primeira vez em sua vida ao Deus em que todos acreditavam, para que se virasse e quebrasse seu mutismo absurdo, seu encantamento, o feitiço... Mas ele não fez isso. Somente quando percebeu que se inclinava um pouco para a frente e colocava as mãos no curativo em volta da cintura, como se fosse uma faixa bonita, aquele bom senso, que saíra de sua cabeça, voltou a avisá-la de que o lorde estava prestes a realizar o maior disparate do mundo. Ela franziu a testa, como havia feito durante a subida nas escadas e na pequena corrida pelo corredor, e finalmente ela pôde gritar:
?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa.
?Mary? ?Giesler perguntou atordoado quando se virou muito lentamente em sua direção.
Mary engoliu em seco enquanto contemplava aquele rosto masculino. Ele estava sorrindo. Sim, seus lábios esboçaram o sorriso mais maravilhoso do mundo e, embora nunca tenha imaginado que a receberia com entusiasmo, porque ninguém no mundo, exceto sua família, a recebia com amor, ele estava fazendo isso. Havia visto alguma vez uma boca tão bonita, tão gloriosa? E para sua perdição e deleite, havia descoberto a suavidade daqueles lábios...
?Senhorita Moore.?O corrigiu, adotando a postura de uma mulher fria. ?Lembro-lhe que não deve me tratar com tanta familiaridade, lorde Giesler ?Acrescentou andando altivamente em direção aos pés da cama. Ela colocou as duas mãos na cintura e olhou para ele como se quisesse lhe arrancar os olhos. ?Que diabos está fazendo? Que parte de... “não deve se mexer”, não entendeu? Por acaso ficou surdo? Talvez seja por isso que pensa que seus fiéis funcionários estão ?garantiu com firmeza.
?Mary... ?sussurrou repleto de felicidade, como se ao seu lado estivesse um anjo iluminado por uma luz divina, em vez de uma mulher que o ameaçara lhe dar outro grande tapa. ?O que faz aqui? Como você está?
?Definitivamente... está surdo! ?Explodiu, revirando os olhos. ?Explodiu, revirando os olhos. Disse para não me chamar pelo meu nome e não preciso que se preocupe comigo, é você quem deve permanecer deitado na cama.
?Pretendia... ?Philip começou a dizer enquanto tentava se sentar novamente, um ato que o fez rosnar de dor.
?Maldição! ?Exclamou Mary indo em sua direção o mais rápido possível.
Sem pensar duas vezes, segurou os braços de Philip com força e o ajudou a se sentar o mais devagar possível. Depois que ele conseguiu, levantou as pernas e as estendeu no colchão. Quando se virou para ele, para gritar com ele até ficar sem voz, ficou sem palavras novamente, pois descobriu que os olhos azuis do lorde brilhavam, como se os raios do sol que passavam pela janela os impactassem neles. Seu rosto, recém barbeado, o tornava mais atraente, como se fosse possível, e seu cabelo não era mais escuro, mas brilhante e... lindo. Desviou o olhar quando uma rara dor no estômago a trouxe de volta ao mundo frívolo da sensatez. Não devia se deixar levar por atrações absurdas, nem por deslumbramentos miseráveis. Era uma Moore da cabeça aos pés e nela não podia surgir algo tão absurdo quanto o desejo por um homem!
?Segundo entendi, sua melhora é notória. Quer que todos os avanços que teve durante estes cinco dias retrocedam por tentar caminhar sem ajuda? ?Comentou com um tom menos rude enquanto lutava para acomodar as pernas que já estavam bem colocadas.
Aquilo que cheirava era loção de barbear ou perfume? Estava prestes a fechar os olhos e inspirar profundamente, mas a sensatez agiu novamente. Ela se afastou um pouco e, com as pontas dos dedos, pegou a parte de baixo do lençol para estendê-lo até cobrir o queixo. Quanto menos pudesse observar, menos tentação sentiria. Porque aquele corpo fazia seu sangue ferver, pensar em coisas impuras e, acima de tudo, a fazia perder a cabeça. Pelo menos, quando sua mãe a repreendesse por se colocar em outra situação comprometedora, podia se defender dizendo que ela o havia coberto e que ele estava usando calções que escondia seus atributos masculinos.
?Pensei que tinha perdido o interesse em mim ?Philip apontou em uma voz queixosa enquanto afastava o lençol.
Queria sufocá-lo? Porque teve essa impressão ao ver como tentava cobri-lo até o pescoço. Ou talvez houvesse outro motivo menos... sinistro? Suportou uma risada repentina e, muito lentamente, se descobriu até a cintura, exibindo a imagem completa de seu peito robusto. Queria descobrir o que havia se perguntado tantas vezes. Mas o leve sorriso, que foi incapaz de esboçar, se dissipou quando viu que ela estava voltando para o pé da cama e ainda demonstrava repulsa. Tão desagradável estava?
?Deixei-o em boas mãos, milorde. Meu pai, caso não se lembre, tem a habilidade de curar pessoas ?respondeu.
?Mas você me operou e, segundo entendi, lutou contra todos aqueles que se opuseram para não me deixar morrer ?contestou.
?Sou... como diria? Uma pessoa de bom coração? ?Respondeu, colocando as mãos no dossel de madeira.
Por que não conseguia parar de olhar para os lábios dele? Sua parte insensata queria senti-los novamente? Quantas vezes relembrou aquele momento? Um milhão? E, quantas vezes disse a si mesma, que o tapa havia sido a melhor coisa que tinha feito em sua vida? Uma, talvez? No caso hipotético de que estivesse pensado, pois não tinha mais certeza se o fez durante o confinamento forçado. Contou teias de aranha ou enumerou todos os possíveis defeitos de lorde Giesler? E por que sua mente não parava de imaginar como teria sido um beijo mais intenso? Essa pergunta aumentou muito seu desejo carnal... Maldita fosse, a parte primitiva do ser humano! Haviam construído grandes edifícios, navios para viajar de um continente a outro, chapéus horríveis com penas de pavão, mas... haviam conseguido fazer desaparecer o instinto carnal absurdo com o qual todo ser humano nascia? Não! As pessoas ainda eram primatas movidos por uma necessidade sexual absurda...
?O que tem, Mary ?enfatizou seu nome, embora ela não gostasse de ouvi-lo dizer. ?É uma habilidade mágica. Agradeço a Deus todos os dias pelo fato de aparecer e ter decidido salvar minha vida. ?Ele declarou com toda a sinceridade que podia oferecer naquele momento, porque sua mente procurava palavras que a deixassem orgulhosa enquanto um desejo masculino lutava para tirá-lo da cama, pegá-la nos braços, apoiá-la contra a parede e beijá-la com tanta paixão que os dois ficariam sem respiração.
?Não... Não deve... me dizer essas coisas, milorde.
Gaguejava? Ela?! Por que diabos fazia isso? Os servos não haviam oferecido milhares de elogios? Não começava a se acostumar com esses elogios? Então... por que ela se sentiu tão intimidada ao ouvir isso dele? E, naquele momento, toda a força, toda a raiva e toda a firmeza que sentia sempre que corria perigo, desapareceu como a neblina quando o sol aparece. Tinha que sair de lá o mais rápido possível. Até o ar parecia mais denso que nem conseguia respirar! Havia prometido a Valeria que iria visitá-lo, pois faria isso. Confirmaria o bom trabalho de seu pai e sairia mais rápido do que quando entrou.
?É verdade ?Philip garantiu, e não passou despercebido que, pela primeira vez desde que a conhecia, o escudo que protegia a mulher que ele desejava descobrir, desapareceu. ?É uma mulher engenhosa, corajosa e incrível. Uma mulher a quem devo minha vida ?garantiu solenemente. ?Estou em dívida com você. Pode me pedir o que quiser que encontrarei uma maneira de consegui-lo.
?Peço a lua, lorde Giesler ?disse.
Se recuperou o mais rápido que pôde para não mostrar uma imagem que estava escondendo desde que descobriu a maldade das pessoas. Ela não sofreria como Anne ou Elizabeth. Ela era diferente!
?Prometo que vou alcançá-la... ?Ao tentar se reclinar, outra cãibra terrível o nocauteou. Ele jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e respirou fundo.
?Relaxe, por favor ?lhe pediu em voz baixa quando veio até ele. ?Não deve fazer esforços desnecessários ?acrescentou, enquanto colocava as duas mãos sobre o curativo e apalpava lentamente para confirmar que não havia umidade.
?Me pediu a Lua, Mary Moore Arany, e eu juro que te darei ?comentou, sem abrir os olhos. Não queria assustá-la, não queria que se afastasse do seu lado e se para isso tivesse que ficar doente a vida toda, que Deus o concedesse!
?Estou satisfeita em poder comprar as publicações médicas que o Sr. Slow terá guardado para mim ?sussurrou, enquanto tomava a decisão de remover o curativo e confirmar que a ferida ainda estava fechada.
Olhou em volta e franziu o cenho. Onde diabos estava sua maleta? Era mais fácil para ela cortá-lo com a tesoura do que desembaraçá-lo gradualmente porque, dessa forma, ela precisaria tocá-lo, precisaria se aproximar o suficiente para poder inspirar aquele cheiro muito atraente para ela e que... Não havia lido em algum volume científico que o ser humano descobria a atração por uma pessoa simplesmente pelo cheiro? Bem, se essa teoria era verdadeira, tinha que concluir que não era ódio que sentia por lorde Giesler, mas... Algo mais próprio das Arany do que dos Moore! Irritada consigo mesma, desamarrou o nó que seu pai havia feito com as pontas do curativo e desenrolou-o com os olhos fechados. Enquanto não olhasse, a situação estaria sob controle...
?Por que não saiu de sua casa durante esses cinco dias?
A pergunta fez Mary abrir os olhos e olhá-lo ferozmente. Ele queria rir dela? Queria ridicularizá-la? Porque se lhe dissesse o motivo, nenhuma humilhação passada seria tão imensa quanto a que ela sofreria no presente. No entanto, ao descobrir que ele não a olhava, que mantinha seus cílios louros preciosos e longos unidos, relaxou e continuou a tarefa, envolvendo-se novamente em um estado de bem-estar ilógico para ela.
?Esteve doente? ?Insistiu em descobrir.
?Não ?respondeu.
?Então? ?Entreabriu o olho esquerdo e sorriu ao observar a raiva que exibia seu rosto. Não entendia muito bem se era devido à pergunta ou à repulsa diante da sua proximidade. Se fosse a segunda opção, ele estava morto. Porque, ao contrário de Mary, ele estava voando sem asas e pisando nas nuvens sem atravessa-las. Como o resto da humanidade definiria uma emoção semelhante?
?Estava de castigo ?finalmente declarou. Fixou os olhos no peito de Giesler, tentando definir se sua respiração ficaria agitada ao segurar uma risada. No entanto, permaneceu sereno, calmo e isso a incentivou a continuar: ?Minha mãe não achou engraçado que sua segunda filha, quem ela queria ver casada um dia, operasse um homem solteiro enquanto ele estava nu.
Ele ainda estava calmo, como se suas palavras não o afetassem. Ele não soltaria uma risada ou zombaria disso? Apoiaria a decisão de sua mãe? No entanto, quando colocou sua mão direita sobre o lado, para realizar um leve puxão e tirar o resto do curativo, observou que estava fingindo essa tranquilidade, já que seu batimento cardíaco era tão rápido quanto o dela. O que essa alteração significava? Concordava com o castigo ou se sentia culpado?
?Explicou que me deixou dormindo, que sua raiva não tinha raciocínio lógico? ?Ele perguntou, suportando estoicamente a dor que apareceu em seu peito quando descobriu que Mary havia sido injustamente punida por causa dele.
?Sim ?respondeu pouco antes de se ajoelhar para poder observar, de uma posição mais próxima, a ferida.
Como o pai lhe explicou, a sutura foi excelente. Ele mal teria uma linha branca fina no futuro. Sem dúvida, essa costura, apesar dos nervos que sofreu, era perfeita, como se estivesse costurado a vida toda. De repente, ela começou a rir enquanto deduzia a razão pela qual sua mãe havia levado o bastidor, os fios e o enorme tecido para o seu quarto.
?O que é tão engraçado, Mary? ?Philip estalou movendo-se suavemente para observá-la melhor.
?É incrível! ?Exclamou, incapaz de parar de rir. ?Só ela pode inventar uma tolice semelhante!
Intrigado, Philip queria se virar para Mary, mas ela o impediu, colocando novamente uma de suas mãos no centro daquele peito masculino e largo.
?Não se mexa, milorde. Agora é muito perigoso ?ela pediu, com uma voz suave.
?Então me responda ?ele implorou, num tom tão suplicante que Mary sentiu o desejo de abandonar toda a frieza que ela havia decidido mostrar, sentar ao lado dele e conversar como se fossem dois bons amigos.
?Já lhe disse que estive de castigo... ?começou a dizer.
?E que o motivo foi injusto porque, apesar de me ver nu, eu estava inconsciente e não era perigoso para você ?a interrompeu.
?Você não é perigoso, lorde Giesler, mas arrogante ?declarou, com um sorriso de orelha a orelha.
?Bem! Acaba de destroçar meu ego, Mary Moore Arany! ?Ele exclamou, colocando as mãos no peito. Ele a tocou. Havia chegado perto o suficiente daquela mão macia para roçar seus dedos suaves. Mas, para sua decepção, ela a afastou rapidamente. ?Tantos anos pensando que sou irresistível para as mulheres e agora acontece que alguém me garante que não sou tão sedutor quanto acreditei durante todo esse tempo ?acrescentou ironicamente.
?Vi muitos homens que...
?Quantos? ?Perguntou, arregalando os olhos e se levantando.
?Não vai me ouvir? ?Respondeu assim que jogou o curativo em algum canto do quarto. Se levantou do chão e colocou as duas mãos no peito de Giesler, para forçá-lo a se reclinar novamente na cama.
«Maldita insistência!» Mary pensou ao sentir como suas mãos aumentavam de temperatura, ao perceber a aspereza daquele pelo masculino e perceber que a respiração de lorde Giesler estava alterada, como se ele tivesse corrido atrás de um galgo.
?Quantos homens você viu nu, Mary Moore Arany? ?Insistiu, entrelaçando os dedos de cada mão nos pulsos dela.
?Isso importa para você, lorde Giesler? ?Se aventurou a dizer.
De repente, ela sentiu que os polegares do homem acariciavam aquela parte de sua pele, queimando-a sem compaixão. Queria se afastar, queria se distanciar, precisava evocar seu bom senso! Mas... não podia. Ele arrebatou toda a força que teve até agora, deixando-a vulnerável, fraca.
?Sim, me importa ?Philip sussurrou enquanto fixava os olhos naqueles belos lábios vermelhos.
?Por quê? ?Mary insistiu em uma voz que não podia reconhecer como sua.
?Porque quero saber quantos homens duelarei em breve ?afirmou antes de agarrar com força os pulsos e estendê-los para ambos os lados, fazendo com que ela caísse de bruços sobre ele. Com tão bom acerto que aquela preciosa boca impactou sobre a sua.
Antes que Mary tivesse tempo suficiente para reagir, Philips soltou os pulsos. Ele colocou uma mão atrás da nuca e a outra nas costas dela, imobilizando-a. Seus maravilhosos olhos azuis a observavam incrédulo e parecia que saltariam de suas orbitas. Ele hesitou. Por um segundo, duvidou da decisão que havia tomado, mas imediatamente a apagou da sua cabeça. A amava, desejava, precisava e queria que ela fosse... sua. Lentamente, ele pressionou seus lábios nos dela, pedindo-lhe para separá-los, mas Mary não entendeu bem o propósito que se havia definido. Ninguém a beijou com paixão? Mary foi sincera? Que Deus se compadecesse de sua alma perdida porque iria desfrutar muito ensinando-lhe o que significava a palavra prazer!
Atordoada não era a palavra que a definia exatamente. Nem mesmo outra poderia descrevê-la perfeitamente! Sua boca pressionava a dele, notava o calor do ar que fazia ao respirar tocar suas bochechas e percebia, com incrível precisão, como os batimentos de seu coração e os do lorde palpitavam juntos. Tentou se separar quando suas mãos ficaram livres, mas não conseguiu se mexer. Aquele perverso colocou uma de suas grandes mãos na nuca e a outra nas costas, impedindo-a de fazer qualquer movimento para se distanciar. Em pânico, ela abriu os olhos e tentou gritar, no entanto, algo aconteceu que a deixou tão confusa que a silenciou. Esse algo tinha um nome: língua. A ponta desse órgão muscular masculino tocou seus lábios, incentivando-a a separá-los. O que se propunha? O que devia fazer? Poderia considerar esse momento como um teste médico? Oh sim! Claro! E o adicionaria a qualquer manual sobre as interações sexuais entre um homem e uma mulher! Apertou os lábios com força, certificando-se de não deixar a língua ousada e descarada passar.
No entanto, essa ideia firme foi suprimida de sua mente quando as pontas dos dedos, colocadas em seu pescoço, começaram a acariciá-la lentamente. Encantada por essas carícias suaves, seu corpo relaxou e mergulhou em um improvável estado de bem-estar. Era consciente de como seus pelos se arrepiavam, como o calor nascido em seu sexo aumentava e como todo o seu ser ansiava por algo que ela nunca havia provado. Pela primeira vez, ela estava em um estado de fluidez e despreocupação, como se aquele homem a mantivesse protegida, segura e não existissem problemas a enfrentar. Havia apenas eles... dois. Lorde Giesler aproveitou esse momento de embriaguez erótico para invadir o interior da boca dela. Aquela língua masculina a possuiu, a acariciou com anseio, com desejo e com tanta paixão que finalmente fechou os olhos e se deixou levar. Nunca imaginou que uma coisa tão ridícula pudesse provocar algo tão grandioso! Agora entendia a razão pela qual Anne havia sucumbido com tanta facilidade. Se um homem a tivesse beijado dessa maneira, nada e ninguém a impediria de acabar consumindo a paixão iniciada. De repente, ouviu um rugido brotar da garganta masculina. Quando tentou se concentrar no motivo pelo qual fez esse som, outro saiu ainda mais alto. Se lorde Giesler tivesse sido o chefe de uma tribo, esse som poderia defini-lo como um chamado de posse, territorialidade, orgulho e glória, tornando-a sua única companheira de vida. Mas... Isso devia ser uma tolice, certo? Ele não podia reivindicá-la como sua, não havia nada científico que pudesse explicar tal suposição.
No entanto, mesmo que tudo fosse imaginário, era bonito deixar seu corpo relaxar e ser enganado acreditando que sua casa estava nos braços daquele homem. Um lar fictício, é claro, pois ela nunca pensou em morar naquele corpo masculino. Com coragem e vontade de experimentar, ela imitou os movimentos da pecaminosa língua viril até que ambas se encontraram. O sabor do café, que havia tomado antes de subir, se expandiu pelas bocas. Era como se estivesse tomando novamente um gole daquele líquido delicioso adoçado com o sabor rico dele. Foi nesse momento que admitiu com resignação que nunca mais tomaria um café tão gostoso e excitante. Os beijos eram sempre assim? Davam tanto prazer as duas pessoas? Porque não queria parar, era mais, doía ter que fazê-lo, mas a necessidade de respirar se tornou inegável. Quando abriu os olhos, notou que as pupilas de lorde Giesler haviam se dilatado e que suas íris estavam escuras, expressando um sentimento muito diferente da indiferença...
No momento em que sua mente começou a enumerar as possíveis razões pelas quais ele a olhava com tanto ardor, ele pegou seu rosto com as duas mãos e aproximou-o o suficiente para notar novamente o calor da respiração e a suavidade dos seus lábios.
?Vou te dar a lua, Mary ?ele declarou antes de beijá-la novamente e repetir um beijo atrevido, ousado, indecente e maravilhoso.
Mas tudo o que é belo não dura para sempre...
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou Shals batendo à porta com insistência.
?Não! ?Ele respondeu.
?Sim! ?Ela disse, se afastando rapidamente do seu lado.
Capítulo X
Ele devia lealdade ao seu senhor...
Desde que o contratou, catorze anos atrás, ele nunca o deixou indefeso e nessa ocasião também não o faria. Ele saiu da biblioteca, onde havia se escondido os últimos dez minutos para evitar encontrar a Sra. Reform e, depois de confirmar que não havia ninguém, caminhou rapidamente pelo corredor. Ele carregava a maleta da senhorita Moore na mão direita, essa era a desculpa que daria quando aparecesse no quarto. Depois de confirmar o estado de seu senhor, a agonia que estava sofrendo desde que a jovem subiu as escadas, pronta para colocar lorde Giesler em seu lugar, desapareceu. Com a agilidade de um ladrão habilidoso e um sorriso de satisfação que cruzava seu velho rosto, Shals começou a subir as escadas, fazendo o menor ruído possível. No entanto, seus olhos se arregalaram quando ouviu alguém bater na porta. Ele esperou o tempo suficiente, plantado lá, para confirmar que, exceto ele, ninguém mais ouvira as batidas insistentes da aldrava na madeira. Ele bufou, pois seu dever como mordomo principal o acusava de não cumprir a tarefa que lhe fora confiada. Pôs a maleta no degrau e recuou tudo o que lhe custara tanto. Parou em frente à entrada, esticou o colete de seu traje e mostrando a severidade própria do homem de confiança do lorde, abriu.
?Shals! Ainda bem que me ouviu! Estou há mais de cinco minutos batendo na porta! ?Martin disse enquanto tirava o casaco para oferecer a ele.
?Sinto muito, senhor, mas hoje temos a casa um tanto agitada ?comentou como um pedido de desculpas.
?Philip tem piorado? ?Ele perguntou inquieto olhando para o andar de cima enquanto tirava as luvas.
?Não, para alívio de todos nós, nosso senhor está muito bem ?explicou depois de pendurar o casaco de Martin no cabide e colocar as luvas na gaveta da cômoda da entrada. ?A causa da agitação se deve a...
?Martín! ?Valeria gritou quando apareceu no corredor. ?Que alegria vê-lo novamente! Desde quando está em Londres? Por que não veio me visitar? Esqueceu que tem seis sobrinhos esperando a presença de seu tio favorito? ?Acrescentou antes de envolvê-lo em um forte abraço maternal.
?Cheguei há alguns dias, peço desculpas por não ter aparecido em sua casa neste momento, mas tinha um assunto importante para resolver e não podia atrasá-lo ?desculpou-se, esboçando o sorriso mais terno e mais doce que um irmão que amava sua irmã poderia mostrar.
?Que assunto? ?Valeria entrelaçou seu braço esquerdo no direito de Martin.
?Falaremos depois disso, se não se importar. Eu gostaria muito que Philip estivesse presente quando oficializasse.
?Vai casar? ?Perguntou erguendo as sobrancelhas. ?Você conheceu uma mulher?
?Realmente pensa que sou incapaz de tirar os olhos dos livros? ?Perguntou com aversão.
?Eu não disse isso! Sei que, quando fizer isso, levantar seus olhos bonitos dos livros, encontrará a mulher que espera e nesse dia...
Shals aproveitou a distração dos irmãos para subir as escadas novamente. Teria que acabar com a agonia que sofria por não saber o que estava acontecendo no quarto do lorde. Ele precisava confirmar que a Srta. Moore não tinha gritado com ele, cuspido ou... matado. Daí que permanecessem em silêncio absoluto. Ele pegou a maleta e subiu os últimos degraus. Caminhou pelo corredor o mais rápido que seus pés o permitiam e, quando alcançou a porta do quarto do senhor que estava aberta, ficou surpreso ao ver a imagem que era oferecida lá dentro. Eles não eram capazes de ver a imagem que mostravam, pois ambos tinham os olhos fechados. Mas ele foi a única testemunha de um milagre. Em silêncio observou-os com tanto afeto que sentiu como seu coração lhe dava uma reviravolta. Seu senhor, o homem que negava o amor, dizendo que só podia trazer tragédias desastrosas ao mundo, aninhava o rosto da senhorita Moore em suas grandes mãos, enquanto as dela repousavam pacificamente em seu peito nu, como era habitual desde que adoeceu. A janela permanecia aberta, talvez Phiona a abriu ao amanhecer, para que o senhor admirasse o belo dia. No entanto, a beleza de fora era mínima se comparado a imagem dos dois. A brisa movia levemente as cortinas, a luz do sol atingia os dois, como se todos aqueles elementos naturais quisessem glorificar um momento tão bonito.
?Vou te dar a lua, Mary ?Lorde Giesler disse à mulher antes de beijá-la.
Ele poderia ter se virado e desaparecido sem ser visto ou ouvido, mas a voz da Sra. Reform indicava que os irmãos de seu senhor estavam indo visitá-lo. Deu um passo à frente, pegou na maçaneta com a ponta dos dedos e fechou a porta até ficar apenas uma pequena abertura. Essa opção seria mais adequada que apresentar-se sem avisar e fazer com que a senhorita Moore se encontrasse em um grande apuro. Seus lábios permaneceriam selados, embora jamais esqueceria o brilho que seu amo mostrou nos olhos ao olhá-la, nem a declaração dessas palavras tão firmes e seguras. Tinha se apaixonado. Finalmente! E de uma mulher que todo o serviço adorava, apesar de ter um comportamento tão áspero quanto a lixa de um ferreiro. Ele olhou para trás para garantir que a visita prematura chegasse ao patamar no primeiro andar. Que lorde Giesler o perdoasse, mas era mais sensato pôr um fim àquele momento romântico do que serem encontrados daquela maneira. Ele agarrou a maleta com força, colocou os nós dos dedos da outra mão na porta e bateu quase sem movê-la do lugar.
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou.
?Não! ?Ele gritou.
?Sim! ?Disse ela.
?Desculpe pela interrupção, excelência ?Shals comentou entrando rapidamente no quarto ?mas presumi que a senhorita Moore precisasse de sua maleta.
?Obrigada, Shals ?a jovem respondeu, depois de alisar as rugas do vestido com as mãos, ela sorriu e estendeu a palma da mão para pegar a maleta. ?Você é muito atencioso ?acrescentou se virando.
Colocou-a sobre a mesa pequena que estava ao seu lado e suspirou. Suas bochechas ainda estavam ardendo, seu coração ainda estava acelerado e suas mãos tremiam. Como foi capaz de enredar os dedos na alça da maleta se não podia controlá-los? Olhou para fora e uma brisa leve acalmou aquele estado de excitação que havia liberado segundos antes. Não podia acreditar no que tinha feito. Não apenas se deixou levar por um beijo, mas também ansiava por mais. Odiou o momento em que escolheu usar um vestido de mangas compridas, porque seus antebraços não podiam tocar o peito masculino, amaldiçoou o momento em que a costureira indicou que o decote era apropriado, porque queria descobrir se lorde Giesler gostaria de ver seu peito, como ela gostava de observar o dele, e estava com raiva de si mesma por não ser capaz de parar aquela situação.
?Milorde, desejo anunciar que seu irmão decidiu visitá-lo esta manhã ?prosseguiu falando o mordomo, que se colocou em frente aos pés da cama. ?E que aparecerá com a senhora Reform em breve...
?De fato, Martin, —disse Valeria, ao entrar no quarto. —A Srta. Moore decidiu visitar nosso irmão e confirmar que ele evolui satisfatoriamente.
Naquele momento, Mary queria pular pela janela e correr sem olhar para trás até chegar em casa, mas tudo o que fez foi respirar fundo, dirigir-se às pessoas que entravam no quarto e mostrar seu melhor sorriso.
?Mary, tenho a grande honra de apresentá-la ao nosso irmão mais novo, Martin Giesler.
Antes que ela pudesse dar um passo em direção a eles, o jovem, que se parecia muito com lorde Giesler, exceto que usava óculos e sua compleição era menos robusta, avançou em direção a ela, pegou uma das mãos e beijou os nós dos dedos.
?Cara Srta. Moore, é um prazer finalmente conhecê-la. Quero agradecer pessoalmente pelo fato de ter salvado a vida de meu irmão. ?Disse num tom gentil.
Com essas palavras muito cordiais e afetuosas, Mary corou, piscou várias vezes e deu um sorriso coquete. Enquanto isso, Philip estendeu a mão direita até encontrar o livro, que tentava ler até decidir se levantar, e pensou em jogá-lo em Martin. Mas ele se conteve. Seu irmão não era um rival para ele, certo?
?A honra e o prazer são meus ?ela respondeu com alguma timidez. Deu um passo atrás para manter distância e agarrou suas mãos.
?Porque motivo? ?Ele retrucou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?É uma grande satisfação para mim que um homem com seu talento me parabenize.
?Com meu talento? ?Martin insistiu, erguendo a sobrancelha direita.
?Sua fama é notória em toda a Inglaterra. Não há ninguém neste país que não tenha lido e admirado sua última publicação. Devo confessar que fiquei surpresa ao ler sua definição e cálculos em uma interseção variável em dois planos curvos. Foi esplêndido, se me permite o elogio, lord...
?Não sou lorde, apenas Martin Giesler ?ele a corrigiu rapidamente. ?É ele quem ostentará, se decidir fazê-lo algum dia ?concluiu?o título de Freiher Von Giesler. No entanto, lhe peço encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal, não acha? ?E sorriu para ela.
?Sendo assim, pode me chamar de Mary, e obrigada pelo elogio. Fico lisonjeada ao descobrir que há um homem neste mundo que não se intimida com o intelecto de uma mulher ?respondeu, acrescentando às suas palavras um sorriso fraco.
?Informava ao meu irmão ?Valeria interveio, que suportou o máximo que pôde a risada que queria explodir quando viu como Philip se contorcia na cama ?que aceitou o convite para almoçar conosco.
?Almoçar? ?Philip se intrometeu. ?Não seria educado ou apropriado, pois o anfitrião desta casa, que paga seus bons funcionários e a comida que colocam na mesa, não pode se comportar como tal devido a sua doença e indisponibilidade ?salientou.
?Oh, Philip! ?Exclamou Valeria com um sorriso fingido e movendo a mão direita com desdém. ?Sempre tão brincalhão! Não se preocupe Mary, não há nenhum problema. Além disso, desfrutaremos da agradável companhia de Martin. Sabe que foi o rapaz mais jovem que contrataram na Universidade? ?Enroscou o braço direito no esquerdo da moça e a fez caminhar em direção à porta. ?Nós já sabíamos que ele se tornaria uma pessoa muito importante, porque quando criança ele sempre pensava e raciocinava como um homem adulto. Em vez disso, Philip... Oh, Deus! Não sabe os problemas que tive que suportar por sua culpa! ?Exclamou novamente com aparente pesar. Quando estava a um passo de fazê-la sair do quarto, parou e olhou para ela. ?A propósito, você terminou? Talvez tenhamos interrompido a consulta e não conseguiu finalizá-la...
?Não se preocupe, tinha acabado de verificar quando apareceram. Só tenho que colocar um novo curativo, mas Shals pode fazer isso durante o dia ?garantiu.
Por nada no mundo, ficaria sozinha com ele novamente! Ela gostou do beijo? Sim! Tinha gostado de ver que havia um homem que a desejava? Sim! Mas aí concluía sua história. Não poderia se deixar levar pela emoção que lorde Giesler lhe causava. Era um homem perigoso para ela, demais para ficar sozinho com ele novamente.
?Que conclusão chegou? ?Valeria insistiu, acelerando o ritmo. ?Acha que logo poderá se levantar e deixar essa maldita cama?
?Conseguirá se permanecer deitado pelo tempo recomendado ?Mary alegou antes de sair de lá sem sequer se despedir com um olhar fugaz.
***
Os dois irmãos ficaram olhando para a porta e só se viraram quando Valeria e Mary desapareceram.
?Milorde ?Shals interveio, que permaneceu escondido em um canto do quarto o tempo todo ?com sua permissão, devo confirmar que o almoço está devidamente preparado. ?Deu um passo para a cama, fez uma rápida reverência e saiu dali antes que...
?Qual é o problema?! ?Martin gritou quando sentiu uma dor terrível no peito, causada pelo impacto de um livro voador inesperado.
?Qual é o problema? Você dirá... o que acontece com você? ?Explodiu. Apoiou os cotovelos sobre o colchão e acabou por se sentar.
?Não sei a que se refere ?disse agachado para pegar o livro que, após a colisão, tinha caído no chão aberto.
?Peço-lhe encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal ?repetiu as palavras que seu irmão usou como se estivesse mastigando a sola de um sapato.
?Isso? ?Ele retrucou, depois de depositar o livro na lareira. ?É considerado educação e respeito por uma mulher inteligente que, felizmente, salvou a vida de um ente querido.
Ele caminhou parando na frente de Philip e se apoiou com o ombro direito em um dossel de madeira. Poderia deixar escapar uma risada enorme? Porque Deus bem sabia que ele queria fazer isso! Se pegasse o espelho, que estava na cômoda, e o colocasse na frente de seu irmão, descobriria que os demônios realmente existiam. Como prometeu a Valeria, ele ofereceu uma atitude receptiva em relação a Mary, para que Philip reagisse. No entanto, admitiu que estava fascinado ao descobrir que ela havia lido sua última publicação.
?Educação e respeito? Você quase voa como se fosse um querubim em sua direção para beijar a mão dela! Beijar a mão dela! ?Repetiu, percebendo como uma estranha acidez queimava seu estômago.
?Não me disse algo sobre não distinguir entre dois bons seios femininos e duas formas de calcular um mesmo resultado? ?Ele comentou, mesmo sabendo que o inferno dividiria a terra em dois e que o próprio Satanás puxaria sua mão para arrancar sua alma. ?Bem, pela primeira vez na vida, tenho que provar que você está certo. A senhorita... Mary parece ter herdado um busto generoso e firme. Embora seu vestido azul não tivesse um decote muito ousado. Apesar de tudo, acho que quando me aproximei para beijar aquela mão doce e macia, nossos peitos se aproximaram o suficiente para calcular suas medidas. Você me pediu para contemplar também a largura dos quadris de uma mulher? Porque eu acreditava que... ?terminou de falar quando um travesseiro voou, das costas de Philip, para impactar seu rosto, fazendo com que seus óculos fossem atirados no meio do quarto. Como diabos ele estava se movendo com tanta agilidade se ainda estava convalescente?
?Não se aproxime dela! Entendido? ?Berrou. ?Ou juro por Deus que essa conversa será a última que temos pelo resto de nossas vidas.
Martin pegou os óculos do chão, colocou-os e olhou para o irmão. Pela primeira vez, uma ameaça a sua pessoa apareceu em seu rosto. Seria conveniente informá-lo de que Valeria havia planejado sua atuação em relação a Mary? E se decidisse se vingar dos dois? Se havia algo inquebrável em Philip, era sua necessidade dar uma lição às pessoas que o desafiavam. Um exemplo claro disso poderia ser assegurado pelo homem que, quando era adolescente, Philip o chamou de trapaceiro em um jogo de cartas que jogou no antigo clube de seu cunhado. Demorou quase quinze anos para encontrá-lo e, depois desse momento, o cavalheiro não conseguiu levantar a aba do chapéu por dois longos meses. De acordo com a versão de seu irmão, o Sr. Manther colidiu com seu ombro duro no momento em que saiu de White´s e, logicamente, não se afastou rapidamente para evitar um impacto inconveniente e doloroso no olho direito. Então, se não desejava usar um chapéu de abas largas por vários meses, era melhor dizer a verdade.
?Essa farsa foi ideia de Valeria ?finalmente confessou.
?O que significa ... esta farsa? ?perguntou estreitando os olhos.
?O de flertar com Mary ?esclareceu.
?Maldita mente perversa! ?Philip exclamou com raiva.
?Não tinha pensado falar com a senhorita Moore, já sabe que não sou muito versado em manter uma conversa agradável com as mulheres, mas Valeria, depois de encontrá-la no corredor, não parou de falar e falar... Me disse que havia deixado vocês algum tempo sozinhos e que assim lhe devia um grande favor. Que precisava da minha ajuda para descobrir se o seu interesse por essa moça era verdadeiro. Imagino que colocou suas esperanças nela para aceitar maldita baronia.
?Típico dela... ?Philip murmurou.
?Juro que minha presença tinha outro objetivo. Queria pedir conselhos sobre um assunto que tenho nas mãos ?Ele disse sem tirar os olhos do irmão. Relaxada a tensão entre ambos, Martin adotou uma postura mais calma: cruzou os braços na frente do peito e os pés à altura dos tornozelos.
?O que você precisa? ?Philip estalou, olhando para ele sem piscar.
A vida poderia dar algo doce e acido ao mesmo tempo? Porque é assim que se sentia. Ela passou de ter nos lábios a doce boca de Mary para a acidez de lutar com seu irmão para consegui-la. Agora, apesar de saber que tudo tinha sido um truque de Valeria, ainda não conseguia sentir novamente a ansiada doçura.
?Um em troca do outro, como quando éramos crianças? ?Observou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?Um em troca de outro ?admitiu enquanto seu corpo relaxava consideravelmente.
?Bom. Eu decidi estabelecer minha nova residência aqui em Londres ?Martin começou a dizer enquanto se aventurava a sentar ao lado de seu irmão. ?Conversei com Lawford Jr. e ele me disse que poderia investir na propriedade dos Bohanm. Como me informou, é um casal bastante antigo e deseja partir à sua casa de campo para desfrutar de um pouco de paz no tempo que lhe resta de vida.
?Sabe quais vizinhos terá? ?Philip estalou, franzindo a testa e olhando para ele... de novo.
?Ainda não vi, então...
?Os Moore! ?Explodiu de novo.
?De verdade? ?Ele perguntou, arregalando os olhos. ?Inferno de coincidência!
?Você não me disse que agiu de acordo com o plano de Valeria? ?Rosnou.
?Juro pela alma dos nossos pais que sim e que não fazia ideia que a família da Mary seria meus novos vizinhos. Só quero um lar tranquilo, onde possa continuar com... ?Ele se levantou, deu as costas para o irmão, caminhou até a varanda e ficou em silêncio.
?Com? ?Philip insistiu.
?Eu deixei o trabalho na Universidade ?ele disse finalmente, sem desviar o olhar do lado de fora.
?O que disse? Por quê? Você ficou louco? Você precisa de mim para isso? Não é capaz de enfrentar a ira de Valeria? Porque ficará com raiva quando descobrir e me culpará de sua decisão ?Philip comentou, mal respirando.
?Não te culpará de nada, porque lhe explicarei que me ofereceram mais uma alternativa... ?«Obrigatório?», pensou Martin. Não, não poderia dizer isso, era vital para o bem-estar da família que ninguém soubesse a verdade.
?Mas? ?Philip insistiu em saber.
?Tranquilo ?Ele respondeu, virando-se para o irmão. ?É verdade que o trabalho que fiz na Universidade foi gratificante, mas mal aproveitei o tempo livre. Anseio por uma casa, anseio por sua companhia, quero me casar, formar uma família e... viver ?lhe garantiu. Embora a verdadeira razão pela qual decidiu se estabelecer não tivesse nada a ver com a vida, mas com a morte, e não de uma pessoa, mas centenas, talvez milhares...
?Quando você pretende realizar seu novo futuro? ?Perguntou intrigado.
?Em uma semana, no máximo ?ele declarou depois de colocar as duas mãos nos bolsos e puxar os painéis frontais da jaqueta azul marinho. —O tempo que leva para Lawford confirmar a compra dessa residência.
?Bem... ?Philip murmurou acariciando uma barba inexistente. ?Embora Valeria fique brava com você por um longo tempo, devo confessar que é a melhor decisão que você tomou até agora. Já era hora de você voltar e decidir procurar uma esposa, que não será Mary, é claro ?Ele apontou examinando o rosto de seu irmão.
?Não será Mary, te garanto isso. ?Sorriu. ?De certa forma, foi responsável por esta decisão. ?Ao ver que seu irmão levantava uma sobrancelha em sinal de pergunta, acrescentou: ?Sofri muito ao pensar que poderia ter morrido. Tenho me perguntado todos estes dias o que teria acontecido se você... ?não terminou a frase, doía muito fazê-lo. ?Tinha pensado oferecer minha carta de demissão quando terminasse o curso, mas a enviei no mesmo dia que Pierre me fez chegar a missiva de Valeria para me informar sobre sua doença. ?Não era bem verdade, ele o escrevera vários meses antes, quando o estrangeiro apareceu em sua antiga casa e lhe disse que tinha menos de seis meses para aceitar a nova posição oferecida a ele. O anúncio da situação de Philip acelerou o processo. ?O tempo é curto e acho que devo aproveitar para viver com as pessoas que amo ?concluiu. Ele voltou para o lado do irmão e sentou-se novamente no canto inferior da cama?. Então, aqui estou eu, esperando um papel para realizar um sonho... ?refletiu. ?Agora é sua vez, irmão. Diga-me que segredo você mantém ?apelou.
?Vou aceitar a maldita baronia ?comentou depois de jogar a cabeça para trás, até tocar na cabeceira de madeira e suspirar.
?De verdade? Tem certeza? Valeria vai chorar de emoção! Está a muitos anos esperando você tomar essa decisão! ?Comentou feliz.
?Mas somente se eu puder me casar com ela ?disse uma vez que os olhos de ambos encontraram.
?Então... você gosta??Discorreu Martin acomodando os pés sobre a cama, como costumavam fazer quando eram crianças.
?Estou apaixonado, Martin. Não sei quando, nem como, nem por que aconteceu, mas concluí que não poderia viver sem ela. ?Ele admitiu, com um sorriso nos lábios.
?Eu tenho que te dizer uma coisa, Philip, ?ele começou a dizer adotando o tom que costumava falar com seus alunos —há um estudo e um termo médico que, até o momento, não foram levados em consideração, mas seria interessante se você o conhecesse.
?Qual? ?Sua voz soou como se estivesse a ponto de defender-se de um ataque repentino.
?O choque de gratidão. O que sofre um paciente que, ao ser salvo de uma morte certa, acredita que se apaixonou por seu salvador e...[7]
?Bobagens! ?Philip o interrompeu. ?Eu me apaixonei por Mary desde o momento em que a vi pela primeira vez. O que aconteceu a seguir apenas confirmou que ela é a única mulher que eu quero ter ao meu lado pelo resto da minha vida ?garantiu a ele.
?E por que vai assumir a baronia quando se casar com ela??Estalou intrigado.
?Porque me pediu a Lua e só poderei dá-la se me converter em um miserável aristocrata ?ele alegou antes de olhar para a maleta que, novamente, havia sido esquecida por sua dona.
Capítulo XI
Como ela poderia se comportar de uma maneira tão irracional? Por que era incapaz de sentir felicidade quando deixou a residência do lorde? Qual seria a razão médica pela qual notava uma forte pressão no peito? Estaria prestes a sofrer um derrame depois do que aconteceu com aquele homem?
Mary não tirou os olhos da janela enquanto voltava para casa acompanhada de Valeria. Tal como ela lhe prometeu, depois do almoço, conduziu-a até à livraria do senhor Slow e deu-lhe as três crônicas médicas que havia reservado. Deveria mostrar felicidade por ter conseguido tanto o que queria nos cinco dias de castigo, mas não foi assim. Pegou as revistas e as colocou dentro da pasta sem parar para ler seus títulos. Reagiu de modo automático, sem emoção. Talvez porque sua cabeça se recusava a se concentrar em outra coisa que não fosse... ele.
Acreditou, inutilmente, que todas as emoções e sensações produzidas durante o beijo desapareceriam uma vez que abandonasse o quarto. Errado. Ela os reviveu tantas vezes que sofreu inúmeras ondas de calor no almoço. Embora a conversa que teve com Martin tenha sido bastante agradável, não foi esplêndida nem maravilhosa. Apenas prestou atenção à conversa exaustiva que lhe ofereceu sobre o algoritmo quantitativo em diferentes equações. No fundo, e isso parecia inédito, ficou entediada. Em algum momento dessa explicação, sua alma deixou seu corpo para sair da sala de jantar, subir as escadas, correr pelo corredor para voltar aos braços de lorde Giesler. Seus lábios sentiram novamente a suavidade daquela boca masculina, provaram aquele maravilhoso sabor de café, sua língua dançou outra dança de carícias e, por isso, prazer e paixão retornaram.
Tal como concluiu, a melhor opção para manter um bem-estar mental e físico era evitar outro encontro com ele e eliminar de sua mente todos aqueles pensamentos tão inapropriados. Nunca se sentira tão atraída ou intimidada por um homem. Jamais deixou em um segundo plano quem era e em quem desejava se converter. No entanto, desde que aquele homem apareceu em sua vida, tudo se tornou um caos, pois não era capaz de se concentrar em nada exceto nele. Quantas vezes, desde que seu pai lhe deu a maleta, se esqueceu dela? Até que lorde Giesler se cruzou em seu caminho, nunca. Se havia noites que até dormia com ela na cama! Isso também tinha mudado, porque durante sua inesperada visita abandonou seu precioso presente em várias ocasiões...
Sem afastar o olhar do lado de fora suspirou fundo. Estava muito decepcionada por não ter sido capaz de controlar nem sua mente e nem seu corpo quando permaneceram juntos. Ela estava sempre atenta às traições que os outros podiam gerar, mas nunca imaginou que ela mesma seria a maior traidora de sua pessoa. Desde que Anne sofreu a angústia da morte de Dick ou do engano que Elizabeth padeceu por Archie, ela se esforçou para lutar contra tudo o que envolvia um relacionamento afetuoso com um homem. Tudo o que podiam obter dela eram conversas e discussões médicas. Qualquer sentimento afetivo estava vetado, negado, fechado. No entanto, lorde Giesler quebrou todas as barreiras que ela havia construído ao longo dos anos. Aquele gigante de olhos azuis e cabelos loiros havia se tornado seu ponto fraco, porque havia encontrado uma maneira de transformá-la, através de seus beijos e carícias, em um ser vulnerável, frágil e comum.
Ela se mexeu desconfortavelmente no assento enquanto apertava as mãos com força, que estavam no colo. Se não estava errada, como começava a ser habitual nela, suas bochechas já mostrariam um leve rubor por causa de suas divagações. Valeria poderia supor que isso se devia à ansiedade que lhe provocava chegar em casa e enfrentar novamente o castigo estabelecido por sua mãe. Mas essa não era a razão pela qual as bochechas pareciam duas pequenas chamas de fogo. A lembrança de como o corpo dela reagiu durante os beijos a alterou e a enfureceu a ponto de elevar a temperatura do corpo em mais de dez graus. Se tocasse o termômetro que guardava na maleta, o mercúrio aumentaria tanto que o pequeno tubo de vidro explodiria em suas mãos. Como se deixou levar tão facilmente? Por que seu cérebro foi incapaz de impedir isso? Não havia lido que a amígdala cerebral ajudava a encontrar a estratégia necessária para resolver uma situação de estresse, medo ou perigo? Então, por que a dela estava inativa quando lorde Giesler se encontrava próximo a ela? Bufou pelo nariz. Ansiava procurar respostas médicas para todas as suas perguntas e tinha uma solução para isso: procuraria o livro que seu pai mantinha na prateleira de seu escritório. Se bem lembrava, o médico e cientista francês Paul Broca explicaria como o sistema límbico funcionava. Talvez descobrisse qual dos seus quatro componentes era responsável pelas respostas emocionais. Depois que encontrasse o problema, lutaria contra ele. E se para isso tivesse que usar aqueles dolorosos choques elétricos, se submeteria sem hesitar um segundo. Ela precisava fazer tudo ao seu alcance para ser a Mary de sempre e se afastar de quem se tornara. Ela nunca foi uma mulher apaixonada, mas uma jovem respeitável que raciocinava, entendia e observava o mundo de uma perspectiva lógica. Não podia se transformar, da noite para o dia, na desavergonhada que havia percebido um certo prazer entre as pernas ou que ansiava que as mãos do homem viajassem cada centímetro de sua pele. De modo algum voltaria a desejar algo que tinha decidido não ter em sua vida. Por esse motivo, lorde Giesler tinha que morrer para ela.
?Mary? ?Valeria perguntou estreitando os olhos.
?Sim? ?Ela respondeu, virando-se para a companheira e desenhando um enorme sorriso. A consequente ao ter a certeza de uma vitória próxima.
?Está bem?
?Sim, muito bem. Por que pergunta? ?Continuou falando sem apagar o leve sorriso dos lábios. Esperava que seu rosto não decidisse traí-la também, porque não queria ser interrogada pelos poucos minutos restantes, para chegar em casa, sobre o motivo de estar tão ausente.
?Percebo você... distante ?Valeria alegou.
?É o meu estado normal ?respondeu enquanto estendia a mão para a alça da maleta e a colocou sobre as pernas. ?Minha cabeça não para de pensar sobre o que esses preciosos artigos médicos registram.
?No que você está pensando agora? ?Estalou com uma mistura de decepção e raiva.
?Claro! ?Mary exclamou, arregalando os olhos para enfatizar sua decepção. ?Estou ansiosa para descobrir que nova doença encontrara na Europa e me informar de como pode ser eliminada. Embora ultimamente não tenham encontrado muitos casos importantes. No mês passado, os quatro artigos que adquiri na livraria do senhor Slow falavam sobre o ensaio realizado por Henry Gray em mil oitocentos e quarenta e oito, intitulado A origem, conexões e distribuição dos nervos do olho humano. Uma descoberta magnífica para um jovem anatomista e cirurgião britânico. Sabia que tinha a minha idade quando foi eleito Membro da Royal Society? Embora ele tenha morrido cedo demais. Uma verdadeira tragédia para a sociedade médica. Mas... Quem iria supor que morreria de varíola aos trinta e cinco anos? Segundo dizem, foi transmitido por um sobrinho que ele cuidava e...
Valeria não soube o que dizer a respeito. Tinha assumido, ao vê-la tão calada e embaraçada, que estava revivendo o tempo que passou a sós com seu irmão, mas se equivocava. A jovem era imune aos encantos de Philip. E era a primeira mulher a fazer isso! Mas não desistiria tão cedo. O que estava em jogo era o baronato e, diante disso, lutaria incansavelmente.
?Você se lembrou do ensaio porque viu algo perigoso nos olhos do meu irmão? ?A interrompeu.
?Como? ?Mary estalou confusa.
?Eu me perguntava se o fato de você evocar esse livro médico tem algo a ver com alguma doença que tenha apreciado nos olhos de Philip ?insistiu.
?Não! Nada disso! ?Disse rapidamente.
?Menos mal! Porque, pelo que entendi, pessoas que têm olhos castanhos podem...
?Castanhos? ?Mary soltou. ?Pelo que me lembro, lorde Giesler tem íris azuis claras, muito parecidas com as minhas ?acrescentou.
Bom. Pelo menos, ela havia notado esse detalhe. Agora tinha que continuar com seu plano.
?Certo. Às vezes me confundo com os de meu marido ?se desculpou. ?Então imagino que seu pensamento não tem nada a ver com outra possível doença, certo?
?Exato! ?Garantiu. ?Seu irmão está muito recuperado e abandonará o quarto se permanecer uns dias mais em repouso. Para ser sincera, continuo fascinada com sua evolução.
?De verdade? ?Valeria continuou. Se ela tivesse que falar sobre doenças para que se concentrasse em Philip, faria isso sem hesitar por um único segundo. ?Observou a ferida? Acha que requer muita atenção? Não posso estar todos os dias em sua casa. Meus filhos e meu marido são um desastre se me ausento mais de três horas de minha casa. Não ficaria surpresa que, ao voltar, tenham queimado algum cômodo.
?Não se preocupes. A ferida está perfeita. Apenas ficará uma fina cicatriz. Tenho certeza de que meu pai, quando o visitar hoje à noite, confirmará minha opinião. Só espero que Shals não demore muito para enfaixá-lo para que não entre sujeira na fissura.
?Não precisa se preocupar com isso. As empregadas limpam o quarto todos os dias ?Valeria disse.
?Não se trata desse tipo de limpeza ?disse antes de soltar uma pequena risada. ?Centenas de bactérias foram descobertas que pululam pelo ambiente e são invisíveis ao olho humano. Uma delas pode entrar na ferida e infectá-la.
?E sabendo disso... como não lhe ocorreu enfaixá-lo você mesma? ?Valeria perguntou perplexa.
?Porque me arrastou para a sala de refeições e durante o almoço não me pareceu correto me ausentar no meio da maravilhosa conversa sobre algoritmos que Martin me ofereceu. Além disso, tenho certeza de que Shals o enfaixou depois de confirmar que a comida estava preparada. Como você me explicou, ele é um mordomo muito eficiente ?explicou com certeza.
?Ainda assim, acho que seria conveniente que voltasse amanhã para confirmar sua suposição ?Valeria expôs uma vez que olhou pela janela e observou os telhados da residência Moore. ?Não gostaria que Philip tivesse uma infecção agora que começa a melhorar.
?Não vejo necessidade de voltar ?manifestou com angústia. ?Mas prometo que, quando falar com meu pai, informarei o que aconteceu para confirmar que o curativo foi feito corretamente.
?Não quer ter certeza de que meu irmão evolui favoravelmente? Negligencia com tanta facilidade as pessoas que atende? ?Insistiu.
A carruagem parou na entrada de sua casa. Devia esperar que o cocheiro abrisse a porta e desdobrasse as escadas de metal, mas se sentia tão ansiosa para sair de lá que, como demorava um segundo a mais, ela mesma o faria.
?Como te disse, meu pai cuidará dele como fez até agora ?comentou com mais ênfase do que deveria. ?Além disso, lembre-se que ainda estou de castigo e quando minha mãe descobrir que me levou para a casa de seu irmão em vez de consultar seus filhos, não poderei sair de casa até que complete os trinta anos.
Graças a Deus o cocheiro já tinha aberto a porta! Com a maleta na mão, baixou o mais rápido que pôde, alisou a saia de seu vestido e se virou para Valeria, que ainda continuava imóvel em seu assento.
?Foi um dia magnífico, Valeria. E eu insisto que você não deve se preocupar com seu irmão, certamente ele voltará em breve à vida que tinha antes de ficar doente.
?Mas... não quer que eu vá com você até a porta? O que sua mãe vai dizer sobre mim? Prometi a ela que cuidaria de você e a levaria até ela sã e salva.
?Despeço-me em seu nome. Além disso, quando lhe explicar que estava com pressa de chegar em casa, caso algum dos seus filhos tenha incendiado um quarto, ela entenderá. Boa tarde e obrigada pelo presente ?disse antes de fechar a porta e caminhar a grandes passos para sua casa, seu santuário, seu lugar protegido e do qual nunca deveria ter saído.
***
?Não se preocupe com elas, mãe. Garanto-lhe que todas estão perfeitamente bem.
A afirmação de Madeleine fez com que Sophia levantasse o olhar do bastidor e o fixasse na mais nova de suas filhas. Permaneceu em silêncio, observando-a sem piscar. Logo, depois de descobrir aquele brilho tão bonito e sincero em seus olhos verdes, sorriu e voltou para a costura.
?Eu sei ?garantiu. ?Mas é inevitável me preocupar com elas.
?Continua inquieta pela visão que tive sobre Anne? Pensa que me equivoquei sobre lorde Bennett? Porque lhe prometo que era ele. Esse homem nos salvará da maldição ?declarou solene. Fechou a caderneta em que anotou a última receita que havia preparado naquela manhã, se levantou lentamente da cadeira e foi até a mãe para se sentar ao seu lado.
?Confio em suas visões, Madeleine. Se acredita que lorde Bennett é o homem destinado a Anne, esperarei que sua profecia seja cumprida.
?Desaparecerá algum dia? ?Perguntou depois de alguns minutos de silêncio que os utilizou para refletir e entrelaçou seus brancos dedos sobre a saia de seu vestido celeste. Um de cetim mate com rendas nos punhos e pescoço. ?Me refiro ao meu dom. Será que irá da mesma maneira que veio, sem avisar?
?O meu está comigo desde que nasci. Embora tenha desaparecido durante a gravidez, porque toda a minha energia se concentrou em criar uma nova vida, mas voltou uma vez que vieram ao mundo.
?Nunca desejou ter nascido normal? ?Insistiu.
?Você não se define assim? ?Sophia retrucou deixando a costura à esquerda e virando-se para a filha.
?Não ?respondeu sem hesitar um único segundo. ?Quem, de todas as pessoas que conhecemos, pode ter sonhos que preveem o que acontecerá a seguir?
?Madeleine... ?sussurrou, segurando as duas mãos para apertá-las entre as suas ?é uma menina muito especial e não deveria se sentir mal por ter nascido com uma habilidade tão magnífica. Esqueceu o que aconteceu naquele dia? O que você fez por aquela criança?
Madeleine fixou seus olhos nas mãos e mordeu ligeiramente o lábio inferior. Não, não havia esquecido. Jamais poderia fazer uma coisa semelhante! Mas foi nesse momento que seu dom tomou força, o controle de sua vida e não encontrava uma forma de pará-lo. Era verdade que naquele dia ela se sentiu feliz e orgulhosa de si mesma. No entanto, nem todas as suas visões eram boas. Muitas noites ela se levantava banhada em suor, tremendo e chorando inconsolavelmente porque a maldade a dominava.
?Essa criatura pode ser salva graças a você, pequena ?Sophia disse suavemente enquanto acariciava os dedos longos da filha com os polegares. ?Sua alma recorreu para a única pessoa que podia ouvi-la... ?acrescentou.
?Eu sei... ?murmurou, abaixando a cabeça.
?E também foi à razão pela qual Anne desistiu de sair naquele momento. Se você não tivesse nos contado o que viu, ela não estaria mais conosco. ?É verdade que nem todos os seus sonhos serão bons, mas você terá que se esforçar para dominá-los. Uma alma como a sua evocará forças boas e más. Sua missão é saber como filtrá-las.
?Como farei algo assim?
?Imagino que levará muito tempo para você conseguir, assim como eu fiz para desenvolver o meu. ?Ao ver que seus olhos se entristeciam, apertou com mais força suas mãos. ?Mas uma Arany sempre consegue o que se propõe, e não nasceu uma cigana que se renda sem antes lutar.
Madeleine suspirou profundamente e agradeceu as palavras reconfortantes de sua mãe com um leve sorriso. Esperava que tivesse razão, que não se confundisse porque realmente necessitava eliminar certos aspectos de seu dom. Rara era a noite que não ficava acordada, sentada sobre a cama, abraçando os joelhos enquanto se perguntava o que aconteceria uma vez que fechasse os olhos. Essa incerteza era a culpa de seu comportamento. Sempre ficava esquiva de todas as pessoas que se aproximavam dela. Não podia tocá-las, nem olhá-las sem descobrir, mediante aqueles malditos sonhos, algo sobre elas. Algumas vezes a faziam feliz, mas a maldade das pessoas não tinha limites. Seu coração começou a bater com força ao lembrar a tarde que o primeiro noivo de Anne lhe tocou uma mão para cumprimentá-la. Nessa noite, os seus sonhos foram sombrios, tenebrosos e insuportáveis. Seu espírito se desprendeu de seu corpo e saiu à rua, mostrando-lhe o que aconteceria depois de várias semanas. Não foi capaz de explicar a sua família, e nem muito menos a Anne, o que tinha visto. Talvez porque nem ela mesma acreditou. Mas Dick morreu... E como consequência de tudo isso se retraiu ainda mais do mundo.
?Mary acabou de chegar ?comentou Sophia se levantando rapidamente do sofá.
Caminhou para a janela e afastou lentamente a cortina para confirmar que, tal como intuiu, a carruagem da senhora Reform tinha parado no jardim. Olhou o relógio que havia sobre a lareira e franziu a testa. Já eram quatro horas da tarde e, embora tenha sido informada de que a filha almoçaria fora, estava com muita raiva de Mary. Ela deveria procurar qualquer desculpa para recusar o convite. Não era apropriado que ficasse fora de casa por tanto tempo com uma pessoa que mal conhecia, mesmo que estivesse muito agradecida por ter salvado a vida de seu irmão. Mas tinha que confiar em sua filha. Tinha certeza de que, se tivesse se encontrado em uma situação comprometedora, teria agido com sensatez. Embora depois de operar lorde Giesler completamente nu, ela não tivesse mais certeza do bom senso de sua filha.
Saiu silenciosamente da sala de costura e foi em direção à porta para recebê-las. Durante o breve trajeto, lembrou o momento em que a Sra. Reform apareceu em sua casa horas antes. Sua mente evocou a expressão serena que ela exibiu ao se apresentar e como mudou depois que a filha chegou. Como não percebeu isso? Por que seu instinto não a alertou para uma coisa dessas? «Morgana!», exclamou mentalmente enquanto avançava em direção à entrada, abrindo a porta ela mesma, para não demorar muito para descobrir se sua intuição era verdadeira.
?Boa tarde, mãe ?lhe disse Mary uma vez que se encontraram de frente.
?E Sra. Reform? ?Perguntou olhando para a carruagem.
?Disse-lhe que não me acompanhasse, que não era necessário que se incomodasse ?explicou enquanto entrava no hall.
?O que você fez? ?Esbravejou Sophia batendo a porta.
?Eu? Nada! Como pode pensar isso de mim? ?Disse com raiva.
?Porque as duas vezes que vi essa mulher nunca me pareceu uma pessoa desrespeitosa ?a mãe insistiu.
?Precisava voltar para casa o mais rápido possível. Como me disse, seus filhos podem atear fogo em qualquer cômodo da casa, se ficarem mais de três horas longe dela. ?Explicou enquanto dava o casaco a Shira, que apareceu sem fazer barulho.
?Mas... você não iria examiná-los? Porque, se bem me lembro, a senhora Reform disse que haviam sofrido um resfriado e queria confirmar que não teria nenhuma consequência ?Sophia disse, arregalando os olhos.
?Não. No final, me livrei da presença daqueles demônios ?Mary declarou antes de levantar as sobrancelhas castanhas várias vezes. Observando as bochechas e os olhos da mãe começarem a ficar avermelhados, ela decidiu que era hora de escapar. No entanto, quando ela deu um passo à frente, em direção às escadas, uma mão a parou.
?Onde você esteve Mary Moore? Por que não é capaz de me olhar na cara? O que esconde de mim? O que aconteceu?
?Ainda continuo de castigo, certo? ?Sophia estreitou os olhos em resposta. ?Bem, apenas lhe direi que curei pessoas, mas não foram filhos da Sra. Reform, mas os servos de lorde Giesler ?confessou com dignidade.
?Desobedeceu minha ordem e retornou naquele lugar? Por quê?
?A verdade? ?Mary soltou.
?Sim.
?Cheguei à conclusão de que Valeria estava muito assustada com o que aconteceu com o irmão e precisava que eu confirmasse que nosso pai está fazendo um bom trabalho.
?E? ?insistiu Sophia.
?E, como sempre, nunca fico satisfeita em fazer apenas uma coisa. Então, terminei por apresentar duas opiniões em vez de uma.
?Quais? ?Sophia percebeu como a filha estava ficando cada vez mais irritada. Até agora, nunca havia chegado em casa depois de visitar um paciente com tanta irascibilidade. O habitual era que estivesse excessivamente emocionada. Mas tinha que lembrar que o homem doente que visitou era lorde Giesler, o motivo pelo qual estava de castigo.
?A primeira foi que, de fato, a cura desse presunçoso está sendo espetacular e que nosso pai é o melhor no mundo. A segunda... ?Ela respirou fundo e, pela primeira vez em sua vida, olhou para a mãe com raiva, como se ela fosse a única culpada por fazê-la sofrer todas as emoções e sensações que nasceram nela quando foi beijada por lorde Giesler. ?Deve se sentir muito feliz em entender que sempre esteve certa sobre mim...
?Eu? Razão sobre você? Em quê? ?Sophia disse com uma mistura de surpresa e perplexidade.
?Que, embora nunca quis reconhecê-lo, hoje entendeu que por suas veias também corre sangue Arany.
A resposta saiu da boca de Madeleine. Sophia observou Mary dar-lhe um olhar furioso. Mas a menininha não se intimidou com essa ameaça silenciosa. Exibiu um sorriso enorme antes de colocar as mãos atrás das costas, girar nos calcanhares e seguir em direção à cozinha, esticando as pernas excessivamente.
?Se sente muito orgulhosa, certo? ?Mary soltou cerrando os dentes.
?Filha, por favor me diga o que aconteceu ?Sophia pediu, estendendo a mão para Mary, para que a aceitasse e poder lhe transmitir desse modo um pouco de paz.
?Posso resumir em algumas frases: nunca mais sairei de casa, nunca mais verei lorde Giesler e nunca deixarei o sangue de Arany tomar conta de mim ?hesitou antes de agarrar a alça da maleta e subir as escadas o mais rápido que podia.
Capítulo XII
Ela ficou trancada na biblioteca por horas tentando estudar o novo ensaio médico que havia adquirido, mas não conseguiu ler nem duas frases seguidas. A maldita voz alegre insistia em interrompê-la toda vez que começava a leitura. Resignada por não conseguir alcançar o que se propôs, ela fechou o livro e acariciou a longa trança do cabelo com as duas mãos enquanto contemplava as escassas brasas. Depois do que aconteceu com lorde Giesler, sua mãe, depois de considerar que os tubos de metal eram muito perigosos em suas mãos, proibiu Shira de usá-los nela e insistiu que fosse amarrado com um laço azul inofensivo. Embora, de acordo com Josephine, fosse a arma mais eficaz para estrangular qualquer malfeitor. Mary sorriu levemente ao se lembrar da manhã em que jogou seus tubos no lorde Giesler como se fossem projéteis. Mas aquele leve sorriso de diversão desapareceu quando ela também se lembrou de ter encontrado um deles guardado em uma gaveta da cômoda do lorde. Por que o escondia como se fosse um tesouro? Estaria esperando o momento para devolvê-lo? Com que finalidade? Que plano ele tinha em suas mãos? Mary se recostou no sofá e suspirou. Não tinha respostas para suas perguntas. Na verdade, era a primeira vez que não as encontrava. Seu mundo, baseado em executar uma rotina severa para facilitar o seu cérebro a admissão de novos conceitos médicos, mergulhou em um profundo caos desde que aquele homem irrompeu em sua vida. Nem se reconhecia quando se olhava no espelho! Não só seus olhos brilhavam de uma maneira estranha, mas até sua pele se contraiu tanto que parecia cinco anos mais jovem. Se isso consistia na natureza feminina, em rejuvenescer para seduzir os homens, que lhe durasse cinquenta anos mais...
Ela fechou os olhos, cansada de submetê-los por várias horas a uma luz fraca, e tentou sucumbir ao leve sono que a dominava. Mas foi incapaz de alcançá-lo porque havia a voz novamente, que não deixava de cantarolar uma canção absurda no dialeto Zíngaro sobre a salvação que lhe traria um maldito fogo. Fogo? Onde? E que salvação se referia? O único que precisava era eliminar um titã com cabelos loiros e olhos azuis da cabeça. Mas... como conseguiria uma proeza tão simples? Se ela, com o caráter e a determinação que possuía, não pudesse eliminá-lo de sua mente, como faria com o maldito fogo? O queimaria? Faria lorde Giesler entrar nele até que seu grandioso corpo se transformasse em cinzas? Essa ideia, bastante macabra, a fez sorrir novamente. Exceto em certas reuniões médicas, quando alguma promessa médica jovem se impunha pela força a seus argumentos, seu instinto assassino não aparecia. Ela proporcionava vida, não morte. No entanto, esse homem era o culpado por seu lado criminoso permanecer latente desde que acordava até adormecer.
Desesperada, porque a voz não parava de cantar, ela abriu os olhos e se levantou do sofá. Se não podia ler, pelo menos procuraria a pessoa que a interrompia para calá-la de uma vez por todas. Relutantemente colocou o livro sobre o sofá, amarrou o laço da bata branca e saiu da biblioteca.
Para sua surpresa no corredor, não havia ninguém. No entanto, a voz estava tão perto dela que parecia tê-la ao seu lado. Determinada, ela caminhou devagar até chegar ao pé da escada, olhou para o segundo andar e franziu a testa. Onde estaria? Quem seria? Só tinha duas alternativas possíveis: sua mãe e Madeleine. As duas eram as únicas pessoas na casa que costumavam falar em Romani. Quando colocou o pé no primeiro degrau, ouviu as badaladas do relógio. Eram duas da manhã, tarde demais para a irmãzinha ficar acordada. Normalmente, depois de se retirar para o quarto, permanecia até o amanhecer. No entanto, desde que Josephine partiu, ela ficou bastante inquieta e confusa. Talvez, incapaz de dormir, ela decidiu caminhar até que o cansaço a vencesse.
Encorajada para descobrir se Madeleine era a arquiteta de seu desespero, ela subiu as escadas, atravessou o corredor, ficou em frente à porta do quarto das gêmeas e a abriu muito lentamente. Não, não era ela. A menina se encontrava sobre a cama coberta com o lençol até a cabeça e tão quieta como uma estátua. Com discrição, saiu dali tal como entrou. Como sua primeira opção foi descartada, ainda lhe restava outra: sua mãe. Talvez a mente materna ainda estivesse nervosa após a partida de três de suas filhas. Talvez sua mãe não tenha conseguido adormecer facilmente ou... Sim, essa alternativa também se encaixava. O termo médico para definir a terceira opção era sonambulismo, embora seu pai nunca tenha falado sobre esse tipo de distúrbio na família. No entanto, tudo poderia acontecer com os Arany. Os Moore, felizmente para ela, sabiam controlar até as atividades que realizavam inconscientemente. Admitindo a possibilidade de encontrar sua mãe sonâmbula, ela lembrou o caso de Albert Tirrell, que foi absolvido de assassinato por alegar que estava sonâmbulo quando cometeu o crime. Certamente sua mãe não pensaria em matar ninguém, embora não lhe faltasse vontade. Era mais provável que a mente agitada a levasse à sua época juvenil, quando cantarolava absurdas canções ciganas enquanto lavava a roupa em um rio próximo do povoado.
Do alto da escada, Mary olhou para baixo. Nada. Sophia também não estava lá. Mas incrivelmente a voz, daquela área da casa, era ouvida mais claramente.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e contemplará seu destino. No fogo encontrará o que tanto deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
Fogo? Salvação? Mas por que não parava de uma vez por todas a maldita voz? Que tipo de babá instava a buscar uma fogueira? Isso nunca faria alguém dormir, mas sim incentivá-los a sair de suas camas e investigar os arredores.
Descansou a mão direita no corrimão de madeira enquanto olhava para a porta de entrada. Encontraria sua mãe lá fora? A porta se fecharia quando saiu? Não, não poderia dar essa opção como válida. Se isso tivesse acontecido, Sophia teria acordado rapidamente. Ninguém continuaria dormindo ao ouvir os gritos de uma cigana zangada. Essa reflexão a fez entender que sua mãe não deveria ser a autora dessa música e que, fora de sua casa, havia uma pessoa estranha. Por um momento duvidou sobre descer e resolver o enigma ou voltar para seu quarto. A segunda alternativa era a mais sensata e a teria tomado se a Mary do passado não tivesse desaparecido. No entanto, não era mais a mesma pessoa. Lorde Giesler a transformou completamente. Odiando ainda mais a causa de suas irracionalidades, desceu lentamente, sentindo na planta dos pés descalços a frieza e dureza de cada degrau. A melodia ficou tão forte e poderosa que, no meio da escada, ela não conseguiu mais mudar de ideia. Seu corpo estava preso, enfeitiçado pela voz harmoniosa. Pensando nesse fato irracional, ficou em frente à entrada, estendeu as mãos para as fechaduras e as girou uma a uma.
Quando abriu a porta, fechou os olhos quando sentiu a carícia de uma brisa noturna suave em seu rosto. A bata se moveu para trás, mas o laço impediu que se afastasse dela. Jamais havia sentido tanta paz, tanta tranquilidade. Era como se toda a inquietação que tinha vivido no passado nunca tivesse existido. Levou as mãos ao peito, captando como seu coração batia com lentidão. Continuava sem compreender a si mesma. Qualquer pessoa em sua situação estaria à beira da loucura. No entanto, ela desfrutava de um estado de repouso inverossímil.
«Abra os olhos, estenda suas mãos e aceite o destino que lhe ofereço. Toque nele; abrace-o... Encontre sua salvação...».
Tal como lhe indicaram as frases dessa canção que não parava, Mary abriu os olhos lentamente e ficou imóvel ao descobrir duas coisas: uma enorme fogueira no meio do jardim, que ardia sem a necessidade de lenha, e o maior corvo que tinha visto em sua vida, apoiado no corrimão de mármore. Aquela tranquilidade, aquela calma que notara percorrendo todas as partes de seu ser desapareceram quando viu como aquele imenso pássaro abria suas asas. Assustada com a aversão que sentia por esses tipos de animais, ela recuou, na esperança de entrar na sua casa novamente sem deixar o pássaro irritado. Mas não foi fácil avançar porque a porta, de maneira inexplicável, tinha se fechado. Com as costas apoiadas na madeira, fixou seus olhos de novo no animal. Este escondeu de novo as asas e a olhou. Quando os dois olhos se encontraram, Mary prendeu a respiração enquanto contemplava um fato inédito. Os corvos não tinham olhos negros? Então... por que os daquele animal eram azuis, muito parecidos, se não iguais aos do homem em que não queria pensar?
?Não tem nada melhor para fazer? Vá embora, pássaro miserável! Deixe-me em paz! ?Recriminou, num ato de valentia, o pássaro com a esperança de que se afastasse dela.
No entanto, o corvo não foi embora. Depois de ouvi-la, ele expandiu suas enormes asas novamente e as bateu com avidez. De repente, a brisa suave se tornou um tornado angustiante, elevando todas as folhas secas no chão para o céu. Horrorizada, ela fechou os olhos e colocou as mãos na frente do rosto para não se machucar. No instante em que se preparou para gritar que parasse, a tranquilidade voltou. Muito devagar, o mais lento que pôde, ela abriu os olhos, expulsou todo o ar retido em seus pulmões e afastou os braços. Então observou algo que a deixou paralisada. O maldito pássaro, aquele que queria ver longe dela, voou sobre o fogo desenhando enormes círculos.
?Não! ?Ela gritou enquanto corria em sua direção. Uma coisa era odiar esse tipo de animais e outra muito diferente era lhe desejar a morte. ?Afaste-se! Vai se queimar! —Continuou dizendo até ficar na frente da estranha fogueira.
Como da última vez, o corvo a ignorou e continuou seu voo sobre as chamas. A luz da grande fogueira alcançou a plumagem negra e a fez brilhar como uma estrela. De repente, seu olhar encontrou o do animal novamente. Mary começou a tremer, antecipando a terrível situação que veria em breve. Não podia testemunhar um ato tão horrendo. Por mais que não gostasse de tais pássaros, não seria capaz de viver com a dor de não ter evitado tal catástrofe. Reunindo a pouca força que tinha, levantou as mãos e começou a agitá-las, numa tentativa absurda de assustá-lo. No entanto, o corvo subiu ao céu, como se fosse um foguete, e logo mudou de direção, dirigindo-se para o interior do fogo em um mergulho.
?Não! ?Mary gritou horrorizada.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e você contemplará seu destino. Nas chamas você encontrará tanto o que deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
O animal não parou. Entrou na fogueira e ardeu. O que aconteceu depois deixou Mary muito confusa. Enquanto a voz continuava cantando, enquanto lágrimas de tristeza vagavam por seu rosto, a cor do fogo passou de laranja e vermelho para o branco e azul. Chocada ou perplexa, não conseguia descrever com precisão o estado em que estava. Talvez não houvesse uma palavra capaz de explicar que tipo de emoções e sensações a dominavam naquele momento.
«Não se afaste... Aí está... Sua salvação vem... Toque-o! Toque nele!».
A voz cantante insistia repetidamente. Sem tirar os olhos do fogo, enfeitiçada pela música e enfeitiçada pelo estranho fenômeno que testemunhou, aceitou a ordem e estendeu as mãos para as chamas brancas e azuis. As pontas de seus dedos não sentiram calor ou dor. O oposto. Uma leve cócega os recebeu quando passou por eles. Deu outro passo em direção ao fogo, desejando sentir aquele toque maravilhoso em todo o corpo. Se colocou no centro, no meio daquela fogueira incomum e começou a notar carícias fascinantes em sua pele. Nem a bata nem a camisola a impediram de sentir aquele toque magnífico. Cativada por esse estado de prazer, ela fechou os olhos e se rendeu à suavidade que a percorria. De repente, exatamente quando pensou que poderia morrer de prazer, seus lábios foram atacados e pressionados por uma boca. Ela parou de respirar, porque sua mente a informou sobre quem poderia beijá-la dessa maneira. Essa pressão, essa paixão e o ardor de tomá-la tinham um sobrenome único: Giesler. Tentou abrir os olhos para confirmar as suas suspeitas, mas não fez isso. Desejava continuar a sentir essa boca sobre a sua e que a liberdade que brotava em seu interior aumentasse. Por que lhe era tão agradável estar com ele? Por que não o odiava como se empenhava em fazer? E, por que não se retirava e voltava para casa? Todas as perguntas foram resolvidas com uma única resposta: porque o desejava. Sim, mesmo que lhe parecesse estranho, mesmo que tivesse dificuldade em admitir, ela desejava lorde Giesler. Mas... realmente que ele era sua salvação? A música se referia a esse homem específico? Como podia resgatá-la quem lhe converteu em uma mulher diferente? Até agora, sempre se gabou de ser uma Moore, de não ter em suas veias nem uma só gota de sangue Arany. No entanto, essa forma de reagir era mais própria de sua mãe que de seu pai... Com raiva da sua reflexão, abriu os olhos. A princípio, suas pupilas não lhe ofereceram uma imagem clara do lorde, mas com o passar dos segundos, o rosto ficou tão claro quanto a água de um rio. Assustada, porque seu corpo ardia de desejo de continuar em seus braços, de sentir o contato de seu robusto peito nu e de perceber a força de sua boca sobre a dela, deu um passo para trás e o olhou com estranheza. As chamas continuaram a cercá-lo, sua luz continuou iluminando a silhueta masculina que a tinha tão cativada. Alguma vez pôde imaginar que um homem como ele teria a coragem de admirá-la e desejá-la dessa maneira? Até que ponto devia sentir-se honrada ou apreciada? Devia aceitá-lo sem mais nem menos? E, o que estava vivendo? Sofreria algum transtorno mental? Porque não podia encontrar outra explicação ao que estava vendo e vivendo.
?Mary... vem... ?ele sussurrou com uma voz aveludada. ?Não saia do meu lado, meu amor... ?ele acrescentou, estendendo as mãos para ela.
Mary o observou em silêncio. O que devia fazer? O que desejava fazer? Suspirou fundo, para aplacar seu estado de excitação. Não conseguiu. Seu coração palpitava tão rápido que seu corpo se movia ao compasso daqueles batimentos. Sua pele buscava o contato que ele lhe proporcionava e sua boca ansiava aqueles lábios. Desviou o olhar do homem e o fixou no chão. Era uma alucinação, um sonho que o subconsciente lhe oferecia para entender de uma vez por todas que deveria se render a uma necessidade tão básica quanto o prazer carnal. Talvez o que a música estivesse tentando explicar fosse que ela só poderia ser salva aceitando em sonhos o que não poderia alcançar na vida real. Então... por que ela continuou se reprimindo? Porque construía muros quando tudo o que tinha a fazer era derrubá-los? Levantou seu rosto muito devagar, até que ambos os olhares se cruzaram novamente. Enfeitiçada não era a palavra exata para definir o que sentia por aquele homem. Tampouco era atração, nem desejo. Mas se negava a denominar algo tão imenso com um termo tão simples. Não. Ela não podia apaixonar-se por Lorde Giesler. Jamais o faria! A única coisa que tinha que fazer, era satisfazer essa parte de seu cérebro que a transtornava e que a normalidade retornasse a ela. Uma Moore! Já! Agora, mais do que nunca, seu sangue Arany a convidava a desfrutar do proibido, do imoral, do insano.
?Mary... ?voltou a dizer.
E desta vez não pensou, nem procurou os prós nem os contras da ação que realizaria. Se lançou a seus braços, aceitando com submissão o que aconteceria entre os dois.
?Sou sua! ?Gritou quando lorde Giesler a pegou nos braços.
?Para sempre? ?Perguntou ele aproximando essa boca que adorava a sua.
?Para sempre?Admitiu antes de lhe rodear com seus braços o pescoço e aproximar seus lábios aos do homem.
?Mary! Acorde de uma vez!
A voz de Madeleine e a sacudida que ela a sujeitou lhe fizeram voltar para sua casa, sua cama, seu quarto amado. Depois de abrir os olhos e ver a menininha ao seu lado, parecendo assustada, Mary se sentou e cobriu seu corpo excitado com o lençol.
?O que faz aqui? ?Perguntou com uma mistura de angústia e alívio.
?Tem que admitir que é a única que costuma ficar acordada a estas horas ?disse enquanto se sentava sobre a cama. ?Está bem? Você tem as bochechas vermelhas como as papoulas que Elizabeth cuida no jardim e seu cabelo está... molhado. ?Depois de dizer essas frases, se inclinou para Mary, estendeu a mão direita para a testa e rapidamente a afastou quando sentiu muito calor. ?Está doente! ?Exclamou espantada. ?Quer que chame a mãe? Te trago panos frescos?
?Não! ?Respondeu afastando os lençóis de seu corpo. Pulou da cama, caminhou em direção à janela enquanto aplacava o constrangimento e, uma vez que não conseguia se afastar da pequenina, virou-se para ela. O que poderia dizer a ela? Era certo falar sobre o sonho? Não, era melhor ficar calada. Pelo menos até encontrar uma explicação lógica para o que aconteceu. ?Apenas... Foi apenas um pesadelo ?disse apertando as mãos.
Madeleine ficou em silêncio por alguns segundos, observando a reação da irmã. Era estranho, apesar de Mary já ter se comportado de maneira diferente do resto do mundo. No entanto, algo não se encaixava. Ela nunca mentiu, como estava fazendo nesse momento. Mary era uma das pessoas que falava claramente, embora suas palavras magoassem o ser mais cruel da Terra. Por que agia assim? O que teria visto no sonho para assustá-la tanto? Havia apenas uma coisa que podia assustá-la, algo que ela zombava toda vez que o assunto aparecia: homens.
?Mary... ?começou a dizer enquanto colocava as mãos nos joelhos. ?Nesse pesadelo... viu fogo?
?Não!?Negou rapidamente a segunda das Moore.
?Um corvo??A pequena insistiu.
?Como te ocorre perguntar esse tipo de tolices? ?Respondeu indignada.
?Porque, de acordo com a mãe, quando ela sonhava com nosso pai, ela o viu deixar uma fogueira imensa e foi um corvo que a levou até ele.
?Disparates! ?Exclamou, acariciando seu rosto em desespero. ?Sonhos são produtos irreais. A parte inconsciente do nosso cérebro age quando estamos no estado de sonolência. Sonhos ou alucinações, querida intrometida, são vagas lembranças de acontecimentos que vivemos e nos produziu certa inquietação ou excitação. Da minha parte, tive um pesadelo com lorde Grayson. Como sempre, queria me humilhar em um debate sobre enxertos de pele em cicatrizes infectadas ?declarou categoricamente quando voltou para a cama. ?Então, não vi nenhum corvo ou fogo. Embora, agora que penso nisso... Os cabelos oleosos de Grayson não se parecem com penas molhadas? ?Acrescentou mordaz.
?Bem... lamento. Eu sei que o cavalheiro é um monstro. Papai sempre nos diz a coragem que você mostra quando o enfrenta ?Madeleine declarou sem desviar o olhar da irmã.
?Tolices!?Exclamou fazendo um movimento desdenhoso com a mão esquerda. ?Não é coragem, mas inteligência. Até um mosquito pode superar os debates desse petulante.
?Um mosquito? ?Retrucou Madeleine. ?Não dizem que os corvos são pássaros bastante inteligentes? ?Insistiu no assunto.
?Também comentam que um dia a raça humana aprenderá a respeitar e viver em paz para sempre. Mas não vamos falar sobre futuras falácias. Diga-me, qual foi o motivo da sua insônia? ?Mudou rapidamente a conversa.
?Eu senti Josephine aqui. ?Apontou para o peito. ?Algo aconteceu com ela.
?O que significa algo? ?Perguntou Mary. Não havia estudos científicos sobre isso, mas era verdade que todos falavam sobre a intensa relação que se formava no útero entre gêmeos e gêmeos idênticos. Essa união, essa percepção conjunta, apesar de não ser metodicamente estudada, ofereciam causas e efeitos reais.
?Seu coração ficou louco e fez o meu fazer isso também ?respondeu, subindo na cama para abraçar as pernas. ?Eu acho que ela encontrou o homem que se tornará seu marido. Embora também sinta que o conheceu de uma maneira pouco convencional. Eu percebi sua raiva, mas também um estranho... desejo ?alegou antes de suspirar.
?Mas... não disse que nunca encontraríamos um marido porque fomos submetidas à maldição que Jovenka nos enviou?
?Quebrou ?explicou olhando a camisola. ?Anne conseguiu derrotá-la graças a lorde Bennett. É por isso que, por alguns dias, todas vivemos num constante vaivém de sensações.
?O que quer dizer com isso? ?Perguntou, moendo o travesseiro com mais força do que o necessário.
?Não sentiu nada estranho? Não apreciou certas mudanças em seu corpo?
?Não ?mentiu.
Claro que tinha notado, sentido ou percebido! Mas não tinham nada a ver com maldições, mas com desejos carnais em relação a lorde Giesler. Seu corpo nu era a causa da perturbação mental que ela sofria! Agora entendia por que sua mãe estava com raiva de descobrir o que tinha acontecido. Não queria recriminar o fato de que ela o salvou, mas protegê-la da tentação!
?Pois eu sim ?Madeleine disse antes de jogar a cabeça para trás e suspirar novamente. ?Só espero que nenhuma de nós sofra e que Morgana nos ajude a encontrar o caminho certo.
?No caso hipotético de você estar certa... ?Mary começou a dizer enquanto acariciava o lençol com aparente tranquilidade. ?O que poderia acontecer?
?A visão que lhe contei alguns anos atrás seria cumprida ?Madeleine disse, fixando os olhos no rosto pálido da irmã.
?Entendo... ?Mary sussurrou enquanto tamborilava com as duas mãos o lençol. ?Mas é possível que não se cumpra ?insistiu. ?Lembre-se de que Elizabeth estava determinada a se casar com uma aristocrata e, realmente poderá cumprir seu desejo?
?Todas sabemos a razão pela qual Eli está determinada a alcançar essa classe social ?apontou a menina franzindo a testa. ?Mas, felizmente para ela, se apaixonará por um homem que a tratará como uma rainha.
?Disse a ela? Porque acho que isso pode confortá-la muito... ?disse zombando.
?Você sabe tão bem quanto eu que ela sofreu muito desde que Archie a traiu e essa foi a razão pela qual uma promessa tão absurda foi feita. No entanto, esquecerá o passado quando ele aparecer... ?revelou em tom de mistério.
?E você realmente acha que existe um homem que pode tolerar o comportamento de Josephine? ?Mary respondeu.
?Se existe alguém para você, por que não deveria haver para Josh? ?Respondeu com raiva.
?Certo. Essa tese carece de discussão. Se puder encontrar um homem capaz de suportar meu intelecto, Josh poderá encontrar alguém que possa dormir tranquilo enquanto tira brilho ao cano de sua nova arma. ?E depois dessas palavras, ela soltou uma risada.
?Não acredita em mim, certo??A jovem apontou tristemente. ?Para você, tudo o que posso ver são... visões infantis.
?O melhor que tem a doce fase infantil e inclusive a juvenil é que se pode fazer e dizer tudo o que lhe agrade, pois os mais velhos alegarão que são coisas da idade. No meu caso, por muito que pese aos nossos amados pais, considero que continuo na segunda. Por esse motivo faço e digo o que quero sem parar para pensar nas consequências desse comportamento ?garantiu.
?Mas logo terminará a etapa em que admite viver ?Madeleine disse esboçando um grande sorriso.
?Oh, que horror! Está insinuando que, quando me levantar, serei uma mulher adulta? ?E riu de novo. Quando terminou de rir, inclinou-se para a irmã, estendeu as mãos e colocou-as sobre as de Madeleine. ?Se veio para me divertir, conseguiu ?acrescentou dando tapinhas.
?Como pode ser tão cínica? ?A pequena a repreendeu enquanto se levantava da cama.
?O cinismo é apropriado para viver no mundo real. É lógico que, por sua idade, ainda não o tenha e que sonhe com uma vida cheia de fantasia e amor ?zombou. ?Garanto que adoro o teu positivismo, mas seja realista Madeleine, quem pode casar com uma mulher que antes de tomar banho tem que ter todas as suas armas limpas? Quem aceitará Anne, depois da morte de seus pretendentes? E Elizabeth? Você realmente acha que existe um homem que se renderá a seus pés quando descobrir que possui um coração negro sob sua beleza?
?E eu? Porque... quem vai aceitar uma moça que não pode tocar em ninguém, certo? ?Pulou da cama.
?O seu é um problema psíquico e tem uma solução. Basta usar luvas para...
?Você é uma mulher perversa! ?Madeleine retrucou. ?Tanto quanto foi Jovenka!
?Não fique nervosa... ?tentou acalmá-la. ?Certamente você age apenas para o nosso bem. Mas eu não gostaria que você se decepcionasse quando...
?Três dias! ?Gritou enquanto se dirigia para a porta. ?Em três dias tudo estará resolvido! E, nesse momento, serei eu quem ri, Mary.
?Três dias? Terei que esperar setenta e duas horas para confirmar que estou certa? ?Disse mordaz.
?Você se casará com o homem que viu esta noite em seus sonhos. ?Essa declaração deixou Mary tensa, mas ela tentou não mostrar a surpresa que as palavras haviam produzido. ?Ele lhe dará o que você nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!
?Por todos os livros que li! ?Continuou aparentemente divertida, embora ainda estivesse pasma com a alegação de Madeleine. ?Você acabou de me jogar uma maldição? Já não tivemos o suficiente com Anne?
?Continue assim, Mary. Continue pensando que nada vai mudar, que você é tão poderosa que pode controlar o mundo. Mas você esta errada ?disse enquanto abria a porta. ?Em três dias nossas irmãs voltarão e darão a nossos pais uma grande notícia. Quando isso acontecer... Sua vida cínica desaparecerá para sempre! ?Acrescentou antes de sair do quarto batendo a porta.
Mary não desviou o olhar da porta até que ouviu Madeleine fechar a sua. Era a primeira vez que discutiam. Jamais lhe fez mal, pois assumia que bastante dor lhe causava suportar dia após dia um comportamento tão abstraído e tímido. No entanto, desde que conheceu lorde Giesler, perdeu a cabeça. Não apenas sentia coisas indevidas, imorais e inapropriadas para ela, mas também o cinismo, enfatizado pela irmãzinha, aumentara. Talvez se tratasse de um mecanismo de defesa. Muitas pessoas agiam de maneira estranha para não mostrar ao mundo sua debilidade. Mas ela... Desde quando se tornou uma mulher fraca?
Irritada e decepcionada consigo mesma, afastou o lençol para o lado e caminhou lentamente em direção à janela. Não precisou fechar as cortinas para subir no peitoril da janela. Sua mãe ordenou que Shira as amarrasse nos dois lados para que a luz do dia chegasse ao quarto e a acordasse antes das nove da manhã. Subiu a camisola até as coxas e se sentou sobre o frio parapeito. Abraçou os joelhos e apoiou o queixo neles. Por que agiu assim com Madeleine? O que provocou sua fúria? A resposta surgiu sem a necessidade de esforço: Porque se tivesse razão, se a jovem vidente estivesse certa, o desejo, pelo qual lutou durante tantos anos, desapareceria e, tudo por quê? Por um homem. Esse gênero humano que odiava com todas suas forças porque a humilharam, a ultrajaram e, em mais de uma ocasião, cuspiram perto de seus sapatos para lhe deixar claro que não tinha valor algum, embora os seus conhecimentos fossem superiores aos deles.
Fechou os olhos e suspirou fundo, como se fosse uma anciã a ponto de expirar. Madeleine pensava que ela seria feliz com lorde Giesler? Duvidava. Era certo que a atração sexual entre ambos era ilógica, mas ninguém podia viver décadas junto a uma pessoa baseando-se na paixão. Ela, nos poucos momentos em que pensou em casamento, sonhava em conseguir o que seus pais possuíam: um casamento cheio de amor, respeito, consideração, apoio e acima de tudo confiança. Obviamente, não podia confiar em lorde Giesler, sua reputação como libertino era bastante considerável. Hoje poderia morrer beijando-a, tocando-a ou possuindo-a, mas... e amanhã? Bufou diante da reflexão tão anormal que tinha chegado, voltou para a cama, subiu nos lençóis e se cobriu com eles. Uma vez que notou o leve calor do sono, fechou os olhos e... abriu-os! Como se um dragão tivesse aparecido aos pés da cama, afastou os lençóis, se sentou e olhou para a porta.
?Como diabos soube? Como descobriu que sonhei com o corvo, com o fogo e com o lorde Giesler? ?Esbravejou antes de permanecer nessa posição o resto da noite.
Capítulo XIII
Nunca tinha vivido uma situação tão exasperante com Madeleine. Talvez porque, sendo a caçula das irmãs, o tratamento com ela sempre fora diferente. Nunca houve uma palavra ou um ato malicioso de sua parte, pelo contrário, raro era o dia em que não era obrigada a mimar ou protegê-la devido ao seu comportamento frágil. No entanto, durante os próximos dois dias, a doce e tenra Madeleine se tornou a vilã mais cruel do planeta. Toda vez que tinha a chance de conversar com ela, virava o rosto e levantava o queixo com orgulho. Todos os esforços que fez para suavizar a convivência entre as duas não obtiveram os resultados desejados. Madeleine nunca agiu assim. Era a primeira vez que tirava, de algum lugar de sua timidez, coragem e ousadia tão característica na família.
Se levantou da poltrona e esticou os braços, observando como suas trinta e três vértebras tomaram o lugar certo na coluna vertebral. Depois do chá, e depois de sofrer outra rejeição de Madeleine, decidiu se trancar na biblioteca e deixar o tempo passar antes de causar outra abordagem entre elas. Esperava que, durante aquelas três horas e antes da chegada do pôr do sol, Madeleine tivesse consciência de que havia cometido um erro. É claro que, uma vez que sua antiga relação retornasse, não haveria menção à bendita previsão. Tinha certeza de que o fracasso a humilharia a ponto de agravar seu caráter retraído.
Sob nenhuma circunstância duvidou sobre o que aconteceria quando o prazo indicado por sua irmã expirasse. A parte Moore, tão racional e sensata como sempre, afastou de sua mente qualquer assunto sobre previsões, bruxaria, magia ou feitiços e os manteve em alguma área do cérebro que usava como informação desnecessária. Tudo ao seu redor tinha uma explicação lógica, até a suposta maldição de Anne: isso nada mais era do que a conclusão de um compêndio de circunstâncias infelizes criados pelos dois noivos. Apesar disso, era uma lástima que Anne tivesse que sofrer as consequências de ações que não lhe correspondiam. Mas era assim que a sociedade hipócrita agia. Como não podiam culpar os mortos, porque consideravam falta de moralidade, dirigiam seus olhares e sussurros para os vivos, independentemente da inocência e do impacto sobre eles.
Depois de depositar o livro sobre a mesa à direita, se levantou do sofá e caminhou pela sala. Sentia um formigamento irritante nas pernas por mantê-las na mesma posição por tanto tempo. Muito lentamente, levantou a saia do descarado vestido azul, um que sua mãe comprou como castigo por sua contínua rebeldia, e mexeu os pés e o tornozelo. Felizmente, seu conhecimento profundo do corpo humano a alertou que não estavam machucados, mas contraídos pela falta de atividade. Deixou cair o tecido, cobrindo de novo os sapatos de couro que tinha decidido colocar nesse dia. Faltava apenas uma vassoura, um gorro cônico e um caldeirão para exibir a imagem de uma bruxa da qual todo mundo falava quando encontravam com ela na rua. Essa comparação, e a mistura real de sangue que possuíam as Moore, lhe fez sorrir. No fundo, não estavam mal encaminhadas. Se a premonição de Madeleine tivesse sido cumprida, até ela teria presumido que tinha origens mágicas. Talvez até admitisse que sua capacidade médica se devia, de certa forma, à origem cigana. Mas, felizmente, não era assim. Ela sempre soube que adquirir conhecimento seria a melhor ferramenta para realizar seu sonho: tornar-se uma pessoa tão extraordinária quanto seu pai. Portanto, durante suas leituras, nunca invocou nenhum espírito para ajudá-la a entender melhor os ensaios médicos. Era o suficiente ler e raciocinar. Essa era sua única habilidade e segredo. No entanto, apesar de ninguém mudar de ideia sobre a racionalidade necessária para a compreensão de todos os fatos, ela continuava dando voltas a um assunto. Como Madeleine descobriu os três elementos fundamentais de seu sonho? Embora considerasse a possibilidade de falar enquanto sua irmã tentava despertá-la, não terminava por aceitar essa afirmação como válida. Até o dia em que Anne partiu, esta nunca lhe fez referência a esse hábito inconsciente, e isso que dormia com ela desde que tinha uso da razão. Além disso, não tinha dúvida de que, se tivesse feito isso, teria a censurado assim que abrisse os olhos. Anne era a única das irmãs que não se sentia desvalorizada por sua inteligência e a confrontava sem piedade. Por esse motivo, toda vez que estava errada, havia a mais velha das Moore para lembrá-la de que, apesar de seu grande intelecto, tinha mais defeitos do que virtudes.
?Senhorita Mary! ?Shira exclamou abrindo a porta da biblioteca sem bater. ?Saia! Rápido!
?O que aconteceu? ?Perguntou, virando-se para ela tão rapidamente que suas pernas dobraram por falta de forças.
?Suas irmãs! Suas irmãs voltaram! ?Gritou feliz.
?Como disse? ?Mary retrucou arregalando os olhos.
?O que ouve! Exatamente agora, acaba de chegar uma carruagem com o brasão do visconde de Devon ?continuou eufórica. Vendo que a menina não era capaz de reagir, pois permanecia congelada no lugar e seu rosto empalideceu até adquirir a cor do leite, deu um passo em sua direção. ?Está bem? Já lhe disse mil vezes que não deve gastar tantas horas lendo esses livros. Ficará cega e sua pele desbotará. ?Shira estendeu a mão para Mary, mas ela deu um passo atrás, evitando qualquer contato. ?Sua mãe e Madeleine saíram para recebê-las ?lhe informou antes de se virar e seguir para a porta. ?Irá acompanhá-las ou explicou que decidiu continuar trancada na biblioteca?
?Sairei em breve ?comentou quase sem voz.
?Não faça elas esperarem senhorita Mary, ou temo que sua mãe a castigue novamente sem sair de casa por mais dois anos. ?Avisou antes de caminhar rapidamente para o corredor.
Haviam chegado! Estavam lá! Como era possível que Madeleine soubesse? Angustiada e atordoada, fechou os olhos e contou os dias que passaram desde que suas irmãs se foram. Não, ainda não tinha terminado o prazo que o visconde considerou oportuno para realizar o trabalho. Ainda restavam doze dias para o esperado retorno. Mantendo os olhos fechados, levou as mãos para o rosto e esfregou-o desesperada enquanto perambulava pelo centro da sala. Tinha que encontrar, o mais rápido possível, uma explicação lógica que a salvasse do atordoamento mental que sofria. Mas não encontrava com a rapidez que requeria. A opção de que Madeleine sabia desse fato antes dela não era válida. Nem a menininha saiu para a rua, nem ela saiu de casa, exceto quando Valéria a enganou para levá-la para a residência do irmão. Seria informada sobre o retorno durante a sua ausência? Não. Isso também não era plausível. Sua mãe não conseguia guardar um segredo que pertencia à família. Nada a faria calar, nem expressar a euforia que teria sentido depois de receber a notícia. No entanto, apesar de qualquer concepção surrealista, tinha acontecido. Suas irmãs estavam na entrada exatamente no dia que Madeleine mencionou. Realmente possuiria um dom Zíngaro? E se fosse assim... que lugar a lógica teria no mundo? Se o futuro pudesse ser previsto, deixariam de existir surpresas, os avanços médicos ou as preocupações para descobrir coisas novas. Bastaria procurar pessoas com a habilidade de Madeleine para que respondessem às perguntas que surgissem ao longo dos anos. O mundo se renderia a pensamentos transcendentais, deixaria de lado o real e basearia suas vidas na busca do imaginário, assim como fizeram os grandes pensadores. Refletindo sobre essa opção, tirou as mãos do rosto e arregalou os olhos. As teorias filosóficas seriam verdadeiras? Esses grandes gênios evocariam a verdade? Teriam o mesmo dom que sua irmã e, por esse motivo, viveram e pensaram de maneira tão diferente? Talvez Platão, Sócrates, Aristóteles e até o próprio Emanuel Kant proclamaram suas ideias depois de visualizá-las ou apresentá-las. Desesperada, apertou tanto os punhos que as unhas se cravaram nas palmas das mãos. Não devia refletir sobre o passado, mas sim no futuro. Segundo Madeleine, ela se casaria com lorde Giesler, seria feliz e ele a ajudaria a conseguir tudo o que sempre quis. Isso faria qualquer mulher feliz que, entre seus planos, abrigasse a possibilidade de conseguir um bom casamento. Mas ela nunca considerou uma ideia tão absurda. Apesar da afirmação de sua irmã, sabia que, uma vez que aceitasse o sobrenome Giesler, este a converteria em uma pessoa sem decisão, sem autoridade. Em poucas palavras: a anularia em todos os sentidos. Furiosa, correu para a janela, de onde podia contemplar o lado de fora de sua casa sem ser descoberta. Seu coração parou de bater quando viu que sua mãe abraçava Anne e ambas davam pequenos saltinhos de alegria. Junto a elas, Madeleine fazia o mesmo com Josh, que continuava vestindo roupas mais próprias de homens que de mulheres. Então viu como Elizabeth saía da carruagem. Embora escondesse o rosto com a aba larga do bonito chapéu branco, Mary notou que seus olhos estavam fixos no chão, como se tivesse vergonha de voltar para sua humilde casa. A mãe, ao vê-la, se afastou de Anne e a abraçou. Elizabeth não evitou o abraço, mas manteve os braços estendidos, como se não tivesse forças para abraçá-la. Um comportamento atípico nela porque, embora sempre se considerasse superior as outras por causa de sua beleza exuberante, nunca rejeitou uma carícia ou um abraço materno. Fechou os olhos, deixando para trás a estranha atitude de Elizabeth e se concentrando na questão que a preocupava. Como deveria agir? Como lutaria contra algo que ainda não havia chegado e que não se deseja? Quando obteve a resposta, arregalou os olhos e exibiu o sorriso mais maligno que sua boca pode esboçar em um momento tão exasperado. Ela tinha a solução para o problema. Felizmente para ela, sua mente ainda estava lúcida, apesar do colapso que suportava. O objetivo era muito simples: lutar com unhas e dentes para que a profecia de Madeleine não se cumprisse. Essa era uma das vantagens de conhecer o futuro, que se podia encontrar a maneira mais eficaz de evitá-lo. Satisfeita, feliz e cheia de energia, se virou para a porta e caminhou pela sala, juntando a ponta do pé esquerdo com o calcanhar do lado direito e vice-versa. Se suas irmãs entrassem em casa sem que ela as cumprimentasse corretamente, sua mãe ficaria com tanta raiva que aumentaria o castigo por mais alguns meses. E assim começava o plano para destruir seu futuro. Quanto mais castigos recebesse, menos chances teria de sair de casa e, é claro, as chances de encontrar aquele gigante com olhos claros e cabelos loiros seriam tão reduzidas que os chamaria de nada.
?Mary! ?Anne gritou quando ela entrou na biblioteca. ?Por que não veio nos receber? Estava de novo absorta em outra teoria sobre a radicalização de doenças infecciosas? ?Antes de receber uma resposta, avançou até ela, a abraçou e a fez girar. ?Senti sua falta, rata de biblioteca! ?acrescentou depois de lhe dar dois beijos estalados.
?Certeza? ?Estalou cética.
Enquanto as gêmeas falavam com Elizabeth na galeria, que lhes informou que se retirava ao seu quarto para descansar, Mary observou o rosto de Anne. Tinha um brilho especial nos olhos e, pela primeira vez desde a morte de Dick, irradiava felicidade. Então voltou sua atenção para Madeleine que, depois de esperar que Eli subisse para seu quarto, caminhou com Josh para onde elas estavam. Quando se entreolharam, a bruxinha deu a ela um sorriso tão pérfido que a deixou congelada. Esse gesto expressou tanta diversão e triunfo, que a perplexidade entre as profecias absurdas e o desaparecimento da razão voltou à sua mente.
?Por que não saiu para recebê-las? ?Esbravejou sua mãe, colocando as mãos na cintura. ?Quer ficar trancada pelo resto da vida? Porque eu garanto que é o castigo que você merece.
?Sinto muito, mãe. Fiquei tão surpresa com a chegada de minhas irmãs que fui incapaz de reagir. ?Nesse momento, Madeleine soltou uma sonora gargalhada. ?Mas se acha que devo ser castigada, desta vez não discutirei ?Mary persistiu antes de ser agarrada pelos braços fortes de Josh.
?Oh, mãe! ?Anne interveio, pegando as mãos de Sophia. ?Eu imploro, não a castigue hoje. Tenho que lhe dar ótimas notícias e não gostaria que Mary ficasse triste em um dia tão importante para mim.
«Para o inferno, Anne! ?pensou Mary. ?Não é um bom momento para assumir a postura de irmã solidária e protetora».
?Do que se trata? ?A mãe perguntou curiosa, fazendo desaparecer a raiva que causou a desobediência da segunda de suas filhas. ?Talvez seja por isso que voltaram tão cedo? ?Insistiu, sem afastar os olhos de Anne que tinha se separado dela o suficiente para começar a dar voltas.
?Vai se casar com o Visconde! ?Declarou Josh ao retornar ao lado de sua irmã gêmea. Se apoiou na moldura da porta, adotou uma postura típica masculina e olhou para sua mãe. ?Ele pediu e ela não pôde recusar ?acrescentou.
?De verdade? ?Perguntou a mãe surpresa, colocando as mãos nos ombros de Anne para fazê-la parar. ?Está certa da decisão que tomou?
?Sim ?respondeu, abaixando um pouco o rosto para esconder o rubor. ?Nunca estive tão segura de algo. Logan é o homem que esperei por toda a minha vida e o único que nos salvará da maldição. ?E aí terminou sua explicação. Era responsabilidade de Logan revelar ou não sua origem. Embora sua mãe deveria entender que, se ela o aceitou depois do que aconteceu no passado, o motivo era mais que evidente.
?Acho que já nos livrou dela ?Madeleine admitiu dando um passo à frente.
?Por que diz isso? ?Josh fez a pergunta que, quando a ouviu falar, se afastou do batente da porta, descruzou os braços e as pernas e seguiu a irmã gêmea.
?Pressenti faz alguns dias ?continuou dizendo a mais nova. ?Percebi que a escuridão ao nosso redor desapareceu. Agora só há luz sobre nós.
?Percebeu mais alguma coisa? ?Josh queria saber, e Madeleine se aproximou de por trás e falou entre sussurros.
?Você quer dizer a mudança emocional que sofreu ultimamente? Ou quer me perguntar sobre os sentimentos que teve em relação a um jovem mais severo do que um batalhão de soldados? ?Murmurou, antes de sorrir de orelha a orelha.
?Maldita seja! ?resmungou, revirando os olhos. ?Um dia poderei ter um segredo só para mim?
?Nunca ?Madeleine respondeu antes de se virar para ela e abraçá-la novamente.
?Há algo mais que eu deveria saber? ?Sophia disse, estreitando os olhos ao ver as duas menores sussurrando secretamente.
?Não! ?Josephine negou rapidamente se separando de Madeleine.
?Bem, Josh preciso lhe contar algo sobre o novo membro da família ?Anne interveio zombando.
?Novo membro??soltou a mãe arregalando os olhos. ?A que se refere?
?Se chama Galeón ?Josh respondeu feliz. ?É um dos cavalos que o visconde tem na residência e, devido à conexão que tivemos, me presenteou.
?Um cavalo? ?Mary estalou surpresa. ?E onde diabos pensou em mantê-lo, no seu quarto?
Sophia recuperou a cor do rosto, que empalideceu ao interpretar a afirmação de forma inadequada e respirou calmamente. Nunca considerou a possibilidade de que Josh se comportasse inadequadamente, mas depois de ouvir que a maldição se foi, tudo poderia acontecer...
?De verdade? ?Interveio Madeleine. ?E, como é?
?Ele é muito bom e inteligente ?declarou olhando para Mary. ?Cavalguei sobre ele durante toda a viagem. Não o viu? Amarrei-o em um dos ramos da árvore da entrada. Se quiser, podemos sair para que o conheça.
?Claro! ?A menina exclamou. ?Mal posso esperar para conhecer o novo membro Moore. Além disso, tenho o pressentimento de que esse cavalo te ajudará a conseguir aquilo que tanto sonhou ?lhe assegurou enquanto ambas caminhavam para a saída.
?É outra de suas visões? ?Josh estalou estreitando os olhos.
?Não. Desta vez é apenas um palpite... ?ela alegou misteriosamente enquanto a pegava pelo braço e a levava para fora.
Mas antes das duas saírem, Madeleine virou seu rosto para Mary. Quando ambas se encontraram com o olhar, a jovem separou os lábios para lhe lançar uma mensagem que só ela pôde captar: «Começa sua mudança». Essas três palavras lhe causaram um calafrio tão mortal que tentou apaziguá-lo, concentrando-se na irmã ausente.
?A propósito, onde está Elizabeth??Perguntou virando-se para Anne.
?Sofre uma tremenda dor de cabeça ?respondeu enquanto se sentava. ?Sofre desde sábado à noite. Embora me ofereci para aliviar sua dor, não quis aceitar qualquer ajuda da minha parte. Sinceramente, não é a mesma desde aquele dia ?comentou reflexiva. ?Durante a primeira viagem a Londres, decidiu viajar na segunda carruagem, acompanhada por Howlett, valete de Logan. Pensei que a dor desapareceria, porque o jovem me disse que tinha a solução para isso, mas não foi assim. Na última pousada que paramos para descansar, ficou todo o tempo dentro do veículo e não saiu dali até que teve que entrar no que viemos. Insisti em oferecer-lhe um analgésico, mas não aceitou. Se inclinou na direção da janela, fechou os olhos e não os abriu até que lhe anunciei que havíamos chegado ?explicou Anne com tristeza. Nutria a esperança de que Elizabeth não agisse dessa forma depois da notícia de seu compromisso com Logan. No entanto, nada podia ser dado como certo com ela.
?A viagem lhe provocou isso... ?concordou Sophia após assumir que, pela primeira vez, a inveja podia estar causando a Elizabeth um terrível desapego familiar.
?Se quiser, posso aparecer no seu quarto e descobrir ?declarou Mary colocando-se na frente delas.
?Temo que essa dor não desapareça com nenhum remédio seu ?Anne respondeu enquanto enroscava os dedos na saia do vestido.
?Por que diz isso??A mãe retrucou inquieta.
?Porque acho que não lhe agradou a notícia do meu compromisso. Você sabe que, desde o que aconteceu com Archie, ela insiste em se casar com um aristocrata e talvez o fato de eu ter conseguido sem pretender e sem sonhar...
?Bobagens! ?Mary a interrompeu. ?Elizabeth é uma presunçosa, uma petulante e um pouco estúpida, como os dessa bendita classe social, mas por suas veias e as nossas corre o mesmo sangue. Estou certa de que a dor de cabeça tem uma causa lógica. Não tenho a menor dúvida de que agirá como sempre uma vez que desapareça ?alegou como se fosse uma advogada defendendo seu cliente.
?Mas se você sair agora, não ouvirá o que aconteceu comigo durante esses dias. Não quer saber como Logan me pediu em casamento? ?Anne estalou estreitando os olhos.
?Certamente posso adivinhar a história sem precisar da ajuda de Madeleine... ?Mary disse colocando um dedo no queixo, enquanto batia no chão com a ponta de seu pé direito e fixava os olhos no teto. ?Como não teve que cuidar de sua virtude, porque Dick lhe tirou isso, o seduziu até que caísse aos seus pés. Após vários encontros clandestinos, decidiu que, devido à sua constituição e força, não encontraria outro homem que a satisfizesse na cama tanto quanto ele. Então você usou sua origem cigana para lançar um feitiço. Este agiu imediatamente, fazendo com que o pobre visconde se apaixonasse por você e te pedisse casamento, estou certa? ?Explicou mordaz.
?Mary Moore Arany!?Clamou sua mãe se levantando de um salto. ?Como se atreve a falar com sua irmã de maneira tão descarada e inapropriada? Por que não seleciona tudo o que aparece em sua mente e escolhe a coisa certa a cada momento?
?Vai me castigar? ?Teimou fingindo medo. ?Tenho certeza que mereço por cometer tanta insolência ?insistiu.
?Foi isso mesmo que aconteceu ?Anne interrompeu a conversa entre sua mãe zangada e Mary, esboçando um grande sorriso. Se os anos de experiência com ela não a enganavam, ela tentou executar um plano que implicava a palavra castigo. O que havia acontecido durante sua ausência? Por que agia dessa forma tão pouco racional? O melhor era descobrir antes que Logan aparecesse para pedir formalmente sua mão e se encontrasse no meio de uma grave disputa familiar. ?Embora você esteja errada sobre uma coisa, eu não o seduzi, ele foi quem me cativou e ambos chegamos à conclusão que, devido à nossa afinidade sexual, era conveniente compartilhar o resto de nossas vidas sob o mesmo quarto antes de manter encontros secretos e esporádicos.
Essa resposta deixou Sophia sem palavras, mas elas causaram mais estranheza em Mary. Como poderia falar assim na frente de sua mãe? Sua irmã havia perdido o pouco juízo que tinha? Se, como Madeleine disse, a maldição desapareceu, arrastou a baixa moralidade e bom senso de Anne com ela. Jovenka não teve mais de cem amantes? Bem, depois de ouvi-la, não lhe cabia a menor dúvida que, se o visconde corria a mesma sorte que os dois anteriores pretendentes, Anne superaria a velha cigana.
?Visite Elizabeth e descubra o que acontece com ela ?comentou Sophia uma vez que acalmou o imenso sufoco. ?Em seguida, tranque-se no seu quarto até eu chamá-la para jantar. Preciso conversar com seu pai sobre a atitude que você está adotando desde que operou lorde Giesler. Creio que...
?Operar? ?Anne disse surpresa. ?Lorde Giesler? E continua vivo?
?Sim ?Mary afirmou com orgulho. ?Lorde Giesler está são e salvo graças a minha sábia decisão e talento ?continuou com soberba.
?Tem que me contar tudo! ?Perguntou Anne se levantando da poltrona.
?Fará, mas quando terminar de me contar o que aconteceu durante sua ausência ?Sophia respondeu com autoridade.
?Então, se me desculparem, seria conveniente que visite Elizabeth ?disse Mary dando grandes passos para a porta antes que Anne interviesse de novo e sua mãe mudasse de opinião.
?Não vá muito longe ?Anne avisou quando sua irmã se aproximou da porta. ?Temos uma conversa pendente.
?Certamente não será tão divertida como a tua... ?apontou antes de sair e fechar.
Capítulo XIV
Depois que ouviu Anne começar sua história, ela encostou as costas na porta e suspirou profundamente. Nada, que sua primeira tentativa para que a castigassem saiu como esperava. Como conseguiu isso? Se tivesse falado com Anne dessa maneira descarada, antes que todas pensassem que a bendita maldição terminou, teria tido tal retaliação que nada nem ninguém a teria consolado em anos. No entanto, lá estava ela, ilesa, apesar do seu esforço para se magoar. Olhou para o andar de cima e franziu a testa ao lembrar que Elizabeth não se apresentou na biblioteca para cumprimentá-la. Ainda estava se comportando de maneira estranha. Até o momento, a irmã arrogante sempre agia como uma verdadeira aristocrata, incluindo, aquele comportamento arrogante, a hipocrisia que a classe social mostrava ao cumprimentar mesmo quando não queriam. Mas, por algum motivo, não reagiu como de costume. Não importava se sua cabeça doía, que estava enjoada ou que tinha quebrado um ombro, Elizabeth nunca evitava um encontro em família e menos depois de uma viagem como a que ela acabou de fazer. Quantas vezes saiu para fazer compras e, depois de voltar, aparecia diante dela para lhe contar tudo o que fez sem esquecer um mísero detalhe? Tantas que não se lembrava. No entanto, parecia que a viagem a transformou até o ponto de esquecer um princípio tão básico como era a cordialidade. De repente, a resposta que estava procurando para obter o castigo desejado apareceu. Talvez, se ela a censurasse por esse comportamento inadequado, sua mãe abandonaria a atitude passiva que adotava e retornaria a mulher que, com apenas um olhar, fazia suas filhas tremerem. Só esperava que Eli não agisse com a mesma benevolência que Anne. Realmente não precisava da compaixão de nenhuma de suas irmãs dessa vez.
Sem poder apagar o sorriso que sua boca desenhou ao ter outra alternativa entre as mãos, subiu as escadas de dois em dois. Mal respirou quando correu pelo corredor, nem quando se colocou na frente da porta. Tinha um novo objetivo e devia realizá-lo o quanto antes. Desesperada, agarrou a maçaneta, virou e entrou sem pedir permissão. Mas toda a emoção e felicidade que viveu durante a corrida, desapareceu de repente ao ver que Elizabeth não se encontrava onde ela esperava. O edredom permanecia encolhido aos pés da cama, o lençol jogado para o lado direito e o vestido que sua irmã usava quando chegou, estava no chão, jogado descuidadamente. Esse detalhe deixou Mary bastante confusa. Nunca, desde que se lembrava, Elizabeth havia tratado um vestido assim. Cuidava deles e os mimava como se fossem seus filhos. Às vezes, ela até supervisionava Shira quando os passava e engomava. O que teria acontecido com ela para agir dessa maneira? Seu coração começou a bater rapidamente, alertando-a de que a resposta que teria não seria do seu agrado. Tentou afastar aquele palpite, mais típico de Arany do que do sangue Moore, e se concentrou em tudo aquilo que observava. Não se deixaria levar por especulações absurdas, sua experiência no campo da medicina lhe sugeria que devia analisar tudo aquilo que encontrava para chegar a uma conclusão real.
Caminhou lentamente até a almofada, levantou-a e abriu a boca quando viu que a camisola não estava no lugar. Desde quando Elizabeth saía do quarto sem usar um de seus lindos vestidos ou sem arrumar mil vezes o penteado? Mais preocupada se possível, ela se dirigiu para a penteadeira. Sua irmã tinha uma grande variedade de utensílios para usar e embelezar um penteado, além de quatro chapéus de cores diferentes, expostos com muito cuidado no cabideiro que seu pai colocou em cima do espelho e quatro pincéis de diferentes materiais e formas. No entanto, Mary não prestou atenção aos objetos que prolongavam a harmonia da sala, mas ao que estava quebrado: o chapeuzinho que Elizabeth usava quando voltou. Ele se abaixou devagar e o pegou do chão. O que aconteceu? A ideia que Anne comentou ganhou força e intensidade. Apesar de não querer admiti-lo, todas as provas apontavam para essa opção. Irritada, porque não podia tolerar o ciúme tomando conta de Eli e sua terrível resposta emocional arruinando a pacífica vida familiar, ela deixou o chapéu branco na penteadeira e saiu rapidamente do quarto. Agora sua mãe não teria escolha senão castiga-la, porque os gritos de censura que ela daria a terceira das Moore seriam ouvidos até na própria Alemanha.
Pisando o chão como se quisesse quebrá-lo, percorreu o corredor de forma apressada. Levantou a saia do atrevido vestido e desceu as escadas com tal rapidez, que parecia ter brotado asas nos tornozelos. A situação seria resolvida no momento em que a encontrasse, e se tivesse que procurar em todos os cantos de sua casa, ela faria.
Mas não a encontrou... Elizabeth não estava dentro de casa.
Depois de percorrer cada esconderijo, por pouco mais de meia hora, não encontrou sinal da moça. Só havia um lugar para procurá-la: a estufa. Mary passou pela porta da biblioteca e ouviu como Anne continuava contando sua linda história de amor com o visconde, enquanto sua mãe se mantinha em silêncio. Nenhuma das duas suspeitava que a terceira das irmãs houvesse desaparecido. Tinham certeza que estava em seu quarto, descansando e sofrendo uma terrível dor de cabeça. Por alguns segundos, pensou em alertá-las sobre o problema, mas depois descartou essa opção. Se queria ser castigada, teria que reprovar o comportamento infantil da irmã. Depois de bufar, porque não gostava de ocupar o papel de mãe e muito menos quando procurava uma reprimenda, foi até a porta de saída. Uma vez que a abriu, foi incapaz de afastar o olhar da imagem que se produzia do lado de fora.
Madeleine estava no meio do jardim, aplaudindo a atitude de Josh. A gêmea cavalgava ao redor dela, dirigindo o animal com temperança e segurança, como um autêntico soldado. Mantinha as costas retas, enquanto seu corpo subia e descia ao ritmo do trote. Mary fixou os olhos no rosto da jovem e contemplou um orgulho e uma satisfação que invejou por alguns segundos. Então assistiu o movimento compassado de sua trança. O cabelo branco que Josh tanto detestava a fazia tão bonita, que qualquer homem ficaria prostrado a seus pés. Não entendia como ela ainda se chamava a irmã mais feia quando na verdade era uma jovem muito bonita. Por que eram obrigadas a pensar que só alcançariam uma beleza real e feminina se possuíssem os traços que ditavam os cânones sociais? Josh, apesar de sua contínua negação, era preciosa não só por sua diferença física, mas também por seu caráter. E inclusive esse comportamento selvagem que apresentava diariamente engrandecia esse esplendor feminino.
Admiração. Esse sentimento brotou em Mary ao contemplar a majestosa habilidade de Josh que, como acontecia a ela no campo da medicina, era difícil de superar. Não importava que todo mundo alegasse que seu dom era mais próprio de um homem que o de uma mulher, ela o possuía e exibia com muita dignidade. Mary suspirou fundo, refletindo sobre o futuro da jovem. Qual seria o seu destino? Se ela admitisse que a maldição existia, o que ainda não fez, confiaria que encontraria um marido capaz de aceitar seu comportamento estranho, mas ela sabia que isso não seria possível. Nenhum homem, dos que tinha conhecido até o momento, suportaria que sua esposa fosse mais preparada em temas masculinos que ele.
Deu um passo em frente, sem poder desviar o olhar dessa união entre humano e animal. Nunca se referiu a uma atividade tão branda para ela como expectadora, mas foi assim no fim. Majestade, beleza, divindade ou qualquer palavra que procurasse para defini-la não alcançaria a realidade. Josephine era, sem dúvida, uma amazona, uma guerreira, uma deusa a cavalo e onde ambos expressavam, num ato tão simples quanto correr, uma cumplicidade tão extraordinária que qualquer cavaleiro enlouqueceria para alcançar. No entanto, a magia da situação celestial desapareceu quando Mary percebeu como os quatro cascos do animal se cravavam repetidamente na grama, aquela que seus pais tão bem cuidavam.
?Mas como te ocorreu cavalgar por nosso jardim! ?Gritou para Josephine caminhando em sua direção. ?Não se lembra do esforço que nossos pais fizeram para mantê-lo desta forma? Demoraram anos para mantê-lo assim!
Josh, ao ouvi-la, moveu as rédeas de Galeão para que este se dirigisse para a irmã berrante. Uma vez que se colocou diante dela, e a observou tão pequenina e assustada, um sorriso maléfico se desenhou em seu rosto.
?Afasta agora mesmo esse perisodáctilo do meu lado! ?Lhe pediu enquanto andava para trás. Só parou quando suas costas tocaram o grosso muro de pedra que dividia o jardim da casa.
?Peri... o quê? ?Josh perguntou, descansando os antebraços na crina do cavalo. ?Se chama Galeón.
?Perisodáctilo ?Mary repetiu sem diminuir a raiva ou o medo que sentia na presença do grande animal, que a olhava com seus enormes olhos castanhos. ?Assim se denomina os mamíferos placentários. Aqueles que possuem em suas extremidades um número ímpar de dedos. Como pode ver, seu novo amigo tem um em cada perna e este se denomina casco.
?Gosta de ser chamado desse modo estranho, Galeón? ?Josh lhe perguntou, inclinando-se para a orelha esquerda do animal. Este, como resposta, relinchou e moveu a cabeça. Atitude que deixou Mary mais surpresa se isso fosse possível. ?Não volte a chamá-lo por esse nome porque não gosta.
?Pois não me importa se gosta ou não! ?Respondeu, movendo-se muito lentamente para a esquerda para sair daquela encruzilhada mortal.
?Para onde vai? ?Josh retrucou, depois de açoitar Galleon para andar atrás de sua irmã.
?Não me siga! Por acaso não sabe que esse quadrúpede pode me matar? ?Esbravejou sem olhar para ela e sem parar de andar.
?Galeón é inofensivo...
?Sim, é claro, como as benditas armas que você dorme até levantar ?respondeu se virando para as duas em um ato de coragem. ?Devo deduzir que esqueceu seu velho hábito de jogar com espadas, adagas ou pistolas para substituí-lo por... isso? ?Argumentou, apontando para o animal com um dedo.
?Você realmente acha que eu esqueci delas? ?Respondeu antes de soltar uma risada leve e levantar a perna da calça para mostrar a faca que estava escondendo na bota. ?Sempre estarão comigo, Mary. São e serão meus únicos aliados na luta contra um mundo injusto ?declarou firmemente.
?Quer lutar contra as injustiças? ?Repreendeu. -?Bem, precisará de um bom arsenal, Josh, porque posso garantir que encontrará, ao longo de sua vida, mais de um milhão.
?Vou comprá-los assim que... ?tentou responder, mas ficou em silêncio quando observou a presença de Madeleine que, como era habitual nela, apareceu sem fazer nenhum ruído.
?Aonde você vai Mary? ?A menina perguntou depois de acariciar o pescoço de Galeón. ?Está procurando sua mudança? ?Acrescentou sarcástica.
?Não ?negou veementemente. ?Estou procurando Elizabeth, e sobre minha mudança, posso garantir que sei como detê-la ?murmurou altiva.
?Se você diz... ?Madeleine respondeu exibindo um grande sorriso.
?Se retirou para seu quarto ?Josh interveio enquanto descia do cavalo. ?Sofre de uma terrível dor de cabeça desde...
?Sábado. Sim, eu sei ?Mary a cortou. ?Por esse motivo, minha mãe ordenou que eu a visitasse. Quer que eu a ajude a acalmar sua dor. No entanto, quando apareci no seu quarto, não a encontrei ?continuou.
?Estará na estufa ?Josh disse sem mostrar nenhum sinal de preocupação. ?Sabe que as ervas que cultiva são muito importantes para ela. Durante esses dias, se perguntou se Madeleine seria capaz de cuidar delas, como indicou. Talvez, apesar da dor de cabeça, quis confirmar que não quebrou um caule ou caiu uma folha ?acrescentou sorrindo enquanto pegava as rédeas e as enrolava entre os dedos.
?Quer que te acompanhe? ?Madeleine se ofereceu. ?Me fará bem falar com ela. Não quero que se zangue por algo que puder fazer.
?Não. Me interessa mais que passe seu tempo vigiando ao Josh e a esse bicho. Não sei onde pretende colocá-lo, mas não creio que a escolha que tenha tomado seja adequada...
?Pedirei ao pai para construirmos um estábulo ?assinalou a referida, virando Galeón em direção ao portão externo do jardim. ?Há espaço suficiente para...
Mary parou de ouvir a ideia futurista de Josh quando Madeleine a agarrou pelo braço e a puxou.
?Não esqueça o que eu te disse. Aceite de uma vez por todas o seu destino.
?Não, se puder evitar ?resmungou antes de se soltar daquele aperto e caminhar em direção à estufa enquanto ouvia a criança dar uma grande risada novamente.
***
Se pensou, por um momento, que o seu mau humor desapareceria durante o caminho para a estufa, se equivocou. Após a perseverança de Madeleine, sua raiva atingiu um nível insuperável. Ela estava com tanta raiva que podia aparecer diante de Elizabeth e, sem dizer uma única palavra, pegá-la pelos cabelos para arrastá-la para dentro de casa, como se fosse uma mulher da Pré-História. Pretendia esmagá-la? Bem, não o fez! Tudo o que conseguiu foi atormentá-la para alcançar a maneira de destruir o suposto futuro.
Com as bochechas tão vermelhas quanto as pétalas de uma Gerbera, ela apareceu na frente da porta da estufa e a abriu com tanta brusquidão que as paredes de vidro tremeram e a saia do vestido foi puxada para trás. Sem fechar, deu dois passos à frente e olhou em volta, procurando a familiar silhueta feminina. Mas não a encontrou com tanta facilidade.
Depois de fechar, começou a murmurar mais de uma dezena de impróprios inadequados para uma mulher. Logo caminhou decidida pelo estreito corredor que levava ao lago que seu pai encomendou a construção. A cada passo, seu nariz capturava um cheiro diferente, tornando-a incapaz de descobrir qual flor emitia uma fragrância específica. Parou no meio do caminho e observou tanto o que encontrou a sua direita como a sua esquerda. Um éden. Elizabeth construíra, sob aquelas paredes envidraçadas, um belo lugar cheio de cores e perfumes. Se concentrou em seu alvo e avançou lentamente, sem desviar o olhar do arco-íris floral dos dois lados. Antes de chegar à pequena cisterna, teve que desviar dos grandes galhos da única árvore que sua irmã plantou. Sorriu ao se lembrar do dia em que ela apareceu com aquela mudinha de laranjeira. Não tinha mais de seis anos e mostrava tal entusiasmo que seus olhos brilhavam como duas estrelas. Depois que explicou aos pais o que pretendia fazer com o pequeno talo, Elizabeth saiu para o jardim, olhou para o céu e seguiu para o lado esquerdo da casa. Depois cavou um buraco com suas próprias mãos para plantá-lo enquanto seus pais a observavam em silêncio. Dois meses depois, começaram a construir a estufa e, quando terminaram, Elizabeth se tornou a fada das plantas. Não podia calcular quantas classes possuía nem o que podia fazer com elas, mas sim admitia que seu dom havia se desenvolvido com grande mestria.
Com a imagem do maravilhoso rosto infantil coberto de terra, era estranho o dia em que não chegava manchado em sua casa, e pensando sobre a mudança que sofreu após a traição de Archie, avançou. Então, enquanto o som da roda que movia a água da lagoa alcançava seus ouvidos, encontrou a silhueta que procurava.
As frases que escolheu para reprovar seu comportamento inapropriado, desapareceram de imediato ao contemplá-la daquela maneira. Sua suposição foi confirmada e, em vez de se sentir feliz, conjecturando outra teoria correta, entristeceu. Como deduziu, Eli tinha saído de camisola. Mas não pensou que a encontraria com um aspecto tão desleixado. O seu cabelo, habitualmente recolhido com cuidado, estava solto e frisado, como se não o tivesse escovado em dias. Depois observou a planta dos pés e franziu a testa ao vê-las tão sujas e com manchas de sangue. A mão esquerda de Elizabeth estendia-se frouxa, sem forças, sobre essa parte de seu corpo, enquanto a outra se movia em círculos sobre a água do diminuto lago.
Por um segundo, duvidou se deveria insistir no motivo de sua presença ou deixá-la sozinha com seus pensamentos. Não teve que pensar muito a resposta, pois esta apareceu no momento que a ouviu soluçar.
?Eli? ?Perguntou reduzindo a distância entre elas. ?Está tudo bem? ?Esperou que lhe respondesse, ao não fazê-lo, prosseguiu: ?Anne me disse que sofre uma terrível dor de cabeça e vim para acalmar essa dor.
?Pode ir, Mary. Minha dor não desaparecerá com nada... ?disse depois de alguns segundos angustiantes.
?Duvido ?afirmou colocando a mão direita no ombro esquerdo de Elizabeth. ?Sabe que, quando me empenho, nenhuma dor ou doença suportará mi...
Mary ficou em silêncio enquanto olhava o rosto da irmã. Onde estava a moça bonita? Não havia um pequeno traço dessa beleza com a qual nasceu. Seus olhos azuis não tinham luz, talvez porque as olheiras ao redor eliminaram todo o brilho. Suas bochechas, descritas por ela mesma como perfeitas, agora não passavam de pele sobre ossos, e seus lábios não tinham a cor vermelha intensa que ela tanto admirava porque haviam perdido a tonalidade ao ponto da palidez. Sem pensar duas vezes, afastou a mão do ombro e a colocou na testa, para verificar se estava com febre. Mas Elizabeth não estava quente, muito pelo contrário. Estava tão fria quanto uma estátua de mármore.
?O que diabos aconteceu com você? ?Esbravejou com uma mistura de horror e angustia. ?Por que está assim? ?Antes que Elizabeth pudesse responder, Mary fixou os olhos na mão que ela mantinha submersa na água e instintivamente colocou as suas no peito. ?O que está fazendo com isso? Em que está pensando?
?Pelo que entendi, nossos pais nos dão a vida, mas o destino é quem dita quando deve terminar ?expôs voltando o olhar para a água. ?Talvez a minha deva terminar antes de...
?Não diga bobagens! ?Clamou antes de se inclinar para a adaga e puxá-la dos dedos. ?Este não é o fim, Elizabeth Moore Arany! É o começo de tudo! Como pode pensar em algo tão horrível! Você enlouqueceu? ?E jogou a arma na porta com tanta força que a lâmina de metal se rompeu ao impactar no chão. ?O que aconteceu? ?Insistiu sacudindo-a. ?O que essa cabeça maldita pensa?
E Elizabeth começou a chorar. Escondeu o rosto abatido com as mãos e não conseguiu se consolar até que Mary se sentou ao lado dela e a abraçou com força.
?Anne pensa que está assim porque se comprometeu com o visconde ?explicou enquanto lhe acariciava a mata de cabelo loiro emaranhado. ?Mas eu sei que não é verdade. Apesar desse comportamento repugnante que mostra, no fundo a pequena Elizabeth ainda vive em você. Aquele que corria para cá para descobrir se a nova semente havia germinado ou se as pétalas de uma flor se abriram antes da chegada do amanhecer.
?Eu sou horrível, Mary! ?Soluçou em seu peito. ?Sou a mulher mais horrível que já existiu no mundo!
?Não, querida. Você não é horrível. As circunstâncias fizeram você assim. Você nasceu bonita, como seu físico. O que acontece é...
?Mary... ?sussurrou levantando o rosto para ela. ?Sou horrível, juro pelo sangue que corre em nossas veias. Eu fiz... aconteceu... ?Mas não teve forças para falar, apoiou de novo a testa sobre o peito de sua irmã e continuou chorando sem consolo.
Como superaria isso? Como poderia contar para Mary o que havia acontecido? Não, não conseguia. Tinha que manter isso em segredo. Não só por seu bem, mas também pelo da família.
?Sabe? ?Mary começou a dizer enquanto a segurava com força. ?A vida é cruel para todo mundo. Por mais que tentemos lutar para nos libertar do que nos mantém presos, não obtemos sucesso. A felicidade, essa que muitas pessoas se orgulham de possuir, é uma mentira, uma ilusão fictícia. Ninguém consegue algo tão idílico.
?Então... pelo que vivemos, Mary? Por que ainda estamos neste mundo cruel? ?Perguntou sem levantar o rosto.
?Olhe para mim, Eli! ?Lhe pediu depois de colocar as mãos sobre seus ombros. ?Conte-me o que aconteceu com você, para que não tenha diante de mim a irmã que sempre quis chutar a bunda por ser presunçosa. Onde está a força que expressava? E esse caráter repulsivamente aristocrático.
?Desapareceu... ?murmurou abaixando a cabeça.
?Quem fez isso com você? ?Perseverou, erguendo o rosto com as duas mãos.
?Como o...? ?estalou perplexa.
?Você viu? O destino o colocou de volta em seu caminho? ?Insistiu. ?Porque se assim for, juro que desta vez o matarei com minhas próprias mãos!
?Não! ?Elizabeth respondeu, se levantando da borda empedrada que rodeava o lago. Sem olhar para Mary, esfregou as mãos, olhou para o chão e suspirou. ?Não sei nada de Archie desde que recebi aquela carta.
?Bom. Fico feliz em saber que o pai não terá que me visitar na prisão... por enquanto ?respondeu Mary levantando-se também. Pegou-a por trás e a abraçou com força. ?Se esse filho da puta não é o motivo da sua depressão, o que é?
?Não acredito que possa me amar se te contar ?lhe disse inclinando os ombros para frente.
?Você me ama? ?Lhe perguntou fazendo-a virar para ela. ?Me ama apesar de tudo o que digo ou faço?
?Claro! Você é minha irmã e sabe que te adoro, apesar de todas as coisas estranhas que faz ou diz.
?Exato! ?cortou-a. ?Sempre, apesar de todas as discussões que tivemos, nos amamos. Nisso consiste a família, Eli. E nada, nem ninguém pode eliminar esse vínculo existente entre nós. Podemos ser muito diferentes, felizmente para todas, mas essa desigualdade fez com que nos respeitemos e nos compreendamos. ?Respirou fundo e olhou-a com ternura. ?Por causa dessa compreensão de que falo, sei que sua dor de cabeça é falsa e que as especulações de Anne também são. Sua alma está quebrada. Algo horrível aconteceu com você nessa viagem e te machucou tanto que não será capaz de superá-lo sem ajuda. Só me resta dizer que estou aqui, contigo, e que juntas superaremos tudo.
?Tem sido... horrível ?expressou antes que as lágrimas aparecessem de novo.
?Minha intuição diz como se sente. Mas preciso que me conte tudo, só assim poderemos encontrar a melhor solução ?garantiu com firmeza.
?E se não pode me ajudar? E se for algo tão assustador que só possa ser resolvido com a minha morte ou voltando no tempo?
?Responda-me apenas uma coisa, Elizabeth ?comentou olhando-a nos olhos e tomando-a com ternura dos ombros. ?Essa coisa horrível nos fará procurar e tirar do galpão o berço onde nossos pais nos colocaram no nascimento?
?Não! ?Elizabeth gritou horrorizada.
?Então, querida irmã, todo o resto tem uma solução ?disse antes de abraçá-la e ouvir como Eli suspirava em seus braços.
Capítulo XV
Nos dez dias seguintes, não teve uma mera hora livre para estudar os ensaios que a Sra. Reform lhe deu. Sua mãe tornou-se tirana e continuou ordenando mil tarefas que ela tinha que terminar antes do anoitecer. Para assombro do resto da família, realizou todas, pois nenhuma implicava se afastar de sua casa. Enquanto pudesse estar ao cuidado de Elizabeth e se manter afastada de lorde Giesler, cumpriria sem questionar. Pelo contrário, Anne saía e entrava continuamente de casa. Às vezes, visitava os parentes de seu noivo e outras vezes, chamava urgentemente a costureira que, em sua opinião, não deveria ter muita experiência, pois a fazia experimentar o vestido várias vezes ao dia. Josh e Madeleine, com a desculpa de serem as menores, mal tinham responsabilidades. A única coisa que lhes foi confiada era controlar o novo membro da família. Ainda não dava crédito aos mimos e cuidados que o animal recebia. Acolheram-no com tanto amor, que nem sequer reparavam no fedorento cheiro que invadia o jardim depois de este defecar onde lhe apetecesse. Até seu pai se uniu à louca felicidade! Desde que o visconde colocou o anel em um dos dedos de sua primogênita, vestia-se com elegância e repassava o nó da gravata mil vezes, antes de transitar pelas ruas de Londres no interior da carruagem que seu futuro genro lhe deu. Todos viviam num eterno caos, num infinito disparate. No entanto, admitia que esse estado de desorientação e confusão familiar foi proveitoso para Elizabeth. Apenas reparavam em suas contínuas ausências ou que, cada vez que se reunia com eles, não via um de seus descarados vestidos, mas aqueles que Mary guardava no armário. Talvez evitassem falar do assunto ao dar por confiável a hipótese de Anne e Josh. Aquela em que Elizabeth chorava de ciúmes ao não ser ela quem casava com um aristocrata. Mas ela conhecia a verdade e sofria a agonia de sua irmã em suas próprias entranhas. Desde a tarde que passaram juntas na estufa, não pôde dormir nem uma só noite. Passava horas pensando no medo que Eli suportou e na solidão que se encontrou até aparecer o valete do visconde. Não se importava se ela se culpava por ter encorajado o miserável. A única coisa em que pensou foi que, se era verdade que Morgana cuidava dos de seu sangue, devia matar o gajo justo quando uma de suas mãos desagradáveis a tocou pela primeira vez.
Mary olhou de novo a cortina marrom, que a dona do comércio utilizava para separar a loja da oficina, e respirou com aborrecimento. Se aquela risonha vendedora não a atendesse em breve, sofreria uma apoplexia. Ela não deveria estar lá. Seu tempo era muito valioso para perder sentada em uma cadeira desconfortável e, como seguissem ignorando-a, o escândalo que lhe anunciou a sua mãe, se cumpriria em breve.
?Coloque um casaco e pegue o pedido ?Sophia ordenou depois de encontrá-la escondida no armário. ?A costureira está esperando por você.
?Anne não pode cuidar dessa tarefa? Hoje certamente terá que experimentar o vestido novamente e não será necessário nenhum esforço para suportar o peso de quatro bolsas ?propôs enquanto saía das sombras que lhe proporcionou o inútil esconderijo.
?Hoje não a visitará ?respondeu andando atrás de sua filha. ?Deve comparecer ao almoço oferecido pela Marquesa de Riderland em sua homenagem.
?E as gêmeas? ?Sugeriu se virando para sua mãe.
?Ainda são muito pequenas para passear sozinhas pelas ruas ?Sophia respondeu levantando o tom da voz e erguendo a sobrancelha direita.
?E eu sim posso fazê-lo? ?Disse com falso espanto. ?Não lhe preocupa a opinião que terão as pessoas de mim quando me virem caminhando sem proteção por Cover Garden?
?Desde quando se importa com que dirão, Mary? ?Espetou sua mãe cruzando os braços na frente do peito.
?Desde que minha honorável e maravilhosa irmã mais velha se comprometeu com um visconde ?expôs como se a resposta tivesse sido estudada mil vezes.
?Então... você faz isso por sua irmã? ?Sophia perguntou olhando para ela sem piscar.
?Claro! Você realmente pensou que eu faço isso para meu próprio benefício? ?Respondeu, fingindo estar ofendida. ?Temos que agir corretamente, pelo bem de Anne. Já sabe como a aristocracia gosta dos mexericos e fofocas; pensa que não fofocarão sobre a desproteção de uma das irmãs da futura Viscondessa de Devon? Será um verdadeiro escândalo! ?Acrescentou com aparente angústia.
Mary estava prestes a pular de alegria ao observar sua mãe refletir sobre o assunto. Tinha encontrado o ponto fraco: as fofocas. Até agora, Sophia só estava interessada em cuidar da reputação do marido, no entanto, desde o noivado, tudo mudou.
?Por um momento, apenas por um momento, pensei que era sincera, Mary Moore Arany. Mas, felizmente para mim, o sangue que nos une me adverte que sua intenção é diferente da que você diz. Limpe a farinha da saia, arrume o cabelo e vista o casaco. Quero os vestidos em nossa casa antes que Eugine termine de cozinhar as perdizes, entendido? ?Disse com raiva. Virou as costas e caminhou em direção à lareira.
?E se alguém quiser me machucar? ?Mary perseverou.
?Depois do que fez ao jovem Wang, acredito que ninguém tenha coragem suficiente para falar ou cumprimentar você ?disse Sophia atiçando o fogo.
Que o inferno congelasse! Mas, por que não o havia esquecido? Quanto tempo tinha passado, três, quatro anos? Era certo que a síncope que sofreu, quando abriu a porta e a encontrou escoltada por dois agentes, foi tão grande que seu pai teve que lhe administrar uma pequena dose de clorofórmio. Certamente, ela ficou de castigo em seu quarto por três dias, os mesmos que ela passou lendo e desfrutando de uma bela solidão. Quando ela pôde explicar o que aconteceu, seu pai caiu na gargalhada. Talvez porque ele foi o único que entendeu sua posição sobre doenças causadas por distúrbios celulares. Em vez disso, sua mãe só pediu a Morgana que a sociedade londrina ficasse surda e cega por duas semanas. Ela estava muito preocupada com a repercussão que seu marido sofreria quando as pessoas soubessem que a segunda de suas filhas havia golpeado, até quebrar o guarda-chuva, a carruagem do jovem Wang, que de dentro, pedia socorro. Logicamente, não podia culpá-la por desconhecer a importância que tinha a teoria da Patologia Celular em medicina, mas aquele petulante sim e por esse motivo, ao ouvi-lo dizer que se tratava de uma conjectura sem sentido para explicar as doenças dos organismos, perdeu o controle. Como podia falar dessa forma o filho de um médico que foi à universidade com Rudolf Virchow? Só um tolo, como Wang, podia soltar por sua boca semelhantes tolices. Obviamente, o temor de sua mãe apareceu antes do imaginado. As pessoas falaram sobre a agressão da filha perturbada do doutor Moore ao encantador Wang. Desde aquele dia, não importava se andava sozinha ou de noite, ninguém se aproximava e atravessavam a rua, quando levava um guarda-chuva na mão.
?Senhorita Moore?
A pergunta que a vendedora lançou ao ar, depois de sair pela décima quinta vez da sala dos fundos, tirou Mary de seus pensamentos. Ela se levantou da cadeira, onde estivera mais de uma hora, e se aproximou do balcão.
?Finalmente descobriram que estou aqui! ?Disse sarcasticamente. ?Pensei que me confundi de estabelecimento porque, apesar de ser a primeira, atenderam outras clientes antes de mim.
?Para fazer um excelente trabalho, é preciso ter paciência e tempo ?a funcionária manifestou, colocando sobre a bancada envernizada as bolsas que levava nas mãos.
?Não discuto isso. Mas garanto-lhe que tiveram tempo suficiente para confeccionar dois vestidos e emplumar quatro chapéus ?Mary insistiu, enquanto confirmava que as roupas que lhe oferecia eram as mesmas que fora buscar. Nas bolsas estava o vestido rosa pálido de Madeleine, o malva claro de Josephine, o marrom de sua mãe e quando observou o seu, franziu a testa e olhou à empregada como se buscasse a forma mais rápida de lhe quebrar o pescoço. Depois pegou com dois dedos o tecido daquela roupa verde, colocou-a frente ao nariz da trabalhadora e perguntou-lhe com raiva: ?Não lhe indicaram que este vestido devia ser azul marinho? Por que, não é? Acaso a costureira sofre de discromatopsia?[8]
?Expliquei a sua mãe que não era uma cor apropriada para um casamento tão importante e que todos os convidados à cerimônia pensariam que a jovem em questão se encontraria em período de luto ?explicou com orgulho enquanto a olhava de baixo a cima. ?Foi por isso que lhe pedi que reconsiderasse e, para satisfação pessoal, fez o mesmo. A senhora Moore é uma mulher muito inteligente e selecionou uma tonalidade bastante atual e...
?Estúpida? ?Mary a interrompeu. ?Porque não há outra maneira de descrevê-la. Agora, em vez de mostrar a imagem de uma jovem séria, correta e virtuosa, parecerei a garrafa que algum bucaneiro bêbado de Whitechapel leva em uma mão.
?Como ousa falar desse modo? ?Perguntou chocada. ?Nenhuma de nossas clientes se comparou com semelhante barbaridade! Todas estão encantadas com nosso trabalho! Minha oficina é única na cidade!
?Única? Certamente minha governanta conserta remendos menos emaranhadas do que estes ?comentou mal-humorada enquanto empilhava as bolsas com as duas mãos. ?E não se mostre tão ofuscada por uma crítica construtiva. Deve saber que será muito rentável para o seu negócio ouvir as opiniões dos clientes. Só assim obterão a perfeição da qual se vangloriam. Espero que a próxima vez que lhe encomendem uma peça de roupa de uma cor determinada, você morda a língua e não opine.
?Santo Deus! ?Exclamou horrorizada levando as mãos ao peito. ?Não a compararão com uma garrafa, mas com a filha do próprio diabo! Agora entendo por que desejava uma cor tão escura, combinaria com sua alma.
?Tenha cuidado com o que pensa... ?Mary lhe disse uma vez que abriu a porta. ?Pode ser que esta filha do diabo invoque a umas quantas almas errantes para que incomodem seus dóceis clientes.
Antes de fechar a porta, observou divertida como a vendedora não deixava de se benzer, ato ao qual estava bastante acostumada. As pessoas costumavam fazer isso depois de ouvi-la falar. Uma vez que saiu da loja, ela soltou uma grande risada e seguiu para a carruagem. Ela teria que usar um vestido horrível, mas a funcionária viveria assustada por um longo tempo. Satisfeita e orgulhosa de ser uma mulher tão sincera, ela avançou até que o cocheiro a viu chegar e saiu do veículo. Ele abriu a porta, desceu as escadas, esperando que ela subisse, mas não o fez.
Mary ficou de pé junto à carruagem, segurando as bolsas. Seus olhos, embora estivessem se movendo em direção ao interior da carruagem, não observaram nada em particular. Estava ausente, pensando silenciosamente sobre a ideia que acabava de aparecer em sua cabeça. Levantou o queixo e sentiu em seu rosto as carícias do leve vento que previa uma rápida chuva. Era o momento ideal. Se não, quando teria outra chance? Ela ficou trancada por um longo tempo, aceitando sem objeção tudo o que sua mãe ordenava, pois nada, exceto o que ela pediu horas antes, a afastava de seu propósito. Mas estava fora, sob um céu tão cinza como o mercúrio de um termômetro. De repente, pensou em seu pai e nas conversas que manteve com sua mãe sobre o incansável trabalho do mordomo de lorde Giesler. Segundo entendia, este realizava tudo o que lhe foi dito para que a recuperação de seu senhor fosse rápida e adequada. Claro, isso implicava também protegê-lo de uma possível chuva...
Ao deduzir que seu maior problema não ocorreria, jogou as bolsas dentro da carruagem, abotoou o casaco e disse ao empregado sem olhá-lo:
?Voltarei andando.
?Andando? ?Ele respondeu bastante surpreso.
?Sim, andando. É uma das habilidades físicas que caracterizam o ser humano. Por que acredita que nascemos com duas pernas? ?Garantiu sagaz.
?Não digo por isso, Srta. Moore. Permita-me informá-la que não seria certo deixá-la sozinha com esse tempo ?disse o amável trabalhador depois de fechar a porta. ?Se observar as nuvens, descobrirá que não tardará em chover e a senhora não gostará que uma de suas filhas adoeça dois dias antes da cerimônia.
?Não se preocupe com minha saúde, Owen. Asseguro-lhe que se aparecer essa chuva alugarei uma carruagem ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Deseja, pelo menos, que lhe ofereça um guarda-chuva? Sua mãe não lhe repreenderá se lhe explicar que se resguardou...
?Não! Sem guarda-chuva! ?Respondeu como se tivesse sido picada na bunda com um alfinete. ?Prometo que ela ficará mais zangada se eu o tiver.
?Como desejar ?terminou de lhe dizer antes de subir e açoitar o cavalo.
Mary se virou para sua esquerda e, enquanto escutava como se afastava a carruagem, observou com entusiasmo tudo o que tinha diante de seus olhos. Felizmente para ela, a rua estava muito calma. Talvez porque, como disse o empregado, a ameaça de chuva assustou muitos londrinos. No entanto, os poucos atrevidos que encontrou passavam ao seu lado sem reparar nela. Ato que agradeceu porque não queria observar rostos de espanto, assombro ou estranheza. Precisava, depois de tantos dias enclausurada em sua casa, sentir um pouco de liberdade e tranquilidade.
Com a mão direita ligeiramente levantada, pois a alça de sua retícula se encaixara na dobra de seu cotovelo, se dirigiu em primeiro lugar para a enorme fachada do Teatro Real de Drury Lane. Uma vez que se colocou em frente à porta, levantou o rosto para admirá-lo. Indubitavelmente, era um edifício grandioso. Segundo tinha lido, podia abrigar três mil e seiscentos espectadores e depois do último incêndio, ocorrido em 1809, os arquitetos encarregados da reconstrução usaram colunas de ferro para substituir aquelas de madeira que sustentam os cinco níveis das galerias. Mas se esses dados lhe pareceram extraordinários, o fato de saber que ali se celebravam, desde dois anos atrás, os melhores espetáculos e melodramas, a deixou sem palavras. Olhou intrigada o cartaz que alguém colocou na direita do pórtico e suspirou. Em outra ocasião, quando sua vida fosse menos agitada, poderia desfrutar da música que tocaria a orquestra que anunciava esse cartaz. Com uma inevitável sensação de saudade, já que desejava que a normalidade voltasse à casa dos Moore, continuou o caminho, se esquivando das bancas de frutas e verduras que encontrou.
Covent Garden era um lugar muito estimulante, como indicavam os jornais. Embora não parecesse tão perigoso quanto insistiam em descrever. Onde estavam as prostitutas, os bandidos e os criminosos que perseguiam os cantos do mercado em busca de uma vítima para assaltar? Porque ela não os via. A única coisa que tinha diante de seus olhos eram pessoas comuns e mundanas e que ofereciam suas mercadorias aos poucos clientes que andavam perto de suas bancas.
Continuou naquele lado da calçada e justamente quando determinou que o passeio deveria terminar, seu nariz capturou um maravilhoso aroma de café. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Insuperável... Se a bebida fosse tão boa quanto o aroma que emitia, não poderia voltar para casa sem saborear uma boa xícara. Com o nariz levantado, como se fosse um cão de caça, seguiu para o estabelecimento que o servia. Quando chegou, sorriu ao ver que não era a única pessoa que abandonava suas obrigações para deleitar-se com um costume tão pouco inglês. Talvez a maravilhosa tradição de ingerir só chá iniciava uma época de declínio, ou talvez houvesse mais gente tão estranha quanto ela.
Enquanto esperava sua vez, se apoiou na parede de maneira descontraída e procurou algumas moedas para pagar pela compra.
?Quanto me custaria passar uma hora com você, Srta. Moore? Garanto-lhe que pagarei com prazer.
Mary, muito lentamente, tirou a mão da retícula, se afastou da parede, levantou o rosto e olhou com altivez para o dono daquela voz. Ali estava o maior idiota do mundo, vestido com um traje cinza escuro, tal como ditava a moda nesse momento. Peter Wang a observava com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casaco e mostrava com orgulho um repugnante bigode louro, cujas extremidades se enrolavam para cima.
?O que disse? ?Perguntou tão indignada e furiosa que suas bochechas mudaram de cor pelo sufoco.
?Digo-lhe, senhorita Moore, que estou disposto a pagar tudo o que me peça se me oferecer algo interessante em troca ?Wang disse, verificando o vestido grosseiro de Mary. Depois de sorrir com malícia, avançou para ela. ?Imagino que seja por isso que está sozinha nesta parte de Londres, não é verdade? ?Falou olhando levemente ao redor. ?Finalmente assumiu que nunca alcançaria seu sonho e adotou a posição mais sensata para sua idade: recuperar o tempo perdido tornando-se amante de um distinto cavalheiro.
?Bom dia, senhorita, o que deseja tomar? ?Interveio a amável vendedora alheia, até o momento, da situação que se vivia na frente do posto.
?Bom Dia. Importa-se de me servir a maior xícara de café que você oferece aos seus clientes, por favor? ?Mary respondeu sem olhar para ela.
?Café? ?Perguntou Wang sem tirar os olhos dela. ?Como é normal em você, me confunde. Tinha deduzido, erroneamente, claro, que se tratava de uma mulher que adorava passar as horas do dia tomando chá com doces, dado o volume desproporcionado que tomaram seus quadris desde a última vez que nos vimos.
?Deus bendito! ?A vendedora soltou horrorizada ao ouvi-lo.
Gorda e prostituta. Até esse preciso instante a tinham dedicado muitos adjetivos e substantivos repugnantes, mas nenhum superava a brilhante descrição daquele energúmeno. Mary olhou de relance para a trabalhadora envergonhada. Ela colocou a xícara que pedira no balcão de metal com as mãos trêmulas e se afastou, como se estivesse lendo seus pensamentos. Sem prestar atenção às palavras de Wang, que perseverou em informar que sua robustez aumentara tanto que não seria bom para sua saúde, ela se virou para a esquerda, pegou a xícara e jogou nele.
?Maldita aberração! ?Exclamou. ?Como ousa falar comigo com tanta insolência? ?Vociferou. ?Você é o homem mais estúpido que eu já conheci na minha vida!
?É uma rameira! ?Wang esbravejou quando suas mãos com luvas pretas desabotoaram os botões do casaco.
Tudo o que aconteceu desde o momento em que atirou o café sobre Wang, transcorreu muito lentamente para Mary. O filho do médico tirou algumas roupas e as jogou no chão. Então gritou milhares de maldições quando não conseguiu acalmar as queimaduras que seu peito sofreu. Ele olhou para ela com tanta raiva que qualquer mulher teria morrido de medo. Avançou para ela, levantou o braço direito e estendeu os dedos para lhe acertar um bofetão. Mas não chegou a tocá-la. Uma mão enorme, que ela reconheceu rapidamente, apertou o pulso do agressor e o puxou com uma força tão grande que ele caiu no chão junto com suas roupas.
***
?Como foi capaz de fazer uma coisa dessas? ?Philip gritou pulando da cadeira. ?Aquela mãe ficou louca?
?Não creio que o termo louca seja muito apropriado para descrever a senhora Moore, milorde ?Disse Shals antes de dar uma gorjeta ao menino que lhe fez chegar a notícia. Quando este partiu, virou-se para o angustiado lorde e prosseguiu: ?Primeiro, devo descobrir o que aconteceu para que a senhorita Moore saísse sem proteção. Certamente você encontrará uma explicação tão divertida que estará rindo por vários dias...
Nem ele mesmo acreditava em suas próprias palavras! Como uma mãe, sabendo qual era a opinião da sociedade sobre a sua filha, deixava-a sair de casa sem acompanhante? Queria que chegasse o juízo final? Porque isso mesmo ia acontecer. Não só pelo que aquela moça poderia fazer, mas pelo que estava a ponto de realizar seu amo.
?Shals? ?Giesler perguntou ao vê-lo imóvel na frente do cabide.
?Sim senhor. Eu já tenho ?respondeu. Mostrou-lhe a jaqueta que havia pegado e caminhou até ele.
?Não há explicação... ?Philip continuou a falar enquanto o mordomo o ajudava a vestir a jaqueta. ?Mary não pode passear pelas ruas sem proteção. Além disso... não disse que começaria a chover em breve? ?Retrucou quando se virou para que Shals abotoasse os botões.
?De fato, milorde. As nuvens são tão cinzentas como a cinza que há em uma lareira depois de um enorme fogo. Se o vento não as mover, logo aparecerão as primeiras gotas. ?Terminou de colocar a jaqueta e correu para a porta do escritório para deixar passar o homem que, apesar de não estar totalmente recuperado de uma operação, percorreria Londres a pé para proteger a mulher que amava em segredo.
?Diga ao cocheiro que esteja pronto em um minuto ?ordenou Philip antes de entrar na sala de jantar e desabotoar a jaqueta.
Não fechou ao entrar. Não era hora de se preocupar em buscar um pouco de privacidade, mas de agir rapidamente. Ele foi até a vitrine de mogno, colocou a mão direita na borda e moveu os dedos até encontrar a chave. Uma vez que a encaixou na fechadura, virou-a para a direita e abriu a estreita e longa porta de vidro. O cheiro de pólvora atingiu seu nariz, fazendo-o lembrar diferentes episódios importantes de sua vida. Em qualquer outro momento, ele teria sorrido para inspirar a segurança e a diversão que esse perfume em particular transmitia. Mas agora isso só lhe dava um aroma, o de Mary, e expressava um desejo: cuidar dela.
Como tinha sido tão insensata de passear por Cover Garden sem proteção? Não gostava tanto de ler? Então, por que não havia lido nos jornais as críticas que fizeram sobre essa região em particular da cidade? Ainda bem que seu empregado foi sensato e lhe fez chegar a informação através daquele pequeno batedor de carteira. Sabia que ele agiria com rapidez e que nem uma chuva de ratos infectados com lepra lhe impediria ir buscá-la. Levantou a arma com a mão direita até que a culatra de marfim branca ficou à altura de seus olhos e com a outra mão carregou a munição, o projétil e o bloco de papel através do cano. Uma vez que ficou carregada e pronta, ele a guardou no bolso interior da jaqueta, fechou a porta da vitrine, colocou a chave no lugar, virou-se para a porta e enquanto saía, fechou ele mesmo a jaqueta.
?Tudo pronto, meu senhor ?Shals disse oferecendo-lhe o casaco. ?Quer que o acompanhe? Seguro que posso me ausentar algumas horas... ?acrescentou uma vez que o ajudou a colocá-lo.
?Não. Prefiro que esteja aqui caso apareça Valeria ou Martin ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Se isso acontecer, deseja que conte a versão real ou mais uma... ilusória? ?Sugeriu enquanto colocava o chapéu nas mãos.
?Real ?declarou antes de colocá-lo sobre a cabeça e sair de lá.
Shals encarou a grande figura de seu senhor até que ele entrou na carruagem com a ajuda do cocheiro. Nas duas semanas anteriores, lorde Giesler permaneceu muito calmo em sua residência, recuperando-se da operação. Ele próprio acreditava que, se continuasse assim, seu senhor morreria de tédio, porque nunca ficava em casa por tanto tempo, exceto quando chegava tão bêbado que não conseguia se lembrar de seu nome. No entanto, sua atitude mudou tanto que o serviço murmurava incessantemente sobre o estranho comportamento do homem que pagava seus honorários. Até chegaram a pensar que a senhorita Moore, durante a operação, lhe arrancou não só um pedaço de tripa envenenada, mas também a virilidade. Ninguém, exceto ele, entendia o motivo pelo qual ficava várias horas sentado em um sofá, prostrado em sua cama ou caminhando pela casa com muito cuidado para não se machucar: a senhorita Moore. Desde o dia em que os encontrou no quarto, em circunstâncias comprometedoras, lorde Giesler não tinha pensado em nada, exceto em curá-lo com rapidez e cortejá-la como era devido. Até tinha lido livros de medicina! Seu novo propósito consistia em que, a próxima vez que se encontrassem, a jovem se apaixonasse por ele tal como ele estava apaixonado por ela. No entanto, tinha a sensação de que seu primeiro encontro social não seria tão romântico quanto ele esperava...
Apesar de tudo, confiava na sabedoria da senhorita Moore e rezava para que não se metesse em nenhum problema. Se isso acontecesse, se seu senhor testemunhasse alguma ofensa contra ela... Que Deus tenha piedade do insensato! A arma que tinha guardado no bolso era de um tiro e só o usaria como advertência. Para ser sincero, não temia pelos danos que aquela bala poderia causar, mas o que aquelas duas mãos fortes e grandes poderiam fazer.
Shals suspirou quando a carruagem se perdeu na distância. Fechou devagar a porta, virou-se e caminhou pelo corredor como se algum empregado tivesse pedido sua ajuda.
Capítulo XVI
Philip observou, de sua carruagem e atrás da cortiça marrom escura, como Mary abandonava a loja na qual havia permanecido desde que ele chegou. Quando ele pretendia respirar com calma, coisa que não havia feito desde que soube que ela saíra de casa sozinha, observou, pasmo, que ela depositou as malas dentro da carruagem e se afastou. Antecipando o que aconteceria a seguir, colocou a mão esquerda com luvas na maçaneta da porta e abriu. Enquanto ele pisava nos paralelepípedos da calçada com seus sapatos pretos brilhantes, Mary conversava com o funcionário. Então, ela apertou os botões do casaco, virou e começou a descer a rua.
?Milorde? ?Lhe perguntou o cocheiro um tanto confuso ao descobrir que seu senhor abria a porta e saía da carruagem sem ajuda.
?Me espere aqui, Thenders. Se eu não aparecer em 10 minutos, você tem minha permissão para voltar ?lhe ordenou sem afastar seus olhos azulados da mulher.
?Como quiser senhor ?o servo respondeu depois de depositar as rédeas no assento.
Philip caminhou atrás de Mary, mantendo uma distância suficiente para que lhe não descobrisse, mas o apropriado para agir rapidamente, se necessário. Por mais que tentasse, era incapaz de tirar os olhos do corpo com o qual sonhara quase todas as noites. Suas mãos, exatamente como fizeram nessas alucinações eróticas, foram em sua direção para tocá-la, mas ele as bateu nos dois lados do casaco quando percebeu o que estava fazendo. Irritado com a perda incomum de controle, ele os colocou nos bolsos e os apertou. Sentia falta dela. Sim ele fez! Não havia manhã em que acordasse e se perguntasse que sentimento o invadiria se ela permanecesse ao seu lado. Mas essa melancolia não terminava quando se levantava da cama. A cada hora, a cada minuto, a cada segundo do dia sentia falta de inspirar o perfume feminino misturado com essências medicinais, desejava notar as carícias suaves de seus lábios e a necessidade de tê-la ao seu lado aumentou tanto que estava ficando louco. Como conseguiu o que muitas mulheres desejavam alcançar? Era sua paixão, seu intelecto ou talvez esse jeito tão especial que tinha de olhá-lo? Embora seus olhos emitissem raiva, ele sabia que a raiva não era real. Desejava-o, tanto ou mais do que ele desejava a ela. Só esperava o momento em que se rendesse a suas paixões. Uma vez que conseguisse romper essa rígida barreira, lutaria com todas as armas que tivesse a seu alcance para fazê-la sua para sempre.
Enquanto sua mente perversa lhe fez reviver algumas cenas que teve em seus sonhos lascivos, observou como Mary parava em frente à entrada do teatro. Depois de ler a placa à direita e pensar em algo que queria saber, continuou a caminhada sem ver como as pessoas, que caminhavam ao seu lado, a olhavam de canto de olho. Sem dúvida, todo mundo estava fazendo a mesma pergunta: que diabos uma mulher como ela estava fazendo sem vigilância? Mas ele não conseguia responder. Não sabia o motivo pelo qual a senhora Moore, uma mãe a quem descrevia como coerente, permitiu que sua filha andasse sem proteção por uma região bastante perigosa de Londres. De repente, esse desejo primitivo de cuidar dela se intensificou. Precisava fazê-los entender, a quem a olhava com receio, que não estava desprotegida, que ele a vigiava. No entanto, se obrigou a manter distância, porque se Mary o descobrisse, não lhe cabia nenhuma dúvida de que o atacaria como uma leoa recém parida.
Um enorme sorriso se desenhou em seu rosto ao apreciar como erguia o queixo, fechava os olhos suavemente e inspirava o cheiro de café, que emitia um estabelecimento localizado a três barracas de verduras. Como Shals o informou, sentia uma certa fraqueza por aquela bebida. Quantas xícaras tinha tomado no último dia em que o visitou? Não se lembrava se eram quatro ou cinco, mas seu fiel mordomo disse que precisou fazer duas cafeteiras para si mesma.
Sem poder apagar aquele pequeno sorriso de felicidade, pois esse pequeno gosto comum os unia mais do que aquilo que um anel de noivado poderia unir, ficou parado na frente dela. Claro, estava tão entusiasmada em procurar as moedas com que pagaria à vendedora que não reparou na sua presença.
Philip encostou o ombro esquerdo num poste, ficou de braços cruzados e continuou a observá-la. As pessoas mais atrevidas, ao passar por seu lado, o olhavam de relance. Os temerosos se afastavam. Talvez seu traje escuro, sua altura ou a ruga que apareceu em sua testa, ao contemplar como um jovem se aproximava de Mary com um sorriso irônico, avisasse que, se quisessem ficar seguros, deveriam se afastar dele rapidamente. Quando o rapaz ficou na frente dela, Giesler descruzou os braços, afastou-se do poste e deu um grande passo. Não atendeu à blasfêmia que um cocheiro soltou quando puxou com força as rédeas de seus cavalos para não atropelá-lo. Estava tão concentrado naquela cena, que tudo à sua volta desapareceu. Deu outro passo, ficando no meio da via, tirou uma luva e a jogou no chão. Logo, no passo seguinte, se desfez da outra. Mais um passo... Só restavam três e poderia escutar o que dizia aquele estranho para Mary para que se mostrasse tão tensa. Sua futura esposa, porque assim a denominou desde que entendeu que não podia ter em sua cama outra mulher que não fosse ela, sempre enfrentava o mundo com a bravura de um dragão. Entretanto, notava que nesta ocasião estava se contendo. Então, sua valente guerreira brotou. Se virou para a vendedora, que havia colocado uma xícara enorme de café no pequeno balcão de sua loja, o pegou e jogou no rapaz em questão.
Os três passos que faltavam até alcançá-los, Philip os converteu em um ao ouvir como aquele insensato a chamava de rameira e levantava seu braço para golpeá-la. Quando se colocou atrás do rapaz, lhe agarrou o pulso do braço levantado e o puxou com tanta força que este ficou estendido no chão, junto com as roupas que tirou.
?Lorde Giesler! ?Exclamou Mary. ?Não!
Mas Philip não a ouviu, nem percebeu como ela o agarrou pelas costas do casaco para detê-lo. Com um rápido movimento de ombros, deslizou o pesado casaco preto até que se soltar dele. Depois, desabotoou o casaco e atirou-o ao chão. Uma vez que deixou de sentir a pressão que aquelas roupas exerciam em seus braços, estendeu as mãos para o menino, o agarrou e o levantou sem pouco esforço.
?Como a chamou? ?Ele gritou, levantando tanto o jovem que seus pés não tocavam o chão.
?Milorde! Me solte! ?Wang gritou desesperado. ?Me solte! ?Repetiu.
?Como a chamou? ?Voltou a rosnar.
?Por acaso não viu? Essa desgraçada me jogou uma xícara de café fervendo! ?Tentou justificar.
?Rameira ?a vendedora terminou, que havia deixado seu posto e agarrado Mary pelos ombros para confortá-la. ?Chamou a senhorita de rameira e gorda.
?Cale a boca! ?Lhe gritou Mary afastando-se dela.
Aterrorizada, deu um passo em frente e justo quando ia abrir a boca para ordenar ao Titã de cabelos louros que o soltasse, seu sapato direito tropeçou com algo duro. Olhou para o chão e arregalou os olhos ao ver a coronha perolada de uma arma. Sua angústia cresceu tanto que ficou muda. Presa desse pânico que começava a brotar do mais fundo de sua alma, jogou o casaco negro, que havia tirado do lorde, e o jogou sobre a jaqueta, para que ninguém reparasse na presença dessa arma.
?Você ia bater nela? ?Perseverou Philip alheio aos movimentos dela.
?Lorde Giesler, lhe imploro, não precisa fazer um espetáculo por algo tão insignificante. Tudo estava esclarecido no instante em que... ?Tentou explicar, mas teve que calar-se quando seu agressor a interrompeu.
?Merece uma lição! ?Wang gritou olhando em volta, procurando uma pessoa para defendê-lo.
Philip o soltou e quando o jovem apoiou as plantas dos sapatos no chão, levantou seu braço direito e lhe deu uma bofetada que lhe cruzou a cara.
?Como esse? ?Berrou fora de si.
?Ninguém vai separá-los? ?Mary gritou desesperada.
A princípio, o tumulto que os cercava permaneceu silencioso, mas quando lorde Giesler deu um tapa no rosto, o clima mudou e começou a se ouvir gritos encorajadores daqueles que os observavam. Ninguém queria parar o confronto masculino, apesar de estar ciente de que não havia igualdade física entre eles. Enquanto Wang era um rapaz alto, mas bastante esquálido, o lorde superava em altura e seu corpo dobrava seu oponente em musculatura.
?Vamos! ?Philip insistiu enquanto arregaçava as mangas da camisa. ?Me devolva o tapa! O que espera, maldito rato? Onde está agora a coragem que mostrava ao atacar uma mulher? Mostre-a com um homem!
?Não vou lutar com você... ?disse Wang caminhando para trás. ?Não por essa!
?Não! ?Mary gritou novamente enquanto observava Philip se aproximar de Wang e começar a espancá-lo sem piedade.
Olhou aterrorizada ao seu redor, procurando alguém grande e valente o suficiente para impedi-lo. Mas ninguém se atrevia a intervir em uma briga em que um dos combatentes exibia a imagem de um deus irritado. Preferiam ser meros espectadores a serem feridos. Supondo que a única pessoa que podia terminar a luta era ela mesma, saltou para frente e agarrou-se ao pescoço de lorde Giesler.
?Solte-o! Solte-o! ?Repetiu uma e outra vez.
No entanto, ele não a ouvia. Seu corpo parecia um pêndulo. Movia-se da direita para a esquerda, conforme batia. Abriu a boca, com a pretensão de lhe morder o pescoço, mas logo pensou melhor. Seu pai não lhe disse que, se apertasse com força o pescoço de uma pessoa, esta deixava de respirar e podia perder a consciência? Pois isso mesmo faria. Evitando não cair, estendeu seu braço direito sobre a garganta do lorde e apertou com a intensidade suficiente para que sua agitada respiração se tornasse algo mais pausada.
Giesler, ao sentir como lhe faltava o ar, deu um passo para trás, olhou o rosto machucado do homem e sorriu satisfeito ao comprovar que o olho direito estava tão inchado que não poderia ver com clareza por várias semanas. Mas sua alegria aumentou ao observar dois fios de sangue sob seu nariz. Depois, muito devagar, olhou por cima do ombro para confirmar que os braços que rodeavam seu pescoço pertenciam a Mary. Quem, se não ela, teria o valor suficiente para freá-lo de uma maneira tão pouco usual? Estendeu os braços para trás e acolheu com suas mãos grandes os gostosos glúteos femininos. A falta de oxigênio o deixou tão nublado que não ouviu com clareza como ela gemeu diante do contato. A única coisa em que ele se concentrou foi que Mary não se machucasse ao deitá-la no chão. Enquanto as pessoas encorajavam o ato violento, o corpo de Mary desceu ao chão, roçando o seu. Em outro momento, enlouqueceria de desejo, no entanto, este não era. Precisava confirmar que não estava ferida.
?Está bem? Se machucou? ?Perguntou-lhe quando se virou para ela. Acariciou-lhe a bochecha esquerda e enfiou uma mecha desse cabelo negro despenteado atrás da orelha.
?Eu?! ?Estalou sem poder afastar seus olhos dele. ?. Eu estou perfeitamente, é ele quem não está! ?Acrescentou apontando com um dedo da mão esquerda para o filho do médico.
?Esse tolo importa menos para mim do que uma casca de ovo, Mary. A única coisa que me interessa é saber se você está bem ou tenho que continuar batendo nele até que não sem lembre como se chama ?afirmou enquanto olhava para aquele rosto corado de raiva e vergonha.
E o escândalo oferecido por aqueles que incentivaram a luta desapareceu para dar lugar a um estranho silêncio.
?Afastem-se! ?Ordenou um homem depois de soprar várias vezes com seu apito. ?Afastem-se do nosso caminho!
Philip virou-se para aqueles que tranquilizaram a multidão, escondeu Mary atrás do seu corpo e olhou para o local na rua onde dois agentes apareceram. Estes, ao reconhecê-lo, aproximaram-se dele e levaram a mão direita ao chapéu que cobriam suas cabeças.
?Giesler... ?Um dos policiais se referiu a ele pelo sobrenome devido à amizade que mantiveram durante vários anos.
?Thomas...
?O que aconteceu? ?Ele perguntou depois de dar um forte aperto de mão.
?Este estúpido quis bater em uma mulher ?Philip murmurou, dirigindo-se a Wang com um olhar de reprovação e ódio.
?Qual delas? ?O outro parceiro queria saber enquanto observava o rosto de todas as mulheres que estavam na frente da banca de café.
?Ela... ?declarou Philip afastando-se para o lado para que seus dois antigos companheiros da Scotland Yard descobrissem a quem se referia.
?Por Deus, senhorita Moore! É você de novo? ?Estalou Thomas atordoado. ?Mas por que agrediu novamente o senhor Wang? O que usou desta vez, essa bolsa? ?Acrescentou divertido.
?Não senhor. Desta vez o encharquei com uma xícara de café quente ?comentou Mary levantando o queixo de maneira altiva. ?Mas em minha defesa alegarei que eu não tive a culpa deste acidente. Ele veio até mim e me insultou.
?O que lhe disse desta vez para irritá-la, senhor Wang? ?Perseverou o outro agente com voz cansada enquanto o ajudava a levantar-se.
?Gorda e rameira ?a vendedora interveio. ?Assim a chamou diante dos meus clientes.
?Maldito bastardo! ?Philip deu um passo em direção a ele. Mas não podia chegar perto tudo o que ele desejava porque Thomas agiu rapidamente e ficou entre os dois.
?Muito obrigada pela ajuda ?Mary murmurou com sarcasmo à vendedora.
?De nada, senhorita. Nós mulheres devemos nos apoiar diante deste tipo de monstros ?a jovem disse sem perceber o tom acusatório de sua voz.
?E bem? ?Thomas perguntou a Wang. ?Tem algo a alegar?
Wang, que já estava segurando a roupa suja em um braço, retirou o sangue que saía do nariz com a manga esquerda da camisa e olhou para o seu agressor, depois para Mary, depois para as pessoas que se reuniram ao redor dele e terminou por encarar o agente que insistia em descobrir o que aconteceu. Ao deduzir que havia certa camaradagem entre lorde Giesler e os agentes, pela maneira como se cumprimentaram, determinou que a melhor maneira de resolver o problema era falar com alguma eloquência, mas sem esquecer seu objetivo: humilhar a sabe-tudo Moore.
?Só um infeliz incidente que foi mal interpretado com demasiada rapidez ?ele começou a dizer enquanto sacudia a poeira de suas roupas. ?Devo confessar que, desde que me tornei um médico qualificado, fiquei obcecado em encontrar um local adequado para cuidar de meus pacientes. ?Ele sorriu tanto que todo mundo admirou seus dentes brancos manchados de sangue. ?Por esse motivo caminhava distraído. Estava concentrado nesse edifício aí quando me topei com a senhorita Moore. Ela, que tinha comprado uma xícara de café, tampouco advertiu minha presença e quando se virou, derramou sem querer esse líquido quente sobre minhas roupas. Como não queria me queimar, porque as feridas de uma queimadura são terrivelmente dolorosas, tirei minhas roupas manchadas. Naquele momento, todos os presentes começaram a gritar, talvez pensassem que a puniria por um ato que, sem dúvida, ninguém poderia prever. No momento em que a Srta. Moore e eu íamos pedir desculpas, lorde Giesler apareceu perguntando o que estava acontecendo. Quando me virei para responder, tropecei em uma pedra e caí de bruços na calçada. Portanto, tenho rosto inchado e o nariz está quebrado e sangrando. ?comentou sem apagar um repugnante sorriso de sua boca.
?Então... não há nenhum caso? Não registrará uma denúncia? ?Thomas insistiu, que aceitou a história sem discordar porque libertaria seu amigo de ficar na prisão por algumas horas.
?A quem? ?Wang perguntou antes de soltar uma risada, que parou rapidamente quando sentiu uma leve dor na mandíbula. ?Não há denúncia possível, agente! A menos que queira levar diante de um juiz a felicidade que enfrento desde que consegui me formar em medicina ?respondeu Wang olhando de relance para Mary, quem o observava com os olhos injetados em sangue.
?Nesse caso... ?o outro guarda disse ?não temos nada para fazer aqui, certo?
?Se eu ainda usasse o uniforme ?Philip disse a Thomas ?o escoltaria até sua casa. O estado de felicidade que diz viver pode lhe provocar outro desafortunado incidente e garanto que não gostará, ao futuro doutor ?respondeu com ironia?que sua cabeça sofra um golpe tão forte que esqueça tudo o que tem conseguido até o momento.
Mary suspirou surpresa ao descobrir que lorde Giesler também entendeu as palavras envenenadas de Wang. Assombrada, olhou-o com admiração durante uns instantes e um sentimento estranho brotou do mais profundo de seu ser. Em seguida, sentiu um tremor em seu estômago e concluiu, estupefata e prestes a desmaiar, que era a primeira vez que se orgulhava de conhecer um homem que não fosse seu pai. Não só adorou aquele ato brutal e primitivo de proteção, pensamento que meditaria quando chegasse em sua casa, mas que a encantou descobrir que, debaixo daquela longa mata de cabelos dourados, havia uma mente lúcida e sensata.
?Agradeço a sua preocupação ?Wang apontou com relutância. ?É verdade que um médico não pode tentar duas vezes a sorte... se quiser continuar sendo, claro. ?Sorriu novamente. ?Senhorita Moore... ?se dirigiu a ela com uma leve reverência e sem eliminar o sorriso ?Sinto muito tê-la assustado e espero que este pequeno desentendimento não a impeça de comparecer na próxima sexta-feira à assembleia.
?Claro que assistirei! ?Mary respondeu furiosa. ?Como bem afirmou, sou inocente e tem sido sua falta de jeito, uma condição que deve estudar se quiser se tornar um bom médico, a causa desse alvoroço.
?Giesler? ?Thomas perguntou-lhe para confirmar que ele também deu por encerrado a discussão.
?Sem problemas. Assim que o levarem, acompanharei a senhorita Moore a sua casa ?declarou se aproximando de Mary novamente.
?Uma vez que este assunto está esclarecido e resolvido, desejo a ambos um bom dia ?concluiu Thomas enquanto apertava de novo a mão de seu amigo e se despedia de Mary com um leve movimento de cabeça. Então ficou ao lado de Wang e, sob o olhar atento daquela multidão silenciosa, o acompanhou pela rua junto com seu parceiro.
CONTINUA
Capítulo IX
Mary sorriu quando Shals apareceu com a quarta xícara de café. Era a primeira vez que ela se sentia admirada e amada. Portanto, em nenhum momento disse algo que pudesse machucá-los, embora quisesse repreender mais de um por resmungar como uma criança pequena. Para ser honesta consigo mesma, ela começou a se sentir confortável com a atenção incontável que lhe mostravam.
A cozinheira, quando a Sra. Reform anunciou que, devido à hora, eles teriam que almoçar lá, lhe perguntou qual prato era o favorito dela, qual bolo ela queria e ordenou a um lacaio que pegasse o melhor vinho que lorde Giesler mantinha na adega. Uma das donzelas não deixou de elogiar a grande habilidade que suas mãos possuíam quando espalhou um creme sobre as fendas de seus antebraços. Para que deixassem de elogiá-la, disse que sua irmã Elisabeth havia feito a pomada com as flores que ela cultivava em sua estufa e contou, com orgulho sincero, as inúmeras qualidades que Eli possuía para criar novas flores e pomadas curativas. Quando chegou a vez do cocheiro, ele sorriu para ela. Então ele explicou que tinha um leve desconforto na garganta. Depois de inspecionar essa área, ela indicou que deveria tomar infusões com mel e que precisava abandonar o hábito absurdo de fumar. Logicamente, a segunda ordem não agradou o lacaio gentil que, depois de ouvi-la, enrugou a testa. No entanto, não respondeu. Fez uma leve reverência, como se fosse uma dama, e se foi. Mary temia que, quando saísse, aliviaria sua raiva com outro cigarro.
Valeria, depois de voltar da cozinha pela quarta vez, sentou-se ao lado dela e observou com expectativa o que estava fazendo. Ela a acompanhou em suas gargalhadas, apoiou sua repreensão e garantiu que todos seguiriam suas ordens.
?Prometi a você que não visitaria meus filhos, mas acho que essa opção foi pior. ?A senhora Reform comentou quando as duas ficaram sozinhas na sala, onde Mary decidiu acomodar suas consultas repentinas.
?Não precisa se desculpar pelo que aconteceu, garanto que foi a melhor coisa que aconteceu comigo em cinco dias ?comentou antes de pegar a xícara. Ela tomou um gole leve e fechou os olhos para apreciar o sabor delicioso.
?Juro que não sabia de nada e que tudo isso me surpreendeu tanto quanto você Valeria insistiu.
?Shals disse ao meu pai que, depois do que fiz com lorde Giesler, ninguém nesta casa procuraria outro médico para vê-los e, como vi, não mentiu. ?disse sorrindo e curiosamente feliz.
?Shals é um bom homem... ?Valeria refletiu. ?E teve muita paciência com meu irmão ?acrescentou.
?Não ficará com raiva pelo que fiz, certo? ?Mary de repente soltou, depositando a xícara na mesa.
?Quem? Meu irmão? ?Mary assentiu. ?Não, claro que não! Philip é incapaz de ser cruel com as pessoas que trabalham para ele! Ao contrário! Se não acredita em mim, pode perguntar a eles. ?Diante do beicinho de irritação que Mary fez, ela continuou: ?Não sei o que aconteceu entre vocês dois, mas tenho certeza que não foi agradável. De qualquer forma, eu gostaria que desse a ele uma chance para mudar sua opinião sobre ele. ?Pegou sua xícara e tomou lentamente, sem desviar o olhar da jovem. Ela parecia estar reconsiderando suas palavras. Mas, pela maneira como franzia a testa, a esperança de que esquecesse qualquer coisa negativa se dissipou. ?Como disse na noite em que nos conhecemos, meus irmãos e eu crescemos em Brink Lane. Nossos pais, depois de deixarem a Alemanha, se estabeleceram lá e sobrevivemos com o pouco que obtinham dos trabalhos que lhes confiavam ?começou a narrar com o objetivo de amolecer aquele coração duro.
?Deve ter sido muito difícil para seu pai se adaptar a uma vida de necessidades depois de ter nascido e criado como um barão ?Mary declarou, tentando não lhe causar muito dano diante da lembrança.
?Estava muito apaixonado pela minha mãe e isso era a única coisa que precisava até que morreu ?suspirou triste. ?Te contei que morreu em seus braços e que minha mãe não quis se afastar dele, pois acreditava que, a qualquer momento, acordaria?
E uma emoção estranha para Mary oprimiu-lhe o peito.
?Se amavam muito? ?Perguntou perplexa.
?Eu nunca vi um casamento que se amassem tanto, e isso que eu daria minha vida por Trevor. Onde quer que estejam, certamente nada e ninguém poderá separar esse amor intenso e verdadeiro.
E essa era outra razão pela qual nunca se apaixonaria. Ela, por decreto da sociedade, teria que ocupar um segundo lugar no casamento. Seria obrigada a deixar tudo o que amava para atender às demandas de seu marido. Tal responsabilidade, como sempre havia imaginado, a transformaria em uma desgraçada. Procuraria uma maneira de não ter filhos, para que eles não fossem os reflexos de sua tristeza. Não. Absolutamente, ela não se casaria jamais. Mesmo depois de sua mãe ter sofrido mil apoplexias quando presumiu que sua segunda filha tinha decidido ser uma solteirona.
?Como conseguiu superar sua morte? ?Disse depois de afastar rapidamente suas próprias suposições.
?Não superou ?Valeria respondeu se levantando da cadeira. ?Minha mãe morreu logo depois.
?Que doença tinha? ?Mary insistiu, também se levantando da cadeira.
?Tristeza. Uma que nenhum médico pode curar com medicamentos ou operações.
?Sinto muito... ?murmurou envergonhada.
?Não sinta, eu parei de fazer isso há muitos anos. Ela queria estar com ele, queria ficar ao seu lado e lutou até que conseguiu.
?Como sobreviveram? ?Perguntou e, em seguida, se arrependeu de fazê-lo.
Não estava ciente da dor que Valeria mostrava em seu rosto? Por que insistia? Estava interessada em saber que vida lorde Giesler teve no passado? Não podia imaginá-lo mendigando nas ruas! Era tão... e se mostrava com tanto... Impossível!
?Ainda estou me perguntando. Talvez eles se tornaram nossos anjos da guarda e fizeram tudo o que puderam para que seus filhos vivessem, ou talvez o destino teve piedade de três pobres órfãos. ?Ela deu de ombros e, apesar da tristeza que sentia quando se lembrava daqueles anos, esboçou um sorriso. ?Quem sabe o que a vida nos reserva, Mary? Hoje pensa uma coisa, amanhã surge outra e, quando abre os olhos no terceiro dia, decide algo que não pensava antes.
?Bem, nisto tem razão. No entanto, tenho que lhe dizer que não há dia em que eu acorde e confirme um pensamento ?comentou, finalmente esboçando um grande sorriso.
?Qual? ?Valeria quis saber enquanto caminhavam em direção à porta.
Estava na hora de Mary visitar seu irmão. Se não estava enganada logo começaria a chamar Shals para perguntar se tinha notícias dela. Como agiria ao vê-la? Ele ficaria perplexo? Pensaria que estava vivendo um sonho? O que quer que fosse, apenas esperava que se lembrasse de que sua amada irmã a levara até ele e que a questão do baronato ainda estava pendente.
?Quer saber qual é a única ideia que consolidei ao longo dos anos? ?Mary respondeu com diversão.
?Sim.
?O de não procurar um marido. Nenhum homem será bom o suficiente para...
Não terminou sua estudada e perfeita exposição, pois, ao sair no corredor, observou que Shals subia e descia indeciso as escadas.
?Shals? ?Ela perguntou andando com firmeza em direção ao homem. ?O que aconteceu?
E a resposta foi dada pela voz de um Titã mal-humorado.
?Maldito seja! Ficaram surdos? ?Ouviu tão claramente que parecia que lorde Giesler estava ao seu lado.
?É um asno! Mas que modos são esses? ?Com raiva, arregaçou as mangas do vestido e subiu as escadas. ?Darei a ele a bronca que merece! Como pode ser tão insolente?
?Senhora... Faça algo! ?Shals pediu suplicando a Valeria. ?Não pode aparecer assim! Vai matá-lo!
?Seus planos e os meus não são os mesmos? ?Valeria perguntou com um sorriso de orelha a orelha.
?Senhora... não sei a que se refere? ?O mordomo abaixou ligeiramente a cabeça.
?Shals... você não tem por que se envergonhar. Eu li em seus olhos quando você a viu chegar. Você, tal como eu, quer que a Srta. Moore repare no meu irmão, certo?
?Senhora, tenha certeza que sim. Mas não acho que goste muito da ideia que tem a senhorita Moore agora mesmo sobre... reparar no meu senhor ?comentou com medo.
?O que você aposta que o deixa tão manso quanto um cordeirinho?
?Jamais apostarei com a esposa do antigo dono de um clube! ?Shals exclamou com aparente raiva.
?Porque sabe que perderia... certo??Insistiu, estreitando os olhos.
?Até os cílios, senhora Reform! Com você, perderia até os cílios! ?reiterou antes de seguir para a cozinha.
Valeria olhou para o primeiro andar. Mary já havia se virado para o corredor. Temia que a vida entediante de seu irmão cessasse no momento em que ela abrisse a porta e... que coincidência inoportuna que Mary o visitasse justamente quando todos tinham tarefas importantes a fazer! Pena que eles não pudessem estar presentes! Que pouco decoro! Uma mulher solteira ficar dentro do quarto de um homem... nu! O que pensariam da hospitalidade dos Giesler?
Sorriu de orelha a orelha, apertou os punhos em sinal de vitória e virou-se para a cozinha.
***
Todos os palavrões que decidiu soltar quando abrisse a porta desapareceram instantaneamente. Mary soltou abruptamente o ar que continha seus pulmões e fechou a boca com força. Ficou imóvel, paralisada da cabeça aos pés quando o viu em pé, de costas para ela. O quarto estava iluminado, porque alguma donzela abriu as cortinas e as janelas, permitindo-lhe observar claramente o quarto. Uma brisa suave, produzida pela corrente entre a porta e a janela, a recebeu assim que chegou. Mas ela não prestou atenção em como as belas cortinas se moviam, ou como a luz do sol refletia no espelho colocado em uma cômoda grande, ou se os móveis eram escuros, foscos ou devorados por cupins. Seus olhos focaram apenas nele, fazendo com que uma voz em sua cabeça evocasse a palavra perigo. Tudo o que tinha pensado gritar-lhe enquanto chegava desapareceu instantaneamente. Que palavras tinha escolhido? Que insultos lhe ocorreram? Nada. Ela não se lembrava de nada... No profundo suspiro que deu logo que o viu, a mulher enfurecida desapareceu, a pessoa que tinha infinitos palavrões mentais e, e em seu lugar se acomodou uma mulher que não podia afastar os olhos de um homem por sentir... desejo. Seu coração acelerou tanto que podia sair do peito, sem ter que usar um bisturi para abri-lo. Um calor raro subiu do centro das pernas para as bochechas, transformando-as em duas chamas de fogo. Respirou fundo para aplacar aquela emoção incomum. Não conseguiu. Seu batimento cardíaco ainda estava acelerado, suas bochechas continuavam acesas e a leve dor abdominal, que lembrava a que sofria toda vez que ia dormir sem janta, ficou mais torturante. Ela o comparou com o chefe de uma tribo da pré-história? Bem, essa ideia ainda era verdadeira. Concluiu que se tivesse vivido na era grega, lorde Giesler teria sido o muso de inúmeros escultores? Bem, isso também seria verdade. Mesmo que não quisesse reconhecê-lo, embora negasse essa ideia pelo resto da vida, morreria sabendo que esse homem era o único no mundo que lhe causava algum interesse pecaminoso. Que mulher seria incapaz de admitir que não sente atração por esse corpo? Era um espécime perfeito: suas pernas eram fortes e longas, assim como seus braços e ombros. Ele tinha uma cintura estreita, como os quadris. Que, felizmente para ela, permaneceram escondidos sob os calções. Disse que era perigoso? Bem, confirmava. Esse homem emanava perigo, não para os outros, mas apenas para ela, porque a atração por ele se tornava mais intensa, menos suportável. Deu um pequeno passo entrando no quarto, rezando pela primeira vez em sua vida ao Deus em que todos acreditavam, para que se virasse e quebrasse seu mutismo absurdo, seu encantamento, o feitiço... Mas ele não fez isso. Somente quando percebeu que se inclinava um pouco para a frente e colocava as mãos no curativo em volta da cintura, como se fosse uma faixa bonita, aquele bom senso, que saíra de sua cabeça, voltou a avisá-la de que o lorde estava prestes a realizar o maior disparate do mundo. Ela franziu a testa, como havia feito durante a subida nas escadas e na pequena corrida pelo corredor, e finalmente ela pôde gritar:
?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa.
?Mary? ?Giesler perguntou atordoado quando se virou muito lentamente em sua direção.
Mary engoliu em seco enquanto contemplava aquele rosto masculino. Ele estava sorrindo. Sim, seus lábios esboçaram o sorriso mais maravilhoso do mundo e, embora nunca tenha imaginado que a receberia com entusiasmo, porque ninguém no mundo, exceto sua família, a recebia com amor, ele estava fazendo isso. Havia visto alguma vez uma boca tão bonita, tão gloriosa? E para sua perdição e deleite, havia descoberto a suavidade daqueles lábios...
?Senhorita Moore.?O corrigiu, adotando a postura de uma mulher fria. ?Lembro-lhe que não deve me tratar com tanta familiaridade, lorde Giesler ?Acrescentou andando altivamente em direção aos pés da cama. Ela colocou as duas mãos na cintura e olhou para ele como se quisesse lhe arrancar os olhos. ?Que diabos está fazendo? Que parte de... “não deve se mexer”, não entendeu? Por acaso ficou surdo? Talvez seja por isso que pensa que seus fiéis funcionários estão ?garantiu com firmeza.
?Mary... ?sussurrou repleto de felicidade, como se ao seu lado estivesse um anjo iluminado por uma luz divina, em vez de uma mulher que o ameaçara lhe dar outro grande tapa. ?O que faz aqui? Como você está?
?Definitivamente... está surdo! ?Explodiu, revirando os olhos. ?Explodiu, revirando os olhos. Disse para não me chamar pelo meu nome e não preciso que se preocupe comigo, é você quem deve permanecer deitado na cama.
?Pretendia... ?Philip começou a dizer enquanto tentava se sentar novamente, um ato que o fez rosnar de dor.
?Maldição! ?Exclamou Mary indo em sua direção o mais rápido possível.
Sem pensar duas vezes, segurou os braços de Philip com força e o ajudou a se sentar o mais devagar possível. Depois que ele conseguiu, levantou as pernas e as estendeu no colchão. Quando se virou para ele, para gritar com ele até ficar sem voz, ficou sem palavras novamente, pois descobriu que os olhos azuis do lorde brilhavam, como se os raios do sol que passavam pela janela os impactassem neles. Seu rosto, recém barbeado, o tornava mais atraente, como se fosse possível, e seu cabelo não era mais escuro, mas brilhante e... lindo. Desviou o olhar quando uma rara dor no estômago a trouxe de volta ao mundo frívolo da sensatez. Não devia se deixar levar por atrações absurdas, nem por deslumbramentos miseráveis. Era uma Moore da cabeça aos pés e nela não podia surgir algo tão absurdo quanto o desejo por um homem!
?Segundo entendi, sua melhora é notória. Quer que todos os avanços que teve durante estes cinco dias retrocedam por tentar caminhar sem ajuda? ?Comentou com um tom menos rude enquanto lutava para acomodar as pernas que já estavam bem colocadas.
Aquilo que cheirava era loção de barbear ou perfume? Estava prestes a fechar os olhos e inspirar profundamente, mas a sensatez agiu novamente. Ela se afastou um pouco e, com as pontas dos dedos, pegou a parte de baixo do lençol para estendê-lo até cobrir o queixo. Quanto menos pudesse observar, menos tentação sentiria. Porque aquele corpo fazia seu sangue ferver, pensar em coisas impuras e, acima de tudo, a fazia perder a cabeça. Pelo menos, quando sua mãe a repreendesse por se colocar em outra situação comprometedora, podia se defender dizendo que ela o havia coberto e que ele estava usando calções que escondia seus atributos masculinos.
?Pensei que tinha perdido o interesse em mim ?Philip apontou em uma voz queixosa enquanto afastava o lençol.
Queria sufocá-lo? Porque teve essa impressão ao ver como tentava cobri-lo até o pescoço. Ou talvez houvesse outro motivo menos... sinistro? Suportou uma risada repentina e, muito lentamente, se descobriu até a cintura, exibindo a imagem completa de seu peito robusto. Queria descobrir o que havia se perguntado tantas vezes. Mas o leve sorriso, que foi incapaz de esboçar, se dissipou quando viu que ela estava voltando para o pé da cama e ainda demonstrava repulsa. Tão desagradável estava?
?Deixei-o em boas mãos, milorde. Meu pai, caso não se lembre, tem a habilidade de curar pessoas ?respondeu.
?Mas você me operou e, segundo entendi, lutou contra todos aqueles que se opuseram para não me deixar morrer ?contestou.
?Sou... como diria? Uma pessoa de bom coração? ?Respondeu, colocando as mãos no dossel de madeira.
Por que não conseguia parar de olhar para os lábios dele? Sua parte insensata queria senti-los novamente? Quantas vezes relembrou aquele momento? Um milhão? E, quantas vezes disse a si mesma, que o tapa havia sido a melhor coisa que tinha feito em sua vida? Uma, talvez? No caso hipotético de que estivesse pensado, pois não tinha mais certeza se o fez durante o confinamento forçado. Contou teias de aranha ou enumerou todos os possíveis defeitos de lorde Giesler? E por que sua mente não parava de imaginar como teria sido um beijo mais intenso? Essa pergunta aumentou muito seu desejo carnal... Maldita fosse, a parte primitiva do ser humano! Haviam construído grandes edifícios, navios para viajar de um continente a outro, chapéus horríveis com penas de pavão, mas... haviam conseguido fazer desaparecer o instinto carnal absurdo com o qual todo ser humano nascia? Não! As pessoas ainda eram primatas movidos por uma necessidade sexual absurda...
?O que tem, Mary ?enfatizou seu nome, embora ela não gostasse de ouvi-lo dizer. ?É uma habilidade mágica. Agradeço a Deus todos os dias pelo fato de aparecer e ter decidido salvar minha vida. ?Ele declarou com toda a sinceridade que podia oferecer naquele momento, porque sua mente procurava palavras que a deixassem orgulhosa enquanto um desejo masculino lutava para tirá-lo da cama, pegá-la nos braços, apoiá-la contra a parede e beijá-la com tanta paixão que os dois ficariam sem respiração.
?Não... Não deve... me dizer essas coisas, milorde.
Gaguejava? Ela?! Por que diabos fazia isso? Os servos não haviam oferecido milhares de elogios? Não começava a se acostumar com esses elogios? Então... por que ela se sentiu tão intimidada ao ouvir isso dele? E, naquele momento, toda a força, toda a raiva e toda a firmeza que sentia sempre que corria perigo, desapareceu como a neblina quando o sol aparece. Tinha que sair de lá o mais rápido possível. Até o ar parecia mais denso que nem conseguia respirar! Havia prometido a Valeria que iria visitá-lo, pois faria isso. Confirmaria o bom trabalho de seu pai e sairia mais rápido do que quando entrou.
?É verdade ?Philip garantiu, e não passou despercebido que, pela primeira vez desde que a conhecia, o escudo que protegia a mulher que ele desejava descobrir, desapareceu. ?É uma mulher engenhosa, corajosa e incrível. Uma mulher a quem devo minha vida ?garantiu solenemente. ?Estou em dívida com você. Pode me pedir o que quiser que encontrarei uma maneira de consegui-lo.
?Peço a lua, lorde Giesler ?disse.
Se recuperou o mais rápido que pôde para não mostrar uma imagem que estava escondendo desde que descobriu a maldade das pessoas. Ela não sofreria como Anne ou Elizabeth. Ela era diferente!
?Prometo que vou alcançá-la... ?Ao tentar se reclinar, outra cãibra terrível o nocauteou. Ele jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e respirou fundo.
?Relaxe, por favor ?lhe pediu em voz baixa quando veio até ele. ?Não deve fazer esforços desnecessários ?acrescentou, enquanto colocava as duas mãos sobre o curativo e apalpava lentamente para confirmar que não havia umidade.
?Me pediu a Lua, Mary Moore Arany, e eu juro que te darei ?comentou, sem abrir os olhos. Não queria assustá-la, não queria que se afastasse do seu lado e se para isso tivesse que ficar doente a vida toda, que Deus o concedesse!
?Estou satisfeita em poder comprar as publicações médicas que o Sr. Slow terá guardado para mim ?sussurrou, enquanto tomava a decisão de remover o curativo e confirmar que a ferida ainda estava fechada.
Olhou em volta e franziu o cenho. Onde diabos estava sua maleta? Era mais fácil para ela cortá-lo com a tesoura do que desembaraçá-lo gradualmente porque, dessa forma, ela precisaria tocá-lo, precisaria se aproximar o suficiente para poder inspirar aquele cheiro muito atraente para ela e que... Não havia lido em algum volume científico que o ser humano descobria a atração por uma pessoa simplesmente pelo cheiro? Bem, se essa teoria era verdadeira, tinha que concluir que não era ódio que sentia por lorde Giesler, mas... Algo mais próprio das Arany do que dos Moore! Irritada consigo mesma, desamarrou o nó que seu pai havia feito com as pontas do curativo e desenrolou-o com os olhos fechados. Enquanto não olhasse, a situação estaria sob controle...
?Por que não saiu de sua casa durante esses cinco dias?
A pergunta fez Mary abrir os olhos e olhá-lo ferozmente. Ele queria rir dela? Queria ridicularizá-la? Porque se lhe dissesse o motivo, nenhuma humilhação passada seria tão imensa quanto a que ela sofreria no presente. No entanto, ao descobrir que ele não a olhava, que mantinha seus cílios louros preciosos e longos unidos, relaxou e continuou a tarefa, envolvendo-se novamente em um estado de bem-estar ilógico para ela.
?Esteve doente? ?Insistiu em descobrir.
?Não ?respondeu.
?Então? ?Entreabriu o olho esquerdo e sorriu ao observar a raiva que exibia seu rosto. Não entendia muito bem se era devido à pergunta ou à repulsa diante da sua proximidade. Se fosse a segunda opção, ele estava morto. Porque, ao contrário de Mary, ele estava voando sem asas e pisando nas nuvens sem atravessa-las. Como o resto da humanidade definiria uma emoção semelhante?
?Estava de castigo ?finalmente declarou. Fixou os olhos no peito de Giesler, tentando definir se sua respiração ficaria agitada ao segurar uma risada. No entanto, permaneceu sereno, calmo e isso a incentivou a continuar: ?Minha mãe não achou engraçado que sua segunda filha, quem ela queria ver casada um dia, operasse um homem solteiro enquanto ele estava nu.
Ele ainda estava calmo, como se suas palavras não o afetassem. Ele não soltaria uma risada ou zombaria disso? Apoiaria a decisão de sua mãe? No entanto, quando colocou sua mão direita sobre o lado, para realizar um leve puxão e tirar o resto do curativo, observou que estava fingindo essa tranquilidade, já que seu batimento cardíaco era tão rápido quanto o dela. O que essa alteração significava? Concordava com o castigo ou se sentia culpado?
?Explicou que me deixou dormindo, que sua raiva não tinha raciocínio lógico? ?Ele perguntou, suportando estoicamente a dor que apareceu em seu peito quando descobriu que Mary havia sido injustamente punida por causa dele.
?Sim ?respondeu pouco antes de se ajoelhar para poder observar, de uma posição mais próxima, a ferida.
Como o pai lhe explicou, a sutura foi excelente. Ele mal teria uma linha branca fina no futuro. Sem dúvida, essa costura, apesar dos nervos que sofreu, era perfeita, como se estivesse costurado a vida toda. De repente, ela começou a rir enquanto deduzia a razão pela qual sua mãe havia levado o bastidor, os fios e o enorme tecido para o seu quarto.
?O que é tão engraçado, Mary? ?Philip estalou movendo-se suavemente para observá-la melhor.
?É incrível! ?Exclamou, incapaz de parar de rir. ?Só ela pode inventar uma tolice semelhante!
Intrigado, Philip queria se virar para Mary, mas ela o impediu, colocando novamente uma de suas mãos no centro daquele peito masculino e largo.
?Não se mexa, milorde. Agora é muito perigoso ?ela pediu, com uma voz suave.
?Então me responda ?ele implorou, num tom tão suplicante que Mary sentiu o desejo de abandonar toda a frieza que ela havia decidido mostrar, sentar ao lado dele e conversar como se fossem dois bons amigos.
?Já lhe disse que estive de castigo... ?começou a dizer.
?E que o motivo foi injusto porque, apesar de me ver nu, eu estava inconsciente e não era perigoso para você ?a interrompeu.
?Você não é perigoso, lorde Giesler, mas arrogante ?declarou, com um sorriso de orelha a orelha.
?Bem! Acaba de destroçar meu ego, Mary Moore Arany! ?Ele exclamou, colocando as mãos no peito. Ele a tocou. Havia chegado perto o suficiente daquela mão macia para roçar seus dedos suaves. Mas, para sua decepção, ela a afastou rapidamente. ?Tantos anos pensando que sou irresistível para as mulheres e agora acontece que alguém me garante que não sou tão sedutor quanto acreditei durante todo esse tempo ?acrescentou ironicamente.
?Vi muitos homens que...
?Quantos? ?Perguntou, arregalando os olhos e se levantando.
?Não vai me ouvir? ?Respondeu assim que jogou o curativo em algum canto do quarto. Se levantou do chão e colocou as duas mãos no peito de Giesler, para forçá-lo a se reclinar novamente na cama.
«Maldita insistência!» Mary pensou ao sentir como suas mãos aumentavam de temperatura, ao perceber a aspereza daquele pelo masculino e perceber que a respiração de lorde Giesler estava alterada, como se ele tivesse corrido atrás de um galgo.
?Quantos homens você viu nu, Mary Moore Arany? ?Insistiu, entrelaçando os dedos de cada mão nos pulsos dela.
?Isso importa para você, lorde Giesler? ?Se aventurou a dizer.
De repente, ela sentiu que os polegares do homem acariciavam aquela parte de sua pele, queimando-a sem compaixão. Queria se afastar, queria se distanciar, precisava evocar seu bom senso! Mas... não podia. Ele arrebatou toda a força que teve até agora, deixando-a vulnerável, fraca.
?Sim, me importa ?Philip sussurrou enquanto fixava os olhos naqueles belos lábios vermelhos.
?Por quê? ?Mary insistiu em uma voz que não podia reconhecer como sua.
?Porque quero saber quantos homens duelarei em breve ?afirmou antes de agarrar com força os pulsos e estendê-los para ambos os lados, fazendo com que ela caísse de bruços sobre ele. Com tão bom acerto que aquela preciosa boca impactou sobre a sua.
Antes que Mary tivesse tempo suficiente para reagir, Philips soltou os pulsos. Ele colocou uma mão atrás da nuca e a outra nas costas dela, imobilizando-a. Seus maravilhosos olhos azuis a observavam incrédulo e parecia que saltariam de suas orbitas. Ele hesitou. Por um segundo, duvidou da decisão que havia tomado, mas imediatamente a apagou da sua cabeça. A amava, desejava, precisava e queria que ela fosse... sua. Lentamente, ele pressionou seus lábios nos dela, pedindo-lhe para separá-los, mas Mary não entendeu bem o propósito que se havia definido. Ninguém a beijou com paixão? Mary foi sincera? Que Deus se compadecesse de sua alma perdida porque iria desfrutar muito ensinando-lhe o que significava a palavra prazer!
Atordoada não era a palavra que a definia exatamente. Nem mesmo outra poderia descrevê-la perfeitamente! Sua boca pressionava a dele, notava o calor do ar que fazia ao respirar tocar suas bochechas e percebia, com incrível precisão, como os batimentos de seu coração e os do lorde palpitavam juntos. Tentou se separar quando suas mãos ficaram livres, mas não conseguiu se mexer. Aquele perverso colocou uma de suas grandes mãos na nuca e a outra nas costas, impedindo-a de fazer qualquer movimento para se distanciar. Em pânico, ela abriu os olhos e tentou gritar, no entanto, algo aconteceu que a deixou tão confusa que a silenciou. Esse algo tinha um nome: língua. A ponta desse órgão muscular masculino tocou seus lábios, incentivando-a a separá-los. O que se propunha? O que devia fazer? Poderia considerar esse momento como um teste médico? Oh sim! Claro! E o adicionaria a qualquer manual sobre as interações sexuais entre um homem e uma mulher! Apertou os lábios com força, certificando-se de não deixar a língua ousada e descarada passar.
No entanto, essa ideia firme foi suprimida de sua mente quando as pontas dos dedos, colocadas em seu pescoço, começaram a acariciá-la lentamente. Encantada por essas carícias suaves, seu corpo relaxou e mergulhou em um improvável estado de bem-estar. Era consciente de como seus pelos se arrepiavam, como o calor nascido em seu sexo aumentava e como todo o seu ser ansiava por algo que ela nunca havia provado. Pela primeira vez, ela estava em um estado de fluidez e despreocupação, como se aquele homem a mantivesse protegida, segura e não existissem problemas a enfrentar. Havia apenas eles... dois. Lorde Giesler aproveitou esse momento de embriaguez erótico para invadir o interior da boca dela. Aquela língua masculina a possuiu, a acariciou com anseio, com desejo e com tanta paixão que finalmente fechou os olhos e se deixou levar. Nunca imaginou que uma coisa tão ridícula pudesse provocar algo tão grandioso! Agora entendia a razão pela qual Anne havia sucumbido com tanta facilidade. Se um homem a tivesse beijado dessa maneira, nada e ninguém a impediria de acabar consumindo a paixão iniciada. De repente, ouviu um rugido brotar da garganta masculina. Quando tentou se concentrar no motivo pelo qual fez esse som, outro saiu ainda mais alto. Se lorde Giesler tivesse sido o chefe de uma tribo, esse som poderia defini-lo como um chamado de posse, territorialidade, orgulho e glória, tornando-a sua única companheira de vida. Mas... Isso devia ser uma tolice, certo? Ele não podia reivindicá-la como sua, não havia nada científico que pudesse explicar tal suposição.
No entanto, mesmo que tudo fosse imaginário, era bonito deixar seu corpo relaxar e ser enganado acreditando que sua casa estava nos braços daquele homem. Um lar fictício, é claro, pois ela nunca pensou em morar naquele corpo masculino. Com coragem e vontade de experimentar, ela imitou os movimentos da pecaminosa língua viril até que ambas se encontraram. O sabor do café, que havia tomado antes de subir, se expandiu pelas bocas. Era como se estivesse tomando novamente um gole daquele líquido delicioso adoçado com o sabor rico dele. Foi nesse momento que admitiu com resignação que nunca mais tomaria um café tão gostoso e excitante. Os beijos eram sempre assim? Davam tanto prazer as duas pessoas? Porque não queria parar, era mais, doía ter que fazê-lo, mas a necessidade de respirar se tornou inegável. Quando abriu os olhos, notou que as pupilas de lorde Giesler haviam se dilatado e que suas íris estavam escuras, expressando um sentimento muito diferente da indiferença...
No momento em que sua mente começou a enumerar as possíveis razões pelas quais ele a olhava com tanto ardor, ele pegou seu rosto com as duas mãos e aproximou-o o suficiente para notar novamente o calor da respiração e a suavidade dos seus lábios.
?Vou te dar a lua, Mary ?ele declarou antes de beijá-la novamente e repetir um beijo atrevido, ousado, indecente e maravilhoso.
Mas tudo o que é belo não dura para sempre...
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou Shals batendo à porta com insistência.
?Não! ?Ele respondeu.
?Sim! ?Ela disse, se afastando rapidamente do seu lado.
Capítulo X
Ele devia lealdade ao seu senhor...
Desde que o contratou, catorze anos atrás, ele nunca o deixou indefeso e nessa ocasião também não o faria. Ele saiu da biblioteca, onde havia se escondido os últimos dez minutos para evitar encontrar a Sra. Reform e, depois de confirmar que não havia ninguém, caminhou rapidamente pelo corredor. Ele carregava a maleta da senhorita Moore na mão direita, essa era a desculpa que daria quando aparecesse no quarto. Depois de confirmar o estado de seu senhor, a agonia que estava sofrendo desde que a jovem subiu as escadas, pronta para colocar lorde Giesler em seu lugar, desapareceu. Com a agilidade de um ladrão habilidoso e um sorriso de satisfação que cruzava seu velho rosto, Shals começou a subir as escadas, fazendo o menor ruído possível. No entanto, seus olhos se arregalaram quando ouviu alguém bater na porta. Ele esperou o tempo suficiente, plantado lá, para confirmar que, exceto ele, ninguém mais ouvira as batidas insistentes da aldrava na madeira. Ele bufou, pois seu dever como mordomo principal o acusava de não cumprir a tarefa que lhe fora confiada. Pôs a maleta no degrau e recuou tudo o que lhe custara tanto. Parou em frente à entrada, esticou o colete de seu traje e mostrando a severidade própria do homem de confiança do lorde, abriu.
?Shals! Ainda bem que me ouviu! Estou há mais de cinco minutos batendo na porta! ?Martin disse enquanto tirava o casaco para oferecer a ele.
?Sinto muito, senhor, mas hoje temos a casa um tanto agitada ?comentou como um pedido de desculpas.
?Philip tem piorado? ?Ele perguntou inquieto olhando para o andar de cima enquanto tirava as luvas.
?Não, para alívio de todos nós, nosso senhor está muito bem ?explicou depois de pendurar o casaco de Martin no cabide e colocar as luvas na gaveta da cômoda da entrada. ?A causa da agitação se deve a...
?Martín! ?Valeria gritou quando apareceu no corredor. ?Que alegria vê-lo novamente! Desde quando está em Londres? Por que não veio me visitar? Esqueceu que tem seis sobrinhos esperando a presença de seu tio favorito? ?Acrescentou antes de envolvê-lo em um forte abraço maternal.
?Cheguei há alguns dias, peço desculpas por não ter aparecido em sua casa neste momento, mas tinha um assunto importante para resolver e não podia atrasá-lo ?desculpou-se, esboçando o sorriso mais terno e mais doce que um irmão que amava sua irmã poderia mostrar.
?Que assunto? ?Valeria entrelaçou seu braço esquerdo no direito de Martin.
?Falaremos depois disso, se não se importar. Eu gostaria muito que Philip estivesse presente quando oficializasse.
?Vai casar? ?Perguntou erguendo as sobrancelhas. ?Você conheceu uma mulher?
?Realmente pensa que sou incapaz de tirar os olhos dos livros? ?Perguntou com aversão.
?Eu não disse isso! Sei que, quando fizer isso, levantar seus olhos bonitos dos livros, encontrará a mulher que espera e nesse dia...
Shals aproveitou a distração dos irmãos para subir as escadas novamente. Teria que acabar com a agonia que sofria por não saber o que estava acontecendo no quarto do lorde. Ele precisava confirmar que a Srta. Moore não tinha gritado com ele, cuspido ou... matado. Daí que permanecessem em silêncio absoluto. Ele pegou a maleta e subiu os últimos degraus. Caminhou pelo corredor o mais rápido que seus pés o permitiam e, quando alcançou a porta do quarto do senhor que estava aberta, ficou surpreso ao ver a imagem que era oferecida lá dentro. Eles não eram capazes de ver a imagem que mostravam, pois ambos tinham os olhos fechados. Mas ele foi a única testemunha de um milagre. Em silêncio observou-os com tanto afeto que sentiu como seu coração lhe dava uma reviravolta. Seu senhor, o homem que negava o amor, dizendo que só podia trazer tragédias desastrosas ao mundo, aninhava o rosto da senhorita Moore em suas grandes mãos, enquanto as dela repousavam pacificamente em seu peito nu, como era habitual desde que adoeceu. A janela permanecia aberta, talvez Phiona a abriu ao amanhecer, para que o senhor admirasse o belo dia. No entanto, a beleza de fora era mínima se comparado a imagem dos dois. A brisa movia levemente as cortinas, a luz do sol atingia os dois, como se todos aqueles elementos naturais quisessem glorificar um momento tão bonito.
?Vou te dar a lua, Mary ?Lorde Giesler disse à mulher antes de beijá-la.
Ele poderia ter se virado e desaparecido sem ser visto ou ouvido, mas a voz da Sra. Reform indicava que os irmãos de seu senhor estavam indo visitá-lo. Deu um passo à frente, pegou na maçaneta com a ponta dos dedos e fechou a porta até ficar apenas uma pequena abertura. Essa opção seria mais adequada que apresentar-se sem avisar e fazer com que a senhorita Moore se encontrasse em um grande apuro. Seus lábios permaneceriam selados, embora jamais esqueceria o brilho que seu amo mostrou nos olhos ao olhá-la, nem a declaração dessas palavras tão firmes e seguras. Tinha se apaixonado. Finalmente! E de uma mulher que todo o serviço adorava, apesar de ter um comportamento tão áspero quanto a lixa de um ferreiro. Ele olhou para trás para garantir que a visita prematura chegasse ao patamar no primeiro andar. Que lorde Giesler o perdoasse, mas era mais sensato pôr um fim àquele momento romântico do que serem encontrados daquela maneira. Ele agarrou a maleta com força, colocou os nós dos dedos da outra mão na porta e bateu quase sem movê-la do lugar.
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou.
?Não! ?Ele gritou.
?Sim! ?Disse ela.
?Desculpe pela interrupção, excelência ?Shals comentou entrando rapidamente no quarto ?mas presumi que a senhorita Moore precisasse de sua maleta.
?Obrigada, Shals ?a jovem respondeu, depois de alisar as rugas do vestido com as mãos, ela sorriu e estendeu a palma da mão para pegar a maleta. ?Você é muito atencioso ?acrescentou se virando.
Colocou-a sobre a mesa pequena que estava ao seu lado e suspirou. Suas bochechas ainda estavam ardendo, seu coração ainda estava acelerado e suas mãos tremiam. Como foi capaz de enredar os dedos na alça da maleta se não podia controlá-los? Olhou para fora e uma brisa leve acalmou aquele estado de excitação que havia liberado segundos antes. Não podia acreditar no que tinha feito. Não apenas se deixou levar por um beijo, mas também ansiava por mais. Odiou o momento em que escolheu usar um vestido de mangas compridas, porque seus antebraços não podiam tocar o peito masculino, amaldiçoou o momento em que a costureira indicou que o decote era apropriado, porque queria descobrir se lorde Giesler gostaria de ver seu peito, como ela gostava de observar o dele, e estava com raiva de si mesma por não ser capaz de parar aquela situação.
?Milorde, desejo anunciar que seu irmão decidiu visitá-lo esta manhã ?prosseguiu falando o mordomo, que se colocou em frente aos pés da cama. ?E que aparecerá com a senhora Reform em breve...
?De fato, Martin, —disse Valeria, ao entrar no quarto. —A Srta. Moore decidiu visitar nosso irmão e confirmar que ele evolui satisfatoriamente.
Naquele momento, Mary queria pular pela janela e correr sem olhar para trás até chegar em casa, mas tudo o que fez foi respirar fundo, dirigir-se às pessoas que entravam no quarto e mostrar seu melhor sorriso.
?Mary, tenho a grande honra de apresentá-la ao nosso irmão mais novo, Martin Giesler.
Antes que ela pudesse dar um passo em direção a eles, o jovem, que se parecia muito com lorde Giesler, exceto que usava óculos e sua compleição era menos robusta, avançou em direção a ela, pegou uma das mãos e beijou os nós dos dedos.
?Cara Srta. Moore, é um prazer finalmente conhecê-la. Quero agradecer pessoalmente pelo fato de ter salvado a vida de meu irmão. ?Disse num tom gentil.
Com essas palavras muito cordiais e afetuosas, Mary corou, piscou várias vezes e deu um sorriso coquete. Enquanto isso, Philip estendeu a mão direita até encontrar o livro, que tentava ler até decidir se levantar, e pensou em jogá-lo em Martin. Mas ele se conteve. Seu irmão não era um rival para ele, certo?
?A honra e o prazer são meus ?ela respondeu com alguma timidez. Deu um passo atrás para manter distância e agarrou suas mãos.
?Porque motivo? ?Ele retrucou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?É uma grande satisfação para mim que um homem com seu talento me parabenize.
?Com meu talento? ?Martin insistiu, erguendo a sobrancelha direita.
?Sua fama é notória em toda a Inglaterra. Não há ninguém neste país que não tenha lido e admirado sua última publicação. Devo confessar que fiquei surpresa ao ler sua definição e cálculos em uma interseção variável em dois planos curvos. Foi esplêndido, se me permite o elogio, lord...
?Não sou lorde, apenas Martin Giesler ?ele a corrigiu rapidamente. ?É ele quem ostentará, se decidir fazê-lo algum dia ?concluiu?o título de Freiher Von Giesler. No entanto, lhe peço encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal, não acha? ?E sorriu para ela.
?Sendo assim, pode me chamar de Mary, e obrigada pelo elogio. Fico lisonjeada ao descobrir que há um homem neste mundo que não se intimida com o intelecto de uma mulher ?respondeu, acrescentando às suas palavras um sorriso fraco.
?Informava ao meu irmão ?Valeria interveio, que suportou o máximo que pôde a risada que queria explodir quando viu como Philip se contorcia na cama ?que aceitou o convite para almoçar conosco.
?Almoçar? ?Philip se intrometeu. ?Não seria educado ou apropriado, pois o anfitrião desta casa, que paga seus bons funcionários e a comida que colocam na mesa, não pode se comportar como tal devido a sua doença e indisponibilidade ?salientou.
?Oh, Philip! ?Exclamou Valeria com um sorriso fingido e movendo a mão direita com desdém. ?Sempre tão brincalhão! Não se preocupe Mary, não há nenhum problema. Além disso, desfrutaremos da agradável companhia de Martin. Sabe que foi o rapaz mais jovem que contrataram na Universidade? ?Enroscou o braço direito no esquerdo da moça e a fez caminhar em direção à porta. ?Nós já sabíamos que ele se tornaria uma pessoa muito importante, porque quando criança ele sempre pensava e raciocinava como um homem adulto. Em vez disso, Philip... Oh, Deus! Não sabe os problemas que tive que suportar por sua culpa! ?Exclamou novamente com aparente pesar. Quando estava a um passo de fazê-la sair do quarto, parou e olhou para ela. ?A propósito, você terminou? Talvez tenhamos interrompido a consulta e não conseguiu finalizá-la...
?Não se preocupe, tinha acabado de verificar quando apareceram. Só tenho que colocar um novo curativo, mas Shals pode fazer isso durante o dia ?garantiu.
Por nada no mundo, ficaria sozinha com ele novamente! Ela gostou do beijo? Sim! Tinha gostado de ver que havia um homem que a desejava? Sim! Mas aí concluía sua história. Não poderia se deixar levar pela emoção que lorde Giesler lhe causava. Era um homem perigoso para ela, demais para ficar sozinho com ele novamente.
?Que conclusão chegou? ?Valeria insistiu, acelerando o ritmo. ?Acha que logo poderá se levantar e deixar essa maldita cama?
?Conseguirá se permanecer deitado pelo tempo recomendado ?Mary alegou antes de sair de lá sem sequer se despedir com um olhar fugaz.
***
Os dois irmãos ficaram olhando para a porta e só se viraram quando Valeria e Mary desapareceram.
?Milorde ?Shals interveio, que permaneceu escondido em um canto do quarto o tempo todo ?com sua permissão, devo confirmar que o almoço está devidamente preparado. ?Deu um passo para a cama, fez uma rápida reverência e saiu dali antes que...
?Qual é o problema?! ?Martin gritou quando sentiu uma dor terrível no peito, causada pelo impacto de um livro voador inesperado.
?Qual é o problema? Você dirá... o que acontece com você? ?Explodiu. Apoiou os cotovelos sobre o colchão e acabou por se sentar.
?Não sei a que se refere ?disse agachado para pegar o livro que, após a colisão, tinha caído no chão aberto.
?Peço-lhe encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal ?repetiu as palavras que seu irmão usou como se estivesse mastigando a sola de um sapato.
?Isso? ?Ele retrucou, depois de depositar o livro na lareira. ?É considerado educação e respeito por uma mulher inteligente que, felizmente, salvou a vida de um ente querido.
Ele caminhou parando na frente de Philip e se apoiou com o ombro direito em um dossel de madeira. Poderia deixar escapar uma risada enorme? Porque Deus bem sabia que ele queria fazer isso! Se pegasse o espelho, que estava na cômoda, e o colocasse na frente de seu irmão, descobriria que os demônios realmente existiam. Como prometeu a Valeria, ele ofereceu uma atitude receptiva em relação a Mary, para que Philip reagisse. No entanto, admitiu que estava fascinado ao descobrir que ela havia lido sua última publicação.
?Educação e respeito? Você quase voa como se fosse um querubim em sua direção para beijar a mão dela! Beijar a mão dela! ?Repetiu, percebendo como uma estranha acidez queimava seu estômago.
?Não me disse algo sobre não distinguir entre dois bons seios femininos e duas formas de calcular um mesmo resultado? ?Ele comentou, mesmo sabendo que o inferno dividiria a terra em dois e que o próprio Satanás puxaria sua mão para arrancar sua alma. ?Bem, pela primeira vez na vida, tenho que provar que você está certo. A senhorita... Mary parece ter herdado um busto generoso e firme. Embora seu vestido azul não tivesse um decote muito ousado. Apesar de tudo, acho que quando me aproximei para beijar aquela mão doce e macia, nossos peitos se aproximaram o suficiente para calcular suas medidas. Você me pediu para contemplar também a largura dos quadris de uma mulher? Porque eu acreditava que... ?terminou de falar quando um travesseiro voou, das costas de Philip, para impactar seu rosto, fazendo com que seus óculos fossem atirados no meio do quarto. Como diabos ele estava se movendo com tanta agilidade se ainda estava convalescente?
?Não se aproxime dela! Entendido? ?Berrou. ?Ou juro por Deus que essa conversa será a última que temos pelo resto de nossas vidas.
Martin pegou os óculos do chão, colocou-os e olhou para o irmão. Pela primeira vez, uma ameaça a sua pessoa apareceu em seu rosto. Seria conveniente informá-lo de que Valeria havia planejado sua atuação em relação a Mary? E se decidisse se vingar dos dois? Se havia algo inquebrável em Philip, era sua necessidade dar uma lição às pessoas que o desafiavam. Um exemplo claro disso poderia ser assegurado pelo homem que, quando era adolescente, Philip o chamou de trapaceiro em um jogo de cartas que jogou no antigo clube de seu cunhado. Demorou quase quinze anos para encontrá-lo e, depois desse momento, o cavalheiro não conseguiu levantar a aba do chapéu por dois longos meses. De acordo com a versão de seu irmão, o Sr. Manther colidiu com seu ombro duro no momento em que saiu de White´s e, logicamente, não se afastou rapidamente para evitar um impacto inconveniente e doloroso no olho direito. Então, se não desejava usar um chapéu de abas largas por vários meses, era melhor dizer a verdade.
?Essa farsa foi ideia de Valeria ?finalmente confessou.
?O que significa ... esta farsa? ?perguntou estreitando os olhos.
?O de flertar com Mary ?esclareceu.
?Maldita mente perversa! ?Philip exclamou com raiva.
?Não tinha pensado falar com a senhorita Moore, já sabe que não sou muito versado em manter uma conversa agradável com as mulheres, mas Valeria, depois de encontrá-la no corredor, não parou de falar e falar... Me disse que havia deixado vocês algum tempo sozinhos e que assim lhe devia um grande favor. Que precisava da minha ajuda para descobrir se o seu interesse por essa moça era verdadeiro. Imagino que colocou suas esperanças nela para aceitar maldita baronia.
?Típico dela... ?Philip murmurou.
?Juro que minha presença tinha outro objetivo. Queria pedir conselhos sobre um assunto que tenho nas mãos ?Ele disse sem tirar os olhos do irmão. Relaxada a tensão entre ambos, Martin adotou uma postura mais calma: cruzou os braços na frente do peito e os pés à altura dos tornozelos.
?O que você precisa? ?Philip estalou, olhando para ele sem piscar.
A vida poderia dar algo doce e acido ao mesmo tempo? Porque é assim que se sentia. Ela passou de ter nos lábios a doce boca de Mary para a acidez de lutar com seu irmão para consegui-la. Agora, apesar de saber que tudo tinha sido um truque de Valeria, ainda não conseguia sentir novamente a ansiada doçura.
?Um em troca do outro, como quando éramos crianças? ?Observou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?Um em troca de outro ?admitiu enquanto seu corpo relaxava consideravelmente.
?Bom. Eu decidi estabelecer minha nova residência aqui em Londres ?Martin começou a dizer enquanto se aventurava a sentar ao lado de seu irmão. ?Conversei com Lawford Jr. e ele me disse que poderia investir na propriedade dos Bohanm. Como me informou, é um casal bastante antigo e deseja partir à sua casa de campo para desfrutar de um pouco de paz no tempo que lhe resta de vida.
?Sabe quais vizinhos terá? ?Philip estalou, franzindo a testa e olhando para ele... de novo.
?Ainda não vi, então...
?Os Moore! ?Explodiu de novo.
?De verdade? ?Ele perguntou, arregalando os olhos. ?Inferno de coincidência!
?Você não me disse que agiu de acordo com o plano de Valeria? ?Rosnou.
?Juro pela alma dos nossos pais que sim e que não fazia ideia que a família da Mary seria meus novos vizinhos. Só quero um lar tranquilo, onde possa continuar com... ?Ele se levantou, deu as costas para o irmão, caminhou até a varanda e ficou em silêncio.
?Com? ?Philip insistiu.
?Eu deixei o trabalho na Universidade ?ele disse finalmente, sem desviar o olhar do lado de fora.
?O que disse? Por quê? Você ficou louco? Você precisa de mim para isso? Não é capaz de enfrentar a ira de Valeria? Porque ficará com raiva quando descobrir e me culpará de sua decisão ?Philip comentou, mal respirando.
?Não te culpará de nada, porque lhe explicarei que me ofereceram mais uma alternativa... ?«Obrigatório?», pensou Martin. Não, não poderia dizer isso, era vital para o bem-estar da família que ninguém soubesse a verdade.
?Mas? ?Philip insistiu em saber.
?Tranquilo ?Ele respondeu, virando-se para o irmão. ?É verdade que o trabalho que fiz na Universidade foi gratificante, mas mal aproveitei o tempo livre. Anseio por uma casa, anseio por sua companhia, quero me casar, formar uma família e... viver ?lhe garantiu. Embora a verdadeira razão pela qual decidiu se estabelecer não tivesse nada a ver com a vida, mas com a morte, e não de uma pessoa, mas centenas, talvez milhares...
?Quando você pretende realizar seu novo futuro? ?Perguntou intrigado.
?Em uma semana, no máximo ?ele declarou depois de colocar as duas mãos nos bolsos e puxar os painéis frontais da jaqueta azul marinho. —O tempo que leva para Lawford confirmar a compra dessa residência.
?Bem... ?Philip murmurou acariciando uma barba inexistente. ?Embora Valeria fique brava com você por um longo tempo, devo confessar que é a melhor decisão que você tomou até agora. Já era hora de você voltar e decidir procurar uma esposa, que não será Mary, é claro ?Ele apontou examinando o rosto de seu irmão.
?Não será Mary, te garanto isso. ?Sorriu. ?De certa forma, foi responsável por esta decisão. ?Ao ver que seu irmão levantava uma sobrancelha em sinal de pergunta, acrescentou: ?Sofri muito ao pensar que poderia ter morrido. Tenho me perguntado todos estes dias o que teria acontecido se você... ?não terminou a frase, doía muito fazê-lo. ?Tinha pensado oferecer minha carta de demissão quando terminasse o curso, mas a enviei no mesmo dia que Pierre me fez chegar a missiva de Valeria para me informar sobre sua doença. ?Não era bem verdade, ele o escrevera vários meses antes, quando o estrangeiro apareceu em sua antiga casa e lhe disse que tinha menos de seis meses para aceitar a nova posição oferecida a ele. O anúncio da situação de Philip acelerou o processo. ?O tempo é curto e acho que devo aproveitar para viver com as pessoas que amo ?concluiu. Ele voltou para o lado do irmão e sentou-se novamente no canto inferior da cama?. Então, aqui estou eu, esperando um papel para realizar um sonho... ?refletiu. ?Agora é sua vez, irmão. Diga-me que segredo você mantém ?apelou.
?Vou aceitar a maldita baronia ?comentou depois de jogar a cabeça para trás, até tocar na cabeceira de madeira e suspirar.
?De verdade? Tem certeza? Valeria vai chorar de emoção! Está a muitos anos esperando você tomar essa decisão! ?Comentou feliz.
?Mas somente se eu puder me casar com ela ?disse uma vez que os olhos de ambos encontraram.
?Então... você gosta??Discorreu Martin acomodando os pés sobre a cama, como costumavam fazer quando eram crianças.
?Estou apaixonado, Martin. Não sei quando, nem como, nem por que aconteceu, mas concluí que não poderia viver sem ela. ?Ele admitiu, com um sorriso nos lábios.
?Eu tenho que te dizer uma coisa, Philip, ?ele começou a dizer adotando o tom que costumava falar com seus alunos —há um estudo e um termo médico que, até o momento, não foram levados em consideração, mas seria interessante se você o conhecesse.
?Qual? ?Sua voz soou como se estivesse a ponto de defender-se de um ataque repentino.
?O choque de gratidão. O que sofre um paciente que, ao ser salvo de uma morte certa, acredita que se apaixonou por seu salvador e...[7]
?Bobagens! ?Philip o interrompeu. ?Eu me apaixonei por Mary desde o momento em que a vi pela primeira vez. O que aconteceu a seguir apenas confirmou que ela é a única mulher que eu quero ter ao meu lado pelo resto da minha vida ?garantiu a ele.
?E por que vai assumir a baronia quando se casar com ela??Estalou intrigado.
?Porque me pediu a Lua e só poderei dá-la se me converter em um miserável aristocrata ?ele alegou antes de olhar para a maleta que, novamente, havia sido esquecida por sua dona.
Capítulo XI
Como ela poderia se comportar de uma maneira tão irracional? Por que era incapaz de sentir felicidade quando deixou a residência do lorde? Qual seria a razão médica pela qual notava uma forte pressão no peito? Estaria prestes a sofrer um derrame depois do que aconteceu com aquele homem?
Mary não tirou os olhos da janela enquanto voltava para casa acompanhada de Valeria. Tal como ela lhe prometeu, depois do almoço, conduziu-a até à livraria do senhor Slow e deu-lhe as três crônicas médicas que havia reservado. Deveria mostrar felicidade por ter conseguido tanto o que queria nos cinco dias de castigo, mas não foi assim. Pegou as revistas e as colocou dentro da pasta sem parar para ler seus títulos. Reagiu de modo automático, sem emoção. Talvez porque sua cabeça se recusava a se concentrar em outra coisa que não fosse... ele.
Acreditou, inutilmente, que todas as emoções e sensações produzidas durante o beijo desapareceriam uma vez que abandonasse o quarto. Errado. Ela os reviveu tantas vezes que sofreu inúmeras ondas de calor no almoço. Embora a conversa que teve com Martin tenha sido bastante agradável, não foi esplêndida nem maravilhosa. Apenas prestou atenção à conversa exaustiva que lhe ofereceu sobre o algoritmo quantitativo em diferentes equações. No fundo, e isso parecia inédito, ficou entediada. Em algum momento dessa explicação, sua alma deixou seu corpo para sair da sala de jantar, subir as escadas, correr pelo corredor para voltar aos braços de lorde Giesler. Seus lábios sentiram novamente a suavidade daquela boca masculina, provaram aquele maravilhoso sabor de café, sua língua dançou outra dança de carícias e, por isso, prazer e paixão retornaram.
Tal como concluiu, a melhor opção para manter um bem-estar mental e físico era evitar outro encontro com ele e eliminar de sua mente todos aqueles pensamentos tão inapropriados. Nunca se sentira tão atraída ou intimidada por um homem. Jamais deixou em um segundo plano quem era e em quem desejava se converter. No entanto, desde que aquele homem apareceu em sua vida, tudo se tornou um caos, pois não era capaz de se concentrar em nada exceto nele. Quantas vezes, desde que seu pai lhe deu a maleta, se esqueceu dela? Até que lorde Giesler se cruzou em seu caminho, nunca. Se havia noites que até dormia com ela na cama! Isso também tinha mudado, porque durante sua inesperada visita abandonou seu precioso presente em várias ocasiões...
Sem afastar o olhar do lado de fora suspirou fundo. Estava muito decepcionada por não ter sido capaz de controlar nem sua mente e nem seu corpo quando permaneceram juntos. Ela estava sempre atenta às traições que os outros podiam gerar, mas nunca imaginou que ela mesma seria a maior traidora de sua pessoa. Desde que Anne sofreu a angústia da morte de Dick ou do engano que Elizabeth padeceu por Archie, ela se esforçou para lutar contra tudo o que envolvia um relacionamento afetuoso com um homem. Tudo o que podiam obter dela eram conversas e discussões médicas. Qualquer sentimento afetivo estava vetado, negado, fechado. No entanto, lorde Giesler quebrou todas as barreiras que ela havia construído ao longo dos anos. Aquele gigante de olhos azuis e cabelos loiros havia se tornado seu ponto fraco, porque havia encontrado uma maneira de transformá-la, através de seus beijos e carícias, em um ser vulnerável, frágil e comum.
Ela se mexeu desconfortavelmente no assento enquanto apertava as mãos com força, que estavam no colo. Se não estava errada, como começava a ser habitual nela, suas bochechas já mostrariam um leve rubor por causa de suas divagações. Valeria poderia supor que isso se devia à ansiedade que lhe provocava chegar em casa e enfrentar novamente o castigo estabelecido por sua mãe. Mas essa não era a razão pela qual as bochechas pareciam duas pequenas chamas de fogo. A lembrança de como o corpo dela reagiu durante os beijos a alterou e a enfureceu a ponto de elevar a temperatura do corpo em mais de dez graus. Se tocasse o termômetro que guardava na maleta, o mercúrio aumentaria tanto que o pequeno tubo de vidro explodiria em suas mãos. Como se deixou levar tão facilmente? Por que seu cérebro foi incapaz de impedir isso? Não havia lido que a amígdala cerebral ajudava a encontrar a estratégia necessária para resolver uma situação de estresse, medo ou perigo? Então, por que a dela estava inativa quando lorde Giesler se encontrava próximo a ela? Bufou pelo nariz. Ansiava procurar respostas médicas para todas as suas perguntas e tinha uma solução para isso: procuraria o livro que seu pai mantinha na prateleira de seu escritório. Se bem lembrava, o médico e cientista francês Paul Broca explicaria como o sistema límbico funcionava. Talvez descobrisse qual dos seus quatro componentes era responsável pelas respostas emocionais. Depois que encontrasse o problema, lutaria contra ele. E se para isso tivesse que usar aqueles dolorosos choques elétricos, se submeteria sem hesitar um segundo. Ela precisava fazer tudo ao seu alcance para ser a Mary de sempre e se afastar de quem se tornara. Ela nunca foi uma mulher apaixonada, mas uma jovem respeitável que raciocinava, entendia e observava o mundo de uma perspectiva lógica. Não podia se transformar, da noite para o dia, na desavergonhada que havia percebido um certo prazer entre as pernas ou que ansiava que as mãos do homem viajassem cada centímetro de sua pele. De modo algum voltaria a desejar algo que tinha decidido não ter em sua vida. Por esse motivo, lorde Giesler tinha que morrer para ela.
?Mary? ?Valeria perguntou estreitando os olhos.
?Sim? ?Ela respondeu, virando-se para a companheira e desenhando um enorme sorriso. A consequente ao ter a certeza de uma vitória próxima.
?Está bem?
?Sim, muito bem. Por que pergunta? ?Continuou falando sem apagar o leve sorriso dos lábios. Esperava que seu rosto não decidisse traí-la também, porque não queria ser interrogada pelos poucos minutos restantes, para chegar em casa, sobre o motivo de estar tão ausente.
?Percebo você... distante ?Valeria alegou.
?É o meu estado normal ?respondeu enquanto estendia a mão para a alça da maleta e a colocou sobre as pernas. ?Minha cabeça não para de pensar sobre o que esses preciosos artigos médicos registram.
?No que você está pensando agora? ?Estalou com uma mistura de decepção e raiva.
?Claro! ?Mary exclamou, arregalando os olhos para enfatizar sua decepção. ?Estou ansiosa para descobrir que nova doença encontrara na Europa e me informar de como pode ser eliminada. Embora ultimamente não tenham encontrado muitos casos importantes. No mês passado, os quatro artigos que adquiri na livraria do senhor Slow falavam sobre o ensaio realizado por Henry Gray em mil oitocentos e quarenta e oito, intitulado A origem, conexões e distribuição dos nervos do olho humano. Uma descoberta magnífica para um jovem anatomista e cirurgião britânico. Sabia que tinha a minha idade quando foi eleito Membro da Royal Society? Embora ele tenha morrido cedo demais. Uma verdadeira tragédia para a sociedade médica. Mas... Quem iria supor que morreria de varíola aos trinta e cinco anos? Segundo dizem, foi transmitido por um sobrinho que ele cuidava e...
Valeria não soube o que dizer a respeito. Tinha assumido, ao vê-la tão calada e embaraçada, que estava revivendo o tempo que passou a sós com seu irmão, mas se equivocava. A jovem era imune aos encantos de Philip. E era a primeira mulher a fazer isso! Mas não desistiria tão cedo. O que estava em jogo era o baronato e, diante disso, lutaria incansavelmente.
?Você se lembrou do ensaio porque viu algo perigoso nos olhos do meu irmão? ?A interrompeu.
?Como? ?Mary estalou confusa.
?Eu me perguntava se o fato de você evocar esse livro médico tem algo a ver com alguma doença que tenha apreciado nos olhos de Philip ?insistiu.
?Não! Nada disso! ?Disse rapidamente.
?Menos mal! Porque, pelo que entendi, pessoas que têm olhos castanhos podem...
?Castanhos? ?Mary soltou. ?Pelo que me lembro, lorde Giesler tem íris azuis claras, muito parecidas com as minhas ?acrescentou.
Bom. Pelo menos, ela havia notado esse detalhe. Agora tinha que continuar com seu plano.
?Certo. Às vezes me confundo com os de meu marido ?se desculpou. ?Então imagino que seu pensamento não tem nada a ver com outra possível doença, certo?
?Exato! ?Garantiu. ?Seu irmão está muito recuperado e abandonará o quarto se permanecer uns dias mais em repouso. Para ser sincera, continuo fascinada com sua evolução.
?De verdade? ?Valeria continuou. Se ela tivesse que falar sobre doenças para que se concentrasse em Philip, faria isso sem hesitar por um único segundo. ?Observou a ferida? Acha que requer muita atenção? Não posso estar todos os dias em sua casa. Meus filhos e meu marido são um desastre se me ausento mais de três horas de minha casa. Não ficaria surpresa que, ao voltar, tenham queimado algum cômodo.
?Não se preocupes. A ferida está perfeita. Apenas ficará uma fina cicatriz. Tenho certeza de que meu pai, quando o visitar hoje à noite, confirmará minha opinião. Só espero que Shals não demore muito para enfaixá-lo para que não entre sujeira na fissura.
?Não precisa se preocupar com isso. As empregadas limpam o quarto todos os dias ?Valeria disse.
?Não se trata desse tipo de limpeza ?disse antes de soltar uma pequena risada. ?Centenas de bactérias foram descobertas que pululam pelo ambiente e são invisíveis ao olho humano. Uma delas pode entrar na ferida e infectá-la.
?E sabendo disso... como não lhe ocorreu enfaixá-lo você mesma? ?Valeria perguntou perplexa.
?Porque me arrastou para a sala de refeições e durante o almoço não me pareceu correto me ausentar no meio da maravilhosa conversa sobre algoritmos que Martin me ofereceu. Além disso, tenho certeza de que Shals o enfaixou depois de confirmar que a comida estava preparada. Como você me explicou, ele é um mordomo muito eficiente ?explicou com certeza.
?Ainda assim, acho que seria conveniente que voltasse amanhã para confirmar sua suposição ?Valeria expôs uma vez que olhou pela janela e observou os telhados da residência Moore. ?Não gostaria que Philip tivesse uma infecção agora que começa a melhorar.
?Não vejo necessidade de voltar ?manifestou com angústia. ?Mas prometo que, quando falar com meu pai, informarei o que aconteceu para confirmar que o curativo foi feito corretamente.
?Não quer ter certeza de que meu irmão evolui favoravelmente? Negligencia com tanta facilidade as pessoas que atende? ?Insistiu.
A carruagem parou na entrada de sua casa. Devia esperar que o cocheiro abrisse a porta e desdobrasse as escadas de metal, mas se sentia tão ansiosa para sair de lá que, como demorava um segundo a mais, ela mesma o faria.
?Como te disse, meu pai cuidará dele como fez até agora ?comentou com mais ênfase do que deveria. ?Além disso, lembre-se que ainda estou de castigo e quando minha mãe descobrir que me levou para a casa de seu irmão em vez de consultar seus filhos, não poderei sair de casa até que complete os trinta anos.
Graças a Deus o cocheiro já tinha aberto a porta! Com a maleta na mão, baixou o mais rápido que pôde, alisou a saia de seu vestido e se virou para Valeria, que ainda continuava imóvel em seu assento.
?Foi um dia magnífico, Valeria. E eu insisto que você não deve se preocupar com seu irmão, certamente ele voltará em breve à vida que tinha antes de ficar doente.
?Mas... não quer que eu vá com você até a porta? O que sua mãe vai dizer sobre mim? Prometi a ela que cuidaria de você e a levaria até ela sã e salva.
?Despeço-me em seu nome. Além disso, quando lhe explicar que estava com pressa de chegar em casa, caso algum dos seus filhos tenha incendiado um quarto, ela entenderá. Boa tarde e obrigada pelo presente ?disse antes de fechar a porta e caminhar a grandes passos para sua casa, seu santuário, seu lugar protegido e do qual nunca deveria ter saído.
***
?Não se preocupe com elas, mãe. Garanto-lhe que todas estão perfeitamente bem.
A afirmação de Madeleine fez com que Sophia levantasse o olhar do bastidor e o fixasse na mais nova de suas filhas. Permaneceu em silêncio, observando-a sem piscar. Logo, depois de descobrir aquele brilho tão bonito e sincero em seus olhos verdes, sorriu e voltou para a costura.
?Eu sei ?garantiu. ?Mas é inevitável me preocupar com elas.
?Continua inquieta pela visão que tive sobre Anne? Pensa que me equivoquei sobre lorde Bennett? Porque lhe prometo que era ele. Esse homem nos salvará da maldição ?declarou solene. Fechou a caderneta em que anotou a última receita que havia preparado naquela manhã, se levantou lentamente da cadeira e foi até a mãe para se sentar ao seu lado.
?Confio em suas visões, Madeleine. Se acredita que lorde Bennett é o homem destinado a Anne, esperarei que sua profecia seja cumprida.
?Desaparecerá algum dia? ?Perguntou depois de alguns minutos de silêncio que os utilizou para refletir e entrelaçou seus brancos dedos sobre a saia de seu vestido celeste. Um de cetim mate com rendas nos punhos e pescoço. ?Me refiro ao meu dom. Será que irá da mesma maneira que veio, sem avisar?
?O meu está comigo desde que nasci. Embora tenha desaparecido durante a gravidez, porque toda a minha energia se concentrou em criar uma nova vida, mas voltou uma vez que vieram ao mundo.
?Nunca desejou ter nascido normal? ?Insistiu.
?Você não se define assim? ?Sophia retrucou deixando a costura à esquerda e virando-se para a filha.
?Não ?respondeu sem hesitar um único segundo. ?Quem, de todas as pessoas que conhecemos, pode ter sonhos que preveem o que acontecerá a seguir?
?Madeleine... ?sussurrou, segurando as duas mãos para apertá-las entre as suas ?é uma menina muito especial e não deveria se sentir mal por ter nascido com uma habilidade tão magnífica. Esqueceu o que aconteceu naquele dia? O que você fez por aquela criança?
Madeleine fixou seus olhos nas mãos e mordeu ligeiramente o lábio inferior. Não, não havia esquecido. Jamais poderia fazer uma coisa semelhante! Mas foi nesse momento que seu dom tomou força, o controle de sua vida e não encontrava uma forma de pará-lo. Era verdade que naquele dia ela se sentiu feliz e orgulhosa de si mesma. No entanto, nem todas as suas visões eram boas. Muitas noites ela se levantava banhada em suor, tremendo e chorando inconsolavelmente porque a maldade a dominava.
?Essa criatura pode ser salva graças a você, pequena ?Sophia disse suavemente enquanto acariciava os dedos longos da filha com os polegares. ?Sua alma recorreu para a única pessoa que podia ouvi-la... ?acrescentou.
?Eu sei... ?murmurou, abaixando a cabeça.
?E também foi à razão pela qual Anne desistiu de sair naquele momento. Se você não tivesse nos contado o que viu, ela não estaria mais conosco. ?É verdade que nem todos os seus sonhos serão bons, mas você terá que se esforçar para dominá-los. Uma alma como a sua evocará forças boas e más. Sua missão é saber como filtrá-las.
?Como farei algo assim?
?Imagino que levará muito tempo para você conseguir, assim como eu fiz para desenvolver o meu. ?Ao ver que seus olhos se entristeciam, apertou com mais força suas mãos. ?Mas uma Arany sempre consegue o que se propõe, e não nasceu uma cigana que se renda sem antes lutar.
Madeleine suspirou profundamente e agradeceu as palavras reconfortantes de sua mãe com um leve sorriso. Esperava que tivesse razão, que não se confundisse porque realmente necessitava eliminar certos aspectos de seu dom. Rara era a noite que não ficava acordada, sentada sobre a cama, abraçando os joelhos enquanto se perguntava o que aconteceria uma vez que fechasse os olhos. Essa incerteza era a culpa de seu comportamento. Sempre ficava esquiva de todas as pessoas que se aproximavam dela. Não podia tocá-las, nem olhá-las sem descobrir, mediante aqueles malditos sonhos, algo sobre elas. Algumas vezes a faziam feliz, mas a maldade das pessoas não tinha limites. Seu coração começou a bater com força ao lembrar a tarde que o primeiro noivo de Anne lhe tocou uma mão para cumprimentá-la. Nessa noite, os seus sonhos foram sombrios, tenebrosos e insuportáveis. Seu espírito se desprendeu de seu corpo e saiu à rua, mostrando-lhe o que aconteceria depois de várias semanas. Não foi capaz de explicar a sua família, e nem muito menos a Anne, o que tinha visto. Talvez porque nem ela mesma acreditou. Mas Dick morreu... E como consequência de tudo isso se retraiu ainda mais do mundo.
?Mary acabou de chegar ?comentou Sophia se levantando rapidamente do sofá.
Caminhou para a janela e afastou lentamente a cortina para confirmar que, tal como intuiu, a carruagem da senhora Reform tinha parado no jardim. Olhou o relógio que havia sobre a lareira e franziu a testa. Já eram quatro horas da tarde e, embora tenha sido informada de que a filha almoçaria fora, estava com muita raiva de Mary. Ela deveria procurar qualquer desculpa para recusar o convite. Não era apropriado que ficasse fora de casa por tanto tempo com uma pessoa que mal conhecia, mesmo que estivesse muito agradecida por ter salvado a vida de seu irmão. Mas tinha que confiar em sua filha. Tinha certeza de que, se tivesse se encontrado em uma situação comprometedora, teria agido com sensatez. Embora depois de operar lorde Giesler completamente nu, ela não tivesse mais certeza do bom senso de sua filha.
Saiu silenciosamente da sala de costura e foi em direção à porta para recebê-las. Durante o breve trajeto, lembrou o momento em que a Sra. Reform apareceu em sua casa horas antes. Sua mente evocou a expressão serena que ela exibiu ao se apresentar e como mudou depois que a filha chegou. Como não percebeu isso? Por que seu instinto não a alertou para uma coisa dessas? «Morgana!», exclamou mentalmente enquanto avançava em direção à entrada, abrindo a porta ela mesma, para não demorar muito para descobrir se sua intuição era verdadeira.
?Boa tarde, mãe ?lhe disse Mary uma vez que se encontraram de frente.
?E Sra. Reform? ?Perguntou olhando para a carruagem.
?Disse-lhe que não me acompanhasse, que não era necessário que se incomodasse ?explicou enquanto entrava no hall.
?O que você fez? ?Esbravejou Sophia batendo a porta.
?Eu? Nada! Como pode pensar isso de mim? ?Disse com raiva.
?Porque as duas vezes que vi essa mulher nunca me pareceu uma pessoa desrespeitosa ?a mãe insistiu.
?Precisava voltar para casa o mais rápido possível. Como me disse, seus filhos podem atear fogo em qualquer cômodo da casa, se ficarem mais de três horas longe dela. ?Explicou enquanto dava o casaco a Shira, que apareceu sem fazer barulho.
?Mas... você não iria examiná-los? Porque, se bem me lembro, a senhora Reform disse que haviam sofrido um resfriado e queria confirmar que não teria nenhuma consequência ?Sophia disse, arregalando os olhos.
?Não. No final, me livrei da presença daqueles demônios ?Mary declarou antes de levantar as sobrancelhas castanhas várias vezes. Observando as bochechas e os olhos da mãe começarem a ficar avermelhados, ela decidiu que era hora de escapar. No entanto, quando ela deu um passo à frente, em direção às escadas, uma mão a parou.
?Onde você esteve Mary Moore? Por que não é capaz de me olhar na cara? O que esconde de mim? O que aconteceu?
?Ainda continuo de castigo, certo? ?Sophia estreitou os olhos em resposta. ?Bem, apenas lhe direi que curei pessoas, mas não foram filhos da Sra. Reform, mas os servos de lorde Giesler ?confessou com dignidade.
?Desobedeceu minha ordem e retornou naquele lugar? Por quê?
?A verdade? ?Mary soltou.
?Sim.
?Cheguei à conclusão de que Valeria estava muito assustada com o que aconteceu com o irmão e precisava que eu confirmasse que nosso pai está fazendo um bom trabalho.
?E? ?insistiu Sophia.
?E, como sempre, nunca fico satisfeita em fazer apenas uma coisa. Então, terminei por apresentar duas opiniões em vez de uma.
?Quais? ?Sophia percebeu como a filha estava ficando cada vez mais irritada. Até agora, nunca havia chegado em casa depois de visitar um paciente com tanta irascibilidade. O habitual era que estivesse excessivamente emocionada. Mas tinha que lembrar que o homem doente que visitou era lorde Giesler, o motivo pelo qual estava de castigo.
?A primeira foi que, de fato, a cura desse presunçoso está sendo espetacular e que nosso pai é o melhor no mundo. A segunda... ?Ela respirou fundo e, pela primeira vez em sua vida, olhou para a mãe com raiva, como se ela fosse a única culpada por fazê-la sofrer todas as emoções e sensações que nasceram nela quando foi beijada por lorde Giesler. ?Deve se sentir muito feliz em entender que sempre esteve certa sobre mim...
?Eu? Razão sobre você? Em quê? ?Sophia disse com uma mistura de surpresa e perplexidade.
?Que, embora nunca quis reconhecê-lo, hoje entendeu que por suas veias também corre sangue Arany.
A resposta saiu da boca de Madeleine. Sophia observou Mary dar-lhe um olhar furioso. Mas a menininha não se intimidou com essa ameaça silenciosa. Exibiu um sorriso enorme antes de colocar as mãos atrás das costas, girar nos calcanhares e seguir em direção à cozinha, esticando as pernas excessivamente.
?Se sente muito orgulhosa, certo? ?Mary soltou cerrando os dentes.
?Filha, por favor me diga o que aconteceu ?Sophia pediu, estendendo a mão para Mary, para que a aceitasse e poder lhe transmitir desse modo um pouco de paz.
?Posso resumir em algumas frases: nunca mais sairei de casa, nunca mais verei lorde Giesler e nunca deixarei o sangue de Arany tomar conta de mim ?hesitou antes de agarrar a alça da maleta e subir as escadas o mais rápido que podia.
Capítulo XII
Ela ficou trancada na biblioteca por horas tentando estudar o novo ensaio médico que havia adquirido, mas não conseguiu ler nem duas frases seguidas. A maldita voz alegre insistia em interrompê-la toda vez que começava a leitura. Resignada por não conseguir alcançar o que se propôs, ela fechou o livro e acariciou a longa trança do cabelo com as duas mãos enquanto contemplava as escassas brasas. Depois do que aconteceu com lorde Giesler, sua mãe, depois de considerar que os tubos de metal eram muito perigosos em suas mãos, proibiu Shira de usá-los nela e insistiu que fosse amarrado com um laço azul inofensivo. Embora, de acordo com Josephine, fosse a arma mais eficaz para estrangular qualquer malfeitor. Mary sorriu levemente ao se lembrar da manhã em que jogou seus tubos no lorde Giesler como se fossem projéteis. Mas aquele leve sorriso de diversão desapareceu quando ela também se lembrou de ter encontrado um deles guardado em uma gaveta da cômoda do lorde. Por que o escondia como se fosse um tesouro? Estaria esperando o momento para devolvê-lo? Com que finalidade? Que plano ele tinha em suas mãos? Mary se recostou no sofá e suspirou. Não tinha respostas para suas perguntas. Na verdade, era a primeira vez que não as encontrava. Seu mundo, baseado em executar uma rotina severa para facilitar o seu cérebro a admissão de novos conceitos médicos, mergulhou em um profundo caos desde que aquele homem irrompeu em sua vida. Nem se reconhecia quando se olhava no espelho! Não só seus olhos brilhavam de uma maneira estranha, mas até sua pele se contraiu tanto que parecia cinco anos mais jovem. Se isso consistia na natureza feminina, em rejuvenescer para seduzir os homens, que lhe durasse cinquenta anos mais...
Ela fechou os olhos, cansada de submetê-los por várias horas a uma luz fraca, e tentou sucumbir ao leve sono que a dominava. Mas foi incapaz de alcançá-lo porque havia a voz novamente, que não deixava de cantarolar uma canção absurda no dialeto Zíngaro sobre a salvação que lhe traria um maldito fogo. Fogo? Onde? E que salvação se referia? O único que precisava era eliminar um titã com cabelos loiros e olhos azuis da cabeça. Mas... como conseguiria uma proeza tão simples? Se ela, com o caráter e a determinação que possuía, não pudesse eliminá-lo de sua mente, como faria com o maldito fogo? O queimaria? Faria lorde Giesler entrar nele até que seu grandioso corpo se transformasse em cinzas? Essa ideia, bastante macabra, a fez sorrir novamente. Exceto em certas reuniões médicas, quando alguma promessa médica jovem se impunha pela força a seus argumentos, seu instinto assassino não aparecia. Ela proporcionava vida, não morte. No entanto, esse homem era o culpado por seu lado criminoso permanecer latente desde que acordava até adormecer.
Desesperada, porque a voz não parava de cantar, ela abriu os olhos e se levantou do sofá. Se não podia ler, pelo menos procuraria a pessoa que a interrompia para calá-la de uma vez por todas. Relutantemente colocou o livro sobre o sofá, amarrou o laço da bata branca e saiu da biblioteca.
Para sua surpresa no corredor, não havia ninguém. No entanto, a voz estava tão perto dela que parecia tê-la ao seu lado. Determinada, ela caminhou devagar até chegar ao pé da escada, olhou para o segundo andar e franziu a testa. Onde estaria? Quem seria? Só tinha duas alternativas possíveis: sua mãe e Madeleine. As duas eram as únicas pessoas na casa que costumavam falar em Romani. Quando colocou o pé no primeiro degrau, ouviu as badaladas do relógio. Eram duas da manhã, tarde demais para a irmãzinha ficar acordada. Normalmente, depois de se retirar para o quarto, permanecia até o amanhecer. No entanto, desde que Josephine partiu, ela ficou bastante inquieta e confusa. Talvez, incapaz de dormir, ela decidiu caminhar até que o cansaço a vencesse.
Encorajada para descobrir se Madeleine era a arquiteta de seu desespero, ela subiu as escadas, atravessou o corredor, ficou em frente à porta do quarto das gêmeas e a abriu muito lentamente. Não, não era ela. A menina se encontrava sobre a cama coberta com o lençol até a cabeça e tão quieta como uma estátua. Com discrição, saiu dali tal como entrou. Como sua primeira opção foi descartada, ainda lhe restava outra: sua mãe. Talvez a mente materna ainda estivesse nervosa após a partida de três de suas filhas. Talvez sua mãe não tenha conseguido adormecer facilmente ou... Sim, essa alternativa também se encaixava. O termo médico para definir a terceira opção era sonambulismo, embora seu pai nunca tenha falado sobre esse tipo de distúrbio na família. No entanto, tudo poderia acontecer com os Arany. Os Moore, felizmente para ela, sabiam controlar até as atividades que realizavam inconscientemente. Admitindo a possibilidade de encontrar sua mãe sonâmbula, ela lembrou o caso de Albert Tirrell, que foi absolvido de assassinato por alegar que estava sonâmbulo quando cometeu o crime. Certamente sua mãe não pensaria em matar ninguém, embora não lhe faltasse vontade. Era mais provável que a mente agitada a levasse à sua época juvenil, quando cantarolava absurdas canções ciganas enquanto lavava a roupa em um rio próximo do povoado.
Do alto da escada, Mary olhou para baixo. Nada. Sophia também não estava lá. Mas incrivelmente a voz, daquela área da casa, era ouvida mais claramente.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e contemplará seu destino. No fogo encontrará o que tanto deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
Fogo? Salvação? Mas por que não parava de uma vez por todas a maldita voz? Que tipo de babá instava a buscar uma fogueira? Isso nunca faria alguém dormir, mas sim incentivá-los a sair de suas camas e investigar os arredores.
Descansou a mão direita no corrimão de madeira enquanto olhava para a porta de entrada. Encontraria sua mãe lá fora? A porta se fecharia quando saiu? Não, não poderia dar essa opção como válida. Se isso tivesse acontecido, Sophia teria acordado rapidamente. Ninguém continuaria dormindo ao ouvir os gritos de uma cigana zangada. Essa reflexão a fez entender que sua mãe não deveria ser a autora dessa música e que, fora de sua casa, havia uma pessoa estranha. Por um momento duvidou sobre descer e resolver o enigma ou voltar para seu quarto. A segunda alternativa era a mais sensata e a teria tomado se a Mary do passado não tivesse desaparecido. No entanto, não era mais a mesma pessoa. Lorde Giesler a transformou completamente. Odiando ainda mais a causa de suas irracionalidades, desceu lentamente, sentindo na planta dos pés descalços a frieza e dureza de cada degrau. A melodia ficou tão forte e poderosa que, no meio da escada, ela não conseguiu mais mudar de ideia. Seu corpo estava preso, enfeitiçado pela voz harmoniosa. Pensando nesse fato irracional, ficou em frente à entrada, estendeu as mãos para as fechaduras e as girou uma a uma.
Quando abriu a porta, fechou os olhos quando sentiu a carícia de uma brisa noturna suave em seu rosto. A bata se moveu para trás, mas o laço impediu que se afastasse dela. Jamais havia sentido tanta paz, tanta tranquilidade. Era como se toda a inquietação que tinha vivido no passado nunca tivesse existido. Levou as mãos ao peito, captando como seu coração batia com lentidão. Continuava sem compreender a si mesma. Qualquer pessoa em sua situação estaria à beira da loucura. No entanto, ela desfrutava de um estado de repouso inverossímil.
«Abra os olhos, estenda suas mãos e aceite o destino que lhe ofereço. Toque nele; abrace-o... Encontre sua salvação...».
Tal como lhe indicaram as frases dessa canção que não parava, Mary abriu os olhos lentamente e ficou imóvel ao descobrir duas coisas: uma enorme fogueira no meio do jardim, que ardia sem a necessidade de lenha, e o maior corvo que tinha visto em sua vida, apoiado no corrimão de mármore. Aquela tranquilidade, aquela calma que notara percorrendo todas as partes de seu ser desapareceram quando viu como aquele imenso pássaro abria suas asas. Assustada com a aversão que sentia por esses tipos de animais, ela recuou, na esperança de entrar na sua casa novamente sem deixar o pássaro irritado. Mas não foi fácil avançar porque a porta, de maneira inexplicável, tinha se fechado. Com as costas apoiadas na madeira, fixou seus olhos de novo no animal. Este escondeu de novo as asas e a olhou. Quando os dois olhos se encontraram, Mary prendeu a respiração enquanto contemplava um fato inédito. Os corvos não tinham olhos negros? Então... por que os daquele animal eram azuis, muito parecidos, se não iguais aos do homem em que não queria pensar?
?Não tem nada melhor para fazer? Vá embora, pássaro miserável! Deixe-me em paz! ?Recriminou, num ato de valentia, o pássaro com a esperança de que se afastasse dela.
No entanto, o corvo não foi embora. Depois de ouvi-la, ele expandiu suas enormes asas novamente e as bateu com avidez. De repente, a brisa suave se tornou um tornado angustiante, elevando todas as folhas secas no chão para o céu. Horrorizada, ela fechou os olhos e colocou as mãos na frente do rosto para não se machucar. No instante em que se preparou para gritar que parasse, a tranquilidade voltou. Muito devagar, o mais lento que pôde, ela abriu os olhos, expulsou todo o ar retido em seus pulmões e afastou os braços. Então observou algo que a deixou paralisada. O maldito pássaro, aquele que queria ver longe dela, voou sobre o fogo desenhando enormes círculos.
?Não! ?Ela gritou enquanto corria em sua direção. Uma coisa era odiar esse tipo de animais e outra muito diferente era lhe desejar a morte. ?Afaste-se! Vai se queimar! —Continuou dizendo até ficar na frente da estranha fogueira.
Como da última vez, o corvo a ignorou e continuou seu voo sobre as chamas. A luz da grande fogueira alcançou a plumagem negra e a fez brilhar como uma estrela. De repente, seu olhar encontrou o do animal novamente. Mary começou a tremer, antecipando a terrível situação que veria em breve. Não podia testemunhar um ato tão horrendo. Por mais que não gostasse de tais pássaros, não seria capaz de viver com a dor de não ter evitado tal catástrofe. Reunindo a pouca força que tinha, levantou as mãos e começou a agitá-las, numa tentativa absurda de assustá-lo. No entanto, o corvo subiu ao céu, como se fosse um foguete, e logo mudou de direção, dirigindo-se para o interior do fogo em um mergulho.
?Não! ?Mary gritou horrorizada.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e você contemplará seu destino. Nas chamas você encontrará tanto o que deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
O animal não parou. Entrou na fogueira e ardeu. O que aconteceu depois deixou Mary muito confusa. Enquanto a voz continuava cantando, enquanto lágrimas de tristeza vagavam por seu rosto, a cor do fogo passou de laranja e vermelho para o branco e azul. Chocada ou perplexa, não conseguia descrever com precisão o estado em que estava. Talvez não houvesse uma palavra capaz de explicar que tipo de emoções e sensações a dominavam naquele momento.
«Não se afaste... Aí está... Sua salvação vem... Toque-o! Toque nele!».
A voz cantante insistia repetidamente. Sem tirar os olhos do fogo, enfeitiçada pela música e enfeitiçada pelo estranho fenômeno que testemunhou, aceitou a ordem e estendeu as mãos para as chamas brancas e azuis. As pontas de seus dedos não sentiram calor ou dor. O oposto. Uma leve cócega os recebeu quando passou por eles. Deu outro passo em direção ao fogo, desejando sentir aquele toque maravilhoso em todo o corpo. Se colocou no centro, no meio daquela fogueira incomum e começou a notar carícias fascinantes em sua pele. Nem a bata nem a camisola a impediram de sentir aquele toque magnífico. Cativada por esse estado de prazer, ela fechou os olhos e se rendeu à suavidade que a percorria. De repente, exatamente quando pensou que poderia morrer de prazer, seus lábios foram atacados e pressionados por uma boca. Ela parou de respirar, porque sua mente a informou sobre quem poderia beijá-la dessa maneira. Essa pressão, essa paixão e o ardor de tomá-la tinham um sobrenome único: Giesler. Tentou abrir os olhos para confirmar as suas suspeitas, mas não fez isso. Desejava continuar a sentir essa boca sobre a sua e que a liberdade que brotava em seu interior aumentasse. Por que lhe era tão agradável estar com ele? Por que não o odiava como se empenhava em fazer? E, por que não se retirava e voltava para casa? Todas as perguntas foram resolvidas com uma única resposta: porque o desejava. Sim, mesmo que lhe parecesse estranho, mesmo que tivesse dificuldade em admitir, ela desejava lorde Giesler. Mas... realmente que ele era sua salvação? A música se referia a esse homem específico? Como podia resgatá-la quem lhe converteu em uma mulher diferente? Até agora, sempre se gabou de ser uma Moore, de não ter em suas veias nem uma só gota de sangue Arany. No entanto, essa forma de reagir era mais própria de sua mãe que de seu pai... Com raiva da sua reflexão, abriu os olhos. A princípio, suas pupilas não lhe ofereceram uma imagem clara do lorde, mas com o passar dos segundos, o rosto ficou tão claro quanto a água de um rio. Assustada, porque seu corpo ardia de desejo de continuar em seus braços, de sentir o contato de seu robusto peito nu e de perceber a força de sua boca sobre a dela, deu um passo para trás e o olhou com estranheza. As chamas continuaram a cercá-lo, sua luz continuou iluminando a silhueta masculina que a tinha tão cativada. Alguma vez pôde imaginar que um homem como ele teria a coragem de admirá-la e desejá-la dessa maneira? Até que ponto devia sentir-se honrada ou apreciada? Devia aceitá-lo sem mais nem menos? E, o que estava vivendo? Sofreria algum transtorno mental? Porque não podia encontrar outra explicação ao que estava vendo e vivendo.
?Mary... vem... ?ele sussurrou com uma voz aveludada. ?Não saia do meu lado, meu amor... ?ele acrescentou, estendendo as mãos para ela.
Mary o observou em silêncio. O que devia fazer? O que desejava fazer? Suspirou fundo, para aplacar seu estado de excitação. Não conseguiu. Seu coração palpitava tão rápido que seu corpo se movia ao compasso daqueles batimentos. Sua pele buscava o contato que ele lhe proporcionava e sua boca ansiava aqueles lábios. Desviou o olhar do homem e o fixou no chão. Era uma alucinação, um sonho que o subconsciente lhe oferecia para entender de uma vez por todas que deveria se render a uma necessidade tão básica quanto o prazer carnal. Talvez o que a música estivesse tentando explicar fosse que ela só poderia ser salva aceitando em sonhos o que não poderia alcançar na vida real. Então... por que ela continuou se reprimindo? Porque construía muros quando tudo o que tinha a fazer era derrubá-los? Levantou seu rosto muito devagar, até que ambos os olhares se cruzaram novamente. Enfeitiçada não era a palavra exata para definir o que sentia por aquele homem. Tampouco era atração, nem desejo. Mas se negava a denominar algo tão imenso com um termo tão simples. Não. Ela não podia apaixonar-se por Lorde Giesler. Jamais o faria! A única coisa que tinha que fazer, era satisfazer essa parte de seu cérebro que a transtornava e que a normalidade retornasse a ela. Uma Moore! Já! Agora, mais do que nunca, seu sangue Arany a convidava a desfrutar do proibido, do imoral, do insano.
?Mary... ?voltou a dizer.
E desta vez não pensou, nem procurou os prós nem os contras da ação que realizaria. Se lançou a seus braços, aceitando com submissão o que aconteceria entre os dois.
?Sou sua! ?Gritou quando lorde Giesler a pegou nos braços.
?Para sempre? ?Perguntou ele aproximando essa boca que adorava a sua.
?Para sempre?Admitiu antes de lhe rodear com seus braços o pescoço e aproximar seus lábios aos do homem.
?Mary! Acorde de uma vez!
A voz de Madeleine e a sacudida que ela a sujeitou lhe fizeram voltar para sua casa, sua cama, seu quarto amado. Depois de abrir os olhos e ver a menininha ao seu lado, parecendo assustada, Mary se sentou e cobriu seu corpo excitado com o lençol.
?O que faz aqui? ?Perguntou com uma mistura de angústia e alívio.
?Tem que admitir que é a única que costuma ficar acordada a estas horas ?disse enquanto se sentava sobre a cama. ?Está bem? Você tem as bochechas vermelhas como as papoulas que Elizabeth cuida no jardim e seu cabelo está... molhado. ?Depois de dizer essas frases, se inclinou para Mary, estendeu a mão direita para a testa e rapidamente a afastou quando sentiu muito calor. ?Está doente! ?Exclamou espantada. ?Quer que chame a mãe? Te trago panos frescos?
?Não! ?Respondeu afastando os lençóis de seu corpo. Pulou da cama, caminhou em direção à janela enquanto aplacava o constrangimento e, uma vez que não conseguia se afastar da pequenina, virou-se para ela. O que poderia dizer a ela? Era certo falar sobre o sonho? Não, era melhor ficar calada. Pelo menos até encontrar uma explicação lógica para o que aconteceu. ?Apenas... Foi apenas um pesadelo ?disse apertando as mãos.
Madeleine ficou em silêncio por alguns segundos, observando a reação da irmã. Era estranho, apesar de Mary já ter se comportado de maneira diferente do resto do mundo. No entanto, algo não se encaixava. Ela nunca mentiu, como estava fazendo nesse momento. Mary era uma das pessoas que falava claramente, embora suas palavras magoassem o ser mais cruel da Terra. Por que agia assim? O que teria visto no sonho para assustá-la tanto? Havia apenas uma coisa que podia assustá-la, algo que ela zombava toda vez que o assunto aparecia: homens.
?Mary... ?começou a dizer enquanto colocava as mãos nos joelhos. ?Nesse pesadelo... viu fogo?
?Não!?Negou rapidamente a segunda das Moore.
?Um corvo??A pequena insistiu.
?Como te ocorre perguntar esse tipo de tolices? ?Respondeu indignada.
?Porque, de acordo com a mãe, quando ela sonhava com nosso pai, ela o viu deixar uma fogueira imensa e foi um corvo que a levou até ele.
?Disparates! ?Exclamou, acariciando seu rosto em desespero. ?Sonhos são produtos irreais. A parte inconsciente do nosso cérebro age quando estamos no estado de sonolência. Sonhos ou alucinações, querida intrometida, são vagas lembranças de acontecimentos que vivemos e nos produziu certa inquietação ou excitação. Da minha parte, tive um pesadelo com lorde Grayson. Como sempre, queria me humilhar em um debate sobre enxertos de pele em cicatrizes infectadas ?declarou categoricamente quando voltou para a cama. ?Então, não vi nenhum corvo ou fogo. Embora, agora que penso nisso... Os cabelos oleosos de Grayson não se parecem com penas molhadas? ?Acrescentou mordaz.
?Bem... lamento. Eu sei que o cavalheiro é um monstro. Papai sempre nos diz a coragem que você mostra quando o enfrenta ?Madeleine declarou sem desviar o olhar da irmã.
?Tolices!?Exclamou fazendo um movimento desdenhoso com a mão esquerda. ?Não é coragem, mas inteligência. Até um mosquito pode superar os debates desse petulante.
?Um mosquito? ?Retrucou Madeleine. ?Não dizem que os corvos são pássaros bastante inteligentes? ?Insistiu no assunto.
?Também comentam que um dia a raça humana aprenderá a respeitar e viver em paz para sempre. Mas não vamos falar sobre futuras falácias. Diga-me, qual foi o motivo da sua insônia? ?Mudou rapidamente a conversa.
?Eu senti Josephine aqui. ?Apontou para o peito. ?Algo aconteceu com ela.
?O que significa algo? ?Perguntou Mary. Não havia estudos científicos sobre isso, mas era verdade que todos falavam sobre a intensa relação que se formava no útero entre gêmeos e gêmeos idênticos. Essa união, essa percepção conjunta, apesar de não ser metodicamente estudada, ofereciam causas e efeitos reais.
?Seu coração ficou louco e fez o meu fazer isso também ?respondeu, subindo na cama para abraçar as pernas. ?Eu acho que ela encontrou o homem que se tornará seu marido. Embora também sinta que o conheceu de uma maneira pouco convencional. Eu percebi sua raiva, mas também um estranho... desejo ?alegou antes de suspirar.
?Mas... não disse que nunca encontraríamos um marido porque fomos submetidas à maldição que Jovenka nos enviou?
?Quebrou ?explicou olhando a camisola. ?Anne conseguiu derrotá-la graças a lorde Bennett. É por isso que, por alguns dias, todas vivemos num constante vaivém de sensações.
?O que quer dizer com isso? ?Perguntou, moendo o travesseiro com mais força do que o necessário.
?Não sentiu nada estranho? Não apreciou certas mudanças em seu corpo?
?Não ?mentiu.
Claro que tinha notado, sentido ou percebido! Mas não tinham nada a ver com maldições, mas com desejos carnais em relação a lorde Giesler. Seu corpo nu era a causa da perturbação mental que ela sofria! Agora entendia por que sua mãe estava com raiva de descobrir o que tinha acontecido. Não queria recriminar o fato de que ela o salvou, mas protegê-la da tentação!
?Pois eu sim ?Madeleine disse antes de jogar a cabeça para trás e suspirar novamente. ?Só espero que nenhuma de nós sofra e que Morgana nos ajude a encontrar o caminho certo.
?No caso hipotético de você estar certa... ?Mary começou a dizer enquanto acariciava o lençol com aparente tranquilidade. ?O que poderia acontecer?
?A visão que lhe contei alguns anos atrás seria cumprida ?Madeleine disse, fixando os olhos no rosto pálido da irmã.
?Entendo... ?Mary sussurrou enquanto tamborilava com as duas mãos o lençol. ?Mas é possível que não se cumpra ?insistiu. ?Lembre-se de que Elizabeth estava determinada a se casar com uma aristocrata e, realmente poderá cumprir seu desejo?
?Todas sabemos a razão pela qual Eli está determinada a alcançar essa classe social ?apontou a menina franzindo a testa. ?Mas, felizmente para ela, se apaixonará por um homem que a tratará como uma rainha.
?Disse a ela? Porque acho que isso pode confortá-la muito... ?disse zombando.
?Você sabe tão bem quanto eu que ela sofreu muito desde que Archie a traiu e essa foi a razão pela qual uma promessa tão absurda foi feita. No entanto, esquecerá o passado quando ele aparecer... ?revelou em tom de mistério.
?E você realmente acha que existe um homem que pode tolerar o comportamento de Josephine? ?Mary respondeu.
?Se existe alguém para você, por que não deveria haver para Josh? ?Respondeu com raiva.
?Certo. Essa tese carece de discussão. Se puder encontrar um homem capaz de suportar meu intelecto, Josh poderá encontrar alguém que possa dormir tranquilo enquanto tira brilho ao cano de sua nova arma. ?E depois dessas palavras, ela soltou uma risada.
?Não acredita em mim, certo??A jovem apontou tristemente. ?Para você, tudo o que posso ver são... visões infantis.
?O melhor que tem a doce fase infantil e inclusive a juvenil é que se pode fazer e dizer tudo o que lhe agrade, pois os mais velhos alegarão que são coisas da idade. No meu caso, por muito que pese aos nossos amados pais, considero que continuo na segunda. Por esse motivo faço e digo o que quero sem parar para pensar nas consequências desse comportamento ?garantiu.
?Mas logo terminará a etapa em que admite viver ?Madeleine disse esboçando um grande sorriso.
?Oh, que horror! Está insinuando que, quando me levantar, serei uma mulher adulta? ?E riu de novo. Quando terminou de rir, inclinou-se para a irmã, estendeu as mãos e colocou-as sobre as de Madeleine. ?Se veio para me divertir, conseguiu ?acrescentou dando tapinhas.
?Como pode ser tão cínica? ?A pequena a repreendeu enquanto se levantava da cama.
?O cinismo é apropriado para viver no mundo real. É lógico que, por sua idade, ainda não o tenha e que sonhe com uma vida cheia de fantasia e amor ?zombou. ?Garanto que adoro o teu positivismo, mas seja realista Madeleine, quem pode casar com uma mulher que antes de tomar banho tem que ter todas as suas armas limpas? Quem aceitará Anne, depois da morte de seus pretendentes? E Elizabeth? Você realmente acha que existe um homem que se renderá a seus pés quando descobrir que possui um coração negro sob sua beleza?
?E eu? Porque... quem vai aceitar uma moça que não pode tocar em ninguém, certo? ?Pulou da cama.
?O seu é um problema psíquico e tem uma solução. Basta usar luvas para...
?Você é uma mulher perversa! ?Madeleine retrucou. ?Tanto quanto foi Jovenka!
?Não fique nervosa... ?tentou acalmá-la. ?Certamente você age apenas para o nosso bem. Mas eu não gostaria que você se decepcionasse quando...
?Três dias! ?Gritou enquanto se dirigia para a porta. ?Em três dias tudo estará resolvido! E, nesse momento, serei eu quem ri, Mary.
?Três dias? Terei que esperar setenta e duas horas para confirmar que estou certa? ?Disse mordaz.
?Você se casará com o homem que viu esta noite em seus sonhos. ?Essa declaração deixou Mary tensa, mas ela tentou não mostrar a surpresa que as palavras haviam produzido. ?Ele lhe dará o que você nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!
?Por todos os livros que li! ?Continuou aparentemente divertida, embora ainda estivesse pasma com a alegação de Madeleine. ?Você acabou de me jogar uma maldição? Já não tivemos o suficiente com Anne?
?Continue assim, Mary. Continue pensando que nada vai mudar, que você é tão poderosa que pode controlar o mundo. Mas você esta errada ?disse enquanto abria a porta. ?Em três dias nossas irmãs voltarão e darão a nossos pais uma grande notícia. Quando isso acontecer... Sua vida cínica desaparecerá para sempre! ?Acrescentou antes de sair do quarto batendo a porta.
Mary não desviou o olhar da porta até que ouviu Madeleine fechar a sua. Era a primeira vez que discutiam. Jamais lhe fez mal, pois assumia que bastante dor lhe causava suportar dia após dia um comportamento tão abstraído e tímido. No entanto, desde que conheceu lorde Giesler, perdeu a cabeça. Não apenas sentia coisas indevidas, imorais e inapropriadas para ela, mas também o cinismo, enfatizado pela irmãzinha, aumentara. Talvez se tratasse de um mecanismo de defesa. Muitas pessoas agiam de maneira estranha para não mostrar ao mundo sua debilidade. Mas ela... Desde quando se tornou uma mulher fraca?
Irritada e decepcionada consigo mesma, afastou o lençol para o lado e caminhou lentamente em direção à janela. Não precisou fechar as cortinas para subir no peitoril da janela. Sua mãe ordenou que Shira as amarrasse nos dois lados para que a luz do dia chegasse ao quarto e a acordasse antes das nove da manhã. Subiu a camisola até as coxas e se sentou sobre o frio parapeito. Abraçou os joelhos e apoiou o queixo neles. Por que agiu assim com Madeleine? O que provocou sua fúria? A resposta surgiu sem a necessidade de esforço: Porque se tivesse razão, se a jovem vidente estivesse certa, o desejo, pelo qual lutou durante tantos anos, desapareceria e, tudo por quê? Por um homem. Esse gênero humano que odiava com todas suas forças porque a humilharam, a ultrajaram e, em mais de uma ocasião, cuspiram perto de seus sapatos para lhe deixar claro que não tinha valor algum, embora os seus conhecimentos fossem superiores aos deles.
Fechou os olhos e suspirou fundo, como se fosse uma anciã a ponto de expirar. Madeleine pensava que ela seria feliz com lorde Giesler? Duvidava. Era certo que a atração sexual entre ambos era ilógica, mas ninguém podia viver décadas junto a uma pessoa baseando-se na paixão. Ela, nos poucos momentos em que pensou em casamento, sonhava em conseguir o que seus pais possuíam: um casamento cheio de amor, respeito, consideração, apoio e acima de tudo confiança. Obviamente, não podia confiar em lorde Giesler, sua reputação como libertino era bastante considerável. Hoje poderia morrer beijando-a, tocando-a ou possuindo-a, mas... e amanhã? Bufou diante da reflexão tão anormal que tinha chegado, voltou para a cama, subiu nos lençóis e se cobriu com eles. Uma vez que notou o leve calor do sono, fechou os olhos e... abriu-os! Como se um dragão tivesse aparecido aos pés da cama, afastou os lençóis, se sentou e olhou para a porta.
?Como diabos soube? Como descobriu que sonhei com o corvo, com o fogo e com o lorde Giesler? ?Esbravejou antes de permanecer nessa posição o resto da noite.
Capítulo XIII
Nunca tinha vivido uma situação tão exasperante com Madeleine. Talvez porque, sendo a caçula das irmãs, o tratamento com ela sempre fora diferente. Nunca houve uma palavra ou um ato malicioso de sua parte, pelo contrário, raro era o dia em que não era obrigada a mimar ou protegê-la devido ao seu comportamento frágil. No entanto, durante os próximos dois dias, a doce e tenra Madeleine se tornou a vilã mais cruel do planeta. Toda vez que tinha a chance de conversar com ela, virava o rosto e levantava o queixo com orgulho. Todos os esforços que fez para suavizar a convivência entre as duas não obtiveram os resultados desejados. Madeleine nunca agiu assim. Era a primeira vez que tirava, de algum lugar de sua timidez, coragem e ousadia tão característica na família.
Se levantou da poltrona e esticou os braços, observando como suas trinta e três vértebras tomaram o lugar certo na coluna vertebral. Depois do chá, e depois de sofrer outra rejeição de Madeleine, decidiu se trancar na biblioteca e deixar o tempo passar antes de causar outra abordagem entre elas. Esperava que, durante aquelas três horas e antes da chegada do pôr do sol, Madeleine tivesse consciência de que havia cometido um erro. É claro que, uma vez que sua antiga relação retornasse, não haveria menção à bendita previsão. Tinha certeza de que o fracasso a humilharia a ponto de agravar seu caráter retraído.
Sob nenhuma circunstância duvidou sobre o que aconteceria quando o prazo indicado por sua irmã expirasse. A parte Moore, tão racional e sensata como sempre, afastou de sua mente qualquer assunto sobre previsões, bruxaria, magia ou feitiços e os manteve em alguma área do cérebro que usava como informação desnecessária. Tudo ao seu redor tinha uma explicação lógica, até a suposta maldição de Anne: isso nada mais era do que a conclusão de um compêndio de circunstâncias infelizes criados pelos dois noivos. Apesar disso, era uma lástima que Anne tivesse que sofrer as consequências de ações que não lhe correspondiam. Mas era assim que a sociedade hipócrita agia. Como não podiam culpar os mortos, porque consideravam falta de moralidade, dirigiam seus olhares e sussurros para os vivos, independentemente da inocência e do impacto sobre eles.
Depois de depositar o livro sobre a mesa à direita, se levantou do sofá e caminhou pela sala. Sentia um formigamento irritante nas pernas por mantê-las na mesma posição por tanto tempo. Muito lentamente, levantou a saia do descarado vestido azul, um que sua mãe comprou como castigo por sua contínua rebeldia, e mexeu os pés e o tornozelo. Felizmente, seu conhecimento profundo do corpo humano a alertou que não estavam machucados, mas contraídos pela falta de atividade. Deixou cair o tecido, cobrindo de novo os sapatos de couro que tinha decidido colocar nesse dia. Faltava apenas uma vassoura, um gorro cônico e um caldeirão para exibir a imagem de uma bruxa da qual todo mundo falava quando encontravam com ela na rua. Essa comparação, e a mistura real de sangue que possuíam as Moore, lhe fez sorrir. No fundo, não estavam mal encaminhadas. Se a premonição de Madeleine tivesse sido cumprida, até ela teria presumido que tinha origens mágicas. Talvez até admitisse que sua capacidade médica se devia, de certa forma, à origem cigana. Mas, felizmente, não era assim. Ela sempre soube que adquirir conhecimento seria a melhor ferramenta para realizar seu sonho: tornar-se uma pessoa tão extraordinária quanto seu pai. Portanto, durante suas leituras, nunca invocou nenhum espírito para ajudá-la a entender melhor os ensaios médicos. Era o suficiente ler e raciocinar. Essa era sua única habilidade e segredo. No entanto, apesar de ninguém mudar de ideia sobre a racionalidade necessária para a compreensão de todos os fatos, ela continuava dando voltas a um assunto. Como Madeleine descobriu os três elementos fundamentais de seu sonho? Embora considerasse a possibilidade de falar enquanto sua irmã tentava despertá-la, não terminava por aceitar essa afirmação como válida. Até o dia em que Anne partiu, esta nunca lhe fez referência a esse hábito inconsciente, e isso que dormia com ela desde que tinha uso da razão. Além disso, não tinha dúvida de que, se tivesse feito isso, teria a censurado assim que abrisse os olhos. Anne era a única das irmãs que não se sentia desvalorizada por sua inteligência e a confrontava sem piedade. Por esse motivo, toda vez que estava errada, havia a mais velha das Moore para lembrá-la de que, apesar de seu grande intelecto, tinha mais defeitos do que virtudes.
?Senhorita Mary! ?Shira exclamou abrindo a porta da biblioteca sem bater. ?Saia! Rápido!
?O que aconteceu? ?Perguntou, virando-se para ela tão rapidamente que suas pernas dobraram por falta de forças.
?Suas irmãs! Suas irmãs voltaram! ?Gritou feliz.
?Como disse? ?Mary retrucou arregalando os olhos.
?O que ouve! Exatamente agora, acaba de chegar uma carruagem com o brasão do visconde de Devon ?continuou eufórica. Vendo que a menina não era capaz de reagir, pois permanecia congelada no lugar e seu rosto empalideceu até adquirir a cor do leite, deu um passo em sua direção. ?Está bem? Já lhe disse mil vezes que não deve gastar tantas horas lendo esses livros. Ficará cega e sua pele desbotará. ?Shira estendeu a mão para Mary, mas ela deu um passo atrás, evitando qualquer contato. ?Sua mãe e Madeleine saíram para recebê-las ?lhe informou antes de se virar e seguir para a porta. ?Irá acompanhá-las ou explicou que decidiu continuar trancada na biblioteca?
?Sairei em breve ?comentou quase sem voz.
?Não faça elas esperarem senhorita Mary, ou temo que sua mãe a castigue novamente sem sair de casa por mais dois anos. ?Avisou antes de caminhar rapidamente para o corredor.
Haviam chegado! Estavam lá! Como era possível que Madeleine soubesse? Angustiada e atordoada, fechou os olhos e contou os dias que passaram desde que suas irmãs se foram. Não, ainda não tinha terminado o prazo que o visconde considerou oportuno para realizar o trabalho. Ainda restavam doze dias para o esperado retorno. Mantendo os olhos fechados, levou as mãos para o rosto e esfregou-o desesperada enquanto perambulava pelo centro da sala. Tinha que encontrar, o mais rápido possível, uma explicação lógica que a salvasse do atordoamento mental que sofria. Mas não encontrava com a rapidez que requeria. A opção de que Madeleine sabia desse fato antes dela não era válida. Nem a menininha saiu para a rua, nem ela saiu de casa, exceto quando Valéria a enganou para levá-la para a residência do irmão. Seria informada sobre o retorno durante a sua ausência? Não. Isso também não era plausível. Sua mãe não conseguia guardar um segredo que pertencia à família. Nada a faria calar, nem expressar a euforia que teria sentido depois de receber a notícia. No entanto, apesar de qualquer concepção surrealista, tinha acontecido. Suas irmãs estavam na entrada exatamente no dia que Madeleine mencionou. Realmente possuiria um dom Zíngaro? E se fosse assim... que lugar a lógica teria no mundo? Se o futuro pudesse ser previsto, deixariam de existir surpresas, os avanços médicos ou as preocupações para descobrir coisas novas. Bastaria procurar pessoas com a habilidade de Madeleine para que respondessem às perguntas que surgissem ao longo dos anos. O mundo se renderia a pensamentos transcendentais, deixaria de lado o real e basearia suas vidas na busca do imaginário, assim como fizeram os grandes pensadores. Refletindo sobre essa opção, tirou as mãos do rosto e arregalou os olhos. As teorias filosóficas seriam verdadeiras? Esses grandes gênios evocariam a verdade? Teriam o mesmo dom que sua irmã e, por esse motivo, viveram e pensaram de maneira tão diferente? Talvez Platão, Sócrates, Aristóteles e até o próprio Emanuel Kant proclamaram suas ideias depois de visualizá-las ou apresentá-las. Desesperada, apertou tanto os punhos que as unhas se cravaram nas palmas das mãos. Não devia refletir sobre o passado, mas sim no futuro. Segundo Madeleine, ela se casaria com lorde Giesler, seria feliz e ele a ajudaria a conseguir tudo o que sempre quis. Isso faria qualquer mulher feliz que, entre seus planos, abrigasse a possibilidade de conseguir um bom casamento. Mas ela nunca considerou uma ideia tão absurda. Apesar da afirmação de sua irmã, sabia que, uma vez que aceitasse o sobrenome Giesler, este a converteria em uma pessoa sem decisão, sem autoridade. Em poucas palavras: a anularia em todos os sentidos. Furiosa, correu para a janela, de onde podia contemplar o lado de fora de sua casa sem ser descoberta. Seu coração parou de bater quando viu que sua mãe abraçava Anne e ambas davam pequenos saltinhos de alegria. Junto a elas, Madeleine fazia o mesmo com Josh, que continuava vestindo roupas mais próprias de homens que de mulheres. Então viu como Elizabeth saía da carruagem. Embora escondesse o rosto com a aba larga do bonito chapéu branco, Mary notou que seus olhos estavam fixos no chão, como se tivesse vergonha de voltar para sua humilde casa. A mãe, ao vê-la, se afastou de Anne e a abraçou. Elizabeth não evitou o abraço, mas manteve os braços estendidos, como se não tivesse forças para abraçá-la. Um comportamento atípico nela porque, embora sempre se considerasse superior as outras por causa de sua beleza exuberante, nunca rejeitou uma carícia ou um abraço materno. Fechou os olhos, deixando para trás a estranha atitude de Elizabeth e se concentrando na questão que a preocupava. Como deveria agir? Como lutaria contra algo que ainda não havia chegado e que não se deseja? Quando obteve a resposta, arregalou os olhos e exibiu o sorriso mais maligno que sua boca pode esboçar em um momento tão exasperado. Ela tinha a solução para o problema. Felizmente para ela, sua mente ainda estava lúcida, apesar do colapso que suportava. O objetivo era muito simples: lutar com unhas e dentes para que a profecia de Madeleine não se cumprisse. Essa era uma das vantagens de conhecer o futuro, que se podia encontrar a maneira mais eficaz de evitá-lo. Satisfeita, feliz e cheia de energia, se virou para a porta e caminhou pela sala, juntando a ponta do pé esquerdo com o calcanhar do lado direito e vice-versa. Se suas irmãs entrassem em casa sem que ela as cumprimentasse corretamente, sua mãe ficaria com tanta raiva que aumentaria o castigo por mais alguns meses. E assim começava o plano para destruir seu futuro. Quanto mais castigos recebesse, menos chances teria de sair de casa e, é claro, as chances de encontrar aquele gigante com olhos claros e cabelos loiros seriam tão reduzidas que os chamaria de nada.
?Mary! ?Anne gritou quando ela entrou na biblioteca. ?Por que não veio nos receber? Estava de novo absorta em outra teoria sobre a radicalização de doenças infecciosas? ?Antes de receber uma resposta, avançou até ela, a abraçou e a fez girar. ?Senti sua falta, rata de biblioteca! ?acrescentou depois de lhe dar dois beijos estalados.
?Certeza? ?Estalou cética.
Enquanto as gêmeas falavam com Elizabeth na galeria, que lhes informou que se retirava ao seu quarto para descansar, Mary observou o rosto de Anne. Tinha um brilho especial nos olhos e, pela primeira vez desde a morte de Dick, irradiava felicidade. Então voltou sua atenção para Madeleine que, depois de esperar que Eli subisse para seu quarto, caminhou com Josh para onde elas estavam. Quando se entreolharam, a bruxinha deu a ela um sorriso tão pérfido que a deixou congelada. Esse gesto expressou tanta diversão e triunfo, que a perplexidade entre as profecias absurdas e o desaparecimento da razão voltou à sua mente.
?Por que não saiu para recebê-las? ?Esbravejou sua mãe, colocando as mãos na cintura. ?Quer ficar trancada pelo resto da vida? Porque eu garanto que é o castigo que você merece.
?Sinto muito, mãe. Fiquei tão surpresa com a chegada de minhas irmãs que fui incapaz de reagir. ?Nesse momento, Madeleine soltou uma sonora gargalhada. ?Mas se acha que devo ser castigada, desta vez não discutirei ?Mary persistiu antes de ser agarrada pelos braços fortes de Josh.
?Oh, mãe! ?Anne interveio, pegando as mãos de Sophia. ?Eu imploro, não a castigue hoje. Tenho que lhe dar ótimas notícias e não gostaria que Mary ficasse triste em um dia tão importante para mim.
«Para o inferno, Anne! ?pensou Mary. ?Não é um bom momento para assumir a postura de irmã solidária e protetora».
?Do que se trata? ?A mãe perguntou curiosa, fazendo desaparecer a raiva que causou a desobediência da segunda de suas filhas. ?Talvez seja por isso que voltaram tão cedo? ?Insistiu, sem afastar os olhos de Anne que tinha se separado dela o suficiente para começar a dar voltas.
?Vai se casar com o Visconde! ?Declarou Josh ao retornar ao lado de sua irmã gêmea. Se apoiou na moldura da porta, adotou uma postura típica masculina e olhou para sua mãe. ?Ele pediu e ela não pôde recusar ?acrescentou.
?De verdade? ?Perguntou a mãe surpresa, colocando as mãos nos ombros de Anne para fazê-la parar. ?Está certa da decisão que tomou?
?Sim ?respondeu, abaixando um pouco o rosto para esconder o rubor. ?Nunca estive tão segura de algo. Logan é o homem que esperei por toda a minha vida e o único que nos salvará da maldição. ?E aí terminou sua explicação. Era responsabilidade de Logan revelar ou não sua origem. Embora sua mãe deveria entender que, se ela o aceitou depois do que aconteceu no passado, o motivo era mais que evidente.
?Acho que já nos livrou dela ?Madeleine admitiu dando um passo à frente.
?Por que diz isso? ?Josh fez a pergunta que, quando a ouviu falar, se afastou do batente da porta, descruzou os braços e as pernas e seguiu a irmã gêmea.
?Pressenti faz alguns dias ?continuou dizendo a mais nova. ?Percebi que a escuridão ao nosso redor desapareceu. Agora só há luz sobre nós.
?Percebeu mais alguma coisa? ?Josh queria saber, e Madeleine se aproximou de por trás e falou entre sussurros.
?Você quer dizer a mudança emocional que sofreu ultimamente? Ou quer me perguntar sobre os sentimentos que teve em relação a um jovem mais severo do que um batalhão de soldados? ?Murmurou, antes de sorrir de orelha a orelha.
?Maldita seja! ?resmungou, revirando os olhos. ?Um dia poderei ter um segredo só para mim?
?Nunca ?Madeleine respondeu antes de se virar para ela e abraçá-la novamente.
?Há algo mais que eu deveria saber? ?Sophia disse, estreitando os olhos ao ver as duas menores sussurrando secretamente.
?Não! ?Josephine negou rapidamente se separando de Madeleine.
?Bem, Josh preciso lhe contar algo sobre o novo membro da família ?Anne interveio zombando.
?Novo membro??soltou a mãe arregalando os olhos. ?A que se refere?
?Se chama Galeón ?Josh respondeu feliz. ?É um dos cavalos que o visconde tem na residência e, devido à conexão que tivemos, me presenteou.
?Um cavalo? ?Mary estalou surpresa. ?E onde diabos pensou em mantê-lo, no seu quarto?
Sophia recuperou a cor do rosto, que empalideceu ao interpretar a afirmação de forma inadequada e respirou calmamente. Nunca considerou a possibilidade de que Josh se comportasse inadequadamente, mas depois de ouvir que a maldição se foi, tudo poderia acontecer...
?De verdade? ?Interveio Madeleine. ?E, como é?
?Ele é muito bom e inteligente ?declarou olhando para Mary. ?Cavalguei sobre ele durante toda a viagem. Não o viu? Amarrei-o em um dos ramos da árvore da entrada. Se quiser, podemos sair para que o conheça.
?Claro! ?A menina exclamou. ?Mal posso esperar para conhecer o novo membro Moore. Além disso, tenho o pressentimento de que esse cavalo te ajudará a conseguir aquilo que tanto sonhou ?lhe assegurou enquanto ambas caminhavam para a saída.
?É outra de suas visões? ?Josh estalou estreitando os olhos.
?Não. Desta vez é apenas um palpite... ?ela alegou misteriosamente enquanto a pegava pelo braço e a levava para fora.
Mas antes das duas saírem, Madeleine virou seu rosto para Mary. Quando ambas se encontraram com o olhar, a jovem separou os lábios para lhe lançar uma mensagem que só ela pôde captar: «Começa sua mudança». Essas três palavras lhe causaram um calafrio tão mortal que tentou apaziguá-lo, concentrando-se na irmã ausente.
?A propósito, onde está Elizabeth??Perguntou virando-se para Anne.
?Sofre uma tremenda dor de cabeça ?respondeu enquanto se sentava. ?Sofre desde sábado à noite. Embora me ofereci para aliviar sua dor, não quis aceitar qualquer ajuda da minha parte. Sinceramente, não é a mesma desde aquele dia ?comentou reflexiva. ?Durante a primeira viagem a Londres, decidiu viajar na segunda carruagem, acompanhada por Howlett, valete de Logan. Pensei que a dor desapareceria, porque o jovem me disse que tinha a solução para isso, mas não foi assim. Na última pousada que paramos para descansar, ficou todo o tempo dentro do veículo e não saiu dali até que teve que entrar no que viemos. Insisti em oferecer-lhe um analgésico, mas não aceitou. Se inclinou na direção da janela, fechou os olhos e não os abriu até que lhe anunciei que havíamos chegado ?explicou Anne com tristeza. Nutria a esperança de que Elizabeth não agisse dessa forma depois da notícia de seu compromisso com Logan. No entanto, nada podia ser dado como certo com ela.
?A viagem lhe provocou isso... ?concordou Sophia após assumir que, pela primeira vez, a inveja podia estar causando a Elizabeth um terrível desapego familiar.
?Se quiser, posso aparecer no seu quarto e descobrir ?declarou Mary colocando-se na frente delas.
?Temo que essa dor não desapareça com nenhum remédio seu ?Anne respondeu enquanto enroscava os dedos na saia do vestido.
?Por que diz isso??A mãe retrucou inquieta.
?Porque acho que não lhe agradou a notícia do meu compromisso. Você sabe que, desde o que aconteceu com Archie, ela insiste em se casar com um aristocrata e talvez o fato de eu ter conseguido sem pretender e sem sonhar...
?Bobagens! ?Mary a interrompeu. ?Elizabeth é uma presunçosa, uma petulante e um pouco estúpida, como os dessa bendita classe social, mas por suas veias e as nossas corre o mesmo sangue. Estou certa de que a dor de cabeça tem uma causa lógica. Não tenho a menor dúvida de que agirá como sempre uma vez que desapareça ?alegou como se fosse uma advogada defendendo seu cliente.
?Mas se você sair agora, não ouvirá o que aconteceu comigo durante esses dias. Não quer saber como Logan me pediu em casamento? ?Anne estalou estreitando os olhos.
?Certamente posso adivinhar a história sem precisar da ajuda de Madeleine... ?Mary disse colocando um dedo no queixo, enquanto batia no chão com a ponta de seu pé direito e fixava os olhos no teto. ?Como não teve que cuidar de sua virtude, porque Dick lhe tirou isso, o seduziu até que caísse aos seus pés. Após vários encontros clandestinos, decidiu que, devido à sua constituição e força, não encontraria outro homem que a satisfizesse na cama tanto quanto ele. Então você usou sua origem cigana para lançar um feitiço. Este agiu imediatamente, fazendo com que o pobre visconde se apaixonasse por você e te pedisse casamento, estou certa? ?Explicou mordaz.
?Mary Moore Arany!?Clamou sua mãe se levantando de um salto. ?Como se atreve a falar com sua irmã de maneira tão descarada e inapropriada? Por que não seleciona tudo o que aparece em sua mente e escolhe a coisa certa a cada momento?
?Vai me castigar? ?Teimou fingindo medo. ?Tenho certeza que mereço por cometer tanta insolência ?insistiu.
?Foi isso mesmo que aconteceu ?Anne interrompeu a conversa entre sua mãe zangada e Mary, esboçando um grande sorriso. Se os anos de experiência com ela não a enganavam, ela tentou executar um plano que implicava a palavra castigo. O que havia acontecido durante sua ausência? Por que agia dessa forma tão pouco racional? O melhor era descobrir antes que Logan aparecesse para pedir formalmente sua mão e se encontrasse no meio de uma grave disputa familiar. ?Embora você esteja errada sobre uma coisa, eu não o seduzi, ele foi quem me cativou e ambos chegamos à conclusão que, devido à nossa afinidade sexual, era conveniente compartilhar o resto de nossas vidas sob o mesmo quarto antes de manter encontros secretos e esporádicos.
Essa resposta deixou Sophia sem palavras, mas elas causaram mais estranheza em Mary. Como poderia falar assim na frente de sua mãe? Sua irmã havia perdido o pouco juízo que tinha? Se, como Madeleine disse, a maldição desapareceu, arrastou a baixa moralidade e bom senso de Anne com ela. Jovenka não teve mais de cem amantes? Bem, depois de ouvi-la, não lhe cabia a menor dúvida que, se o visconde corria a mesma sorte que os dois anteriores pretendentes, Anne superaria a velha cigana.
?Visite Elizabeth e descubra o que acontece com ela ?comentou Sophia uma vez que acalmou o imenso sufoco. ?Em seguida, tranque-se no seu quarto até eu chamá-la para jantar. Preciso conversar com seu pai sobre a atitude que você está adotando desde que operou lorde Giesler. Creio que...
?Operar? ?Anne disse surpresa. ?Lorde Giesler? E continua vivo?
?Sim ?Mary afirmou com orgulho. ?Lorde Giesler está são e salvo graças a minha sábia decisão e talento ?continuou com soberba.
?Tem que me contar tudo! ?Perguntou Anne se levantando da poltrona.
?Fará, mas quando terminar de me contar o que aconteceu durante sua ausência ?Sophia respondeu com autoridade.
?Então, se me desculparem, seria conveniente que visite Elizabeth ?disse Mary dando grandes passos para a porta antes que Anne interviesse de novo e sua mãe mudasse de opinião.
?Não vá muito longe ?Anne avisou quando sua irmã se aproximou da porta. ?Temos uma conversa pendente.
?Certamente não será tão divertida como a tua... ?apontou antes de sair e fechar.
Capítulo XIV
Depois que ouviu Anne começar sua história, ela encostou as costas na porta e suspirou profundamente. Nada, que sua primeira tentativa para que a castigassem saiu como esperava. Como conseguiu isso? Se tivesse falado com Anne dessa maneira descarada, antes que todas pensassem que a bendita maldição terminou, teria tido tal retaliação que nada nem ninguém a teria consolado em anos. No entanto, lá estava ela, ilesa, apesar do seu esforço para se magoar. Olhou para o andar de cima e franziu a testa ao lembrar que Elizabeth não se apresentou na biblioteca para cumprimentá-la. Ainda estava se comportando de maneira estranha. Até o momento, a irmã arrogante sempre agia como uma verdadeira aristocrata, incluindo, aquele comportamento arrogante, a hipocrisia que a classe social mostrava ao cumprimentar mesmo quando não queriam. Mas, por algum motivo, não reagiu como de costume. Não importava se sua cabeça doía, que estava enjoada ou que tinha quebrado um ombro, Elizabeth nunca evitava um encontro em família e menos depois de uma viagem como a que ela acabou de fazer. Quantas vezes saiu para fazer compras e, depois de voltar, aparecia diante dela para lhe contar tudo o que fez sem esquecer um mísero detalhe? Tantas que não se lembrava. No entanto, parecia que a viagem a transformou até o ponto de esquecer um princípio tão básico como era a cordialidade. De repente, a resposta que estava procurando para obter o castigo desejado apareceu. Talvez, se ela a censurasse por esse comportamento inadequado, sua mãe abandonaria a atitude passiva que adotava e retornaria a mulher que, com apenas um olhar, fazia suas filhas tremerem. Só esperava que Eli não agisse com a mesma benevolência que Anne. Realmente não precisava da compaixão de nenhuma de suas irmãs dessa vez.
Sem poder apagar o sorriso que sua boca desenhou ao ter outra alternativa entre as mãos, subiu as escadas de dois em dois. Mal respirou quando correu pelo corredor, nem quando se colocou na frente da porta. Tinha um novo objetivo e devia realizá-lo o quanto antes. Desesperada, agarrou a maçaneta, virou e entrou sem pedir permissão. Mas toda a emoção e felicidade que viveu durante a corrida, desapareceu de repente ao ver que Elizabeth não se encontrava onde ela esperava. O edredom permanecia encolhido aos pés da cama, o lençol jogado para o lado direito e o vestido que sua irmã usava quando chegou, estava no chão, jogado descuidadamente. Esse detalhe deixou Mary bastante confusa. Nunca, desde que se lembrava, Elizabeth havia tratado um vestido assim. Cuidava deles e os mimava como se fossem seus filhos. Às vezes, ela até supervisionava Shira quando os passava e engomava. O que teria acontecido com ela para agir dessa maneira? Seu coração começou a bater rapidamente, alertando-a de que a resposta que teria não seria do seu agrado. Tentou afastar aquele palpite, mais típico de Arany do que do sangue Moore, e se concentrou em tudo aquilo que observava. Não se deixaria levar por especulações absurdas, sua experiência no campo da medicina lhe sugeria que devia analisar tudo aquilo que encontrava para chegar a uma conclusão real.
Caminhou lentamente até a almofada, levantou-a e abriu a boca quando viu que a camisola não estava no lugar. Desde quando Elizabeth saía do quarto sem usar um de seus lindos vestidos ou sem arrumar mil vezes o penteado? Mais preocupada se possível, ela se dirigiu para a penteadeira. Sua irmã tinha uma grande variedade de utensílios para usar e embelezar um penteado, além de quatro chapéus de cores diferentes, expostos com muito cuidado no cabideiro que seu pai colocou em cima do espelho e quatro pincéis de diferentes materiais e formas. No entanto, Mary não prestou atenção aos objetos que prolongavam a harmonia da sala, mas ao que estava quebrado: o chapeuzinho que Elizabeth usava quando voltou. Ele se abaixou devagar e o pegou do chão. O que aconteceu? A ideia que Anne comentou ganhou força e intensidade. Apesar de não querer admiti-lo, todas as provas apontavam para essa opção. Irritada, porque não podia tolerar o ciúme tomando conta de Eli e sua terrível resposta emocional arruinando a pacífica vida familiar, ela deixou o chapéu branco na penteadeira e saiu rapidamente do quarto. Agora sua mãe não teria escolha senão castiga-la, porque os gritos de censura que ela daria a terceira das Moore seriam ouvidos até na própria Alemanha.
Pisando o chão como se quisesse quebrá-lo, percorreu o corredor de forma apressada. Levantou a saia do atrevido vestido e desceu as escadas com tal rapidez, que parecia ter brotado asas nos tornozelos. A situação seria resolvida no momento em que a encontrasse, e se tivesse que procurar em todos os cantos de sua casa, ela faria.
Mas não a encontrou... Elizabeth não estava dentro de casa.
Depois de percorrer cada esconderijo, por pouco mais de meia hora, não encontrou sinal da moça. Só havia um lugar para procurá-la: a estufa. Mary passou pela porta da biblioteca e ouviu como Anne continuava contando sua linda história de amor com o visconde, enquanto sua mãe se mantinha em silêncio. Nenhuma das duas suspeitava que a terceira das irmãs houvesse desaparecido. Tinham certeza que estava em seu quarto, descansando e sofrendo uma terrível dor de cabeça. Por alguns segundos, pensou em alertá-las sobre o problema, mas depois descartou essa opção. Se queria ser castigada, teria que reprovar o comportamento infantil da irmã. Depois de bufar, porque não gostava de ocupar o papel de mãe e muito menos quando procurava uma reprimenda, foi até a porta de saída. Uma vez que a abriu, foi incapaz de afastar o olhar da imagem que se produzia do lado de fora.
Madeleine estava no meio do jardim, aplaudindo a atitude de Josh. A gêmea cavalgava ao redor dela, dirigindo o animal com temperança e segurança, como um autêntico soldado. Mantinha as costas retas, enquanto seu corpo subia e descia ao ritmo do trote. Mary fixou os olhos no rosto da jovem e contemplou um orgulho e uma satisfação que invejou por alguns segundos. Então assistiu o movimento compassado de sua trança. O cabelo branco que Josh tanto detestava a fazia tão bonita, que qualquer homem ficaria prostrado a seus pés. Não entendia como ela ainda se chamava a irmã mais feia quando na verdade era uma jovem muito bonita. Por que eram obrigadas a pensar que só alcançariam uma beleza real e feminina se possuíssem os traços que ditavam os cânones sociais? Josh, apesar de sua contínua negação, era preciosa não só por sua diferença física, mas também por seu caráter. E inclusive esse comportamento selvagem que apresentava diariamente engrandecia esse esplendor feminino.
Admiração. Esse sentimento brotou em Mary ao contemplar a majestosa habilidade de Josh que, como acontecia a ela no campo da medicina, era difícil de superar. Não importava que todo mundo alegasse que seu dom era mais próprio de um homem que o de uma mulher, ela o possuía e exibia com muita dignidade. Mary suspirou fundo, refletindo sobre o futuro da jovem. Qual seria o seu destino? Se ela admitisse que a maldição existia, o que ainda não fez, confiaria que encontraria um marido capaz de aceitar seu comportamento estranho, mas ela sabia que isso não seria possível. Nenhum homem, dos que tinha conhecido até o momento, suportaria que sua esposa fosse mais preparada em temas masculinos que ele.
Deu um passo em frente, sem poder desviar o olhar dessa união entre humano e animal. Nunca se referiu a uma atividade tão branda para ela como expectadora, mas foi assim no fim. Majestade, beleza, divindade ou qualquer palavra que procurasse para defini-la não alcançaria a realidade. Josephine era, sem dúvida, uma amazona, uma guerreira, uma deusa a cavalo e onde ambos expressavam, num ato tão simples quanto correr, uma cumplicidade tão extraordinária que qualquer cavaleiro enlouqueceria para alcançar. No entanto, a magia da situação celestial desapareceu quando Mary percebeu como os quatro cascos do animal se cravavam repetidamente na grama, aquela que seus pais tão bem cuidavam.
?Mas como te ocorreu cavalgar por nosso jardim! ?Gritou para Josephine caminhando em sua direção. ?Não se lembra do esforço que nossos pais fizeram para mantê-lo desta forma? Demoraram anos para mantê-lo assim!
Josh, ao ouvi-la, moveu as rédeas de Galeão para que este se dirigisse para a irmã berrante. Uma vez que se colocou diante dela, e a observou tão pequenina e assustada, um sorriso maléfico se desenhou em seu rosto.
?Afasta agora mesmo esse perisodáctilo do meu lado! ?Lhe pediu enquanto andava para trás. Só parou quando suas costas tocaram o grosso muro de pedra que dividia o jardim da casa.
?Peri... o quê? ?Josh perguntou, descansando os antebraços na crina do cavalo. ?Se chama Galeón.
?Perisodáctilo ?Mary repetiu sem diminuir a raiva ou o medo que sentia na presença do grande animal, que a olhava com seus enormes olhos castanhos. ?Assim se denomina os mamíferos placentários. Aqueles que possuem em suas extremidades um número ímpar de dedos. Como pode ver, seu novo amigo tem um em cada perna e este se denomina casco.
?Gosta de ser chamado desse modo estranho, Galeón? ?Josh lhe perguntou, inclinando-se para a orelha esquerda do animal. Este, como resposta, relinchou e moveu a cabeça. Atitude que deixou Mary mais surpresa se isso fosse possível. ?Não volte a chamá-lo por esse nome porque não gosta.
?Pois não me importa se gosta ou não! ?Respondeu, movendo-se muito lentamente para a esquerda para sair daquela encruzilhada mortal.
?Para onde vai? ?Josh retrucou, depois de açoitar Galleon para andar atrás de sua irmã.
?Não me siga! Por acaso não sabe que esse quadrúpede pode me matar? ?Esbravejou sem olhar para ela e sem parar de andar.
?Galeón é inofensivo...
?Sim, é claro, como as benditas armas que você dorme até levantar ?respondeu se virando para as duas em um ato de coragem. ?Devo deduzir que esqueceu seu velho hábito de jogar com espadas, adagas ou pistolas para substituí-lo por... isso? ?Argumentou, apontando para o animal com um dedo.
?Você realmente acha que eu esqueci delas? ?Respondeu antes de soltar uma risada leve e levantar a perna da calça para mostrar a faca que estava escondendo na bota. ?Sempre estarão comigo, Mary. São e serão meus únicos aliados na luta contra um mundo injusto ?declarou firmemente.
?Quer lutar contra as injustiças? ?Repreendeu. -?Bem, precisará de um bom arsenal, Josh, porque posso garantir que encontrará, ao longo de sua vida, mais de um milhão.
?Vou comprá-los assim que... ?tentou responder, mas ficou em silêncio quando observou a presença de Madeleine que, como era habitual nela, apareceu sem fazer nenhum ruído.
?Aonde você vai Mary? ?A menina perguntou depois de acariciar o pescoço de Galeón. ?Está procurando sua mudança? ?Acrescentou sarcástica.
?Não ?negou veementemente. ?Estou procurando Elizabeth, e sobre minha mudança, posso garantir que sei como detê-la ?murmurou altiva.
?Se você diz... ?Madeleine respondeu exibindo um grande sorriso.
?Se retirou para seu quarto ?Josh interveio enquanto descia do cavalo. ?Sofre de uma terrível dor de cabeça desde...
?Sábado. Sim, eu sei ?Mary a cortou. ?Por esse motivo, minha mãe ordenou que eu a visitasse. Quer que eu a ajude a acalmar sua dor. No entanto, quando apareci no seu quarto, não a encontrei ?continuou.
?Estará na estufa ?Josh disse sem mostrar nenhum sinal de preocupação. ?Sabe que as ervas que cultiva são muito importantes para ela. Durante esses dias, se perguntou se Madeleine seria capaz de cuidar delas, como indicou. Talvez, apesar da dor de cabeça, quis confirmar que não quebrou um caule ou caiu uma folha ?acrescentou sorrindo enquanto pegava as rédeas e as enrolava entre os dedos.
?Quer que te acompanhe? ?Madeleine se ofereceu. ?Me fará bem falar com ela. Não quero que se zangue por algo que puder fazer.
?Não. Me interessa mais que passe seu tempo vigiando ao Josh e a esse bicho. Não sei onde pretende colocá-lo, mas não creio que a escolha que tenha tomado seja adequada...
?Pedirei ao pai para construirmos um estábulo ?assinalou a referida, virando Galeón em direção ao portão externo do jardim. ?Há espaço suficiente para...
Mary parou de ouvir a ideia futurista de Josh quando Madeleine a agarrou pelo braço e a puxou.
?Não esqueça o que eu te disse. Aceite de uma vez por todas o seu destino.
?Não, se puder evitar ?resmungou antes de se soltar daquele aperto e caminhar em direção à estufa enquanto ouvia a criança dar uma grande risada novamente.
***
Se pensou, por um momento, que o seu mau humor desapareceria durante o caminho para a estufa, se equivocou. Após a perseverança de Madeleine, sua raiva atingiu um nível insuperável. Ela estava com tanta raiva que podia aparecer diante de Elizabeth e, sem dizer uma única palavra, pegá-la pelos cabelos para arrastá-la para dentro de casa, como se fosse uma mulher da Pré-História. Pretendia esmagá-la? Bem, não o fez! Tudo o que conseguiu foi atormentá-la para alcançar a maneira de destruir o suposto futuro.
Com as bochechas tão vermelhas quanto as pétalas de uma Gerbera, ela apareceu na frente da porta da estufa e a abriu com tanta brusquidão que as paredes de vidro tremeram e a saia do vestido foi puxada para trás. Sem fechar, deu dois passos à frente e olhou em volta, procurando a familiar silhueta feminina. Mas não a encontrou com tanta facilidade.
Depois de fechar, começou a murmurar mais de uma dezena de impróprios inadequados para uma mulher. Logo caminhou decidida pelo estreito corredor que levava ao lago que seu pai encomendou a construção. A cada passo, seu nariz capturava um cheiro diferente, tornando-a incapaz de descobrir qual flor emitia uma fragrância específica. Parou no meio do caminho e observou tanto o que encontrou a sua direita como a sua esquerda. Um éden. Elizabeth construíra, sob aquelas paredes envidraçadas, um belo lugar cheio de cores e perfumes. Se concentrou em seu alvo e avançou lentamente, sem desviar o olhar do arco-íris floral dos dois lados. Antes de chegar à pequena cisterna, teve que desviar dos grandes galhos da única árvore que sua irmã plantou. Sorriu ao se lembrar do dia em que ela apareceu com aquela mudinha de laranjeira. Não tinha mais de seis anos e mostrava tal entusiasmo que seus olhos brilhavam como duas estrelas. Depois que explicou aos pais o que pretendia fazer com o pequeno talo, Elizabeth saiu para o jardim, olhou para o céu e seguiu para o lado esquerdo da casa. Depois cavou um buraco com suas próprias mãos para plantá-lo enquanto seus pais a observavam em silêncio. Dois meses depois, começaram a construir a estufa e, quando terminaram, Elizabeth se tornou a fada das plantas. Não podia calcular quantas classes possuía nem o que podia fazer com elas, mas sim admitia que seu dom havia se desenvolvido com grande mestria.
Com a imagem do maravilhoso rosto infantil coberto de terra, era estranho o dia em que não chegava manchado em sua casa, e pensando sobre a mudança que sofreu após a traição de Archie, avançou. Então, enquanto o som da roda que movia a água da lagoa alcançava seus ouvidos, encontrou a silhueta que procurava.
As frases que escolheu para reprovar seu comportamento inapropriado, desapareceram de imediato ao contemplá-la daquela maneira. Sua suposição foi confirmada e, em vez de se sentir feliz, conjecturando outra teoria correta, entristeceu. Como deduziu, Eli tinha saído de camisola. Mas não pensou que a encontraria com um aspecto tão desleixado. O seu cabelo, habitualmente recolhido com cuidado, estava solto e frisado, como se não o tivesse escovado em dias. Depois observou a planta dos pés e franziu a testa ao vê-las tão sujas e com manchas de sangue. A mão esquerda de Elizabeth estendia-se frouxa, sem forças, sobre essa parte de seu corpo, enquanto a outra se movia em círculos sobre a água do diminuto lago.
Por um segundo, duvidou se deveria insistir no motivo de sua presença ou deixá-la sozinha com seus pensamentos. Não teve que pensar muito a resposta, pois esta apareceu no momento que a ouviu soluçar.
?Eli? ?Perguntou reduzindo a distância entre elas. ?Está tudo bem? ?Esperou que lhe respondesse, ao não fazê-lo, prosseguiu: ?Anne me disse que sofre uma terrível dor de cabeça e vim para acalmar essa dor.
?Pode ir, Mary. Minha dor não desaparecerá com nada... ?disse depois de alguns segundos angustiantes.
?Duvido ?afirmou colocando a mão direita no ombro esquerdo de Elizabeth. ?Sabe que, quando me empenho, nenhuma dor ou doença suportará mi...
Mary ficou em silêncio enquanto olhava o rosto da irmã. Onde estava a moça bonita? Não havia um pequeno traço dessa beleza com a qual nasceu. Seus olhos azuis não tinham luz, talvez porque as olheiras ao redor eliminaram todo o brilho. Suas bochechas, descritas por ela mesma como perfeitas, agora não passavam de pele sobre ossos, e seus lábios não tinham a cor vermelha intensa que ela tanto admirava porque haviam perdido a tonalidade ao ponto da palidez. Sem pensar duas vezes, afastou a mão do ombro e a colocou na testa, para verificar se estava com febre. Mas Elizabeth não estava quente, muito pelo contrário. Estava tão fria quanto uma estátua de mármore.
?O que diabos aconteceu com você? ?Esbravejou com uma mistura de horror e angustia. ?Por que está assim? ?Antes que Elizabeth pudesse responder, Mary fixou os olhos na mão que ela mantinha submersa na água e instintivamente colocou as suas no peito. ?O que está fazendo com isso? Em que está pensando?
?Pelo que entendi, nossos pais nos dão a vida, mas o destino é quem dita quando deve terminar ?expôs voltando o olhar para a água. ?Talvez a minha deva terminar antes de...
?Não diga bobagens! ?Clamou antes de se inclinar para a adaga e puxá-la dos dedos. ?Este não é o fim, Elizabeth Moore Arany! É o começo de tudo! Como pode pensar em algo tão horrível! Você enlouqueceu? ?E jogou a arma na porta com tanta força que a lâmina de metal se rompeu ao impactar no chão. ?O que aconteceu? ?Insistiu sacudindo-a. ?O que essa cabeça maldita pensa?
E Elizabeth começou a chorar. Escondeu o rosto abatido com as mãos e não conseguiu se consolar até que Mary se sentou ao lado dela e a abraçou com força.
?Anne pensa que está assim porque se comprometeu com o visconde ?explicou enquanto lhe acariciava a mata de cabelo loiro emaranhado. ?Mas eu sei que não é verdade. Apesar desse comportamento repugnante que mostra, no fundo a pequena Elizabeth ainda vive em você. Aquele que corria para cá para descobrir se a nova semente havia germinado ou se as pétalas de uma flor se abriram antes da chegada do amanhecer.
?Eu sou horrível, Mary! ?Soluçou em seu peito. ?Sou a mulher mais horrível que já existiu no mundo!
?Não, querida. Você não é horrível. As circunstâncias fizeram você assim. Você nasceu bonita, como seu físico. O que acontece é...
?Mary... ?sussurrou levantando o rosto para ela. ?Sou horrível, juro pelo sangue que corre em nossas veias. Eu fiz... aconteceu... ?Mas não teve forças para falar, apoiou de novo a testa sobre o peito de sua irmã e continuou chorando sem consolo.
Como superaria isso? Como poderia contar para Mary o que havia acontecido? Não, não conseguia. Tinha que manter isso em segredo. Não só por seu bem, mas também pelo da família.
?Sabe? ?Mary começou a dizer enquanto a segurava com força. ?A vida é cruel para todo mundo. Por mais que tentemos lutar para nos libertar do que nos mantém presos, não obtemos sucesso. A felicidade, essa que muitas pessoas se orgulham de possuir, é uma mentira, uma ilusão fictícia. Ninguém consegue algo tão idílico.
?Então... pelo que vivemos, Mary? Por que ainda estamos neste mundo cruel? ?Perguntou sem levantar o rosto.
?Olhe para mim, Eli! ?Lhe pediu depois de colocar as mãos sobre seus ombros. ?Conte-me o que aconteceu com você, para que não tenha diante de mim a irmã que sempre quis chutar a bunda por ser presunçosa. Onde está a força que expressava? E esse caráter repulsivamente aristocrático.
?Desapareceu... ?murmurou abaixando a cabeça.
?Quem fez isso com você? ?Perseverou, erguendo o rosto com as duas mãos.
?Como o...? ?estalou perplexa.
?Você viu? O destino o colocou de volta em seu caminho? ?Insistiu. ?Porque se assim for, juro que desta vez o matarei com minhas próprias mãos!
?Não! ?Elizabeth respondeu, se levantando da borda empedrada que rodeava o lago. Sem olhar para Mary, esfregou as mãos, olhou para o chão e suspirou. ?Não sei nada de Archie desde que recebi aquela carta.
?Bom. Fico feliz em saber que o pai não terá que me visitar na prisão... por enquanto ?respondeu Mary levantando-se também. Pegou-a por trás e a abraçou com força. ?Se esse filho da puta não é o motivo da sua depressão, o que é?
?Não acredito que possa me amar se te contar ?lhe disse inclinando os ombros para frente.
?Você me ama? ?Lhe perguntou fazendo-a virar para ela. ?Me ama apesar de tudo o que digo ou faço?
?Claro! Você é minha irmã e sabe que te adoro, apesar de todas as coisas estranhas que faz ou diz.
?Exato! ?cortou-a. ?Sempre, apesar de todas as discussões que tivemos, nos amamos. Nisso consiste a família, Eli. E nada, nem ninguém pode eliminar esse vínculo existente entre nós. Podemos ser muito diferentes, felizmente para todas, mas essa desigualdade fez com que nos respeitemos e nos compreendamos. ?Respirou fundo e olhou-a com ternura. ?Por causa dessa compreensão de que falo, sei que sua dor de cabeça é falsa e que as especulações de Anne também são. Sua alma está quebrada. Algo horrível aconteceu com você nessa viagem e te machucou tanto que não será capaz de superá-lo sem ajuda. Só me resta dizer que estou aqui, contigo, e que juntas superaremos tudo.
?Tem sido... horrível ?expressou antes que as lágrimas aparecessem de novo.
?Minha intuição diz como se sente. Mas preciso que me conte tudo, só assim poderemos encontrar a melhor solução ?garantiu com firmeza.
?E se não pode me ajudar? E se for algo tão assustador que só possa ser resolvido com a minha morte ou voltando no tempo?
?Responda-me apenas uma coisa, Elizabeth ?comentou olhando-a nos olhos e tomando-a com ternura dos ombros. ?Essa coisa horrível nos fará procurar e tirar do galpão o berço onde nossos pais nos colocaram no nascimento?
?Não! ?Elizabeth gritou horrorizada.
?Então, querida irmã, todo o resto tem uma solução ?disse antes de abraçá-la e ouvir como Eli suspirava em seus braços.
Capítulo XV
Nos dez dias seguintes, não teve uma mera hora livre para estudar os ensaios que a Sra. Reform lhe deu. Sua mãe tornou-se tirana e continuou ordenando mil tarefas que ela tinha que terminar antes do anoitecer. Para assombro do resto da família, realizou todas, pois nenhuma implicava se afastar de sua casa. Enquanto pudesse estar ao cuidado de Elizabeth e se manter afastada de lorde Giesler, cumpriria sem questionar. Pelo contrário, Anne saía e entrava continuamente de casa. Às vezes, visitava os parentes de seu noivo e outras vezes, chamava urgentemente a costureira que, em sua opinião, não deveria ter muita experiência, pois a fazia experimentar o vestido várias vezes ao dia. Josh e Madeleine, com a desculpa de serem as menores, mal tinham responsabilidades. A única coisa que lhes foi confiada era controlar o novo membro da família. Ainda não dava crédito aos mimos e cuidados que o animal recebia. Acolheram-no com tanto amor, que nem sequer reparavam no fedorento cheiro que invadia o jardim depois de este defecar onde lhe apetecesse. Até seu pai se uniu à louca felicidade! Desde que o visconde colocou o anel em um dos dedos de sua primogênita, vestia-se com elegância e repassava o nó da gravata mil vezes, antes de transitar pelas ruas de Londres no interior da carruagem que seu futuro genro lhe deu. Todos viviam num eterno caos, num infinito disparate. No entanto, admitia que esse estado de desorientação e confusão familiar foi proveitoso para Elizabeth. Apenas reparavam em suas contínuas ausências ou que, cada vez que se reunia com eles, não via um de seus descarados vestidos, mas aqueles que Mary guardava no armário. Talvez evitassem falar do assunto ao dar por confiável a hipótese de Anne e Josh. Aquela em que Elizabeth chorava de ciúmes ao não ser ela quem casava com um aristocrata. Mas ela conhecia a verdade e sofria a agonia de sua irmã em suas próprias entranhas. Desde a tarde que passaram juntas na estufa, não pôde dormir nem uma só noite. Passava horas pensando no medo que Eli suportou e na solidão que se encontrou até aparecer o valete do visconde. Não se importava se ela se culpava por ter encorajado o miserável. A única coisa em que pensou foi que, se era verdade que Morgana cuidava dos de seu sangue, devia matar o gajo justo quando uma de suas mãos desagradáveis a tocou pela primeira vez.
Mary olhou de novo a cortina marrom, que a dona do comércio utilizava para separar a loja da oficina, e respirou com aborrecimento. Se aquela risonha vendedora não a atendesse em breve, sofreria uma apoplexia. Ela não deveria estar lá. Seu tempo era muito valioso para perder sentada em uma cadeira desconfortável e, como seguissem ignorando-a, o escândalo que lhe anunciou a sua mãe, se cumpriria em breve.
?Coloque um casaco e pegue o pedido ?Sophia ordenou depois de encontrá-la escondida no armário. ?A costureira está esperando por você.
?Anne não pode cuidar dessa tarefa? Hoje certamente terá que experimentar o vestido novamente e não será necessário nenhum esforço para suportar o peso de quatro bolsas ?propôs enquanto saía das sombras que lhe proporcionou o inútil esconderijo.
?Hoje não a visitará ?respondeu andando atrás de sua filha. ?Deve comparecer ao almoço oferecido pela Marquesa de Riderland em sua homenagem.
?E as gêmeas? ?Sugeriu se virando para sua mãe.
?Ainda são muito pequenas para passear sozinhas pelas ruas ?Sophia respondeu levantando o tom da voz e erguendo a sobrancelha direita.
?E eu sim posso fazê-lo? ?Disse com falso espanto. ?Não lhe preocupa a opinião que terão as pessoas de mim quando me virem caminhando sem proteção por Cover Garden?
?Desde quando se importa com que dirão, Mary? ?Espetou sua mãe cruzando os braços na frente do peito.
?Desde que minha honorável e maravilhosa irmã mais velha se comprometeu com um visconde ?expôs como se a resposta tivesse sido estudada mil vezes.
?Então... você faz isso por sua irmã? ?Sophia perguntou olhando para ela sem piscar.
?Claro! Você realmente pensou que eu faço isso para meu próprio benefício? ?Respondeu, fingindo estar ofendida. ?Temos que agir corretamente, pelo bem de Anne. Já sabe como a aristocracia gosta dos mexericos e fofocas; pensa que não fofocarão sobre a desproteção de uma das irmãs da futura Viscondessa de Devon? Será um verdadeiro escândalo! ?Acrescentou com aparente angústia.
Mary estava prestes a pular de alegria ao observar sua mãe refletir sobre o assunto. Tinha encontrado o ponto fraco: as fofocas. Até agora, Sophia só estava interessada em cuidar da reputação do marido, no entanto, desde o noivado, tudo mudou.
?Por um momento, apenas por um momento, pensei que era sincera, Mary Moore Arany. Mas, felizmente para mim, o sangue que nos une me adverte que sua intenção é diferente da que você diz. Limpe a farinha da saia, arrume o cabelo e vista o casaco. Quero os vestidos em nossa casa antes que Eugine termine de cozinhar as perdizes, entendido? ?Disse com raiva. Virou as costas e caminhou em direção à lareira.
?E se alguém quiser me machucar? ?Mary perseverou.
?Depois do que fez ao jovem Wang, acredito que ninguém tenha coragem suficiente para falar ou cumprimentar você ?disse Sophia atiçando o fogo.
Que o inferno congelasse! Mas, por que não o havia esquecido? Quanto tempo tinha passado, três, quatro anos? Era certo que a síncope que sofreu, quando abriu a porta e a encontrou escoltada por dois agentes, foi tão grande que seu pai teve que lhe administrar uma pequena dose de clorofórmio. Certamente, ela ficou de castigo em seu quarto por três dias, os mesmos que ela passou lendo e desfrutando de uma bela solidão. Quando ela pôde explicar o que aconteceu, seu pai caiu na gargalhada. Talvez porque ele foi o único que entendeu sua posição sobre doenças causadas por distúrbios celulares. Em vez disso, sua mãe só pediu a Morgana que a sociedade londrina ficasse surda e cega por duas semanas. Ela estava muito preocupada com a repercussão que seu marido sofreria quando as pessoas soubessem que a segunda de suas filhas havia golpeado, até quebrar o guarda-chuva, a carruagem do jovem Wang, que de dentro, pedia socorro. Logicamente, não podia culpá-la por desconhecer a importância que tinha a teoria da Patologia Celular em medicina, mas aquele petulante sim e por esse motivo, ao ouvi-lo dizer que se tratava de uma conjectura sem sentido para explicar as doenças dos organismos, perdeu o controle. Como podia falar dessa forma o filho de um médico que foi à universidade com Rudolf Virchow? Só um tolo, como Wang, podia soltar por sua boca semelhantes tolices. Obviamente, o temor de sua mãe apareceu antes do imaginado. As pessoas falaram sobre a agressão da filha perturbada do doutor Moore ao encantador Wang. Desde aquele dia, não importava se andava sozinha ou de noite, ninguém se aproximava e atravessavam a rua, quando levava um guarda-chuva na mão.
?Senhorita Moore?
A pergunta que a vendedora lançou ao ar, depois de sair pela décima quinta vez da sala dos fundos, tirou Mary de seus pensamentos. Ela se levantou da cadeira, onde estivera mais de uma hora, e se aproximou do balcão.
?Finalmente descobriram que estou aqui! ?Disse sarcasticamente. ?Pensei que me confundi de estabelecimento porque, apesar de ser a primeira, atenderam outras clientes antes de mim.
?Para fazer um excelente trabalho, é preciso ter paciência e tempo ?a funcionária manifestou, colocando sobre a bancada envernizada as bolsas que levava nas mãos.
?Não discuto isso. Mas garanto-lhe que tiveram tempo suficiente para confeccionar dois vestidos e emplumar quatro chapéus ?Mary insistiu, enquanto confirmava que as roupas que lhe oferecia eram as mesmas que fora buscar. Nas bolsas estava o vestido rosa pálido de Madeleine, o malva claro de Josephine, o marrom de sua mãe e quando observou o seu, franziu a testa e olhou à empregada como se buscasse a forma mais rápida de lhe quebrar o pescoço. Depois pegou com dois dedos o tecido daquela roupa verde, colocou-a frente ao nariz da trabalhadora e perguntou-lhe com raiva: ?Não lhe indicaram que este vestido devia ser azul marinho? Por que, não é? Acaso a costureira sofre de discromatopsia?[8]
?Expliquei a sua mãe que não era uma cor apropriada para um casamento tão importante e que todos os convidados à cerimônia pensariam que a jovem em questão se encontraria em período de luto ?explicou com orgulho enquanto a olhava de baixo a cima. ?Foi por isso que lhe pedi que reconsiderasse e, para satisfação pessoal, fez o mesmo. A senhora Moore é uma mulher muito inteligente e selecionou uma tonalidade bastante atual e...
?Estúpida? ?Mary a interrompeu. ?Porque não há outra maneira de descrevê-la. Agora, em vez de mostrar a imagem de uma jovem séria, correta e virtuosa, parecerei a garrafa que algum bucaneiro bêbado de Whitechapel leva em uma mão.
?Como ousa falar desse modo? ?Perguntou chocada. ?Nenhuma de nossas clientes se comparou com semelhante barbaridade! Todas estão encantadas com nosso trabalho! Minha oficina é única na cidade!
?Única? Certamente minha governanta conserta remendos menos emaranhadas do que estes ?comentou mal-humorada enquanto empilhava as bolsas com as duas mãos. ?E não se mostre tão ofuscada por uma crítica construtiva. Deve saber que será muito rentável para o seu negócio ouvir as opiniões dos clientes. Só assim obterão a perfeição da qual se vangloriam. Espero que a próxima vez que lhe encomendem uma peça de roupa de uma cor determinada, você morda a língua e não opine.
?Santo Deus! ?Exclamou horrorizada levando as mãos ao peito. ?Não a compararão com uma garrafa, mas com a filha do próprio diabo! Agora entendo por que desejava uma cor tão escura, combinaria com sua alma.
?Tenha cuidado com o que pensa... ?Mary lhe disse uma vez que abriu a porta. ?Pode ser que esta filha do diabo invoque a umas quantas almas errantes para que incomodem seus dóceis clientes.
Antes de fechar a porta, observou divertida como a vendedora não deixava de se benzer, ato ao qual estava bastante acostumada. As pessoas costumavam fazer isso depois de ouvi-la falar. Uma vez que saiu da loja, ela soltou uma grande risada e seguiu para a carruagem. Ela teria que usar um vestido horrível, mas a funcionária viveria assustada por um longo tempo. Satisfeita e orgulhosa de ser uma mulher tão sincera, ela avançou até que o cocheiro a viu chegar e saiu do veículo. Ele abriu a porta, desceu as escadas, esperando que ela subisse, mas não o fez.
Mary ficou de pé junto à carruagem, segurando as bolsas. Seus olhos, embora estivessem se movendo em direção ao interior da carruagem, não observaram nada em particular. Estava ausente, pensando silenciosamente sobre a ideia que acabava de aparecer em sua cabeça. Levantou o queixo e sentiu em seu rosto as carícias do leve vento que previa uma rápida chuva. Era o momento ideal. Se não, quando teria outra chance? Ela ficou trancada por um longo tempo, aceitando sem objeção tudo o que sua mãe ordenava, pois nada, exceto o que ela pediu horas antes, a afastava de seu propósito. Mas estava fora, sob um céu tão cinza como o mercúrio de um termômetro. De repente, pensou em seu pai e nas conversas que manteve com sua mãe sobre o incansável trabalho do mordomo de lorde Giesler. Segundo entendia, este realizava tudo o que lhe foi dito para que a recuperação de seu senhor fosse rápida e adequada. Claro, isso implicava também protegê-lo de uma possível chuva...
Ao deduzir que seu maior problema não ocorreria, jogou as bolsas dentro da carruagem, abotoou o casaco e disse ao empregado sem olhá-lo:
?Voltarei andando.
?Andando? ?Ele respondeu bastante surpreso.
?Sim, andando. É uma das habilidades físicas que caracterizam o ser humano. Por que acredita que nascemos com duas pernas? ?Garantiu sagaz.
?Não digo por isso, Srta. Moore. Permita-me informá-la que não seria certo deixá-la sozinha com esse tempo ?disse o amável trabalhador depois de fechar a porta. ?Se observar as nuvens, descobrirá que não tardará em chover e a senhora não gostará que uma de suas filhas adoeça dois dias antes da cerimônia.
?Não se preocupe com minha saúde, Owen. Asseguro-lhe que se aparecer essa chuva alugarei uma carruagem ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Deseja, pelo menos, que lhe ofereça um guarda-chuva? Sua mãe não lhe repreenderá se lhe explicar que se resguardou...
?Não! Sem guarda-chuva! ?Respondeu como se tivesse sido picada na bunda com um alfinete. ?Prometo que ela ficará mais zangada se eu o tiver.
?Como desejar ?terminou de lhe dizer antes de subir e açoitar o cavalo.
Mary se virou para sua esquerda e, enquanto escutava como se afastava a carruagem, observou com entusiasmo tudo o que tinha diante de seus olhos. Felizmente para ela, a rua estava muito calma. Talvez porque, como disse o empregado, a ameaça de chuva assustou muitos londrinos. No entanto, os poucos atrevidos que encontrou passavam ao seu lado sem reparar nela. Ato que agradeceu porque não queria observar rostos de espanto, assombro ou estranheza. Precisava, depois de tantos dias enclausurada em sua casa, sentir um pouco de liberdade e tranquilidade.
Com a mão direita ligeiramente levantada, pois a alça de sua retícula se encaixara na dobra de seu cotovelo, se dirigiu em primeiro lugar para a enorme fachada do Teatro Real de Drury Lane. Uma vez que se colocou em frente à porta, levantou o rosto para admirá-lo. Indubitavelmente, era um edifício grandioso. Segundo tinha lido, podia abrigar três mil e seiscentos espectadores e depois do último incêndio, ocorrido em 1809, os arquitetos encarregados da reconstrução usaram colunas de ferro para substituir aquelas de madeira que sustentam os cinco níveis das galerias. Mas se esses dados lhe pareceram extraordinários, o fato de saber que ali se celebravam, desde dois anos atrás, os melhores espetáculos e melodramas, a deixou sem palavras. Olhou intrigada o cartaz que alguém colocou na direita do pórtico e suspirou. Em outra ocasião, quando sua vida fosse menos agitada, poderia desfrutar da música que tocaria a orquestra que anunciava esse cartaz. Com uma inevitável sensação de saudade, já que desejava que a normalidade voltasse à casa dos Moore, continuou o caminho, se esquivando das bancas de frutas e verduras que encontrou.
Covent Garden era um lugar muito estimulante, como indicavam os jornais. Embora não parecesse tão perigoso quanto insistiam em descrever. Onde estavam as prostitutas, os bandidos e os criminosos que perseguiam os cantos do mercado em busca de uma vítima para assaltar? Porque ela não os via. A única coisa que tinha diante de seus olhos eram pessoas comuns e mundanas e que ofereciam suas mercadorias aos poucos clientes que andavam perto de suas bancas.
Continuou naquele lado da calçada e justamente quando determinou que o passeio deveria terminar, seu nariz capturou um maravilhoso aroma de café. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Insuperável... Se a bebida fosse tão boa quanto o aroma que emitia, não poderia voltar para casa sem saborear uma boa xícara. Com o nariz levantado, como se fosse um cão de caça, seguiu para o estabelecimento que o servia. Quando chegou, sorriu ao ver que não era a única pessoa que abandonava suas obrigações para deleitar-se com um costume tão pouco inglês. Talvez a maravilhosa tradição de ingerir só chá iniciava uma época de declínio, ou talvez houvesse mais gente tão estranha quanto ela.
Enquanto esperava sua vez, se apoiou na parede de maneira descontraída e procurou algumas moedas para pagar pela compra.
?Quanto me custaria passar uma hora com você, Srta. Moore? Garanto-lhe que pagarei com prazer.
Mary, muito lentamente, tirou a mão da retícula, se afastou da parede, levantou o rosto e olhou com altivez para o dono daquela voz. Ali estava o maior idiota do mundo, vestido com um traje cinza escuro, tal como ditava a moda nesse momento. Peter Wang a observava com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casaco e mostrava com orgulho um repugnante bigode louro, cujas extremidades se enrolavam para cima.
?O que disse? ?Perguntou tão indignada e furiosa que suas bochechas mudaram de cor pelo sufoco.
?Digo-lhe, senhorita Moore, que estou disposto a pagar tudo o que me peça se me oferecer algo interessante em troca ?Wang disse, verificando o vestido grosseiro de Mary. Depois de sorrir com malícia, avançou para ela. ?Imagino que seja por isso que está sozinha nesta parte de Londres, não é verdade? ?Falou olhando levemente ao redor. ?Finalmente assumiu que nunca alcançaria seu sonho e adotou a posição mais sensata para sua idade: recuperar o tempo perdido tornando-se amante de um distinto cavalheiro.
?Bom dia, senhorita, o que deseja tomar? ?Interveio a amável vendedora alheia, até o momento, da situação que se vivia na frente do posto.
?Bom Dia. Importa-se de me servir a maior xícara de café que você oferece aos seus clientes, por favor? ?Mary respondeu sem olhar para ela.
?Café? ?Perguntou Wang sem tirar os olhos dela. ?Como é normal em você, me confunde. Tinha deduzido, erroneamente, claro, que se tratava de uma mulher que adorava passar as horas do dia tomando chá com doces, dado o volume desproporcionado que tomaram seus quadris desde a última vez que nos vimos.
?Deus bendito! ?A vendedora soltou horrorizada ao ouvi-lo.
Gorda e prostituta. Até esse preciso instante a tinham dedicado muitos adjetivos e substantivos repugnantes, mas nenhum superava a brilhante descrição daquele energúmeno. Mary olhou de relance para a trabalhadora envergonhada. Ela colocou a xícara que pedira no balcão de metal com as mãos trêmulas e se afastou, como se estivesse lendo seus pensamentos. Sem prestar atenção às palavras de Wang, que perseverou em informar que sua robustez aumentara tanto que não seria bom para sua saúde, ela se virou para a esquerda, pegou a xícara e jogou nele.
?Maldita aberração! ?Exclamou. ?Como ousa falar comigo com tanta insolência? ?Vociferou. ?Você é o homem mais estúpido que eu já conheci na minha vida!
?É uma rameira! ?Wang esbravejou quando suas mãos com luvas pretas desabotoaram os botões do casaco.
Tudo o que aconteceu desde o momento em que atirou o café sobre Wang, transcorreu muito lentamente para Mary. O filho do médico tirou algumas roupas e as jogou no chão. Então gritou milhares de maldições quando não conseguiu acalmar as queimaduras que seu peito sofreu. Ele olhou para ela com tanta raiva que qualquer mulher teria morrido de medo. Avançou para ela, levantou o braço direito e estendeu os dedos para lhe acertar um bofetão. Mas não chegou a tocá-la. Uma mão enorme, que ela reconheceu rapidamente, apertou o pulso do agressor e o puxou com uma força tão grande que ele caiu no chão junto com suas roupas.
***
?Como foi capaz de fazer uma coisa dessas? ?Philip gritou pulando da cadeira. ?Aquela mãe ficou louca?
?Não creio que o termo louca seja muito apropriado para descrever a senhora Moore, milorde ?Disse Shals antes de dar uma gorjeta ao menino que lhe fez chegar a notícia. Quando este partiu, virou-se para o angustiado lorde e prosseguiu: ?Primeiro, devo descobrir o que aconteceu para que a senhorita Moore saísse sem proteção. Certamente você encontrará uma explicação tão divertida que estará rindo por vários dias...
Nem ele mesmo acreditava em suas próprias palavras! Como uma mãe, sabendo qual era a opinião da sociedade sobre a sua filha, deixava-a sair de casa sem acompanhante? Queria que chegasse o juízo final? Porque isso mesmo ia acontecer. Não só pelo que aquela moça poderia fazer, mas pelo que estava a ponto de realizar seu amo.
?Shals? ?Giesler perguntou ao vê-lo imóvel na frente do cabide.
?Sim senhor. Eu já tenho ?respondeu. Mostrou-lhe a jaqueta que havia pegado e caminhou até ele.
?Não há explicação... ?Philip continuou a falar enquanto o mordomo o ajudava a vestir a jaqueta. ?Mary não pode passear pelas ruas sem proteção. Além disso... não disse que começaria a chover em breve? ?Retrucou quando se virou para que Shals abotoasse os botões.
?De fato, milorde. As nuvens são tão cinzentas como a cinza que há em uma lareira depois de um enorme fogo. Se o vento não as mover, logo aparecerão as primeiras gotas. ?Terminou de colocar a jaqueta e correu para a porta do escritório para deixar passar o homem que, apesar de não estar totalmente recuperado de uma operação, percorreria Londres a pé para proteger a mulher que amava em segredo.
?Diga ao cocheiro que esteja pronto em um minuto ?ordenou Philip antes de entrar na sala de jantar e desabotoar a jaqueta.
Não fechou ao entrar. Não era hora de se preocupar em buscar um pouco de privacidade, mas de agir rapidamente. Ele foi até a vitrine de mogno, colocou a mão direita na borda e moveu os dedos até encontrar a chave. Uma vez que a encaixou na fechadura, virou-a para a direita e abriu a estreita e longa porta de vidro. O cheiro de pólvora atingiu seu nariz, fazendo-o lembrar diferentes episódios importantes de sua vida. Em qualquer outro momento, ele teria sorrido para inspirar a segurança e a diversão que esse perfume em particular transmitia. Mas agora isso só lhe dava um aroma, o de Mary, e expressava um desejo: cuidar dela.
Como tinha sido tão insensata de passear por Cover Garden sem proteção? Não gostava tanto de ler? Então, por que não havia lido nos jornais as críticas que fizeram sobre essa região em particular da cidade? Ainda bem que seu empregado foi sensato e lhe fez chegar a informação através daquele pequeno batedor de carteira. Sabia que ele agiria com rapidez e que nem uma chuva de ratos infectados com lepra lhe impediria ir buscá-la. Levantou a arma com a mão direita até que a culatra de marfim branca ficou à altura de seus olhos e com a outra mão carregou a munição, o projétil e o bloco de papel através do cano. Uma vez que ficou carregada e pronta, ele a guardou no bolso interior da jaqueta, fechou a porta da vitrine, colocou a chave no lugar, virou-se para a porta e enquanto saía, fechou ele mesmo a jaqueta.
?Tudo pronto, meu senhor ?Shals disse oferecendo-lhe o casaco. ?Quer que o acompanhe? Seguro que posso me ausentar algumas horas... ?acrescentou uma vez que o ajudou a colocá-lo.
?Não. Prefiro que esteja aqui caso apareça Valeria ou Martin ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Se isso acontecer, deseja que conte a versão real ou mais uma... ilusória? ?Sugeriu enquanto colocava o chapéu nas mãos.
?Real ?declarou antes de colocá-lo sobre a cabeça e sair de lá.
Shals encarou a grande figura de seu senhor até que ele entrou na carruagem com a ajuda do cocheiro. Nas duas semanas anteriores, lorde Giesler permaneceu muito calmo em sua residência, recuperando-se da operação. Ele próprio acreditava que, se continuasse assim, seu senhor morreria de tédio, porque nunca ficava em casa por tanto tempo, exceto quando chegava tão bêbado que não conseguia se lembrar de seu nome. No entanto, sua atitude mudou tanto que o serviço murmurava incessantemente sobre o estranho comportamento do homem que pagava seus honorários. Até chegaram a pensar que a senhorita Moore, durante a operação, lhe arrancou não só um pedaço de tripa envenenada, mas também a virilidade. Ninguém, exceto ele, entendia o motivo pelo qual ficava várias horas sentado em um sofá, prostrado em sua cama ou caminhando pela casa com muito cuidado para não se machucar: a senhorita Moore. Desde o dia em que os encontrou no quarto, em circunstâncias comprometedoras, lorde Giesler não tinha pensado em nada, exceto em curá-lo com rapidez e cortejá-la como era devido. Até tinha lido livros de medicina! Seu novo propósito consistia em que, a próxima vez que se encontrassem, a jovem se apaixonasse por ele tal como ele estava apaixonado por ela. No entanto, tinha a sensação de que seu primeiro encontro social não seria tão romântico quanto ele esperava...
Apesar de tudo, confiava na sabedoria da senhorita Moore e rezava para que não se metesse em nenhum problema. Se isso acontecesse, se seu senhor testemunhasse alguma ofensa contra ela... Que Deus tenha piedade do insensato! A arma que tinha guardado no bolso era de um tiro e só o usaria como advertência. Para ser sincero, não temia pelos danos que aquela bala poderia causar, mas o que aquelas duas mãos fortes e grandes poderiam fazer.
Shals suspirou quando a carruagem se perdeu na distância. Fechou devagar a porta, virou-se e caminhou pelo corredor como se algum empregado tivesse pedido sua ajuda.
Capítulo XVI
Philip observou, de sua carruagem e atrás da cortiça marrom escura, como Mary abandonava a loja na qual havia permanecido desde que ele chegou. Quando ele pretendia respirar com calma, coisa que não havia feito desde que soube que ela saíra de casa sozinha, observou, pasmo, que ela depositou as malas dentro da carruagem e se afastou. Antecipando o que aconteceria a seguir, colocou a mão esquerda com luvas na maçaneta da porta e abriu. Enquanto ele pisava nos paralelepípedos da calçada com seus sapatos pretos brilhantes, Mary conversava com o funcionário. Então, ela apertou os botões do casaco, virou e começou a descer a rua.
?Milorde? ?Lhe perguntou o cocheiro um tanto confuso ao descobrir que seu senhor abria a porta e saía da carruagem sem ajuda.
?Me espere aqui, Thenders. Se eu não aparecer em 10 minutos, você tem minha permissão para voltar ?lhe ordenou sem afastar seus olhos azulados da mulher.
?Como quiser senhor ?o servo respondeu depois de depositar as rédeas no assento.
Philip caminhou atrás de Mary, mantendo uma distância suficiente para que lhe não descobrisse, mas o apropriado para agir rapidamente, se necessário. Por mais que tentasse, era incapaz de tirar os olhos do corpo com o qual sonhara quase todas as noites. Suas mãos, exatamente como fizeram nessas alucinações eróticas, foram em sua direção para tocá-la, mas ele as bateu nos dois lados do casaco quando percebeu o que estava fazendo. Irritado com a perda incomum de controle, ele os colocou nos bolsos e os apertou. Sentia falta dela. Sim ele fez! Não havia manhã em que acordasse e se perguntasse que sentimento o invadiria se ela permanecesse ao seu lado. Mas essa melancolia não terminava quando se levantava da cama. A cada hora, a cada minuto, a cada segundo do dia sentia falta de inspirar o perfume feminino misturado com essências medicinais, desejava notar as carícias suaves de seus lábios e a necessidade de tê-la ao seu lado aumentou tanto que estava ficando louco. Como conseguiu o que muitas mulheres desejavam alcançar? Era sua paixão, seu intelecto ou talvez esse jeito tão especial que tinha de olhá-lo? Embora seus olhos emitissem raiva, ele sabia que a raiva não era real. Desejava-o, tanto ou mais do que ele desejava a ela. Só esperava o momento em que se rendesse a suas paixões. Uma vez que conseguisse romper essa rígida barreira, lutaria com todas as armas que tivesse a seu alcance para fazê-la sua para sempre.
Enquanto sua mente perversa lhe fez reviver algumas cenas que teve em seus sonhos lascivos, observou como Mary parava em frente à entrada do teatro. Depois de ler a placa à direita e pensar em algo que queria saber, continuou a caminhada sem ver como as pessoas, que caminhavam ao seu lado, a olhavam de canto de olho. Sem dúvida, todo mundo estava fazendo a mesma pergunta: que diabos uma mulher como ela estava fazendo sem vigilância? Mas ele não conseguia responder. Não sabia o motivo pelo qual a senhora Moore, uma mãe a quem descrevia como coerente, permitiu que sua filha andasse sem proteção por uma região bastante perigosa de Londres. De repente, esse desejo primitivo de cuidar dela se intensificou. Precisava fazê-los entender, a quem a olhava com receio, que não estava desprotegida, que ele a vigiava. No entanto, se obrigou a manter distância, porque se Mary o descobrisse, não lhe cabia nenhuma dúvida de que o atacaria como uma leoa recém parida.
Um enorme sorriso se desenhou em seu rosto ao apreciar como erguia o queixo, fechava os olhos suavemente e inspirava o cheiro de café, que emitia um estabelecimento localizado a três barracas de verduras. Como Shals o informou, sentia uma certa fraqueza por aquela bebida. Quantas xícaras tinha tomado no último dia em que o visitou? Não se lembrava se eram quatro ou cinco, mas seu fiel mordomo disse que precisou fazer duas cafeteiras para si mesma.
Sem poder apagar aquele pequeno sorriso de felicidade, pois esse pequeno gosto comum os unia mais do que aquilo que um anel de noivado poderia unir, ficou parado na frente dela. Claro, estava tão entusiasmada em procurar as moedas com que pagaria à vendedora que não reparou na sua presença.
Philip encostou o ombro esquerdo num poste, ficou de braços cruzados e continuou a observá-la. As pessoas mais atrevidas, ao passar por seu lado, o olhavam de relance. Os temerosos se afastavam. Talvez seu traje escuro, sua altura ou a ruga que apareceu em sua testa, ao contemplar como um jovem se aproximava de Mary com um sorriso irônico, avisasse que, se quisessem ficar seguros, deveriam se afastar dele rapidamente. Quando o rapaz ficou na frente dela, Giesler descruzou os braços, afastou-se do poste e deu um grande passo. Não atendeu à blasfêmia que um cocheiro soltou quando puxou com força as rédeas de seus cavalos para não atropelá-lo. Estava tão concentrado naquela cena, que tudo à sua volta desapareceu. Deu outro passo, ficando no meio da via, tirou uma luva e a jogou no chão. Logo, no passo seguinte, se desfez da outra. Mais um passo... Só restavam três e poderia escutar o que dizia aquele estranho para Mary para que se mostrasse tão tensa. Sua futura esposa, porque assim a denominou desde que entendeu que não podia ter em sua cama outra mulher que não fosse ela, sempre enfrentava o mundo com a bravura de um dragão. Entretanto, notava que nesta ocasião estava se contendo. Então, sua valente guerreira brotou. Se virou para a vendedora, que havia colocado uma xícara enorme de café no pequeno balcão de sua loja, o pegou e jogou no rapaz em questão.
Os três passos que faltavam até alcançá-los, Philip os converteu em um ao ouvir como aquele insensato a chamava de rameira e levantava seu braço para golpeá-la. Quando se colocou atrás do rapaz, lhe agarrou o pulso do braço levantado e o puxou com tanta força que este ficou estendido no chão, junto com as roupas que tirou.
?Lorde Giesler! ?Exclamou Mary. ?Não!
Mas Philip não a ouviu, nem percebeu como ela o agarrou pelas costas do casaco para detê-lo. Com um rápido movimento de ombros, deslizou o pesado casaco preto até que se soltar dele. Depois, desabotoou o casaco e atirou-o ao chão. Uma vez que deixou de sentir a pressão que aquelas roupas exerciam em seus braços, estendeu as mãos para o menino, o agarrou e o levantou sem pouco esforço.
?Como a chamou? ?Ele gritou, levantando tanto o jovem que seus pés não tocavam o chão.
?Milorde! Me solte! ?Wang gritou desesperado. ?Me solte! ?Repetiu.
?Como a chamou? ?Voltou a rosnar.
?Por acaso não viu? Essa desgraçada me jogou uma xícara de café fervendo! ?Tentou justificar.
?Rameira ?a vendedora terminou, que havia deixado seu posto e agarrado Mary pelos ombros para confortá-la. ?Chamou a senhorita de rameira e gorda.
?Cale a boca! ?Lhe gritou Mary afastando-se dela.
Aterrorizada, deu um passo em frente e justo quando ia abrir a boca para ordenar ao Titã de cabelos louros que o soltasse, seu sapato direito tropeçou com algo duro. Olhou para o chão e arregalou os olhos ao ver a coronha perolada de uma arma. Sua angústia cresceu tanto que ficou muda. Presa desse pânico que começava a brotar do mais fundo de sua alma, jogou o casaco negro, que havia tirado do lorde, e o jogou sobre a jaqueta, para que ninguém reparasse na presença dessa arma.
?Você ia bater nela? ?Perseverou Philip alheio aos movimentos dela.
?Lorde Giesler, lhe imploro, não precisa fazer um espetáculo por algo tão insignificante. Tudo estava esclarecido no instante em que... ?Tentou explicar, mas teve que calar-se quando seu agressor a interrompeu.
?Merece uma lição! ?Wang gritou olhando em volta, procurando uma pessoa para defendê-lo.
Philip o soltou e quando o jovem apoiou as plantas dos sapatos no chão, levantou seu braço direito e lhe deu uma bofetada que lhe cruzou a cara.
?Como esse? ?Berrou fora de si.
?Ninguém vai separá-los? ?Mary gritou desesperada.
A princípio, o tumulto que os cercava permaneceu silencioso, mas quando lorde Giesler deu um tapa no rosto, o clima mudou e começou a se ouvir gritos encorajadores daqueles que os observavam. Ninguém queria parar o confronto masculino, apesar de estar ciente de que não havia igualdade física entre eles. Enquanto Wang era um rapaz alto, mas bastante esquálido, o lorde superava em altura e seu corpo dobrava seu oponente em musculatura.
?Vamos! ?Philip insistiu enquanto arregaçava as mangas da camisa. ?Me devolva o tapa! O que espera, maldito rato? Onde está agora a coragem que mostrava ao atacar uma mulher? Mostre-a com um homem!
?Não vou lutar com você... ?disse Wang caminhando para trás. ?Não por essa!
?Não! ?Mary gritou novamente enquanto observava Philip se aproximar de Wang e começar a espancá-lo sem piedade.
Olhou aterrorizada ao seu redor, procurando alguém grande e valente o suficiente para impedi-lo. Mas ninguém se atrevia a intervir em uma briga em que um dos combatentes exibia a imagem de um deus irritado. Preferiam ser meros espectadores a serem feridos. Supondo que a única pessoa que podia terminar a luta era ela mesma, saltou para frente e agarrou-se ao pescoço de lorde Giesler.
?Solte-o! Solte-o! ?Repetiu uma e outra vez.
No entanto, ele não a ouvia. Seu corpo parecia um pêndulo. Movia-se da direita para a esquerda, conforme batia. Abriu a boca, com a pretensão de lhe morder o pescoço, mas logo pensou melhor. Seu pai não lhe disse que, se apertasse com força o pescoço de uma pessoa, esta deixava de respirar e podia perder a consciência? Pois isso mesmo faria. Evitando não cair, estendeu seu braço direito sobre a garganta do lorde e apertou com a intensidade suficiente para que sua agitada respiração se tornasse algo mais pausada.
Giesler, ao sentir como lhe faltava o ar, deu um passo para trás, olhou o rosto machucado do homem e sorriu satisfeito ao comprovar que o olho direito estava tão inchado que não poderia ver com clareza por várias semanas. Mas sua alegria aumentou ao observar dois fios de sangue sob seu nariz. Depois, muito devagar, olhou por cima do ombro para confirmar que os braços que rodeavam seu pescoço pertenciam a Mary. Quem, se não ela, teria o valor suficiente para freá-lo de uma maneira tão pouco usual? Estendeu os braços para trás e acolheu com suas mãos grandes os gostosos glúteos femininos. A falta de oxigênio o deixou tão nublado que não ouviu com clareza como ela gemeu diante do contato. A única coisa em que ele se concentrou foi que Mary não se machucasse ao deitá-la no chão. Enquanto as pessoas encorajavam o ato violento, o corpo de Mary desceu ao chão, roçando o seu. Em outro momento, enlouqueceria de desejo, no entanto, este não era. Precisava confirmar que não estava ferida.
?Está bem? Se machucou? ?Perguntou-lhe quando se virou para ela. Acariciou-lhe a bochecha esquerda e enfiou uma mecha desse cabelo negro despenteado atrás da orelha.
?Eu?! ?Estalou sem poder afastar seus olhos dele. ?. Eu estou perfeitamente, é ele quem não está! ?Acrescentou apontando com um dedo da mão esquerda para o filho do médico.
?Esse tolo importa menos para mim do que uma casca de ovo, Mary. A única coisa que me interessa é saber se você está bem ou tenho que continuar batendo nele até que não sem lembre como se chama ?afirmou enquanto olhava para aquele rosto corado de raiva e vergonha.
E o escândalo oferecido por aqueles que incentivaram a luta desapareceu para dar lugar a um estranho silêncio.
?Afastem-se! ?Ordenou um homem depois de soprar várias vezes com seu apito. ?Afastem-se do nosso caminho!
Philip virou-se para aqueles que tranquilizaram a multidão, escondeu Mary atrás do seu corpo e olhou para o local na rua onde dois agentes apareceram. Estes, ao reconhecê-lo, aproximaram-se dele e levaram a mão direita ao chapéu que cobriam suas cabeças.
?Giesler... ?Um dos policiais se referiu a ele pelo sobrenome devido à amizade que mantiveram durante vários anos.
?Thomas...
?O que aconteceu? ?Ele perguntou depois de dar um forte aperto de mão.
?Este estúpido quis bater em uma mulher ?Philip murmurou, dirigindo-se a Wang com um olhar de reprovação e ódio.
?Qual delas? ?O outro parceiro queria saber enquanto observava o rosto de todas as mulheres que estavam na frente da banca de café.
?Ela... ?declarou Philip afastando-se para o lado para que seus dois antigos companheiros da Scotland Yard descobrissem a quem se referia.
?Por Deus, senhorita Moore! É você de novo? ?Estalou Thomas atordoado. ?Mas por que agrediu novamente o senhor Wang? O que usou desta vez, essa bolsa? ?Acrescentou divertido.
?Não senhor. Desta vez o encharquei com uma xícara de café quente ?comentou Mary levantando o queixo de maneira altiva. ?Mas em minha defesa alegarei que eu não tive a culpa deste acidente. Ele veio até mim e me insultou.
?O que lhe disse desta vez para irritá-la, senhor Wang? ?Perseverou o outro agente com voz cansada enquanto o ajudava a levantar-se.
?Gorda e rameira ?a vendedora interveio. ?Assim a chamou diante dos meus clientes.
?Maldito bastardo! ?Philip deu um passo em direção a ele. Mas não podia chegar perto tudo o que ele desejava porque Thomas agiu rapidamente e ficou entre os dois.
?Muito obrigada pela ajuda ?Mary murmurou com sarcasmo à vendedora.
?De nada, senhorita. Nós mulheres devemos nos apoiar diante deste tipo de monstros ?a jovem disse sem perceber o tom acusatório de sua voz.
?E bem? ?Thomas perguntou a Wang. ?Tem algo a alegar?
Wang, que já estava segurando a roupa suja em um braço, retirou o sangue que saía do nariz com a manga esquerda da camisa e olhou para o seu agressor, depois para Mary, depois para as pessoas que se reuniram ao redor dele e terminou por encarar o agente que insistia em descobrir o que aconteceu. Ao deduzir que havia certa camaradagem entre lorde Giesler e os agentes, pela maneira como se cumprimentaram, determinou que a melhor maneira de resolver o problema era falar com alguma eloquência, mas sem esquecer seu objetivo: humilhar a sabe-tudo Moore.
?Só um infeliz incidente que foi mal interpretado com demasiada rapidez ?ele começou a dizer enquanto sacudia a poeira de suas roupas. ?Devo confessar que, desde que me tornei um médico qualificado, fiquei obcecado em encontrar um local adequado para cuidar de meus pacientes. ?Ele sorriu tanto que todo mundo admirou seus dentes brancos manchados de sangue. ?Por esse motivo caminhava distraído. Estava concentrado nesse edifício aí quando me topei com a senhorita Moore. Ela, que tinha comprado uma xícara de café, tampouco advertiu minha presença e quando se virou, derramou sem querer esse líquido quente sobre minhas roupas. Como não queria me queimar, porque as feridas de uma queimadura são terrivelmente dolorosas, tirei minhas roupas manchadas. Naquele momento, todos os presentes começaram a gritar, talvez pensassem que a puniria por um ato que, sem dúvida, ninguém poderia prever. No momento em que a Srta. Moore e eu íamos pedir desculpas, lorde Giesler apareceu perguntando o que estava acontecendo. Quando me virei para responder, tropecei em uma pedra e caí de bruços na calçada. Portanto, tenho rosto inchado e o nariz está quebrado e sangrando. ?comentou sem apagar um repugnante sorriso de sua boca.
?Então... não há nenhum caso? Não registrará uma denúncia? ?Thomas insistiu, que aceitou a história sem discordar porque libertaria seu amigo de ficar na prisão por algumas horas.
?A quem? ?Wang perguntou antes de soltar uma risada, que parou rapidamente quando sentiu uma leve dor na mandíbula. ?Não há denúncia possível, agente! A menos que queira levar diante de um juiz a felicidade que enfrento desde que consegui me formar em medicina ?respondeu Wang olhando de relance para Mary, quem o observava com os olhos injetados em sangue.
?Nesse caso... ?o outro guarda disse ?não temos nada para fazer aqui, certo?
?Se eu ainda usasse o uniforme ?Philip disse a Thomas ?o escoltaria até sua casa. O estado de felicidade que diz viver pode lhe provocar outro desafortunado incidente e garanto que não gostará, ao futuro doutor ?respondeu com ironia?que sua cabeça sofra um golpe tão forte que esqueça tudo o que tem conseguido até o momento.
Mary suspirou surpresa ao descobrir que lorde Giesler também entendeu as palavras envenenadas de Wang. Assombrada, olhou-o com admiração durante uns instantes e um sentimento estranho brotou do mais profundo de seu ser. Em seguida, sentiu um tremor em seu estômago e concluiu, estupefata e prestes a desmaiar, que era a primeira vez que se orgulhava de conhecer um homem que não fosse seu pai. Não só adorou aquele ato brutal e primitivo de proteção, pensamento que meditaria quando chegasse em sua casa, mas que a encantou descobrir que, debaixo daquela longa mata de cabelos dourados, havia uma mente lúcida e sensata.
?Agradeço a sua preocupação ?Wang apontou com relutância. ?É verdade que um médico não pode tentar duas vezes a sorte... se quiser continuar sendo, claro. ?Sorriu novamente. ?Senhorita Moore... ?se dirigiu a ela com uma leve reverência e sem eliminar o sorriso ?Sinto muito tê-la assustado e espero que este pequeno desentendimento não a impeça de comparecer na próxima sexta-feira à assembleia.
?Claro que assistirei! ?Mary respondeu furiosa. ?Como bem afirmou, sou inocente e tem sido sua falta de jeito, uma condição que deve estudar se quiser se tornar um bom médico, a causa desse alvoroço.
?Giesler? ?Thomas perguntou-lhe para confirmar que ele também deu por encerrado a discussão.
?Sem problemas. Assim que o levarem, acompanharei a senhorita Moore a sua casa ?declarou se aproximando de Mary novamente.
?Uma vez que este assunto está esclarecido e resolvido, desejo a ambos um bom dia ?concluiu Thomas enquanto apertava de novo a mão de seu amigo e se despedia de Mary com um leve movimento de cabeça. Então ficou ao lado de Wang e, sob o olhar atento daquela multidão silenciosa, o acompanhou pela rua junto com seu parceiro.
CONTINUA
Capítulo IX
Mary sorriu quando Shals apareceu com a quarta xícara de café. Era a primeira vez que ela se sentia admirada e amada. Portanto, em nenhum momento disse algo que pudesse machucá-los, embora quisesse repreender mais de um por resmungar como uma criança pequena. Para ser honesta consigo mesma, ela começou a se sentir confortável com a atenção incontável que lhe mostravam.
A cozinheira, quando a Sra. Reform anunciou que, devido à hora, eles teriam que almoçar lá, lhe perguntou qual prato era o favorito dela, qual bolo ela queria e ordenou a um lacaio que pegasse o melhor vinho que lorde Giesler mantinha na adega. Uma das donzelas não deixou de elogiar a grande habilidade que suas mãos possuíam quando espalhou um creme sobre as fendas de seus antebraços. Para que deixassem de elogiá-la, disse que sua irmã Elisabeth havia feito a pomada com as flores que ela cultivava em sua estufa e contou, com orgulho sincero, as inúmeras qualidades que Eli possuía para criar novas flores e pomadas curativas. Quando chegou a vez do cocheiro, ele sorriu para ela. Então ele explicou que tinha um leve desconforto na garganta. Depois de inspecionar essa área, ela indicou que deveria tomar infusões com mel e que precisava abandonar o hábito absurdo de fumar. Logicamente, a segunda ordem não agradou o lacaio gentil que, depois de ouvi-la, enrugou a testa. No entanto, não respondeu. Fez uma leve reverência, como se fosse uma dama, e se foi. Mary temia que, quando saísse, aliviaria sua raiva com outro cigarro.
Valeria, depois de voltar da cozinha pela quarta vez, sentou-se ao lado dela e observou com expectativa o que estava fazendo. Ela a acompanhou em suas gargalhadas, apoiou sua repreensão e garantiu que todos seguiriam suas ordens.
?Prometi a você que não visitaria meus filhos, mas acho que essa opção foi pior. ?A senhora Reform comentou quando as duas ficaram sozinhas na sala, onde Mary decidiu acomodar suas consultas repentinas.
?Não precisa se desculpar pelo que aconteceu, garanto que foi a melhor coisa que aconteceu comigo em cinco dias ?comentou antes de pegar a xícara. Ela tomou um gole leve e fechou os olhos para apreciar o sabor delicioso.
?Juro que não sabia de nada e que tudo isso me surpreendeu tanto quanto você Valeria insistiu.
?Shals disse ao meu pai que, depois do que fiz com lorde Giesler, ninguém nesta casa procuraria outro médico para vê-los e, como vi, não mentiu. ?disse sorrindo e curiosamente feliz.
?Shals é um bom homem... ?Valeria refletiu. ?E teve muita paciência com meu irmão ?acrescentou.
?Não ficará com raiva pelo que fiz, certo? ?Mary de repente soltou, depositando a xícara na mesa.
?Quem? Meu irmão? ?Mary assentiu. ?Não, claro que não! Philip é incapaz de ser cruel com as pessoas que trabalham para ele! Ao contrário! Se não acredita em mim, pode perguntar a eles. ?Diante do beicinho de irritação que Mary fez, ela continuou: ?Não sei o que aconteceu entre vocês dois, mas tenho certeza que não foi agradável. De qualquer forma, eu gostaria que desse a ele uma chance para mudar sua opinião sobre ele. ?Pegou sua xícara e tomou lentamente, sem desviar o olhar da jovem. Ela parecia estar reconsiderando suas palavras. Mas, pela maneira como franzia a testa, a esperança de que esquecesse qualquer coisa negativa se dissipou. ?Como disse na noite em que nos conhecemos, meus irmãos e eu crescemos em Brink Lane. Nossos pais, depois de deixarem a Alemanha, se estabeleceram lá e sobrevivemos com o pouco que obtinham dos trabalhos que lhes confiavam ?começou a narrar com o objetivo de amolecer aquele coração duro.
?Deve ter sido muito difícil para seu pai se adaptar a uma vida de necessidades depois de ter nascido e criado como um barão ?Mary declarou, tentando não lhe causar muito dano diante da lembrança.
?Estava muito apaixonado pela minha mãe e isso era a única coisa que precisava até que morreu ?suspirou triste. ?Te contei que morreu em seus braços e que minha mãe não quis se afastar dele, pois acreditava que, a qualquer momento, acordaria?
E uma emoção estranha para Mary oprimiu-lhe o peito.
?Se amavam muito? ?Perguntou perplexa.
?Eu nunca vi um casamento que se amassem tanto, e isso que eu daria minha vida por Trevor. Onde quer que estejam, certamente nada e ninguém poderá separar esse amor intenso e verdadeiro.
E essa era outra razão pela qual nunca se apaixonaria. Ela, por decreto da sociedade, teria que ocupar um segundo lugar no casamento. Seria obrigada a deixar tudo o que amava para atender às demandas de seu marido. Tal responsabilidade, como sempre havia imaginado, a transformaria em uma desgraçada. Procuraria uma maneira de não ter filhos, para que eles não fossem os reflexos de sua tristeza. Não. Absolutamente, ela não se casaria jamais. Mesmo depois de sua mãe ter sofrido mil apoplexias quando presumiu que sua segunda filha tinha decidido ser uma solteirona.
?Como conseguiu superar sua morte? ?Disse depois de afastar rapidamente suas próprias suposições.
?Não superou ?Valeria respondeu se levantando da cadeira. ?Minha mãe morreu logo depois.
?Que doença tinha? ?Mary insistiu, também se levantando da cadeira.
?Tristeza. Uma que nenhum médico pode curar com medicamentos ou operações.
?Sinto muito... ?murmurou envergonhada.
?Não sinta, eu parei de fazer isso há muitos anos. Ela queria estar com ele, queria ficar ao seu lado e lutou até que conseguiu.
?Como sobreviveram? ?Perguntou e, em seguida, se arrependeu de fazê-lo.
Não estava ciente da dor que Valeria mostrava em seu rosto? Por que insistia? Estava interessada em saber que vida lorde Giesler teve no passado? Não podia imaginá-lo mendigando nas ruas! Era tão... e se mostrava com tanto... Impossível!
?Ainda estou me perguntando. Talvez eles se tornaram nossos anjos da guarda e fizeram tudo o que puderam para que seus filhos vivessem, ou talvez o destino teve piedade de três pobres órfãos. ?Ela deu de ombros e, apesar da tristeza que sentia quando se lembrava daqueles anos, esboçou um sorriso. ?Quem sabe o que a vida nos reserva, Mary? Hoje pensa uma coisa, amanhã surge outra e, quando abre os olhos no terceiro dia, decide algo que não pensava antes.
?Bem, nisto tem razão. No entanto, tenho que lhe dizer que não há dia em que eu acorde e confirme um pensamento ?comentou, finalmente esboçando um grande sorriso.
?Qual? ?Valeria quis saber enquanto caminhavam em direção à porta.
Estava na hora de Mary visitar seu irmão. Se não estava enganada logo começaria a chamar Shals para perguntar se tinha notícias dela. Como agiria ao vê-la? Ele ficaria perplexo? Pensaria que estava vivendo um sonho? O que quer que fosse, apenas esperava que se lembrasse de que sua amada irmã a levara até ele e que a questão do baronato ainda estava pendente.
?Quer saber qual é a única ideia que consolidei ao longo dos anos? ?Mary respondeu com diversão.
?Sim.
?O de não procurar um marido. Nenhum homem será bom o suficiente para...
Não terminou sua estudada e perfeita exposição, pois, ao sair no corredor, observou que Shals subia e descia indeciso as escadas.
?Shals? ?Ela perguntou andando com firmeza em direção ao homem. ?O que aconteceu?
E a resposta foi dada pela voz de um Titã mal-humorado.
?Maldito seja! Ficaram surdos? ?Ouviu tão claramente que parecia que lorde Giesler estava ao seu lado.
?É um asno! Mas que modos são esses? ?Com raiva, arregaçou as mangas do vestido e subiu as escadas. ?Darei a ele a bronca que merece! Como pode ser tão insolente?
?Senhora... Faça algo! ?Shals pediu suplicando a Valeria. ?Não pode aparecer assim! Vai matá-lo!
?Seus planos e os meus não são os mesmos? ?Valeria perguntou com um sorriso de orelha a orelha.
?Senhora... não sei a que se refere? ?O mordomo abaixou ligeiramente a cabeça.
?Shals... você não tem por que se envergonhar. Eu li em seus olhos quando você a viu chegar. Você, tal como eu, quer que a Srta. Moore repare no meu irmão, certo?
?Senhora, tenha certeza que sim. Mas não acho que goste muito da ideia que tem a senhorita Moore agora mesmo sobre... reparar no meu senhor ?comentou com medo.
?O que você aposta que o deixa tão manso quanto um cordeirinho?
?Jamais apostarei com a esposa do antigo dono de um clube! ?Shals exclamou com aparente raiva.
?Porque sabe que perderia... certo??Insistiu, estreitando os olhos.
?Até os cílios, senhora Reform! Com você, perderia até os cílios! ?reiterou antes de seguir para a cozinha.
Valeria olhou para o primeiro andar. Mary já havia se virado para o corredor. Temia que a vida entediante de seu irmão cessasse no momento em que ela abrisse a porta e... que coincidência inoportuna que Mary o visitasse justamente quando todos tinham tarefas importantes a fazer! Pena que eles não pudessem estar presentes! Que pouco decoro! Uma mulher solteira ficar dentro do quarto de um homem... nu! O que pensariam da hospitalidade dos Giesler?
Sorriu de orelha a orelha, apertou os punhos em sinal de vitória e virou-se para a cozinha.
***
Todos os palavrões que decidiu soltar quando abrisse a porta desapareceram instantaneamente. Mary soltou abruptamente o ar que continha seus pulmões e fechou a boca com força. Ficou imóvel, paralisada da cabeça aos pés quando o viu em pé, de costas para ela. O quarto estava iluminado, porque alguma donzela abriu as cortinas e as janelas, permitindo-lhe observar claramente o quarto. Uma brisa suave, produzida pela corrente entre a porta e a janela, a recebeu assim que chegou. Mas ela não prestou atenção em como as belas cortinas se moviam, ou como a luz do sol refletia no espelho colocado em uma cômoda grande, ou se os móveis eram escuros, foscos ou devorados por cupins. Seus olhos focaram apenas nele, fazendo com que uma voz em sua cabeça evocasse a palavra perigo. Tudo o que tinha pensado gritar-lhe enquanto chegava desapareceu instantaneamente. Que palavras tinha escolhido? Que insultos lhe ocorreram? Nada. Ela não se lembrava de nada... No profundo suspiro que deu logo que o viu, a mulher enfurecida desapareceu, a pessoa que tinha infinitos palavrões mentais e, e em seu lugar se acomodou uma mulher que não podia afastar os olhos de um homem por sentir... desejo. Seu coração acelerou tanto que podia sair do peito, sem ter que usar um bisturi para abri-lo. Um calor raro subiu do centro das pernas para as bochechas, transformando-as em duas chamas de fogo. Respirou fundo para aplacar aquela emoção incomum. Não conseguiu. Seu batimento cardíaco ainda estava acelerado, suas bochechas continuavam acesas e a leve dor abdominal, que lembrava a que sofria toda vez que ia dormir sem janta, ficou mais torturante. Ela o comparou com o chefe de uma tribo da pré-história? Bem, essa ideia ainda era verdadeira. Concluiu que se tivesse vivido na era grega, lorde Giesler teria sido o muso de inúmeros escultores? Bem, isso também seria verdade. Mesmo que não quisesse reconhecê-lo, embora negasse essa ideia pelo resto da vida, morreria sabendo que esse homem era o único no mundo que lhe causava algum interesse pecaminoso. Que mulher seria incapaz de admitir que não sente atração por esse corpo? Era um espécime perfeito: suas pernas eram fortes e longas, assim como seus braços e ombros. Ele tinha uma cintura estreita, como os quadris. Que, felizmente para ela, permaneceram escondidos sob os calções. Disse que era perigoso? Bem, confirmava. Esse homem emanava perigo, não para os outros, mas apenas para ela, porque a atração por ele se tornava mais intensa, menos suportável. Deu um pequeno passo entrando no quarto, rezando pela primeira vez em sua vida ao Deus em que todos acreditavam, para que se virasse e quebrasse seu mutismo absurdo, seu encantamento, o feitiço... Mas ele não fez isso. Somente quando percebeu que se inclinava um pouco para a frente e colocava as mãos no curativo em volta da cintura, como se fosse uma faixa bonita, aquele bom senso, que saíra de sua cabeça, voltou a avisá-la de que o lorde estava prestes a realizar o maior disparate do mundo. Ela franziu a testa, como havia feito durante a subida nas escadas e na pequena corrida pelo corredor, e finalmente ela pôde gritar:
?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa.
?Mary? ?Giesler perguntou atordoado quando se virou muito lentamente em sua direção.
Mary engoliu em seco enquanto contemplava aquele rosto masculino. Ele estava sorrindo. Sim, seus lábios esboçaram o sorriso mais maravilhoso do mundo e, embora nunca tenha imaginado que a receberia com entusiasmo, porque ninguém no mundo, exceto sua família, a recebia com amor, ele estava fazendo isso. Havia visto alguma vez uma boca tão bonita, tão gloriosa? E para sua perdição e deleite, havia descoberto a suavidade daqueles lábios...
?Senhorita Moore.?O corrigiu, adotando a postura de uma mulher fria. ?Lembro-lhe que não deve me tratar com tanta familiaridade, lorde Giesler ?Acrescentou andando altivamente em direção aos pés da cama. Ela colocou as duas mãos na cintura e olhou para ele como se quisesse lhe arrancar os olhos. ?Que diabos está fazendo? Que parte de... “não deve se mexer”, não entendeu? Por acaso ficou surdo? Talvez seja por isso que pensa que seus fiéis funcionários estão ?garantiu com firmeza.
?Mary... ?sussurrou repleto de felicidade, como se ao seu lado estivesse um anjo iluminado por uma luz divina, em vez de uma mulher que o ameaçara lhe dar outro grande tapa. ?O que faz aqui? Como você está?
?Definitivamente... está surdo! ?Explodiu, revirando os olhos. ?Explodiu, revirando os olhos. Disse para não me chamar pelo meu nome e não preciso que se preocupe comigo, é você quem deve permanecer deitado na cama.
?Pretendia... ?Philip começou a dizer enquanto tentava se sentar novamente, um ato que o fez rosnar de dor.
?Maldição! ?Exclamou Mary indo em sua direção o mais rápido possível.
Sem pensar duas vezes, segurou os braços de Philip com força e o ajudou a se sentar o mais devagar possível. Depois que ele conseguiu, levantou as pernas e as estendeu no colchão. Quando se virou para ele, para gritar com ele até ficar sem voz, ficou sem palavras novamente, pois descobriu que os olhos azuis do lorde brilhavam, como se os raios do sol que passavam pela janela os impactassem neles. Seu rosto, recém barbeado, o tornava mais atraente, como se fosse possível, e seu cabelo não era mais escuro, mas brilhante e... lindo. Desviou o olhar quando uma rara dor no estômago a trouxe de volta ao mundo frívolo da sensatez. Não devia se deixar levar por atrações absurdas, nem por deslumbramentos miseráveis. Era uma Moore da cabeça aos pés e nela não podia surgir algo tão absurdo quanto o desejo por um homem!
?Segundo entendi, sua melhora é notória. Quer que todos os avanços que teve durante estes cinco dias retrocedam por tentar caminhar sem ajuda? ?Comentou com um tom menos rude enquanto lutava para acomodar as pernas que já estavam bem colocadas.
Aquilo que cheirava era loção de barbear ou perfume? Estava prestes a fechar os olhos e inspirar profundamente, mas a sensatez agiu novamente. Ela se afastou um pouco e, com as pontas dos dedos, pegou a parte de baixo do lençol para estendê-lo até cobrir o queixo. Quanto menos pudesse observar, menos tentação sentiria. Porque aquele corpo fazia seu sangue ferver, pensar em coisas impuras e, acima de tudo, a fazia perder a cabeça. Pelo menos, quando sua mãe a repreendesse por se colocar em outra situação comprometedora, podia se defender dizendo que ela o havia coberto e que ele estava usando calções que escondia seus atributos masculinos.
?Pensei que tinha perdido o interesse em mim ?Philip apontou em uma voz queixosa enquanto afastava o lençol.
Queria sufocá-lo? Porque teve essa impressão ao ver como tentava cobri-lo até o pescoço. Ou talvez houvesse outro motivo menos... sinistro? Suportou uma risada repentina e, muito lentamente, se descobriu até a cintura, exibindo a imagem completa de seu peito robusto. Queria descobrir o que havia se perguntado tantas vezes. Mas o leve sorriso, que foi incapaz de esboçar, se dissipou quando viu que ela estava voltando para o pé da cama e ainda demonstrava repulsa. Tão desagradável estava?
?Deixei-o em boas mãos, milorde. Meu pai, caso não se lembre, tem a habilidade de curar pessoas ?respondeu.
?Mas você me operou e, segundo entendi, lutou contra todos aqueles que se opuseram para não me deixar morrer ?contestou.
?Sou... como diria? Uma pessoa de bom coração? ?Respondeu, colocando as mãos no dossel de madeira.
Por que não conseguia parar de olhar para os lábios dele? Sua parte insensata queria senti-los novamente? Quantas vezes relembrou aquele momento? Um milhão? E, quantas vezes disse a si mesma, que o tapa havia sido a melhor coisa que tinha feito em sua vida? Uma, talvez? No caso hipotético de que estivesse pensado, pois não tinha mais certeza se o fez durante o confinamento forçado. Contou teias de aranha ou enumerou todos os possíveis defeitos de lorde Giesler? E por que sua mente não parava de imaginar como teria sido um beijo mais intenso? Essa pergunta aumentou muito seu desejo carnal... Maldita fosse, a parte primitiva do ser humano! Haviam construído grandes edifícios, navios para viajar de um continente a outro, chapéus horríveis com penas de pavão, mas... haviam conseguido fazer desaparecer o instinto carnal absurdo com o qual todo ser humano nascia? Não! As pessoas ainda eram primatas movidos por uma necessidade sexual absurda...
?O que tem, Mary ?enfatizou seu nome, embora ela não gostasse de ouvi-lo dizer. ?É uma habilidade mágica. Agradeço a Deus todos os dias pelo fato de aparecer e ter decidido salvar minha vida. ?Ele declarou com toda a sinceridade que podia oferecer naquele momento, porque sua mente procurava palavras que a deixassem orgulhosa enquanto um desejo masculino lutava para tirá-lo da cama, pegá-la nos braços, apoiá-la contra a parede e beijá-la com tanta paixão que os dois ficariam sem respiração.
?Não... Não deve... me dizer essas coisas, milorde.
Gaguejava? Ela?! Por que diabos fazia isso? Os servos não haviam oferecido milhares de elogios? Não começava a se acostumar com esses elogios? Então... por que ela se sentiu tão intimidada ao ouvir isso dele? E, naquele momento, toda a força, toda a raiva e toda a firmeza que sentia sempre que corria perigo, desapareceu como a neblina quando o sol aparece. Tinha que sair de lá o mais rápido possível. Até o ar parecia mais denso que nem conseguia respirar! Havia prometido a Valeria que iria visitá-lo, pois faria isso. Confirmaria o bom trabalho de seu pai e sairia mais rápido do que quando entrou.
?É verdade ?Philip garantiu, e não passou despercebido que, pela primeira vez desde que a conhecia, o escudo que protegia a mulher que ele desejava descobrir, desapareceu. ?É uma mulher engenhosa, corajosa e incrível. Uma mulher a quem devo minha vida ?garantiu solenemente. ?Estou em dívida com você. Pode me pedir o que quiser que encontrarei uma maneira de consegui-lo.
?Peço a lua, lorde Giesler ?disse.
Se recuperou o mais rápido que pôde para não mostrar uma imagem que estava escondendo desde que descobriu a maldade das pessoas. Ela não sofreria como Anne ou Elizabeth. Ela era diferente!
?Prometo que vou alcançá-la... ?Ao tentar se reclinar, outra cãibra terrível o nocauteou. Ele jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e respirou fundo.
?Relaxe, por favor ?lhe pediu em voz baixa quando veio até ele. ?Não deve fazer esforços desnecessários ?acrescentou, enquanto colocava as duas mãos sobre o curativo e apalpava lentamente para confirmar que não havia umidade.
?Me pediu a Lua, Mary Moore Arany, e eu juro que te darei ?comentou, sem abrir os olhos. Não queria assustá-la, não queria que se afastasse do seu lado e se para isso tivesse que ficar doente a vida toda, que Deus o concedesse!
?Estou satisfeita em poder comprar as publicações médicas que o Sr. Slow terá guardado para mim ?sussurrou, enquanto tomava a decisão de remover o curativo e confirmar que a ferida ainda estava fechada.
Olhou em volta e franziu o cenho. Onde diabos estava sua maleta? Era mais fácil para ela cortá-lo com a tesoura do que desembaraçá-lo gradualmente porque, dessa forma, ela precisaria tocá-lo, precisaria se aproximar o suficiente para poder inspirar aquele cheiro muito atraente para ela e que... Não havia lido em algum volume científico que o ser humano descobria a atração por uma pessoa simplesmente pelo cheiro? Bem, se essa teoria era verdadeira, tinha que concluir que não era ódio que sentia por lorde Giesler, mas... Algo mais próprio das Arany do que dos Moore! Irritada consigo mesma, desamarrou o nó que seu pai havia feito com as pontas do curativo e desenrolou-o com os olhos fechados. Enquanto não olhasse, a situação estaria sob controle...
?Por que não saiu de sua casa durante esses cinco dias?
A pergunta fez Mary abrir os olhos e olhá-lo ferozmente. Ele queria rir dela? Queria ridicularizá-la? Porque se lhe dissesse o motivo, nenhuma humilhação passada seria tão imensa quanto a que ela sofreria no presente. No entanto, ao descobrir que ele não a olhava, que mantinha seus cílios louros preciosos e longos unidos, relaxou e continuou a tarefa, envolvendo-se novamente em um estado de bem-estar ilógico para ela.
?Esteve doente? ?Insistiu em descobrir.
?Não ?respondeu.
?Então? ?Entreabriu o olho esquerdo e sorriu ao observar a raiva que exibia seu rosto. Não entendia muito bem se era devido à pergunta ou à repulsa diante da sua proximidade. Se fosse a segunda opção, ele estava morto. Porque, ao contrário de Mary, ele estava voando sem asas e pisando nas nuvens sem atravessa-las. Como o resto da humanidade definiria uma emoção semelhante?
?Estava de castigo ?finalmente declarou. Fixou os olhos no peito de Giesler, tentando definir se sua respiração ficaria agitada ao segurar uma risada. No entanto, permaneceu sereno, calmo e isso a incentivou a continuar: ?Minha mãe não achou engraçado que sua segunda filha, quem ela queria ver casada um dia, operasse um homem solteiro enquanto ele estava nu.
Ele ainda estava calmo, como se suas palavras não o afetassem. Ele não soltaria uma risada ou zombaria disso? Apoiaria a decisão de sua mãe? No entanto, quando colocou sua mão direita sobre o lado, para realizar um leve puxão e tirar o resto do curativo, observou que estava fingindo essa tranquilidade, já que seu batimento cardíaco era tão rápido quanto o dela. O que essa alteração significava? Concordava com o castigo ou se sentia culpado?
?Explicou que me deixou dormindo, que sua raiva não tinha raciocínio lógico? ?Ele perguntou, suportando estoicamente a dor que apareceu em seu peito quando descobriu que Mary havia sido injustamente punida por causa dele.
?Sim ?respondeu pouco antes de se ajoelhar para poder observar, de uma posição mais próxima, a ferida.
Como o pai lhe explicou, a sutura foi excelente. Ele mal teria uma linha branca fina no futuro. Sem dúvida, essa costura, apesar dos nervos que sofreu, era perfeita, como se estivesse costurado a vida toda. De repente, ela começou a rir enquanto deduzia a razão pela qual sua mãe havia levado o bastidor, os fios e o enorme tecido para o seu quarto.
?O que é tão engraçado, Mary? ?Philip estalou movendo-se suavemente para observá-la melhor.
?É incrível! ?Exclamou, incapaz de parar de rir. ?Só ela pode inventar uma tolice semelhante!
Intrigado, Philip queria se virar para Mary, mas ela o impediu, colocando novamente uma de suas mãos no centro daquele peito masculino e largo.
?Não se mexa, milorde. Agora é muito perigoso ?ela pediu, com uma voz suave.
?Então me responda ?ele implorou, num tom tão suplicante que Mary sentiu o desejo de abandonar toda a frieza que ela havia decidido mostrar, sentar ao lado dele e conversar como se fossem dois bons amigos.
?Já lhe disse que estive de castigo... ?começou a dizer.
?E que o motivo foi injusto porque, apesar de me ver nu, eu estava inconsciente e não era perigoso para você ?a interrompeu.
?Você não é perigoso, lorde Giesler, mas arrogante ?declarou, com um sorriso de orelha a orelha.
?Bem! Acaba de destroçar meu ego, Mary Moore Arany! ?Ele exclamou, colocando as mãos no peito. Ele a tocou. Havia chegado perto o suficiente daquela mão macia para roçar seus dedos suaves. Mas, para sua decepção, ela a afastou rapidamente. ?Tantos anos pensando que sou irresistível para as mulheres e agora acontece que alguém me garante que não sou tão sedutor quanto acreditei durante todo esse tempo ?acrescentou ironicamente.
?Vi muitos homens que...
?Quantos? ?Perguntou, arregalando os olhos e se levantando.
?Não vai me ouvir? ?Respondeu assim que jogou o curativo em algum canto do quarto. Se levantou do chão e colocou as duas mãos no peito de Giesler, para forçá-lo a se reclinar novamente na cama.
«Maldita insistência!» Mary pensou ao sentir como suas mãos aumentavam de temperatura, ao perceber a aspereza daquele pelo masculino e perceber que a respiração de lorde Giesler estava alterada, como se ele tivesse corrido atrás de um galgo.
?Quantos homens você viu nu, Mary Moore Arany? ?Insistiu, entrelaçando os dedos de cada mão nos pulsos dela.
?Isso importa para você, lorde Giesler? ?Se aventurou a dizer.
De repente, ela sentiu que os polegares do homem acariciavam aquela parte de sua pele, queimando-a sem compaixão. Queria se afastar, queria se distanciar, precisava evocar seu bom senso! Mas... não podia. Ele arrebatou toda a força que teve até agora, deixando-a vulnerável, fraca.
?Sim, me importa ?Philip sussurrou enquanto fixava os olhos naqueles belos lábios vermelhos.
?Por quê? ?Mary insistiu em uma voz que não podia reconhecer como sua.
?Porque quero saber quantos homens duelarei em breve ?afirmou antes de agarrar com força os pulsos e estendê-los para ambos os lados, fazendo com que ela caísse de bruços sobre ele. Com tão bom acerto que aquela preciosa boca impactou sobre a sua.
Antes que Mary tivesse tempo suficiente para reagir, Philips soltou os pulsos. Ele colocou uma mão atrás da nuca e a outra nas costas dela, imobilizando-a. Seus maravilhosos olhos azuis a observavam incrédulo e parecia que saltariam de suas orbitas. Ele hesitou. Por um segundo, duvidou da decisão que havia tomado, mas imediatamente a apagou da sua cabeça. A amava, desejava, precisava e queria que ela fosse... sua. Lentamente, ele pressionou seus lábios nos dela, pedindo-lhe para separá-los, mas Mary não entendeu bem o propósito que se havia definido. Ninguém a beijou com paixão? Mary foi sincera? Que Deus se compadecesse de sua alma perdida porque iria desfrutar muito ensinando-lhe o que significava a palavra prazer!
Atordoada não era a palavra que a definia exatamente. Nem mesmo outra poderia descrevê-la perfeitamente! Sua boca pressionava a dele, notava o calor do ar que fazia ao respirar tocar suas bochechas e percebia, com incrível precisão, como os batimentos de seu coração e os do lorde palpitavam juntos. Tentou se separar quando suas mãos ficaram livres, mas não conseguiu se mexer. Aquele perverso colocou uma de suas grandes mãos na nuca e a outra nas costas, impedindo-a de fazer qualquer movimento para se distanciar. Em pânico, ela abriu os olhos e tentou gritar, no entanto, algo aconteceu que a deixou tão confusa que a silenciou. Esse algo tinha um nome: língua. A ponta desse órgão muscular masculino tocou seus lábios, incentivando-a a separá-los. O que se propunha? O que devia fazer? Poderia considerar esse momento como um teste médico? Oh sim! Claro! E o adicionaria a qualquer manual sobre as interações sexuais entre um homem e uma mulher! Apertou os lábios com força, certificando-se de não deixar a língua ousada e descarada passar.
No entanto, essa ideia firme foi suprimida de sua mente quando as pontas dos dedos, colocadas em seu pescoço, começaram a acariciá-la lentamente. Encantada por essas carícias suaves, seu corpo relaxou e mergulhou em um improvável estado de bem-estar. Era consciente de como seus pelos se arrepiavam, como o calor nascido em seu sexo aumentava e como todo o seu ser ansiava por algo que ela nunca havia provado. Pela primeira vez, ela estava em um estado de fluidez e despreocupação, como se aquele homem a mantivesse protegida, segura e não existissem problemas a enfrentar. Havia apenas eles... dois. Lorde Giesler aproveitou esse momento de embriaguez erótico para invadir o interior da boca dela. Aquela língua masculina a possuiu, a acariciou com anseio, com desejo e com tanta paixão que finalmente fechou os olhos e se deixou levar. Nunca imaginou que uma coisa tão ridícula pudesse provocar algo tão grandioso! Agora entendia a razão pela qual Anne havia sucumbido com tanta facilidade. Se um homem a tivesse beijado dessa maneira, nada e ninguém a impediria de acabar consumindo a paixão iniciada. De repente, ouviu um rugido brotar da garganta masculina. Quando tentou se concentrar no motivo pelo qual fez esse som, outro saiu ainda mais alto. Se lorde Giesler tivesse sido o chefe de uma tribo, esse som poderia defini-lo como um chamado de posse, territorialidade, orgulho e glória, tornando-a sua única companheira de vida. Mas... Isso devia ser uma tolice, certo? Ele não podia reivindicá-la como sua, não havia nada científico que pudesse explicar tal suposição.
No entanto, mesmo que tudo fosse imaginário, era bonito deixar seu corpo relaxar e ser enganado acreditando que sua casa estava nos braços daquele homem. Um lar fictício, é claro, pois ela nunca pensou em morar naquele corpo masculino. Com coragem e vontade de experimentar, ela imitou os movimentos da pecaminosa língua viril até que ambas se encontraram. O sabor do café, que havia tomado antes de subir, se expandiu pelas bocas. Era como se estivesse tomando novamente um gole daquele líquido delicioso adoçado com o sabor rico dele. Foi nesse momento que admitiu com resignação que nunca mais tomaria um café tão gostoso e excitante. Os beijos eram sempre assim? Davam tanto prazer as duas pessoas? Porque não queria parar, era mais, doía ter que fazê-lo, mas a necessidade de respirar se tornou inegável. Quando abriu os olhos, notou que as pupilas de lorde Giesler haviam se dilatado e que suas íris estavam escuras, expressando um sentimento muito diferente da indiferença...
No momento em que sua mente começou a enumerar as possíveis razões pelas quais ele a olhava com tanto ardor, ele pegou seu rosto com as duas mãos e aproximou-o o suficiente para notar novamente o calor da respiração e a suavidade dos seus lábios.
?Vou te dar a lua, Mary ?ele declarou antes de beijá-la novamente e repetir um beijo atrevido, ousado, indecente e maravilhoso.
Mas tudo o que é belo não dura para sempre...
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou Shals batendo à porta com insistência.
?Não! ?Ele respondeu.
?Sim! ?Ela disse, se afastando rapidamente do seu lado.
Capítulo X
Ele devia lealdade ao seu senhor...
Desde que o contratou, catorze anos atrás, ele nunca o deixou indefeso e nessa ocasião também não o faria. Ele saiu da biblioteca, onde havia se escondido os últimos dez minutos para evitar encontrar a Sra. Reform e, depois de confirmar que não havia ninguém, caminhou rapidamente pelo corredor. Ele carregava a maleta da senhorita Moore na mão direita, essa era a desculpa que daria quando aparecesse no quarto. Depois de confirmar o estado de seu senhor, a agonia que estava sofrendo desde que a jovem subiu as escadas, pronta para colocar lorde Giesler em seu lugar, desapareceu. Com a agilidade de um ladrão habilidoso e um sorriso de satisfação que cruzava seu velho rosto, Shals começou a subir as escadas, fazendo o menor ruído possível. No entanto, seus olhos se arregalaram quando ouviu alguém bater na porta. Ele esperou o tempo suficiente, plantado lá, para confirmar que, exceto ele, ninguém mais ouvira as batidas insistentes da aldrava na madeira. Ele bufou, pois seu dever como mordomo principal o acusava de não cumprir a tarefa que lhe fora confiada. Pôs a maleta no degrau e recuou tudo o que lhe custara tanto. Parou em frente à entrada, esticou o colete de seu traje e mostrando a severidade própria do homem de confiança do lorde, abriu.
?Shals! Ainda bem que me ouviu! Estou há mais de cinco minutos batendo na porta! ?Martin disse enquanto tirava o casaco para oferecer a ele.
?Sinto muito, senhor, mas hoje temos a casa um tanto agitada ?comentou como um pedido de desculpas.
?Philip tem piorado? ?Ele perguntou inquieto olhando para o andar de cima enquanto tirava as luvas.
?Não, para alívio de todos nós, nosso senhor está muito bem ?explicou depois de pendurar o casaco de Martin no cabide e colocar as luvas na gaveta da cômoda da entrada. ?A causa da agitação se deve a...
?Martín! ?Valeria gritou quando apareceu no corredor. ?Que alegria vê-lo novamente! Desde quando está em Londres? Por que não veio me visitar? Esqueceu que tem seis sobrinhos esperando a presença de seu tio favorito? ?Acrescentou antes de envolvê-lo em um forte abraço maternal.
?Cheguei há alguns dias, peço desculpas por não ter aparecido em sua casa neste momento, mas tinha um assunto importante para resolver e não podia atrasá-lo ?desculpou-se, esboçando o sorriso mais terno e mais doce que um irmão que amava sua irmã poderia mostrar.
?Que assunto? ?Valeria entrelaçou seu braço esquerdo no direito de Martin.
?Falaremos depois disso, se não se importar. Eu gostaria muito que Philip estivesse presente quando oficializasse.
?Vai casar? ?Perguntou erguendo as sobrancelhas. ?Você conheceu uma mulher?
?Realmente pensa que sou incapaz de tirar os olhos dos livros? ?Perguntou com aversão.
?Eu não disse isso! Sei que, quando fizer isso, levantar seus olhos bonitos dos livros, encontrará a mulher que espera e nesse dia...
Shals aproveitou a distração dos irmãos para subir as escadas novamente. Teria que acabar com a agonia que sofria por não saber o que estava acontecendo no quarto do lorde. Ele precisava confirmar que a Srta. Moore não tinha gritado com ele, cuspido ou... matado. Daí que permanecessem em silêncio absoluto. Ele pegou a maleta e subiu os últimos degraus. Caminhou pelo corredor o mais rápido que seus pés o permitiam e, quando alcançou a porta do quarto do senhor que estava aberta, ficou surpreso ao ver a imagem que era oferecida lá dentro. Eles não eram capazes de ver a imagem que mostravam, pois ambos tinham os olhos fechados. Mas ele foi a única testemunha de um milagre. Em silêncio observou-os com tanto afeto que sentiu como seu coração lhe dava uma reviravolta. Seu senhor, o homem que negava o amor, dizendo que só podia trazer tragédias desastrosas ao mundo, aninhava o rosto da senhorita Moore em suas grandes mãos, enquanto as dela repousavam pacificamente em seu peito nu, como era habitual desde que adoeceu. A janela permanecia aberta, talvez Phiona a abriu ao amanhecer, para que o senhor admirasse o belo dia. No entanto, a beleza de fora era mínima se comparado a imagem dos dois. A brisa movia levemente as cortinas, a luz do sol atingia os dois, como se todos aqueles elementos naturais quisessem glorificar um momento tão bonito.
?Vou te dar a lua, Mary ?Lorde Giesler disse à mulher antes de beijá-la.
Ele poderia ter se virado e desaparecido sem ser visto ou ouvido, mas a voz da Sra. Reform indicava que os irmãos de seu senhor estavam indo visitá-lo. Deu um passo à frente, pegou na maçaneta com a ponta dos dedos e fechou a porta até ficar apenas uma pequena abertura. Essa opção seria mais adequada que apresentar-se sem avisar e fazer com que a senhorita Moore se encontrasse em um grande apuro. Seus lábios permaneceriam selados, embora jamais esqueceria o brilho que seu amo mostrou nos olhos ao olhá-la, nem a declaração dessas palavras tão firmes e seguras. Tinha se apaixonado. Finalmente! E de uma mulher que todo o serviço adorava, apesar de ter um comportamento tão áspero quanto a lixa de um ferreiro. Ele olhou para trás para garantir que a visita prematura chegasse ao patamar no primeiro andar. Que lorde Giesler o perdoasse, mas era mais sensato pôr um fim àquele momento romântico do que serem encontrados daquela maneira. Ele agarrou a maleta com força, colocou os nós dos dedos da outra mão na porta e bateu quase sem movê-la do lugar.
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou.
?Não! ?Ele gritou.
?Sim! ?Disse ela.
?Desculpe pela interrupção, excelência ?Shals comentou entrando rapidamente no quarto ?mas presumi que a senhorita Moore precisasse de sua maleta.
?Obrigada, Shals ?a jovem respondeu, depois de alisar as rugas do vestido com as mãos, ela sorriu e estendeu a palma da mão para pegar a maleta. ?Você é muito atencioso ?acrescentou se virando.
Colocou-a sobre a mesa pequena que estava ao seu lado e suspirou. Suas bochechas ainda estavam ardendo, seu coração ainda estava acelerado e suas mãos tremiam. Como foi capaz de enredar os dedos na alça da maleta se não podia controlá-los? Olhou para fora e uma brisa leve acalmou aquele estado de excitação que havia liberado segundos antes. Não podia acreditar no que tinha feito. Não apenas se deixou levar por um beijo, mas também ansiava por mais. Odiou o momento em que escolheu usar um vestido de mangas compridas, porque seus antebraços não podiam tocar o peito masculino, amaldiçoou o momento em que a costureira indicou que o decote era apropriado, porque queria descobrir se lorde Giesler gostaria de ver seu peito, como ela gostava de observar o dele, e estava com raiva de si mesma por não ser capaz de parar aquela situação.
?Milorde, desejo anunciar que seu irmão decidiu visitá-lo esta manhã ?prosseguiu falando o mordomo, que se colocou em frente aos pés da cama. ?E que aparecerá com a senhora Reform em breve...
?De fato, Martin, —disse Valeria, ao entrar no quarto. —A Srta. Moore decidiu visitar nosso irmão e confirmar que ele evolui satisfatoriamente.
Naquele momento, Mary queria pular pela janela e correr sem olhar para trás até chegar em casa, mas tudo o que fez foi respirar fundo, dirigir-se às pessoas que entravam no quarto e mostrar seu melhor sorriso.
?Mary, tenho a grande honra de apresentá-la ao nosso irmão mais novo, Martin Giesler.
Antes que ela pudesse dar um passo em direção a eles, o jovem, que se parecia muito com lorde Giesler, exceto que usava óculos e sua compleição era menos robusta, avançou em direção a ela, pegou uma das mãos e beijou os nós dos dedos.
?Cara Srta. Moore, é um prazer finalmente conhecê-la. Quero agradecer pessoalmente pelo fato de ter salvado a vida de meu irmão. ?Disse num tom gentil.
Com essas palavras muito cordiais e afetuosas, Mary corou, piscou várias vezes e deu um sorriso coquete. Enquanto isso, Philip estendeu a mão direita até encontrar o livro, que tentava ler até decidir se levantar, e pensou em jogá-lo em Martin. Mas ele se conteve. Seu irmão não era um rival para ele, certo?
?A honra e o prazer são meus ?ela respondeu com alguma timidez. Deu um passo atrás para manter distância e agarrou suas mãos.
?Porque motivo? ?Ele retrucou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?É uma grande satisfação para mim que um homem com seu talento me parabenize.
?Com meu talento? ?Martin insistiu, erguendo a sobrancelha direita.
?Sua fama é notória em toda a Inglaterra. Não há ninguém neste país que não tenha lido e admirado sua última publicação. Devo confessar que fiquei surpresa ao ler sua definição e cálculos em uma interseção variável em dois planos curvos. Foi esplêndido, se me permite o elogio, lord...
?Não sou lorde, apenas Martin Giesler ?ele a corrigiu rapidamente. ?É ele quem ostentará, se decidir fazê-lo algum dia ?concluiu?o título de Freiher Von Giesler. No entanto, lhe peço encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal, não acha? ?E sorriu para ela.
?Sendo assim, pode me chamar de Mary, e obrigada pelo elogio. Fico lisonjeada ao descobrir que há um homem neste mundo que não se intimida com o intelecto de uma mulher ?respondeu, acrescentando às suas palavras um sorriso fraco.
?Informava ao meu irmão ?Valeria interveio, que suportou o máximo que pôde a risada que queria explodir quando viu como Philip se contorcia na cama ?que aceitou o convite para almoçar conosco.
?Almoçar? ?Philip se intrometeu. ?Não seria educado ou apropriado, pois o anfitrião desta casa, que paga seus bons funcionários e a comida que colocam na mesa, não pode se comportar como tal devido a sua doença e indisponibilidade ?salientou.
?Oh, Philip! ?Exclamou Valeria com um sorriso fingido e movendo a mão direita com desdém. ?Sempre tão brincalhão! Não se preocupe Mary, não há nenhum problema. Além disso, desfrutaremos da agradável companhia de Martin. Sabe que foi o rapaz mais jovem que contrataram na Universidade? ?Enroscou o braço direito no esquerdo da moça e a fez caminhar em direção à porta. ?Nós já sabíamos que ele se tornaria uma pessoa muito importante, porque quando criança ele sempre pensava e raciocinava como um homem adulto. Em vez disso, Philip... Oh, Deus! Não sabe os problemas que tive que suportar por sua culpa! ?Exclamou novamente com aparente pesar. Quando estava a um passo de fazê-la sair do quarto, parou e olhou para ela. ?A propósito, você terminou? Talvez tenhamos interrompido a consulta e não conseguiu finalizá-la...
?Não se preocupe, tinha acabado de verificar quando apareceram. Só tenho que colocar um novo curativo, mas Shals pode fazer isso durante o dia ?garantiu.
Por nada no mundo, ficaria sozinha com ele novamente! Ela gostou do beijo? Sim! Tinha gostado de ver que havia um homem que a desejava? Sim! Mas aí concluía sua história. Não poderia se deixar levar pela emoção que lorde Giesler lhe causava. Era um homem perigoso para ela, demais para ficar sozinho com ele novamente.
?Que conclusão chegou? ?Valeria insistiu, acelerando o ritmo. ?Acha que logo poderá se levantar e deixar essa maldita cama?
?Conseguirá se permanecer deitado pelo tempo recomendado ?Mary alegou antes de sair de lá sem sequer se despedir com um olhar fugaz.
***
Os dois irmãos ficaram olhando para a porta e só se viraram quando Valeria e Mary desapareceram.
?Milorde ?Shals interveio, que permaneceu escondido em um canto do quarto o tempo todo ?com sua permissão, devo confirmar que o almoço está devidamente preparado. ?Deu um passo para a cama, fez uma rápida reverência e saiu dali antes que...
?Qual é o problema?! ?Martin gritou quando sentiu uma dor terrível no peito, causada pelo impacto de um livro voador inesperado.
?Qual é o problema? Você dirá... o que acontece com você? ?Explodiu. Apoiou os cotovelos sobre o colchão e acabou por se sentar.
?Não sei a que se refere ?disse agachado para pegar o livro que, após a colisão, tinha caído no chão aberto.
?Peço-lhe encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal ?repetiu as palavras que seu irmão usou como se estivesse mastigando a sola de um sapato.
?Isso? ?Ele retrucou, depois de depositar o livro na lareira. ?É considerado educação e respeito por uma mulher inteligente que, felizmente, salvou a vida de um ente querido.
Ele caminhou parando na frente de Philip e se apoiou com o ombro direito em um dossel de madeira. Poderia deixar escapar uma risada enorme? Porque Deus bem sabia que ele queria fazer isso! Se pegasse o espelho, que estava na cômoda, e o colocasse na frente de seu irmão, descobriria que os demônios realmente existiam. Como prometeu a Valeria, ele ofereceu uma atitude receptiva em relação a Mary, para que Philip reagisse. No entanto, admitiu que estava fascinado ao descobrir que ela havia lido sua última publicação.
?Educação e respeito? Você quase voa como se fosse um querubim em sua direção para beijar a mão dela! Beijar a mão dela! ?Repetiu, percebendo como uma estranha acidez queimava seu estômago.
?Não me disse algo sobre não distinguir entre dois bons seios femininos e duas formas de calcular um mesmo resultado? ?Ele comentou, mesmo sabendo que o inferno dividiria a terra em dois e que o próprio Satanás puxaria sua mão para arrancar sua alma. ?Bem, pela primeira vez na vida, tenho que provar que você está certo. A senhorita... Mary parece ter herdado um busto generoso e firme. Embora seu vestido azul não tivesse um decote muito ousado. Apesar de tudo, acho que quando me aproximei para beijar aquela mão doce e macia, nossos peitos se aproximaram o suficiente para calcular suas medidas. Você me pediu para contemplar também a largura dos quadris de uma mulher? Porque eu acreditava que... ?terminou de falar quando um travesseiro voou, das costas de Philip, para impactar seu rosto, fazendo com que seus óculos fossem atirados no meio do quarto. Como diabos ele estava se movendo com tanta agilidade se ainda estava convalescente?
?Não se aproxime dela! Entendido? ?Berrou. ?Ou juro por Deus que essa conversa será a última que temos pelo resto de nossas vidas.
Martin pegou os óculos do chão, colocou-os e olhou para o irmão. Pela primeira vez, uma ameaça a sua pessoa apareceu em seu rosto. Seria conveniente informá-lo de que Valeria havia planejado sua atuação em relação a Mary? E se decidisse se vingar dos dois? Se havia algo inquebrável em Philip, era sua necessidade dar uma lição às pessoas que o desafiavam. Um exemplo claro disso poderia ser assegurado pelo homem que, quando era adolescente, Philip o chamou de trapaceiro em um jogo de cartas que jogou no antigo clube de seu cunhado. Demorou quase quinze anos para encontrá-lo e, depois desse momento, o cavalheiro não conseguiu levantar a aba do chapéu por dois longos meses. De acordo com a versão de seu irmão, o Sr. Manther colidiu com seu ombro duro no momento em que saiu de White´s e, logicamente, não se afastou rapidamente para evitar um impacto inconveniente e doloroso no olho direito. Então, se não desejava usar um chapéu de abas largas por vários meses, era melhor dizer a verdade.
?Essa farsa foi ideia de Valeria ?finalmente confessou.
?O que significa ... esta farsa? ?perguntou estreitando os olhos.
?O de flertar com Mary ?esclareceu.
?Maldita mente perversa! ?Philip exclamou com raiva.
?Não tinha pensado falar com a senhorita Moore, já sabe que não sou muito versado em manter uma conversa agradável com as mulheres, mas Valeria, depois de encontrá-la no corredor, não parou de falar e falar... Me disse que havia deixado vocês algum tempo sozinhos e que assim lhe devia um grande favor. Que precisava da minha ajuda para descobrir se o seu interesse por essa moça era verdadeiro. Imagino que colocou suas esperanças nela para aceitar maldita baronia.
?Típico dela... ?Philip murmurou.
?Juro que minha presença tinha outro objetivo. Queria pedir conselhos sobre um assunto que tenho nas mãos ?Ele disse sem tirar os olhos do irmão. Relaxada a tensão entre ambos, Martin adotou uma postura mais calma: cruzou os braços na frente do peito e os pés à altura dos tornozelos.
?O que você precisa? ?Philip estalou, olhando para ele sem piscar.
A vida poderia dar algo doce e acido ao mesmo tempo? Porque é assim que se sentia. Ela passou de ter nos lábios a doce boca de Mary para a acidez de lutar com seu irmão para consegui-la. Agora, apesar de saber que tudo tinha sido um truque de Valeria, ainda não conseguia sentir novamente a ansiada doçura.
?Um em troca do outro, como quando éramos crianças? ?Observou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?Um em troca de outro ?admitiu enquanto seu corpo relaxava consideravelmente.
?Bom. Eu decidi estabelecer minha nova residência aqui em Londres ?Martin começou a dizer enquanto se aventurava a sentar ao lado de seu irmão. ?Conversei com Lawford Jr. e ele me disse que poderia investir na propriedade dos Bohanm. Como me informou, é um casal bastante antigo e deseja partir à sua casa de campo para desfrutar de um pouco de paz no tempo que lhe resta de vida.
?Sabe quais vizinhos terá? ?Philip estalou, franzindo a testa e olhando para ele... de novo.
?Ainda não vi, então...
?Os Moore! ?Explodiu de novo.
?De verdade? ?Ele perguntou, arregalando os olhos. ?Inferno de coincidência!
?Você não me disse que agiu de acordo com o plano de Valeria? ?Rosnou.
?Juro pela alma dos nossos pais que sim e que não fazia ideia que a família da Mary seria meus novos vizinhos. Só quero um lar tranquilo, onde possa continuar com... ?Ele se levantou, deu as costas para o irmão, caminhou até a varanda e ficou em silêncio.
?Com? ?Philip insistiu.
?Eu deixei o trabalho na Universidade ?ele disse finalmente, sem desviar o olhar do lado de fora.
?O que disse? Por quê? Você ficou louco? Você precisa de mim para isso? Não é capaz de enfrentar a ira de Valeria? Porque ficará com raiva quando descobrir e me culpará de sua decisão ?Philip comentou, mal respirando.
?Não te culpará de nada, porque lhe explicarei que me ofereceram mais uma alternativa... ?«Obrigatório?», pensou Martin. Não, não poderia dizer isso, era vital para o bem-estar da família que ninguém soubesse a verdade.
?Mas? ?Philip insistiu em saber.
?Tranquilo ?Ele respondeu, virando-se para o irmão. ?É verdade que o trabalho que fiz na Universidade foi gratificante, mas mal aproveitei o tempo livre. Anseio por uma casa, anseio por sua companhia, quero me casar, formar uma família e... viver ?lhe garantiu. Embora a verdadeira razão pela qual decidiu se estabelecer não tivesse nada a ver com a vida, mas com a morte, e não de uma pessoa, mas centenas, talvez milhares...
?Quando você pretende realizar seu novo futuro? ?Perguntou intrigado.
?Em uma semana, no máximo ?ele declarou depois de colocar as duas mãos nos bolsos e puxar os painéis frontais da jaqueta azul marinho. —O tempo que leva para Lawford confirmar a compra dessa residência.
?Bem... ?Philip murmurou acariciando uma barba inexistente. ?Embora Valeria fique brava com você por um longo tempo, devo confessar que é a melhor decisão que você tomou até agora. Já era hora de você voltar e decidir procurar uma esposa, que não será Mary, é claro ?Ele apontou examinando o rosto de seu irmão.
?Não será Mary, te garanto isso. ?Sorriu. ?De certa forma, foi responsável por esta decisão. ?Ao ver que seu irmão levantava uma sobrancelha em sinal de pergunta, acrescentou: ?Sofri muito ao pensar que poderia ter morrido. Tenho me perguntado todos estes dias o que teria acontecido se você... ?não terminou a frase, doía muito fazê-lo. ?Tinha pensado oferecer minha carta de demissão quando terminasse o curso, mas a enviei no mesmo dia que Pierre me fez chegar a missiva de Valeria para me informar sobre sua doença. ?Não era bem verdade, ele o escrevera vários meses antes, quando o estrangeiro apareceu em sua antiga casa e lhe disse que tinha menos de seis meses para aceitar a nova posição oferecida a ele. O anúncio da situação de Philip acelerou o processo. ?O tempo é curto e acho que devo aproveitar para viver com as pessoas que amo ?concluiu. Ele voltou para o lado do irmão e sentou-se novamente no canto inferior da cama?. Então, aqui estou eu, esperando um papel para realizar um sonho... ?refletiu. ?Agora é sua vez, irmão. Diga-me que segredo você mantém ?apelou.
?Vou aceitar a maldita baronia ?comentou depois de jogar a cabeça para trás, até tocar na cabeceira de madeira e suspirar.
?De verdade? Tem certeza? Valeria vai chorar de emoção! Está a muitos anos esperando você tomar essa decisão! ?Comentou feliz.
?Mas somente se eu puder me casar com ela ?disse uma vez que os olhos de ambos encontraram.
?Então... você gosta??Discorreu Martin acomodando os pés sobre a cama, como costumavam fazer quando eram crianças.
?Estou apaixonado, Martin. Não sei quando, nem como, nem por que aconteceu, mas concluí que não poderia viver sem ela. ?Ele admitiu, com um sorriso nos lábios.
?Eu tenho que te dizer uma coisa, Philip, ?ele começou a dizer adotando o tom que costumava falar com seus alunos —há um estudo e um termo médico que, até o momento, não foram levados em consideração, mas seria interessante se você o conhecesse.
?Qual? ?Sua voz soou como se estivesse a ponto de defender-se de um ataque repentino.
?O choque de gratidão. O que sofre um paciente que, ao ser salvo de uma morte certa, acredita que se apaixonou por seu salvador e...[7]
?Bobagens! ?Philip o interrompeu. ?Eu me apaixonei por Mary desde o momento em que a vi pela primeira vez. O que aconteceu a seguir apenas confirmou que ela é a única mulher que eu quero ter ao meu lado pelo resto da minha vida ?garantiu a ele.
?E por que vai assumir a baronia quando se casar com ela??Estalou intrigado.
?Porque me pediu a Lua e só poderei dá-la se me converter em um miserável aristocrata ?ele alegou antes de olhar para a maleta que, novamente, havia sido esquecida por sua dona.
Capítulo XI
Como ela poderia se comportar de uma maneira tão irracional? Por que era incapaz de sentir felicidade quando deixou a residência do lorde? Qual seria a razão médica pela qual notava uma forte pressão no peito? Estaria prestes a sofrer um derrame depois do que aconteceu com aquele homem?
Mary não tirou os olhos da janela enquanto voltava para casa acompanhada de Valeria. Tal como ela lhe prometeu, depois do almoço, conduziu-a até à livraria do senhor Slow e deu-lhe as três crônicas médicas que havia reservado. Deveria mostrar felicidade por ter conseguido tanto o que queria nos cinco dias de castigo, mas não foi assim. Pegou as revistas e as colocou dentro da pasta sem parar para ler seus títulos. Reagiu de modo automático, sem emoção. Talvez porque sua cabeça se recusava a se concentrar em outra coisa que não fosse... ele.
Acreditou, inutilmente, que todas as emoções e sensações produzidas durante o beijo desapareceriam uma vez que abandonasse o quarto. Errado. Ela os reviveu tantas vezes que sofreu inúmeras ondas de calor no almoço. Embora a conversa que teve com Martin tenha sido bastante agradável, não foi esplêndida nem maravilhosa. Apenas prestou atenção à conversa exaustiva que lhe ofereceu sobre o algoritmo quantitativo em diferentes equações. No fundo, e isso parecia inédito, ficou entediada. Em algum momento dessa explicação, sua alma deixou seu corpo para sair da sala de jantar, subir as escadas, correr pelo corredor para voltar aos braços de lorde Giesler. Seus lábios sentiram novamente a suavidade daquela boca masculina, provaram aquele maravilhoso sabor de café, sua língua dançou outra dança de carícias e, por isso, prazer e paixão retornaram.
Tal como concluiu, a melhor opção para manter um bem-estar mental e físico era evitar outro encontro com ele e eliminar de sua mente todos aqueles pensamentos tão inapropriados. Nunca se sentira tão atraída ou intimidada por um homem. Jamais deixou em um segundo plano quem era e em quem desejava se converter. No entanto, desde que aquele homem apareceu em sua vida, tudo se tornou um caos, pois não era capaz de se concentrar em nada exceto nele. Quantas vezes, desde que seu pai lhe deu a maleta, se esqueceu dela? Até que lorde Giesler se cruzou em seu caminho, nunca. Se havia noites que até dormia com ela na cama! Isso também tinha mudado, porque durante sua inesperada visita abandonou seu precioso presente em várias ocasiões...
Sem afastar o olhar do lado de fora suspirou fundo. Estava muito decepcionada por não ter sido capaz de controlar nem sua mente e nem seu corpo quando permaneceram juntos. Ela estava sempre atenta às traições que os outros podiam gerar, mas nunca imaginou que ela mesma seria a maior traidora de sua pessoa. Desde que Anne sofreu a angústia da morte de Dick ou do engano que Elizabeth padeceu por Archie, ela se esforçou para lutar contra tudo o que envolvia um relacionamento afetuoso com um homem. Tudo o que podiam obter dela eram conversas e discussões médicas. Qualquer sentimento afetivo estava vetado, negado, fechado. No entanto, lorde Giesler quebrou todas as barreiras que ela havia construído ao longo dos anos. Aquele gigante de olhos azuis e cabelos loiros havia se tornado seu ponto fraco, porque havia encontrado uma maneira de transformá-la, através de seus beijos e carícias, em um ser vulnerável, frágil e comum.
Ela se mexeu desconfortavelmente no assento enquanto apertava as mãos com força, que estavam no colo. Se não estava errada, como começava a ser habitual nela, suas bochechas já mostrariam um leve rubor por causa de suas divagações. Valeria poderia supor que isso se devia à ansiedade que lhe provocava chegar em casa e enfrentar novamente o castigo estabelecido por sua mãe. Mas essa não era a razão pela qual as bochechas pareciam duas pequenas chamas de fogo. A lembrança de como o corpo dela reagiu durante os beijos a alterou e a enfureceu a ponto de elevar a temperatura do corpo em mais de dez graus. Se tocasse o termômetro que guardava na maleta, o mercúrio aumentaria tanto que o pequeno tubo de vidro explodiria em suas mãos. Como se deixou levar tão facilmente? Por que seu cérebro foi incapaz de impedir isso? Não havia lido que a amígdala cerebral ajudava a encontrar a estratégia necessária para resolver uma situação de estresse, medo ou perigo? Então, por que a dela estava inativa quando lorde Giesler se encontrava próximo a ela? Bufou pelo nariz. Ansiava procurar respostas médicas para todas as suas perguntas e tinha uma solução para isso: procuraria o livro que seu pai mantinha na prateleira de seu escritório. Se bem lembrava, o médico e cientista francês Paul Broca explicaria como o sistema límbico funcionava. Talvez descobrisse qual dos seus quatro componentes era responsável pelas respostas emocionais. Depois que encontrasse o problema, lutaria contra ele. E se para isso tivesse que usar aqueles dolorosos choques elétricos, se submeteria sem hesitar um segundo. Ela precisava fazer tudo ao seu alcance para ser a Mary de sempre e se afastar de quem se tornara. Ela nunca foi uma mulher apaixonada, mas uma jovem respeitável que raciocinava, entendia e observava o mundo de uma perspectiva lógica. Não podia se transformar, da noite para o dia, na desavergonhada que havia percebido um certo prazer entre as pernas ou que ansiava que as mãos do homem viajassem cada centímetro de sua pele. De modo algum voltaria a desejar algo que tinha decidido não ter em sua vida. Por esse motivo, lorde Giesler tinha que morrer para ela.
?Mary? ?Valeria perguntou estreitando os olhos.
?Sim? ?Ela respondeu, virando-se para a companheira e desenhando um enorme sorriso. A consequente ao ter a certeza de uma vitória próxima.
?Está bem?
?Sim, muito bem. Por que pergunta? ?Continuou falando sem apagar o leve sorriso dos lábios. Esperava que seu rosto não decidisse traí-la também, porque não queria ser interrogada pelos poucos minutos restantes, para chegar em casa, sobre o motivo de estar tão ausente.
?Percebo você... distante ?Valeria alegou.
?É o meu estado normal ?respondeu enquanto estendia a mão para a alça da maleta e a colocou sobre as pernas. ?Minha cabeça não para de pensar sobre o que esses preciosos artigos médicos registram.
?No que você está pensando agora? ?Estalou com uma mistura de decepção e raiva.
?Claro! ?Mary exclamou, arregalando os olhos para enfatizar sua decepção. ?Estou ansiosa para descobrir que nova doença encontrara na Europa e me informar de como pode ser eliminada. Embora ultimamente não tenham encontrado muitos casos importantes. No mês passado, os quatro artigos que adquiri na livraria do senhor Slow falavam sobre o ensaio realizado por Henry Gray em mil oitocentos e quarenta e oito, intitulado A origem, conexões e distribuição dos nervos do olho humano. Uma descoberta magnífica para um jovem anatomista e cirurgião britânico. Sabia que tinha a minha idade quando foi eleito Membro da Royal Society? Embora ele tenha morrido cedo demais. Uma verdadeira tragédia para a sociedade médica. Mas... Quem iria supor que morreria de varíola aos trinta e cinco anos? Segundo dizem, foi transmitido por um sobrinho que ele cuidava e...
Valeria não soube o que dizer a respeito. Tinha assumido, ao vê-la tão calada e embaraçada, que estava revivendo o tempo que passou a sós com seu irmão, mas se equivocava. A jovem era imune aos encantos de Philip. E era a primeira mulher a fazer isso! Mas não desistiria tão cedo. O que estava em jogo era o baronato e, diante disso, lutaria incansavelmente.
?Você se lembrou do ensaio porque viu algo perigoso nos olhos do meu irmão? ?A interrompeu.
?Como? ?Mary estalou confusa.
?Eu me perguntava se o fato de você evocar esse livro médico tem algo a ver com alguma doença que tenha apreciado nos olhos de Philip ?insistiu.
?Não! Nada disso! ?Disse rapidamente.
?Menos mal! Porque, pelo que entendi, pessoas que têm olhos castanhos podem...
?Castanhos? ?Mary soltou. ?Pelo que me lembro, lorde Giesler tem íris azuis claras, muito parecidas com as minhas ?acrescentou.
Bom. Pelo menos, ela havia notado esse detalhe. Agora tinha que continuar com seu plano.
?Certo. Às vezes me confundo com os de meu marido ?se desculpou. ?Então imagino que seu pensamento não tem nada a ver com outra possível doença, certo?
?Exato! ?Garantiu. ?Seu irmão está muito recuperado e abandonará o quarto se permanecer uns dias mais em repouso. Para ser sincera, continuo fascinada com sua evolução.
?De verdade? ?Valeria continuou. Se ela tivesse que falar sobre doenças para que se concentrasse em Philip, faria isso sem hesitar por um único segundo. ?Observou a ferida? Acha que requer muita atenção? Não posso estar todos os dias em sua casa. Meus filhos e meu marido são um desastre se me ausento mais de três horas de minha casa. Não ficaria surpresa que, ao voltar, tenham queimado algum cômodo.
?Não se preocupes. A ferida está perfeita. Apenas ficará uma fina cicatriz. Tenho certeza de que meu pai, quando o visitar hoje à noite, confirmará minha opinião. Só espero que Shals não demore muito para enfaixá-lo para que não entre sujeira na fissura.
?Não precisa se preocupar com isso. As empregadas limpam o quarto todos os dias ?Valeria disse.
?Não se trata desse tipo de limpeza ?disse antes de soltar uma pequena risada. ?Centenas de bactérias foram descobertas que pululam pelo ambiente e são invisíveis ao olho humano. Uma delas pode entrar na ferida e infectá-la.
?E sabendo disso... como não lhe ocorreu enfaixá-lo você mesma? ?Valeria perguntou perplexa.
?Porque me arrastou para a sala de refeições e durante o almoço não me pareceu correto me ausentar no meio da maravilhosa conversa sobre algoritmos que Martin me ofereceu. Além disso, tenho certeza de que Shals o enfaixou depois de confirmar que a comida estava preparada. Como você me explicou, ele é um mordomo muito eficiente ?explicou com certeza.
?Ainda assim, acho que seria conveniente que voltasse amanhã para confirmar sua suposição ?Valeria expôs uma vez que olhou pela janela e observou os telhados da residência Moore. ?Não gostaria que Philip tivesse uma infecção agora que começa a melhorar.
?Não vejo necessidade de voltar ?manifestou com angústia. ?Mas prometo que, quando falar com meu pai, informarei o que aconteceu para confirmar que o curativo foi feito corretamente.
?Não quer ter certeza de que meu irmão evolui favoravelmente? Negligencia com tanta facilidade as pessoas que atende? ?Insistiu.
A carruagem parou na entrada de sua casa. Devia esperar que o cocheiro abrisse a porta e desdobrasse as escadas de metal, mas se sentia tão ansiosa para sair de lá que, como demorava um segundo a mais, ela mesma o faria.
?Como te disse, meu pai cuidará dele como fez até agora ?comentou com mais ênfase do que deveria. ?Além disso, lembre-se que ainda estou de castigo e quando minha mãe descobrir que me levou para a casa de seu irmão em vez de consultar seus filhos, não poderei sair de casa até que complete os trinta anos.
Graças a Deus o cocheiro já tinha aberto a porta! Com a maleta na mão, baixou o mais rápido que pôde, alisou a saia de seu vestido e se virou para Valeria, que ainda continuava imóvel em seu assento.
?Foi um dia magnífico, Valeria. E eu insisto que você não deve se preocupar com seu irmão, certamente ele voltará em breve à vida que tinha antes de ficar doente.
?Mas... não quer que eu vá com você até a porta? O que sua mãe vai dizer sobre mim? Prometi a ela que cuidaria de você e a levaria até ela sã e salva.
?Despeço-me em seu nome. Além disso, quando lhe explicar que estava com pressa de chegar em casa, caso algum dos seus filhos tenha incendiado um quarto, ela entenderá. Boa tarde e obrigada pelo presente ?disse antes de fechar a porta e caminhar a grandes passos para sua casa, seu santuário, seu lugar protegido e do qual nunca deveria ter saído.
***
?Não se preocupe com elas, mãe. Garanto-lhe que todas estão perfeitamente bem.
A afirmação de Madeleine fez com que Sophia levantasse o olhar do bastidor e o fixasse na mais nova de suas filhas. Permaneceu em silêncio, observando-a sem piscar. Logo, depois de descobrir aquele brilho tão bonito e sincero em seus olhos verdes, sorriu e voltou para a costura.
?Eu sei ?garantiu. ?Mas é inevitável me preocupar com elas.
?Continua inquieta pela visão que tive sobre Anne? Pensa que me equivoquei sobre lorde Bennett? Porque lhe prometo que era ele. Esse homem nos salvará da maldição ?declarou solene. Fechou a caderneta em que anotou a última receita que havia preparado naquela manhã, se levantou lentamente da cadeira e foi até a mãe para se sentar ao seu lado.
?Confio em suas visões, Madeleine. Se acredita que lorde Bennett é o homem destinado a Anne, esperarei que sua profecia seja cumprida.
?Desaparecerá algum dia? ?Perguntou depois de alguns minutos de silêncio que os utilizou para refletir e entrelaçou seus brancos dedos sobre a saia de seu vestido celeste. Um de cetim mate com rendas nos punhos e pescoço. ?Me refiro ao meu dom. Será que irá da mesma maneira que veio, sem avisar?
?O meu está comigo desde que nasci. Embora tenha desaparecido durante a gravidez, porque toda a minha energia se concentrou em criar uma nova vida, mas voltou uma vez que vieram ao mundo.
?Nunca desejou ter nascido normal? ?Insistiu.
?Você não se define assim? ?Sophia retrucou deixando a costura à esquerda e virando-se para a filha.
?Não ?respondeu sem hesitar um único segundo. ?Quem, de todas as pessoas que conhecemos, pode ter sonhos que preveem o que acontecerá a seguir?
?Madeleine... ?sussurrou, segurando as duas mãos para apertá-las entre as suas ?é uma menina muito especial e não deveria se sentir mal por ter nascido com uma habilidade tão magnífica. Esqueceu o que aconteceu naquele dia? O que você fez por aquela criança?
Madeleine fixou seus olhos nas mãos e mordeu ligeiramente o lábio inferior. Não, não havia esquecido. Jamais poderia fazer uma coisa semelhante! Mas foi nesse momento que seu dom tomou força, o controle de sua vida e não encontrava uma forma de pará-lo. Era verdade que naquele dia ela se sentiu feliz e orgulhosa de si mesma. No entanto, nem todas as suas visões eram boas. Muitas noites ela se levantava banhada em suor, tremendo e chorando inconsolavelmente porque a maldade a dominava.
?Essa criatura pode ser salva graças a você, pequena ?Sophia disse suavemente enquanto acariciava os dedos longos da filha com os polegares. ?Sua alma recorreu para a única pessoa que podia ouvi-la... ?acrescentou.
?Eu sei... ?murmurou, abaixando a cabeça.
?E também foi à razão pela qual Anne desistiu de sair naquele momento. Se você não tivesse nos contado o que viu, ela não estaria mais conosco. ?É verdade que nem todos os seus sonhos serão bons, mas você terá que se esforçar para dominá-los. Uma alma como a sua evocará forças boas e más. Sua missão é saber como filtrá-las.
?Como farei algo assim?
?Imagino que levará muito tempo para você conseguir, assim como eu fiz para desenvolver o meu. ?Ao ver que seus olhos se entristeciam, apertou com mais força suas mãos. ?Mas uma Arany sempre consegue o que se propõe, e não nasceu uma cigana que se renda sem antes lutar.
Madeleine suspirou profundamente e agradeceu as palavras reconfortantes de sua mãe com um leve sorriso. Esperava que tivesse razão, que não se confundisse porque realmente necessitava eliminar certos aspectos de seu dom. Rara era a noite que não ficava acordada, sentada sobre a cama, abraçando os joelhos enquanto se perguntava o que aconteceria uma vez que fechasse os olhos. Essa incerteza era a culpa de seu comportamento. Sempre ficava esquiva de todas as pessoas que se aproximavam dela. Não podia tocá-las, nem olhá-las sem descobrir, mediante aqueles malditos sonhos, algo sobre elas. Algumas vezes a faziam feliz, mas a maldade das pessoas não tinha limites. Seu coração começou a bater com força ao lembrar a tarde que o primeiro noivo de Anne lhe tocou uma mão para cumprimentá-la. Nessa noite, os seus sonhos foram sombrios, tenebrosos e insuportáveis. Seu espírito se desprendeu de seu corpo e saiu à rua, mostrando-lhe o que aconteceria depois de várias semanas. Não foi capaz de explicar a sua família, e nem muito menos a Anne, o que tinha visto. Talvez porque nem ela mesma acreditou. Mas Dick morreu... E como consequência de tudo isso se retraiu ainda mais do mundo.
?Mary acabou de chegar ?comentou Sophia se levantando rapidamente do sofá.
Caminhou para a janela e afastou lentamente a cortina para confirmar que, tal como intuiu, a carruagem da senhora Reform tinha parado no jardim. Olhou o relógio que havia sobre a lareira e franziu a testa. Já eram quatro horas da tarde e, embora tenha sido informada de que a filha almoçaria fora, estava com muita raiva de Mary. Ela deveria procurar qualquer desculpa para recusar o convite. Não era apropriado que ficasse fora de casa por tanto tempo com uma pessoa que mal conhecia, mesmo que estivesse muito agradecida por ter salvado a vida de seu irmão. Mas tinha que confiar em sua filha. Tinha certeza de que, se tivesse se encontrado em uma situação comprometedora, teria agido com sensatez. Embora depois de operar lorde Giesler completamente nu, ela não tivesse mais certeza do bom senso de sua filha.
Saiu silenciosamente da sala de costura e foi em direção à porta para recebê-las. Durante o breve trajeto, lembrou o momento em que a Sra. Reform apareceu em sua casa horas antes. Sua mente evocou a expressão serena que ela exibiu ao se apresentar e como mudou depois que a filha chegou. Como não percebeu isso? Por que seu instinto não a alertou para uma coisa dessas? «Morgana!», exclamou mentalmente enquanto avançava em direção à entrada, abrindo a porta ela mesma, para não demorar muito para descobrir se sua intuição era verdadeira.
?Boa tarde, mãe ?lhe disse Mary uma vez que se encontraram de frente.
?E Sra. Reform? ?Perguntou olhando para a carruagem.
?Disse-lhe que não me acompanhasse, que não era necessário que se incomodasse ?explicou enquanto entrava no hall.
?O que você fez? ?Esbravejou Sophia batendo a porta.
?Eu? Nada! Como pode pensar isso de mim? ?Disse com raiva.
?Porque as duas vezes que vi essa mulher nunca me pareceu uma pessoa desrespeitosa ?a mãe insistiu.
?Precisava voltar para casa o mais rápido possível. Como me disse, seus filhos podem atear fogo em qualquer cômodo da casa, se ficarem mais de três horas longe dela. ?Explicou enquanto dava o casaco a Shira, que apareceu sem fazer barulho.
?Mas... você não iria examiná-los? Porque, se bem me lembro, a senhora Reform disse que haviam sofrido um resfriado e queria confirmar que não teria nenhuma consequência ?Sophia disse, arregalando os olhos.
?Não. No final, me livrei da presença daqueles demônios ?Mary declarou antes de levantar as sobrancelhas castanhas várias vezes. Observando as bochechas e os olhos da mãe começarem a ficar avermelhados, ela decidiu que era hora de escapar. No entanto, quando ela deu um passo à frente, em direção às escadas, uma mão a parou.
?Onde você esteve Mary Moore? Por que não é capaz de me olhar na cara? O que esconde de mim? O que aconteceu?
?Ainda continuo de castigo, certo? ?Sophia estreitou os olhos em resposta. ?Bem, apenas lhe direi que curei pessoas, mas não foram filhos da Sra. Reform, mas os servos de lorde Giesler ?confessou com dignidade.
?Desobedeceu minha ordem e retornou naquele lugar? Por quê?
?A verdade? ?Mary soltou.
?Sim.
?Cheguei à conclusão de que Valeria estava muito assustada com o que aconteceu com o irmão e precisava que eu confirmasse que nosso pai está fazendo um bom trabalho.
?E? ?insistiu Sophia.
?E, como sempre, nunca fico satisfeita em fazer apenas uma coisa. Então, terminei por apresentar duas opiniões em vez de uma.
?Quais? ?Sophia percebeu como a filha estava ficando cada vez mais irritada. Até agora, nunca havia chegado em casa depois de visitar um paciente com tanta irascibilidade. O habitual era que estivesse excessivamente emocionada. Mas tinha que lembrar que o homem doente que visitou era lorde Giesler, o motivo pelo qual estava de castigo.
?A primeira foi que, de fato, a cura desse presunçoso está sendo espetacular e que nosso pai é o melhor no mundo. A segunda... ?Ela respirou fundo e, pela primeira vez em sua vida, olhou para a mãe com raiva, como se ela fosse a única culpada por fazê-la sofrer todas as emoções e sensações que nasceram nela quando foi beijada por lorde Giesler. ?Deve se sentir muito feliz em entender que sempre esteve certa sobre mim...
?Eu? Razão sobre você? Em quê? ?Sophia disse com uma mistura de surpresa e perplexidade.
?Que, embora nunca quis reconhecê-lo, hoje entendeu que por suas veias também corre sangue Arany.
A resposta saiu da boca de Madeleine. Sophia observou Mary dar-lhe um olhar furioso. Mas a menininha não se intimidou com essa ameaça silenciosa. Exibiu um sorriso enorme antes de colocar as mãos atrás das costas, girar nos calcanhares e seguir em direção à cozinha, esticando as pernas excessivamente.
?Se sente muito orgulhosa, certo? ?Mary soltou cerrando os dentes.
?Filha, por favor me diga o que aconteceu ?Sophia pediu, estendendo a mão para Mary, para que a aceitasse e poder lhe transmitir desse modo um pouco de paz.
?Posso resumir em algumas frases: nunca mais sairei de casa, nunca mais verei lorde Giesler e nunca deixarei o sangue de Arany tomar conta de mim ?hesitou antes de agarrar a alça da maleta e subir as escadas o mais rápido que podia.
Capítulo XII
Ela ficou trancada na biblioteca por horas tentando estudar o novo ensaio médico que havia adquirido, mas não conseguiu ler nem duas frases seguidas. A maldita voz alegre insistia em interrompê-la toda vez que começava a leitura. Resignada por não conseguir alcançar o que se propôs, ela fechou o livro e acariciou a longa trança do cabelo com as duas mãos enquanto contemplava as escassas brasas. Depois do que aconteceu com lorde Giesler, sua mãe, depois de considerar que os tubos de metal eram muito perigosos em suas mãos, proibiu Shira de usá-los nela e insistiu que fosse amarrado com um laço azul inofensivo. Embora, de acordo com Josephine, fosse a arma mais eficaz para estrangular qualquer malfeitor. Mary sorriu levemente ao se lembrar da manhã em que jogou seus tubos no lorde Giesler como se fossem projéteis. Mas aquele leve sorriso de diversão desapareceu quando ela também se lembrou de ter encontrado um deles guardado em uma gaveta da cômoda do lorde. Por que o escondia como se fosse um tesouro? Estaria esperando o momento para devolvê-lo? Com que finalidade? Que plano ele tinha em suas mãos? Mary se recostou no sofá e suspirou. Não tinha respostas para suas perguntas. Na verdade, era a primeira vez que não as encontrava. Seu mundo, baseado em executar uma rotina severa para facilitar o seu cérebro a admissão de novos conceitos médicos, mergulhou em um profundo caos desde que aquele homem irrompeu em sua vida. Nem se reconhecia quando se olhava no espelho! Não só seus olhos brilhavam de uma maneira estranha, mas até sua pele se contraiu tanto que parecia cinco anos mais jovem. Se isso consistia na natureza feminina, em rejuvenescer para seduzir os homens, que lhe durasse cinquenta anos mais...
Ela fechou os olhos, cansada de submetê-los por várias horas a uma luz fraca, e tentou sucumbir ao leve sono que a dominava. Mas foi incapaz de alcançá-lo porque havia a voz novamente, que não deixava de cantarolar uma canção absurda no dialeto Zíngaro sobre a salvação que lhe traria um maldito fogo. Fogo? Onde? E que salvação se referia? O único que precisava era eliminar um titã com cabelos loiros e olhos azuis da cabeça. Mas... como conseguiria uma proeza tão simples? Se ela, com o caráter e a determinação que possuía, não pudesse eliminá-lo de sua mente, como faria com o maldito fogo? O queimaria? Faria lorde Giesler entrar nele até que seu grandioso corpo se transformasse em cinzas? Essa ideia, bastante macabra, a fez sorrir novamente. Exceto em certas reuniões médicas, quando alguma promessa médica jovem se impunha pela força a seus argumentos, seu instinto assassino não aparecia. Ela proporcionava vida, não morte. No entanto, esse homem era o culpado por seu lado criminoso permanecer latente desde que acordava até adormecer.
Desesperada, porque a voz não parava de cantar, ela abriu os olhos e se levantou do sofá. Se não podia ler, pelo menos procuraria a pessoa que a interrompia para calá-la de uma vez por todas. Relutantemente colocou o livro sobre o sofá, amarrou o laço da bata branca e saiu da biblioteca.
Para sua surpresa no corredor, não havia ninguém. No entanto, a voz estava tão perto dela que parecia tê-la ao seu lado. Determinada, ela caminhou devagar até chegar ao pé da escada, olhou para o segundo andar e franziu a testa. Onde estaria? Quem seria? Só tinha duas alternativas possíveis: sua mãe e Madeleine. As duas eram as únicas pessoas na casa que costumavam falar em Romani. Quando colocou o pé no primeiro degrau, ouviu as badaladas do relógio. Eram duas da manhã, tarde demais para a irmãzinha ficar acordada. Normalmente, depois de se retirar para o quarto, permanecia até o amanhecer. No entanto, desde que Josephine partiu, ela ficou bastante inquieta e confusa. Talvez, incapaz de dormir, ela decidiu caminhar até que o cansaço a vencesse.
Encorajada para descobrir se Madeleine era a arquiteta de seu desespero, ela subiu as escadas, atravessou o corredor, ficou em frente à porta do quarto das gêmeas e a abriu muito lentamente. Não, não era ela. A menina se encontrava sobre a cama coberta com o lençol até a cabeça e tão quieta como uma estátua. Com discrição, saiu dali tal como entrou. Como sua primeira opção foi descartada, ainda lhe restava outra: sua mãe. Talvez a mente materna ainda estivesse nervosa após a partida de três de suas filhas. Talvez sua mãe não tenha conseguido adormecer facilmente ou... Sim, essa alternativa também se encaixava. O termo médico para definir a terceira opção era sonambulismo, embora seu pai nunca tenha falado sobre esse tipo de distúrbio na família. No entanto, tudo poderia acontecer com os Arany. Os Moore, felizmente para ela, sabiam controlar até as atividades que realizavam inconscientemente. Admitindo a possibilidade de encontrar sua mãe sonâmbula, ela lembrou o caso de Albert Tirrell, que foi absolvido de assassinato por alegar que estava sonâmbulo quando cometeu o crime. Certamente sua mãe não pensaria em matar ninguém, embora não lhe faltasse vontade. Era mais provável que a mente agitada a levasse à sua época juvenil, quando cantarolava absurdas canções ciganas enquanto lavava a roupa em um rio próximo do povoado.
Do alto da escada, Mary olhou para baixo. Nada. Sophia também não estava lá. Mas incrivelmente a voz, daquela área da casa, era ouvida mais claramente.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e contemplará seu destino. No fogo encontrará o que tanto deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
Fogo? Salvação? Mas por que não parava de uma vez por todas a maldita voz? Que tipo de babá instava a buscar uma fogueira? Isso nunca faria alguém dormir, mas sim incentivá-los a sair de suas camas e investigar os arredores.
Descansou a mão direita no corrimão de madeira enquanto olhava para a porta de entrada. Encontraria sua mãe lá fora? A porta se fecharia quando saiu? Não, não poderia dar essa opção como válida. Se isso tivesse acontecido, Sophia teria acordado rapidamente. Ninguém continuaria dormindo ao ouvir os gritos de uma cigana zangada. Essa reflexão a fez entender que sua mãe não deveria ser a autora dessa música e que, fora de sua casa, havia uma pessoa estranha. Por um momento duvidou sobre descer e resolver o enigma ou voltar para seu quarto. A segunda alternativa era a mais sensata e a teria tomado se a Mary do passado não tivesse desaparecido. No entanto, não era mais a mesma pessoa. Lorde Giesler a transformou completamente. Odiando ainda mais a causa de suas irracionalidades, desceu lentamente, sentindo na planta dos pés descalços a frieza e dureza de cada degrau. A melodia ficou tão forte e poderosa que, no meio da escada, ela não conseguiu mais mudar de ideia. Seu corpo estava preso, enfeitiçado pela voz harmoniosa. Pensando nesse fato irracional, ficou em frente à entrada, estendeu as mãos para as fechaduras e as girou uma a uma.
Quando abriu a porta, fechou os olhos quando sentiu a carícia de uma brisa noturna suave em seu rosto. A bata se moveu para trás, mas o laço impediu que se afastasse dela. Jamais havia sentido tanta paz, tanta tranquilidade. Era como se toda a inquietação que tinha vivido no passado nunca tivesse existido. Levou as mãos ao peito, captando como seu coração batia com lentidão. Continuava sem compreender a si mesma. Qualquer pessoa em sua situação estaria à beira da loucura. No entanto, ela desfrutava de um estado de repouso inverossímil.
«Abra os olhos, estenda suas mãos e aceite o destino que lhe ofereço. Toque nele; abrace-o... Encontre sua salvação...».
Tal como lhe indicaram as frases dessa canção que não parava, Mary abriu os olhos lentamente e ficou imóvel ao descobrir duas coisas: uma enorme fogueira no meio do jardim, que ardia sem a necessidade de lenha, e o maior corvo que tinha visto em sua vida, apoiado no corrimão de mármore. Aquela tranquilidade, aquela calma que notara percorrendo todas as partes de seu ser desapareceram quando viu como aquele imenso pássaro abria suas asas. Assustada com a aversão que sentia por esses tipos de animais, ela recuou, na esperança de entrar na sua casa novamente sem deixar o pássaro irritado. Mas não foi fácil avançar porque a porta, de maneira inexplicável, tinha se fechado. Com as costas apoiadas na madeira, fixou seus olhos de novo no animal. Este escondeu de novo as asas e a olhou. Quando os dois olhos se encontraram, Mary prendeu a respiração enquanto contemplava um fato inédito. Os corvos não tinham olhos negros? Então... por que os daquele animal eram azuis, muito parecidos, se não iguais aos do homem em que não queria pensar?
?Não tem nada melhor para fazer? Vá embora, pássaro miserável! Deixe-me em paz! ?Recriminou, num ato de valentia, o pássaro com a esperança de que se afastasse dela.
No entanto, o corvo não foi embora. Depois de ouvi-la, ele expandiu suas enormes asas novamente e as bateu com avidez. De repente, a brisa suave se tornou um tornado angustiante, elevando todas as folhas secas no chão para o céu. Horrorizada, ela fechou os olhos e colocou as mãos na frente do rosto para não se machucar. No instante em que se preparou para gritar que parasse, a tranquilidade voltou. Muito devagar, o mais lento que pôde, ela abriu os olhos, expulsou todo o ar retido em seus pulmões e afastou os braços. Então observou algo que a deixou paralisada. O maldito pássaro, aquele que queria ver longe dela, voou sobre o fogo desenhando enormes círculos.
?Não! ?Ela gritou enquanto corria em sua direção. Uma coisa era odiar esse tipo de animais e outra muito diferente era lhe desejar a morte. ?Afaste-se! Vai se queimar! —Continuou dizendo até ficar na frente da estranha fogueira.
Como da última vez, o corvo a ignorou e continuou seu voo sobre as chamas. A luz da grande fogueira alcançou a plumagem negra e a fez brilhar como uma estrela. De repente, seu olhar encontrou o do animal novamente. Mary começou a tremer, antecipando a terrível situação que veria em breve. Não podia testemunhar um ato tão horrendo. Por mais que não gostasse de tais pássaros, não seria capaz de viver com a dor de não ter evitado tal catástrofe. Reunindo a pouca força que tinha, levantou as mãos e começou a agitá-las, numa tentativa absurda de assustá-lo. No entanto, o corvo subiu ao céu, como se fosse um foguete, e logo mudou de direção, dirigindo-se para o interior do fogo em um mergulho.
?Não! ?Mary gritou horrorizada.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e você contemplará seu destino. Nas chamas você encontrará tanto o que deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
O animal não parou. Entrou na fogueira e ardeu. O que aconteceu depois deixou Mary muito confusa. Enquanto a voz continuava cantando, enquanto lágrimas de tristeza vagavam por seu rosto, a cor do fogo passou de laranja e vermelho para o branco e azul. Chocada ou perplexa, não conseguia descrever com precisão o estado em que estava. Talvez não houvesse uma palavra capaz de explicar que tipo de emoções e sensações a dominavam naquele momento.
«Não se afaste... Aí está... Sua salvação vem... Toque-o! Toque nele!».
A voz cantante insistia repetidamente. Sem tirar os olhos do fogo, enfeitiçada pela música e enfeitiçada pelo estranho fenômeno que testemunhou, aceitou a ordem e estendeu as mãos para as chamas brancas e azuis. As pontas de seus dedos não sentiram calor ou dor. O oposto. Uma leve cócega os recebeu quando passou por eles. Deu outro passo em direção ao fogo, desejando sentir aquele toque maravilhoso em todo o corpo. Se colocou no centro, no meio daquela fogueira incomum e começou a notar carícias fascinantes em sua pele. Nem a bata nem a camisola a impediram de sentir aquele toque magnífico. Cativada por esse estado de prazer, ela fechou os olhos e se rendeu à suavidade que a percorria. De repente, exatamente quando pensou que poderia morrer de prazer, seus lábios foram atacados e pressionados por uma boca. Ela parou de respirar, porque sua mente a informou sobre quem poderia beijá-la dessa maneira. Essa pressão, essa paixão e o ardor de tomá-la tinham um sobrenome único: Giesler. Tentou abrir os olhos para confirmar as suas suspeitas, mas não fez isso. Desejava continuar a sentir essa boca sobre a sua e que a liberdade que brotava em seu interior aumentasse. Por que lhe era tão agradável estar com ele? Por que não o odiava como se empenhava em fazer? E, por que não se retirava e voltava para casa? Todas as perguntas foram resolvidas com uma única resposta: porque o desejava. Sim, mesmo que lhe parecesse estranho, mesmo que tivesse dificuldade em admitir, ela desejava lorde Giesler. Mas... realmente que ele era sua salvação? A música se referia a esse homem específico? Como podia resgatá-la quem lhe converteu em uma mulher diferente? Até agora, sempre se gabou de ser uma Moore, de não ter em suas veias nem uma só gota de sangue Arany. No entanto, essa forma de reagir era mais própria de sua mãe que de seu pai... Com raiva da sua reflexão, abriu os olhos. A princípio, suas pupilas não lhe ofereceram uma imagem clara do lorde, mas com o passar dos segundos, o rosto ficou tão claro quanto a água de um rio. Assustada, porque seu corpo ardia de desejo de continuar em seus braços, de sentir o contato de seu robusto peito nu e de perceber a força de sua boca sobre a dela, deu um passo para trás e o olhou com estranheza. As chamas continuaram a cercá-lo, sua luz continuou iluminando a silhueta masculina que a tinha tão cativada. Alguma vez pôde imaginar que um homem como ele teria a coragem de admirá-la e desejá-la dessa maneira? Até que ponto devia sentir-se honrada ou apreciada? Devia aceitá-lo sem mais nem menos? E, o que estava vivendo? Sofreria algum transtorno mental? Porque não podia encontrar outra explicação ao que estava vendo e vivendo.
?Mary... vem... ?ele sussurrou com uma voz aveludada. ?Não saia do meu lado, meu amor... ?ele acrescentou, estendendo as mãos para ela.
Mary o observou em silêncio. O que devia fazer? O que desejava fazer? Suspirou fundo, para aplacar seu estado de excitação. Não conseguiu. Seu coração palpitava tão rápido que seu corpo se movia ao compasso daqueles batimentos. Sua pele buscava o contato que ele lhe proporcionava e sua boca ansiava aqueles lábios. Desviou o olhar do homem e o fixou no chão. Era uma alucinação, um sonho que o subconsciente lhe oferecia para entender de uma vez por todas que deveria se render a uma necessidade tão básica quanto o prazer carnal. Talvez o que a música estivesse tentando explicar fosse que ela só poderia ser salva aceitando em sonhos o que não poderia alcançar na vida real. Então... por que ela continuou se reprimindo? Porque construía muros quando tudo o que tinha a fazer era derrubá-los? Levantou seu rosto muito devagar, até que ambos os olhares se cruzaram novamente. Enfeitiçada não era a palavra exata para definir o que sentia por aquele homem. Tampouco era atração, nem desejo. Mas se negava a denominar algo tão imenso com um termo tão simples. Não. Ela não podia apaixonar-se por Lorde Giesler. Jamais o faria! A única coisa que tinha que fazer, era satisfazer essa parte de seu cérebro que a transtornava e que a normalidade retornasse a ela. Uma Moore! Já! Agora, mais do que nunca, seu sangue Arany a convidava a desfrutar do proibido, do imoral, do insano.
?Mary... ?voltou a dizer.
E desta vez não pensou, nem procurou os prós nem os contras da ação que realizaria. Se lançou a seus braços, aceitando com submissão o que aconteceria entre os dois.
?Sou sua! ?Gritou quando lorde Giesler a pegou nos braços.
?Para sempre? ?Perguntou ele aproximando essa boca que adorava a sua.
?Para sempre?Admitiu antes de lhe rodear com seus braços o pescoço e aproximar seus lábios aos do homem.
?Mary! Acorde de uma vez!
A voz de Madeleine e a sacudida que ela a sujeitou lhe fizeram voltar para sua casa, sua cama, seu quarto amado. Depois de abrir os olhos e ver a menininha ao seu lado, parecendo assustada, Mary se sentou e cobriu seu corpo excitado com o lençol.
?O que faz aqui? ?Perguntou com uma mistura de angústia e alívio.
?Tem que admitir que é a única que costuma ficar acordada a estas horas ?disse enquanto se sentava sobre a cama. ?Está bem? Você tem as bochechas vermelhas como as papoulas que Elizabeth cuida no jardim e seu cabelo está... molhado. ?Depois de dizer essas frases, se inclinou para Mary, estendeu a mão direita para a testa e rapidamente a afastou quando sentiu muito calor. ?Está doente! ?Exclamou espantada. ?Quer que chame a mãe? Te trago panos frescos?
?Não! ?Respondeu afastando os lençóis de seu corpo. Pulou da cama, caminhou em direção à janela enquanto aplacava o constrangimento e, uma vez que não conseguia se afastar da pequenina, virou-se para ela. O que poderia dizer a ela? Era certo falar sobre o sonho? Não, era melhor ficar calada. Pelo menos até encontrar uma explicação lógica para o que aconteceu. ?Apenas... Foi apenas um pesadelo ?disse apertando as mãos.
Madeleine ficou em silêncio por alguns segundos, observando a reação da irmã. Era estranho, apesar de Mary já ter se comportado de maneira diferente do resto do mundo. No entanto, algo não se encaixava. Ela nunca mentiu, como estava fazendo nesse momento. Mary era uma das pessoas que falava claramente, embora suas palavras magoassem o ser mais cruel da Terra. Por que agia assim? O que teria visto no sonho para assustá-la tanto? Havia apenas uma coisa que podia assustá-la, algo que ela zombava toda vez que o assunto aparecia: homens.
?Mary... ?começou a dizer enquanto colocava as mãos nos joelhos. ?Nesse pesadelo... viu fogo?
?Não!?Negou rapidamente a segunda das Moore.
?Um corvo??A pequena insistiu.
?Como te ocorre perguntar esse tipo de tolices? ?Respondeu indignada.
?Porque, de acordo com a mãe, quando ela sonhava com nosso pai, ela o viu deixar uma fogueira imensa e foi um corvo que a levou até ele.
?Disparates! ?Exclamou, acariciando seu rosto em desespero. ?Sonhos são produtos irreais. A parte inconsciente do nosso cérebro age quando estamos no estado de sonolência. Sonhos ou alucinações, querida intrometida, são vagas lembranças de acontecimentos que vivemos e nos produziu certa inquietação ou excitação. Da minha parte, tive um pesadelo com lorde Grayson. Como sempre, queria me humilhar em um debate sobre enxertos de pele em cicatrizes infectadas ?declarou categoricamente quando voltou para a cama. ?Então, não vi nenhum corvo ou fogo. Embora, agora que penso nisso... Os cabelos oleosos de Grayson não se parecem com penas molhadas? ?Acrescentou mordaz.
?Bem... lamento. Eu sei que o cavalheiro é um monstro. Papai sempre nos diz a coragem que você mostra quando o enfrenta ?Madeleine declarou sem desviar o olhar da irmã.
?Tolices!?Exclamou fazendo um movimento desdenhoso com a mão esquerda. ?Não é coragem, mas inteligência. Até um mosquito pode superar os debates desse petulante.
?Um mosquito? ?Retrucou Madeleine. ?Não dizem que os corvos são pássaros bastante inteligentes? ?Insistiu no assunto.
?Também comentam que um dia a raça humana aprenderá a respeitar e viver em paz para sempre. Mas não vamos falar sobre futuras falácias. Diga-me, qual foi o motivo da sua insônia? ?Mudou rapidamente a conversa.
?Eu senti Josephine aqui. ?Apontou para o peito. ?Algo aconteceu com ela.
?O que significa algo? ?Perguntou Mary. Não havia estudos científicos sobre isso, mas era verdade que todos falavam sobre a intensa relação que se formava no útero entre gêmeos e gêmeos idênticos. Essa união, essa percepção conjunta, apesar de não ser metodicamente estudada, ofereciam causas e efeitos reais.
?Seu coração ficou louco e fez o meu fazer isso também ?respondeu, subindo na cama para abraçar as pernas. ?Eu acho que ela encontrou o homem que se tornará seu marido. Embora também sinta que o conheceu de uma maneira pouco convencional. Eu percebi sua raiva, mas também um estranho... desejo ?alegou antes de suspirar.
?Mas... não disse que nunca encontraríamos um marido porque fomos submetidas à maldição que Jovenka nos enviou?
?Quebrou ?explicou olhando a camisola. ?Anne conseguiu derrotá-la graças a lorde Bennett. É por isso que, por alguns dias, todas vivemos num constante vaivém de sensações.
?O que quer dizer com isso? ?Perguntou, moendo o travesseiro com mais força do que o necessário.
?Não sentiu nada estranho? Não apreciou certas mudanças em seu corpo?
?Não ?mentiu.
Claro que tinha notado, sentido ou percebido! Mas não tinham nada a ver com maldições, mas com desejos carnais em relação a lorde Giesler. Seu corpo nu era a causa da perturbação mental que ela sofria! Agora entendia por que sua mãe estava com raiva de descobrir o que tinha acontecido. Não queria recriminar o fato de que ela o salvou, mas protegê-la da tentação!
?Pois eu sim ?Madeleine disse antes de jogar a cabeça para trás e suspirar novamente. ?Só espero que nenhuma de nós sofra e que Morgana nos ajude a encontrar o caminho certo.
?No caso hipotético de você estar certa... ?Mary começou a dizer enquanto acariciava o lençol com aparente tranquilidade. ?O que poderia acontecer?
?A visão que lhe contei alguns anos atrás seria cumprida ?Madeleine disse, fixando os olhos no rosto pálido da irmã.
?Entendo... ?Mary sussurrou enquanto tamborilava com as duas mãos o lençol. ?Mas é possível que não se cumpra ?insistiu. ?Lembre-se de que Elizabeth estava determinada a se casar com uma aristocrata e, realmente poderá cumprir seu desejo?
?Todas sabemos a razão pela qual Eli está determinada a alcançar essa classe social ?apontou a menina franzindo a testa. ?Mas, felizmente para ela, se apaixonará por um homem que a tratará como uma rainha.
?Disse a ela? Porque acho que isso pode confortá-la muito... ?disse zombando.
?Você sabe tão bem quanto eu que ela sofreu muito desde que Archie a traiu e essa foi a razão pela qual uma promessa tão absurda foi feita. No entanto, esquecerá o passado quando ele aparecer... ?revelou em tom de mistério.
?E você realmente acha que existe um homem que pode tolerar o comportamento de Josephine? ?Mary respondeu.
?Se existe alguém para você, por que não deveria haver para Josh? ?Respondeu com raiva.
?Certo. Essa tese carece de discussão. Se puder encontrar um homem capaz de suportar meu intelecto, Josh poderá encontrar alguém que possa dormir tranquilo enquanto tira brilho ao cano de sua nova arma. ?E depois dessas palavras, ela soltou uma risada.
?Não acredita em mim, certo??A jovem apontou tristemente. ?Para você, tudo o que posso ver são... visões infantis.
?O melhor que tem a doce fase infantil e inclusive a juvenil é que se pode fazer e dizer tudo o que lhe agrade, pois os mais velhos alegarão que são coisas da idade. No meu caso, por muito que pese aos nossos amados pais, considero que continuo na segunda. Por esse motivo faço e digo o que quero sem parar para pensar nas consequências desse comportamento ?garantiu.
?Mas logo terminará a etapa em que admite viver ?Madeleine disse esboçando um grande sorriso.
?Oh, que horror! Está insinuando que, quando me levantar, serei uma mulher adulta? ?E riu de novo. Quando terminou de rir, inclinou-se para a irmã, estendeu as mãos e colocou-as sobre as de Madeleine. ?Se veio para me divertir, conseguiu ?acrescentou dando tapinhas.
?Como pode ser tão cínica? ?A pequena a repreendeu enquanto se levantava da cama.
?O cinismo é apropriado para viver no mundo real. É lógico que, por sua idade, ainda não o tenha e que sonhe com uma vida cheia de fantasia e amor ?zombou. ?Garanto que adoro o teu positivismo, mas seja realista Madeleine, quem pode casar com uma mulher que antes de tomar banho tem que ter todas as suas armas limpas? Quem aceitará Anne, depois da morte de seus pretendentes? E Elizabeth? Você realmente acha que existe um homem que se renderá a seus pés quando descobrir que possui um coração negro sob sua beleza?
?E eu? Porque... quem vai aceitar uma moça que não pode tocar em ninguém, certo? ?Pulou da cama.
?O seu é um problema psíquico e tem uma solução. Basta usar luvas para...
?Você é uma mulher perversa! ?Madeleine retrucou. ?Tanto quanto foi Jovenka!
?Não fique nervosa... ?tentou acalmá-la. ?Certamente você age apenas para o nosso bem. Mas eu não gostaria que você se decepcionasse quando...
?Três dias! ?Gritou enquanto se dirigia para a porta. ?Em três dias tudo estará resolvido! E, nesse momento, serei eu quem ri, Mary.
?Três dias? Terei que esperar setenta e duas horas para confirmar que estou certa? ?Disse mordaz.
?Você se casará com o homem que viu esta noite em seus sonhos. ?Essa declaração deixou Mary tensa, mas ela tentou não mostrar a surpresa que as palavras haviam produzido. ?Ele lhe dará o que você nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!
?Por todos os livros que li! ?Continuou aparentemente divertida, embora ainda estivesse pasma com a alegação de Madeleine. ?Você acabou de me jogar uma maldição? Já não tivemos o suficiente com Anne?
?Continue assim, Mary. Continue pensando que nada vai mudar, que você é tão poderosa que pode controlar o mundo. Mas você esta errada ?disse enquanto abria a porta. ?Em três dias nossas irmãs voltarão e darão a nossos pais uma grande notícia. Quando isso acontecer... Sua vida cínica desaparecerá para sempre! ?Acrescentou antes de sair do quarto batendo a porta.
Mary não desviou o olhar da porta até que ouviu Madeleine fechar a sua. Era a primeira vez que discutiam. Jamais lhe fez mal, pois assumia que bastante dor lhe causava suportar dia após dia um comportamento tão abstraído e tímido. No entanto, desde que conheceu lorde Giesler, perdeu a cabeça. Não apenas sentia coisas indevidas, imorais e inapropriadas para ela, mas também o cinismo, enfatizado pela irmãzinha, aumentara. Talvez se tratasse de um mecanismo de defesa. Muitas pessoas agiam de maneira estranha para não mostrar ao mundo sua debilidade. Mas ela... Desde quando se tornou uma mulher fraca?
Irritada e decepcionada consigo mesma, afastou o lençol para o lado e caminhou lentamente em direção à janela. Não precisou fechar as cortinas para subir no peitoril da janela. Sua mãe ordenou que Shira as amarrasse nos dois lados para que a luz do dia chegasse ao quarto e a acordasse antes das nove da manhã. Subiu a camisola até as coxas e se sentou sobre o frio parapeito. Abraçou os joelhos e apoiou o queixo neles. Por que agiu assim com Madeleine? O que provocou sua fúria? A resposta surgiu sem a necessidade de esforço: Porque se tivesse razão, se a jovem vidente estivesse certa, o desejo, pelo qual lutou durante tantos anos, desapareceria e, tudo por quê? Por um homem. Esse gênero humano que odiava com todas suas forças porque a humilharam, a ultrajaram e, em mais de uma ocasião, cuspiram perto de seus sapatos para lhe deixar claro que não tinha valor algum, embora os seus conhecimentos fossem superiores aos deles.
Fechou os olhos e suspirou fundo, como se fosse uma anciã a ponto de expirar. Madeleine pensava que ela seria feliz com lorde Giesler? Duvidava. Era certo que a atração sexual entre ambos era ilógica, mas ninguém podia viver décadas junto a uma pessoa baseando-se na paixão. Ela, nos poucos momentos em que pensou em casamento, sonhava em conseguir o que seus pais possuíam: um casamento cheio de amor, respeito, consideração, apoio e acima de tudo confiança. Obviamente, não podia confiar em lorde Giesler, sua reputação como libertino era bastante considerável. Hoje poderia morrer beijando-a, tocando-a ou possuindo-a, mas... e amanhã? Bufou diante da reflexão tão anormal que tinha chegado, voltou para a cama, subiu nos lençóis e se cobriu com eles. Uma vez que notou o leve calor do sono, fechou os olhos e... abriu-os! Como se um dragão tivesse aparecido aos pés da cama, afastou os lençóis, se sentou e olhou para a porta.
?Como diabos soube? Como descobriu que sonhei com o corvo, com o fogo e com o lorde Giesler? ?Esbravejou antes de permanecer nessa posição o resto da noite.
Capítulo XIII
Nunca tinha vivido uma situação tão exasperante com Madeleine. Talvez porque, sendo a caçula das irmãs, o tratamento com ela sempre fora diferente. Nunca houve uma palavra ou um ato malicioso de sua parte, pelo contrário, raro era o dia em que não era obrigada a mimar ou protegê-la devido ao seu comportamento frágil. No entanto, durante os próximos dois dias, a doce e tenra Madeleine se tornou a vilã mais cruel do planeta. Toda vez que tinha a chance de conversar com ela, virava o rosto e levantava o queixo com orgulho. Todos os esforços que fez para suavizar a convivência entre as duas não obtiveram os resultados desejados. Madeleine nunca agiu assim. Era a primeira vez que tirava, de algum lugar de sua timidez, coragem e ousadia tão característica na família.
Se levantou da poltrona e esticou os braços, observando como suas trinta e três vértebras tomaram o lugar certo na coluna vertebral. Depois do chá, e depois de sofrer outra rejeição de Madeleine, decidiu se trancar na biblioteca e deixar o tempo passar antes de causar outra abordagem entre elas. Esperava que, durante aquelas três horas e antes da chegada do pôr do sol, Madeleine tivesse consciência de que havia cometido um erro. É claro que, uma vez que sua antiga relação retornasse, não haveria menção à bendita previsão. Tinha certeza de que o fracasso a humilharia a ponto de agravar seu caráter retraído.
Sob nenhuma circunstância duvidou sobre o que aconteceria quando o prazo indicado por sua irmã expirasse. A parte Moore, tão racional e sensata como sempre, afastou de sua mente qualquer assunto sobre previsões, bruxaria, magia ou feitiços e os manteve em alguma área do cérebro que usava como informação desnecessária. Tudo ao seu redor tinha uma explicação lógica, até a suposta maldição de Anne: isso nada mais era do que a conclusão de um compêndio de circunstâncias infelizes criados pelos dois noivos. Apesar disso, era uma lástima que Anne tivesse que sofrer as consequências de ações que não lhe correspondiam. Mas era assim que a sociedade hipócrita agia. Como não podiam culpar os mortos, porque consideravam falta de moralidade, dirigiam seus olhares e sussurros para os vivos, independentemente da inocência e do impacto sobre eles.
Depois de depositar o livro sobre a mesa à direita, se levantou do sofá e caminhou pela sala. Sentia um formigamento irritante nas pernas por mantê-las na mesma posição por tanto tempo. Muito lentamente, levantou a saia do descarado vestido azul, um que sua mãe comprou como castigo por sua contínua rebeldia, e mexeu os pés e o tornozelo. Felizmente, seu conhecimento profundo do corpo humano a alertou que não estavam machucados, mas contraídos pela falta de atividade. Deixou cair o tecido, cobrindo de novo os sapatos de couro que tinha decidido colocar nesse dia. Faltava apenas uma vassoura, um gorro cônico e um caldeirão para exibir a imagem de uma bruxa da qual todo mundo falava quando encontravam com ela na rua. Essa comparação, e a mistura real de sangue que possuíam as Moore, lhe fez sorrir. No fundo, não estavam mal encaminhadas. Se a premonição de Madeleine tivesse sido cumprida, até ela teria presumido que tinha origens mágicas. Talvez até admitisse que sua capacidade médica se devia, de certa forma, à origem cigana. Mas, felizmente, não era assim. Ela sempre soube que adquirir conhecimento seria a melhor ferramenta para realizar seu sonho: tornar-se uma pessoa tão extraordinária quanto seu pai. Portanto, durante suas leituras, nunca invocou nenhum espírito para ajudá-la a entender melhor os ensaios médicos. Era o suficiente ler e raciocinar. Essa era sua única habilidade e segredo. No entanto, apesar de ninguém mudar de ideia sobre a racionalidade necessária para a compreensão de todos os fatos, ela continuava dando voltas a um assunto. Como Madeleine descobriu os três elementos fundamentais de seu sonho? Embora considerasse a possibilidade de falar enquanto sua irmã tentava despertá-la, não terminava por aceitar essa afirmação como válida. Até o dia em que Anne partiu, esta nunca lhe fez referência a esse hábito inconsciente, e isso que dormia com ela desde que tinha uso da razão. Além disso, não tinha dúvida de que, se tivesse feito isso, teria a censurado assim que abrisse os olhos. Anne era a única das irmãs que não se sentia desvalorizada por sua inteligência e a confrontava sem piedade. Por esse motivo, toda vez que estava errada, havia a mais velha das Moore para lembrá-la de que, apesar de seu grande intelecto, tinha mais defeitos do que virtudes.
?Senhorita Mary! ?Shira exclamou abrindo a porta da biblioteca sem bater. ?Saia! Rápido!
?O que aconteceu? ?Perguntou, virando-se para ela tão rapidamente que suas pernas dobraram por falta de forças.
?Suas irmãs! Suas irmãs voltaram! ?Gritou feliz.
?Como disse? ?Mary retrucou arregalando os olhos.
?O que ouve! Exatamente agora, acaba de chegar uma carruagem com o brasão do visconde de Devon ?continuou eufórica. Vendo que a menina não era capaz de reagir, pois permanecia congelada no lugar e seu rosto empalideceu até adquirir a cor do leite, deu um passo em sua direção. ?Está bem? Já lhe disse mil vezes que não deve gastar tantas horas lendo esses livros. Ficará cega e sua pele desbotará. ?Shira estendeu a mão para Mary, mas ela deu um passo atrás, evitando qualquer contato. ?Sua mãe e Madeleine saíram para recebê-las ?lhe informou antes de se virar e seguir para a porta. ?Irá acompanhá-las ou explicou que decidiu continuar trancada na biblioteca?
?Sairei em breve ?comentou quase sem voz.
?Não faça elas esperarem senhorita Mary, ou temo que sua mãe a castigue novamente sem sair de casa por mais dois anos. ?Avisou antes de caminhar rapidamente para o corredor.
Haviam chegado! Estavam lá! Como era possível que Madeleine soubesse? Angustiada e atordoada, fechou os olhos e contou os dias que passaram desde que suas irmãs se foram. Não, ainda não tinha terminado o prazo que o visconde considerou oportuno para realizar o trabalho. Ainda restavam doze dias para o esperado retorno. Mantendo os olhos fechados, levou as mãos para o rosto e esfregou-o desesperada enquanto perambulava pelo centro da sala. Tinha que encontrar, o mais rápido possível, uma explicação lógica que a salvasse do atordoamento mental que sofria. Mas não encontrava com a rapidez que requeria. A opção de que Madeleine sabia desse fato antes dela não era válida. Nem a menininha saiu para a rua, nem ela saiu de casa, exceto quando Valéria a enganou para levá-la para a residência do irmão. Seria informada sobre o retorno durante a sua ausência? Não. Isso também não era plausível. Sua mãe não conseguia guardar um segredo que pertencia à família. Nada a faria calar, nem expressar a euforia que teria sentido depois de receber a notícia. No entanto, apesar de qualquer concepção surrealista, tinha acontecido. Suas irmãs estavam na entrada exatamente no dia que Madeleine mencionou. Realmente possuiria um dom Zíngaro? E se fosse assim... que lugar a lógica teria no mundo? Se o futuro pudesse ser previsto, deixariam de existir surpresas, os avanços médicos ou as preocupações para descobrir coisas novas. Bastaria procurar pessoas com a habilidade de Madeleine para que respondessem às perguntas que surgissem ao longo dos anos. O mundo se renderia a pensamentos transcendentais, deixaria de lado o real e basearia suas vidas na busca do imaginário, assim como fizeram os grandes pensadores. Refletindo sobre essa opção, tirou as mãos do rosto e arregalou os olhos. As teorias filosóficas seriam verdadeiras? Esses grandes gênios evocariam a verdade? Teriam o mesmo dom que sua irmã e, por esse motivo, viveram e pensaram de maneira tão diferente? Talvez Platão, Sócrates, Aristóteles e até o próprio Emanuel Kant proclamaram suas ideias depois de visualizá-las ou apresentá-las. Desesperada, apertou tanto os punhos que as unhas se cravaram nas palmas das mãos. Não devia refletir sobre o passado, mas sim no futuro. Segundo Madeleine, ela se casaria com lorde Giesler, seria feliz e ele a ajudaria a conseguir tudo o que sempre quis. Isso faria qualquer mulher feliz que, entre seus planos, abrigasse a possibilidade de conseguir um bom casamento. Mas ela nunca considerou uma ideia tão absurda. Apesar da afirmação de sua irmã, sabia que, uma vez que aceitasse o sobrenome Giesler, este a converteria em uma pessoa sem decisão, sem autoridade. Em poucas palavras: a anularia em todos os sentidos. Furiosa, correu para a janela, de onde podia contemplar o lado de fora de sua casa sem ser descoberta. Seu coração parou de bater quando viu que sua mãe abraçava Anne e ambas davam pequenos saltinhos de alegria. Junto a elas, Madeleine fazia o mesmo com Josh, que continuava vestindo roupas mais próprias de homens que de mulheres. Então viu como Elizabeth saía da carruagem. Embora escondesse o rosto com a aba larga do bonito chapéu branco, Mary notou que seus olhos estavam fixos no chão, como se tivesse vergonha de voltar para sua humilde casa. A mãe, ao vê-la, se afastou de Anne e a abraçou. Elizabeth não evitou o abraço, mas manteve os braços estendidos, como se não tivesse forças para abraçá-la. Um comportamento atípico nela porque, embora sempre se considerasse superior as outras por causa de sua beleza exuberante, nunca rejeitou uma carícia ou um abraço materno. Fechou os olhos, deixando para trás a estranha atitude de Elizabeth e se concentrando na questão que a preocupava. Como deveria agir? Como lutaria contra algo que ainda não havia chegado e que não se deseja? Quando obteve a resposta, arregalou os olhos e exibiu o sorriso mais maligno que sua boca pode esboçar em um momento tão exasperado. Ela tinha a solução para o problema. Felizmente para ela, sua mente ainda estava lúcida, apesar do colapso que suportava. O objetivo era muito simples: lutar com unhas e dentes para que a profecia de Madeleine não se cumprisse. Essa era uma das vantagens de conhecer o futuro, que se podia encontrar a maneira mais eficaz de evitá-lo. Satisfeita, feliz e cheia de energia, se virou para a porta e caminhou pela sala, juntando a ponta do pé esquerdo com o calcanhar do lado direito e vice-versa. Se suas irmãs entrassem em casa sem que ela as cumprimentasse corretamente, sua mãe ficaria com tanta raiva que aumentaria o castigo por mais alguns meses. E assim começava o plano para destruir seu futuro. Quanto mais castigos recebesse, menos chances teria de sair de casa e, é claro, as chances de encontrar aquele gigante com olhos claros e cabelos loiros seriam tão reduzidas que os chamaria de nada.
?Mary! ?Anne gritou quando ela entrou na biblioteca. ?Por que não veio nos receber? Estava de novo absorta em outra teoria sobre a radicalização de doenças infecciosas? ?Antes de receber uma resposta, avançou até ela, a abraçou e a fez girar. ?Senti sua falta, rata de biblioteca! ?acrescentou depois de lhe dar dois beijos estalados.
?Certeza? ?Estalou cética.
Enquanto as gêmeas falavam com Elizabeth na galeria, que lhes informou que se retirava ao seu quarto para descansar, Mary observou o rosto de Anne. Tinha um brilho especial nos olhos e, pela primeira vez desde a morte de Dick, irradiava felicidade. Então voltou sua atenção para Madeleine que, depois de esperar que Eli subisse para seu quarto, caminhou com Josh para onde elas estavam. Quando se entreolharam, a bruxinha deu a ela um sorriso tão pérfido que a deixou congelada. Esse gesto expressou tanta diversão e triunfo, que a perplexidade entre as profecias absurdas e o desaparecimento da razão voltou à sua mente.
?Por que não saiu para recebê-las? ?Esbravejou sua mãe, colocando as mãos na cintura. ?Quer ficar trancada pelo resto da vida? Porque eu garanto que é o castigo que você merece.
?Sinto muito, mãe. Fiquei tão surpresa com a chegada de minhas irmãs que fui incapaz de reagir. ?Nesse momento, Madeleine soltou uma sonora gargalhada. ?Mas se acha que devo ser castigada, desta vez não discutirei ?Mary persistiu antes de ser agarrada pelos braços fortes de Josh.
?Oh, mãe! ?Anne interveio, pegando as mãos de Sophia. ?Eu imploro, não a castigue hoje. Tenho que lhe dar ótimas notícias e não gostaria que Mary ficasse triste em um dia tão importante para mim.
«Para o inferno, Anne! ?pensou Mary. ?Não é um bom momento para assumir a postura de irmã solidária e protetora».
?Do que se trata? ?A mãe perguntou curiosa, fazendo desaparecer a raiva que causou a desobediência da segunda de suas filhas. ?Talvez seja por isso que voltaram tão cedo? ?Insistiu, sem afastar os olhos de Anne que tinha se separado dela o suficiente para começar a dar voltas.
?Vai se casar com o Visconde! ?Declarou Josh ao retornar ao lado de sua irmã gêmea. Se apoiou na moldura da porta, adotou uma postura típica masculina e olhou para sua mãe. ?Ele pediu e ela não pôde recusar ?acrescentou.
?De verdade? ?Perguntou a mãe surpresa, colocando as mãos nos ombros de Anne para fazê-la parar. ?Está certa da decisão que tomou?
?Sim ?respondeu, abaixando um pouco o rosto para esconder o rubor. ?Nunca estive tão segura de algo. Logan é o homem que esperei por toda a minha vida e o único que nos salvará da maldição. ?E aí terminou sua explicação. Era responsabilidade de Logan revelar ou não sua origem. Embora sua mãe deveria entender que, se ela o aceitou depois do que aconteceu no passado, o motivo era mais que evidente.
?Acho que já nos livrou dela ?Madeleine admitiu dando um passo à frente.
?Por que diz isso? ?Josh fez a pergunta que, quando a ouviu falar, se afastou do batente da porta, descruzou os braços e as pernas e seguiu a irmã gêmea.
?Pressenti faz alguns dias ?continuou dizendo a mais nova. ?Percebi que a escuridão ao nosso redor desapareceu. Agora só há luz sobre nós.
?Percebeu mais alguma coisa? ?Josh queria saber, e Madeleine se aproximou de por trás e falou entre sussurros.
?Você quer dizer a mudança emocional que sofreu ultimamente? Ou quer me perguntar sobre os sentimentos que teve em relação a um jovem mais severo do que um batalhão de soldados? ?Murmurou, antes de sorrir de orelha a orelha.
?Maldita seja! ?resmungou, revirando os olhos. ?Um dia poderei ter um segredo só para mim?
?Nunca ?Madeleine respondeu antes de se virar para ela e abraçá-la novamente.
?Há algo mais que eu deveria saber? ?Sophia disse, estreitando os olhos ao ver as duas menores sussurrando secretamente.
?Não! ?Josephine negou rapidamente se separando de Madeleine.
?Bem, Josh preciso lhe contar algo sobre o novo membro da família ?Anne interveio zombando.
?Novo membro??soltou a mãe arregalando os olhos. ?A que se refere?
?Se chama Galeón ?Josh respondeu feliz. ?É um dos cavalos que o visconde tem na residência e, devido à conexão que tivemos, me presenteou.
?Um cavalo? ?Mary estalou surpresa. ?E onde diabos pensou em mantê-lo, no seu quarto?
Sophia recuperou a cor do rosto, que empalideceu ao interpretar a afirmação de forma inadequada e respirou calmamente. Nunca considerou a possibilidade de que Josh se comportasse inadequadamente, mas depois de ouvir que a maldição se foi, tudo poderia acontecer...
?De verdade? ?Interveio Madeleine. ?E, como é?
?Ele é muito bom e inteligente ?declarou olhando para Mary. ?Cavalguei sobre ele durante toda a viagem. Não o viu? Amarrei-o em um dos ramos da árvore da entrada. Se quiser, podemos sair para que o conheça.
?Claro! ?A menina exclamou. ?Mal posso esperar para conhecer o novo membro Moore. Além disso, tenho o pressentimento de que esse cavalo te ajudará a conseguir aquilo que tanto sonhou ?lhe assegurou enquanto ambas caminhavam para a saída.
?É outra de suas visões? ?Josh estalou estreitando os olhos.
?Não. Desta vez é apenas um palpite... ?ela alegou misteriosamente enquanto a pegava pelo braço e a levava para fora.
Mas antes das duas saírem, Madeleine virou seu rosto para Mary. Quando ambas se encontraram com o olhar, a jovem separou os lábios para lhe lançar uma mensagem que só ela pôde captar: «Começa sua mudança». Essas três palavras lhe causaram um calafrio tão mortal que tentou apaziguá-lo, concentrando-se na irmã ausente.
?A propósito, onde está Elizabeth??Perguntou virando-se para Anne.
?Sofre uma tremenda dor de cabeça ?respondeu enquanto se sentava. ?Sofre desde sábado à noite. Embora me ofereci para aliviar sua dor, não quis aceitar qualquer ajuda da minha parte. Sinceramente, não é a mesma desde aquele dia ?comentou reflexiva. ?Durante a primeira viagem a Londres, decidiu viajar na segunda carruagem, acompanhada por Howlett, valete de Logan. Pensei que a dor desapareceria, porque o jovem me disse que tinha a solução para isso, mas não foi assim. Na última pousada que paramos para descansar, ficou todo o tempo dentro do veículo e não saiu dali até que teve que entrar no que viemos. Insisti em oferecer-lhe um analgésico, mas não aceitou. Se inclinou na direção da janela, fechou os olhos e não os abriu até que lhe anunciei que havíamos chegado ?explicou Anne com tristeza. Nutria a esperança de que Elizabeth não agisse dessa forma depois da notícia de seu compromisso com Logan. No entanto, nada podia ser dado como certo com ela.
?A viagem lhe provocou isso... ?concordou Sophia após assumir que, pela primeira vez, a inveja podia estar causando a Elizabeth um terrível desapego familiar.
?Se quiser, posso aparecer no seu quarto e descobrir ?declarou Mary colocando-se na frente delas.
?Temo que essa dor não desapareça com nenhum remédio seu ?Anne respondeu enquanto enroscava os dedos na saia do vestido.
?Por que diz isso??A mãe retrucou inquieta.
?Porque acho que não lhe agradou a notícia do meu compromisso. Você sabe que, desde o que aconteceu com Archie, ela insiste em se casar com um aristocrata e talvez o fato de eu ter conseguido sem pretender e sem sonhar...
?Bobagens! ?Mary a interrompeu. ?Elizabeth é uma presunçosa, uma petulante e um pouco estúpida, como os dessa bendita classe social, mas por suas veias e as nossas corre o mesmo sangue. Estou certa de que a dor de cabeça tem uma causa lógica. Não tenho a menor dúvida de que agirá como sempre uma vez que desapareça ?alegou como se fosse uma advogada defendendo seu cliente.
?Mas se você sair agora, não ouvirá o que aconteceu comigo durante esses dias. Não quer saber como Logan me pediu em casamento? ?Anne estalou estreitando os olhos.
?Certamente posso adivinhar a história sem precisar da ajuda de Madeleine... ?Mary disse colocando um dedo no queixo, enquanto batia no chão com a ponta de seu pé direito e fixava os olhos no teto. ?Como não teve que cuidar de sua virtude, porque Dick lhe tirou isso, o seduziu até que caísse aos seus pés. Após vários encontros clandestinos, decidiu que, devido à sua constituição e força, não encontraria outro homem que a satisfizesse na cama tanto quanto ele. Então você usou sua origem cigana para lançar um feitiço. Este agiu imediatamente, fazendo com que o pobre visconde se apaixonasse por você e te pedisse casamento, estou certa? ?Explicou mordaz.
?Mary Moore Arany!?Clamou sua mãe se levantando de um salto. ?Como se atreve a falar com sua irmã de maneira tão descarada e inapropriada? Por que não seleciona tudo o que aparece em sua mente e escolhe a coisa certa a cada momento?
?Vai me castigar? ?Teimou fingindo medo. ?Tenho certeza que mereço por cometer tanta insolência ?insistiu.
?Foi isso mesmo que aconteceu ?Anne interrompeu a conversa entre sua mãe zangada e Mary, esboçando um grande sorriso. Se os anos de experiência com ela não a enganavam, ela tentou executar um plano que implicava a palavra castigo. O que havia acontecido durante sua ausência? Por que agia dessa forma tão pouco racional? O melhor era descobrir antes que Logan aparecesse para pedir formalmente sua mão e se encontrasse no meio de uma grave disputa familiar. ?Embora você esteja errada sobre uma coisa, eu não o seduzi, ele foi quem me cativou e ambos chegamos à conclusão que, devido à nossa afinidade sexual, era conveniente compartilhar o resto de nossas vidas sob o mesmo quarto antes de manter encontros secretos e esporádicos.
Essa resposta deixou Sophia sem palavras, mas elas causaram mais estranheza em Mary. Como poderia falar assim na frente de sua mãe? Sua irmã havia perdido o pouco juízo que tinha? Se, como Madeleine disse, a maldição desapareceu, arrastou a baixa moralidade e bom senso de Anne com ela. Jovenka não teve mais de cem amantes? Bem, depois de ouvi-la, não lhe cabia a menor dúvida que, se o visconde corria a mesma sorte que os dois anteriores pretendentes, Anne superaria a velha cigana.
?Visite Elizabeth e descubra o que acontece com ela ?comentou Sophia uma vez que acalmou o imenso sufoco. ?Em seguida, tranque-se no seu quarto até eu chamá-la para jantar. Preciso conversar com seu pai sobre a atitude que você está adotando desde que operou lorde Giesler. Creio que...
?Operar? ?Anne disse surpresa. ?Lorde Giesler? E continua vivo?
?Sim ?Mary afirmou com orgulho. ?Lorde Giesler está são e salvo graças a minha sábia decisão e talento ?continuou com soberba.
?Tem que me contar tudo! ?Perguntou Anne se levantando da poltrona.
?Fará, mas quando terminar de me contar o que aconteceu durante sua ausência ?Sophia respondeu com autoridade.
?Então, se me desculparem, seria conveniente que visite Elizabeth ?disse Mary dando grandes passos para a porta antes que Anne interviesse de novo e sua mãe mudasse de opinião.
?Não vá muito longe ?Anne avisou quando sua irmã se aproximou da porta. ?Temos uma conversa pendente.
?Certamente não será tão divertida como a tua... ?apontou antes de sair e fechar.
Capítulo XIV
Depois que ouviu Anne começar sua história, ela encostou as costas na porta e suspirou profundamente. Nada, que sua primeira tentativa para que a castigassem saiu como esperava. Como conseguiu isso? Se tivesse falado com Anne dessa maneira descarada, antes que todas pensassem que a bendita maldição terminou, teria tido tal retaliação que nada nem ninguém a teria consolado em anos. No entanto, lá estava ela, ilesa, apesar do seu esforço para se magoar. Olhou para o andar de cima e franziu a testa ao lembrar que Elizabeth não se apresentou na biblioteca para cumprimentá-la. Ainda estava se comportando de maneira estranha. Até o momento, a irmã arrogante sempre agia como uma verdadeira aristocrata, incluindo, aquele comportamento arrogante, a hipocrisia que a classe social mostrava ao cumprimentar mesmo quando não queriam. Mas, por algum motivo, não reagiu como de costume. Não importava se sua cabeça doía, que estava enjoada ou que tinha quebrado um ombro, Elizabeth nunca evitava um encontro em família e menos depois de uma viagem como a que ela acabou de fazer. Quantas vezes saiu para fazer compras e, depois de voltar, aparecia diante dela para lhe contar tudo o que fez sem esquecer um mísero detalhe? Tantas que não se lembrava. No entanto, parecia que a viagem a transformou até o ponto de esquecer um princípio tão básico como era a cordialidade. De repente, a resposta que estava procurando para obter o castigo desejado apareceu. Talvez, se ela a censurasse por esse comportamento inadequado, sua mãe abandonaria a atitude passiva que adotava e retornaria a mulher que, com apenas um olhar, fazia suas filhas tremerem. Só esperava que Eli não agisse com a mesma benevolência que Anne. Realmente não precisava da compaixão de nenhuma de suas irmãs dessa vez.
Sem poder apagar o sorriso que sua boca desenhou ao ter outra alternativa entre as mãos, subiu as escadas de dois em dois. Mal respirou quando correu pelo corredor, nem quando se colocou na frente da porta. Tinha um novo objetivo e devia realizá-lo o quanto antes. Desesperada, agarrou a maçaneta, virou e entrou sem pedir permissão. Mas toda a emoção e felicidade que viveu durante a corrida, desapareceu de repente ao ver que Elizabeth não se encontrava onde ela esperava. O edredom permanecia encolhido aos pés da cama, o lençol jogado para o lado direito e o vestido que sua irmã usava quando chegou, estava no chão, jogado descuidadamente. Esse detalhe deixou Mary bastante confusa. Nunca, desde que se lembrava, Elizabeth havia tratado um vestido assim. Cuidava deles e os mimava como se fossem seus filhos. Às vezes, ela até supervisionava Shira quando os passava e engomava. O que teria acontecido com ela para agir dessa maneira? Seu coração começou a bater rapidamente, alertando-a de que a resposta que teria não seria do seu agrado. Tentou afastar aquele palpite, mais típico de Arany do que do sangue Moore, e se concentrou em tudo aquilo que observava. Não se deixaria levar por especulações absurdas, sua experiência no campo da medicina lhe sugeria que devia analisar tudo aquilo que encontrava para chegar a uma conclusão real.
Caminhou lentamente até a almofada, levantou-a e abriu a boca quando viu que a camisola não estava no lugar. Desde quando Elizabeth saía do quarto sem usar um de seus lindos vestidos ou sem arrumar mil vezes o penteado? Mais preocupada se possível, ela se dirigiu para a penteadeira. Sua irmã tinha uma grande variedade de utensílios para usar e embelezar um penteado, além de quatro chapéus de cores diferentes, expostos com muito cuidado no cabideiro que seu pai colocou em cima do espelho e quatro pincéis de diferentes materiais e formas. No entanto, Mary não prestou atenção aos objetos que prolongavam a harmonia da sala, mas ao que estava quebrado: o chapeuzinho que Elizabeth usava quando voltou. Ele se abaixou devagar e o pegou do chão. O que aconteceu? A ideia que Anne comentou ganhou força e intensidade. Apesar de não querer admiti-lo, todas as provas apontavam para essa opção. Irritada, porque não podia tolerar o ciúme tomando conta de Eli e sua terrível resposta emocional arruinando a pacífica vida familiar, ela deixou o chapéu branco na penteadeira e saiu rapidamente do quarto. Agora sua mãe não teria escolha senão castiga-la, porque os gritos de censura que ela daria a terceira das Moore seriam ouvidos até na própria Alemanha.
Pisando o chão como se quisesse quebrá-lo, percorreu o corredor de forma apressada. Levantou a saia do atrevido vestido e desceu as escadas com tal rapidez, que parecia ter brotado asas nos tornozelos. A situação seria resolvida no momento em que a encontrasse, e se tivesse que procurar em todos os cantos de sua casa, ela faria.
Mas não a encontrou... Elizabeth não estava dentro de casa.
Depois de percorrer cada esconderijo, por pouco mais de meia hora, não encontrou sinal da moça. Só havia um lugar para procurá-la: a estufa. Mary passou pela porta da biblioteca e ouviu como Anne continuava contando sua linda história de amor com o visconde, enquanto sua mãe se mantinha em silêncio. Nenhuma das duas suspeitava que a terceira das irmãs houvesse desaparecido. Tinham certeza que estava em seu quarto, descansando e sofrendo uma terrível dor de cabeça. Por alguns segundos, pensou em alertá-las sobre o problema, mas depois descartou essa opção. Se queria ser castigada, teria que reprovar o comportamento infantil da irmã. Depois de bufar, porque não gostava de ocupar o papel de mãe e muito menos quando procurava uma reprimenda, foi até a porta de saída. Uma vez que a abriu, foi incapaz de afastar o olhar da imagem que se produzia do lado de fora.
Madeleine estava no meio do jardim, aplaudindo a atitude de Josh. A gêmea cavalgava ao redor dela, dirigindo o animal com temperança e segurança, como um autêntico soldado. Mantinha as costas retas, enquanto seu corpo subia e descia ao ritmo do trote. Mary fixou os olhos no rosto da jovem e contemplou um orgulho e uma satisfação que invejou por alguns segundos. Então assistiu o movimento compassado de sua trança. O cabelo branco que Josh tanto detestava a fazia tão bonita, que qualquer homem ficaria prostrado a seus pés. Não entendia como ela ainda se chamava a irmã mais feia quando na verdade era uma jovem muito bonita. Por que eram obrigadas a pensar que só alcançariam uma beleza real e feminina se possuíssem os traços que ditavam os cânones sociais? Josh, apesar de sua contínua negação, era preciosa não só por sua diferença física, mas também por seu caráter. E inclusive esse comportamento selvagem que apresentava diariamente engrandecia esse esplendor feminino.
Admiração. Esse sentimento brotou em Mary ao contemplar a majestosa habilidade de Josh que, como acontecia a ela no campo da medicina, era difícil de superar. Não importava que todo mundo alegasse que seu dom era mais próprio de um homem que o de uma mulher, ela o possuía e exibia com muita dignidade. Mary suspirou fundo, refletindo sobre o futuro da jovem. Qual seria o seu destino? Se ela admitisse que a maldição existia, o que ainda não fez, confiaria que encontraria um marido capaz de aceitar seu comportamento estranho, mas ela sabia que isso não seria possível. Nenhum homem, dos que tinha conhecido até o momento, suportaria que sua esposa fosse mais preparada em temas masculinos que ele.
Deu um passo em frente, sem poder desviar o olhar dessa união entre humano e animal. Nunca se referiu a uma atividade tão branda para ela como expectadora, mas foi assim no fim. Majestade, beleza, divindade ou qualquer palavra que procurasse para defini-la não alcançaria a realidade. Josephine era, sem dúvida, uma amazona, uma guerreira, uma deusa a cavalo e onde ambos expressavam, num ato tão simples quanto correr, uma cumplicidade tão extraordinária que qualquer cavaleiro enlouqueceria para alcançar. No entanto, a magia da situação celestial desapareceu quando Mary percebeu como os quatro cascos do animal se cravavam repetidamente na grama, aquela que seus pais tão bem cuidavam.
?Mas como te ocorreu cavalgar por nosso jardim! ?Gritou para Josephine caminhando em sua direção. ?Não se lembra do esforço que nossos pais fizeram para mantê-lo desta forma? Demoraram anos para mantê-lo assim!
Josh, ao ouvi-la, moveu as rédeas de Galeão para que este se dirigisse para a irmã berrante. Uma vez que se colocou diante dela, e a observou tão pequenina e assustada, um sorriso maléfico se desenhou em seu rosto.
?Afasta agora mesmo esse perisodáctilo do meu lado! ?Lhe pediu enquanto andava para trás. Só parou quando suas costas tocaram o grosso muro de pedra que dividia o jardim da casa.
?Peri... o quê? ?Josh perguntou, descansando os antebraços na crina do cavalo. ?Se chama Galeón.
?Perisodáctilo ?Mary repetiu sem diminuir a raiva ou o medo que sentia na presença do grande animal, que a olhava com seus enormes olhos castanhos. ?Assim se denomina os mamíferos placentários. Aqueles que possuem em suas extremidades um número ímpar de dedos. Como pode ver, seu novo amigo tem um em cada perna e este se denomina casco.
?Gosta de ser chamado desse modo estranho, Galeón? ?Josh lhe perguntou, inclinando-se para a orelha esquerda do animal. Este, como resposta, relinchou e moveu a cabeça. Atitude que deixou Mary mais surpresa se isso fosse possível. ?Não volte a chamá-lo por esse nome porque não gosta.
?Pois não me importa se gosta ou não! ?Respondeu, movendo-se muito lentamente para a esquerda para sair daquela encruzilhada mortal.
?Para onde vai? ?Josh retrucou, depois de açoitar Galleon para andar atrás de sua irmã.
?Não me siga! Por acaso não sabe que esse quadrúpede pode me matar? ?Esbravejou sem olhar para ela e sem parar de andar.
?Galeón é inofensivo...
?Sim, é claro, como as benditas armas que você dorme até levantar ?respondeu se virando para as duas em um ato de coragem. ?Devo deduzir que esqueceu seu velho hábito de jogar com espadas, adagas ou pistolas para substituí-lo por... isso? ?Argumentou, apontando para o animal com um dedo.
?Você realmente acha que eu esqueci delas? ?Respondeu antes de soltar uma risada leve e levantar a perna da calça para mostrar a faca que estava escondendo na bota. ?Sempre estarão comigo, Mary. São e serão meus únicos aliados na luta contra um mundo injusto ?declarou firmemente.
?Quer lutar contra as injustiças? ?Repreendeu. -?Bem, precisará de um bom arsenal, Josh, porque posso garantir que encontrará, ao longo de sua vida, mais de um milhão.
?Vou comprá-los assim que... ?tentou responder, mas ficou em silêncio quando observou a presença de Madeleine que, como era habitual nela, apareceu sem fazer nenhum ruído.
?Aonde você vai Mary? ?A menina perguntou depois de acariciar o pescoço de Galeón. ?Está procurando sua mudança? ?Acrescentou sarcástica.
?Não ?negou veementemente. ?Estou procurando Elizabeth, e sobre minha mudança, posso garantir que sei como detê-la ?murmurou altiva.
?Se você diz... ?Madeleine respondeu exibindo um grande sorriso.
?Se retirou para seu quarto ?Josh interveio enquanto descia do cavalo. ?Sofre de uma terrível dor de cabeça desde...
?Sábado. Sim, eu sei ?Mary a cortou. ?Por esse motivo, minha mãe ordenou que eu a visitasse. Quer que eu a ajude a acalmar sua dor. No entanto, quando apareci no seu quarto, não a encontrei ?continuou.
?Estará na estufa ?Josh disse sem mostrar nenhum sinal de preocupação. ?Sabe que as ervas que cultiva são muito importantes para ela. Durante esses dias, se perguntou se Madeleine seria capaz de cuidar delas, como indicou. Talvez, apesar da dor de cabeça, quis confirmar que não quebrou um caule ou caiu uma folha ?acrescentou sorrindo enquanto pegava as rédeas e as enrolava entre os dedos.
?Quer que te acompanhe? ?Madeleine se ofereceu. ?Me fará bem falar com ela. Não quero que se zangue por algo que puder fazer.
?Não. Me interessa mais que passe seu tempo vigiando ao Josh e a esse bicho. Não sei onde pretende colocá-lo, mas não creio que a escolha que tenha tomado seja adequada...
?Pedirei ao pai para construirmos um estábulo ?assinalou a referida, virando Galeón em direção ao portão externo do jardim. ?Há espaço suficiente para...
Mary parou de ouvir a ideia futurista de Josh quando Madeleine a agarrou pelo braço e a puxou.
?Não esqueça o que eu te disse. Aceite de uma vez por todas o seu destino.
?Não, se puder evitar ?resmungou antes de se soltar daquele aperto e caminhar em direção à estufa enquanto ouvia a criança dar uma grande risada novamente.
***
Se pensou, por um momento, que o seu mau humor desapareceria durante o caminho para a estufa, se equivocou. Após a perseverança de Madeleine, sua raiva atingiu um nível insuperável. Ela estava com tanta raiva que podia aparecer diante de Elizabeth e, sem dizer uma única palavra, pegá-la pelos cabelos para arrastá-la para dentro de casa, como se fosse uma mulher da Pré-História. Pretendia esmagá-la? Bem, não o fez! Tudo o que conseguiu foi atormentá-la para alcançar a maneira de destruir o suposto futuro.
Com as bochechas tão vermelhas quanto as pétalas de uma Gerbera, ela apareceu na frente da porta da estufa e a abriu com tanta brusquidão que as paredes de vidro tremeram e a saia do vestido foi puxada para trás. Sem fechar, deu dois passos à frente e olhou em volta, procurando a familiar silhueta feminina. Mas não a encontrou com tanta facilidade.
Depois de fechar, começou a murmurar mais de uma dezena de impróprios inadequados para uma mulher. Logo caminhou decidida pelo estreito corredor que levava ao lago que seu pai encomendou a construção. A cada passo, seu nariz capturava um cheiro diferente, tornando-a incapaz de descobrir qual flor emitia uma fragrância específica. Parou no meio do caminho e observou tanto o que encontrou a sua direita como a sua esquerda. Um éden. Elizabeth construíra, sob aquelas paredes envidraçadas, um belo lugar cheio de cores e perfumes. Se concentrou em seu alvo e avançou lentamente, sem desviar o olhar do arco-íris floral dos dois lados. Antes de chegar à pequena cisterna, teve que desviar dos grandes galhos da única árvore que sua irmã plantou. Sorriu ao se lembrar do dia em que ela apareceu com aquela mudinha de laranjeira. Não tinha mais de seis anos e mostrava tal entusiasmo que seus olhos brilhavam como duas estrelas. Depois que explicou aos pais o que pretendia fazer com o pequeno talo, Elizabeth saiu para o jardim, olhou para o céu e seguiu para o lado esquerdo da casa. Depois cavou um buraco com suas próprias mãos para plantá-lo enquanto seus pais a observavam em silêncio. Dois meses depois, começaram a construir a estufa e, quando terminaram, Elizabeth se tornou a fada das plantas. Não podia calcular quantas classes possuía nem o que podia fazer com elas, mas sim admitia que seu dom havia se desenvolvido com grande mestria.
Com a imagem do maravilhoso rosto infantil coberto de terra, era estranho o dia em que não chegava manchado em sua casa, e pensando sobre a mudança que sofreu após a traição de Archie, avançou. Então, enquanto o som da roda que movia a água da lagoa alcançava seus ouvidos, encontrou a silhueta que procurava.
As frases que escolheu para reprovar seu comportamento inapropriado, desapareceram de imediato ao contemplá-la daquela maneira. Sua suposição foi confirmada e, em vez de se sentir feliz, conjecturando outra teoria correta, entristeceu. Como deduziu, Eli tinha saído de camisola. Mas não pensou que a encontraria com um aspecto tão desleixado. O seu cabelo, habitualmente recolhido com cuidado, estava solto e frisado, como se não o tivesse escovado em dias. Depois observou a planta dos pés e franziu a testa ao vê-las tão sujas e com manchas de sangue. A mão esquerda de Elizabeth estendia-se frouxa, sem forças, sobre essa parte de seu corpo, enquanto a outra se movia em círculos sobre a água do diminuto lago.
Por um segundo, duvidou se deveria insistir no motivo de sua presença ou deixá-la sozinha com seus pensamentos. Não teve que pensar muito a resposta, pois esta apareceu no momento que a ouviu soluçar.
?Eli? ?Perguntou reduzindo a distância entre elas. ?Está tudo bem? ?Esperou que lhe respondesse, ao não fazê-lo, prosseguiu: ?Anne me disse que sofre uma terrível dor de cabeça e vim para acalmar essa dor.
?Pode ir, Mary. Minha dor não desaparecerá com nada... ?disse depois de alguns segundos angustiantes.
?Duvido ?afirmou colocando a mão direita no ombro esquerdo de Elizabeth. ?Sabe que, quando me empenho, nenhuma dor ou doença suportará mi...
Mary ficou em silêncio enquanto olhava o rosto da irmã. Onde estava a moça bonita? Não havia um pequeno traço dessa beleza com a qual nasceu. Seus olhos azuis não tinham luz, talvez porque as olheiras ao redor eliminaram todo o brilho. Suas bochechas, descritas por ela mesma como perfeitas, agora não passavam de pele sobre ossos, e seus lábios não tinham a cor vermelha intensa que ela tanto admirava porque haviam perdido a tonalidade ao ponto da palidez. Sem pensar duas vezes, afastou a mão do ombro e a colocou na testa, para verificar se estava com febre. Mas Elizabeth não estava quente, muito pelo contrário. Estava tão fria quanto uma estátua de mármore.
?O que diabos aconteceu com você? ?Esbravejou com uma mistura de horror e angustia. ?Por que está assim? ?Antes que Elizabeth pudesse responder, Mary fixou os olhos na mão que ela mantinha submersa na água e instintivamente colocou as suas no peito. ?O que está fazendo com isso? Em que está pensando?
?Pelo que entendi, nossos pais nos dão a vida, mas o destino é quem dita quando deve terminar ?expôs voltando o olhar para a água. ?Talvez a minha deva terminar antes de...
?Não diga bobagens! ?Clamou antes de se inclinar para a adaga e puxá-la dos dedos. ?Este não é o fim, Elizabeth Moore Arany! É o começo de tudo! Como pode pensar em algo tão horrível! Você enlouqueceu? ?E jogou a arma na porta com tanta força que a lâmina de metal se rompeu ao impactar no chão. ?O que aconteceu? ?Insistiu sacudindo-a. ?O que essa cabeça maldita pensa?
E Elizabeth começou a chorar. Escondeu o rosto abatido com as mãos e não conseguiu se consolar até que Mary se sentou ao lado dela e a abraçou com força.
?Anne pensa que está assim porque se comprometeu com o visconde ?explicou enquanto lhe acariciava a mata de cabelo loiro emaranhado. ?Mas eu sei que não é verdade. Apesar desse comportamento repugnante que mostra, no fundo a pequena Elizabeth ainda vive em você. Aquele que corria para cá para descobrir se a nova semente havia germinado ou se as pétalas de uma flor se abriram antes da chegada do amanhecer.
?Eu sou horrível, Mary! ?Soluçou em seu peito. ?Sou a mulher mais horrível que já existiu no mundo!
?Não, querida. Você não é horrível. As circunstâncias fizeram você assim. Você nasceu bonita, como seu físico. O que acontece é...
?Mary... ?sussurrou levantando o rosto para ela. ?Sou horrível, juro pelo sangue que corre em nossas veias. Eu fiz... aconteceu... ?Mas não teve forças para falar, apoiou de novo a testa sobre o peito de sua irmã e continuou chorando sem consolo.
Como superaria isso? Como poderia contar para Mary o que havia acontecido? Não, não conseguia. Tinha que manter isso em segredo. Não só por seu bem, mas também pelo da família.
?Sabe? ?Mary começou a dizer enquanto a segurava com força. ?A vida é cruel para todo mundo. Por mais que tentemos lutar para nos libertar do que nos mantém presos, não obtemos sucesso. A felicidade, essa que muitas pessoas se orgulham de possuir, é uma mentira, uma ilusão fictícia. Ninguém consegue algo tão idílico.
?Então... pelo que vivemos, Mary? Por que ainda estamos neste mundo cruel? ?Perguntou sem levantar o rosto.
?Olhe para mim, Eli! ?Lhe pediu depois de colocar as mãos sobre seus ombros. ?Conte-me o que aconteceu com você, para que não tenha diante de mim a irmã que sempre quis chutar a bunda por ser presunçosa. Onde está a força que expressava? E esse caráter repulsivamente aristocrático.
?Desapareceu... ?murmurou abaixando a cabeça.
?Quem fez isso com você? ?Perseverou, erguendo o rosto com as duas mãos.
?Como o...? ?estalou perplexa.
?Você viu? O destino o colocou de volta em seu caminho? ?Insistiu. ?Porque se assim for, juro que desta vez o matarei com minhas próprias mãos!
?Não! ?Elizabeth respondeu, se levantando da borda empedrada que rodeava o lago. Sem olhar para Mary, esfregou as mãos, olhou para o chão e suspirou. ?Não sei nada de Archie desde que recebi aquela carta.
?Bom. Fico feliz em saber que o pai não terá que me visitar na prisão... por enquanto ?respondeu Mary levantando-se também. Pegou-a por trás e a abraçou com força. ?Se esse filho da puta não é o motivo da sua depressão, o que é?
?Não acredito que possa me amar se te contar ?lhe disse inclinando os ombros para frente.
?Você me ama? ?Lhe perguntou fazendo-a virar para ela. ?Me ama apesar de tudo o que digo ou faço?
?Claro! Você é minha irmã e sabe que te adoro, apesar de todas as coisas estranhas que faz ou diz.
?Exato! ?cortou-a. ?Sempre, apesar de todas as discussões que tivemos, nos amamos. Nisso consiste a família, Eli. E nada, nem ninguém pode eliminar esse vínculo existente entre nós. Podemos ser muito diferentes, felizmente para todas, mas essa desigualdade fez com que nos respeitemos e nos compreendamos. ?Respirou fundo e olhou-a com ternura. ?Por causa dessa compreensão de que falo, sei que sua dor de cabeça é falsa e que as especulações de Anne também são. Sua alma está quebrada. Algo horrível aconteceu com você nessa viagem e te machucou tanto que não será capaz de superá-lo sem ajuda. Só me resta dizer que estou aqui, contigo, e que juntas superaremos tudo.
?Tem sido... horrível ?expressou antes que as lágrimas aparecessem de novo.
?Minha intuição diz como se sente. Mas preciso que me conte tudo, só assim poderemos encontrar a melhor solução ?garantiu com firmeza.
?E se não pode me ajudar? E se for algo tão assustador que só possa ser resolvido com a minha morte ou voltando no tempo?
?Responda-me apenas uma coisa, Elizabeth ?comentou olhando-a nos olhos e tomando-a com ternura dos ombros. ?Essa coisa horrível nos fará procurar e tirar do galpão o berço onde nossos pais nos colocaram no nascimento?
?Não! ?Elizabeth gritou horrorizada.
?Então, querida irmã, todo o resto tem uma solução ?disse antes de abraçá-la e ouvir como Eli suspirava em seus braços.
Capítulo XV
Nos dez dias seguintes, não teve uma mera hora livre para estudar os ensaios que a Sra. Reform lhe deu. Sua mãe tornou-se tirana e continuou ordenando mil tarefas que ela tinha que terminar antes do anoitecer. Para assombro do resto da família, realizou todas, pois nenhuma implicava se afastar de sua casa. Enquanto pudesse estar ao cuidado de Elizabeth e se manter afastada de lorde Giesler, cumpriria sem questionar. Pelo contrário, Anne saía e entrava continuamente de casa. Às vezes, visitava os parentes de seu noivo e outras vezes, chamava urgentemente a costureira que, em sua opinião, não deveria ter muita experiência, pois a fazia experimentar o vestido várias vezes ao dia. Josh e Madeleine, com a desculpa de serem as menores, mal tinham responsabilidades. A única coisa que lhes foi confiada era controlar o novo membro da família. Ainda não dava crédito aos mimos e cuidados que o animal recebia. Acolheram-no com tanto amor, que nem sequer reparavam no fedorento cheiro que invadia o jardim depois de este defecar onde lhe apetecesse. Até seu pai se uniu à louca felicidade! Desde que o visconde colocou o anel em um dos dedos de sua primogênita, vestia-se com elegância e repassava o nó da gravata mil vezes, antes de transitar pelas ruas de Londres no interior da carruagem que seu futuro genro lhe deu. Todos viviam num eterno caos, num infinito disparate. No entanto, admitia que esse estado de desorientação e confusão familiar foi proveitoso para Elizabeth. Apenas reparavam em suas contínuas ausências ou que, cada vez que se reunia com eles, não via um de seus descarados vestidos, mas aqueles que Mary guardava no armário. Talvez evitassem falar do assunto ao dar por confiável a hipótese de Anne e Josh. Aquela em que Elizabeth chorava de ciúmes ao não ser ela quem casava com um aristocrata. Mas ela conhecia a verdade e sofria a agonia de sua irmã em suas próprias entranhas. Desde a tarde que passaram juntas na estufa, não pôde dormir nem uma só noite. Passava horas pensando no medo que Eli suportou e na solidão que se encontrou até aparecer o valete do visconde. Não se importava se ela se culpava por ter encorajado o miserável. A única coisa em que pensou foi que, se era verdade que Morgana cuidava dos de seu sangue, devia matar o gajo justo quando uma de suas mãos desagradáveis a tocou pela primeira vez.
Mary olhou de novo a cortina marrom, que a dona do comércio utilizava para separar a loja da oficina, e respirou com aborrecimento. Se aquela risonha vendedora não a atendesse em breve, sofreria uma apoplexia. Ela não deveria estar lá. Seu tempo era muito valioso para perder sentada em uma cadeira desconfortável e, como seguissem ignorando-a, o escândalo que lhe anunciou a sua mãe, se cumpriria em breve.
?Coloque um casaco e pegue o pedido ?Sophia ordenou depois de encontrá-la escondida no armário. ?A costureira está esperando por você.
?Anne não pode cuidar dessa tarefa? Hoje certamente terá que experimentar o vestido novamente e não será necessário nenhum esforço para suportar o peso de quatro bolsas ?propôs enquanto saía das sombras que lhe proporcionou o inútil esconderijo.
?Hoje não a visitará ?respondeu andando atrás de sua filha. ?Deve comparecer ao almoço oferecido pela Marquesa de Riderland em sua homenagem.
?E as gêmeas? ?Sugeriu se virando para sua mãe.
?Ainda são muito pequenas para passear sozinhas pelas ruas ?Sophia respondeu levantando o tom da voz e erguendo a sobrancelha direita.
?E eu sim posso fazê-lo? ?Disse com falso espanto. ?Não lhe preocupa a opinião que terão as pessoas de mim quando me virem caminhando sem proteção por Cover Garden?
?Desde quando se importa com que dirão, Mary? ?Espetou sua mãe cruzando os braços na frente do peito.
?Desde que minha honorável e maravilhosa irmã mais velha se comprometeu com um visconde ?expôs como se a resposta tivesse sido estudada mil vezes.
?Então... você faz isso por sua irmã? ?Sophia perguntou olhando para ela sem piscar.
?Claro! Você realmente pensou que eu faço isso para meu próprio benefício? ?Respondeu, fingindo estar ofendida. ?Temos que agir corretamente, pelo bem de Anne. Já sabe como a aristocracia gosta dos mexericos e fofocas; pensa que não fofocarão sobre a desproteção de uma das irmãs da futura Viscondessa de Devon? Será um verdadeiro escândalo! ?Acrescentou com aparente angústia.
Mary estava prestes a pular de alegria ao observar sua mãe refletir sobre o assunto. Tinha encontrado o ponto fraco: as fofocas. Até agora, Sophia só estava interessada em cuidar da reputação do marido, no entanto, desde o noivado, tudo mudou.
?Por um momento, apenas por um momento, pensei que era sincera, Mary Moore Arany. Mas, felizmente para mim, o sangue que nos une me adverte que sua intenção é diferente da que você diz. Limpe a farinha da saia, arrume o cabelo e vista o casaco. Quero os vestidos em nossa casa antes que Eugine termine de cozinhar as perdizes, entendido? ?Disse com raiva. Virou as costas e caminhou em direção à lareira.
?E se alguém quiser me machucar? ?Mary perseverou.
?Depois do que fez ao jovem Wang, acredito que ninguém tenha coragem suficiente para falar ou cumprimentar você ?disse Sophia atiçando o fogo.
Que o inferno congelasse! Mas, por que não o havia esquecido? Quanto tempo tinha passado, três, quatro anos? Era certo que a síncope que sofreu, quando abriu a porta e a encontrou escoltada por dois agentes, foi tão grande que seu pai teve que lhe administrar uma pequena dose de clorofórmio. Certamente, ela ficou de castigo em seu quarto por três dias, os mesmos que ela passou lendo e desfrutando de uma bela solidão. Quando ela pôde explicar o que aconteceu, seu pai caiu na gargalhada. Talvez porque ele foi o único que entendeu sua posição sobre doenças causadas por distúrbios celulares. Em vez disso, sua mãe só pediu a Morgana que a sociedade londrina ficasse surda e cega por duas semanas. Ela estava muito preocupada com a repercussão que seu marido sofreria quando as pessoas soubessem que a segunda de suas filhas havia golpeado, até quebrar o guarda-chuva, a carruagem do jovem Wang, que de dentro, pedia socorro. Logicamente, não podia culpá-la por desconhecer a importância que tinha a teoria da Patologia Celular em medicina, mas aquele petulante sim e por esse motivo, ao ouvi-lo dizer que se tratava de uma conjectura sem sentido para explicar as doenças dos organismos, perdeu o controle. Como podia falar dessa forma o filho de um médico que foi à universidade com Rudolf Virchow? Só um tolo, como Wang, podia soltar por sua boca semelhantes tolices. Obviamente, o temor de sua mãe apareceu antes do imaginado. As pessoas falaram sobre a agressão da filha perturbada do doutor Moore ao encantador Wang. Desde aquele dia, não importava se andava sozinha ou de noite, ninguém se aproximava e atravessavam a rua, quando levava um guarda-chuva na mão.
?Senhorita Moore?
A pergunta que a vendedora lançou ao ar, depois de sair pela décima quinta vez da sala dos fundos, tirou Mary de seus pensamentos. Ela se levantou da cadeira, onde estivera mais de uma hora, e se aproximou do balcão.
?Finalmente descobriram que estou aqui! ?Disse sarcasticamente. ?Pensei que me confundi de estabelecimento porque, apesar de ser a primeira, atenderam outras clientes antes de mim.
?Para fazer um excelente trabalho, é preciso ter paciência e tempo ?a funcionária manifestou, colocando sobre a bancada envernizada as bolsas que levava nas mãos.
?Não discuto isso. Mas garanto-lhe que tiveram tempo suficiente para confeccionar dois vestidos e emplumar quatro chapéus ?Mary insistiu, enquanto confirmava que as roupas que lhe oferecia eram as mesmas que fora buscar. Nas bolsas estava o vestido rosa pálido de Madeleine, o malva claro de Josephine, o marrom de sua mãe e quando observou o seu, franziu a testa e olhou à empregada como se buscasse a forma mais rápida de lhe quebrar o pescoço. Depois pegou com dois dedos o tecido daquela roupa verde, colocou-a frente ao nariz da trabalhadora e perguntou-lhe com raiva: ?Não lhe indicaram que este vestido devia ser azul marinho? Por que, não é? Acaso a costureira sofre de discromatopsia?[8]
?Expliquei a sua mãe que não era uma cor apropriada para um casamento tão importante e que todos os convidados à cerimônia pensariam que a jovem em questão se encontraria em período de luto ?explicou com orgulho enquanto a olhava de baixo a cima. ?Foi por isso que lhe pedi que reconsiderasse e, para satisfação pessoal, fez o mesmo. A senhora Moore é uma mulher muito inteligente e selecionou uma tonalidade bastante atual e...
?Estúpida? ?Mary a interrompeu. ?Porque não há outra maneira de descrevê-la. Agora, em vez de mostrar a imagem de uma jovem séria, correta e virtuosa, parecerei a garrafa que algum bucaneiro bêbado de Whitechapel leva em uma mão.
?Como ousa falar desse modo? ?Perguntou chocada. ?Nenhuma de nossas clientes se comparou com semelhante barbaridade! Todas estão encantadas com nosso trabalho! Minha oficina é única na cidade!
?Única? Certamente minha governanta conserta remendos menos emaranhadas do que estes ?comentou mal-humorada enquanto empilhava as bolsas com as duas mãos. ?E não se mostre tão ofuscada por uma crítica construtiva. Deve saber que será muito rentável para o seu negócio ouvir as opiniões dos clientes. Só assim obterão a perfeição da qual se vangloriam. Espero que a próxima vez que lhe encomendem uma peça de roupa de uma cor determinada, você morda a língua e não opine.
?Santo Deus! ?Exclamou horrorizada levando as mãos ao peito. ?Não a compararão com uma garrafa, mas com a filha do próprio diabo! Agora entendo por que desejava uma cor tão escura, combinaria com sua alma.
?Tenha cuidado com o que pensa... ?Mary lhe disse uma vez que abriu a porta. ?Pode ser que esta filha do diabo invoque a umas quantas almas errantes para que incomodem seus dóceis clientes.
Antes de fechar a porta, observou divertida como a vendedora não deixava de se benzer, ato ao qual estava bastante acostumada. As pessoas costumavam fazer isso depois de ouvi-la falar. Uma vez que saiu da loja, ela soltou uma grande risada e seguiu para a carruagem. Ela teria que usar um vestido horrível, mas a funcionária viveria assustada por um longo tempo. Satisfeita e orgulhosa de ser uma mulher tão sincera, ela avançou até que o cocheiro a viu chegar e saiu do veículo. Ele abriu a porta, desceu as escadas, esperando que ela subisse, mas não o fez.
Mary ficou de pé junto à carruagem, segurando as bolsas. Seus olhos, embora estivessem se movendo em direção ao interior da carruagem, não observaram nada em particular. Estava ausente, pensando silenciosamente sobre a ideia que acabava de aparecer em sua cabeça. Levantou o queixo e sentiu em seu rosto as carícias do leve vento que previa uma rápida chuva. Era o momento ideal. Se não, quando teria outra chance? Ela ficou trancada por um longo tempo, aceitando sem objeção tudo o que sua mãe ordenava, pois nada, exceto o que ela pediu horas antes, a afastava de seu propósito. Mas estava fora, sob um céu tão cinza como o mercúrio de um termômetro. De repente, pensou em seu pai e nas conversas que manteve com sua mãe sobre o incansável trabalho do mordomo de lorde Giesler. Segundo entendia, este realizava tudo o que lhe foi dito para que a recuperação de seu senhor fosse rápida e adequada. Claro, isso implicava também protegê-lo de uma possível chuva...
Ao deduzir que seu maior problema não ocorreria, jogou as bolsas dentro da carruagem, abotoou o casaco e disse ao empregado sem olhá-lo:
?Voltarei andando.
?Andando? ?Ele respondeu bastante surpreso.
?Sim, andando. É uma das habilidades físicas que caracterizam o ser humano. Por que acredita que nascemos com duas pernas? ?Garantiu sagaz.
?Não digo por isso, Srta. Moore. Permita-me informá-la que não seria certo deixá-la sozinha com esse tempo ?disse o amável trabalhador depois de fechar a porta. ?Se observar as nuvens, descobrirá que não tardará em chover e a senhora não gostará que uma de suas filhas adoeça dois dias antes da cerimônia.
?Não se preocupe com minha saúde, Owen. Asseguro-lhe que se aparecer essa chuva alugarei uma carruagem ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Deseja, pelo menos, que lhe ofereça um guarda-chuva? Sua mãe não lhe repreenderá se lhe explicar que se resguardou...
?Não! Sem guarda-chuva! ?Respondeu como se tivesse sido picada na bunda com um alfinete. ?Prometo que ela ficará mais zangada se eu o tiver.
?Como desejar ?terminou de lhe dizer antes de subir e açoitar o cavalo.
Mary se virou para sua esquerda e, enquanto escutava como se afastava a carruagem, observou com entusiasmo tudo o que tinha diante de seus olhos. Felizmente para ela, a rua estava muito calma. Talvez porque, como disse o empregado, a ameaça de chuva assustou muitos londrinos. No entanto, os poucos atrevidos que encontrou passavam ao seu lado sem reparar nela. Ato que agradeceu porque não queria observar rostos de espanto, assombro ou estranheza. Precisava, depois de tantos dias enclausurada em sua casa, sentir um pouco de liberdade e tranquilidade.
Com a mão direita ligeiramente levantada, pois a alça de sua retícula se encaixara na dobra de seu cotovelo, se dirigiu em primeiro lugar para a enorme fachada do Teatro Real de Drury Lane. Uma vez que se colocou em frente à porta, levantou o rosto para admirá-lo. Indubitavelmente, era um edifício grandioso. Segundo tinha lido, podia abrigar três mil e seiscentos espectadores e depois do último incêndio, ocorrido em 1809, os arquitetos encarregados da reconstrução usaram colunas de ferro para substituir aquelas de madeira que sustentam os cinco níveis das galerias. Mas se esses dados lhe pareceram extraordinários, o fato de saber que ali se celebravam, desde dois anos atrás, os melhores espetáculos e melodramas, a deixou sem palavras. Olhou intrigada o cartaz que alguém colocou na direita do pórtico e suspirou. Em outra ocasião, quando sua vida fosse menos agitada, poderia desfrutar da música que tocaria a orquestra que anunciava esse cartaz. Com uma inevitável sensação de saudade, já que desejava que a normalidade voltasse à casa dos Moore, continuou o caminho, se esquivando das bancas de frutas e verduras que encontrou.
Covent Garden era um lugar muito estimulante, como indicavam os jornais. Embora não parecesse tão perigoso quanto insistiam em descrever. Onde estavam as prostitutas, os bandidos e os criminosos que perseguiam os cantos do mercado em busca de uma vítima para assaltar? Porque ela não os via. A única coisa que tinha diante de seus olhos eram pessoas comuns e mundanas e que ofereciam suas mercadorias aos poucos clientes que andavam perto de suas bancas.
Continuou naquele lado da calçada e justamente quando determinou que o passeio deveria terminar, seu nariz capturou um maravilhoso aroma de café. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Insuperável... Se a bebida fosse tão boa quanto o aroma que emitia, não poderia voltar para casa sem saborear uma boa xícara. Com o nariz levantado, como se fosse um cão de caça, seguiu para o estabelecimento que o servia. Quando chegou, sorriu ao ver que não era a única pessoa que abandonava suas obrigações para deleitar-se com um costume tão pouco inglês. Talvez a maravilhosa tradição de ingerir só chá iniciava uma época de declínio, ou talvez houvesse mais gente tão estranha quanto ela.
Enquanto esperava sua vez, se apoiou na parede de maneira descontraída e procurou algumas moedas para pagar pela compra.
?Quanto me custaria passar uma hora com você, Srta. Moore? Garanto-lhe que pagarei com prazer.
Mary, muito lentamente, tirou a mão da retícula, se afastou da parede, levantou o rosto e olhou com altivez para o dono daquela voz. Ali estava o maior idiota do mundo, vestido com um traje cinza escuro, tal como ditava a moda nesse momento. Peter Wang a observava com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casaco e mostrava com orgulho um repugnante bigode louro, cujas extremidades se enrolavam para cima.
?O que disse? ?Perguntou tão indignada e furiosa que suas bochechas mudaram de cor pelo sufoco.
?Digo-lhe, senhorita Moore, que estou disposto a pagar tudo o que me peça se me oferecer algo interessante em troca ?Wang disse, verificando o vestido grosseiro de Mary. Depois de sorrir com malícia, avançou para ela. ?Imagino que seja por isso que está sozinha nesta parte de Londres, não é verdade? ?Falou olhando levemente ao redor. ?Finalmente assumiu que nunca alcançaria seu sonho e adotou a posição mais sensata para sua idade: recuperar o tempo perdido tornando-se amante de um distinto cavalheiro.
?Bom dia, senhorita, o que deseja tomar? ?Interveio a amável vendedora alheia, até o momento, da situação que se vivia na frente do posto.
?Bom Dia. Importa-se de me servir a maior xícara de café que você oferece aos seus clientes, por favor? ?Mary respondeu sem olhar para ela.
?Café? ?Perguntou Wang sem tirar os olhos dela. ?Como é normal em você, me confunde. Tinha deduzido, erroneamente, claro, que se tratava de uma mulher que adorava passar as horas do dia tomando chá com doces, dado o volume desproporcionado que tomaram seus quadris desde a última vez que nos vimos.
?Deus bendito! ?A vendedora soltou horrorizada ao ouvi-lo.
Gorda e prostituta. Até esse preciso instante a tinham dedicado muitos adjetivos e substantivos repugnantes, mas nenhum superava a brilhante descrição daquele energúmeno. Mary olhou de relance para a trabalhadora envergonhada. Ela colocou a xícara que pedira no balcão de metal com as mãos trêmulas e se afastou, como se estivesse lendo seus pensamentos. Sem prestar atenção às palavras de Wang, que perseverou em informar que sua robustez aumentara tanto que não seria bom para sua saúde, ela se virou para a esquerda, pegou a xícara e jogou nele.
?Maldita aberração! ?Exclamou. ?Como ousa falar comigo com tanta insolência? ?Vociferou. ?Você é o homem mais estúpido que eu já conheci na minha vida!
?É uma rameira! ?Wang esbravejou quando suas mãos com luvas pretas desabotoaram os botões do casaco.
Tudo o que aconteceu desde o momento em que atirou o café sobre Wang, transcorreu muito lentamente para Mary. O filho do médico tirou algumas roupas e as jogou no chão. Então gritou milhares de maldições quando não conseguiu acalmar as queimaduras que seu peito sofreu. Ele olhou para ela com tanta raiva que qualquer mulher teria morrido de medo. Avançou para ela, levantou o braço direito e estendeu os dedos para lhe acertar um bofetão. Mas não chegou a tocá-la. Uma mão enorme, que ela reconheceu rapidamente, apertou o pulso do agressor e o puxou com uma força tão grande que ele caiu no chão junto com suas roupas.
***
?Como foi capaz de fazer uma coisa dessas? ?Philip gritou pulando da cadeira. ?Aquela mãe ficou louca?
?Não creio que o termo louca seja muito apropriado para descrever a senhora Moore, milorde ?Disse Shals antes de dar uma gorjeta ao menino que lhe fez chegar a notícia. Quando este partiu, virou-se para o angustiado lorde e prosseguiu: ?Primeiro, devo descobrir o que aconteceu para que a senhorita Moore saísse sem proteção. Certamente você encontrará uma explicação tão divertida que estará rindo por vários dias...
Nem ele mesmo acreditava em suas próprias palavras! Como uma mãe, sabendo qual era a opinião da sociedade sobre a sua filha, deixava-a sair de casa sem acompanhante? Queria que chegasse o juízo final? Porque isso mesmo ia acontecer. Não só pelo que aquela moça poderia fazer, mas pelo que estava a ponto de realizar seu amo.
?Shals? ?Giesler perguntou ao vê-lo imóvel na frente do cabide.
?Sim senhor. Eu já tenho ?respondeu. Mostrou-lhe a jaqueta que havia pegado e caminhou até ele.
?Não há explicação... ?Philip continuou a falar enquanto o mordomo o ajudava a vestir a jaqueta. ?Mary não pode passear pelas ruas sem proteção. Além disso... não disse que começaria a chover em breve? ?Retrucou quando se virou para que Shals abotoasse os botões.
?De fato, milorde. As nuvens são tão cinzentas como a cinza que há em uma lareira depois de um enorme fogo. Se o vento não as mover, logo aparecerão as primeiras gotas. ?Terminou de colocar a jaqueta e correu para a porta do escritório para deixar passar o homem que, apesar de não estar totalmente recuperado de uma operação, percorreria Londres a pé para proteger a mulher que amava em segredo.
?Diga ao cocheiro que esteja pronto em um minuto ?ordenou Philip antes de entrar na sala de jantar e desabotoar a jaqueta.
Não fechou ao entrar. Não era hora de se preocupar em buscar um pouco de privacidade, mas de agir rapidamente. Ele foi até a vitrine de mogno, colocou a mão direita na borda e moveu os dedos até encontrar a chave. Uma vez que a encaixou na fechadura, virou-a para a direita e abriu a estreita e longa porta de vidro. O cheiro de pólvora atingiu seu nariz, fazendo-o lembrar diferentes episódios importantes de sua vida. Em qualquer outro momento, ele teria sorrido para inspirar a segurança e a diversão que esse perfume em particular transmitia. Mas agora isso só lhe dava um aroma, o de Mary, e expressava um desejo: cuidar dela.
Como tinha sido tão insensata de passear por Cover Garden sem proteção? Não gostava tanto de ler? Então, por que não havia lido nos jornais as críticas que fizeram sobre essa região em particular da cidade? Ainda bem que seu empregado foi sensato e lhe fez chegar a informação através daquele pequeno batedor de carteira. Sabia que ele agiria com rapidez e que nem uma chuva de ratos infectados com lepra lhe impediria ir buscá-la. Levantou a arma com a mão direita até que a culatra de marfim branca ficou à altura de seus olhos e com a outra mão carregou a munição, o projétil e o bloco de papel através do cano. Uma vez que ficou carregada e pronta, ele a guardou no bolso interior da jaqueta, fechou a porta da vitrine, colocou a chave no lugar, virou-se para a porta e enquanto saía, fechou ele mesmo a jaqueta.
?Tudo pronto, meu senhor ?Shals disse oferecendo-lhe o casaco. ?Quer que o acompanhe? Seguro que posso me ausentar algumas horas... ?acrescentou uma vez que o ajudou a colocá-lo.
?Não. Prefiro que esteja aqui caso apareça Valeria ou Martin ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Se isso acontecer, deseja que conte a versão real ou mais uma... ilusória? ?Sugeriu enquanto colocava o chapéu nas mãos.
?Real ?declarou antes de colocá-lo sobre a cabeça e sair de lá.
Shals encarou a grande figura de seu senhor até que ele entrou na carruagem com a ajuda do cocheiro. Nas duas semanas anteriores, lorde Giesler permaneceu muito calmo em sua residência, recuperando-se da operação. Ele próprio acreditava que, se continuasse assim, seu senhor morreria de tédio, porque nunca ficava em casa por tanto tempo, exceto quando chegava tão bêbado que não conseguia se lembrar de seu nome. No entanto, sua atitude mudou tanto que o serviço murmurava incessantemente sobre o estranho comportamento do homem que pagava seus honorários. Até chegaram a pensar que a senhorita Moore, durante a operação, lhe arrancou não só um pedaço de tripa envenenada, mas também a virilidade. Ninguém, exceto ele, entendia o motivo pelo qual ficava várias horas sentado em um sofá, prostrado em sua cama ou caminhando pela casa com muito cuidado para não se machucar: a senhorita Moore. Desde o dia em que os encontrou no quarto, em circunstâncias comprometedoras, lorde Giesler não tinha pensado em nada, exceto em curá-lo com rapidez e cortejá-la como era devido. Até tinha lido livros de medicina! Seu novo propósito consistia em que, a próxima vez que se encontrassem, a jovem se apaixonasse por ele tal como ele estava apaixonado por ela. No entanto, tinha a sensação de que seu primeiro encontro social não seria tão romântico quanto ele esperava...
Apesar de tudo, confiava na sabedoria da senhorita Moore e rezava para que não se metesse em nenhum problema. Se isso acontecesse, se seu senhor testemunhasse alguma ofensa contra ela... Que Deus tenha piedade do insensato! A arma que tinha guardado no bolso era de um tiro e só o usaria como advertência. Para ser sincero, não temia pelos danos que aquela bala poderia causar, mas o que aquelas duas mãos fortes e grandes poderiam fazer.
Shals suspirou quando a carruagem se perdeu na distância. Fechou devagar a porta, virou-se e caminhou pelo corredor como se algum empregado tivesse pedido sua ajuda.
Capítulo XVI
Philip observou, de sua carruagem e atrás da cortiça marrom escura, como Mary abandonava a loja na qual havia permanecido desde que ele chegou. Quando ele pretendia respirar com calma, coisa que não havia feito desde que soube que ela saíra de casa sozinha, observou, pasmo, que ela depositou as malas dentro da carruagem e se afastou. Antecipando o que aconteceria a seguir, colocou a mão esquerda com luvas na maçaneta da porta e abriu. Enquanto ele pisava nos paralelepípedos da calçada com seus sapatos pretos brilhantes, Mary conversava com o funcionário. Então, ela apertou os botões do casaco, virou e começou a descer a rua.
?Milorde? ?Lhe perguntou o cocheiro um tanto confuso ao descobrir que seu senhor abria a porta e saía da carruagem sem ajuda.
?Me espere aqui, Thenders. Se eu não aparecer em 10 minutos, você tem minha permissão para voltar ?lhe ordenou sem afastar seus olhos azulados da mulher.
?Como quiser senhor ?o servo respondeu depois de depositar as rédeas no assento.
Philip caminhou atrás de Mary, mantendo uma distância suficiente para que lhe não descobrisse, mas o apropriado para agir rapidamente, se necessário. Por mais que tentasse, era incapaz de tirar os olhos do corpo com o qual sonhara quase todas as noites. Suas mãos, exatamente como fizeram nessas alucinações eróticas, foram em sua direção para tocá-la, mas ele as bateu nos dois lados do casaco quando percebeu o que estava fazendo. Irritado com a perda incomum de controle, ele os colocou nos bolsos e os apertou. Sentia falta dela. Sim ele fez! Não havia manhã em que acordasse e se perguntasse que sentimento o invadiria se ela permanecesse ao seu lado. Mas essa melancolia não terminava quando se levantava da cama. A cada hora, a cada minuto, a cada segundo do dia sentia falta de inspirar o perfume feminino misturado com essências medicinais, desejava notar as carícias suaves de seus lábios e a necessidade de tê-la ao seu lado aumentou tanto que estava ficando louco. Como conseguiu o que muitas mulheres desejavam alcançar? Era sua paixão, seu intelecto ou talvez esse jeito tão especial que tinha de olhá-lo? Embora seus olhos emitissem raiva, ele sabia que a raiva não era real. Desejava-o, tanto ou mais do que ele desejava a ela. Só esperava o momento em que se rendesse a suas paixões. Uma vez que conseguisse romper essa rígida barreira, lutaria com todas as armas que tivesse a seu alcance para fazê-la sua para sempre.
Enquanto sua mente perversa lhe fez reviver algumas cenas que teve em seus sonhos lascivos, observou como Mary parava em frente à entrada do teatro. Depois de ler a placa à direita e pensar em algo que queria saber, continuou a caminhada sem ver como as pessoas, que caminhavam ao seu lado, a olhavam de canto de olho. Sem dúvida, todo mundo estava fazendo a mesma pergunta: que diabos uma mulher como ela estava fazendo sem vigilância? Mas ele não conseguia responder. Não sabia o motivo pelo qual a senhora Moore, uma mãe a quem descrevia como coerente, permitiu que sua filha andasse sem proteção por uma região bastante perigosa de Londres. De repente, esse desejo primitivo de cuidar dela se intensificou. Precisava fazê-los entender, a quem a olhava com receio, que não estava desprotegida, que ele a vigiava. No entanto, se obrigou a manter distância, porque se Mary o descobrisse, não lhe cabia nenhuma dúvida de que o atacaria como uma leoa recém parida.
Um enorme sorriso se desenhou em seu rosto ao apreciar como erguia o queixo, fechava os olhos suavemente e inspirava o cheiro de café, que emitia um estabelecimento localizado a três barracas de verduras. Como Shals o informou, sentia uma certa fraqueza por aquela bebida. Quantas xícaras tinha tomado no último dia em que o visitou? Não se lembrava se eram quatro ou cinco, mas seu fiel mordomo disse que precisou fazer duas cafeteiras para si mesma.
Sem poder apagar aquele pequeno sorriso de felicidade, pois esse pequeno gosto comum os unia mais do que aquilo que um anel de noivado poderia unir, ficou parado na frente dela. Claro, estava tão entusiasmada em procurar as moedas com que pagaria à vendedora que não reparou na sua presença.
Philip encostou o ombro esquerdo num poste, ficou de braços cruzados e continuou a observá-la. As pessoas mais atrevidas, ao passar por seu lado, o olhavam de relance. Os temerosos se afastavam. Talvez seu traje escuro, sua altura ou a ruga que apareceu em sua testa, ao contemplar como um jovem se aproximava de Mary com um sorriso irônico, avisasse que, se quisessem ficar seguros, deveriam se afastar dele rapidamente. Quando o rapaz ficou na frente dela, Giesler descruzou os braços, afastou-se do poste e deu um grande passo. Não atendeu à blasfêmia que um cocheiro soltou quando puxou com força as rédeas de seus cavalos para não atropelá-lo. Estava tão concentrado naquela cena, que tudo à sua volta desapareceu. Deu outro passo, ficando no meio da via, tirou uma luva e a jogou no chão. Logo, no passo seguinte, se desfez da outra. Mais um passo... Só restavam três e poderia escutar o que dizia aquele estranho para Mary para que se mostrasse tão tensa. Sua futura esposa, porque assim a denominou desde que entendeu que não podia ter em sua cama outra mulher que não fosse ela, sempre enfrentava o mundo com a bravura de um dragão. Entretanto, notava que nesta ocasião estava se contendo. Então, sua valente guerreira brotou. Se virou para a vendedora, que havia colocado uma xícara enorme de café no pequeno balcão de sua loja, o pegou e jogou no rapaz em questão.
Os três passos que faltavam até alcançá-los, Philip os converteu em um ao ouvir como aquele insensato a chamava de rameira e levantava seu braço para golpeá-la. Quando se colocou atrás do rapaz, lhe agarrou o pulso do braço levantado e o puxou com tanta força que este ficou estendido no chão, junto com as roupas que tirou.
?Lorde Giesler! ?Exclamou Mary. ?Não!
Mas Philip não a ouviu, nem percebeu como ela o agarrou pelas costas do casaco para detê-lo. Com um rápido movimento de ombros, deslizou o pesado casaco preto até que se soltar dele. Depois, desabotoou o casaco e atirou-o ao chão. Uma vez que deixou de sentir a pressão que aquelas roupas exerciam em seus braços, estendeu as mãos para o menino, o agarrou e o levantou sem pouco esforço.
?Como a chamou? ?Ele gritou, levantando tanto o jovem que seus pés não tocavam o chão.
?Milorde! Me solte! ?Wang gritou desesperado. ?Me solte! ?Repetiu.
?Como a chamou? ?Voltou a rosnar.
?Por acaso não viu? Essa desgraçada me jogou uma xícara de café fervendo! ?Tentou justificar.
?Rameira ?a vendedora terminou, que havia deixado seu posto e agarrado Mary pelos ombros para confortá-la. ?Chamou a senhorita de rameira e gorda.
?Cale a boca! ?Lhe gritou Mary afastando-se dela.
Aterrorizada, deu um passo em frente e justo quando ia abrir a boca para ordenar ao Titã de cabelos louros que o soltasse, seu sapato direito tropeçou com algo duro. Olhou para o chão e arregalou os olhos ao ver a coronha perolada de uma arma. Sua angústia cresceu tanto que ficou muda. Presa desse pânico que começava a brotar do mais fundo de sua alma, jogou o casaco negro, que havia tirado do lorde, e o jogou sobre a jaqueta, para que ninguém reparasse na presença dessa arma.
?Você ia bater nela? ?Perseverou Philip alheio aos movimentos dela.
?Lorde Giesler, lhe imploro, não precisa fazer um espetáculo por algo tão insignificante. Tudo estava esclarecido no instante em que... ?Tentou explicar, mas teve que calar-se quando seu agressor a interrompeu.
?Merece uma lição! ?Wang gritou olhando em volta, procurando uma pessoa para defendê-lo.
Philip o soltou e quando o jovem apoiou as plantas dos sapatos no chão, levantou seu braço direito e lhe deu uma bofetada que lhe cruzou a cara.
?Como esse? ?Berrou fora de si.
?Ninguém vai separá-los? ?Mary gritou desesperada.
A princípio, o tumulto que os cercava permaneceu silencioso, mas quando lorde Giesler deu um tapa no rosto, o clima mudou e começou a se ouvir gritos encorajadores daqueles que os observavam. Ninguém queria parar o confronto masculino, apesar de estar ciente de que não havia igualdade física entre eles. Enquanto Wang era um rapaz alto, mas bastante esquálido, o lorde superava em altura e seu corpo dobrava seu oponente em musculatura.
?Vamos! ?Philip insistiu enquanto arregaçava as mangas da camisa. ?Me devolva o tapa! O que espera, maldito rato? Onde está agora a coragem que mostrava ao atacar uma mulher? Mostre-a com um homem!
?Não vou lutar com você... ?disse Wang caminhando para trás. ?Não por essa!
?Não! ?Mary gritou novamente enquanto observava Philip se aproximar de Wang e começar a espancá-lo sem piedade.
Olhou aterrorizada ao seu redor, procurando alguém grande e valente o suficiente para impedi-lo. Mas ninguém se atrevia a intervir em uma briga em que um dos combatentes exibia a imagem de um deus irritado. Preferiam ser meros espectadores a serem feridos. Supondo que a única pessoa que podia terminar a luta era ela mesma, saltou para frente e agarrou-se ao pescoço de lorde Giesler.
?Solte-o! Solte-o! ?Repetiu uma e outra vez.
No entanto, ele não a ouvia. Seu corpo parecia um pêndulo. Movia-se da direita para a esquerda, conforme batia. Abriu a boca, com a pretensão de lhe morder o pescoço, mas logo pensou melhor. Seu pai não lhe disse que, se apertasse com força o pescoço de uma pessoa, esta deixava de respirar e podia perder a consciência? Pois isso mesmo faria. Evitando não cair, estendeu seu braço direito sobre a garganta do lorde e apertou com a intensidade suficiente para que sua agitada respiração se tornasse algo mais pausada.
Giesler, ao sentir como lhe faltava o ar, deu um passo para trás, olhou o rosto machucado do homem e sorriu satisfeito ao comprovar que o olho direito estava tão inchado que não poderia ver com clareza por várias semanas. Mas sua alegria aumentou ao observar dois fios de sangue sob seu nariz. Depois, muito devagar, olhou por cima do ombro para confirmar que os braços que rodeavam seu pescoço pertenciam a Mary. Quem, se não ela, teria o valor suficiente para freá-lo de uma maneira tão pouco usual? Estendeu os braços para trás e acolheu com suas mãos grandes os gostosos glúteos femininos. A falta de oxigênio o deixou tão nublado que não ouviu com clareza como ela gemeu diante do contato. A única coisa em que ele se concentrou foi que Mary não se machucasse ao deitá-la no chão. Enquanto as pessoas encorajavam o ato violento, o corpo de Mary desceu ao chão, roçando o seu. Em outro momento, enlouqueceria de desejo, no entanto, este não era. Precisava confirmar que não estava ferida.
?Está bem? Se machucou? ?Perguntou-lhe quando se virou para ela. Acariciou-lhe a bochecha esquerda e enfiou uma mecha desse cabelo negro despenteado atrás da orelha.
?Eu?! ?Estalou sem poder afastar seus olhos dele. ?. Eu estou perfeitamente, é ele quem não está! ?Acrescentou apontando com um dedo da mão esquerda para o filho do médico.
?Esse tolo importa menos para mim do que uma casca de ovo, Mary. A única coisa que me interessa é saber se você está bem ou tenho que continuar batendo nele até que não sem lembre como se chama ?afirmou enquanto olhava para aquele rosto corado de raiva e vergonha.
E o escândalo oferecido por aqueles que incentivaram a luta desapareceu para dar lugar a um estranho silêncio.
?Afastem-se! ?Ordenou um homem depois de soprar várias vezes com seu apito. ?Afastem-se do nosso caminho!
Philip virou-se para aqueles que tranquilizaram a multidão, escondeu Mary atrás do seu corpo e olhou para o local na rua onde dois agentes apareceram. Estes, ao reconhecê-lo, aproximaram-se dele e levaram a mão direita ao chapéu que cobriam suas cabeças.
?Giesler... ?Um dos policiais se referiu a ele pelo sobrenome devido à amizade que mantiveram durante vários anos.
?Thomas...
?O que aconteceu? ?Ele perguntou depois de dar um forte aperto de mão.
?Este estúpido quis bater em uma mulher ?Philip murmurou, dirigindo-se a Wang com um olhar de reprovação e ódio.
?Qual delas? ?O outro parceiro queria saber enquanto observava o rosto de todas as mulheres que estavam na frente da banca de café.
?Ela... ?declarou Philip afastando-se para o lado para que seus dois antigos companheiros da Scotland Yard descobrissem a quem se referia.
?Por Deus, senhorita Moore! É você de novo? ?Estalou Thomas atordoado. ?Mas por que agrediu novamente o senhor Wang? O que usou desta vez, essa bolsa? ?Acrescentou divertido.
?Não senhor. Desta vez o encharquei com uma xícara de café quente ?comentou Mary levantando o queixo de maneira altiva. ?Mas em minha defesa alegarei que eu não tive a culpa deste acidente. Ele veio até mim e me insultou.
?O que lhe disse desta vez para irritá-la, senhor Wang? ?Perseverou o outro agente com voz cansada enquanto o ajudava a levantar-se.
?Gorda e rameira ?a vendedora interveio. ?Assim a chamou diante dos meus clientes.
?Maldito bastardo! ?Philip deu um passo em direção a ele. Mas não podia chegar perto tudo o que ele desejava porque Thomas agiu rapidamente e ficou entre os dois.
?Muito obrigada pela ajuda ?Mary murmurou com sarcasmo à vendedora.
?De nada, senhorita. Nós mulheres devemos nos apoiar diante deste tipo de monstros ?a jovem disse sem perceber o tom acusatório de sua voz.
?E bem? ?Thomas perguntou a Wang. ?Tem algo a alegar?
Wang, que já estava segurando a roupa suja em um braço, retirou o sangue que saía do nariz com a manga esquerda da camisa e olhou para o seu agressor, depois para Mary, depois para as pessoas que se reuniram ao redor dele e terminou por encarar o agente que insistia em descobrir o que aconteceu. Ao deduzir que havia certa camaradagem entre lorde Giesler e os agentes, pela maneira como se cumprimentaram, determinou que a melhor maneira de resolver o problema era falar com alguma eloquência, mas sem esquecer seu objetivo: humilhar a sabe-tudo Moore.
?Só um infeliz incidente que foi mal interpretado com demasiada rapidez ?ele começou a dizer enquanto sacudia a poeira de suas roupas. ?Devo confessar que, desde que me tornei um médico qualificado, fiquei obcecado em encontrar um local adequado para cuidar de meus pacientes. ?Ele sorriu tanto que todo mundo admirou seus dentes brancos manchados de sangue. ?Por esse motivo caminhava distraído. Estava concentrado nesse edifício aí quando me topei com a senhorita Moore. Ela, que tinha comprado uma xícara de café, tampouco advertiu minha presença e quando se virou, derramou sem querer esse líquido quente sobre minhas roupas. Como não queria me queimar, porque as feridas de uma queimadura são terrivelmente dolorosas, tirei minhas roupas manchadas. Naquele momento, todos os presentes começaram a gritar, talvez pensassem que a puniria por um ato que, sem dúvida, ninguém poderia prever. No momento em que a Srta. Moore e eu íamos pedir desculpas, lorde Giesler apareceu perguntando o que estava acontecendo. Quando me virei para responder, tropecei em uma pedra e caí de bruços na calçada. Portanto, tenho rosto inchado e o nariz está quebrado e sangrando. ?comentou sem apagar um repugnante sorriso de sua boca.
?Então... não há nenhum caso? Não registrará uma denúncia? ?Thomas insistiu, que aceitou a história sem discordar porque libertaria seu amigo de ficar na prisão por algumas horas.
?A quem? ?Wang perguntou antes de soltar uma risada, que parou rapidamente quando sentiu uma leve dor na mandíbula. ?Não há denúncia possível, agente! A menos que queira levar diante de um juiz a felicidade que enfrento desde que consegui me formar em medicina ?respondeu Wang olhando de relance para Mary, quem o observava com os olhos injetados em sangue.
?Nesse caso... ?o outro guarda disse ?não temos nada para fazer aqui, certo?
?Se eu ainda usasse o uniforme ?Philip disse a Thomas ?o escoltaria até sua casa. O estado de felicidade que diz viver pode lhe provocar outro desafortunado incidente e garanto que não gostará, ao futuro doutor ?respondeu com ironia?que sua cabeça sofra um golpe tão forte que esqueça tudo o que tem conseguido até o momento.
Mary suspirou surpresa ao descobrir que lorde Giesler também entendeu as palavras envenenadas de Wang. Assombrada, olhou-o com admiração durante uns instantes e um sentimento estranho brotou do mais profundo de seu ser. Em seguida, sentiu um tremor em seu estômago e concluiu, estupefata e prestes a desmaiar, que era a primeira vez que se orgulhava de conhecer um homem que não fosse seu pai. Não só adorou aquele ato brutal e primitivo de proteção, pensamento que meditaria quando chegasse em sua casa, mas que a encantou descobrir que, debaixo daquela longa mata de cabelos dourados, havia uma mente lúcida e sensata.
?Agradeço a sua preocupação ?Wang apontou com relutância. ?É verdade que um médico não pode tentar duas vezes a sorte... se quiser continuar sendo, claro. ?Sorriu novamente. ?Senhorita Moore... ?se dirigiu a ela com uma leve reverência e sem eliminar o sorriso ?Sinto muito tê-la assustado e espero que este pequeno desentendimento não a impeça de comparecer na próxima sexta-feira à assembleia.
?Claro que assistirei! ?Mary respondeu furiosa. ?Como bem afirmou, sou inocente e tem sido sua falta de jeito, uma condição que deve estudar se quiser se tornar um bom médico, a causa desse alvoroço.
?Giesler? ?Thomas perguntou-lhe para confirmar que ele também deu por encerrado a discussão.
?Sem problemas. Assim que o levarem, acompanharei a senhorita Moore a sua casa ?declarou se aproximando de Mary novamente.
?Uma vez que este assunto está esclarecido e resolvido, desejo a ambos um bom dia ?concluiu Thomas enquanto apertava de novo a mão de seu amigo e se despedia de Mary com um leve movimento de cabeça. Então ficou ao lado de Wang e, sob o olhar atento daquela multidão silenciosa, o acompanhou pela rua junto com seu parceiro.
CONTINUA
Capítulo IX
Mary sorriu quando Shals apareceu com a quarta xícara de café. Era a primeira vez que ela se sentia admirada e amada. Portanto, em nenhum momento disse algo que pudesse machucá-los, embora quisesse repreender mais de um por resmungar como uma criança pequena. Para ser honesta consigo mesma, ela começou a se sentir confortável com a atenção incontável que lhe mostravam.
A cozinheira, quando a Sra. Reform anunciou que, devido à hora, eles teriam que almoçar lá, lhe perguntou qual prato era o favorito dela, qual bolo ela queria e ordenou a um lacaio que pegasse o melhor vinho que lorde Giesler mantinha na adega. Uma das donzelas não deixou de elogiar a grande habilidade que suas mãos possuíam quando espalhou um creme sobre as fendas de seus antebraços. Para que deixassem de elogiá-la, disse que sua irmã Elisabeth havia feito a pomada com as flores que ela cultivava em sua estufa e contou, com orgulho sincero, as inúmeras qualidades que Eli possuía para criar novas flores e pomadas curativas. Quando chegou a vez do cocheiro, ele sorriu para ela. Então ele explicou que tinha um leve desconforto na garganta. Depois de inspecionar essa área, ela indicou que deveria tomar infusões com mel e que precisava abandonar o hábito absurdo de fumar. Logicamente, a segunda ordem não agradou o lacaio gentil que, depois de ouvi-la, enrugou a testa. No entanto, não respondeu. Fez uma leve reverência, como se fosse uma dama, e se foi. Mary temia que, quando saísse, aliviaria sua raiva com outro cigarro.
Valeria, depois de voltar da cozinha pela quarta vez, sentou-se ao lado dela e observou com expectativa o que estava fazendo. Ela a acompanhou em suas gargalhadas, apoiou sua repreensão e garantiu que todos seguiriam suas ordens.
?Prometi a você que não visitaria meus filhos, mas acho que essa opção foi pior. ?A senhora Reform comentou quando as duas ficaram sozinhas na sala, onde Mary decidiu acomodar suas consultas repentinas.
?Não precisa se desculpar pelo que aconteceu, garanto que foi a melhor coisa que aconteceu comigo em cinco dias ?comentou antes de pegar a xícara. Ela tomou um gole leve e fechou os olhos para apreciar o sabor delicioso.
?Juro que não sabia de nada e que tudo isso me surpreendeu tanto quanto você Valeria insistiu.
?Shals disse ao meu pai que, depois do que fiz com lorde Giesler, ninguém nesta casa procuraria outro médico para vê-los e, como vi, não mentiu. ?disse sorrindo e curiosamente feliz.
?Shals é um bom homem... ?Valeria refletiu. ?E teve muita paciência com meu irmão ?acrescentou.
?Não ficará com raiva pelo que fiz, certo? ?Mary de repente soltou, depositando a xícara na mesa.
?Quem? Meu irmão? ?Mary assentiu. ?Não, claro que não! Philip é incapaz de ser cruel com as pessoas que trabalham para ele! Ao contrário! Se não acredita em mim, pode perguntar a eles. ?Diante do beicinho de irritação que Mary fez, ela continuou: ?Não sei o que aconteceu entre vocês dois, mas tenho certeza que não foi agradável. De qualquer forma, eu gostaria que desse a ele uma chance para mudar sua opinião sobre ele. ?Pegou sua xícara e tomou lentamente, sem desviar o olhar da jovem. Ela parecia estar reconsiderando suas palavras. Mas, pela maneira como franzia a testa, a esperança de que esquecesse qualquer coisa negativa se dissipou. ?Como disse na noite em que nos conhecemos, meus irmãos e eu crescemos em Brink Lane. Nossos pais, depois de deixarem a Alemanha, se estabeleceram lá e sobrevivemos com o pouco que obtinham dos trabalhos que lhes confiavam ?começou a narrar com o objetivo de amolecer aquele coração duro.
?Deve ter sido muito difícil para seu pai se adaptar a uma vida de necessidades depois de ter nascido e criado como um barão ?Mary declarou, tentando não lhe causar muito dano diante da lembrança.
?Estava muito apaixonado pela minha mãe e isso era a única coisa que precisava até que morreu ?suspirou triste. ?Te contei que morreu em seus braços e que minha mãe não quis se afastar dele, pois acreditava que, a qualquer momento, acordaria?
E uma emoção estranha para Mary oprimiu-lhe o peito.
?Se amavam muito? ?Perguntou perplexa.
?Eu nunca vi um casamento que se amassem tanto, e isso que eu daria minha vida por Trevor. Onde quer que estejam, certamente nada e ninguém poderá separar esse amor intenso e verdadeiro.
E essa era outra razão pela qual nunca se apaixonaria. Ela, por decreto da sociedade, teria que ocupar um segundo lugar no casamento. Seria obrigada a deixar tudo o que amava para atender às demandas de seu marido. Tal responsabilidade, como sempre havia imaginado, a transformaria em uma desgraçada. Procuraria uma maneira de não ter filhos, para que eles não fossem os reflexos de sua tristeza. Não. Absolutamente, ela não se casaria jamais. Mesmo depois de sua mãe ter sofrido mil apoplexias quando presumiu que sua segunda filha tinha decidido ser uma solteirona.
?Como conseguiu superar sua morte? ?Disse depois de afastar rapidamente suas próprias suposições.
?Não superou ?Valeria respondeu se levantando da cadeira. ?Minha mãe morreu logo depois.
?Que doença tinha? ?Mary insistiu, também se levantando da cadeira.
?Tristeza. Uma que nenhum médico pode curar com medicamentos ou operações.
?Sinto muito... ?murmurou envergonhada.
?Não sinta, eu parei de fazer isso há muitos anos. Ela queria estar com ele, queria ficar ao seu lado e lutou até que conseguiu.
?Como sobreviveram? ?Perguntou e, em seguida, se arrependeu de fazê-lo.
Não estava ciente da dor que Valeria mostrava em seu rosto? Por que insistia? Estava interessada em saber que vida lorde Giesler teve no passado? Não podia imaginá-lo mendigando nas ruas! Era tão... e se mostrava com tanto... Impossível!
?Ainda estou me perguntando. Talvez eles se tornaram nossos anjos da guarda e fizeram tudo o que puderam para que seus filhos vivessem, ou talvez o destino teve piedade de três pobres órfãos. ?Ela deu de ombros e, apesar da tristeza que sentia quando se lembrava daqueles anos, esboçou um sorriso. ?Quem sabe o que a vida nos reserva, Mary? Hoje pensa uma coisa, amanhã surge outra e, quando abre os olhos no terceiro dia, decide algo que não pensava antes.
?Bem, nisto tem razão. No entanto, tenho que lhe dizer que não há dia em que eu acorde e confirme um pensamento ?comentou, finalmente esboçando um grande sorriso.
?Qual? ?Valeria quis saber enquanto caminhavam em direção à porta.
Estava na hora de Mary visitar seu irmão. Se não estava enganada logo começaria a chamar Shals para perguntar se tinha notícias dela. Como agiria ao vê-la? Ele ficaria perplexo? Pensaria que estava vivendo um sonho? O que quer que fosse, apenas esperava que se lembrasse de que sua amada irmã a levara até ele e que a questão do baronato ainda estava pendente.
?Quer saber qual é a única ideia que consolidei ao longo dos anos? ?Mary respondeu com diversão.
?Sim.
?O de não procurar um marido. Nenhum homem será bom o suficiente para...
Não terminou sua estudada e perfeita exposição, pois, ao sair no corredor, observou que Shals subia e descia indeciso as escadas.
?Shals? ?Ela perguntou andando com firmeza em direção ao homem. ?O que aconteceu?
E a resposta foi dada pela voz de um Titã mal-humorado.
?Maldito seja! Ficaram surdos? ?Ouviu tão claramente que parecia que lorde Giesler estava ao seu lado.
?É um asno! Mas que modos são esses? ?Com raiva, arregaçou as mangas do vestido e subiu as escadas. ?Darei a ele a bronca que merece! Como pode ser tão insolente?
?Senhora... Faça algo! ?Shals pediu suplicando a Valeria. ?Não pode aparecer assim! Vai matá-lo!
?Seus planos e os meus não são os mesmos? ?Valeria perguntou com um sorriso de orelha a orelha.
?Senhora... não sei a que se refere? ?O mordomo abaixou ligeiramente a cabeça.
?Shals... você não tem por que se envergonhar. Eu li em seus olhos quando você a viu chegar. Você, tal como eu, quer que a Srta. Moore repare no meu irmão, certo?
?Senhora, tenha certeza que sim. Mas não acho que goste muito da ideia que tem a senhorita Moore agora mesmo sobre... reparar no meu senhor ?comentou com medo.
?O que você aposta que o deixa tão manso quanto um cordeirinho?
?Jamais apostarei com a esposa do antigo dono de um clube! ?Shals exclamou com aparente raiva.
?Porque sabe que perderia... certo??Insistiu, estreitando os olhos.
?Até os cílios, senhora Reform! Com você, perderia até os cílios! ?reiterou antes de seguir para a cozinha.
Valeria olhou para o primeiro andar. Mary já havia se virado para o corredor. Temia que a vida entediante de seu irmão cessasse no momento em que ela abrisse a porta e... que coincidência inoportuna que Mary o visitasse justamente quando todos tinham tarefas importantes a fazer! Pena que eles não pudessem estar presentes! Que pouco decoro! Uma mulher solteira ficar dentro do quarto de um homem... nu! O que pensariam da hospitalidade dos Giesler?
Sorriu de orelha a orelha, apertou os punhos em sinal de vitória e virou-se para a cozinha.
***
Todos os palavrões que decidiu soltar quando abrisse a porta desapareceram instantaneamente. Mary soltou abruptamente o ar que continha seus pulmões e fechou a boca com força. Ficou imóvel, paralisada da cabeça aos pés quando o viu em pé, de costas para ela. O quarto estava iluminado, porque alguma donzela abriu as cortinas e as janelas, permitindo-lhe observar claramente o quarto. Uma brisa suave, produzida pela corrente entre a porta e a janela, a recebeu assim que chegou. Mas ela não prestou atenção em como as belas cortinas se moviam, ou como a luz do sol refletia no espelho colocado em uma cômoda grande, ou se os móveis eram escuros, foscos ou devorados por cupins. Seus olhos focaram apenas nele, fazendo com que uma voz em sua cabeça evocasse a palavra perigo. Tudo o que tinha pensado gritar-lhe enquanto chegava desapareceu instantaneamente. Que palavras tinha escolhido? Que insultos lhe ocorreram? Nada. Ela não se lembrava de nada... No profundo suspiro que deu logo que o viu, a mulher enfurecida desapareceu, a pessoa que tinha infinitos palavrões mentais e, e em seu lugar se acomodou uma mulher que não podia afastar os olhos de um homem por sentir... desejo. Seu coração acelerou tanto que podia sair do peito, sem ter que usar um bisturi para abri-lo. Um calor raro subiu do centro das pernas para as bochechas, transformando-as em duas chamas de fogo. Respirou fundo para aplacar aquela emoção incomum. Não conseguiu. Seu batimento cardíaco ainda estava acelerado, suas bochechas continuavam acesas e a leve dor abdominal, que lembrava a que sofria toda vez que ia dormir sem janta, ficou mais torturante. Ela o comparou com o chefe de uma tribo da pré-história? Bem, essa ideia ainda era verdadeira. Concluiu que se tivesse vivido na era grega, lorde Giesler teria sido o muso de inúmeros escultores? Bem, isso também seria verdade. Mesmo que não quisesse reconhecê-lo, embora negasse essa ideia pelo resto da vida, morreria sabendo que esse homem era o único no mundo que lhe causava algum interesse pecaminoso. Que mulher seria incapaz de admitir que não sente atração por esse corpo? Era um espécime perfeito: suas pernas eram fortes e longas, assim como seus braços e ombros. Ele tinha uma cintura estreita, como os quadris. Que, felizmente para ela, permaneceram escondidos sob os calções. Disse que era perigoso? Bem, confirmava. Esse homem emanava perigo, não para os outros, mas apenas para ela, porque a atração por ele se tornava mais intensa, menos suportável. Deu um pequeno passo entrando no quarto, rezando pela primeira vez em sua vida ao Deus em que todos acreditavam, para que se virasse e quebrasse seu mutismo absurdo, seu encantamento, o feitiço... Mas ele não fez isso. Somente quando percebeu que se inclinava um pouco para a frente e colocava as mãos no curativo em volta da cintura, como se fosse uma faixa bonita, aquele bom senso, que saíra de sua cabeça, voltou a avisá-la de que o lorde estava prestes a realizar o maior disparate do mundo. Ela franziu a testa, como havia feito durante a subida nas escadas e na pequena corrida pelo corredor, e finalmente ela pôde gritar:
?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa.
?Mary? ?Giesler perguntou atordoado quando se virou muito lentamente em sua direção.
Mary engoliu em seco enquanto contemplava aquele rosto masculino. Ele estava sorrindo. Sim, seus lábios esboçaram o sorriso mais maravilhoso do mundo e, embora nunca tenha imaginado que a receberia com entusiasmo, porque ninguém no mundo, exceto sua família, a recebia com amor, ele estava fazendo isso. Havia visto alguma vez uma boca tão bonita, tão gloriosa? E para sua perdição e deleite, havia descoberto a suavidade daqueles lábios...
?Senhorita Moore.?O corrigiu, adotando a postura de uma mulher fria. ?Lembro-lhe que não deve me tratar com tanta familiaridade, lorde Giesler ?Acrescentou andando altivamente em direção aos pés da cama. Ela colocou as duas mãos na cintura e olhou para ele como se quisesse lhe arrancar os olhos. ?Que diabos está fazendo? Que parte de... “não deve se mexer”, não entendeu? Por acaso ficou surdo? Talvez seja por isso que pensa que seus fiéis funcionários estão ?garantiu com firmeza.
?Mary... ?sussurrou repleto de felicidade, como se ao seu lado estivesse um anjo iluminado por uma luz divina, em vez de uma mulher que o ameaçara lhe dar outro grande tapa. ?O que faz aqui? Como você está?
?Definitivamente... está surdo! ?Explodiu, revirando os olhos. ?Explodiu, revirando os olhos. Disse para não me chamar pelo meu nome e não preciso que se preocupe comigo, é você quem deve permanecer deitado na cama.
?Pretendia... ?Philip começou a dizer enquanto tentava se sentar novamente, um ato que o fez rosnar de dor.
?Maldição! ?Exclamou Mary indo em sua direção o mais rápido possível.
Sem pensar duas vezes, segurou os braços de Philip com força e o ajudou a se sentar o mais devagar possível. Depois que ele conseguiu, levantou as pernas e as estendeu no colchão. Quando se virou para ele, para gritar com ele até ficar sem voz, ficou sem palavras novamente, pois descobriu que os olhos azuis do lorde brilhavam, como se os raios do sol que passavam pela janela os impactassem neles. Seu rosto, recém barbeado, o tornava mais atraente, como se fosse possível, e seu cabelo não era mais escuro, mas brilhante e... lindo. Desviou o olhar quando uma rara dor no estômago a trouxe de volta ao mundo frívolo da sensatez. Não devia se deixar levar por atrações absurdas, nem por deslumbramentos miseráveis. Era uma Moore da cabeça aos pés e nela não podia surgir algo tão absurdo quanto o desejo por um homem!
?Segundo entendi, sua melhora é notória. Quer que todos os avanços que teve durante estes cinco dias retrocedam por tentar caminhar sem ajuda? ?Comentou com um tom menos rude enquanto lutava para acomodar as pernas que já estavam bem colocadas.
Aquilo que cheirava era loção de barbear ou perfume? Estava prestes a fechar os olhos e inspirar profundamente, mas a sensatez agiu novamente. Ela se afastou um pouco e, com as pontas dos dedos, pegou a parte de baixo do lençol para estendê-lo até cobrir o queixo. Quanto menos pudesse observar, menos tentação sentiria. Porque aquele corpo fazia seu sangue ferver, pensar em coisas impuras e, acima de tudo, a fazia perder a cabeça. Pelo menos, quando sua mãe a repreendesse por se colocar em outra situação comprometedora, podia se defender dizendo que ela o havia coberto e que ele estava usando calções que escondia seus atributos masculinos.
?Pensei que tinha perdido o interesse em mim ?Philip apontou em uma voz queixosa enquanto afastava o lençol.
Queria sufocá-lo? Porque teve essa impressão ao ver como tentava cobri-lo até o pescoço. Ou talvez houvesse outro motivo menos... sinistro? Suportou uma risada repentina e, muito lentamente, se descobriu até a cintura, exibindo a imagem completa de seu peito robusto. Queria descobrir o que havia se perguntado tantas vezes. Mas o leve sorriso, que foi incapaz de esboçar, se dissipou quando viu que ela estava voltando para o pé da cama e ainda demonstrava repulsa. Tão desagradável estava?
?Deixei-o em boas mãos, milorde. Meu pai, caso não se lembre, tem a habilidade de curar pessoas ?respondeu.
?Mas você me operou e, segundo entendi, lutou contra todos aqueles que se opuseram para não me deixar morrer ?contestou.
?Sou... como diria? Uma pessoa de bom coração? ?Respondeu, colocando as mãos no dossel de madeira.
Por que não conseguia parar de olhar para os lábios dele? Sua parte insensata queria senti-los novamente? Quantas vezes relembrou aquele momento? Um milhão? E, quantas vezes disse a si mesma, que o tapa havia sido a melhor coisa que tinha feito em sua vida? Uma, talvez? No caso hipotético de que estivesse pensado, pois não tinha mais certeza se o fez durante o confinamento forçado. Contou teias de aranha ou enumerou todos os possíveis defeitos de lorde Giesler? E por que sua mente não parava de imaginar como teria sido um beijo mais intenso? Essa pergunta aumentou muito seu desejo carnal... Maldita fosse, a parte primitiva do ser humano! Haviam construído grandes edifícios, navios para viajar de um continente a outro, chapéus horríveis com penas de pavão, mas... haviam conseguido fazer desaparecer o instinto carnal absurdo com o qual todo ser humano nascia? Não! As pessoas ainda eram primatas movidos por uma necessidade sexual absurda...
?O que tem, Mary ?enfatizou seu nome, embora ela não gostasse de ouvi-lo dizer. ?É uma habilidade mágica. Agradeço a Deus todos os dias pelo fato de aparecer e ter decidido salvar minha vida. ?Ele declarou com toda a sinceridade que podia oferecer naquele momento, porque sua mente procurava palavras que a deixassem orgulhosa enquanto um desejo masculino lutava para tirá-lo da cama, pegá-la nos braços, apoiá-la contra a parede e beijá-la com tanta paixão que os dois ficariam sem respiração.
?Não... Não deve... me dizer essas coisas, milorde.
Gaguejava? Ela?! Por que diabos fazia isso? Os servos não haviam oferecido milhares de elogios? Não começava a se acostumar com esses elogios? Então... por que ela se sentiu tão intimidada ao ouvir isso dele? E, naquele momento, toda a força, toda a raiva e toda a firmeza que sentia sempre que corria perigo, desapareceu como a neblina quando o sol aparece. Tinha que sair de lá o mais rápido possível. Até o ar parecia mais denso que nem conseguia respirar! Havia prometido a Valeria que iria visitá-lo, pois faria isso. Confirmaria o bom trabalho de seu pai e sairia mais rápido do que quando entrou.
?É verdade ?Philip garantiu, e não passou despercebido que, pela primeira vez desde que a conhecia, o escudo que protegia a mulher que ele desejava descobrir, desapareceu. ?É uma mulher engenhosa, corajosa e incrível. Uma mulher a quem devo minha vida ?garantiu solenemente. ?Estou em dívida com você. Pode me pedir o que quiser que encontrarei uma maneira de consegui-lo.
?Peço a lua, lorde Giesler ?disse.
Se recuperou o mais rápido que pôde para não mostrar uma imagem que estava escondendo desde que descobriu a maldade das pessoas. Ela não sofreria como Anne ou Elizabeth. Ela era diferente!
?Prometo que vou alcançá-la... ?Ao tentar se reclinar, outra cãibra terrível o nocauteou. Ele jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e respirou fundo.
?Relaxe, por favor ?lhe pediu em voz baixa quando veio até ele. ?Não deve fazer esforços desnecessários ?acrescentou, enquanto colocava as duas mãos sobre o curativo e apalpava lentamente para confirmar que não havia umidade.
?Me pediu a Lua, Mary Moore Arany, e eu juro que te darei ?comentou, sem abrir os olhos. Não queria assustá-la, não queria que se afastasse do seu lado e se para isso tivesse que ficar doente a vida toda, que Deus o concedesse!
?Estou satisfeita em poder comprar as publicações médicas que o Sr. Slow terá guardado para mim ?sussurrou, enquanto tomava a decisão de remover o curativo e confirmar que a ferida ainda estava fechada.
Olhou em volta e franziu o cenho. Onde diabos estava sua maleta? Era mais fácil para ela cortá-lo com a tesoura do que desembaraçá-lo gradualmente porque, dessa forma, ela precisaria tocá-lo, precisaria se aproximar o suficiente para poder inspirar aquele cheiro muito atraente para ela e que... Não havia lido em algum volume científico que o ser humano descobria a atração por uma pessoa simplesmente pelo cheiro? Bem, se essa teoria era verdadeira, tinha que concluir que não era ódio que sentia por lorde Giesler, mas... Algo mais próprio das Arany do que dos Moore! Irritada consigo mesma, desamarrou o nó que seu pai havia feito com as pontas do curativo e desenrolou-o com os olhos fechados. Enquanto não olhasse, a situação estaria sob controle...
?Por que não saiu de sua casa durante esses cinco dias?
A pergunta fez Mary abrir os olhos e olhá-lo ferozmente. Ele queria rir dela? Queria ridicularizá-la? Porque se lhe dissesse o motivo, nenhuma humilhação passada seria tão imensa quanto a que ela sofreria no presente. No entanto, ao descobrir que ele não a olhava, que mantinha seus cílios louros preciosos e longos unidos, relaxou e continuou a tarefa, envolvendo-se novamente em um estado de bem-estar ilógico para ela.
?Esteve doente? ?Insistiu em descobrir.
?Não ?respondeu.
?Então? ?Entreabriu o olho esquerdo e sorriu ao observar a raiva que exibia seu rosto. Não entendia muito bem se era devido à pergunta ou à repulsa diante da sua proximidade. Se fosse a segunda opção, ele estava morto. Porque, ao contrário de Mary, ele estava voando sem asas e pisando nas nuvens sem atravessa-las. Como o resto da humanidade definiria uma emoção semelhante?
?Estava de castigo ?finalmente declarou. Fixou os olhos no peito de Giesler, tentando definir se sua respiração ficaria agitada ao segurar uma risada. No entanto, permaneceu sereno, calmo e isso a incentivou a continuar: ?Minha mãe não achou engraçado que sua segunda filha, quem ela queria ver casada um dia, operasse um homem solteiro enquanto ele estava nu.
Ele ainda estava calmo, como se suas palavras não o afetassem. Ele não soltaria uma risada ou zombaria disso? Apoiaria a decisão de sua mãe? No entanto, quando colocou sua mão direita sobre o lado, para realizar um leve puxão e tirar o resto do curativo, observou que estava fingindo essa tranquilidade, já que seu batimento cardíaco era tão rápido quanto o dela. O que essa alteração significava? Concordava com o castigo ou se sentia culpado?
?Explicou que me deixou dormindo, que sua raiva não tinha raciocínio lógico? ?Ele perguntou, suportando estoicamente a dor que apareceu em seu peito quando descobriu que Mary havia sido injustamente punida por causa dele.
?Sim ?respondeu pouco antes de se ajoelhar para poder observar, de uma posição mais próxima, a ferida.
Como o pai lhe explicou, a sutura foi excelente. Ele mal teria uma linha branca fina no futuro. Sem dúvida, essa costura, apesar dos nervos que sofreu, era perfeita, como se estivesse costurado a vida toda. De repente, ela começou a rir enquanto deduzia a razão pela qual sua mãe havia levado o bastidor, os fios e o enorme tecido para o seu quarto.
?O que é tão engraçado, Mary? ?Philip estalou movendo-se suavemente para observá-la melhor.
?É incrível! ?Exclamou, incapaz de parar de rir. ?Só ela pode inventar uma tolice semelhante!
Intrigado, Philip queria se virar para Mary, mas ela o impediu, colocando novamente uma de suas mãos no centro daquele peito masculino e largo.
?Não se mexa, milorde. Agora é muito perigoso ?ela pediu, com uma voz suave.
?Então me responda ?ele implorou, num tom tão suplicante que Mary sentiu o desejo de abandonar toda a frieza que ela havia decidido mostrar, sentar ao lado dele e conversar como se fossem dois bons amigos.
?Já lhe disse que estive de castigo... ?começou a dizer.
?E que o motivo foi injusto porque, apesar de me ver nu, eu estava inconsciente e não era perigoso para você ?a interrompeu.
?Você não é perigoso, lorde Giesler, mas arrogante ?declarou, com um sorriso de orelha a orelha.
?Bem! Acaba de destroçar meu ego, Mary Moore Arany! ?Ele exclamou, colocando as mãos no peito. Ele a tocou. Havia chegado perto o suficiente daquela mão macia para roçar seus dedos suaves. Mas, para sua decepção, ela a afastou rapidamente. ?Tantos anos pensando que sou irresistível para as mulheres e agora acontece que alguém me garante que não sou tão sedutor quanto acreditei durante todo esse tempo ?acrescentou ironicamente.
?Vi muitos homens que...
?Quantos? ?Perguntou, arregalando os olhos e se levantando.
?Não vai me ouvir? ?Respondeu assim que jogou o curativo em algum canto do quarto. Se levantou do chão e colocou as duas mãos no peito de Giesler, para forçá-lo a se reclinar novamente na cama.
«Maldita insistência!» Mary pensou ao sentir como suas mãos aumentavam de temperatura, ao perceber a aspereza daquele pelo masculino e perceber que a respiração de lorde Giesler estava alterada, como se ele tivesse corrido atrás de um galgo.
?Quantos homens você viu nu, Mary Moore Arany? ?Insistiu, entrelaçando os dedos de cada mão nos pulsos dela.
?Isso importa para você, lorde Giesler? ?Se aventurou a dizer.
De repente, ela sentiu que os polegares do homem acariciavam aquela parte de sua pele, queimando-a sem compaixão. Queria se afastar, queria se distanciar, precisava evocar seu bom senso! Mas... não podia. Ele arrebatou toda a força que teve até agora, deixando-a vulnerável, fraca.
?Sim, me importa ?Philip sussurrou enquanto fixava os olhos naqueles belos lábios vermelhos.
?Por quê? ?Mary insistiu em uma voz que não podia reconhecer como sua.
?Porque quero saber quantos homens duelarei em breve ?afirmou antes de agarrar com força os pulsos e estendê-los para ambos os lados, fazendo com que ela caísse de bruços sobre ele. Com tão bom acerto que aquela preciosa boca impactou sobre a sua.
Antes que Mary tivesse tempo suficiente para reagir, Philips soltou os pulsos. Ele colocou uma mão atrás da nuca e a outra nas costas dela, imobilizando-a. Seus maravilhosos olhos azuis a observavam incrédulo e parecia que saltariam de suas orbitas. Ele hesitou. Por um segundo, duvidou da decisão que havia tomado, mas imediatamente a apagou da sua cabeça. A amava, desejava, precisava e queria que ela fosse... sua. Lentamente, ele pressionou seus lábios nos dela, pedindo-lhe para separá-los, mas Mary não entendeu bem o propósito que se havia definido. Ninguém a beijou com paixão? Mary foi sincera? Que Deus se compadecesse de sua alma perdida porque iria desfrutar muito ensinando-lhe o que significava a palavra prazer!
Atordoada não era a palavra que a definia exatamente. Nem mesmo outra poderia descrevê-la perfeitamente! Sua boca pressionava a dele, notava o calor do ar que fazia ao respirar tocar suas bochechas e percebia, com incrível precisão, como os batimentos de seu coração e os do lorde palpitavam juntos. Tentou se separar quando suas mãos ficaram livres, mas não conseguiu se mexer. Aquele perverso colocou uma de suas grandes mãos na nuca e a outra nas costas, impedindo-a de fazer qualquer movimento para se distanciar. Em pânico, ela abriu os olhos e tentou gritar, no entanto, algo aconteceu que a deixou tão confusa que a silenciou. Esse algo tinha um nome: língua. A ponta desse órgão muscular masculino tocou seus lábios, incentivando-a a separá-los. O que se propunha? O que devia fazer? Poderia considerar esse momento como um teste médico? Oh sim! Claro! E o adicionaria a qualquer manual sobre as interações sexuais entre um homem e uma mulher! Apertou os lábios com força, certificando-se de não deixar a língua ousada e descarada passar.
No entanto, essa ideia firme foi suprimida de sua mente quando as pontas dos dedos, colocadas em seu pescoço, começaram a acariciá-la lentamente. Encantada por essas carícias suaves, seu corpo relaxou e mergulhou em um improvável estado de bem-estar. Era consciente de como seus pelos se arrepiavam, como o calor nascido em seu sexo aumentava e como todo o seu ser ansiava por algo que ela nunca havia provado. Pela primeira vez, ela estava em um estado de fluidez e despreocupação, como se aquele homem a mantivesse protegida, segura e não existissem problemas a enfrentar. Havia apenas eles... dois. Lorde Giesler aproveitou esse momento de embriaguez erótico para invadir o interior da boca dela. Aquela língua masculina a possuiu, a acariciou com anseio, com desejo e com tanta paixão que finalmente fechou os olhos e se deixou levar. Nunca imaginou que uma coisa tão ridícula pudesse provocar algo tão grandioso! Agora entendia a razão pela qual Anne havia sucumbido com tanta facilidade. Se um homem a tivesse beijado dessa maneira, nada e ninguém a impediria de acabar consumindo a paixão iniciada. De repente, ouviu um rugido brotar da garganta masculina. Quando tentou se concentrar no motivo pelo qual fez esse som, outro saiu ainda mais alto. Se lorde Giesler tivesse sido o chefe de uma tribo, esse som poderia defini-lo como um chamado de posse, territorialidade, orgulho e glória, tornando-a sua única companheira de vida. Mas... Isso devia ser uma tolice, certo? Ele não podia reivindicá-la como sua, não havia nada científico que pudesse explicar tal suposição.
No entanto, mesmo que tudo fosse imaginário, era bonito deixar seu corpo relaxar e ser enganado acreditando que sua casa estava nos braços daquele homem. Um lar fictício, é claro, pois ela nunca pensou em morar naquele corpo masculino. Com coragem e vontade de experimentar, ela imitou os movimentos da pecaminosa língua viril até que ambas se encontraram. O sabor do café, que havia tomado antes de subir, se expandiu pelas bocas. Era como se estivesse tomando novamente um gole daquele líquido delicioso adoçado com o sabor rico dele. Foi nesse momento que admitiu com resignação que nunca mais tomaria um café tão gostoso e excitante. Os beijos eram sempre assim? Davam tanto prazer as duas pessoas? Porque não queria parar, era mais, doía ter que fazê-lo, mas a necessidade de respirar se tornou inegável. Quando abriu os olhos, notou que as pupilas de lorde Giesler haviam se dilatado e que suas íris estavam escuras, expressando um sentimento muito diferente da indiferença...
No momento em que sua mente começou a enumerar as possíveis razões pelas quais ele a olhava com tanto ardor, ele pegou seu rosto com as duas mãos e aproximou-o o suficiente para notar novamente o calor da respiração e a suavidade dos seus lábios.
?Vou te dar a lua, Mary ?ele declarou antes de beijá-la novamente e repetir um beijo atrevido, ousado, indecente e maravilhoso.
Mas tudo o que é belo não dura para sempre...
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou Shals batendo à porta com insistência.
?Não! ?Ele respondeu.
?Sim! ?Ela disse, se afastando rapidamente do seu lado.
Capítulo X
Ele devia lealdade ao seu senhor...
Desde que o contratou, catorze anos atrás, ele nunca o deixou indefeso e nessa ocasião também não o faria. Ele saiu da biblioteca, onde havia se escondido os últimos dez minutos para evitar encontrar a Sra. Reform e, depois de confirmar que não havia ninguém, caminhou rapidamente pelo corredor. Ele carregava a maleta da senhorita Moore na mão direita, essa era a desculpa que daria quando aparecesse no quarto. Depois de confirmar o estado de seu senhor, a agonia que estava sofrendo desde que a jovem subiu as escadas, pronta para colocar lorde Giesler em seu lugar, desapareceu. Com a agilidade de um ladrão habilidoso e um sorriso de satisfação que cruzava seu velho rosto, Shals começou a subir as escadas, fazendo o menor ruído possível. No entanto, seus olhos se arregalaram quando ouviu alguém bater na porta. Ele esperou o tempo suficiente, plantado lá, para confirmar que, exceto ele, ninguém mais ouvira as batidas insistentes da aldrava na madeira. Ele bufou, pois seu dever como mordomo principal o acusava de não cumprir a tarefa que lhe fora confiada. Pôs a maleta no degrau e recuou tudo o que lhe custara tanto. Parou em frente à entrada, esticou o colete de seu traje e mostrando a severidade própria do homem de confiança do lorde, abriu.
?Shals! Ainda bem que me ouviu! Estou há mais de cinco minutos batendo na porta! ?Martin disse enquanto tirava o casaco para oferecer a ele.
?Sinto muito, senhor, mas hoje temos a casa um tanto agitada ?comentou como um pedido de desculpas.
?Philip tem piorado? ?Ele perguntou inquieto olhando para o andar de cima enquanto tirava as luvas.
?Não, para alívio de todos nós, nosso senhor está muito bem ?explicou depois de pendurar o casaco de Martin no cabide e colocar as luvas na gaveta da cômoda da entrada. ?A causa da agitação se deve a...
?Martín! ?Valeria gritou quando apareceu no corredor. ?Que alegria vê-lo novamente! Desde quando está em Londres? Por que não veio me visitar? Esqueceu que tem seis sobrinhos esperando a presença de seu tio favorito? ?Acrescentou antes de envolvê-lo em um forte abraço maternal.
?Cheguei há alguns dias, peço desculpas por não ter aparecido em sua casa neste momento, mas tinha um assunto importante para resolver e não podia atrasá-lo ?desculpou-se, esboçando o sorriso mais terno e mais doce que um irmão que amava sua irmã poderia mostrar.
?Que assunto? ?Valeria entrelaçou seu braço esquerdo no direito de Martin.
?Falaremos depois disso, se não se importar. Eu gostaria muito que Philip estivesse presente quando oficializasse.
?Vai casar? ?Perguntou erguendo as sobrancelhas. ?Você conheceu uma mulher?
?Realmente pensa que sou incapaz de tirar os olhos dos livros? ?Perguntou com aversão.
?Eu não disse isso! Sei que, quando fizer isso, levantar seus olhos bonitos dos livros, encontrará a mulher que espera e nesse dia...
Shals aproveitou a distração dos irmãos para subir as escadas novamente. Teria que acabar com a agonia que sofria por não saber o que estava acontecendo no quarto do lorde. Ele precisava confirmar que a Srta. Moore não tinha gritado com ele, cuspido ou... matado. Daí que permanecessem em silêncio absoluto. Ele pegou a maleta e subiu os últimos degraus. Caminhou pelo corredor o mais rápido que seus pés o permitiam e, quando alcançou a porta do quarto do senhor que estava aberta, ficou surpreso ao ver a imagem que era oferecida lá dentro. Eles não eram capazes de ver a imagem que mostravam, pois ambos tinham os olhos fechados. Mas ele foi a única testemunha de um milagre. Em silêncio observou-os com tanto afeto que sentiu como seu coração lhe dava uma reviravolta. Seu senhor, o homem que negava o amor, dizendo que só podia trazer tragédias desastrosas ao mundo, aninhava o rosto da senhorita Moore em suas grandes mãos, enquanto as dela repousavam pacificamente em seu peito nu, como era habitual desde que adoeceu. A janela permanecia aberta, talvez Phiona a abriu ao amanhecer, para que o senhor admirasse o belo dia. No entanto, a beleza de fora era mínima se comparado a imagem dos dois. A brisa movia levemente as cortinas, a luz do sol atingia os dois, como se todos aqueles elementos naturais quisessem glorificar um momento tão bonito.
?Vou te dar a lua, Mary ?Lorde Giesler disse à mulher antes de beijá-la.
Ele poderia ter se virado e desaparecido sem ser visto ou ouvido, mas a voz da Sra. Reform indicava que os irmãos de seu senhor estavam indo visitá-lo. Deu um passo à frente, pegou na maçaneta com a ponta dos dedos e fechou a porta até ficar apenas uma pequena abertura. Essa opção seria mais adequada que apresentar-se sem avisar e fazer com que a senhorita Moore se encontrasse em um grande apuro. Seus lábios permaneceriam selados, embora jamais esqueceria o brilho que seu amo mostrou nos olhos ao olhá-la, nem a declaração dessas palavras tão firmes e seguras. Tinha se apaixonado. Finalmente! E de uma mulher que todo o serviço adorava, apesar de ter um comportamento tão áspero quanto a lixa de um ferreiro. Ele olhou para trás para garantir que a visita prematura chegasse ao patamar no primeiro andar. Que lorde Giesler o perdoasse, mas era mais sensato pôr um fim àquele momento romântico do que serem encontrados daquela maneira. Ele agarrou a maleta com força, colocou os nós dos dedos da outra mão na porta e bateu quase sem movê-la do lugar.
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou.
?Não! ?Ele gritou.
?Sim! ?Disse ela.
?Desculpe pela interrupção, excelência ?Shals comentou entrando rapidamente no quarto ?mas presumi que a senhorita Moore precisasse de sua maleta.
?Obrigada, Shals ?a jovem respondeu, depois de alisar as rugas do vestido com as mãos, ela sorriu e estendeu a palma da mão para pegar a maleta. ?Você é muito atencioso ?acrescentou se virando.
Colocou-a sobre a mesa pequena que estava ao seu lado e suspirou. Suas bochechas ainda estavam ardendo, seu coração ainda estava acelerado e suas mãos tremiam. Como foi capaz de enredar os dedos na alça da maleta se não podia controlá-los? Olhou para fora e uma brisa leve acalmou aquele estado de excitação que havia liberado segundos antes. Não podia acreditar no que tinha feito. Não apenas se deixou levar por um beijo, mas também ansiava por mais. Odiou o momento em que escolheu usar um vestido de mangas compridas, porque seus antebraços não podiam tocar o peito masculino, amaldiçoou o momento em que a costureira indicou que o decote era apropriado, porque queria descobrir se lorde Giesler gostaria de ver seu peito, como ela gostava de observar o dele, e estava com raiva de si mesma por não ser capaz de parar aquela situação.
?Milorde, desejo anunciar que seu irmão decidiu visitá-lo esta manhã ?prosseguiu falando o mordomo, que se colocou em frente aos pés da cama. ?E que aparecerá com a senhora Reform em breve...
?De fato, Martin, —disse Valeria, ao entrar no quarto. —A Srta. Moore decidiu visitar nosso irmão e confirmar que ele evolui satisfatoriamente.
Naquele momento, Mary queria pular pela janela e correr sem olhar para trás até chegar em casa, mas tudo o que fez foi respirar fundo, dirigir-se às pessoas que entravam no quarto e mostrar seu melhor sorriso.
?Mary, tenho a grande honra de apresentá-la ao nosso irmão mais novo, Martin Giesler.
Antes que ela pudesse dar um passo em direção a eles, o jovem, que se parecia muito com lorde Giesler, exceto que usava óculos e sua compleição era menos robusta, avançou em direção a ela, pegou uma das mãos e beijou os nós dos dedos.
?Cara Srta. Moore, é um prazer finalmente conhecê-la. Quero agradecer pessoalmente pelo fato de ter salvado a vida de meu irmão. ?Disse num tom gentil.
Com essas palavras muito cordiais e afetuosas, Mary corou, piscou várias vezes e deu um sorriso coquete. Enquanto isso, Philip estendeu a mão direita até encontrar o livro, que tentava ler até decidir se levantar, e pensou em jogá-lo em Martin. Mas ele se conteve. Seu irmão não era um rival para ele, certo?
?A honra e o prazer são meus ?ela respondeu com alguma timidez. Deu um passo atrás para manter distância e agarrou suas mãos.
?Porque motivo? ?Ele retrucou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?É uma grande satisfação para mim que um homem com seu talento me parabenize.
?Com meu talento? ?Martin insistiu, erguendo a sobrancelha direita.
?Sua fama é notória em toda a Inglaterra. Não há ninguém neste país que não tenha lido e admirado sua última publicação. Devo confessar que fiquei surpresa ao ler sua definição e cálculos em uma interseção variável em dois planos curvos. Foi esplêndido, se me permite o elogio, lord...
?Não sou lorde, apenas Martin Giesler ?ele a corrigiu rapidamente. ?É ele quem ostentará, se decidir fazê-lo algum dia ?concluiu?o título de Freiher Von Giesler. No entanto, lhe peço encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal, não acha? ?E sorriu para ela.
?Sendo assim, pode me chamar de Mary, e obrigada pelo elogio. Fico lisonjeada ao descobrir que há um homem neste mundo que não se intimida com o intelecto de uma mulher ?respondeu, acrescentando às suas palavras um sorriso fraco.
?Informava ao meu irmão ?Valeria interveio, que suportou o máximo que pôde a risada que queria explodir quando viu como Philip se contorcia na cama ?que aceitou o convite para almoçar conosco.
?Almoçar? ?Philip se intrometeu. ?Não seria educado ou apropriado, pois o anfitrião desta casa, que paga seus bons funcionários e a comida que colocam na mesa, não pode se comportar como tal devido a sua doença e indisponibilidade ?salientou.
?Oh, Philip! ?Exclamou Valeria com um sorriso fingido e movendo a mão direita com desdém. ?Sempre tão brincalhão! Não se preocupe Mary, não há nenhum problema. Além disso, desfrutaremos da agradável companhia de Martin. Sabe que foi o rapaz mais jovem que contrataram na Universidade? ?Enroscou o braço direito no esquerdo da moça e a fez caminhar em direção à porta. ?Nós já sabíamos que ele se tornaria uma pessoa muito importante, porque quando criança ele sempre pensava e raciocinava como um homem adulto. Em vez disso, Philip... Oh, Deus! Não sabe os problemas que tive que suportar por sua culpa! ?Exclamou novamente com aparente pesar. Quando estava a um passo de fazê-la sair do quarto, parou e olhou para ela. ?A propósito, você terminou? Talvez tenhamos interrompido a consulta e não conseguiu finalizá-la...
?Não se preocupe, tinha acabado de verificar quando apareceram. Só tenho que colocar um novo curativo, mas Shals pode fazer isso durante o dia ?garantiu.
Por nada no mundo, ficaria sozinha com ele novamente! Ela gostou do beijo? Sim! Tinha gostado de ver que havia um homem que a desejava? Sim! Mas aí concluía sua história. Não poderia se deixar levar pela emoção que lorde Giesler lhe causava. Era um homem perigoso para ela, demais para ficar sozinho com ele novamente.
?Que conclusão chegou? ?Valeria insistiu, acelerando o ritmo. ?Acha que logo poderá se levantar e deixar essa maldita cama?
?Conseguirá se permanecer deitado pelo tempo recomendado ?Mary alegou antes de sair de lá sem sequer se despedir com um olhar fugaz.
***
Os dois irmãos ficaram olhando para a porta e só se viraram quando Valeria e Mary desapareceram.
?Milorde ?Shals interveio, que permaneceu escondido em um canto do quarto o tempo todo ?com sua permissão, devo confirmar que o almoço está devidamente preparado. ?Deu um passo para a cama, fez uma rápida reverência e saiu dali antes que...
?Qual é o problema?! ?Martin gritou quando sentiu uma dor terrível no peito, causada pelo impacto de um livro voador inesperado.
?Qual é o problema? Você dirá... o que acontece com você? ?Explodiu. Apoiou os cotovelos sobre o colchão e acabou por se sentar.
?Não sei a que se refere ?disse agachado para pegar o livro que, após a colisão, tinha caído no chão aberto.
?Peço-lhe encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal ?repetiu as palavras que seu irmão usou como se estivesse mastigando a sola de um sapato.
?Isso? ?Ele retrucou, depois de depositar o livro na lareira. ?É considerado educação e respeito por uma mulher inteligente que, felizmente, salvou a vida de um ente querido.
Ele caminhou parando na frente de Philip e se apoiou com o ombro direito em um dossel de madeira. Poderia deixar escapar uma risada enorme? Porque Deus bem sabia que ele queria fazer isso! Se pegasse o espelho, que estava na cômoda, e o colocasse na frente de seu irmão, descobriria que os demônios realmente existiam. Como prometeu a Valeria, ele ofereceu uma atitude receptiva em relação a Mary, para que Philip reagisse. No entanto, admitiu que estava fascinado ao descobrir que ela havia lido sua última publicação.
?Educação e respeito? Você quase voa como se fosse um querubim em sua direção para beijar a mão dela! Beijar a mão dela! ?Repetiu, percebendo como uma estranha acidez queimava seu estômago.
?Não me disse algo sobre não distinguir entre dois bons seios femininos e duas formas de calcular um mesmo resultado? ?Ele comentou, mesmo sabendo que o inferno dividiria a terra em dois e que o próprio Satanás puxaria sua mão para arrancar sua alma. ?Bem, pela primeira vez na vida, tenho que provar que você está certo. A senhorita... Mary parece ter herdado um busto generoso e firme. Embora seu vestido azul não tivesse um decote muito ousado. Apesar de tudo, acho que quando me aproximei para beijar aquela mão doce e macia, nossos peitos se aproximaram o suficiente para calcular suas medidas. Você me pediu para contemplar também a largura dos quadris de uma mulher? Porque eu acreditava que... ?terminou de falar quando um travesseiro voou, das costas de Philip, para impactar seu rosto, fazendo com que seus óculos fossem atirados no meio do quarto. Como diabos ele estava se movendo com tanta agilidade se ainda estava convalescente?
?Não se aproxime dela! Entendido? ?Berrou. ?Ou juro por Deus que essa conversa será a última que temos pelo resto de nossas vidas.
Martin pegou os óculos do chão, colocou-os e olhou para o irmão. Pela primeira vez, uma ameaça a sua pessoa apareceu em seu rosto. Seria conveniente informá-lo de que Valeria havia planejado sua atuação em relação a Mary? E se decidisse se vingar dos dois? Se havia algo inquebrável em Philip, era sua necessidade dar uma lição às pessoas que o desafiavam. Um exemplo claro disso poderia ser assegurado pelo homem que, quando era adolescente, Philip o chamou de trapaceiro em um jogo de cartas que jogou no antigo clube de seu cunhado. Demorou quase quinze anos para encontrá-lo e, depois desse momento, o cavalheiro não conseguiu levantar a aba do chapéu por dois longos meses. De acordo com a versão de seu irmão, o Sr. Manther colidiu com seu ombro duro no momento em que saiu de White´s e, logicamente, não se afastou rapidamente para evitar um impacto inconveniente e doloroso no olho direito. Então, se não desejava usar um chapéu de abas largas por vários meses, era melhor dizer a verdade.
?Essa farsa foi ideia de Valeria ?finalmente confessou.
?O que significa ... esta farsa? ?perguntou estreitando os olhos.
?O de flertar com Mary ?esclareceu.
?Maldita mente perversa! ?Philip exclamou com raiva.
?Não tinha pensado falar com a senhorita Moore, já sabe que não sou muito versado em manter uma conversa agradável com as mulheres, mas Valeria, depois de encontrá-la no corredor, não parou de falar e falar... Me disse que havia deixado vocês algum tempo sozinhos e que assim lhe devia um grande favor. Que precisava da minha ajuda para descobrir se o seu interesse por essa moça era verdadeiro. Imagino que colocou suas esperanças nela para aceitar maldita baronia.
?Típico dela... ?Philip murmurou.
?Juro que minha presença tinha outro objetivo. Queria pedir conselhos sobre um assunto que tenho nas mãos ?Ele disse sem tirar os olhos do irmão. Relaxada a tensão entre ambos, Martin adotou uma postura mais calma: cruzou os braços na frente do peito e os pés à altura dos tornozelos.
?O que você precisa? ?Philip estalou, olhando para ele sem piscar.
A vida poderia dar algo doce e acido ao mesmo tempo? Porque é assim que se sentia. Ela passou de ter nos lábios a doce boca de Mary para a acidez de lutar com seu irmão para consegui-la. Agora, apesar de saber que tudo tinha sido um truque de Valeria, ainda não conseguia sentir novamente a ansiada doçura.
?Um em troca do outro, como quando éramos crianças? ?Observou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?Um em troca de outro ?admitiu enquanto seu corpo relaxava consideravelmente.
?Bom. Eu decidi estabelecer minha nova residência aqui em Londres ?Martin começou a dizer enquanto se aventurava a sentar ao lado de seu irmão. ?Conversei com Lawford Jr. e ele me disse que poderia investir na propriedade dos Bohanm. Como me informou, é um casal bastante antigo e deseja partir à sua casa de campo para desfrutar de um pouco de paz no tempo que lhe resta de vida.
?Sabe quais vizinhos terá? ?Philip estalou, franzindo a testa e olhando para ele... de novo.
?Ainda não vi, então...
?Os Moore! ?Explodiu de novo.
?De verdade? ?Ele perguntou, arregalando os olhos. ?Inferno de coincidência!
?Você não me disse que agiu de acordo com o plano de Valeria? ?Rosnou.
?Juro pela alma dos nossos pais que sim e que não fazia ideia que a família da Mary seria meus novos vizinhos. Só quero um lar tranquilo, onde possa continuar com... ?Ele se levantou, deu as costas para o irmão, caminhou até a varanda e ficou em silêncio.
?Com? ?Philip insistiu.
?Eu deixei o trabalho na Universidade ?ele disse finalmente, sem desviar o olhar do lado de fora.
?O que disse? Por quê? Você ficou louco? Você precisa de mim para isso? Não é capaz de enfrentar a ira de Valeria? Porque ficará com raiva quando descobrir e me culpará de sua decisão ?Philip comentou, mal respirando.
?Não te culpará de nada, porque lhe explicarei que me ofereceram mais uma alternativa... ?«Obrigatório?», pensou Martin. Não, não poderia dizer isso, era vital para o bem-estar da família que ninguém soubesse a verdade.
?Mas? ?Philip insistiu em saber.
?Tranquilo ?Ele respondeu, virando-se para o irmão. ?É verdade que o trabalho que fiz na Universidade foi gratificante, mas mal aproveitei o tempo livre. Anseio por uma casa, anseio por sua companhia, quero me casar, formar uma família e... viver ?lhe garantiu. Embora a verdadeira razão pela qual decidiu se estabelecer não tivesse nada a ver com a vida, mas com a morte, e não de uma pessoa, mas centenas, talvez milhares...
?Quando você pretende realizar seu novo futuro? ?Perguntou intrigado.
?Em uma semana, no máximo ?ele declarou depois de colocar as duas mãos nos bolsos e puxar os painéis frontais da jaqueta azul marinho. —O tempo que leva para Lawford confirmar a compra dessa residência.
?Bem... ?Philip murmurou acariciando uma barba inexistente. ?Embora Valeria fique brava com você por um longo tempo, devo confessar que é a melhor decisão que você tomou até agora. Já era hora de você voltar e decidir procurar uma esposa, que não será Mary, é claro ?Ele apontou examinando o rosto de seu irmão.
?Não será Mary, te garanto isso. ?Sorriu. ?De certa forma, foi responsável por esta decisão. ?Ao ver que seu irmão levantava uma sobrancelha em sinal de pergunta, acrescentou: ?Sofri muito ao pensar que poderia ter morrido. Tenho me perguntado todos estes dias o que teria acontecido se você... ?não terminou a frase, doía muito fazê-lo. ?Tinha pensado oferecer minha carta de demissão quando terminasse o curso, mas a enviei no mesmo dia que Pierre me fez chegar a missiva de Valeria para me informar sobre sua doença. ?Não era bem verdade, ele o escrevera vários meses antes, quando o estrangeiro apareceu em sua antiga casa e lhe disse que tinha menos de seis meses para aceitar a nova posição oferecida a ele. O anúncio da situação de Philip acelerou o processo. ?O tempo é curto e acho que devo aproveitar para viver com as pessoas que amo ?concluiu. Ele voltou para o lado do irmão e sentou-se novamente no canto inferior da cama?. Então, aqui estou eu, esperando um papel para realizar um sonho... ?refletiu. ?Agora é sua vez, irmão. Diga-me que segredo você mantém ?apelou.
?Vou aceitar a maldita baronia ?comentou depois de jogar a cabeça para trás, até tocar na cabeceira de madeira e suspirar.
?De verdade? Tem certeza? Valeria vai chorar de emoção! Está a muitos anos esperando você tomar essa decisão! ?Comentou feliz.
?Mas somente se eu puder me casar com ela ?disse uma vez que os olhos de ambos encontraram.
?Então... você gosta??Discorreu Martin acomodando os pés sobre a cama, como costumavam fazer quando eram crianças.
?Estou apaixonado, Martin. Não sei quando, nem como, nem por que aconteceu, mas concluí que não poderia viver sem ela. ?Ele admitiu, com um sorriso nos lábios.
?Eu tenho que te dizer uma coisa, Philip, ?ele começou a dizer adotando o tom que costumava falar com seus alunos —há um estudo e um termo médico que, até o momento, não foram levados em consideração, mas seria interessante se você o conhecesse.
?Qual? ?Sua voz soou como se estivesse a ponto de defender-se de um ataque repentino.
?O choque de gratidão. O que sofre um paciente que, ao ser salvo de uma morte certa, acredita que se apaixonou por seu salvador e...[7]
?Bobagens! ?Philip o interrompeu. ?Eu me apaixonei por Mary desde o momento em que a vi pela primeira vez. O que aconteceu a seguir apenas confirmou que ela é a única mulher que eu quero ter ao meu lado pelo resto da minha vida ?garantiu a ele.
?E por que vai assumir a baronia quando se casar com ela??Estalou intrigado.
?Porque me pediu a Lua e só poderei dá-la se me converter em um miserável aristocrata ?ele alegou antes de olhar para a maleta que, novamente, havia sido esquecida por sua dona.
Capítulo XI
Como ela poderia se comportar de uma maneira tão irracional? Por que era incapaz de sentir felicidade quando deixou a residência do lorde? Qual seria a razão médica pela qual notava uma forte pressão no peito? Estaria prestes a sofrer um derrame depois do que aconteceu com aquele homem?
Mary não tirou os olhos da janela enquanto voltava para casa acompanhada de Valeria. Tal como ela lhe prometeu, depois do almoço, conduziu-a até à livraria do senhor Slow e deu-lhe as três crônicas médicas que havia reservado. Deveria mostrar felicidade por ter conseguido tanto o que queria nos cinco dias de castigo, mas não foi assim. Pegou as revistas e as colocou dentro da pasta sem parar para ler seus títulos. Reagiu de modo automático, sem emoção. Talvez porque sua cabeça se recusava a se concentrar em outra coisa que não fosse... ele.
Acreditou, inutilmente, que todas as emoções e sensações produzidas durante o beijo desapareceriam uma vez que abandonasse o quarto. Errado. Ela os reviveu tantas vezes que sofreu inúmeras ondas de calor no almoço. Embora a conversa que teve com Martin tenha sido bastante agradável, não foi esplêndida nem maravilhosa. Apenas prestou atenção à conversa exaustiva que lhe ofereceu sobre o algoritmo quantitativo em diferentes equações. No fundo, e isso parecia inédito, ficou entediada. Em algum momento dessa explicação, sua alma deixou seu corpo para sair da sala de jantar, subir as escadas, correr pelo corredor para voltar aos braços de lorde Giesler. Seus lábios sentiram novamente a suavidade daquela boca masculina, provaram aquele maravilhoso sabor de café, sua língua dançou outra dança de carícias e, por isso, prazer e paixão retornaram.
Tal como concluiu, a melhor opção para manter um bem-estar mental e físico era evitar outro encontro com ele e eliminar de sua mente todos aqueles pensamentos tão inapropriados. Nunca se sentira tão atraída ou intimidada por um homem. Jamais deixou em um segundo plano quem era e em quem desejava se converter. No entanto, desde que aquele homem apareceu em sua vida, tudo se tornou um caos, pois não era capaz de se concentrar em nada exceto nele. Quantas vezes, desde que seu pai lhe deu a maleta, se esqueceu dela? Até que lorde Giesler se cruzou em seu caminho, nunca. Se havia noites que até dormia com ela na cama! Isso também tinha mudado, porque durante sua inesperada visita abandonou seu precioso presente em várias ocasiões...
Sem afastar o olhar do lado de fora suspirou fundo. Estava muito decepcionada por não ter sido capaz de controlar nem sua mente e nem seu corpo quando permaneceram juntos. Ela estava sempre atenta às traições que os outros podiam gerar, mas nunca imaginou que ela mesma seria a maior traidora de sua pessoa. Desde que Anne sofreu a angústia da morte de Dick ou do engano que Elizabeth padeceu por Archie, ela se esforçou para lutar contra tudo o que envolvia um relacionamento afetuoso com um homem. Tudo o que podiam obter dela eram conversas e discussões médicas. Qualquer sentimento afetivo estava vetado, negado, fechado. No entanto, lorde Giesler quebrou todas as barreiras que ela havia construído ao longo dos anos. Aquele gigante de olhos azuis e cabelos loiros havia se tornado seu ponto fraco, porque havia encontrado uma maneira de transformá-la, através de seus beijos e carícias, em um ser vulnerável, frágil e comum.
Ela se mexeu desconfortavelmente no assento enquanto apertava as mãos com força, que estavam no colo. Se não estava errada, como começava a ser habitual nela, suas bochechas já mostrariam um leve rubor por causa de suas divagações. Valeria poderia supor que isso se devia à ansiedade que lhe provocava chegar em casa e enfrentar novamente o castigo estabelecido por sua mãe. Mas essa não era a razão pela qual as bochechas pareciam duas pequenas chamas de fogo. A lembrança de como o corpo dela reagiu durante os beijos a alterou e a enfureceu a ponto de elevar a temperatura do corpo em mais de dez graus. Se tocasse o termômetro que guardava na maleta, o mercúrio aumentaria tanto que o pequeno tubo de vidro explodiria em suas mãos. Como se deixou levar tão facilmente? Por que seu cérebro foi incapaz de impedir isso? Não havia lido que a amígdala cerebral ajudava a encontrar a estratégia necessária para resolver uma situação de estresse, medo ou perigo? Então, por que a dela estava inativa quando lorde Giesler se encontrava próximo a ela? Bufou pelo nariz. Ansiava procurar respostas médicas para todas as suas perguntas e tinha uma solução para isso: procuraria o livro que seu pai mantinha na prateleira de seu escritório. Se bem lembrava, o médico e cientista francês Paul Broca explicaria como o sistema límbico funcionava. Talvez descobrisse qual dos seus quatro componentes era responsável pelas respostas emocionais. Depois que encontrasse o problema, lutaria contra ele. E se para isso tivesse que usar aqueles dolorosos choques elétricos, se submeteria sem hesitar um segundo. Ela precisava fazer tudo ao seu alcance para ser a Mary de sempre e se afastar de quem se tornara. Ela nunca foi uma mulher apaixonada, mas uma jovem respeitável que raciocinava, entendia e observava o mundo de uma perspectiva lógica. Não podia se transformar, da noite para o dia, na desavergonhada que havia percebido um certo prazer entre as pernas ou que ansiava que as mãos do homem viajassem cada centímetro de sua pele. De modo algum voltaria a desejar algo que tinha decidido não ter em sua vida. Por esse motivo, lorde Giesler tinha que morrer para ela.
?Mary? ?Valeria perguntou estreitando os olhos.
?Sim? ?Ela respondeu, virando-se para a companheira e desenhando um enorme sorriso. A consequente ao ter a certeza de uma vitória próxima.
?Está bem?
?Sim, muito bem. Por que pergunta? ?Continuou falando sem apagar o leve sorriso dos lábios. Esperava que seu rosto não decidisse traí-la também, porque não queria ser interrogada pelos poucos minutos restantes, para chegar em casa, sobre o motivo de estar tão ausente.
?Percebo você... distante ?Valeria alegou.
?É o meu estado normal ?respondeu enquanto estendia a mão para a alça da maleta e a colocou sobre as pernas. ?Minha cabeça não para de pensar sobre o que esses preciosos artigos médicos registram.
?No que você está pensando agora? ?Estalou com uma mistura de decepção e raiva.
?Claro! ?Mary exclamou, arregalando os olhos para enfatizar sua decepção. ?Estou ansiosa para descobrir que nova doença encontrara na Europa e me informar de como pode ser eliminada. Embora ultimamente não tenham encontrado muitos casos importantes. No mês passado, os quatro artigos que adquiri na livraria do senhor Slow falavam sobre o ensaio realizado por Henry Gray em mil oitocentos e quarenta e oito, intitulado A origem, conexões e distribuição dos nervos do olho humano. Uma descoberta magnífica para um jovem anatomista e cirurgião britânico. Sabia que tinha a minha idade quando foi eleito Membro da Royal Society? Embora ele tenha morrido cedo demais. Uma verdadeira tragédia para a sociedade médica. Mas... Quem iria supor que morreria de varíola aos trinta e cinco anos? Segundo dizem, foi transmitido por um sobrinho que ele cuidava e...
Valeria não soube o que dizer a respeito. Tinha assumido, ao vê-la tão calada e embaraçada, que estava revivendo o tempo que passou a sós com seu irmão, mas se equivocava. A jovem era imune aos encantos de Philip. E era a primeira mulher a fazer isso! Mas não desistiria tão cedo. O que estava em jogo era o baronato e, diante disso, lutaria incansavelmente.
?Você se lembrou do ensaio porque viu algo perigoso nos olhos do meu irmão? ?A interrompeu.
?Como? ?Mary estalou confusa.
?Eu me perguntava se o fato de você evocar esse livro médico tem algo a ver com alguma doença que tenha apreciado nos olhos de Philip ?insistiu.
?Não! Nada disso! ?Disse rapidamente.
?Menos mal! Porque, pelo que entendi, pessoas que têm olhos castanhos podem...
?Castanhos? ?Mary soltou. ?Pelo que me lembro, lorde Giesler tem íris azuis claras, muito parecidas com as minhas ?acrescentou.
Bom. Pelo menos, ela havia notado esse detalhe. Agora tinha que continuar com seu plano.
?Certo. Às vezes me confundo com os de meu marido ?se desculpou. ?Então imagino que seu pensamento não tem nada a ver com outra possível doença, certo?
?Exato! ?Garantiu. ?Seu irmão está muito recuperado e abandonará o quarto se permanecer uns dias mais em repouso. Para ser sincera, continuo fascinada com sua evolução.
?De verdade? ?Valeria continuou. Se ela tivesse que falar sobre doenças para que se concentrasse em Philip, faria isso sem hesitar por um único segundo. ?Observou a ferida? Acha que requer muita atenção? Não posso estar todos os dias em sua casa. Meus filhos e meu marido são um desastre se me ausento mais de três horas de minha casa. Não ficaria surpresa que, ao voltar, tenham queimado algum cômodo.
?Não se preocupes. A ferida está perfeita. Apenas ficará uma fina cicatriz. Tenho certeza de que meu pai, quando o visitar hoje à noite, confirmará minha opinião. Só espero que Shals não demore muito para enfaixá-lo para que não entre sujeira na fissura.
?Não precisa se preocupar com isso. As empregadas limpam o quarto todos os dias ?Valeria disse.
?Não se trata desse tipo de limpeza ?disse antes de soltar uma pequena risada. ?Centenas de bactérias foram descobertas que pululam pelo ambiente e são invisíveis ao olho humano. Uma delas pode entrar na ferida e infectá-la.
?E sabendo disso... como não lhe ocorreu enfaixá-lo você mesma? ?Valeria perguntou perplexa.
?Porque me arrastou para a sala de refeições e durante o almoço não me pareceu correto me ausentar no meio da maravilhosa conversa sobre algoritmos que Martin me ofereceu. Além disso, tenho certeza de que Shals o enfaixou depois de confirmar que a comida estava preparada. Como você me explicou, ele é um mordomo muito eficiente ?explicou com certeza.
?Ainda assim, acho que seria conveniente que voltasse amanhã para confirmar sua suposição ?Valeria expôs uma vez que olhou pela janela e observou os telhados da residência Moore. ?Não gostaria que Philip tivesse uma infecção agora que começa a melhorar.
?Não vejo necessidade de voltar ?manifestou com angústia. ?Mas prometo que, quando falar com meu pai, informarei o que aconteceu para confirmar que o curativo foi feito corretamente.
?Não quer ter certeza de que meu irmão evolui favoravelmente? Negligencia com tanta facilidade as pessoas que atende? ?Insistiu.
A carruagem parou na entrada de sua casa. Devia esperar que o cocheiro abrisse a porta e desdobrasse as escadas de metal, mas se sentia tão ansiosa para sair de lá que, como demorava um segundo a mais, ela mesma o faria.
?Como te disse, meu pai cuidará dele como fez até agora ?comentou com mais ênfase do que deveria. ?Além disso, lembre-se que ainda estou de castigo e quando minha mãe descobrir que me levou para a casa de seu irmão em vez de consultar seus filhos, não poderei sair de casa até que complete os trinta anos.
Graças a Deus o cocheiro já tinha aberto a porta! Com a maleta na mão, baixou o mais rápido que pôde, alisou a saia de seu vestido e se virou para Valeria, que ainda continuava imóvel em seu assento.
?Foi um dia magnífico, Valeria. E eu insisto que você não deve se preocupar com seu irmão, certamente ele voltará em breve à vida que tinha antes de ficar doente.
?Mas... não quer que eu vá com você até a porta? O que sua mãe vai dizer sobre mim? Prometi a ela que cuidaria de você e a levaria até ela sã e salva.
?Despeço-me em seu nome. Além disso, quando lhe explicar que estava com pressa de chegar em casa, caso algum dos seus filhos tenha incendiado um quarto, ela entenderá. Boa tarde e obrigada pelo presente ?disse antes de fechar a porta e caminhar a grandes passos para sua casa, seu santuário, seu lugar protegido e do qual nunca deveria ter saído.
***
?Não se preocupe com elas, mãe. Garanto-lhe que todas estão perfeitamente bem.
A afirmação de Madeleine fez com que Sophia levantasse o olhar do bastidor e o fixasse na mais nova de suas filhas. Permaneceu em silêncio, observando-a sem piscar. Logo, depois de descobrir aquele brilho tão bonito e sincero em seus olhos verdes, sorriu e voltou para a costura.
?Eu sei ?garantiu. ?Mas é inevitável me preocupar com elas.
?Continua inquieta pela visão que tive sobre Anne? Pensa que me equivoquei sobre lorde Bennett? Porque lhe prometo que era ele. Esse homem nos salvará da maldição ?declarou solene. Fechou a caderneta em que anotou a última receita que havia preparado naquela manhã, se levantou lentamente da cadeira e foi até a mãe para se sentar ao seu lado.
?Confio em suas visões, Madeleine. Se acredita que lorde Bennett é o homem destinado a Anne, esperarei que sua profecia seja cumprida.
?Desaparecerá algum dia? ?Perguntou depois de alguns minutos de silêncio que os utilizou para refletir e entrelaçou seus brancos dedos sobre a saia de seu vestido celeste. Um de cetim mate com rendas nos punhos e pescoço. ?Me refiro ao meu dom. Será que irá da mesma maneira que veio, sem avisar?
?O meu está comigo desde que nasci. Embora tenha desaparecido durante a gravidez, porque toda a minha energia se concentrou em criar uma nova vida, mas voltou uma vez que vieram ao mundo.
?Nunca desejou ter nascido normal? ?Insistiu.
?Você não se define assim? ?Sophia retrucou deixando a costura à esquerda e virando-se para a filha.
?Não ?respondeu sem hesitar um único segundo. ?Quem, de todas as pessoas que conhecemos, pode ter sonhos que preveem o que acontecerá a seguir?
?Madeleine... ?sussurrou, segurando as duas mãos para apertá-las entre as suas ?é uma menina muito especial e não deveria se sentir mal por ter nascido com uma habilidade tão magnífica. Esqueceu o que aconteceu naquele dia? O que você fez por aquela criança?
Madeleine fixou seus olhos nas mãos e mordeu ligeiramente o lábio inferior. Não, não havia esquecido. Jamais poderia fazer uma coisa semelhante! Mas foi nesse momento que seu dom tomou força, o controle de sua vida e não encontrava uma forma de pará-lo. Era verdade que naquele dia ela se sentiu feliz e orgulhosa de si mesma. No entanto, nem todas as suas visões eram boas. Muitas noites ela se levantava banhada em suor, tremendo e chorando inconsolavelmente porque a maldade a dominava.
?Essa criatura pode ser salva graças a você, pequena ?Sophia disse suavemente enquanto acariciava os dedos longos da filha com os polegares. ?Sua alma recorreu para a única pessoa que podia ouvi-la... ?acrescentou.
?Eu sei... ?murmurou, abaixando a cabeça.
?E também foi à razão pela qual Anne desistiu de sair naquele momento. Se você não tivesse nos contado o que viu, ela não estaria mais conosco. ?É verdade que nem todos os seus sonhos serão bons, mas você terá que se esforçar para dominá-los. Uma alma como a sua evocará forças boas e más. Sua missão é saber como filtrá-las.
?Como farei algo assim?
?Imagino que levará muito tempo para você conseguir, assim como eu fiz para desenvolver o meu. ?Ao ver que seus olhos se entristeciam, apertou com mais força suas mãos. ?Mas uma Arany sempre consegue o que se propõe, e não nasceu uma cigana que se renda sem antes lutar.
Madeleine suspirou profundamente e agradeceu as palavras reconfortantes de sua mãe com um leve sorriso. Esperava que tivesse razão, que não se confundisse porque realmente necessitava eliminar certos aspectos de seu dom. Rara era a noite que não ficava acordada, sentada sobre a cama, abraçando os joelhos enquanto se perguntava o que aconteceria uma vez que fechasse os olhos. Essa incerteza era a culpa de seu comportamento. Sempre ficava esquiva de todas as pessoas que se aproximavam dela. Não podia tocá-las, nem olhá-las sem descobrir, mediante aqueles malditos sonhos, algo sobre elas. Algumas vezes a faziam feliz, mas a maldade das pessoas não tinha limites. Seu coração começou a bater com força ao lembrar a tarde que o primeiro noivo de Anne lhe tocou uma mão para cumprimentá-la. Nessa noite, os seus sonhos foram sombrios, tenebrosos e insuportáveis. Seu espírito se desprendeu de seu corpo e saiu à rua, mostrando-lhe o que aconteceria depois de várias semanas. Não foi capaz de explicar a sua família, e nem muito menos a Anne, o que tinha visto. Talvez porque nem ela mesma acreditou. Mas Dick morreu... E como consequência de tudo isso se retraiu ainda mais do mundo.
?Mary acabou de chegar ?comentou Sophia se levantando rapidamente do sofá.
Caminhou para a janela e afastou lentamente a cortina para confirmar que, tal como intuiu, a carruagem da senhora Reform tinha parado no jardim. Olhou o relógio que havia sobre a lareira e franziu a testa. Já eram quatro horas da tarde e, embora tenha sido informada de que a filha almoçaria fora, estava com muita raiva de Mary. Ela deveria procurar qualquer desculpa para recusar o convite. Não era apropriado que ficasse fora de casa por tanto tempo com uma pessoa que mal conhecia, mesmo que estivesse muito agradecida por ter salvado a vida de seu irmão. Mas tinha que confiar em sua filha. Tinha certeza de que, se tivesse se encontrado em uma situação comprometedora, teria agido com sensatez. Embora depois de operar lorde Giesler completamente nu, ela não tivesse mais certeza do bom senso de sua filha.
Saiu silenciosamente da sala de costura e foi em direção à porta para recebê-las. Durante o breve trajeto, lembrou o momento em que a Sra. Reform apareceu em sua casa horas antes. Sua mente evocou a expressão serena que ela exibiu ao se apresentar e como mudou depois que a filha chegou. Como não percebeu isso? Por que seu instinto não a alertou para uma coisa dessas? «Morgana!», exclamou mentalmente enquanto avançava em direção à entrada, abrindo a porta ela mesma, para não demorar muito para descobrir se sua intuição era verdadeira.
?Boa tarde, mãe ?lhe disse Mary uma vez que se encontraram de frente.
?E Sra. Reform? ?Perguntou olhando para a carruagem.
?Disse-lhe que não me acompanhasse, que não era necessário que se incomodasse ?explicou enquanto entrava no hall.
?O que você fez? ?Esbravejou Sophia batendo a porta.
?Eu? Nada! Como pode pensar isso de mim? ?Disse com raiva.
?Porque as duas vezes que vi essa mulher nunca me pareceu uma pessoa desrespeitosa ?a mãe insistiu.
?Precisava voltar para casa o mais rápido possível. Como me disse, seus filhos podem atear fogo em qualquer cômodo da casa, se ficarem mais de três horas longe dela. ?Explicou enquanto dava o casaco a Shira, que apareceu sem fazer barulho.
?Mas... você não iria examiná-los? Porque, se bem me lembro, a senhora Reform disse que haviam sofrido um resfriado e queria confirmar que não teria nenhuma consequência ?Sophia disse, arregalando os olhos.
?Não. No final, me livrei da presença daqueles demônios ?Mary declarou antes de levantar as sobrancelhas castanhas várias vezes. Observando as bochechas e os olhos da mãe começarem a ficar avermelhados, ela decidiu que era hora de escapar. No entanto, quando ela deu um passo à frente, em direção às escadas, uma mão a parou.
?Onde você esteve Mary Moore? Por que não é capaz de me olhar na cara? O que esconde de mim? O que aconteceu?
?Ainda continuo de castigo, certo? ?Sophia estreitou os olhos em resposta. ?Bem, apenas lhe direi que curei pessoas, mas não foram filhos da Sra. Reform, mas os servos de lorde Giesler ?confessou com dignidade.
?Desobedeceu minha ordem e retornou naquele lugar? Por quê?
?A verdade? ?Mary soltou.
?Sim.
?Cheguei à conclusão de que Valeria estava muito assustada com o que aconteceu com o irmão e precisava que eu confirmasse que nosso pai está fazendo um bom trabalho.
?E? ?insistiu Sophia.
?E, como sempre, nunca fico satisfeita em fazer apenas uma coisa. Então, terminei por apresentar duas opiniões em vez de uma.
?Quais? ?Sophia percebeu como a filha estava ficando cada vez mais irritada. Até agora, nunca havia chegado em casa depois de visitar um paciente com tanta irascibilidade. O habitual era que estivesse excessivamente emocionada. Mas tinha que lembrar que o homem doente que visitou era lorde Giesler, o motivo pelo qual estava de castigo.
?A primeira foi que, de fato, a cura desse presunçoso está sendo espetacular e que nosso pai é o melhor no mundo. A segunda... ?Ela respirou fundo e, pela primeira vez em sua vida, olhou para a mãe com raiva, como se ela fosse a única culpada por fazê-la sofrer todas as emoções e sensações que nasceram nela quando foi beijada por lorde Giesler. ?Deve se sentir muito feliz em entender que sempre esteve certa sobre mim...
?Eu? Razão sobre você? Em quê? ?Sophia disse com uma mistura de surpresa e perplexidade.
?Que, embora nunca quis reconhecê-lo, hoje entendeu que por suas veias também corre sangue Arany.
A resposta saiu da boca de Madeleine. Sophia observou Mary dar-lhe um olhar furioso. Mas a menininha não se intimidou com essa ameaça silenciosa. Exibiu um sorriso enorme antes de colocar as mãos atrás das costas, girar nos calcanhares e seguir em direção à cozinha, esticando as pernas excessivamente.
?Se sente muito orgulhosa, certo? ?Mary soltou cerrando os dentes.
?Filha, por favor me diga o que aconteceu ?Sophia pediu, estendendo a mão para Mary, para que a aceitasse e poder lhe transmitir desse modo um pouco de paz.
?Posso resumir em algumas frases: nunca mais sairei de casa, nunca mais verei lorde Giesler e nunca deixarei o sangue de Arany tomar conta de mim ?hesitou antes de agarrar a alça da maleta e subir as escadas o mais rápido que podia.
Capítulo XII
Ela ficou trancada na biblioteca por horas tentando estudar o novo ensaio médico que havia adquirido, mas não conseguiu ler nem duas frases seguidas. A maldita voz alegre insistia em interrompê-la toda vez que começava a leitura. Resignada por não conseguir alcançar o que se propôs, ela fechou o livro e acariciou a longa trança do cabelo com as duas mãos enquanto contemplava as escassas brasas. Depois do que aconteceu com lorde Giesler, sua mãe, depois de considerar que os tubos de metal eram muito perigosos em suas mãos, proibiu Shira de usá-los nela e insistiu que fosse amarrado com um laço azul inofensivo. Embora, de acordo com Josephine, fosse a arma mais eficaz para estrangular qualquer malfeitor. Mary sorriu levemente ao se lembrar da manhã em que jogou seus tubos no lorde Giesler como se fossem projéteis. Mas aquele leve sorriso de diversão desapareceu quando ela também se lembrou de ter encontrado um deles guardado em uma gaveta da cômoda do lorde. Por que o escondia como se fosse um tesouro? Estaria esperando o momento para devolvê-lo? Com que finalidade? Que plano ele tinha em suas mãos? Mary se recostou no sofá e suspirou. Não tinha respostas para suas perguntas. Na verdade, era a primeira vez que não as encontrava. Seu mundo, baseado em executar uma rotina severa para facilitar o seu cérebro a admissão de novos conceitos médicos, mergulhou em um profundo caos desde que aquele homem irrompeu em sua vida. Nem se reconhecia quando se olhava no espelho! Não só seus olhos brilhavam de uma maneira estranha, mas até sua pele se contraiu tanto que parecia cinco anos mais jovem. Se isso consistia na natureza feminina, em rejuvenescer para seduzir os homens, que lhe durasse cinquenta anos mais...
Ela fechou os olhos, cansada de submetê-los por várias horas a uma luz fraca, e tentou sucumbir ao leve sono que a dominava. Mas foi incapaz de alcançá-lo porque havia a voz novamente, que não deixava de cantarolar uma canção absurda no dialeto Zíngaro sobre a salvação que lhe traria um maldito fogo. Fogo? Onde? E que salvação se referia? O único que precisava era eliminar um titã com cabelos loiros e olhos azuis da cabeça. Mas... como conseguiria uma proeza tão simples? Se ela, com o caráter e a determinação que possuía, não pudesse eliminá-lo de sua mente, como faria com o maldito fogo? O queimaria? Faria lorde Giesler entrar nele até que seu grandioso corpo se transformasse em cinzas? Essa ideia, bastante macabra, a fez sorrir novamente. Exceto em certas reuniões médicas, quando alguma promessa médica jovem se impunha pela força a seus argumentos, seu instinto assassino não aparecia. Ela proporcionava vida, não morte. No entanto, esse homem era o culpado por seu lado criminoso permanecer latente desde que acordava até adormecer.
Desesperada, porque a voz não parava de cantar, ela abriu os olhos e se levantou do sofá. Se não podia ler, pelo menos procuraria a pessoa que a interrompia para calá-la de uma vez por todas. Relutantemente colocou o livro sobre o sofá, amarrou o laço da bata branca e saiu da biblioteca.
Para sua surpresa no corredor, não havia ninguém. No entanto, a voz estava tão perto dela que parecia tê-la ao seu lado. Determinada, ela caminhou devagar até chegar ao pé da escada, olhou para o segundo andar e franziu a testa. Onde estaria? Quem seria? Só tinha duas alternativas possíveis: sua mãe e Madeleine. As duas eram as únicas pessoas na casa que costumavam falar em Romani. Quando colocou o pé no primeiro degrau, ouviu as badaladas do relógio. Eram duas da manhã, tarde demais para a irmãzinha ficar acordada. Normalmente, depois de se retirar para o quarto, permanecia até o amanhecer. No entanto, desde que Josephine partiu, ela ficou bastante inquieta e confusa. Talvez, incapaz de dormir, ela decidiu caminhar até que o cansaço a vencesse.
Encorajada para descobrir se Madeleine era a arquiteta de seu desespero, ela subiu as escadas, atravessou o corredor, ficou em frente à porta do quarto das gêmeas e a abriu muito lentamente. Não, não era ela. A menina se encontrava sobre a cama coberta com o lençol até a cabeça e tão quieta como uma estátua. Com discrição, saiu dali tal como entrou. Como sua primeira opção foi descartada, ainda lhe restava outra: sua mãe. Talvez a mente materna ainda estivesse nervosa após a partida de três de suas filhas. Talvez sua mãe não tenha conseguido adormecer facilmente ou... Sim, essa alternativa também se encaixava. O termo médico para definir a terceira opção era sonambulismo, embora seu pai nunca tenha falado sobre esse tipo de distúrbio na família. No entanto, tudo poderia acontecer com os Arany. Os Moore, felizmente para ela, sabiam controlar até as atividades que realizavam inconscientemente. Admitindo a possibilidade de encontrar sua mãe sonâmbula, ela lembrou o caso de Albert Tirrell, que foi absolvido de assassinato por alegar que estava sonâmbulo quando cometeu o crime. Certamente sua mãe não pensaria em matar ninguém, embora não lhe faltasse vontade. Era mais provável que a mente agitada a levasse à sua época juvenil, quando cantarolava absurdas canções ciganas enquanto lavava a roupa em um rio próximo do povoado.
Do alto da escada, Mary olhou para baixo. Nada. Sophia também não estava lá. Mas incrivelmente a voz, daquela área da casa, era ouvida mais claramente.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e contemplará seu destino. No fogo encontrará o que tanto deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
Fogo? Salvação? Mas por que não parava de uma vez por todas a maldita voz? Que tipo de babá instava a buscar uma fogueira? Isso nunca faria alguém dormir, mas sim incentivá-los a sair de suas camas e investigar os arredores.
Descansou a mão direita no corrimão de madeira enquanto olhava para a porta de entrada. Encontraria sua mãe lá fora? A porta se fecharia quando saiu? Não, não poderia dar essa opção como válida. Se isso tivesse acontecido, Sophia teria acordado rapidamente. Ninguém continuaria dormindo ao ouvir os gritos de uma cigana zangada. Essa reflexão a fez entender que sua mãe não deveria ser a autora dessa música e que, fora de sua casa, havia uma pessoa estranha. Por um momento duvidou sobre descer e resolver o enigma ou voltar para seu quarto. A segunda alternativa era a mais sensata e a teria tomado se a Mary do passado não tivesse desaparecido. No entanto, não era mais a mesma pessoa. Lorde Giesler a transformou completamente. Odiando ainda mais a causa de suas irracionalidades, desceu lentamente, sentindo na planta dos pés descalços a frieza e dureza de cada degrau. A melodia ficou tão forte e poderosa que, no meio da escada, ela não conseguiu mais mudar de ideia. Seu corpo estava preso, enfeitiçado pela voz harmoniosa. Pensando nesse fato irracional, ficou em frente à entrada, estendeu as mãos para as fechaduras e as girou uma a uma.
Quando abriu a porta, fechou os olhos quando sentiu a carícia de uma brisa noturna suave em seu rosto. A bata se moveu para trás, mas o laço impediu que se afastasse dela. Jamais havia sentido tanta paz, tanta tranquilidade. Era como se toda a inquietação que tinha vivido no passado nunca tivesse existido. Levou as mãos ao peito, captando como seu coração batia com lentidão. Continuava sem compreender a si mesma. Qualquer pessoa em sua situação estaria à beira da loucura. No entanto, ela desfrutava de um estado de repouso inverossímil.
«Abra os olhos, estenda suas mãos e aceite o destino que lhe ofereço. Toque nele; abrace-o... Encontre sua salvação...».
Tal como lhe indicaram as frases dessa canção que não parava, Mary abriu os olhos lentamente e ficou imóvel ao descobrir duas coisas: uma enorme fogueira no meio do jardim, que ardia sem a necessidade de lenha, e o maior corvo que tinha visto em sua vida, apoiado no corrimão de mármore. Aquela tranquilidade, aquela calma que notara percorrendo todas as partes de seu ser desapareceram quando viu como aquele imenso pássaro abria suas asas. Assustada com a aversão que sentia por esses tipos de animais, ela recuou, na esperança de entrar na sua casa novamente sem deixar o pássaro irritado. Mas não foi fácil avançar porque a porta, de maneira inexplicável, tinha se fechado. Com as costas apoiadas na madeira, fixou seus olhos de novo no animal. Este escondeu de novo as asas e a olhou. Quando os dois olhos se encontraram, Mary prendeu a respiração enquanto contemplava um fato inédito. Os corvos não tinham olhos negros? Então... por que os daquele animal eram azuis, muito parecidos, se não iguais aos do homem em que não queria pensar?
?Não tem nada melhor para fazer? Vá embora, pássaro miserável! Deixe-me em paz! ?Recriminou, num ato de valentia, o pássaro com a esperança de que se afastasse dela.
No entanto, o corvo não foi embora. Depois de ouvi-la, ele expandiu suas enormes asas novamente e as bateu com avidez. De repente, a brisa suave se tornou um tornado angustiante, elevando todas as folhas secas no chão para o céu. Horrorizada, ela fechou os olhos e colocou as mãos na frente do rosto para não se machucar. No instante em que se preparou para gritar que parasse, a tranquilidade voltou. Muito devagar, o mais lento que pôde, ela abriu os olhos, expulsou todo o ar retido em seus pulmões e afastou os braços. Então observou algo que a deixou paralisada. O maldito pássaro, aquele que queria ver longe dela, voou sobre o fogo desenhando enormes círculos.
?Não! ?Ela gritou enquanto corria em sua direção. Uma coisa era odiar esse tipo de animais e outra muito diferente era lhe desejar a morte. ?Afaste-se! Vai se queimar! —Continuou dizendo até ficar na frente da estranha fogueira.
Como da última vez, o corvo a ignorou e continuou seu voo sobre as chamas. A luz da grande fogueira alcançou a plumagem negra e a fez brilhar como uma estrela. De repente, seu olhar encontrou o do animal novamente. Mary começou a tremer, antecipando a terrível situação que veria em breve. Não podia testemunhar um ato tão horrendo. Por mais que não gostasse de tais pássaros, não seria capaz de viver com a dor de não ter evitado tal catástrofe. Reunindo a pouca força que tinha, levantou as mãos e começou a agitá-las, numa tentativa absurda de assustá-lo. No entanto, o corvo subiu ao céu, como se fosse um foguete, e logo mudou de direção, dirigindo-se para o interior do fogo em um mergulho.
?Não! ?Mary gritou horrorizada.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e você contemplará seu destino. Nas chamas você encontrará tanto o que deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
O animal não parou. Entrou na fogueira e ardeu. O que aconteceu depois deixou Mary muito confusa. Enquanto a voz continuava cantando, enquanto lágrimas de tristeza vagavam por seu rosto, a cor do fogo passou de laranja e vermelho para o branco e azul. Chocada ou perplexa, não conseguia descrever com precisão o estado em que estava. Talvez não houvesse uma palavra capaz de explicar que tipo de emoções e sensações a dominavam naquele momento.
«Não se afaste... Aí está... Sua salvação vem... Toque-o! Toque nele!».
A voz cantante insistia repetidamente. Sem tirar os olhos do fogo, enfeitiçada pela música e enfeitiçada pelo estranho fenômeno que testemunhou, aceitou a ordem e estendeu as mãos para as chamas brancas e azuis. As pontas de seus dedos não sentiram calor ou dor. O oposto. Uma leve cócega os recebeu quando passou por eles. Deu outro passo em direção ao fogo, desejando sentir aquele toque maravilhoso em todo o corpo. Se colocou no centro, no meio daquela fogueira incomum e começou a notar carícias fascinantes em sua pele. Nem a bata nem a camisola a impediram de sentir aquele toque magnífico. Cativada por esse estado de prazer, ela fechou os olhos e se rendeu à suavidade que a percorria. De repente, exatamente quando pensou que poderia morrer de prazer, seus lábios foram atacados e pressionados por uma boca. Ela parou de respirar, porque sua mente a informou sobre quem poderia beijá-la dessa maneira. Essa pressão, essa paixão e o ardor de tomá-la tinham um sobrenome único: Giesler. Tentou abrir os olhos para confirmar as suas suspeitas, mas não fez isso. Desejava continuar a sentir essa boca sobre a sua e que a liberdade que brotava em seu interior aumentasse. Por que lhe era tão agradável estar com ele? Por que não o odiava como se empenhava em fazer? E, por que não se retirava e voltava para casa? Todas as perguntas foram resolvidas com uma única resposta: porque o desejava. Sim, mesmo que lhe parecesse estranho, mesmo que tivesse dificuldade em admitir, ela desejava lorde Giesler. Mas... realmente que ele era sua salvação? A música se referia a esse homem específico? Como podia resgatá-la quem lhe converteu em uma mulher diferente? Até agora, sempre se gabou de ser uma Moore, de não ter em suas veias nem uma só gota de sangue Arany. No entanto, essa forma de reagir era mais própria de sua mãe que de seu pai... Com raiva da sua reflexão, abriu os olhos. A princípio, suas pupilas não lhe ofereceram uma imagem clara do lorde, mas com o passar dos segundos, o rosto ficou tão claro quanto a água de um rio. Assustada, porque seu corpo ardia de desejo de continuar em seus braços, de sentir o contato de seu robusto peito nu e de perceber a força de sua boca sobre a dela, deu um passo para trás e o olhou com estranheza. As chamas continuaram a cercá-lo, sua luz continuou iluminando a silhueta masculina que a tinha tão cativada. Alguma vez pôde imaginar que um homem como ele teria a coragem de admirá-la e desejá-la dessa maneira? Até que ponto devia sentir-se honrada ou apreciada? Devia aceitá-lo sem mais nem menos? E, o que estava vivendo? Sofreria algum transtorno mental? Porque não podia encontrar outra explicação ao que estava vendo e vivendo.
?Mary... vem... ?ele sussurrou com uma voz aveludada. ?Não saia do meu lado, meu amor... ?ele acrescentou, estendendo as mãos para ela.
Mary o observou em silêncio. O que devia fazer? O que desejava fazer? Suspirou fundo, para aplacar seu estado de excitação. Não conseguiu. Seu coração palpitava tão rápido que seu corpo se movia ao compasso daqueles batimentos. Sua pele buscava o contato que ele lhe proporcionava e sua boca ansiava aqueles lábios. Desviou o olhar do homem e o fixou no chão. Era uma alucinação, um sonho que o subconsciente lhe oferecia para entender de uma vez por todas que deveria se render a uma necessidade tão básica quanto o prazer carnal. Talvez o que a música estivesse tentando explicar fosse que ela só poderia ser salva aceitando em sonhos o que não poderia alcançar na vida real. Então... por que ela continuou se reprimindo? Porque construía muros quando tudo o que tinha a fazer era derrubá-los? Levantou seu rosto muito devagar, até que ambos os olhares se cruzaram novamente. Enfeitiçada não era a palavra exata para definir o que sentia por aquele homem. Tampouco era atração, nem desejo. Mas se negava a denominar algo tão imenso com um termo tão simples. Não. Ela não podia apaixonar-se por Lorde Giesler. Jamais o faria! A única coisa que tinha que fazer, era satisfazer essa parte de seu cérebro que a transtornava e que a normalidade retornasse a ela. Uma Moore! Já! Agora, mais do que nunca, seu sangue Arany a convidava a desfrutar do proibido, do imoral, do insano.
?Mary... ?voltou a dizer.
E desta vez não pensou, nem procurou os prós nem os contras da ação que realizaria. Se lançou a seus braços, aceitando com submissão o que aconteceria entre os dois.
?Sou sua! ?Gritou quando lorde Giesler a pegou nos braços.
?Para sempre? ?Perguntou ele aproximando essa boca que adorava a sua.
?Para sempre?Admitiu antes de lhe rodear com seus braços o pescoço e aproximar seus lábios aos do homem.
?Mary! Acorde de uma vez!
A voz de Madeleine e a sacudida que ela a sujeitou lhe fizeram voltar para sua casa, sua cama, seu quarto amado. Depois de abrir os olhos e ver a menininha ao seu lado, parecendo assustada, Mary se sentou e cobriu seu corpo excitado com o lençol.
?O que faz aqui? ?Perguntou com uma mistura de angústia e alívio.
?Tem que admitir que é a única que costuma ficar acordada a estas horas ?disse enquanto se sentava sobre a cama. ?Está bem? Você tem as bochechas vermelhas como as papoulas que Elizabeth cuida no jardim e seu cabelo está... molhado. ?Depois de dizer essas frases, se inclinou para Mary, estendeu a mão direita para a testa e rapidamente a afastou quando sentiu muito calor. ?Está doente! ?Exclamou espantada. ?Quer que chame a mãe? Te trago panos frescos?
?Não! ?Respondeu afastando os lençóis de seu corpo. Pulou da cama, caminhou em direção à janela enquanto aplacava o constrangimento e, uma vez que não conseguia se afastar da pequenina, virou-se para ela. O que poderia dizer a ela? Era certo falar sobre o sonho? Não, era melhor ficar calada. Pelo menos até encontrar uma explicação lógica para o que aconteceu. ?Apenas... Foi apenas um pesadelo ?disse apertando as mãos.
Madeleine ficou em silêncio por alguns segundos, observando a reação da irmã. Era estranho, apesar de Mary já ter se comportado de maneira diferente do resto do mundo. No entanto, algo não se encaixava. Ela nunca mentiu, como estava fazendo nesse momento. Mary era uma das pessoas que falava claramente, embora suas palavras magoassem o ser mais cruel da Terra. Por que agia assim? O que teria visto no sonho para assustá-la tanto? Havia apenas uma coisa que podia assustá-la, algo que ela zombava toda vez que o assunto aparecia: homens.
?Mary... ?começou a dizer enquanto colocava as mãos nos joelhos. ?Nesse pesadelo... viu fogo?
?Não!?Negou rapidamente a segunda das Moore.
?Um corvo??A pequena insistiu.
?Como te ocorre perguntar esse tipo de tolices? ?Respondeu indignada.
?Porque, de acordo com a mãe, quando ela sonhava com nosso pai, ela o viu deixar uma fogueira imensa e foi um corvo que a levou até ele.
?Disparates! ?Exclamou, acariciando seu rosto em desespero. ?Sonhos são produtos irreais. A parte inconsciente do nosso cérebro age quando estamos no estado de sonolência. Sonhos ou alucinações, querida intrometida, são vagas lembranças de acontecimentos que vivemos e nos produziu certa inquietação ou excitação. Da minha parte, tive um pesadelo com lorde Grayson. Como sempre, queria me humilhar em um debate sobre enxertos de pele em cicatrizes infectadas ?declarou categoricamente quando voltou para a cama. ?Então, não vi nenhum corvo ou fogo. Embora, agora que penso nisso... Os cabelos oleosos de Grayson não se parecem com penas molhadas? ?Acrescentou mordaz.
?Bem... lamento. Eu sei que o cavalheiro é um monstro. Papai sempre nos diz a coragem que você mostra quando o enfrenta ?Madeleine declarou sem desviar o olhar da irmã.
?Tolices!?Exclamou fazendo um movimento desdenhoso com a mão esquerda. ?Não é coragem, mas inteligência. Até um mosquito pode superar os debates desse petulante.
?Um mosquito? ?Retrucou Madeleine. ?Não dizem que os corvos são pássaros bastante inteligentes? ?Insistiu no assunto.
?Também comentam que um dia a raça humana aprenderá a respeitar e viver em paz para sempre. Mas não vamos falar sobre futuras falácias. Diga-me, qual foi o motivo da sua insônia? ?Mudou rapidamente a conversa.
?Eu senti Josephine aqui. ?Apontou para o peito. ?Algo aconteceu com ela.
?O que significa algo? ?Perguntou Mary. Não havia estudos científicos sobre isso, mas era verdade que todos falavam sobre a intensa relação que se formava no útero entre gêmeos e gêmeos idênticos. Essa união, essa percepção conjunta, apesar de não ser metodicamente estudada, ofereciam causas e efeitos reais.
?Seu coração ficou louco e fez o meu fazer isso também ?respondeu, subindo na cama para abraçar as pernas. ?Eu acho que ela encontrou o homem que se tornará seu marido. Embora também sinta que o conheceu de uma maneira pouco convencional. Eu percebi sua raiva, mas também um estranho... desejo ?alegou antes de suspirar.
?Mas... não disse que nunca encontraríamos um marido porque fomos submetidas à maldição que Jovenka nos enviou?
?Quebrou ?explicou olhando a camisola. ?Anne conseguiu derrotá-la graças a lorde Bennett. É por isso que, por alguns dias, todas vivemos num constante vaivém de sensações.
?O que quer dizer com isso? ?Perguntou, moendo o travesseiro com mais força do que o necessário.
?Não sentiu nada estranho? Não apreciou certas mudanças em seu corpo?
?Não ?mentiu.
Claro que tinha notado, sentido ou percebido! Mas não tinham nada a ver com maldições, mas com desejos carnais em relação a lorde Giesler. Seu corpo nu era a causa da perturbação mental que ela sofria! Agora entendia por que sua mãe estava com raiva de descobrir o que tinha acontecido. Não queria recriminar o fato de que ela o salvou, mas protegê-la da tentação!
?Pois eu sim ?Madeleine disse antes de jogar a cabeça para trás e suspirar novamente. ?Só espero que nenhuma de nós sofra e que Morgana nos ajude a encontrar o caminho certo.
?No caso hipotético de você estar certa... ?Mary começou a dizer enquanto acariciava o lençol com aparente tranquilidade. ?O que poderia acontecer?
?A visão que lhe contei alguns anos atrás seria cumprida ?Madeleine disse, fixando os olhos no rosto pálido da irmã.
?Entendo... ?Mary sussurrou enquanto tamborilava com as duas mãos o lençol. ?Mas é possível que não se cumpra ?insistiu. ?Lembre-se de que Elizabeth estava determinada a se casar com uma aristocrata e, realmente poderá cumprir seu desejo?
?Todas sabemos a razão pela qual Eli está determinada a alcançar essa classe social ?apontou a menina franzindo a testa. ?Mas, felizmente para ela, se apaixonará por um homem que a tratará como uma rainha.
?Disse a ela? Porque acho que isso pode confortá-la muito... ?disse zombando.
?Você sabe tão bem quanto eu que ela sofreu muito desde que Archie a traiu e essa foi a razão pela qual uma promessa tão absurda foi feita. No entanto, esquecerá o passado quando ele aparecer... ?revelou em tom de mistério.
?E você realmente acha que existe um homem que pode tolerar o comportamento de Josephine? ?Mary respondeu.
?Se existe alguém para você, por que não deveria haver para Josh? ?Respondeu com raiva.
?Certo. Essa tese carece de discussão. Se puder encontrar um homem capaz de suportar meu intelecto, Josh poderá encontrar alguém que possa dormir tranquilo enquanto tira brilho ao cano de sua nova arma. ?E depois dessas palavras, ela soltou uma risada.
?Não acredita em mim, certo??A jovem apontou tristemente. ?Para você, tudo o que posso ver são... visões infantis.
?O melhor que tem a doce fase infantil e inclusive a juvenil é que se pode fazer e dizer tudo o que lhe agrade, pois os mais velhos alegarão que são coisas da idade. No meu caso, por muito que pese aos nossos amados pais, considero que continuo na segunda. Por esse motivo faço e digo o que quero sem parar para pensar nas consequências desse comportamento ?garantiu.
?Mas logo terminará a etapa em que admite viver ?Madeleine disse esboçando um grande sorriso.
?Oh, que horror! Está insinuando que, quando me levantar, serei uma mulher adulta? ?E riu de novo. Quando terminou de rir, inclinou-se para a irmã, estendeu as mãos e colocou-as sobre as de Madeleine. ?Se veio para me divertir, conseguiu ?acrescentou dando tapinhas.
?Como pode ser tão cínica? ?A pequena a repreendeu enquanto se levantava da cama.
?O cinismo é apropriado para viver no mundo real. É lógico que, por sua idade, ainda não o tenha e que sonhe com uma vida cheia de fantasia e amor ?zombou. ?Garanto que adoro o teu positivismo, mas seja realista Madeleine, quem pode casar com uma mulher que antes de tomar banho tem que ter todas as suas armas limpas? Quem aceitará Anne, depois da morte de seus pretendentes? E Elizabeth? Você realmente acha que existe um homem que se renderá a seus pés quando descobrir que possui um coração negro sob sua beleza?
?E eu? Porque... quem vai aceitar uma moça que não pode tocar em ninguém, certo? ?Pulou da cama.
?O seu é um problema psíquico e tem uma solução. Basta usar luvas para...
?Você é uma mulher perversa! ?Madeleine retrucou. ?Tanto quanto foi Jovenka!
?Não fique nervosa... ?tentou acalmá-la. ?Certamente você age apenas para o nosso bem. Mas eu não gostaria que você se decepcionasse quando...
?Três dias! ?Gritou enquanto se dirigia para a porta. ?Em três dias tudo estará resolvido! E, nesse momento, serei eu quem ri, Mary.
?Três dias? Terei que esperar setenta e duas horas para confirmar que estou certa? ?Disse mordaz.
?Você se casará com o homem que viu esta noite em seus sonhos. ?Essa declaração deixou Mary tensa, mas ela tentou não mostrar a surpresa que as palavras haviam produzido. ?Ele lhe dará o que você nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!
?Por todos os livros que li! ?Continuou aparentemente divertida, embora ainda estivesse pasma com a alegação de Madeleine. ?Você acabou de me jogar uma maldição? Já não tivemos o suficiente com Anne?
?Continue assim, Mary. Continue pensando que nada vai mudar, que você é tão poderosa que pode controlar o mundo. Mas você esta errada ?disse enquanto abria a porta. ?Em três dias nossas irmãs voltarão e darão a nossos pais uma grande notícia. Quando isso acontecer... Sua vida cínica desaparecerá para sempre! ?Acrescentou antes de sair do quarto batendo a porta.
Mary não desviou o olhar da porta até que ouviu Madeleine fechar a sua. Era a primeira vez que discutiam. Jamais lhe fez mal, pois assumia que bastante dor lhe causava suportar dia após dia um comportamento tão abstraído e tímido. No entanto, desde que conheceu lorde Giesler, perdeu a cabeça. Não apenas sentia coisas indevidas, imorais e inapropriadas para ela, mas também o cinismo, enfatizado pela irmãzinha, aumentara. Talvez se tratasse de um mecanismo de defesa. Muitas pessoas agiam de maneira estranha para não mostrar ao mundo sua debilidade. Mas ela... Desde quando se tornou uma mulher fraca?
Irritada e decepcionada consigo mesma, afastou o lençol para o lado e caminhou lentamente em direção à janela. Não precisou fechar as cortinas para subir no peitoril da janela. Sua mãe ordenou que Shira as amarrasse nos dois lados para que a luz do dia chegasse ao quarto e a acordasse antes das nove da manhã. Subiu a camisola até as coxas e se sentou sobre o frio parapeito. Abraçou os joelhos e apoiou o queixo neles. Por que agiu assim com Madeleine? O que provocou sua fúria? A resposta surgiu sem a necessidade de esforço: Porque se tivesse razão, se a jovem vidente estivesse certa, o desejo, pelo qual lutou durante tantos anos, desapareceria e, tudo por quê? Por um homem. Esse gênero humano que odiava com todas suas forças porque a humilharam, a ultrajaram e, em mais de uma ocasião, cuspiram perto de seus sapatos para lhe deixar claro que não tinha valor algum, embora os seus conhecimentos fossem superiores aos deles.
Fechou os olhos e suspirou fundo, como se fosse uma anciã a ponto de expirar. Madeleine pensava que ela seria feliz com lorde Giesler? Duvidava. Era certo que a atração sexual entre ambos era ilógica, mas ninguém podia viver décadas junto a uma pessoa baseando-se na paixão. Ela, nos poucos momentos em que pensou em casamento, sonhava em conseguir o que seus pais possuíam: um casamento cheio de amor, respeito, consideração, apoio e acima de tudo confiança. Obviamente, não podia confiar em lorde Giesler, sua reputação como libertino era bastante considerável. Hoje poderia morrer beijando-a, tocando-a ou possuindo-a, mas... e amanhã? Bufou diante da reflexão tão anormal que tinha chegado, voltou para a cama, subiu nos lençóis e se cobriu com eles. Uma vez que notou o leve calor do sono, fechou os olhos e... abriu-os! Como se um dragão tivesse aparecido aos pés da cama, afastou os lençóis, se sentou e olhou para a porta.
?Como diabos soube? Como descobriu que sonhei com o corvo, com o fogo e com o lorde Giesler? ?Esbravejou antes de permanecer nessa posição o resto da noite.
Capítulo XIII
Nunca tinha vivido uma situação tão exasperante com Madeleine. Talvez porque, sendo a caçula das irmãs, o tratamento com ela sempre fora diferente. Nunca houve uma palavra ou um ato malicioso de sua parte, pelo contrário, raro era o dia em que não era obrigada a mimar ou protegê-la devido ao seu comportamento frágil. No entanto, durante os próximos dois dias, a doce e tenra Madeleine se tornou a vilã mais cruel do planeta. Toda vez que tinha a chance de conversar com ela, virava o rosto e levantava o queixo com orgulho. Todos os esforços que fez para suavizar a convivência entre as duas não obtiveram os resultados desejados. Madeleine nunca agiu assim. Era a primeira vez que tirava, de algum lugar de sua timidez, coragem e ousadia tão característica na família.
Se levantou da poltrona e esticou os braços, observando como suas trinta e três vértebras tomaram o lugar certo na coluna vertebral. Depois do chá, e depois de sofrer outra rejeição de Madeleine, decidiu se trancar na biblioteca e deixar o tempo passar antes de causar outra abordagem entre elas. Esperava que, durante aquelas três horas e antes da chegada do pôr do sol, Madeleine tivesse consciência de que havia cometido um erro. É claro que, uma vez que sua antiga relação retornasse, não haveria menção à bendita previsão. Tinha certeza de que o fracasso a humilharia a ponto de agravar seu caráter retraído.
Sob nenhuma circunstância duvidou sobre o que aconteceria quando o prazo indicado por sua irmã expirasse. A parte Moore, tão racional e sensata como sempre, afastou de sua mente qualquer assunto sobre previsões, bruxaria, magia ou feitiços e os manteve em alguma área do cérebro que usava como informação desnecessária. Tudo ao seu redor tinha uma explicação lógica, até a suposta maldição de Anne: isso nada mais era do que a conclusão de um compêndio de circunstâncias infelizes criados pelos dois noivos. Apesar disso, era uma lástima que Anne tivesse que sofrer as consequências de ações que não lhe correspondiam. Mas era assim que a sociedade hipócrita agia. Como não podiam culpar os mortos, porque consideravam falta de moralidade, dirigiam seus olhares e sussurros para os vivos, independentemente da inocência e do impacto sobre eles.
Depois de depositar o livro sobre a mesa à direita, se levantou do sofá e caminhou pela sala. Sentia um formigamento irritante nas pernas por mantê-las na mesma posição por tanto tempo. Muito lentamente, levantou a saia do descarado vestido azul, um que sua mãe comprou como castigo por sua contínua rebeldia, e mexeu os pés e o tornozelo. Felizmente, seu conhecimento profundo do corpo humano a alertou que não estavam machucados, mas contraídos pela falta de atividade. Deixou cair o tecido, cobrindo de novo os sapatos de couro que tinha decidido colocar nesse dia. Faltava apenas uma vassoura, um gorro cônico e um caldeirão para exibir a imagem de uma bruxa da qual todo mundo falava quando encontravam com ela na rua. Essa comparação, e a mistura real de sangue que possuíam as Moore, lhe fez sorrir. No fundo, não estavam mal encaminhadas. Se a premonição de Madeleine tivesse sido cumprida, até ela teria presumido que tinha origens mágicas. Talvez até admitisse que sua capacidade médica se devia, de certa forma, à origem cigana. Mas, felizmente, não era assim. Ela sempre soube que adquirir conhecimento seria a melhor ferramenta para realizar seu sonho: tornar-se uma pessoa tão extraordinária quanto seu pai. Portanto, durante suas leituras, nunca invocou nenhum espírito para ajudá-la a entender melhor os ensaios médicos. Era o suficiente ler e raciocinar. Essa era sua única habilidade e segredo. No entanto, apesar de ninguém mudar de ideia sobre a racionalidade necessária para a compreensão de todos os fatos, ela continuava dando voltas a um assunto. Como Madeleine descobriu os três elementos fundamentais de seu sonho? Embora considerasse a possibilidade de falar enquanto sua irmã tentava despertá-la, não terminava por aceitar essa afirmação como válida. Até o dia em que Anne partiu, esta nunca lhe fez referência a esse hábito inconsciente, e isso que dormia com ela desde que tinha uso da razão. Além disso, não tinha dúvida de que, se tivesse feito isso, teria a censurado assim que abrisse os olhos. Anne era a única das irmãs que não se sentia desvalorizada por sua inteligência e a confrontava sem piedade. Por esse motivo, toda vez que estava errada, havia a mais velha das Moore para lembrá-la de que, apesar de seu grande intelecto, tinha mais defeitos do que virtudes.
?Senhorita Mary! ?Shira exclamou abrindo a porta da biblioteca sem bater. ?Saia! Rápido!
?O que aconteceu? ?Perguntou, virando-se para ela tão rapidamente que suas pernas dobraram por falta de forças.
?Suas irmãs! Suas irmãs voltaram! ?Gritou feliz.
?Como disse? ?Mary retrucou arregalando os olhos.
?O que ouve! Exatamente agora, acaba de chegar uma carruagem com o brasão do visconde de Devon ?continuou eufórica. Vendo que a menina não era capaz de reagir, pois permanecia congelada no lugar e seu rosto empalideceu até adquirir a cor do leite, deu um passo em sua direção. ?Está bem? Já lhe disse mil vezes que não deve gastar tantas horas lendo esses livros. Ficará cega e sua pele desbotará. ?Shira estendeu a mão para Mary, mas ela deu um passo atrás, evitando qualquer contato. ?Sua mãe e Madeleine saíram para recebê-las ?lhe informou antes de se virar e seguir para a porta. ?Irá acompanhá-las ou explicou que decidiu continuar trancada na biblioteca?
?Sairei em breve ?comentou quase sem voz.
?Não faça elas esperarem senhorita Mary, ou temo que sua mãe a castigue novamente sem sair de casa por mais dois anos. ?Avisou antes de caminhar rapidamente para o corredor.
Haviam chegado! Estavam lá! Como era possível que Madeleine soubesse? Angustiada e atordoada, fechou os olhos e contou os dias que passaram desde que suas irmãs se foram. Não, ainda não tinha terminado o prazo que o visconde considerou oportuno para realizar o trabalho. Ainda restavam doze dias para o esperado retorno. Mantendo os olhos fechados, levou as mãos para o rosto e esfregou-o desesperada enquanto perambulava pelo centro da sala. Tinha que encontrar, o mais rápido possível, uma explicação lógica que a salvasse do atordoamento mental que sofria. Mas não encontrava com a rapidez que requeria. A opção de que Madeleine sabia desse fato antes dela não era válida. Nem a menininha saiu para a rua, nem ela saiu de casa, exceto quando Valéria a enganou para levá-la para a residência do irmão. Seria informada sobre o retorno durante a sua ausência? Não. Isso também não era plausível. Sua mãe não conseguia guardar um segredo que pertencia à família. Nada a faria calar, nem expressar a euforia que teria sentido depois de receber a notícia. No entanto, apesar de qualquer concepção surrealista, tinha acontecido. Suas irmãs estavam na entrada exatamente no dia que Madeleine mencionou. Realmente possuiria um dom Zíngaro? E se fosse assim... que lugar a lógica teria no mundo? Se o futuro pudesse ser previsto, deixariam de existir surpresas, os avanços médicos ou as preocupações para descobrir coisas novas. Bastaria procurar pessoas com a habilidade de Madeleine para que respondessem às perguntas que surgissem ao longo dos anos. O mundo se renderia a pensamentos transcendentais, deixaria de lado o real e basearia suas vidas na busca do imaginário, assim como fizeram os grandes pensadores. Refletindo sobre essa opção, tirou as mãos do rosto e arregalou os olhos. As teorias filosóficas seriam verdadeiras? Esses grandes gênios evocariam a verdade? Teriam o mesmo dom que sua irmã e, por esse motivo, viveram e pensaram de maneira tão diferente? Talvez Platão, Sócrates, Aristóteles e até o próprio Emanuel Kant proclamaram suas ideias depois de visualizá-las ou apresentá-las. Desesperada, apertou tanto os punhos que as unhas se cravaram nas palmas das mãos. Não devia refletir sobre o passado, mas sim no futuro. Segundo Madeleine, ela se casaria com lorde Giesler, seria feliz e ele a ajudaria a conseguir tudo o que sempre quis. Isso faria qualquer mulher feliz que, entre seus planos, abrigasse a possibilidade de conseguir um bom casamento. Mas ela nunca considerou uma ideia tão absurda. Apesar da afirmação de sua irmã, sabia que, uma vez que aceitasse o sobrenome Giesler, este a converteria em uma pessoa sem decisão, sem autoridade. Em poucas palavras: a anularia em todos os sentidos. Furiosa, correu para a janela, de onde podia contemplar o lado de fora de sua casa sem ser descoberta. Seu coração parou de bater quando viu que sua mãe abraçava Anne e ambas davam pequenos saltinhos de alegria. Junto a elas, Madeleine fazia o mesmo com Josh, que continuava vestindo roupas mais próprias de homens que de mulheres. Então viu como Elizabeth saía da carruagem. Embora escondesse o rosto com a aba larga do bonito chapéu branco, Mary notou que seus olhos estavam fixos no chão, como se tivesse vergonha de voltar para sua humilde casa. A mãe, ao vê-la, se afastou de Anne e a abraçou. Elizabeth não evitou o abraço, mas manteve os braços estendidos, como se não tivesse forças para abraçá-la. Um comportamento atípico nela porque, embora sempre se considerasse superior as outras por causa de sua beleza exuberante, nunca rejeitou uma carícia ou um abraço materno. Fechou os olhos, deixando para trás a estranha atitude de Elizabeth e se concentrando na questão que a preocupava. Como deveria agir? Como lutaria contra algo que ainda não havia chegado e que não se deseja? Quando obteve a resposta, arregalou os olhos e exibiu o sorriso mais maligno que sua boca pode esboçar em um momento tão exasperado. Ela tinha a solução para o problema. Felizmente para ela, sua mente ainda estava lúcida, apesar do colapso que suportava. O objetivo era muito simples: lutar com unhas e dentes para que a profecia de Madeleine não se cumprisse. Essa era uma das vantagens de conhecer o futuro, que se podia encontrar a maneira mais eficaz de evitá-lo. Satisfeita, feliz e cheia de energia, se virou para a porta e caminhou pela sala, juntando a ponta do pé esquerdo com o calcanhar do lado direito e vice-versa. Se suas irmãs entrassem em casa sem que ela as cumprimentasse corretamente, sua mãe ficaria com tanta raiva que aumentaria o castigo por mais alguns meses. E assim começava o plano para destruir seu futuro. Quanto mais castigos recebesse, menos chances teria de sair de casa e, é claro, as chances de encontrar aquele gigante com olhos claros e cabelos loiros seriam tão reduzidas que os chamaria de nada.
?Mary! ?Anne gritou quando ela entrou na biblioteca. ?Por que não veio nos receber? Estava de novo absorta em outra teoria sobre a radicalização de doenças infecciosas? ?Antes de receber uma resposta, avançou até ela, a abraçou e a fez girar. ?Senti sua falta, rata de biblioteca! ?acrescentou depois de lhe dar dois beijos estalados.
?Certeza? ?Estalou cética.
Enquanto as gêmeas falavam com Elizabeth na galeria, que lhes informou que se retirava ao seu quarto para descansar, Mary observou o rosto de Anne. Tinha um brilho especial nos olhos e, pela primeira vez desde a morte de Dick, irradiava felicidade. Então voltou sua atenção para Madeleine que, depois de esperar que Eli subisse para seu quarto, caminhou com Josh para onde elas estavam. Quando se entreolharam, a bruxinha deu a ela um sorriso tão pérfido que a deixou congelada. Esse gesto expressou tanta diversão e triunfo, que a perplexidade entre as profecias absurdas e o desaparecimento da razão voltou à sua mente.
?Por que não saiu para recebê-las? ?Esbravejou sua mãe, colocando as mãos na cintura. ?Quer ficar trancada pelo resto da vida? Porque eu garanto que é o castigo que você merece.
?Sinto muito, mãe. Fiquei tão surpresa com a chegada de minhas irmãs que fui incapaz de reagir. ?Nesse momento, Madeleine soltou uma sonora gargalhada. ?Mas se acha que devo ser castigada, desta vez não discutirei ?Mary persistiu antes de ser agarrada pelos braços fortes de Josh.
?Oh, mãe! ?Anne interveio, pegando as mãos de Sophia. ?Eu imploro, não a castigue hoje. Tenho que lhe dar ótimas notícias e não gostaria que Mary ficasse triste em um dia tão importante para mim.
«Para o inferno, Anne! ?pensou Mary. ?Não é um bom momento para assumir a postura de irmã solidária e protetora».
?Do que se trata? ?A mãe perguntou curiosa, fazendo desaparecer a raiva que causou a desobediência da segunda de suas filhas. ?Talvez seja por isso que voltaram tão cedo? ?Insistiu, sem afastar os olhos de Anne que tinha se separado dela o suficiente para começar a dar voltas.
?Vai se casar com o Visconde! ?Declarou Josh ao retornar ao lado de sua irmã gêmea. Se apoiou na moldura da porta, adotou uma postura típica masculina e olhou para sua mãe. ?Ele pediu e ela não pôde recusar ?acrescentou.
?De verdade? ?Perguntou a mãe surpresa, colocando as mãos nos ombros de Anne para fazê-la parar. ?Está certa da decisão que tomou?
?Sim ?respondeu, abaixando um pouco o rosto para esconder o rubor. ?Nunca estive tão segura de algo. Logan é o homem que esperei por toda a minha vida e o único que nos salvará da maldição. ?E aí terminou sua explicação. Era responsabilidade de Logan revelar ou não sua origem. Embora sua mãe deveria entender que, se ela o aceitou depois do que aconteceu no passado, o motivo era mais que evidente.
?Acho que já nos livrou dela ?Madeleine admitiu dando um passo à frente.
?Por que diz isso? ?Josh fez a pergunta que, quando a ouviu falar, se afastou do batente da porta, descruzou os braços e as pernas e seguiu a irmã gêmea.
?Pressenti faz alguns dias ?continuou dizendo a mais nova. ?Percebi que a escuridão ao nosso redor desapareceu. Agora só há luz sobre nós.
?Percebeu mais alguma coisa? ?Josh queria saber, e Madeleine se aproximou de por trás e falou entre sussurros.
?Você quer dizer a mudança emocional que sofreu ultimamente? Ou quer me perguntar sobre os sentimentos que teve em relação a um jovem mais severo do que um batalhão de soldados? ?Murmurou, antes de sorrir de orelha a orelha.
?Maldita seja! ?resmungou, revirando os olhos. ?Um dia poderei ter um segredo só para mim?
?Nunca ?Madeleine respondeu antes de se virar para ela e abraçá-la novamente.
?Há algo mais que eu deveria saber? ?Sophia disse, estreitando os olhos ao ver as duas menores sussurrando secretamente.
?Não! ?Josephine negou rapidamente se separando de Madeleine.
?Bem, Josh preciso lhe contar algo sobre o novo membro da família ?Anne interveio zombando.
?Novo membro??soltou a mãe arregalando os olhos. ?A que se refere?
?Se chama Galeón ?Josh respondeu feliz. ?É um dos cavalos que o visconde tem na residência e, devido à conexão que tivemos, me presenteou.
?Um cavalo? ?Mary estalou surpresa. ?E onde diabos pensou em mantê-lo, no seu quarto?
Sophia recuperou a cor do rosto, que empalideceu ao interpretar a afirmação de forma inadequada e respirou calmamente. Nunca considerou a possibilidade de que Josh se comportasse inadequadamente, mas depois de ouvir que a maldição se foi, tudo poderia acontecer...
?De verdade? ?Interveio Madeleine. ?E, como é?
?Ele é muito bom e inteligente ?declarou olhando para Mary. ?Cavalguei sobre ele durante toda a viagem. Não o viu? Amarrei-o em um dos ramos da árvore da entrada. Se quiser, podemos sair para que o conheça.
?Claro! ?A menina exclamou. ?Mal posso esperar para conhecer o novo membro Moore. Além disso, tenho o pressentimento de que esse cavalo te ajudará a conseguir aquilo que tanto sonhou ?lhe assegurou enquanto ambas caminhavam para a saída.
?É outra de suas visões? ?Josh estalou estreitando os olhos.
?Não. Desta vez é apenas um palpite... ?ela alegou misteriosamente enquanto a pegava pelo braço e a levava para fora.
Mas antes das duas saírem, Madeleine virou seu rosto para Mary. Quando ambas se encontraram com o olhar, a jovem separou os lábios para lhe lançar uma mensagem que só ela pôde captar: «Começa sua mudança». Essas três palavras lhe causaram um calafrio tão mortal que tentou apaziguá-lo, concentrando-se na irmã ausente.
?A propósito, onde está Elizabeth??Perguntou virando-se para Anne.
?Sofre uma tremenda dor de cabeça ?respondeu enquanto se sentava. ?Sofre desde sábado à noite. Embora me ofereci para aliviar sua dor, não quis aceitar qualquer ajuda da minha parte. Sinceramente, não é a mesma desde aquele dia ?comentou reflexiva. ?Durante a primeira viagem a Londres, decidiu viajar na segunda carruagem, acompanhada por Howlett, valete de Logan. Pensei que a dor desapareceria, porque o jovem me disse que tinha a solução para isso, mas não foi assim. Na última pousada que paramos para descansar, ficou todo o tempo dentro do veículo e não saiu dali até que teve que entrar no que viemos. Insisti em oferecer-lhe um analgésico, mas não aceitou. Se inclinou na direção da janela, fechou os olhos e não os abriu até que lhe anunciei que havíamos chegado ?explicou Anne com tristeza. Nutria a esperança de que Elizabeth não agisse dessa forma depois da notícia de seu compromisso com Logan. No entanto, nada podia ser dado como certo com ela.
?A viagem lhe provocou isso... ?concordou Sophia após assumir que, pela primeira vez, a inveja podia estar causando a Elizabeth um terrível desapego familiar.
?Se quiser, posso aparecer no seu quarto e descobrir ?declarou Mary colocando-se na frente delas.
?Temo que essa dor não desapareça com nenhum remédio seu ?Anne respondeu enquanto enroscava os dedos na saia do vestido.
?Por que diz isso??A mãe retrucou inquieta.
?Porque acho que não lhe agradou a notícia do meu compromisso. Você sabe que, desde o que aconteceu com Archie, ela insiste em se casar com um aristocrata e talvez o fato de eu ter conseguido sem pretender e sem sonhar...
?Bobagens! ?Mary a interrompeu. ?Elizabeth é uma presunçosa, uma petulante e um pouco estúpida, como os dessa bendita classe social, mas por suas veias e as nossas corre o mesmo sangue. Estou certa de que a dor de cabeça tem uma causa lógica. Não tenho a menor dúvida de que agirá como sempre uma vez que desapareça ?alegou como se fosse uma advogada defendendo seu cliente.
?Mas se você sair agora, não ouvirá o que aconteceu comigo durante esses dias. Não quer saber como Logan me pediu em casamento? ?Anne estalou estreitando os olhos.
?Certamente posso adivinhar a história sem precisar da ajuda de Madeleine... ?Mary disse colocando um dedo no queixo, enquanto batia no chão com a ponta de seu pé direito e fixava os olhos no teto. ?Como não teve que cuidar de sua virtude, porque Dick lhe tirou isso, o seduziu até que caísse aos seus pés. Após vários encontros clandestinos, decidiu que, devido à sua constituição e força, não encontraria outro homem que a satisfizesse na cama tanto quanto ele. Então você usou sua origem cigana para lançar um feitiço. Este agiu imediatamente, fazendo com que o pobre visconde se apaixonasse por você e te pedisse casamento, estou certa? ?Explicou mordaz.
?Mary Moore Arany!?Clamou sua mãe se levantando de um salto. ?Como se atreve a falar com sua irmã de maneira tão descarada e inapropriada? Por que não seleciona tudo o que aparece em sua mente e escolhe a coisa certa a cada momento?
?Vai me castigar? ?Teimou fingindo medo. ?Tenho certeza que mereço por cometer tanta insolência ?insistiu.
?Foi isso mesmo que aconteceu ?Anne interrompeu a conversa entre sua mãe zangada e Mary, esboçando um grande sorriso. Se os anos de experiência com ela não a enganavam, ela tentou executar um plano que implicava a palavra castigo. O que havia acontecido durante sua ausência? Por que agia dessa forma tão pouco racional? O melhor era descobrir antes que Logan aparecesse para pedir formalmente sua mão e se encontrasse no meio de uma grave disputa familiar. ?Embora você esteja errada sobre uma coisa, eu não o seduzi, ele foi quem me cativou e ambos chegamos à conclusão que, devido à nossa afinidade sexual, era conveniente compartilhar o resto de nossas vidas sob o mesmo quarto antes de manter encontros secretos e esporádicos.
Essa resposta deixou Sophia sem palavras, mas elas causaram mais estranheza em Mary. Como poderia falar assim na frente de sua mãe? Sua irmã havia perdido o pouco juízo que tinha? Se, como Madeleine disse, a maldição desapareceu, arrastou a baixa moralidade e bom senso de Anne com ela. Jovenka não teve mais de cem amantes? Bem, depois de ouvi-la, não lhe cabia a menor dúvida que, se o visconde corria a mesma sorte que os dois anteriores pretendentes, Anne superaria a velha cigana.
?Visite Elizabeth e descubra o que acontece com ela ?comentou Sophia uma vez que acalmou o imenso sufoco. ?Em seguida, tranque-se no seu quarto até eu chamá-la para jantar. Preciso conversar com seu pai sobre a atitude que você está adotando desde que operou lorde Giesler. Creio que...
?Operar? ?Anne disse surpresa. ?Lorde Giesler? E continua vivo?
?Sim ?Mary afirmou com orgulho. ?Lorde Giesler está são e salvo graças a minha sábia decisão e talento ?continuou com soberba.
?Tem que me contar tudo! ?Perguntou Anne se levantando da poltrona.
?Fará, mas quando terminar de me contar o que aconteceu durante sua ausência ?Sophia respondeu com autoridade.
?Então, se me desculparem, seria conveniente que visite Elizabeth ?disse Mary dando grandes passos para a porta antes que Anne interviesse de novo e sua mãe mudasse de opinião.
?Não vá muito longe ?Anne avisou quando sua irmã se aproximou da porta. ?Temos uma conversa pendente.
?Certamente não será tão divertida como a tua... ?apontou antes de sair e fechar.
Capítulo XIV
Depois que ouviu Anne começar sua história, ela encostou as costas na porta e suspirou profundamente. Nada, que sua primeira tentativa para que a castigassem saiu como esperava. Como conseguiu isso? Se tivesse falado com Anne dessa maneira descarada, antes que todas pensassem que a bendita maldição terminou, teria tido tal retaliação que nada nem ninguém a teria consolado em anos. No entanto, lá estava ela, ilesa, apesar do seu esforço para se magoar. Olhou para o andar de cima e franziu a testa ao lembrar que Elizabeth não se apresentou na biblioteca para cumprimentá-la. Ainda estava se comportando de maneira estranha. Até o momento, a irmã arrogante sempre agia como uma verdadeira aristocrata, incluindo, aquele comportamento arrogante, a hipocrisia que a classe social mostrava ao cumprimentar mesmo quando não queriam. Mas, por algum motivo, não reagiu como de costume. Não importava se sua cabeça doía, que estava enjoada ou que tinha quebrado um ombro, Elizabeth nunca evitava um encontro em família e menos depois de uma viagem como a que ela acabou de fazer. Quantas vezes saiu para fazer compras e, depois de voltar, aparecia diante dela para lhe contar tudo o que fez sem esquecer um mísero detalhe? Tantas que não se lembrava. No entanto, parecia que a viagem a transformou até o ponto de esquecer um princípio tão básico como era a cordialidade. De repente, a resposta que estava procurando para obter o castigo desejado apareceu. Talvez, se ela a censurasse por esse comportamento inadequado, sua mãe abandonaria a atitude passiva que adotava e retornaria a mulher que, com apenas um olhar, fazia suas filhas tremerem. Só esperava que Eli não agisse com a mesma benevolência que Anne. Realmente não precisava da compaixão de nenhuma de suas irmãs dessa vez.
Sem poder apagar o sorriso que sua boca desenhou ao ter outra alternativa entre as mãos, subiu as escadas de dois em dois. Mal respirou quando correu pelo corredor, nem quando se colocou na frente da porta. Tinha um novo objetivo e devia realizá-lo o quanto antes. Desesperada, agarrou a maçaneta, virou e entrou sem pedir permissão. Mas toda a emoção e felicidade que viveu durante a corrida, desapareceu de repente ao ver que Elizabeth não se encontrava onde ela esperava. O edredom permanecia encolhido aos pés da cama, o lençol jogado para o lado direito e o vestido que sua irmã usava quando chegou, estava no chão, jogado descuidadamente. Esse detalhe deixou Mary bastante confusa. Nunca, desde que se lembrava, Elizabeth havia tratado um vestido assim. Cuidava deles e os mimava como se fossem seus filhos. Às vezes, ela até supervisionava Shira quando os passava e engomava. O que teria acontecido com ela para agir dessa maneira? Seu coração começou a bater rapidamente, alertando-a de que a resposta que teria não seria do seu agrado. Tentou afastar aquele palpite, mais típico de Arany do que do sangue Moore, e se concentrou em tudo aquilo que observava. Não se deixaria levar por especulações absurdas, sua experiência no campo da medicina lhe sugeria que devia analisar tudo aquilo que encontrava para chegar a uma conclusão real.
Caminhou lentamente até a almofada, levantou-a e abriu a boca quando viu que a camisola não estava no lugar. Desde quando Elizabeth saía do quarto sem usar um de seus lindos vestidos ou sem arrumar mil vezes o penteado? Mais preocupada se possível, ela se dirigiu para a penteadeira. Sua irmã tinha uma grande variedade de utensílios para usar e embelezar um penteado, além de quatro chapéus de cores diferentes, expostos com muito cuidado no cabideiro que seu pai colocou em cima do espelho e quatro pincéis de diferentes materiais e formas. No entanto, Mary não prestou atenção aos objetos que prolongavam a harmonia da sala, mas ao que estava quebrado: o chapeuzinho que Elizabeth usava quando voltou. Ele se abaixou devagar e o pegou do chão. O que aconteceu? A ideia que Anne comentou ganhou força e intensidade. Apesar de não querer admiti-lo, todas as provas apontavam para essa opção. Irritada, porque não podia tolerar o ciúme tomando conta de Eli e sua terrível resposta emocional arruinando a pacífica vida familiar, ela deixou o chapéu branco na penteadeira e saiu rapidamente do quarto. Agora sua mãe não teria escolha senão castiga-la, porque os gritos de censura que ela daria a terceira das Moore seriam ouvidos até na própria Alemanha.
Pisando o chão como se quisesse quebrá-lo, percorreu o corredor de forma apressada. Levantou a saia do atrevido vestido e desceu as escadas com tal rapidez, que parecia ter brotado asas nos tornozelos. A situação seria resolvida no momento em que a encontrasse, e se tivesse que procurar em todos os cantos de sua casa, ela faria.
Mas não a encontrou... Elizabeth não estava dentro de casa.
Depois de percorrer cada esconderijo, por pouco mais de meia hora, não encontrou sinal da moça. Só havia um lugar para procurá-la: a estufa. Mary passou pela porta da biblioteca e ouviu como Anne continuava contando sua linda história de amor com o visconde, enquanto sua mãe se mantinha em silêncio. Nenhuma das duas suspeitava que a terceira das irmãs houvesse desaparecido. Tinham certeza que estava em seu quarto, descansando e sofrendo uma terrível dor de cabeça. Por alguns segundos, pensou em alertá-las sobre o problema, mas depois descartou essa opção. Se queria ser castigada, teria que reprovar o comportamento infantil da irmã. Depois de bufar, porque não gostava de ocupar o papel de mãe e muito menos quando procurava uma reprimenda, foi até a porta de saída. Uma vez que a abriu, foi incapaz de afastar o olhar da imagem que se produzia do lado de fora.
Madeleine estava no meio do jardim, aplaudindo a atitude de Josh. A gêmea cavalgava ao redor dela, dirigindo o animal com temperança e segurança, como um autêntico soldado. Mantinha as costas retas, enquanto seu corpo subia e descia ao ritmo do trote. Mary fixou os olhos no rosto da jovem e contemplou um orgulho e uma satisfação que invejou por alguns segundos. Então assistiu o movimento compassado de sua trança. O cabelo branco que Josh tanto detestava a fazia tão bonita, que qualquer homem ficaria prostrado a seus pés. Não entendia como ela ainda se chamava a irmã mais feia quando na verdade era uma jovem muito bonita. Por que eram obrigadas a pensar que só alcançariam uma beleza real e feminina se possuíssem os traços que ditavam os cânones sociais? Josh, apesar de sua contínua negação, era preciosa não só por sua diferença física, mas também por seu caráter. E inclusive esse comportamento selvagem que apresentava diariamente engrandecia esse esplendor feminino.
Admiração. Esse sentimento brotou em Mary ao contemplar a majestosa habilidade de Josh que, como acontecia a ela no campo da medicina, era difícil de superar. Não importava que todo mundo alegasse que seu dom era mais próprio de um homem que o de uma mulher, ela o possuía e exibia com muita dignidade. Mary suspirou fundo, refletindo sobre o futuro da jovem. Qual seria o seu destino? Se ela admitisse que a maldição existia, o que ainda não fez, confiaria que encontraria um marido capaz de aceitar seu comportamento estranho, mas ela sabia que isso não seria possível. Nenhum homem, dos que tinha conhecido até o momento, suportaria que sua esposa fosse mais preparada em temas masculinos que ele.
Deu um passo em frente, sem poder desviar o olhar dessa união entre humano e animal. Nunca se referiu a uma atividade tão branda para ela como expectadora, mas foi assim no fim. Majestade, beleza, divindade ou qualquer palavra que procurasse para defini-la não alcançaria a realidade. Josephine era, sem dúvida, uma amazona, uma guerreira, uma deusa a cavalo e onde ambos expressavam, num ato tão simples quanto correr, uma cumplicidade tão extraordinária que qualquer cavaleiro enlouqueceria para alcançar. No entanto, a magia da situação celestial desapareceu quando Mary percebeu como os quatro cascos do animal se cravavam repetidamente na grama, aquela que seus pais tão bem cuidavam.
?Mas como te ocorreu cavalgar por nosso jardim! ?Gritou para Josephine caminhando em sua direção. ?Não se lembra do esforço que nossos pais fizeram para mantê-lo desta forma? Demoraram anos para mantê-lo assim!
Josh, ao ouvi-la, moveu as rédeas de Galeão para que este se dirigisse para a irmã berrante. Uma vez que se colocou diante dela, e a observou tão pequenina e assustada, um sorriso maléfico se desenhou em seu rosto.
?Afasta agora mesmo esse perisodáctilo do meu lado! ?Lhe pediu enquanto andava para trás. Só parou quando suas costas tocaram o grosso muro de pedra que dividia o jardim da casa.
?Peri... o quê? ?Josh perguntou, descansando os antebraços na crina do cavalo. ?Se chama Galeón.
?Perisodáctilo ?Mary repetiu sem diminuir a raiva ou o medo que sentia na presença do grande animal, que a olhava com seus enormes olhos castanhos. ?Assim se denomina os mamíferos placentários. Aqueles que possuem em suas extremidades um número ímpar de dedos. Como pode ver, seu novo amigo tem um em cada perna e este se denomina casco.
?Gosta de ser chamado desse modo estranho, Galeón? ?Josh lhe perguntou, inclinando-se para a orelha esquerda do animal. Este, como resposta, relinchou e moveu a cabeça. Atitude que deixou Mary mais surpresa se isso fosse possível. ?Não volte a chamá-lo por esse nome porque não gosta.
?Pois não me importa se gosta ou não! ?Respondeu, movendo-se muito lentamente para a esquerda para sair daquela encruzilhada mortal.
?Para onde vai? ?Josh retrucou, depois de açoitar Galleon para andar atrás de sua irmã.
?Não me siga! Por acaso não sabe que esse quadrúpede pode me matar? ?Esbravejou sem olhar para ela e sem parar de andar.
?Galeón é inofensivo...
?Sim, é claro, como as benditas armas que você dorme até levantar ?respondeu se virando para as duas em um ato de coragem. ?Devo deduzir que esqueceu seu velho hábito de jogar com espadas, adagas ou pistolas para substituí-lo por... isso? ?Argumentou, apontando para o animal com um dedo.
?Você realmente acha que eu esqueci delas? ?Respondeu antes de soltar uma risada leve e levantar a perna da calça para mostrar a faca que estava escondendo na bota. ?Sempre estarão comigo, Mary. São e serão meus únicos aliados na luta contra um mundo injusto ?declarou firmemente.
?Quer lutar contra as injustiças? ?Repreendeu. -?Bem, precisará de um bom arsenal, Josh, porque posso garantir que encontrará, ao longo de sua vida, mais de um milhão.
?Vou comprá-los assim que... ?tentou responder, mas ficou em silêncio quando observou a presença de Madeleine que, como era habitual nela, apareceu sem fazer nenhum ruído.
?Aonde você vai Mary? ?A menina perguntou depois de acariciar o pescoço de Galeón. ?Está procurando sua mudança? ?Acrescentou sarcástica.
?Não ?negou veementemente. ?Estou procurando Elizabeth, e sobre minha mudança, posso garantir que sei como detê-la ?murmurou altiva.
?Se você diz... ?Madeleine respondeu exibindo um grande sorriso.
?Se retirou para seu quarto ?Josh interveio enquanto descia do cavalo. ?Sofre de uma terrível dor de cabeça desde...
?Sábado. Sim, eu sei ?Mary a cortou. ?Por esse motivo, minha mãe ordenou que eu a visitasse. Quer que eu a ajude a acalmar sua dor. No entanto, quando apareci no seu quarto, não a encontrei ?continuou.
?Estará na estufa ?Josh disse sem mostrar nenhum sinal de preocupação. ?Sabe que as ervas que cultiva são muito importantes para ela. Durante esses dias, se perguntou se Madeleine seria capaz de cuidar delas, como indicou. Talvez, apesar da dor de cabeça, quis confirmar que não quebrou um caule ou caiu uma folha ?acrescentou sorrindo enquanto pegava as rédeas e as enrolava entre os dedos.
?Quer que te acompanhe? ?Madeleine se ofereceu. ?Me fará bem falar com ela. Não quero que se zangue por algo que puder fazer.
?Não. Me interessa mais que passe seu tempo vigiando ao Josh e a esse bicho. Não sei onde pretende colocá-lo, mas não creio que a escolha que tenha tomado seja adequada...
?Pedirei ao pai para construirmos um estábulo ?assinalou a referida, virando Galeón em direção ao portão externo do jardim. ?Há espaço suficiente para...
Mary parou de ouvir a ideia futurista de Josh quando Madeleine a agarrou pelo braço e a puxou.
?Não esqueça o que eu te disse. Aceite de uma vez por todas o seu destino.
?Não, se puder evitar ?resmungou antes de se soltar daquele aperto e caminhar em direção à estufa enquanto ouvia a criança dar uma grande risada novamente.
***
Se pensou, por um momento, que o seu mau humor desapareceria durante o caminho para a estufa, se equivocou. Após a perseverança de Madeleine, sua raiva atingiu um nível insuperável. Ela estava com tanta raiva que podia aparecer diante de Elizabeth e, sem dizer uma única palavra, pegá-la pelos cabelos para arrastá-la para dentro de casa, como se fosse uma mulher da Pré-História. Pretendia esmagá-la? Bem, não o fez! Tudo o que conseguiu foi atormentá-la para alcançar a maneira de destruir o suposto futuro.
Com as bochechas tão vermelhas quanto as pétalas de uma Gerbera, ela apareceu na frente da porta da estufa e a abriu com tanta brusquidão que as paredes de vidro tremeram e a saia do vestido foi puxada para trás. Sem fechar, deu dois passos à frente e olhou em volta, procurando a familiar silhueta feminina. Mas não a encontrou com tanta facilidade.
Depois de fechar, começou a murmurar mais de uma dezena de impróprios inadequados para uma mulher. Logo caminhou decidida pelo estreito corredor que levava ao lago que seu pai encomendou a construção. A cada passo, seu nariz capturava um cheiro diferente, tornando-a incapaz de descobrir qual flor emitia uma fragrância específica. Parou no meio do caminho e observou tanto o que encontrou a sua direita como a sua esquerda. Um éden. Elizabeth construíra, sob aquelas paredes envidraçadas, um belo lugar cheio de cores e perfumes. Se concentrou em seu alvo e avançou lentamente, sem desviar o olhar do arco-íris floral dos dois lados. Antes de chegar à pequena cisterna, teve que desviar dos grandes galhos da única árvore que sua irmã plantou. Sorriu ao se lembrar do dia em que ela apareceu com aquela mudinha de laranjeira. Não tinha mais de seis anos e mostrava tal entusiasmo que seus olhos brilhavam como duas estrelas. Depois que explicou aos pais o que pretendia fazer com o pequeno talo, Elizabeth saiu para o jardim, olhou para o céu e seguiu para o lado esquerdo da casa. Depois cavou um buraco com suas próprias mãos para plantá-lo enquanto seus pais a observavam em silêncio. Dois meses depois, começaram a construir a estufa e, quando terminaram, Elizabeth se tornou a fada das plantas. Não podia calcular quantas classes possuía nem o que podia fazer com elas, mas sim admitia que seu dom havia se desenvolvido com grande mestria.
Com a imagem do maravilhoso rosto infantil coberto de terra, era estranho o dia em que não chegava manchado em sua casa, e pensando sobre a mudança que sofreu após a traição de Archie, avançou. Então, enquanto o som da roda que movia a água da lagoa alcançava seus ouvidos, encontrou a silhueta que procurava.
As frases que escolheu para reprovar seu comportamento inapropriado, desapareceram de imediato ao contemplá-la daquela maneira. Sua suposição foi confirmada e, em vez de se sentir feliz, conjecturando outra teoria correta, entristeceu. Como deduziu, Eli tinha saído de camisola. Mas não pensou que a encontraria com um aspecto tão desleixado. O seu cabelo, habitualmente recolhido com cuidado, estava solto e frisado, como se não o tivesse escovado em dias. Depois observou a planta dos pés e franziu a testa ao vê-las tão sujas e com manchas de sangue. A mão esquerda de Elizabeth estendia-se frouxa, sem forças, sobre essa parte de seu corpo, enquanto a outra se movia em círculos sobre a água do diminuto lago.
Por um segundo, duvidou se deveria insistir no motivo de sua presença ou deixá-la sozinha com seus pensamentos. Não teve que pensar muito a resposta, pois esta apareceu no momento que a ouviu soluçar.
?Eli? ?Perguntou reduzindo a distância entre elas. ?Está tudo bem? ?Esperou que lhe respondesse, ao não fazê-lo, prosseguiu: ?Anne me disse que sofre uma terrível dor de cabeça e vim para acalmar essa dor.
?Pode ir, Mary. Minha dor não desaparecerá com nada... ?disse depois de alguns segundos angustiantes.
?Duvido ?afirmou colocando a mão direita no ombro esquerdo de Elizabeth. ?Sabe que, quando me empenho, nenhuma dor ou doença suportará mi...
Mary ficou em silêncio enquanto olhava o rosto da irmã. Onde estava a moça bonita? Não havia um pequeno traço dessa beleza com a qual nasceu. Seus olhos azuis não tinham luz, talvez porque as olheiras ao redor eliminaram todo o brilho. Suas bochechas, descritas por ela mesma como perfeitas, agora não passavam de pele sobre ossos, e seus lábios não tinham a cor vermelha intensa que ela tanto admirava porque haviam perdido a tonalidade ao ponto da palidez. Sem pensar duas vezes, afastou a mão do ombro e a colocou na testa, para verificar se estava com febre. Mas Elizabeth não estava quente, muito pelo contrário. Estava tão fria quanto uma estátua de mármore.
?O que diabos aconteceu com você? ?Esbravejou com uma mistura de horror e angustia. ?Por que está assim? ?Antes que Elizabeth pudesse responder, Mary fixou os olhos na mão que ela mantinha submersa na água e instintivamente colocou as suas no peito. ?O que está fazendo com isso? Em que está pensando?
?Pelo que entendi, nossos pais nos dão a vida, mas o destino é quem dita quando deve terminar ?expôs voltando o olhar para a água. ?Talvez a minha deva terminar antes de...
?Não diga bobagens! ?Clamou antes de se inclinar para a adaga e puxá-la dos dedos. ?Este não é o fim, Elizabeth Moore Arany! É o começo de tudo! Como pode pensar em algo tão horrível! Você enlouqueceu? ?E jogou a arma na porta com tanta força que a lâmina de metal se rompeu ao impactar no chão. ?O que aconteceu? ?Insistiu sacudindo-a. ?O que essa cabeça maldita pensa?
E Elizabeth começou a chorar. Escondeu o rosto abatido com as mãos e não conseguiu se consolar até que Mary se sentou ao lado dela e a abraçou com força.
?Anne pensa que está assim porque se comprometeu com o visconde ?explicou enquanto lhe acariciava a mata de cabelo loiro emaranhado. ?Mas eu sei que não é verdade. Apesar desse comportamento repugnante que mostra, no fundo a pequena Elizabeth ainda vive em você. Aquele que corria para cá para descobrir se a nova semente havia germinado ou se as pétalas de uma flor se abriram antes da chegada do amanhecer.
?Eu sou horrível, Mary! ?Soluçou em seu peito. ?Sou a mulher mais horrível que já existiu no mundo!
?Não, querida. Você não é horrível. As circunstâncias fizeram você assim. Você nasceu bonita, como seu físico. O que acontece é...
?Mary... ?sussurrou levantando o rosto para ela. ?Sou horrível, juro pelo sangue que corre em nossas veias. Eu fiz... aconteceu... ?Mas não teve forças para falar, apoiou de novo a testa sobre o peito de sua irmã e continuou chorando sem consolo.
Como superaria isso? Como poderia contar para Mary o que havia acontecido? Não, não conseguia. Tinha que manter isso em segredo. Não só por seu bem, mas também pelo da família.
?Sabe? ?Mary começou a dizer enquanto a segurava com força. ?A vida é cruel para todo mundo. Por mais que tentemos lutar para nos libertar do que nos mantém presos, não obtemos sucesso. A felicidade, essa que muitas pessoas se orgulham de possuir, é uma mentira, uma ilusão fictícia. Ninguém consegue algo tão idílico.
?Então... pelo que vivemos, Mary? Por que ainda estamos neste mundo cruel? ?Perguntou sem levantar o rosto.
?Olhe para mim, Eli! ?Lhe pediu depois de colocar as mãos sobre seus ombros. ?Conte-me o que aconteceu com você, para que não tenha diante de mim a irmã que sempre quis chutar a bunda por ser presunçosa. Onde está a força que expressava? E esse caráter repulsivamente aristocrático.
?Desapareceu... ?murmurou abaixando a cabeça.
?Quem fez isso com você? ?Perseverou, erguendo o rosto com as duas mãos.
?Como o...? ?estalou perplexa.
?Você viu? O destino o colocou de volta em seu caminho? ?Insistiu. ?Porque se assim for, juro que desta vez o matarei com minhas próprias mãos!
?Não! ?Elizabeth respondeu, se levantando da borda empedrada que rodeava o lago. Sem olhar para Mary, esfregou as mãos, olhou para o chão e suspirou. ?Não sei nada de Archie desde que recebi aquela carta.
?Bom. Fico feliz em saber que o pai não terá que me visitar na prisão... por enquanto ?respondeu Mary levantando-se também. Pegou-a por trás e a abraçou com força. ?Se esse filho da puta não é o motivo da sua depressão, o que é?
?Não acredito que possa me amar se te contar ?lhe disse inclinando os ombros para frente.
?Você me ama? ?Lhe perguntou fazendo-a virar para ela. ?Me ama apesar de tudo o que digo ou faço?
?Claro! Você é minha irmã e sabe que te adoro, apesar de todas as coisas estranhas que faz ou diz.
?Exato! ?cortou-a. ?Sempre, apesar de todas as discussões que tivemos, nos amamos. Nisso consiste a família, Eli. E nada, nem ninguém pode eliminar esse vínculo existente entre nós. Podemos ser muito diferentes, felizmente para todas, mas essa desigualdade fez com que nos respeitemos e nos compreendamos. ?Respirou fundo e olhou-a com ternura. ?Por causa dessa compreensão de que falo, sei que sua dor de cabeça é falsa e que as especulações de Anne também são. Sua alma está quebrada. Algo horrível aconteceu com você nessa viagem e te machucou tanto que não será capaz de superá-lo sem ajuda. Só me resta dizer que estou aqui, contigo, e que juntas superaremos tudo.
?Tem sido... horrível ?expressou antes que as lágrimas aparecessem de novo.
?Minha intuição diz como se sente. Mas preciso que me conte tudo, só assim poderemos encontrar a melhor solução ?garantiu com firmeza.
?E se não pode me ajudar? E se for algo tão assustador que só possa ser resolvido com a minha morte ou voltando no tempo?
?Responda-me apenas uma coisa, Elizabeth ?comentou olhando-a nos olhos e tomando-a com ternura dos ombros. ?Essa coisa horrível nos fará procurar e tirar do galpão o berço onde nossos pais nos colocaram no nascimento?
?Não! ?Elizabeth gritou horrorizada.
?Então, querida irmã, todo o resto tem uma solução ?disse antes de abraçá-la e ouvir como Eli suspirava em seus braços.
Capítulo XV
Nos dez dias seguintes, não teve uma mera hora livre para estudar os ensaios que a Sra. Reform lhe deu. Sua mãe tornou-se tirana e continuou ordenando mil tarefas que ela tinha que terminar antes do anoitecer. Para assombro do resto da família, realizou todas, pois nenhuma implicava se afastar de sua casa. Enquanto pudesse estar ao cuidado de Elizabeth e se manter afastada de lorde Giesler, cumpriria sem questionar. Pelo contrário, Anne saía e entrava continuamente de casa. Às vezes, visitava os parentes de seu noivo e outras vezes, chamava urgentemente a costureira que, em sua opinião, não deveria ter muita experiência, pois a fazia experimentar o vestido várias vezes ao dia. Josh e Madeleine, com a desculpa de serem as menores, mal tinham responsabilidades. A única coisa que lhes foi confiada era controlar o novo membro da família. Ainda não dava crédito aos mimos e cuidados que o animal recebia. Acolheram-no com tanto amor, que nem sequer reparavam no fedorento cheiro que invadia o jardim depois de este defecar onde lhe apetecesse. Até seu pai se uniu à louca felicidade! Desde que o visconde colocou o anel em um dos dedos de sua primogênita, vestia-se com elegância e repassava o nó da gravata mil vezes, antes de transitar pelas ruas de Londres no interior da carruagem que seu futuro genro lhe deu. Todos viviam num eterno caos, num infinito disparate. No entanto, admitia que esse estado de desorientação e confusão familiar foi proveitoso para Elizabeth. Apenas reparavam em suas contínuas ausências ou que, cada vez que se reunia com eles, não via um de seus descarados vestidos, mas aqueles que Mary guardava no armário. Talvez evitassem falar do assunto ao dar por confiável a hipótese de Anne e Josh. Aquela em que Elizabeth chorava de ciúmes ao não ser ela quem casava com um aristocrata. Mas ela conhecia a verdade e sofria a agonia de sua irmã em suas próprias entranhas. Desde a tarde que passaram juntas na estufa, não pôde dormir nem uma só noite. Passava horas pensando no medo que Eli suportou e na solidão que se encontrou até aparecer o valete do visconde. Não se importava se ela se culpava por ter encorajado o miserável. A única coisa em que pensou foi que, se era verdade que Morgana cuidava dos de seu sangue, devia matar o gajo justo quando uma de suas mãos desagradáveis a tocou pela primeira vez.
Mary olhou de novo a cortina marrom, que a dona do comércio utilizava para separar a loja da oficina, e respirou com aborrecimento. Se aquela risonha vendedora não a atendesse em breve, sofreria uma apoplexia. Ela não deveria estar lá. Seu tempo era muito valioso para perder sentada em uma cadeira desconfortável e, como seguissem ignorando-a, o escândalo que lhe anunciou a sua mãe, se cumpriria em breve.
?Coloque um casaco e pegue o pedido ?Sophia ordenou depois de encontrá-la escondida no armário. ?A costureira está esperando por você.
?Anne não pode cuidar dessa tarefa? Hoje certamente terá que experimentar o vestido novamente e não será necessário nenhum esforço para suportar o peso de quatro bolsas ?propôs enquanto saía das sombras que lhe proporcionou o inútil esconderijo.
?Hoje não a visitará ?respondeu andando atrás de sua filha. ?Deve comparecer ao almoço oferecido pela Marquesa de Riderland em sua homenagem.
?E as gêmeas? ?Sugeriu se virando para sua mãe.
?Ainda são muito pequenas para passear sozinhas pelas ruas ?Sophia respondeu levantando o tom da voz e erguendo a sobrancelha direita.
?E eu sim posso fazê-lo? ?Disse com falso espanto. ?Não lhe preocupa a opinião que terão as pessoas de mim quando me virem caminhando sem proteção por Cover Garden?
?Desde quando se importa com que dirão, Mary? ?Espetou sua mãe cruzando os braços na frente do peito.
?Desde que minha honorável e maravilhosa irmã mais velha se comprometeu com um visconde ?expôs como se a resposta tivesse sido estudada mil vezes.
?Então... você faz isso por sua irmã? ?Sophia perguntou olhando para ela sem piscar.
?Claro! Você realmente pensou que eu faço isso para meu próprio benefício? ?Respondeu, fingindo estar ofendida. ?Temos que agir corretamente, pelo bem de Anne. Já sabe como a aristocracia gosta dos mexericos e fofocas; pensa que não fofocarão sobre a desproteção de uma das irmãs da futura Viscondessa de Devon? Será um verdadeiro escândalo! ?Acrescentou com aparente angústia.
Mary estava prestes a pular de alegria ao observar sua mãe refletir sobre o assunto. Tinha encontrado o ponto fraco: as fofocas. Até agora, Sophia só estava interessada em cuidar da reputação do marido, no entanto, desde o noivado, tudo mudou.
?Por um momento, apenas por um momento, pensei que era sincera, Mary Moore Arany. Mas, felizmente para mim, o sangue que nos une me adverte que sua intenção é diferente da que você diz. Limpe a farinha da saia, arrume o cabelo e vista o casaco. Quero os vestidos em nossa casa antes que Eugine termine de cozinhar as perdizes, entendido? ?Disse com raiva. Virou as costas e caminhou em direção à lareira.
?E se alguém quiser me machucar? ?Mary perseverou.
?Depois do que fez ao jovem Wang, acredito que ninguém tenha coragem suficiente para falar ou cumprimentar você ?disse Sophia atiçando o fogo.
Que o inferno congelasse! Mas, por que não o havia esquecido? Quanto tempo tinha passado, três, quatro anos? Era certo que a síncope que sofreu, quando abriu a porta e a encontrou escoltada por dois agentes, foi tão grande que seu pai teve que lhe administrar uma pequena dose de clorofórmio. Certamente, ela ficou de castigo em seu quarto por três dias, os mesmos que ela passou lendo e desfrutando de uma bela solidão. Quando ela pôde explicar o que aconteceu, seu pai caiu na gargalhada. Talvez porque ele foi o único que entendeu sua posição sobre doenças causadas por distúrbios celulares. Em vez disso, sua mãe só pediu a Morgana que a sociedade londrina ficasse surda e cega por duas semanas. Ela estava muito preocupada com a repercussão que seu marido sofreria quando as pessoas soubessem que a segunda de suas filhas havia golpeado, até quebrar o guarda-chuva, a carruagem do jovem Wang, que de dentro, pedia socorro. Logicamente, não podia culpá-la por desconhecer a importância que tinha a teoria da Patologia Celular em medicina, mas aquele petulante sim e por esse motivo, ao ouvi-lo dizer que se tratava de uma conjectura sem sentido para explicar as doenças dos organismos, perdeu o controle. Como podia falar dessa forma o filho de um médico que foi à universidade com Rudolf Virchow? Só um tolo, como Wang, podia soltar por sua boca semelhantes tolices. Obviamente, o temor de sua mãe apareceu antes do imaginado. As pessoas falaram sobre a agressão da filha perturbada do doutor Moore ao encantador Wang. Desde aquele dia, não importava se andava sozinha ou de noite, ninguém se aproximava e atravessavam a rua, quando levava um guarda-chuva na mão.
?Senhorita Moore?
A pergunta que a vendedora lançou ao ar, depois de sair pela décima quinta vez da sala dos fundos, tirou Mary de seus pensamentos. Ela se levantou da cadeira, onde estivera mais de uma hora, e se aproximou do balcão.
?Finalmente descobriram que estou aqui! ?Disse sarcasticamente. ?Pensei que me confundi de estabelecimento porque, apesar de ser a primeira, atenderam outras clientes antes de mim.
?Para fazer um excelente trabalho, é preciso ter paciência e tempo ?a funcionária manifestou, colocando sobre a bancada envernizada as bolsas que levava nas mãos.
?Não discuto isso. Mas garanto-lhe que tiveram tempo suficiente para confeccionar dois vestidos e emplumar quatro chapéus ?Mary insistiu, enquanto confirmava que as roupas que lhe oferecia eram as mesmas que fora buscar. Nas bolsas estava o vestido rosa pálido de Madeleine, o malva claro de Josephine, o marrom de sua mãe e quando observou o seu, franziu a testa e olhou à empregada como se buscasse a forma mais rápida de lhe quebrar o pescoço. Depois pegou com dois dedos o tecido daquela roupa verde, colocou-a frente ao nariz da trabalhadora e perguntou-lhe com raiva: ?Não lhe indicaram que este vestido devia ser azul marinho? Por que, não é? Acaso a costureira sofre de discromatopsia?[8]
?Expliquei a sua mãe que não era uma cor apropriada para um casamento tão importante e que todos os convidados à cerimônia pensariam que a jovem em questão se encontraria em período de luto ?explicou com orgulho enquanto a olhava de baixo a cima. ?Foi por isso que lhe pedi que reconsiderasse e, para satisfação pessoal, fez o mesmo. A senhora Moore é uma mulher muito inteligente e selecionou uma tonalidade bastante atual e...
?Estúpida? ?Mary a interrompeu. ?Porque não há outra maneira de descrevê-la. Agora, em vez de mostrar a imagem de uma jovem séria, correta e virtuosa, parecerei a garrafa que algum bucaneiro bêbado de Whitechapel leva em uma mão.
?Como ousa falar desse modo? ?Perguntou chocada. ?Nenhuma de nossas clientes se comparou com semelhante barbaridade! Todas estão encantadas com nosso trabalho! Minha oficina é única na cidade!
?Única? Certamente minha governanta conserta remendos menos emaranhadas do que estes ?comentou mal-humorada enquanto empilhava as bolsas com as duas mãos. ?E não se mostre tão ofuscada por uma crítica construtiva. Deve saber que será muito rentável para o seu negócio ouvir as opiniões dos clientes. Só assim obterão a perfeição da qual se vangloriam. Espero que a próxima vez que lhe encomendem uma peça de roupa de uma cor determinada, você morda a língua e não opine.
?Santo Deus! ?Exclamou horrorizada levando as mãos ao peito. ?Não a compararão com uma garrafa, mas com a filha do próprio diabo! Agora entendo por que desejava uma cor tão escura, combinaria com sua alma.
?Tenha cuidado com o que pensa... ?Mary lhe disse uma vez que abriu a porta. ?Pode ser que esta filha do diabo invoque a umas quantas almas errantes para que incomodem seus dóceis clientes.
Antes de fechar a porta, observou divertida como a vendedora não deixava de se benzer, ato ao qual estava bastante acostumada. As pessoas costumavam fazer isso depois de ouvi-la falar. Uma vez que saiu da loja, ela soltou uma grande risada e seguiu para a carruagem. Ela teria que usar um vestido horrível, mas a funcionária viveria assustada por um longo tempo. Satisfeita e orgulhosa de ser uma mulher tão sincera, ela avançou até que o cocheiro a viu chegar e saiu do veículo. Ele abriu a porta, desceu as escadas, esperando que ela subisse, mas não o fez.
Mary ficou de pé junto à carruagem, segurando as bolsas. Seus olhos, embora estivessem se movendo em direção ao interior da carruagem, não observaram nada em particular. Estava ausente, pensando silenciosamente sobre a ideia que acabava de aparecer em sua cabeça. Levantou o queixo e sentiu em seu rosto as carícias do leve vento que previa uma rápida chuva. Era o momento ideal. Se não, quando teria outra chance? Ela ficou trancada por um longo tempo, aceitando sem objeção tudo o que sua mãe ordenava, pois nada, exceto o que ela pediu horas antes, a afastava de seu propósito. Mas estava fora, sob um céu tão cinza como o mercúrio de um termômetro. De repente, pensou em seu pai e nas conversas que manteve com sua mãe sobre o incansável trabalho do mordomo de lorde Giesler. Segundo entendia, este realizava tudo o que lhe foi dito para que a recuperação de seu senhor fosse rápida e adequada. Claro, isso implicava também protegê-lo de uma possível chuva...
Ao deduzir que seu maior problema não ocorreria, jogou as bolsas dentro da carruagem, abotoou o casaco e disse ao empregado sem olhá-lo:
?Voltarei andando.
?Andando? ?Ele respondeu bastante surpreso.
?Sim, andando. É uma das habilidades físicas que caracterizam o ser humano. Por que acredita que nascemos com duas pernas? ?Garantiu sagaz.
?Não digo por isso, Srta. Moore. Permita-me informá-la que não seria certo deixá-la sozinha com esse tempo ?disse o amável trabalhador depois de fechar a porta. ?Se observar as nuvens, descobrirá que não tardará em chover e a senhora não gostará que uma de suas filhas adoeça dois dias antes da cerimônia.
?Não se preocupe com minha saúde, Owen. Asseguro-lhe que se aparecer essa chuva alugarei uma carruagem ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Deseja, pelo menos, que lhe ofereça um guarda-chuva? Sua mãe não lhe repreenderá se lhe explicar que se resguardou...
?Não! Sem guarda-chuva! ?Respondeu como se tivesse sido picada na bunda com um alfinete. ?Prometo que ela ficará mais zangada se eu o tiver.
?Como desejar ?terminou de lhe dizer antes de subir e açoitar o cavalo.
Mary se virou para sua esquerda e, enquanto escutava como se afastava a carruagem, observou com entusiasmo tudo o que tinha diante de seus olhos. Felizmente para ela, a rua estava muito calma. Talvez porque, como disse o empregado, a ameaça de chuva assustou muitos londrinos. No entanto, os poucos atrevidos que encontrou passavam ao seu lado sem reparar nela. Ato que agradeceu porque não queria observar rostos de espanto, assombro ou estranheza. Precisava, depois de tantos dias enclausurada em sua casa, sentir um pouco de liberdade e tranquilidade.
Com a mão direita ligeiramente levantada, pois a alça de sua retícula se encaixara na dobra de seu cotovelo, se dirigiu em primeiro lugar para a enorme fachada do Teatro Real de Drury Lane. Uma vez que se colocou em frente à porta, levantou o rosto para admirá-lo. Indubitavelmente, era um edifício grandioso. Segundo tinha lido, podia abrigar três mil e seiscentos espectadores e depois do último incêndio, ocorrido em 1809, os arquitetos encarregados da reconstrução usaram colunas de ferro para substituir aquelas de madeira que sustentam os cinco níveis das galerias. Mas se esses dados lhe pareceram extraordinários, o fato de saber que ali se celebravam, desde dois anos atrás, os melhores espetáculos e melodramas, a deixou sem palavras. Olhou intrigada o cartaz que alguém colocou na direita do pórtico e suspirou. Em outra ocasião, quando sua vida fosse menos agitada, poderia desfrutar da música que tocaria a orquestra que anunciava esse cartaz. Com uma inevitável sensação de saudade, já que desejava que a normalidade voltasse à casa dos Moore, continuou o caminho, se esquivando das bancas de frutas e verduras que encontrou.
Covent Garden era um lugar muito estimulante, como indicavam os jornais. Embora não parecesse tão perigoso quanto insistiam em descrever. Onde estavam as prostitutas, os bandidos e os criminosos que perseguiam os cantos do mercado em busca de uma vítima para assaltar? Porque ela não os via. A única coisa que tinha diante de seus olhos eram pessoas comuns e mundanas e que ofereciam suas mercadorias aos poucos clientes que andavam perto de suas bancas.
Continuou naquele lado da calçada e justamente quando determinou que o passeio deveria terminar, seu nariz capturou um maravilhoso aroma de café. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Insuperável... Se a bebida fosse tão boa quanto o aroma que emitia, não poderia voltar para casa sem saborear uma boa xícara. Com o nariz levantado, como se fosse um cão de caça, seguiu para o estabelecimento que o servia. Quando chegou, sorriu ao ver que não era a única pessoa que abandonava suas obrigações para deleitar-se com um costume tão pouco inglês. Talvez a maravilhosa tradição de ingerir só chá iniciava uma época de declínio, ou talvez houvesse mais gente tão estranha quanto ela.
Enquanto esperava sua vez, se apoiou na parede de maneira descontraída e procurou algumas moedas para pagar pela compra.
?Quanto me custaria passar uma hora com você, Srta. Moore? Garanto-lhe que pagarei com prazer.
Mary, muito lentamente, tirou a mão da retícula, se afastou da parede, levantou o rosto e olhou com altivez para o dono daquela voz. Ali estava o maior idiota do mundo, vestido com um traje cinza escuro, tal como ditava a moda nesse momento. Peter Wang a observava com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casaco e mostrava com orgulho um repugnante bigode louro, cujas extremidades se enrolavam para cima.
?O que disse? ?Perguntou tão indignada e furiosa que suas bochechas mudaram de cor pelo sufoco.
?Digo-lhe, senhorita Moore, que estou disposto a pagar tudo o que me peça se me oferecer algo interessante em troca ?Wang disse, verificando o vestido grosseiro de Mary. Depois de sorrir com malícia, avançou para ela. ?Imagino que seja por isso que está sozinha nesta parte de Londres, não é verdade? ?Falou olhando levemente ao redor. ?Finalmente assumiu que nunca alcançaria seu sonho e adotou a posição mais sensata para sua idade: recuperar o tempo perdido tornando-se amante de um distinto cavalheiro.
?Bom dia, senhorita, o que deseja tomar? ?Interveio a amável vendedora alheia, até o momento, da situação que se vivia na frente do posto.
?Bom Dia. Importa-se de me servir a maior xícara de café que você oferece aos seus clientes, por favor? ?Mary respondeu sem olhar para ela.
?Café? ?Perguntou Wang sem tirar os olhos dela. ?Como é normal em você, me confunde. Tinha deduzido, erroneamente, claro, que se tratava de uma mulher que adorava passar as horas do dia tomando chá com doces, dado o volume desproporcionado que tomaram seus quadris desde a última vez que nos vimos.
?Deus bendito! ?A vendedora soltou horrorizada ao ouvi-lo.
Gorda e prostituta. Até esse preciso instante a tinham dedicado muitos adjetivos e substantivos repugnantes, mas nenhum superava a brilhante descrição daquele energúmeno. Mary olhou de relance para a trabalhadora envergonhada. Ela colocou a xícara que pedira no balcão de metal com as mãos trêmulas e se afastou, como se estivesse lendo seus pensamentos. Sem prestar atenção às palavras de Wang, que perseverou em informar que sua robustez aumentara tanto que não seria bom para sua saúde, ela se virou para a esquerda, pegou a xícara e jogou nele.
?Maldita aberração! ?Exclamou. ?Como ousa falar comigo com tanta insolência? ?Vociferou. ?Você é o homem mais estúpido que eu já conheci na minha vida!
?É uma rameira! ?Wang esbravejou quando suas mãos com luvas pretas desabotoaram os botões do casaco.
Tudo o que aconteceu desde o momento em que atirou o café sobre Wang, transcorreu muito lentamente para Mary. O filho do médico tirou algumas roupas e as jogou no chão. Então gritou milhares de maldições quando não conseguiu acalmar as queimaduras que seu peito sofreu. Ele olhou para ela com tanta raiva que qualquer mulher teria morrido de medo. Avançou para ela, levantou o braço direito e estendeu os dedos para lhe acertar um bofetão. Mas não chegou a tocá-la. Uma mão enorme, que ela reconheceu rapidamente, apertou o pulso do agressor e o puxou com uma força tão grande que ele caiu no chão junto com suas roupas.
***
?Como foi capaz de fazer uma coisa dessas? ?Philip gritou pulando da cadeira. ?Aquela mãe ficou louca?
?Não creio que o termo louca seja muito apropriado para descrever a senhora Moore, milorde ?Disse Shals antes de dar uma gorjeta ao menino que lhe fez chegar a notícia. Quando este partiu, virou-se para o angustiado lorde e prosseguiu: ?Primeiro, devo descobrir o que aconteceu para que a senhorita Moore saísse sem proteção. Certamente você encontrará uma explicação tão divertida que estará rindo por vários dias...
Nem ele mesmo acreditava em suas próprias palavras! Como uma mãe, sabendo qual era a opinião da sociedade sobre a sua filha, deixava-a sair de casa sem acompanhante? Queria que chegasse o juízo final? Porque isso mesmo ia acontecer. Não só pelo que aquela moça poderia fazer, mas pelo que estava a ponto de realizar seu amo.
?Shals? ?Giesler perguntou ao vê-lo imóvel na frente do cabide.
?Sim senhor. Eu já tenho ?respondeu. Mostrou-lhe a jaqueta que havia pegado e caminhou até ele.
?Não há explicação... ?Philip continuou a falar enquanto o mordomo o ajudava a vestir a jaqueta. ?Mary não pode passear pelas ruas sem proteção. Além disso... não disse que começaria a chover em breve? ?Retrucou quando se virou para que Shals abotoasse os botões.
?De fato, milorde. As nuvens são tão cinzentas como a cinza que há em uma lareira depois de um enorme fogo. Se o vento não as mover, logo aparecerão as primeiras gotas. ?Terminou de colocar a jaqueta e correu para a porta do escritório para deixar passar o homem que, apesar de não estar totalmente recuperado de uma operação, percorreria Londres a pé para proteger a mulher que amava em segredo.
?Diga ao cocheiro que esteja pronto em um minuto ?ordenou Philip antes de entrar na sala de jantar e desabotoar a jaqueta.
Não fechou ao entrar. Não era hora de se preocupar em buscar um pouco de privacidade, mas de agir rapidamente. Ele foi até a vitrine de mogno, colocou a mão direita na borda e moveu os dedos até encontrar a chave. Uma vez que a encaixou na fechadura, virou-a para a direita e abriu a estreita e longa porta de vidro. O cheiro de pólvora atingiu seu nariz, fazendo-o lembrar diferentes episódios importantes de sua vida. Em qualquer outro momento, ele teria sorrido para inspirar a segurança e a diversão que esse perfume em particular transmitia. Mas agora isso só lhe dava um aroma, o de Mary, e expressava um desejo: cuidar dela.
Como tinha sido tão insensata de passear por Cover Garden sem proteção? Não gostava tanto de ler? Então, por que não havia lido nos jornais as críticas que fizeram sobre essa região em particular da cidade? Ainda bem que seu empregado foi sensato e lhe fez chegar a informação através daquele pequeno batedor de carteira. Sabia que ele agiria com rapidez e que nem uma chuva de ratos infectados com lepra lhe impediria ir buscá-la. Levantou a arma com a mão direita até que a culatra de marfim branca ficou à altura de seus olhos e com a outra mão carregou a munição, o projétil e o bloco de papel através do cano. Uma vez que ficou carregada e pronta, ele a guardou no bolso interior da jaqueta, fechou a porta da vitrine, colocou a chave no lugar, virou-se para a porta e enquanto saía, fechou ele mesmo a jaqueta.
?Tudo pronto, meu senhor ?Shals disse oferecendo-lhe o casaco. ?Quer que o acompanhe? Seguro que posso me ausentar algumas horas... ?acrescentou uma vez que o ajudou a colocá-lo.
?Não. Prefiro que esteja aqui caso apareça Valeria ou Martin ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Se isso acontecer, deseja que conte a versão real ou mais uma... ilusória? ?Sugeriu enquanto colocava o chapéu nas mãos.
?Real ?declarou antes de colocá-lo sobre a cabeça e sair de lá.
Shals encarou a grande figura de seu senhor até que ele entrou na carruagem com a ajuda do cocheiro. Nas duas semanas anteriores, lorde Giesler permaneceu muito calmo em sua residência, recuperando-se da operação. Ele próprio acreditava que, se continuasse assim, seu senhor morreria de tédio, porque nunca ficava em casa por tanto tempo, exceto quando chegava tão bêbado que não conseguia se lembrar de seu nome. No entanto, sua atitude mudou tanto que o serviço murmurava incessantemente sobre o estranho comportamento do homem que pagava seus honorários. Até chegaram a pensar que a senhorita Moore, durante a operação, lhe arrancou não só um pedaço de tripa envenenada, mas também a virilidade. Ninguém, exceto ele, entendia o motivo pelo qual ficava várias horas sentado em um sofá, prostrado em sua cama ou caminhando pela casa com muito cuidado para não se machucar: a senhorita Moore. Desde o dia em que os encontrou no quarto, em circunstâncias comprometedoras, lorde Giesler não tinha pensado em nada, exceto em curá-lo com rapidez e cortejá-la como era devido. Até tinha lido livros de medicina! Seu novo propósito consistia em que, a próxima vez que se encontrassem, a jovem se apaixonasse por ele tal como ele estava apaixonado por ela. No entanto, tinha a sensação de que seu primeiro encontro social não seria tão romântico quanto ele esperava...
Apesar de tudo, confiava na sabedoria da senhorita Moore e rezava para que não se metesse em nenhum problema. Se isso acontecesse, se seu senhor testemunhasse alguma ofensa contra ela... Que Deus tenha piedade do insensato! A arma que tinha guardado no bolso era de um tiro e só o usaria como advertência. Para ser sincero, não temia pelos danos que aquela bala poderia causar, mas o que aquelas duas mãos fortes e grandes poderiam fazer.
Shals suspirou quando a carruagem se perdeu na distância. Fechou devagar a porta, virou-se e caminhou pelo corredor como se algum empregado tivesse pedido sua ajuda.
Capítulo XVI
Philip observou, de sua carruagem e atrás da cortiça marrom escura, como Mary abandonava a loja na qual havia permanecido desde que ele chegou. Quando ele pretendia respirar com calma, coisa que não havia feito desde que soube que ela saíra de casa sozinha, observou, pasmo, que ela depositou as malas dentro da carruagem e se afastou. Antecipando o que aconteceria a seguir, colocou a mão esquerda com luvas na maçaneta da porta e abriu. Enquanto ele pisava nos paralelepípedos da calçada com seus sapatos pretos brilhantes, Mary conversava com o funcionário. Então, ela apertou os botões do casaco, virou e começou a descer a rua.
?Milorde? ?Lhe perguntou o cocheiro um tanto confuso ao descobrir que seu senhor abria a porta e saía da carruagem sem ajuda.
?Me espere aqui, Thenders. Se eu não aparecer em 10 minutos, você tem minha permissão para voltar ?lhe ordenou sem afastar seus olhos azulados da mulher.
?Como quiser senhor ?o servo respondeu depois de depositar as rédeas no assento.
Philip caminhou atrás de Mary, mantendo uma distância suficiente para que lhe não descobrisse, mas o apropriado para agir rapidamente, se necessário. Por mais que tentasse, era incapaz de tirar os olhos do corpo com o qual sonhara quase todas as noites. Suas mãos, exatamente como fizeram nessas alucinações eróticas, foram em sua direção para tocá-la, mas ele as bateu nos dois lados do casaco quando percebeu o que estava fazendo. Irritado com a perda incomum de controle, ele os colocou nos bolsos e os apertou. Sentia falta dela. Sim ele fez! Não havia manhã em que acordasse e se perguntasse que sentimento o invadiria se ela permanecesse ao seu lado. Mas essa melancolia não terminava quando se levantava da cama. A cada hora, a cada minuto, a cada segundo do dia sentia falta de inspirar o perfume feminino misturado com essências medicinais, desejava notar as carícias suaves de seus lábios e a necessidade de tê-la ao seu lado aumentou tanto que estava ficando louco. Como conseguiu o que muitas mulheres desejavam alcançar? Era sua paixão, seu intelecto ou talvez esse jeito tão especial que tinha de olhá-lo? Embora seus olhos emitissem raiva, ele sabia que a raiva não era real. Desejava-o, tanto ou mais do que ele desejava a ela. Só esperava o momento em que se rendesse a suas paixões. Uma vez que conseguisse romper essa rígida barreira, lutaria com todas as armas que tivesse a seu alcance para fazê-la sua para sempre.
Enquanto sua mente perversa lhe fez reviver algumas cenas que teve em seus sonhos lascivos, observou como Mary parava em frente à entrada do teatro. Depois de ler a placa à direita e pensar em algo que queria saber, continuou a caminhada sem ver como as pessoas, que caminhavam ao seu lado, a olhavam de canto de olho. Sem dúvida, todo mundo estava fazendo a mesma pergunta: que diabos uma mulher como ela estava fazendo sem vigilância? Mas ele não conseguia responder. Não sabia o motivo pelo qual a senhora Moore, uma mãe a quem descrevia como coerente, permitiu que sua filha andasse sem proteção por uma região bastante perigosa de Londres. De repente, esse desejo primitivo de cuidar dela se intensificou. Precisava fazê-los entender, a quem a olhava com receio, que não estava desprotegida, que ele a vigiava. No entanto, se obrigou a manter distância, porque se Mary o descobrisse, não lhe cabia nenhuma dúvida de que o atacaria como uma leoa recém parida.
Um enorme sorriso se desenhou em seu rosto ao apreciar como erguia o queixo, fechava os olhos suavemente e inspirava o cheiro de café, que emitia um estabelecimento localizado a três barracas de verduras. Como Shals o informou, sentia uma certa fraqueza por aquela bebida. Quantas xícaras tinha tomado no último dia em que o visitou? Não se lembrava se eram quatro ou cinco, mas seu fiel mordomo disse que precisou fazer duas cafeteiras para si mesma.
Sem poder apagar aquele pequeno sorriso de felicidade, pois esse pequeno gosto comum os unia mais do que aquilo que um anel de noivado poderia unir, ficou parado na frente dela. Claro, estava tão entusiasmada em procurar as moedas com que pagaria à vendedora que não reparou na sua presença.
Philip encostou o ombro esquerdo num poste, ficou de braços cruzados e continuou a observá-la. As pessoas mais atrevidas, ao passar por seu lado, o olhavam de relance. Os temerosos se afastavam. Talvez seu traje escuro, sua altura ou a ruga que apareceu em sua testa, ao contemplar como um jovem se aproximava de Mary com um sorriso irônico, avisasse que, se quisessem ficar seguros, deveriam se afastar dele rapidamente. Quando o rapaz ficou na frente dela, Giesler descruzou os braços, afastou-se do poste e deu um grande passo. Não atendeu à blasfêmia que um cocheiro soltou quando puxou com força as rédeas de seus cavalos para não atropelá-lo. Estava tão concentrado naquela cena, que tudo à sua volta desapareceu. Deu outro passo, ficando no meio da via, tirou uma luva e a jogou no chão. Logo, no passo seguinte, se desfez da outra. Mais um passo... Só restavam três e poderia escutar o que dizia aquele estranho para Mary para que se mostrasse tão tensa. Sua futura esposa, porque assim a denominou desde que entendeu que não podia ter em sua cama outra mulher que não fosse ela, sempre enfrentava o mundo com a bravura de um dragão. Entretanto, notava que nesta ocasião estava se contendo. Então, sua valente guerreira brotou. Se virou para a vendedora, que havia colocado uma xícara enorme de café no pequeno balcão de sua loja, o pegou e jogou no rapaz em questão.
Os três passos que faltavam até alcançá-los, Philip os converteu em um ao ouvir como aquele insensato a chamava de rameira e levantava seu braço para golpeá-la. Quando se colocou atrás do rapaz, lhe agarrou o pulso do braço levantado e o puxou com tanta força que este ficou estendido no chão, junto com as roupas que tirou.
?Lorde Giesler! ?Exclamou Mary. ?Não!
Mas Philip não a ouviu, nem percebeu como ela o agarrou pelas costas do casaco para detê-lo. Com um rápido movimento de ombros, deslizou o pesado casaco preto até que se soltar dele. Depois, desabotoou o casaco e atirou-o ao chão. Uma vez que deixou de sentir a pressão que aquelas roupas exerciam em seus braços, estendeu as mãos para o menino, o agarrou e o levantou sem pouco esforço.
?Como a chamou? ?Ele gritou, levantando tanto o jovem que seus pés não tocavam o chão.
?Milorde! Me solte! ?Wang gritou desesperado. ?Me solte! ?Repetiu.
?Como a chamou? ?Voltou a rosnar.
?Por acaso não viu? Essa desgraçada me jogou uma xícara de café fervendo! ?Tentou justificar.
?Rameira ?a vendedora terminou, que havia deixado seu posto e agarrado Mary pelos ombros para confortá-la. ?Chamou a senhorita de rameira e gorda.
?Cale a boca! ?Lhe gritou Mary afastando-se dela.
Aterrorizada, deu um passo em frente e justo quando ia abrir a boca para ordenar ao Titã de cabelos louros que o soltasse, seu sapato direito tropeçou com algo duro. Olhou para o chão e arregalou os olhos ao ver a coronha perolada de uma arma. Sua angústia cresceu tanto que ficou muda. Presa desse pânico que começava a brotar do mais fundo de sua alma, jogou o casaco negro, que havia tirado do lorde, e o jogou sobre a jaqueta, para que ninguém reparasse na presença dessa arma.
?Você ia bater nela? ?Perseverou Philip alheio aos movimentos dela.
?Lorde Giesler, lhe imploro, não precisa fazer um espetáculo por algo tão insignificante. Tudo estava esclarecido no instante em que... ?Tentou explicar, mas teve que calar-se quando seu agressor a interrompeu.
?Merece uma lição! ?Wang gritou olhando em volta, procurando uma pessoa para defendê-lo.
Philip o soltou e quando o jovem apoiou as plantas dos sapatos no chão, levantou seu braço direito e lhe deu uma bofetada que lhe cruzou a cara.
?Como esse? ?Berrou fora de si.
?Ninguém vai separá-los? ?Mary gritou desesperada.
A princípio, o tumulto que os cercava permaneceu silencioso, mas quando lorde Giesler deu um tapa no rosto, o clima mudou e começou a se ouvir gritos encorajadores daqueles que os observavam. Ninguém queria parar o confronto masculino, apesar de estar ciente de que não havia igualdade física entre eles. Enquanto Wang era um rapaz alto, mas bastante esquálido, o lorde superava em altura e seu corpo dobrava seu oponente em musculatura.
?Vamos! ?Philip insistiu enquanto arregaçava as mangas da camisa. ?Me devolva o tapa! O que espera, maldito rato? Onde está agora a coragem que mostrava ao atacar uma mulher? Mostre-a com um homem!
?Não vou lutar com você... ?disse Wang caminhando para trás. ?Não por essa!
?Não! ?Mary gritou novamente enquanto observava Philip se aproximar de Wang e começar a espancá-lo sem piedade.
Olhou aterrorizada ao seu redor, procurando alguém grande e valente o suficiente para impedi-lo. Mas ninguém se atrevia a intervir em uma briga em que um dos combatentes exibia a imagem de um deus irritado. Preferiam ser meros espectadores a serem feridos. Supondo que a única pessoa que podia terminar a luta era ela mesma, saltou para frente e agarrou-se ao pescoço de lorde Giesler.
?Solte-o! Solte-o! ?Repetiu uma e outra vez.
No entanto, ele não a ouvia. Seu corpo parecia um pêndulo. Movia-se da direita para a esquerda, conforme batia. Abriu a boca, com a pretensão de lhe morder o pescoço, mas logo pensou melhor. Seu pai não lhe disse que, se apertasse com força o pescoço de uma pessoa, esta deixava de respirar e podia perder a consciência? Pois isso mesmo faria. Evitando não cair, estendeu seu braço direito sobre a garganta do lorde e apertou com a intensidade suficiente para que sua agitada respiração se tornasse algo mais pausada.
Giesler, ao sentir como lhe faltava o ar, deu um passo para trás, olhou o rosto machucado do homem e sorriu satisfeito ao comprovar que o olho direito estava tão inchado que não poderia ver com clareza por várias semanas. Mas sua alegria aumentou ao observar dois fios de sangue sob seu nariz. Depois, muito devagar, olhou por cima do ombro para confirmar que os braços que rodeavam seu pescoço pertenciam a Mary. Quem, se não ela, teria o valor suficiente para freá-lo de uma maneira tão pouco usual? Estendeu os braços para trás e acolheu com suas mãos grandes os gostosos glúteos femininos. A falta de oxigênio o deixou tão nublado que não ouviu com clareza como ela gemeu diante do contato. A única coisa em que ele se concentrou foi que Mary não se machucasse ao deitá-la no chão. Enquanto as pessoas encorajavam o ato violento, o corpo de Mary desceu ao chão, roçando o seu. Em outro momento, enlouqueceria de desejo, no entanto, este não era. Precisava confirmar que não estava ferida.
?Está bem? Se machucou? ?Perguntou-lhe quando se virou para ela. Acariciou-lhe a bochecha esquerda e enfiou uma mecha desse cabelo negro despenteado atrás da orelha.
?Eu?! ?Estalou sem poder afastar seus olhos dele. ?. Eu estou perfeitamente, é ele quem não está! ?Acrescentou apontando com um dedo da mão esquerda para o filho do médico.
?Esse tolo importa menos para mim do que uma casca de ovo, Mary. A única coisa que me interessa é saber se você está bem ou tenho que continuar batendo nele até que não sem lembre como se chama ?afirmou enquanto olhava para aquele rosto corado de raiva e vergonha.
E o escândalo oferecido por aqueles que incentivaram a luta desapareceu para dar lugar a um estranho silêncio.
?Afastem-se! ?Ordenou um homem depois de soprar várias vezes com seu apito. ?Afastem-se do nosso caminho!
Philip virou-se para aqueles que tranquilizaram a multidão, escondeu Mary atrás do seu corpo e olhou para o local na rua onde dois agentes apareceram. Estes, ao reconhecê-lo, aproximaram-se dele e levaram a mão direita ao chapéu que cobriam suas cabeças.
?Giesler... ?Um dos policiais se referiu a ele pelo sobrenome devido à amizade que mantiveram durante vários anos.
?Thomas...
?O que aconteceu? ?Ele perguntou depois de dar um forte aperto de mão.
?Este estúpido quis bater em uma mulher ?Philip murmurou, dirigindo-se a Wang com um olhar de reprovação e ódio.
?Qual delas? ?O outro parceiro queria saber enquanto observava o rosto de todas as mulheres que estavam na frente da banca de café.
?Ela... ?declarou Philip afastando-se para o lado para que seus dois antigos companheiros da Scotland Yard descobrissem a quem se referia.
?Por Deus, senhorita Moore! É você de novo? ?Estalou Thomas atordoado. ?Mas por que agrediu novamente o senhor Wang? O que usou desta vez, essa bolsa? ?Acrescentou divertido.
?Não senhor. Desta vez o encharquei com uma xícara de café quente ?comentou Mary levantando o queixo de maneira altiva. ?Mas em minha defesa alegarei que eu não tive a culpa deste acidente. Ele veio até mim e me insultou.
?O que lhe disse desta vez para irritá-la, senhor Wang? ?Perseverou o outro agente com voz cansada enquanto o ajudava a levantar-se.
?Gorda e rameira ?a vendedora interveio. ?Assim a chamou diante dos meus clientes.
?Maldito bastardo! ?Philip deu um passo em direção a ele. Mas não podia chegar perto tudo o que ele desejava porque Thomas agiu rapidamente e ficou entre os dois.
?Muito obrigada pela ajuda ?Mary murmurou com sarcasmo à vendedora.
?De nada, senhorita. Nós mulheres devemos nos apoiar diante deste tipo de monstros ?a jovem disse sem perceber o tom acusatório de sua voz.
?E bem? ?Thomas perguntou a Wang. ?Tem algo a alegar?
Wang, que já estava segurando a roupa suja em um braço, retirou o sangue que saía do nariz com a manga esquerda da camisa e olhou para o seu agressor, depois para Mary, depois para as pessoas que se reuniram ao redor dele e terminou por encarar o agente que insistia em descobrir o que aconteceu. Ao deduzir que havia certa camaradagem entre lorde Giesler e os agentes, pela maneira como se cumprimentaram, determinou que a melhor maneira de resolver o problema era falar com alguma eloquência, mas sem esquecer seu objetivo: humilhar a sabe-tudo Moore.
?Só um infeliz incidente que foi mal interpretado com demasiada rapidez ?ele começou a dizer enquanto sacudia a poeira de suas roupas. ?Devo confessar que, desde que me tornei um médico qualificado, fiquei obcecado em encontrar um local adequado para cuidar de meus pacientes. ?Ele sorriu tanto que todo mundo admirou seus dentes brancos manchados de sangue. ?Por esse motivo caminhava distraído. Estava concentrado nesse edifício aí quando me topei com a senhorita Moore. Ela, que tinha comprado uma xícara de café, tampouco advertiu minha presença e quando se virou, derramou sem querer esse líquido quente sobre minhas roupas. Como não queria me queimar, porque as feridas de uma queimadura são terrivelmente dolorosas, tirei minhas roupas manchadas. Naquele momento, todos os presentes começaram a gritar, talvez pensassem que a puniria por um ato que, sem dúvida, ninguém poderia prever. No momento em que a Srta. Moore e eu íamos pedir desculpas, lorde Giesler apareceu perguntando o que estava acontecendo. Quando me virei para responder, tropecei em uma pedra e caí de bruços na calçada. Portanto, tenho rosto inchado e o nariz está quebrado e sangrando. ?comentou sem apagar um repugnante sorriso de sua boca.
?Então... não há nenhum caso? Não registrará uma denúncia? ?Thomas insistiu, que aceitou a história sem discordar porque libertaria seu amigo de ficar na prisão por algumas horas.
?A quem? ?Wang perguntou antes de soltar uma risada, que parou rapidamente quando sentiu uma leve dor na mandíbula. ?Não há denúncia possível, agente! A menos que queira levar diante de um juiz a felicidade que enfrento desde que consegui me formar em medicina ?respondeu Wang olhando de relance para Mary, quem o observava com os olhos injetados em sangue.
?Nesse caso... ?o outro guarda disse ?não temos nada para fazer aqui, certo?
?Se eu ainda usasse o uniforme ?Philip disse a Thomas ?o escoltaria até sua casa. O estado de felicidade que diz viver pode lhe provocar outro desafortunado incidente e garanto que não gostará, ao futuro doutor ?respondeu com ironia?que sua cabeça sofra um golpe tão forte que esqueça tudo o que tem conseguido até o momento.
Mary suspirou surpresa ao descobrir que lorde Giesler também entendeu as palavras envenenadas de Wang. Assombrada, olhou-o com admiração durante uns instantes e um sentimento estranho brotou do mais profundo de seu ser. Em seguida, sentiu um tremor em seu estômago e concluiu, estupefata e prestes a desmaiar, que era a primeira vez que se orgulhava de conhecer um homem que não fosse seu pai. Não só adorou aquele ato brutal e primitivo de proteção, pensamento que meditaria quando chegasse em sua casa, mas que a encantou descobrir que, debaixo daquela longa mata de cabelos dourados, havia uma mente lúcida e sensata.
?Agradeço a sua preocupação ?Wang apontou com relutância. ?É verdade que um médico não pode tentar duas vezes a sorte... se quiser continuar sendo, claro. ?Sorriu novamente. ?Senhorita Moore... ?se dirigiu a ela com uma leve reverência e sem eliminar o sorriso ?Sinto muito tê-la assustado e espero que este pequeno desentendimento não a impeça de comparecer na próxima sexta-feira à assembleia.
?Claro que assistirei! ?Mary respondeu furiosa. ?Como bem afirmou, sou inocente e tem sido sua falta de jeito, uma condição que deve estudar se quiser se tornar um bom médico, a causa desse alvoroço.
?Giesler? ?Thomas perguntou-lhe para confirmar que ele também deu por encerrado a discussão.
?Sem problemas. Assim que o levarem, acompanharei a senhorita Moore a sua casa ?declarou se aproximando de Mary novamente.
?Uma vez que este assunto está esclarecido e resolvido, desejo a ambos um bom dia ?concluiu Thomas enquanto apertava de novo a mão de seu amigo e se despedia de Mary com um leve movimento de cabeça. Então ficou ao lado de Wang e, sob o olhar atento daquela multidão silenciosa, o acompanhou pela rua junto com seu parceiro.
CONTINUA
Capítulo IX
Mary sorriu quando Shals apareceu com a quarta xícara de café. Era a primeira vez que ela se sentia admirada e amada. Portanto, em nenhum momento disse algo que pudesse machucá-los, embora quisesse repreender mais de um por resmungar como uma criança pequena. Para ser honesta consigo mesma, ela começou a se sentir confortável com a atenção incontável que lhe mostravam.
A cozinheira, quando a Sra. Reform anunciou que, devido à hora, eles teriam que almoçar lá, lhe perguntou qual prato era o favorito dela, qual bolo ela queria e ordenou a um lacaio que pegasse o melhor vinho que lorde Giesler mantinha na adega. Uma das donzelas não deixou de elogiar a grande habilidade que suas mãos possuíam quando espalhou um creme sobre as fendas de seus antebraços. Para que deixassem de elogiá-la, disse que sua irmã Elisabeth havia feito a pomada com as flores que ela cultivava em sua estufa e contou, com orgulho sincero, as inúmeras qualidades que Eli possuía para criar novas flores e pomadas curativas. Quando chegou a vez do cocheiro, ele sorriu para ela. Então ele explicou que tinha um leve desconforto na garganta. Depois de inspecionar essa área, ela indicou que deveria tomar infusões com mel e que precisava abandonar o hábito absurdo de fumar. Logicamente, a segunda ordem não agradou o lacaio gentil que, depois de ouvi-la, enrugou a testa. No entanto, não respondeu. Fez uma leve reverência, como se fosse uma dama, e se foi. Mary temia que, quando saísse, aliviaria sua raiva com outro cigarro.
Valeria, depois de voltar da cozinha pela quarta vez, sentou-se ao lado dela e observou com expectativa o que estava fazendo. Ela a acompanhou em suas gargalhadas, apoiou sua repreensão e garantiu que todos seguiriam suas ordens.
?Prometi a você que não visitaria meus filhos, mas acho que essa opção foi pior. ?A senhora Reform comentou quando as duas ficaram sozinhas na sala, onde Mary decidiu acomodar suas consultas repentinas.
?Não precisa se desculpar pelo que aconteceu, garanto que foi a melhor coisa que aconteceu comigo em cinco dias ?comentou antes de pegar a xícara. Ela tomou um gole leve e fechou os olhos para apreciar o sabor delicioso.
?Juro que não sabia de nada e que tudo isso me surpreendeu tanto quanto você Valeria insistiu.
?Shals disse ao meu pai que, depois do que fiz com lorde Giesler, ninguém nesta casa procuraria outro médico para vê-los e, como vi, não mentiu. ?disse sorrindo e curiosamente feliz.
?Shals é um bom homem... ?Valeria refletiu. ?E teve muita paciência com meu irmão ?acrescentou.
?Não ficará com raiva pelo que fiz, certo? ?Mary de repente soltou, depositando a xícara na mesa.
?Quem? Meu irmão? ?Mary assentiu. ?Não, claro que não! Philip é incapaz de ser cruel com as pessoas que trabalham para ele! Ao contrário! Se não acredita em mim, pode perguntar a eles. ?Diante do beicinho de irritação que Mary fez, ela continuou: ?Não sei o que aconteceu entre vocês dois, mas tenho certeza que não foi agradável. De qualquer forma, eu gostaria que desse a ele uma chance para mudar sua opinião sobre ele. ?Pegou sua xícara e tomou lentamente, sem desviar o olhar da jovem. Ela parecia estar reconsiderando suas palavras. Mas, pela maneira como franzia a testa, a esperança de que esquecesse qualquer coisa negativa se dissipou. ?Como disse na noite em que nos conhecemos, meus irmãos e eu crescemos em Brink Lane. Nossos pais, depois de deixarem a Alemanha, se estabeleceram lá e sobrevivemos com o pouco que obtinham dos trabalhos que lhes confiavam ?começou a narrar com o objetivo de amolecer aquele coração duro.
?Deve ter sido muito difícil para seu pai se adaptar a uma vida de necessidades depois de ter nascido e criado como um barão ?Mary declarou, tentando não lhe causar muito dano diante da lembrança.
?Estava muito apaixonado pela minha mãe e isso era a única coisa que precisava até que morreu ?suspirou triste. ?Te contei que morreu em seus braços e que minha mãe não quis se afastar dele, pois acreditava que, a qualquer momento, acordaria?
E uma emoção estranha para Mary oprimiu-lhe o peito.
?Se amavam muito? ?Perguntou perplexa.
?Eu nunca vi um casamento que se amassem tanto, e isso que eu daria minha vida por Trevor. Onde quer que estejam, certamente nada e ninguém poderá separar esse amor intenso e verdadeiro.
E essa era outra razão pela qual nunca se apaixonaria. Ela, por decreto da sociedade, teria que ocupar um segundo lugar no casamento. Seria obrigada a deixar tudo o que amava para atender às demandas de seu marido. Tal responsabilidade, como sempre havia imaginado, a transformaria em uma desgraçada. Procuraria uma maneira de não ter filhos, para que eles não fossem os reflexos de sua tristeza. Não. Absolutamente, ela não se casaria jamais. Mesmo depois de sua mãe ter sofrido mil apoplexias quando presumiu que sua segunda filha tinha decidido ser uma solteirona.
?Como conseguiu superar sua morte? ?Disse depois de afastar rapidamente suas próprias suposições.
?Não superou ?Valeria respondeu se levantando da cadeira. ?Minha mãe morreu logo depois.
?Que doença tinha? ?Mary insistiu, também se levantando da cadeira.
?Tristeza. Uma que nenhum médico pode curar com medicamentos ou operações.
?Sinto muito... ?murmurou envergonhada.
?Não sinta, eu parei de fazer isso há muitos anos. Ela queria estar com ele, queria ficar ao seu lado e lutou até que conseguiu.
?Como sobreviveram? ?Perguntou e, em seguida, se arrependeu de fazê-lo.
Não estava ciente da dor que Valeria mostrava em seu rosto? Por que insistia? Estava interessada em saber que vida lorde Giesler teve no passado? Não podia imaginá-lo mendigando nas ruas! Era tão... e se mostrava com tanto... Impossível!
?Ainda estou me perguntando. Talvez eles se tornaram nossos anjos da guarda e fizeram tudo o que puderam para que seus filhos vivessem, ou talvez o destino teve piedade de três pobres órfãos. ?Ela deu de ombros e, apesar da tristeza que sentia quando se lembrava daqueles anos, esboçou um sorriso. ?Quem sabe o que a vida nos reserva, Mary? Hoje pensa uma coisa, amanhã surge outra e, quando abre os olhos no terceiro dia, decide algo que não pensava antes.
?Bem, nisto tem razão. No entanto, tenho que lhe dizer que não há dia em que eu acorde e confirme um pensamento ?comentou, finalmente esboçando um grande sorriso.
?Qual? ?Valeria quis saber enquanto caminhavam em direção à porta.
Estava na hora de Mary visitar seu irmão. Se não estava enganada logo começaria a chamar Shals para perguntar se tinha notícias dela. Como agiria ao vê-la? Ele ficaria perplexo? Pensaria que estava vivendo um sonho? O que quer que fosse, apenas esperava que se lembrasse de que sua amada irmã a levara até ele e que a questão do baronato ainda estava pendente.
?Quer saber qual é a única ideia que consolidei ao longo dos anos? ?Mary respondeu com diversão.
?Sim.
?O de não procurar um marido. Nenhum homem será bom o suficiente para...
Não terminou sua estudada e perfeita exposição, pois, ao sair no corredor, observou que Shals subia e descia indeciso as escadas.
?Shals? ?Ela perguntou andando com firmeza em direção ao homem. ?O que aconteceu?
E a resposta foi dada pela voz de um Titã mal-humorado.
?Maldito seja! Ficaram surdos? ?Ouviu tão claramente que parecia que lorde Giesler estava ao seu lado.
?É um asno! Mas que modos são esses? ?Com raiva, arregaçou as mangas do vestido e subiu as escadas. ?Darei a ele a bronca que merece! Como pode ser tão insolente?
?Senhora... Faça algo! ?Shals pediu suplicando a Valeria. ?Não pode aparecer assim! Vai matá-lo!
?Seus planos e os meus não são os mesmos? ?Valeria perguntou com um sorriso de orelha a orelha.
?Senhora... não sei a que se refere? ?O mordomo abaixou ligeiramente a cabeça.
?Shals... você não tem por que se envergonhar. Eu li em seus olhos quando você a viu chegar. Você, tal como eu, quer que a Srta. Moore repare no meu irmão, certo?
?Senhora, tenha certeza que sim. Mas não acho que goste muito da ideia que tem a senhorita Moore agora mesmo sobre... reparar no meu senhor ?comentou com medo.
?O que você aposta que o deixa tão manso quanto um cordeirinho?
?Jamais apostarei com a esposa do antigo dono de um clube! ?Shals exclamou com aparente raiva.
?Porque sabe que perderia... certo??Insistiu, estreitando os olhos.
?Até os cílios, senhora Reform! Com você, perderia até os cílios! ?reiterou antes de seguir para a cozinha.
Valeria olhou para o primeiro andar. Mary já havia se virado para o corredor. Temia que a vida entediante de seu irmão cessasse no momento em que ela abrisse a porta e... que coincidência inoportuna que Mary o visitasse justamente quando todos tinham tarefas importantes a fazer! Pena que eles não pudessem estar presentes! Que pouco decoro! Uma mulher solteira ficar dentro do quarto de um homem... nu! O que pensariam da hospitalidade dos Giesler?
Sorriu de orelha a orelha, apertou os punhos em sinal de vitória e virou-se para a cozinha.
***
Todos os palavrões que decidiu soltar quando abrisse a porta desapareceram instantaneamente. Mary soltou abruptamente o ar que continha seus pulmões e fechou a boca com força. Ficou imóvel, paralisada da cabeça aos pés quando o viu em pé, de costas para ela. O quarto estava iluminado, porque alguma donzela abriu as cortinas e as janelas, permitindo-lhe observar claramente o quarto. Uma brisa suave, produzida pela corrente entre a porta e a janela, a recebeu assim que chegou. Mas ela não prestou atenção em como as belas cortinas se moviam, ou como a luz do sol refletia no espelho colocado em uma cômoda grande, ou se os móveis eram escuros, foscos ou devorados por cupins. Seus olhos focaram apenas nele, fazendo com que uma voz em sua cabeça evocasse a palavra perigo. Tudo o que tinha pensado gritar-lhe enquanto chegava desapareceu instantaneamente. Que palavras tinha escolhido? Que insultos lhe ocorreram? Nada. Ela não se lembrava de nada... No profundo suspiro que deu logo que o viu, a mulher enfurecida desapareceu, a pessoa que tinha infinitos palavrões mentais e, e em seu lugar se acomodou uma mulher que não podia afastar os olhos de um homem por sentir... desejo. Seu coração acelerou tanto que podia sair do peito, sem ter que usar um bisturi para abri-lo. Um calor raro subiu do centro das pernas para as bochechas, transformando-as em duas chamas de fogo. Respirou fundo para aplacar aquela emoção incomum. Não conseguiu. Seu batimento cardíaco ainda estava acelerado, suas bochechas continuavam acesas e a leve dor abdominal, que lembrava a que sofria toda vez que ia dormir sem janta, ficou mais torturante. Ela o comparou com o chefe de uma tribo da pré-história? Bem, essa ideia ainda era verdadeira. Concluiu que se tivesse vivido na era grega, lorde Giesler teria sido o muso de inúmeros escultores? Bem, isso também seria verdade. Mesmo que não quisesse reconhecê-lo, embora negasse essa ideia pelo resto da vida, morreria sabendo que esse homem era o único no mundo que lhe causava algum interesse pecaminoso. Que mulher seria incapaz de admitir que não sente atração por esse corpo? Era um espécime perfeito: suas pernas eram fortes e longas, assim como seus braços e ombros. Ele tinha uma cintura estreita, como os quadris. Que, felizmente para ela, permaneceram escondidos sob os calções. Disse que era perigoso? Bem, confirmava. Esse homem emanava perigo, não para os outros, mas apenas para ela, porque a atração por ele se tornava mais intensa, menos suportável. Deu um pequeno passo entrando no quarto, rezando pela primeira vez em sua vida ao Deus em que todos acreditavam, para que se virasse e quebrasse seu mutismo absurdo, seu encantamento, o feitiço... Mas ele não fez isso. Somente quando percebeu que se inclinava um pouco para a frente e colocava as mãos no curativo em volta da cintura, como se fosse uma faixa bonita, aquele bom senso, que saíra de sua cabeça, voltou a avisá-la de que o lorde estava prestes a realizar o maior disparate do mundo. Ela franziu a testa, como havia feito durante a subida nas escadas e na pequena corrida pelo corredor, e finalmente ela pôde gritar:
?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa.
?Mary? ?Giesler perguntou atordoado quando se virou muito lentamente em sua direção.
Mary engoliu em seco enquanto contemplava aquele rosto masculino. Ele estava sorrindo. Sim, seus lábios esboçaram o sorriso mais maravilhoso do mundo e, embora nunca tenha imaginado que a receberia com entusiasmo, porque ninguém no mundo, exceto sua família, a recebia com amor, ele estava fazendo isso. Havia visto alguma vez uma boca tão bonita, tão gloriosa? E para sua perdição e deleite, havia descoberto a suavidade daqueles lábios...
?Senhorita Moore.?O corrigiu, adotando a postura de uma mulher fria. ?Lembro-lhe que não deve me tratar com tanta familiaridade, lorde Giesler ?Acrescentou andando altivamente em direção aos pés da cama. Ela colocou as duas mãos na cintura e olhou para ele como se quisesse lhe arrancar os olhos. ?Que diabos está fazendo? Que parte de... “não deve se mexer”, não entendeu? Por acaso ficou surdo? Talvez seja por isso que pensa que seus fiéis funcionários estão ?garantiu com firmeza.
?Mary... ?sussurrou repleto de felicidade, como se ao seu lado estivesse um anjo iluminado por uma luz divina, em vez de uma mulher que o ameaçara lhe dar outro grande tapa. ?O que faz aqui? Como você está?
?Definitivamente... está surdo! ?Explodiu, revirando os olhos. ?Explodiu, revirando os olhos. Disse para não me chamar pelo meu nome e não preciso que se preocupe comigo, é você quem deve permanecer deitado na cama.
?Pretendia... ?Philip começou a dizer enquanto tentava se sentar novamente, um ato que o fez rosnar de dor.
?Maldição! ?Exclamou Mary indo em sua direção o mais rápido possível.
Sem pensar duas vezes, segurou os braços de Philip com força e o ajudou a se sentar o mais devagar possível. Depois que ele conseguiu, levantou as pernas e as estendeu no colchão. Quando se virou para ele, para gritar com ele até ficar sem voz, ficou sem palavras novamente, pois descobriu que os olhos azuis do lorde brilhavam, como se os raios do sol que passavam pela janela os impactassem neles. Seu rosto, recém barbeado, o tornava mais atraente, como se fosse possível, e seu cabelo não era mais escuro, mas brilhante e... lindo. Desviou o olhar quando uma rara dor no estômago a trouxe de volta ao mundo frívolo da sensatez. Não devia se deixar levar por atrações absurdas, nem por deslumbramentos miseráveis. Era uma Moore da cabeça aos pés e nela não podia surgir algo tão absurdo quanto o desejo por um homem!
?Segundo entendi, sua melhora é notória. Quer que todos os avanços que teve durante estes cinco dias retrocedam por tentar caminhar sem ajuda? ?Comentou com um tom menos rude enquanto lutava para acomodar as pernas que já estavam bem colocadas.
Aquilo que cheirava era loção de barbear ou perfume? Estava prestes a fechar os olhos e inspirar profundamente, mas a sensatez agiu novamente. Ela se afastou um pouco e, com as pontas dos dedos, pegou a parte de baixo do lençol para estendê-lo até cobrir o queixo. Quanto menos pudesse observar, menos tentação sentiria. Porque aquele corpo fazia seu sangue ferver, pensar em coisas impuras e, acima de tudo, a fazia perder a cabeça. Pelo menos, quando sua mãe a repreendesse por se colocar em outra situação comprometedora, podia se defender dizendo que ela o havia coberto e que ele estava usando calções que escondia seus atributos masculinos.
?Pensei que tinha perdido o interesse em mim ?Philip apontou em uma voz queixosa enquanto afastava o lençol.
Queria sufocá-lo? Porque teve essa impressão ao ver como tentava cobri-lo até o pescoço. Ou talvez houvesse outro motivo menos... sinistro? Suportou uma risada repentina e, muito lentamente, se descobriu até a cintura, exibindo a imagem completa de seu peito robusto. Queria descobrir o que havia se perguntado tantas vezes. Mas o leve sorriso, que foi incapaz de esboçar, se dissipou quando viu que ela estava voltando para o pé da cama e ainda demonstrava repulsa. Tão desagradável estava?
?Deixei-o em boas mãos, milorde. Meu pai, caso não se lembre, tem a habilidade de curar pessoas ?respondeu.
?Mas você me operou e, segundo entendi, lutou contra todos aqueles que se opuseram para não me deixar morrer ?contestou.
?Sou... como diria? Uma pessoa de bom coração? ?Respondeu, colocando as mãos no dossel de madeira.
Por que não conseguia parar de olhar para os lábios dele? Sua parte insensata queria senti-los novamente? Quantas vezes relembrou aquele momento? Um milhão? E, quantas vezes disse a si mesma, que o tapa havia sido a melhor coisa que tinha feito em sua vida? Uma, talvez? No caso hipotético de que estivesse pensado, pois não tinha mais certeza se o fez durante o confinamento forçado. Contou teias de aranha ou enumerou todos os possíveis defeitos de lorde Giesler? E por que sua mente não parava de imaginar como teria sido um beijo mais intenso? Essa pergunta aumentou muito seu desejo carnal... Maldita fosse, a parte primitiva do ser humano! Haviam construído grandes edifícios, navios para viajar de um continente a outro, chapéus horríveis com penas de pavão, mas... haviam conseguido fazer desaparecer o instinto carnal absurdo com o qual todo ser humano nascia? Não! As pessoas ainda eram primatas movidos por uma necessidade sexual absurda...
?O que tem, Mary ?enfatizou seu nome, embora ela não gostasse de ouvi-lo dizer. ?É uma habilidade mágica. Agradeço a Deus todos os dias pelo fato de aparecer e ter decidido salvar minha vida. ?Ele declarou com toda a sinceridade que podia oferecer naquele momento, porque sua mente procurava palavras que a deixassem orgulhosa enquanto um desejo masculino lutava para tirá-lo da cama, pegá-la nos braços, apoiá-la contra a parede e beijá-la com tanta paixão que os dois ficariam sem respiração.
?Não... Não deve... me dizer essas coisas, milorde.
Gaguejava? Ela?! Por que diabos fazia isso? Os servos não haviam oferecido milhares de elogios? Não começava a se acostumar com esses elogios? Então... por que ela se sentiu tão intimidada ao ouvir isso dele? E, naquele momento, toda a força, toda a raiva e toda a firmeza que sentia sempre que corria perigo, desapareceu como a neblina quando o sol aparece. Tinha que sair de lá o mais rápido possível. Até o ar parecia mais denso que nem conseguia respirar! Havia prometido a Valeria que iria visitá-lo, pois faria isso. Confirmaria o bom trabalho de seu pai e sairia mais rápido do que quando entrou.
?É verdade ?Philip garantiu, e não passou despercebido que, pela primeira vez desde que a conhecia, o escudo que protegia a mulher que ele desejava descobrir, desapareceu. ?É uma mulher engenhosa, corajosa e incrível. Uma mulher a quem devo minha vida ?garantiu solenemente. ?Estou em dívida com você. Pode me pedir o que quiser que encontrarei uma maneira de consegui-lo.
?Peço a lua, lorde Giesler ?disse.
Se recuperou o mais rápido que pôde para não mostrar uma imagem que estava escondendo desde que descobriu a maldade das pessoas. Ela não sofreria como Anne ou Elizabeth. Ela era diferente!
?Prometo que vou alcançá-la... ?Ao tentar se reclinar, outra cãibra terrível o nocauteou. Ele jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e respirou fundo.
?Relaxe, por favor ?lhe pediu em voz baixa quando veio até ele. ?Não deve fazer esforços desnecessários ?acrescentou, enquanto colocava as duas mãos sobre o curativo e apalpava lentamente para confirmar que não havia umidade.
?Me pediu a Lua, Mary Moore Arany, e eu juro que te darei ?comentou, sem abrir os olhos. Não queria assustá-la, não queria que se afastasse do seu lado e se para isso tivesse que ficar doente a vida toda, que Deus o concedesse!
?Estou satisfeita em poder comprar as publicações médicas que o Sr. Slow terá guardado para mim ?sussurrou, enquanto tomava a decisão de remover o curativo e confirmar que a ferida ainda estava fechada.
Olhou em volta e franziu o cenho. Onde diabos estava sua maleta? Era mais fácil para ela cortá-lo com a tesoura do que desembaraçá-lo gradualmente porque, dessa forma, ela precisaria tocá-lo, precisaria se aproximar o suficiente para poder inspirar aquele cheiro muito atraente para ela e que... Não havia lido em algum volume científico que o ser humano descobria a atração por uma pessoa simplesmente pelo cheiro? Bem, se essa teoria era verdadeira, tinha que concluir que não era ódio que sentia por lorde Giesler, mas... Algo mais próprio das Arany do que dos Moore! Irritada consigo mesma, desamarrou o nó que seu pai havia feito com as pontas do curativo e desenrolou-o com os olhos fechados. Enquanto não olhasse, a situação estaria sob controle...
?Por que não saiu de sua casa durante esses cinco dias?
A pergunta fez Mary abrir os olhos e olhá-lo ferozmente. Ele queria rir dela? Queria ridicularizá-la? Porque se lhe dissesse o motivo, nenhuma humilhação passada seria tão imensa quanto a que ela sofreria no presente. No entanto, ao descobrir que ele não a olhava, que mantinha seus cílios louros preciosos e longos unidos, relaxou e continuou a tarefa, envolvendo-se novamente em um estado de bem-estar ilógico para ela.
?Esteve doente? ?Insistiu em descobrir.
?Não ?respondeu.
?Então? ?Entreabriu o olho esquerdo e sorriu ao observar a raiva que exibia seu rosto. Não entendia muito bem se era devido à pergunta ou à repulsa diante da sua proximidade. Se fosse a segunda opção, ele estava morto. Porque, ao contrário de Mary, ele estava voando sem asas e pisando nas nuvens sem atravessa-las. Como o resto da humanidade definiria uma emoção semelhante?
?Estava de castigo ?finalmente declarou. Fixou os olhos no peito de Giesler, tentando definir se sua respiração ficaria agitada ao segurar uma risada. No entanto, permaneceu sereno, calmo e isso a incentivou a continuar: ?Minha mãe não achou engraçado que sua segunda filha, quem ela queria ver casada um dia, operasse um homem solteiro enquanto ele estava nu.
Ele ainda estava calmo, como se suas palavras não o afetassem. Ele não soltaria uma risada ou zombaria disso? Apoiaria a decisão de sua mãe? No entanto, quando colocou sua mão direita sobre o lado, para realizar um leve puxão e tirar o resto do curativo, observou que estava fingindo essa tranquilidade, já que seu batimento cardíaco era tão rápido quanto o dela. O que essa alteração significava? Concordava com o castigo ou se sentia culpado?
?Explicou que me deixou dormindo, que sua raiva não tinha raciocínio lógico? ?Ele perguntou, suportando estoicamente a dor que apareceu em seu peito quando descobriu que Mary havia sido injustamente punida por causa dele.
?Sim ?respondeu pouco antes de se ajoelhar para poder observar, de uma posição mais próxima, a ferida.
Como o pai lhe explicou, a sutura foi excelente. Ele mal teria uma linha branca fina no futuro. Sem dúvida, essa costura, apesar dos nervos que sofreu, era perfeita, como se estivesse costurado a vida toda. De repente, ela começou a rir enquanto deduzia a razão pela qual sua mãe havia levado o bastidor, os fios e o enorme tecido para o seu quarto.
?O que é tão engraçado, Mary? ?Philip estalou movendo-se suavemente para observá-la melhor.
?É incrível! ?Exclamou, incapaz de parar de rir. ?Só ela pode inventar uma tolice semelhante!
Intrigado, Philip queria se virar para Mary, mas ela o impediu, colocando novamente uma de suas mãos no centro daquele peito masculino e largo.
?Não se mexa, milorde. Agora é muito perigoso ?ela pediu, com uma voz suave.
?Então me responda ?ele implorou, num tom tão suplicante que Mary sentiu o desejo de abandonar toda a frieza que ela havia decidido mostrar, sentar ao lado dele e conversar como se fossem dois bons amigos.
?Já lhe disse que estive de castigo... ?começou a dizer.
?E que o motivo foi injusto porque, apesar de me ver nu, eu estava inconsciente e não era perigoso para você ?a interrompeu.
?Você não é perigoso, lorde Giesler, mas arrogante ?declarou, com um sorriso de orelha a orelha.
?Bem! Acaba de destroçar meu ego, Mary Moore Arany! ?Ele exclamou, colocando as mãos no peito. Ele a tocou. Havia chegado perto o suficiente daquela mão macia para roçar seus dedos suaves. Mas, para sua decepção, ela a afastou rapidamente. ?Tantos anos pensando que sou irresistível para as mulheres e agora acontece que alguém me garante que não sou tão sedutor quanto acreditei durante todo esse tempo ?acrescentou ironicamente.
?Vi muitos homens que...
?Quantos? ?Perguntou, arregalando os olhos e se levantando.
?Não vai me ouvir? ?Respondeu assim que jogou o curativo em algum canto do quarto. Se levantou do chão e colocou as duas mãos no peito de Giesler, para forçá-lo a se reclinar novamente na cama.
«Maldita insistência!» Mary pensou ao sentir como suas mãos aumentavam de temperatura, ao perceber a aspereza daquele pelo masculino e perceber que a respiração de lorde Giesler estava alterada, como se ele tivesse corrido atrás de um galgo.
?Quantos homens você viu nu, Mary Moore Arany? ?Insistiu, entrelaçando os dedos de cada mão nos pulsos dela.
?Isso importa para você, lorde Giesler? ?Se aventurou a dizer.
De repente, ela sentiu que os polegares do homem acariciavam aquela parte de sua pele, queimando-a sem compaixão. Queria se afastar, queria se distanciar, precisava evocar seu bom senso! Mas... não podia. Ele arrebatou toda a força que teve até agora, deixando-a vulnerável, fraca.
?Sim, me importa ?Philip sussurrou enquanto fixava os olhos naqueles belos lábios vermelhos.
?Por quê? ?Mary insistiu em uma voz que não podia reconhecer como sua.
?Porque quero saber quantos homens duelarei em breve ?afirmou antes de agarrar com força os pulsos e estendê-los para ambos os lados, fazendo com que ela caísse de bruços sobre ele. Com tão bom acerto que aquela preciosa boca impactou sobre a sua.
Antes que Mary tivesse tempo suficiente para reagir, Philips soltou os pulsos. Ele colocou uma mão atrás da nuca e a outra nas costas dela, imobilizando-a. Seus maravilhosos olhos azuis a observavam incrédulo e parecia que saltariam de suas orbitas. Ele hesitou. Por um segundo, duvidou da decisão que havia tomado, mas imediatamente a apagou da sua cabeça. A amava, desejava, precisava e queria que ela fosse... sua. Lentamente, ele pressionou seus lábios nos dela, pedindo-lhe para separá-los, mas Mary não entendeu bem o propósito que se havia definido. Ninguém a beijou com paixão? Mary foi sincera? Que Deus se compadecesse de sua alma perdida porque iria desfrutar muito ensinando-lhe o que significava a palavra prazer!
Atordoada não era a palavra que a definia exatamente. Nem mesmo outra poderia descrevê-la perfeitamente! Sua boca pressionava a dele, notava o calor do ar que fazia ao respirar tocar suas bochechas e percebia, com incrível precisão, como os batimentos de seu coração e os do lorde palpitavam juntos. Tentou se separar quando suas mãos ficaram livres, mas não conseguiu se mexer. Aquele perverso colocou uma de suas grandes mãos na nuca e a outra nas costas, impedindo-a de fazer qualquer movimento para se distanciar. Em pânico, ela abriu os olhos e tentou gritar, no entanto, algo aconteceu que a deixou tão confusa que a silenciou. Esse algo tinha um nome: língua. A ponta desse órgão muscular masculino tocou seus lábios, incentivando-a a separá-los. O que se propunha? O que devia fazer? Poderia considerar esse momento como um teste médico? Oh sim! Claro! E o adicionaria a qualquer manual sobre as interações sexuais entre um homem e uma mulher! Apertou os lábios com força, certificando-se de não deixar a língua ousada e descarada passar.
No entanto, essa ideia firme foi suprimida de sua mente quando as pontas dos dedos, colocadas em seu pescoço, começaram a acariciá-la lentamente. Encantada por essas carícias suaves, seu corpo relaxou e mergulhou em um improvável estado de bem-estar. Era consciente de como seus pelos se arrepiavam, como o calor nascido em seu sexo aumentava e como todo o seu ser ansiava por algo que ela nunca havia provado. Pela primeira vez, ela estava em um estado de fluidez e despreocupação, como se aquele homem a mantivesse protegida, segura e não existissem problemas a enfrentar. Havia apenas eles... dois. Lorde Giesler aproveitou esse momento de embriaguez erótico para invadir o interior da boca dela. Aquela língua masculina a possuiu, a acariciou com anseio, com desejo e com tanta paixão que finalmente fechou os olhos e se deixou levar. Nunca imaginou que uma coisa tão ridícula pudesse provocar algo tão grandioso! Agora entendia a razão pela qual Anne havia sucumbido com tanta facilidade. Se um homem a tivesse beijado dessa maneira, nada e ninguém a impediria de acabar consumindo a paixão iniciada. De repente, ouviu um rugido brotar da garganta masculina. Quando tentou se concentrar no motivo pelo qual fez esse som, outro saiu ainda mais alto. Se lorde Giesler tivesse sido o chefe de uma tribo, esse som poderia defini-lo como um chamado de posse, territorialidade, orgulho e glória, tornando-a sua única companheira de vida. Mas... Isso devia ser uma tolice, certo? Ele não podia reivindicá-la como sua, não havia nada científico que pudesse explicar tal suposição.
No entanto, mesmo que tudo fosse imaginário, era bonito deixar seu corpo relaxar e ser enganado acreditando que sua casa estava nos braços daquele homem. Um lar fictício, é claro, pois ela nunca pensou em morar naquele corpo masculino. Com coragem e vontade de experimentar, ela imitou os movimentos da pecaminosa língua viril até que ambas se encontraram. O sabor do café, que havia tomado antes de subir, se expandiu pelas bocas. Era como se estivesse tomando novamente um gole daquele líquido delicioso adoçado com o sabor rico dele. Foi nesse momento que admitiu com resignação que nunca mais tomaria um café tão gostoso e excitante. Os beijos eram sempre assim? Davam tanto prazer as duas pessoas? Porque não queria parar, era mais, doía ter que fazê-lo, mas a necessidade de respirar se tornou inegável. Quando abriu os olhos, notou que as pupilas de lorde Giesler haviam se dilatado e que suas íris estavam escuras, expressando um sentimento muito diferente da indiferença...
No momento em que sua mente começou a enumerar as possíveis razões pelas quais ele a olhava com tanto ardor, ele pegou seu rosto com as duas mãos e aproximou-o o suficiente para notar novamente o calor da respiração e a suavidade dos seus lábios.
?Vou te dar a lua, Mary ?ele declarou antes de beijá-la novamente e repetir um beijo atrevido, ousado, indecente e maravilhoso.
Mas tudo o que é belo não dura para sempre...
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou Shals batendo à porta com insistência.
?Não! ?Ele respondeu.
?Sim! ?Ela disse, se afastando rapidamente do seu lado.
Capítulo X
Ele devia lealdade ao seu senhor...
Desde que o contratou, catorze anos atrás, ele nunca o deixou indefeso e nessa ocasião também não o faria. Ele saiu da biblioteca, onde havia se escondido os últimos dez minutos para evitar encontrar a Sra. Reform e, depois de confirmar que não havia ninguém, caminhou rapidamente pelo corredor. Ele carregava a maleta da senhorita Moore na mão direita, essa era a desculpa que daria quando aparecesse no quarto. Depois de confirmar o estado de seu senhor, a agonia que estava sofrendo desde que a jovem subiu as escadas, pronta para colocar lorde Giesler em seu lugar, desapareceu. Com a agilidade de um ladrão habilidoso e um sorriso de satisfação que cruzava seu velho rosto, Shals começou a subir as escadas, fazendo o menor ruído possível. No entanto, seus olhos se arregalaram quando ouviu alguém bater na porta. Ele esperou o tempo suficiente, plantado lá, para confirmar que, exceto ele, ninguém mais ouvira as batidas insistentes da aldrava na madeira. Ele bufou, pois seu dever como mordomo principal o acusava de não cumprir a tarefa que lhe fora confiada. Pôs a maleta no degrau e recuou tudo o que lhe custara tanto. Parou em frente à entrada, esticou o colete de seu traje e mostrando a severidade própria do homem de confiança do lorde, abriu.
?Shals! Ainda bem que me ouviu! Estou há mais de cinco minutos batendo na porta! ?Martin disse enquanto tirava o casaco para oferecer a ele.
?Sinto muito, senhor, mas hoje temos a casa um tanto agitada ?comentou como um pedido de desculpas.
?Philip tem piorado? ?Ele perguntou inquieto olhando para o andar de cima enquanto tirava as luvas.
?Não, para alívio de todos nós, nosso senhor está muito bem ?explicou depois de pendurar o casaco de Martin no cabide e colocar as luvas na gaveta da cômoda da entrada. ?A causa da agitação se deve a...
?Martín! ?Valeria gritou quando apareceu no corredor. ?Que alegria vê-lo novamente! Desde quando está em Londres? Por que não veio me visitar? Esqueceu que tem seis sobrinhos esperando a presença de seu tio favorito? ?Acrescentou antes de envolvê-lo em um forte abraço maternal.
?Cheguei há alguns dias, peço desculpas por não ter aparecido em sua casa neste momento, mas tinha um assunto importante para resolver e não podia atrasá-lo ?desculpou-se, esboçando o sorriso mais terno e mais doce que um irmão que amava sua irmã poderia mostrar.
?Que assunto? ?Valeria entrelaçou seu braço esquerdo no direito de Martin.
?Falaremos depois disso, se não se importar. Eu gostaria muito que Philip estivesse presente quando oficializasse.
?Vai casar? ?Perguntou erguendo as sobrancelhas. ?Você conheceu uma mulher?
?Realmente pensa que sou incapaz de tirar os olhos dos livros? ?Perguntou com aversão.
?Eu não disse isso! Sei que, quando fizer isso, levantar seus olhos bonitos dos livros, encontrará a mulher que espera e nesse dia...
Shals aproveitou a distração dos irmãos para subir as escadas novamente. Teria que acabar com a agonia que sofria por não saber o que estava acontecendo no quarto do lorde. Ele precisava confirmar que a Srta. Moore não tinha gritado com ele, cuspido ou... matado. Daí que permanecessem em silêncio absoluto. Ele pegou a maleta e subiu os últimos degraus. Caminhou pelo corredor o mais rápido que seus pés o permitiam e, quando alcançou a porta do quarto do senhor que estava aberta, ficou surpreso ao ver a imagem que era oferecida lá dentro. Eles não eram capazes de ver a imagem que mostravam, pois ambos tinham os olhos fechados. Mas ele foi a única testemunha de um milagre. Em silêncio observou-os com tanto afeto que sentiu como seu coração lhe dava uma reviravolta. Seu senhor, o homem que negava o amor, dizendo que só podia trazer tragédias desastrosas ao mundo, aninhava o rosto da senhorita Moore em suas grandes mãos, enquanto as dela repousavam pacificamente em seu peito nu, como era habitual desde que adoeceu. A janela permanecia aberta, talvez Phiona a abriu ao amanhecer, para que o senhor admirasse o belo dia. No entanto, a beleza de fora era mínima se comparado a imagem dos dois. A brisa movia levemente as cortinas, a luz do sol atingia os dois, como se todos aqueles elementos naturais quisessem glorificar um momento tão bonito.
?Vou te dar a lua, Mary ?Lorde Giesler disse à mulher antes de beijá-la.
Ele poderia ter se virado e desaparecido sem ser visto ou ouvido, mas a voz da Sra. Reform indicava que os irmãos de seu senhor estavam indo visitá-lo. Deu um passo à frente, pegou na maçaneta com a ponta dos dedos e fechou a porta até ficar apenas uma pequena abertura. Essa opção seria mais adequada que apresentar-se sem avisar e fazer com que a senhorita Moore se encontrasse em um grande apuro. Seus lábios permaneceriam selados, embora jamais esqueceria o brilho que seu amo mostrou nos olhos ao olhá-la, nem a declaração dessas palavras tão firmes e seguras. Tinha se apaixonado. Finalmente! E de uma mulher que todo o serviço adorava, apesar de ter um comportamento tão áspero quanto a lixa de um ferreiro. Ele olhou para trás para garantir que a visita prematura chegasse ao patamar no primeiro andar. Que lorde Giesler o perdoasse, mas era mais sensato pôr um fim àquele momento romântico do que serem encontrados daquela maneira. Ele agarrou a maleta com força, colocou os nós dos dedos da outra mão na porta e bateu quase sem movê-la do lugar.
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou.
?Não! ?Ele gritou.
?Sim! ?Disse ela.
?Desculpe pela interrupção, excelência ?Shals comentou entrando rapidamente no quarto ?mas presumi que a senhorita Moore precisasse de sua maleta.
?Obrigada, Shals ?a jovem respondeu, depois de alisar as rugas do vestido com as mãos, ela sorriu e estendeu a palma da mão para pegar a maleta. ?Você é muito atencioso ?acrescentou se virando.
Colocou-a sobre a mesa pequena que estava ao seu lado e suspirou. Suas bochechas ainda estavam ardendo, seu coração ainda estava acelerado e suas mãos tremiam. Como foi capaz de enredar os dedos na alça da maleta se não podia controlá-los? Olhou para fora e uma brisa leve acalmou aquele estado de excitação que havia liberado segundos antes. Não podia acreditar no que tinha feito. Não apenas se deixou levar por um beijo, mas também ansiava por mais. Odiou o momento em que escolheu usar um vestido de mangas compridas, porque seus antebraços não podiam tocar o peito masculino, amaldiçoou o momento em que a costureira indicou que o decote era apropriado, porque queria descobrir se lorde Giesler gostaria de ver seu peito, como ela gostava de observar o dele, e estava com raiva de si mesma por não ser capaz de parar aquela situação.
?Milorde, desejo anunciar que seu irmão decidiu visitá-lo esta manhã ?prosseguiu falando o mordomo, que se colocou em frente aos pés da cama. ?E que aparecerá com a senhora Reform em breve...
?De fato, Martin, —disse Valeria, ao entrar no quarto. —A Srta. Moore decidiu visitar nosso irmão e confirmar que ele evolui satisfatoriamente.
Naquele momento, Mary queria pular pela janela e correr sem olhar para trás até chegar em casa, mas tudo o que fez foi respirar fundo, dirigir-se às pessoas que entravam no quarto e mostrar seu melhor sorriso.
?Mary, tenho a grande honra de apresentá-la ao nosso irmão mais novo, Martin Giesler.
Antes que ela pudesse dar um passo em direção a eles, o jovem, que se parecia muito com lorde Giesler, exceto que usava óculos e sua compleição era menos robusta, avançou em direção a ela, pegou uma das mãos e beijou os nós dos dedos.
?Cara Srta. Moore, é um prazer finalmente conhecê-la. Quero agradecer pessoalmente pelo fato de ter salvado a vida de meu irmão. ?Disse num tom gentil.
Com essas palavras muito cordiais e afetuosas, Mary corou, piscou várias vezes e deu um sorriso coquete. Enquanto isso, Philip estendeu a mão direita até encontrar o livro, que tentava ler até decidir se levantar, e pensou em jogá-lo em Martin. Mas ele se conteve. Seu irmão não era um rival para ele, certo?
?A honra e o prazer são meus ?ela respondeu com alguma timidez. Deu um passo atrás para manter distância e agarrou suas mãos.
?Porque motivo? ?Ele retrucou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?É uma grande satisfação para mim que um homem com seu talento me parabenize.
?Com meu talento? ?Martin insistiu, erguendo a sobrancelha direita.
?Sua fama é notória em toda a Inglaterra. Não há ninguém neste país que não tenha lido e admirado sua última publicação. Devo confessar que fiquei surpresa ao ler sua definição e cálculos em uma interseção variável em dois planos curvos. Foi esplêndido, se me permite o elogio, lord...
?Não sou lorde, apenas Martin Giesler ?ele a corrigiu rapidamente. ?É ele quem ostentará, se decidir fazê-lo algum dia ?concluiu?o título de Freiher Von Giesler. No entanto, lhe peço encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal, não acha? ?E sorriu para ela.
?Sendo assim, pode me chamar de Mary, e obrigada pelo elogio. Fico lisonjeada ao descobrir que há um homem neste mundo que não se intimida com o intelecto de uma mulher ?respondeu, acrescentando às suas palavras um sorriso fraco.
?Informava ao meu irmão ?Valeria interveio, que suportou o máximo que pôde a risada que queria explodir quando viu como Philip se contorcia na cama ?que aceitou o convite para almoçar conosco.
?Almoçar? ?Philip se intrometeu. ?Não seria educado ou apropriado, pois o anfitrião desta casa, que paga seus bons funcionários e a comida que colocam na mesa, não pode se comportar como tal devido a sua doença e indisponibilidade ?salientou.
?Oh, Philip! ?Exclamou Valeria com um sorriso fingido e movendo a mão direita com desdém. ?Sempre tão brincalhão! Não se preocupe Mary, não há nenhum problema. Além disso, desfrutaremos da agradável companhia de Martin. Sabe que foi o rapaz mais jovem que contrataram na Universidade? ?Enroscou o braço direito no esquerdo da moça e a fez caminhar em direção à porta. ?Nós já sabíamos que ele se tornaria uma pessoa muito importante, porque quando criança ele sempre pensava e raciocinava como um homem adulto. Em vez disso, Philip... Oh, Deus! Não sabe os problemas que tive que suportar por sua culpa! ?Exclamou novamente com aparente pesar. Quando estava a um passo de fazê-la sair do quarto, parou e olhou para ela. ?A propósito, você terminou? Talvez tenhamos interrompido a consulta e não conseguiu finalizá-la...
?Não se preocupe, tinha acabado de verificar quando apareceram. Só tenho que colocar um novo curativo, mas Shals pode fazer isso durante o dia ?garantiu.
Por nada no mundo, ficaria sozinha com ele novamente! Ela gostou do beijo? Sim! Tinha gostado de ver que havia um homem que a desejava? Sim! Mas aí concluía sua história. Não poderia se deixar levar pela emoção que lorde Giesler lhe causava. Era um homem perigoso para ela, demais para ficar sozinho com ele novamente.
?Que conclusão chegou? ?Valeria insistiu, acelerando o ritmo. ?Acha que logo poderá se levantar e deixar essa maldita cama?
?Conseguirá se permanecer deitado pelo tempo recomendado ?Mary alegou antes de sair de lá sem sequer se despedir com um olhar fugaz.
***
Os dois irmãos ficaram olhando para a porta e só se viraram quando Valeria e Mary desapareceram.
?Milorde ?Shals interveio, que permaneceu escondido em um canto do quarto o tempo todo ?com sua permissão, devo confirmar que o almoço está devidamente preparado. ?Deu um passo para a cama, fez uma rápida reverência e saiu dali antes que...
?Qual é o problema?! ?Martin gritou quando sentiu uma dor terrível no peito, causada pelo impacto de um livro voador inesperado.
?Qual é o problema? Você dirá... o que acontece com você? ?Explodiu. Apoiou os cotovelos sobre o colchão e acabou por se sentar.
?Não sei a que se refere ?disse agachado para pegar o livro que, após a colisão, tinha caído no chão aberto.
?Peço-lhe encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal ?repetiu as palavras que seu irmão usou como se estivesse mastigando a sola de um sapato.
?Isso? ?Ele retrucou, depois de depositar o livro na lareira. ?É considerado educação e respeito por uma mulher inteligente que, felizmente, salvou a vida de um ente querido.
Ele caminhou parando na frente de Philip e se apoiou com o ombro direito em um dossel de madeira. Poderia deixar escapar uma risada enorme? Porque Deus bem sabia que ele queria fazer isso! Se pegasse o espelho, que estava na cômoda, e o colocasse na frente de seu irmão, descobriria que os demônios realmente existiam. Como prometeu a Valeria, ele ofereceu uma atitude receptiva em relação a Mary, para que Philip reagisse. No entanto, admitiu que estava fascinado ao descobrir que ela havia lido sua última publicação.
?Educação e respeito? Você quase voa como se fosse um querubim em sua direção para beijar a mão dela! Beijar a mão dela! ?Repetiu, percebendo como uma estranha acidez queimava seu estômago.
?Não me disse algo sobre não distinguir entre dois bons seios femininos e duas formas de calcular um mesmo resultado? ?Ele comentou, mesmo sabendo que o inferno dividiria a terra em dois e que o próprio Satanás puxaria sua mão para arrancar sua alma. ?Bem, pela primeira vez na vida, tenho que provar que você está certo. A senhorita... Mary parece ter herdado um busto generoso e firme. Embora seu vestido azul não tivesse um decote muito ousado. Apesar de tudo, acho que quando me aproximei para beijar aquela mão doce e macia, nossos peitos se aproximaram o suficiente para calcular suas medidas. Você me pediu para contemplar também a largura dos quadris de uma mulher? Porque eu acreditava que... ?terminou de falar quando um travesseiro voou, das costas de Philip, para impactar seu rosto, fazendo com que seus óculos fossem atirados no meio do quarto. Como diabos ele estava se movendo com tanta agilidade se ainda estava convalescente?
?Não se aproxime dela! Entendido? ?Berrou. ?Ou juro por Deus que essa conversa será a última que temos pelo resto de nossas vidas.
Martin pegou os óculos do chão, colocou-os e olhou para o irmão. Pela primeira vez, uma ameaça a sua pessoa apareceu em seu rosto. Seria conveniente informá-lo de que Valeria havia planejado sua atuação em relação a Mary? E se decidisse se vingar dos dois? Se havia algo inquebrável em Philip, era sua necessidade dar uma lição às pessoas que o desafiavam. Um exemplo claro disso poderia ser assegurado pelo homem que, quando era adolescente, Philip o chamou de trapaceiro em um jogo de cartas que jogou no antigo clube de seu cunhado. Demorou quase quinze anos para encontrá-lo e, depois desse momento, o cavalheiro não conseguiu levantar a aba do chapéu por dois longos meses. De acordo com a versão de seu irmão, o Sr. Manther colidiu com seu ombro duro no momento em que saiu de White´s e, logicamente, não se afastou rapidamente para evitar um impacto inconveniente e doloroso no olho direito. Então, se não desejava usar um chapéu de abas largas por vários meses, era melhor dizer a verdade.
?Essa farsa foi ideia de Valeria ?finalmente confessou.
?O que significa ... esta farsa? ?perguntou estreitando os olhos.
?O de flertar com Mary ?esclareceu.
?Maldita mente perversa! ?Philip exclamou com raiva.
?Não tinha pensado falar com a senhorita Moore, já sabe que não sou muito versado em manter uma conversa agradável com as mulheres, mas Valeria, depois de encontrá-la no corredor, não parou de falar e falar... Me disse que havia deixado vocês algum tempo sozinhos e que assim lhe devia um grande favor. Que precisava da minha ajuda para descobrir se o seu interesse por essa moça era verdadeiro. Imagino que colocou suas esperanças nela para aceitar maldita baronia.
?Típico dela... ?Philip murmurou.
?Juro que minha presença tinha outro objetivo. Queria pedir conselhos sobre um assunto que tenho nas mãos ?Ele disse sem tirar os olhos do irmão. Relaxada a tensão entre ambos, Martin adotou uma postura mais calma: cruzou os braços na frente do peito e os pés à altura dos tornozelos.
?O que você precisa? ?Philip estalou, olhando para ele sem piscar.
A vida poderia dar algo doce e acido ao mesmo tempo? Porque é assim que se sentia. Ela passou de ter nos lábios a doce boca de Mary para a acidez de lutar com seu irmão para consegui-la. Agora, apesar de saber que tudo tinha sido um truque de Valeria, ainda não conseguia sentir novamente a ansiada doçura.
?Um em troca do outro, como quando éramos crianças? ?Observou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?Um em troca de outro ?admitiu enquanto seu corpo relaxava consideravelmente.
?Bom. Eu decidi estabelecer minha nova residência aqui em Londres ?Martin começou a dizer enquanto se aventurava a sentar ao lado de seu irmão. ?Conversei com Lawford Jr. e ele me disse que poderia investir na propriedade dos Bohanm. Como me informou, é um casal bastante antigo e deseja partir à sua casa de campo para desfrutar de um pouco de paz no tempo que lhe resta de vida.
?Sabe quais vizinhos terá? ?Philip estalou, franzindo a testa e olhando para ele... de novo.
?Ainda não vi, então...
?Os Moore! ?Explodiu de novo.
?De verdade? ?Ele perguntou, arregalando os olhos. ?Inferno de coincidência!
?Você não me disse que agiu de acordo com o plano de Valeria? ?Rosnou.
?Juro pela alma dos nossos pais que sim e que não fazia ideia que a família da Mary seria meus novos vizinhos. Só quero um lar tranquilo, onde possa continuar com... ?Ele se levantou, deu as costas para o irmão, caminhou até a varanda e ficou em silêncio.
?Com? ?Philip insistiu.
?Eu deixei o trabalho na Universidade ?ele disse finalmente, sem desviar o olhar do lado de fora.
?O que disse? Por quê? Você ficou louco? Você precisa de mim para isso? Não é capaz de enfrentar a ira de Valeria? Porque ficará com raiva quando descobrir e me culpará de sua decisão ?Philip comentou, mal respirando.
?Não te culpará de nada, porque lhe explicarei que me ofereceram mais uma alternativa... ?«Obrigatório?», pensou Martin. Não, não poderia dizer isso, era vital para o bem-estar da família que ninguém soubesse a verdade.
?Mas? ?Philip insistiu em saber.
?Tranquilo ?Ele respondeu, virando-se para o irmão. ?É verdade que o trabalho que fiz na Universidade foi gratificante, mas mal aproveitei o tempo livre. Anseio por uma casa, anseio por sua companhia, quero me casar, formar uma família e... viver ?lhe garantiu. Embora a verdadeira razão pela qual decidiu se estabelecer não tivesse nada a ver com a vida, mas com a morte, e não de uma pessoa, mas centenas, talvez milhares...
?Quando você pretende realizar seu novo futuro? ?Perguntou intrigado.
?Em uma semana, no máximo ?ele declarou depois de colocar as duas mãos nos bolsos e puxar os painéis frontais da jaqueta azul marinho. —O tempo que leva para Lawford confirmar a compra dessa residência.
?Bem... ?Philip murmurou acariciando uma barba inexistente. ?Embora Valeria fique brava com você por um longo tempo, devo confessar que é a melhor decisão que você tomou até agora. Já era hora de você voltar e decidir procurar uma esposa, que não será Mary, é claro ?Ele apontou examinando o rosto de seu irmão.
?Não será Mary, te garanto isso. ?Sorriu. ?De certa forma, foi responsável por esta decisão. ?Ao ver que seu irmão levantava uma sobrancelha em sinal de pergunta, acrescentou: ?Sofri muito ao pensar que poderia ter morrido. Tenho me perguntado todos estes dias o que teria acontecido se você... ?não terminou a frase, doía muito fazê-lo. ?Tinha pensado oferecer minha carta de demissão quando terminasse o curso, mas a enviei no mesmo dia que Pierre me fez chegar a missiva de Valeria para me informar sobre sua doença. ?Não era bem verdade, ele o escrevera vários meses antes, quando o estrangeiro apareceu em sua antiga casa e lhe disse que tinha menos de seis meses para aceitar a nova posição oferecida a ele. O anúncio da situação de Philip acelerou o processo. ?O tempo é curto e acho que devo aproveitar para viver com as pessoas que amo ?concluiu. Ele voltou para o lado do irmão e sentou-se novamente no canto inferior da cama?. Então, aqui estou eu, esperando um papel para realizar um sonho... ?refletiu. ?Agora é sua vez, irmão. Diga-me que segredo você mantém ?apelou.
?Vou aceitar a maldita baronia ?comentou depois de jogar a cabeça para trás, até tocar na cabeceira de madeira e suspirar.
?De verdade? Tem certeza? Valeria vai chorar de emoção! Está a muitos anos esperando você tomar essa decisão! ?Comentou feliz.
?Mas somente se eu puder me casar com ela ?disse uma vez que os olhos de ambos encontraram.
?Então... você gosta??Discorreu Martin acomodando os pés sobre a cama, como costumavam fazer quando eram crianças.
?Estou apaixonado, Martin. Não sei quando, nem como, nem por que aconteceu, mas concluí que não poderia viver sem ela. ?Ele admitiu, com um sorriso nos lábios.
?Eu tenho que te dizer uma coisa, Philip, ?ele começou a dizer adotando o tom que costumava falar com seus alunos —há um estudo e um termo médico que, até o momento, não foram levados em consideração, mas seria interessante se você o conhecesse.
?Qual? ?Sua voz soou como se estivesse a ponto de defender-se de um ataque repentino.
?O choque de gratidão. O que sofre um paciente que, ao ser salvo de uma morte certa, acredita que se apaixonou por seu salvador e...[7]
?Bobagens! ?Philip o interrompeu. ?Eu me apaixonei por Mary desde o momento em que a vi pela primeira vez. O que aconteceu a seguir apenas confirmou que ela é a única mulher que eu quero ter ao meu lado pelo resto da minha vida ?garantiu a ele.
?E por que vai assumir a baronia quando se casar com ela??Estalou intrigado.
?Porque me pediu a Lua e só poderei dá-la se me converter em um miserável aristocrata ?ele alegou antes de olhar para a maleta que, novamente, havia sido esquecida por sua dona.
Capítulo XI
Como ela poderia se comportar de uma maneira tão irracional? Por que era incapaz de sentir felicidade quando deixou a residência do lorde? Qual seria a razão médica pela qual notava uma forte pressão no peito? Estaria prestes a sofrer um derrame depois do que aconteceu com aquele homem?
Mary não tirou os olhos da janela enquanto voltava para casa acompanhada de Valeria. Tal como ela lhe prometeu, depois do almoço, conduziu-a até à livraria do senhor Slow e deu-lhe as três crônicas médicas que havia reservado. Deveria mostrar felicidade por ter conseguido tanto o que queria nos cinco dias de castigo, mas não foi assim. Pegou as revistas e as colocou dentro da pasta sem parar para ler seus títulos. Reagiu de modo automático, sem emoção. Talvez porque sua cabeça se recusava a se concentrar em outra coisa que não fosse... ele.
Acreditou, inutilmente, que todas as emoções e sensações produzidas durante o beijo desapareceriam uma vez que abandonasse o quarto. Errado. Ela os reviveu tantas vezes que sofreu inúmeras ondas de calor no almoço. Embora a conversa que teve com Martin tenha sido bastante agradável, não foi esplêndida nem maravilhosa. Apenas prestou atenção à conversa exaustiva que lhe ofereceu sobre o algoritmo quantitativo em diferentes equações. No fundo, e isso parecia inédito, ficou entediada. Em algum momento dessa explicação, sua alma deixou seu corpo para sair da sala de jantar, subir as escadas, correr pelo corredor para voltar aos braços de lorde Giesler. Seus lábios sentiram novamente a suavidade daquela boca masculina, provaram aquele maravilhoso sabor de café, sua língua dançou outra dança de carícias e, por isso, prazer e paixão retornaram.
Tal como concluiu, a melhor opção para manter um bem-estar mental e físico era evitar outro encontro com ele e eliminar de sua mente todos aqueles pensamentos tão inapropriados. Nunca se sentira tão atraída ou intimidada por um homem. Jamais deixou em um segundo plano quem era e em quem desejava se converter. No entanto, desde que aquele homem apareceu em sua vida, tudo se tornou um caos, pois não era capaz de se concentrar em nada exceto nele. Quantas vezes, desde que seu pai lhe deu a maleta, se esqueceu dela? Até que lorde Giesler se cruzou em seu caminho, nunca. Se havia noites que até dormia com ela na cama! Isso também tinha mudado, porque durante sua inesperada visita abandonou seu precioso presente em várias ocasiões...
Sem afastar o olhar do lado de fora suspirou fundo. Estava muito decepcionada por não ter sido capaz de controlar nem sua mente e nem seu corpo quando permaneceram juntos. Ela estava sempre atenta às traições que os outros podiam gerar, mas nunca imaginou que ela mesma seria a maior traidora de sua pessoa. Desde que Anne sofreu a angústia da morte de Dick ou do engano que Elizabeth padeceu por Archie, ela se esforçou para lutar contra tudo o que envolvia um relacionamento afetuoso com um homem. Tudo o que podiam obter dela eram conversas e discussões médicas. Qualquer sentimento afetivo estava vetado, negado, fechado. No entanto, lorde Giesler quebrou todas as barreiras que ela havia construído ao longo dos anos. Aquele gigante de olhos azuis e cabelos loiros havia se tornado seu ponto fraco, porque havia encontrado uma maneira de transformá-la, através de seus beijos e carícias, em um ser vulnerável, frágil e comum.
Ela se mexeu desconfortavelmente no assento enquanto apertava as mãos com força, que estavam no colo. Se não estava errada, como começava a ser habitual nela, suas bochechas já mostrariam um leve rubor por causa de suas divagações. Valeria poderia supor que isso se devia à ansiedade que lhe provocava chegar em casa e enfrentar novamente o castigo estabelecido por sua mãe. Mas essa não era a razão pela qual as bochechas pareciam duas pequenas chamas de fogo. A lembrança de como o corpo dela reagiu durante os beijos a alterou e a enfureceu a ponto de elevar a temperatura do corpo em mais de dez graus. Se tocasse o termômetro que guardava na maleta, o mercúrio aumentaria tanto que o pequeno tubo de vidro explodiria em suas mãos. Como se deixou levar tão facilmente? Por que seu cérebro foi incapaz de impedir isso? Não havia lido que a amígdala cerebral ajudava a encontrar a estratégia necessária para resolver uma situação de estresse, medo ou perigo? Então, por que a dela estava inativa quando lorde Giesler se encontrava próximo a ela? Bufou pelo nariz. Ansiava procurar respostas médicas para todas as suas perguntas e tinha uma solução para isso: procuraria o livro que seu pai mantinha na prateleira de seu escritório. Se bem lembrava, o médico e cientista francês Paul Broca explicaria como o sistema límbico funcionava. Talvez descobrisse qual dos seus quatro componentes era responsável pelas respostas emocionais. Depois que encontrasse o problema, lutaria contra ele. E se para isso tivesse que usar aqueles dolorosos choques elétricos, se submeteria sem hesitar um segundo. Ela precisava fazer tudo ao seu alcance para ser a Mary de sempre e se afastar de quem se tornara. Ela nunca foi uma mulher apaixonada, mas uma jovem respeitável que raciocinava, entendia e observava o mundo de uma perspectiva lógica. Não podia se transformar, da noite para o dia, na desavergonhada que havia percebido um certo prazer entre as pernas ou que ansiava que as mãos do homem viajassem cada centímetro de sua pele. De modo algum voltaria a desejar algo que tinha decidido não ter em sua vida. Por esse motivo, lorde Giesler tinha que morrer para ela.
?Mary? ?Valeria perguntou estreitando os olhos.
?Sim? ?Ela respondeu, virando-se para a companheira e desenhando um enorme sorriso. A consequente ao ter a certeza de uma vitória próxima.
?Está bem?
?Sim, muito bem. Por que pergunta? ?Continuou falando sem apagar o leve sorriso dos lábios. Esperava que seu rosto não decidisse traí-la também, porque não queria ser interrogada pelos poucos minutos restantes, para chegar em casa, sobre o motivo de estar tão ausente.
?Percebo você... distante ?Valeria alegou.
?É o meu estado normal ?respondeu enquanto estendia a mão para a alça da maleta e a colocou sobre as pernas. ?Minha cabeça não para de pensar sobre o que esses preciosos artigos médicos registram.
?No que você está pensando agora? ?Estalou com uma mistura de decepção e raiva.
?Claro! ?Mary exclamou, arregalando os olhos para enfatizar sua decepção. ?Estou ansiosa para descobrir que nova doença encontrara na Europa e me informar de como pode ser eliminada. Embora ultimamente não tenham encontrado muitos casos importantes. No mês passado, os quatro artigos que adquiri na livraria do senhor Slow falavam sobre o ensaio realizado por Henry Gray em mil oitocentos e quarenta e oito, intitulado A origem, conexões e distribuição dos nervos do olho humano. Uma descoberta magnífica para um jovem anatomista e cirurgião britânico. Sabia que tinha a minha idade quando foi eleito Membro da Royal Society? Embora ele tenha morrido cedo demais. Uma verdadeira tragédia para a sociedade médica. Mas... Quem iria supor que morreria de varíola aos trinta e cinco anos? Segundo dizem, foi transmitido por um sobrinho que ele cuidava e...
Valeria não soube o que dizer a respeito. Tinha assumido, ao vê-la tão calada e embaraçada, que estava revivendo o tempo que passou a sós com seu irmão, mas se equivocava. A jovem era imune aos encantos de Philip. E era a primeira mulher a fazer isso! Mas não desistiria tão cedo. O que estava em jogo era o baronato e, diante disso, lutaria incansavelmente.
?Você se lembrou do ensaio porque viu algo perigoso nos olhos do meu irmão? ?A interrompeu.
?Como? ?Mary estalou confusa.
?Eu me perguntava se o fato de você evocar esse livro médico tem algo a ver com alguma doença que tenha apreciado nos olhos de Philip ?insistiu.
?Não! Nada disso! ?Disse rapidamente.
?Menos mal! Porque, pelo que entendi, pessoas que têm olhos castanhos podem...
?Castanhos? ?Mary soltou. ?Pelo que me lembro, lorde Giesler tem íris azuis claras, muito parecidas com as minhas ?acrescentou.
Bom. Pelo menos, ela havia notado esse detalhe. Agora tinha que continuar com seu plano.
?Certo. Às vezes me confundo com os de meu marido ?se desculpou. ?Então imagino que seu pensamento não tem nada a ver com outra possível doença, certo?
?Exato! ?Garantiu. ?Seu irmão está muito recuperado e abandonará o quarto se permanecer uns dias mais em repouso. Para ser sincera, continuo fascinada com sua evolução.
?De verdade? ?Valeria continuou. Se ela tivesse que falar sobre doenças para que se concentrasse em Philip, faria isso sem hesitar por um único segundo. ?Observou a ferida? Acha que requer muita atenção? Não posso estar todos os dias em sua casa. Meus filhos e meu marido são um desastre se me ausento mais de três horas de minha casa. Não ficaria surpresa que, ao voltar, tenham queimado algum cômodo.
?Não se preocupes. A ferida está perfeita. Apenas ficará uma fina cicatriz. Tenho certeza de que meu pai, quando o visitar hoje à noite, confirmará minha opinião. Só espero que Shals não demore muito para enfaixá-lo para que não entre sujeira na fissura.
?Não precisa se preocupar com isso. As empregadas limpam o quarto todos os dias ?Valeria disse.
?Não se trata desse tipo de limpeza ?disse antes de soltar uma pequena risada. ?Centenas de bactérias foram descobertas que pululam pelo ambiente e são invisíveis ao olho humano. Uma delas pode entrar na ferida e infectá-la.
?E sabendo disso... como não lhe ocorreu enfaixá-lo você mesma? ?Valeria perguntou perplexa.
?Porque me arrastou para a sala de refeições e durante o almoço não me pareceu correto me ausentar no meio da maravilhosa conversa sobre algoritmos que Martin me ofereceu. Além disso, tenho certeza de que Shals o enfaixou depois de confirmar que a comida estava preparada. Como você me explicou, ele é um mordomo muito eficiente ?explicou com certeza.
?Ainda assim, acho que seria conveniente que voltasse amanhã para confirmar sua suposição ?Valeria expôs uma vez que olhou pela janela e observou os telhados da residência Moore. ?Não gostaria que Philip tivesse uma infecção agora que começa a melhorar.
?Não vejo necessidade de voltar ?manifestou com angústia. ?Mas prometo que, quando falar com meu pai, informarei o que aconteceu para confirmar que o curativo foi feito corretamente.
?Não quer ter certeza de que meu irmão evolui favoravelmente? Negligencia com tanta facilidade as pessoas que atende? ?Insistiu.
A carruagem parou na entrada de sua casa. Devia esperar que o cocheiro abrisse a porta e desdobrasse as escadas de metal, mas se sentia tão ansiosa para sair de lá que, como demorava um segundo a mais, ela mesma o faria.
?Como te disse, meu pai cuidará dele como fez até agora ?comentou com mais ênfase do que deveria. ?Além disso, lembre-se que ainda estou de castigo e quando minha mãe descobrir que me levou para a casa de seu irmão em vez de consultar seus filhos, não poderei sair de casa até que complete os trinta anos.
Graças a Deus o cocheiro já tinha aberto a porta! Com a maleta na mão, baixou o mais rápido que pôde, alisou a saia de seu vestido e se virou para Valeria, que ainda continuava imóvel em seu assento.
?Foi um dia magnífico, Valeria. E eu insisto que você não deve se preocupar com seu irmão, certamente ele voltará em breve à vida que tinha antes de ficar doente.
?Mas... não quer que eu vá com você até a porta? O que sua mãe vai dizer sobre mim? Prometi a ela que cuidaria de você e a levaria até ela sã e salva.
?Despeço-me em seu nome. Além disso, quando lhe explicar que estava com pressa de chegar em casa, caso algum dos seus filhos tenha incendiado um quarto, ela entenderá. Boa tarde e obrigada pelo presente ?disse antes de fechar a porta e caminhar a grandes passos para sua casa, seu santuário, seu lugar protegido e do qual nunca deveria ter saído.
***
?Não se preocupe com elas, mãe. Garanto-lhe que todas estão perfeitamente bem.
A afirmação de Madeleine fez com que Sophia levantasse o olhar do bastidor e o fixasse na mais nova de suas filhas. Permaneceu em silêncio, observando-a sem piscar. Logo, depois de descobrir aquele brilho tão bonito e sincero em seus olhos verdes, sorriu e voltou para a costura.
?Eu sei ?garantiu. ?Mas é inevitável me preocupar com elas.
?Continua inquieta pela visão que tive sobre Anne? Pensa que me equivoquei sobre lorde Bennett? Porque lhe prometo que era ele. Esse homem nos salvará da maldição ?declarou solene. Fechou a caderneta em que anotou a última receita que havia preparado naquela manhã, se levantou lentamente da cadeira e foi até a mãe para se sentar ao seu lado.
?Confio em suas visões, Madeleine. Se acredita que lorde Bennett é o homem destinado a Anne, esperarei que sua profecia seja cumprida.
?Desaparecerá algum dia? ?Perguntou depois de alguns minutos de silêncio que os utilizou para refletir e entrelaçou seus brancos dedos sobre a saia de seu vestido celeste. Um de cetim mate com rendas nos punhos e pescoço. ?Me refiro ao meu dom. Será que irá da mesma maneira que veio, sem avisar?
?O meu está comigo desde que nasci. Embora tenha desaparecido durante a gravidez, porque toda a minha energia se concentrou em criar uma nova vida, mas voltou uma vez que vieram ao mundo.
?Nunca desejou ter nascido normal? ?Insistiu.
?Você não se define assim? ?Sophia retrucou deixando a costura à esquerda e virando-se para a filha.
?Não ?respondeu sem hesitar um único segundo. ?Quem, de todas as pessoas que conhecemos, pode ter sonhos que preveem o que acontecerá a seguir?
?Madeleine... ?sussurrou, segurando as duas mãos para apertá-las entre as suas ?é uma menina muito especial e não deveria se sentir mal por ter nascido com uma habilidade tão magnífica. Esqueceu o que aconteceu naquele dia? O que você fez por aquela criança?
Madeleine fixou seus olhos nas mãos e mordeu ligeiramente o lábio inferior. Não, não havia esquecido. Jamais poderia fazer uma coisa semelhante! Mas foi nesse momento que seu dom tomou força, o controle de sua vida e não encontrava uma forma de pará-lo. Era verdade que naquele dia ela se sentiu feliz e orgulhosa de si mesma. No entanto, nem todas as suas visões eram boas. Muitas noites ela se levantava banhada em suor, tremendo e chorando inconsolavelmente porque a maldade a dominava.
?Essa criatura pode ser salva graças a você, pequena ?Sophia disse suavemente enquanto acariciava os dedos longos da filha com os polegares. ?Sua alma recorreu para a única pessoa que podia ouvi-la... ?acrescentou.
?Eu sei... ?murmurou, abaixando a cabeça.
?E também foi à razão pela qual Anne desistiu de sair naquele momento. Se você não tivesse nos contado o que viu, ela não estaria mais conosco. ?É verdade que nem todos os seus sonhos serão bons, mas você terá que se esforçar para dominá-los. Uma alma como a sua evocará forças boas e más. Sua missão é saber como filtrá-las.
?Como farei algo assim?
?Imagino que levará muito tempo para você conseguir, assim como eu fiz para desenvolver o meu. ?Ao ver que seus olhos se entristeciam, apertou com mais força suas mãos. ?Mas uma Arany sempre consegue o que se propõe, e não nasceu uma cigana que se renda sem antes lutar.
Madeleine suspirou profundamente e agradeceu as palavras reconfortantes de sua mãe com um leve sorriso. Esperava que tivesse razão, que não se confundisse porque realmente necessitava eliminar certos aspectos de seu dom. Rara era a noite que não ficava acordada, sentada sobre a cama, abraçando os joelhos enquanto se perguntava o que aconteceria uma vez que fechasse os olhos. Essa incerteza era a culpa de seu comportamento. Sempre ficava esquiva de todas as pessoas que se aproximavam dela. Não podia tocá-las, nem olhá-las sem descobrir, mediante aqueles malditos sonhos, algo sobre elas. Algumas vezes a faziam feliz, mas a maldade das pessoas não tinha limites. Seu coração começou a bater com força ao lembrar a tarde que o primeiro noivo de Anne lhe tocou uma mão para cumprimentá-la. Nessa noite, os seus sonhos foram sombrios, tenebrosos e insuportáveis. Seu espírito se desprendeu de seu corpo e saiu à rua, mostrando-lhe o que aconteceria depois de várias semanas. Não foi capaz de explicar a sua família, e nem muito menos a Anne, o que tinha visto. Talvez porque nem ela mesma acreditou. Mas Dick morreu... E como consequência de tudo isso se retraiu ainda mais do mundo.
?Mary acabou de chegar ?comentou Sophia se levantando rapidamente do sofá.
Caminhou para a janela e afastou lentamente a cortina para confirmar que, tal como intuiu, a carruagem da senhora Reform tinha parado no jardim. Olhou o relógio que havia sobre a lareira e franziu a testa. Já eram quatro horas da tarde e, embora tenha sido informada de que a filha almoçaria fora, estava com muita raiva de Mary. Ela deveria procurar qualquer desculpa para recusar o convite. Não era apropriado que ficasse fora de casa por tanto tempo com uma pessoa que mal conhecia, mesmo que estivesse muito agradecida por ter salvado a vida de seu irmão. Mas tinha que confiar em sua filha. Tinha certeza de que, se tivesse se encontrado em uma situação comprometedora, teria agido com sensatez. Embora depois de operar lorde Giesler completamente nu, ela não tivesse mais certeza do bom senso de sua filha.
Saiu silenciosamente da sala de costura e foi em direção à porta para recebê-las. Durante o breve trajeto, lembrou o momento em que a Sra. Reform apareceu em sua casa horas antes. Sua mente evocou a expressão serena que ela exibiu ao se apresentar e como mudou depois que a filha chegou. Como não percebeu isso? Por que seu instinto não a alertou para uma coisa dessas? «Morgana!», exclamou mentalmente enquanto avançava em direção à entrada, abrindo a porta ela mesma, para não demorar muito para descobrir se sua intuição era verdadeira.
?Boa tarde, mãe ?lhe disse Mary uma vez que se encontraram de frente.
?E Sra. Reform? ?Perguntou olhando para a carruagem.
?Disse-lhe que não me acompanhasse, que não era necessário que se incomodasse ?explicou enquanto entrava no hall.
?O que você fez? ?Esbravejou Sophia batendo a porta.
?Eu? Nada! Como pode pensar isso de mim? ?Disse com raiva.
?Porque as duas vezes que vi essa mulher nunca me pareceu uma pessoa desrespeitosa ?a mãe insistiu.
?Precisava voltar para casa o mais rápido possível. Como me disse, seus filhos podem atear fogo em qualquer cômodo da casa, se ficarem mais de três horas longe dela. ?Explicou enquanto dava o casaco a Shira, que apareceu sem fazer barulho.
?Mas... você não iria examiná-los? Porque, se bem me lembro, a senhora Reform disse que haviam sofrido um resfriado e queria confirmar que não teria nenhuma consequência ?Sophia disse, arregalando os olhos.
?Não. No final, me livrei da presença daqueles demônios ?Mary declarou antes de levantar as sobrancelhas castanhas várias vezes. Observando as bochechas e os olhos da mãe começarem a ficar avermelhados, ela decidiu que era hora de escapar. No entanto, quando ela deu um passo à frente, em direção às escadas, uma mão a parou.
?Onde você esteve Mary Moore? Por que não é capaz de me olhar na cara? O que esconde de mim? O que aconteceu?
?Ainda continuo de castigo, certo? ?Sophia estreitou os olhos em resposta. ?Bem, apenas lhe direi que curei pessoas, mas não foram filhos da Sra. Reform, mas os servos de lorde Giesler ?confessou com dignidade.
?Desobedeceu minha ordem e retornou naquele lugar? Por quê?
?A verdade? ?Mary soltou.
?Sim.
?Cheguei à conclusão de que Valeria estava muito assustada com o que aconteceu com o irmão e precisava que eu confirmasse que nosso pai está fazendo um bom trabalho.
?E? ?insistiu Sophia.
?E, como sempre, nunca fico satisfeita em fazer apenas uma coisa. Então, terminei por apresentar duas opiniões em vez de uma.
?Quais? ?Sophia percebeu como a filha estava ficando cada vez mais irritada. Até agora, nunca havia chegado em casa depois de visitar um paciente com tanta irascibilidade. O habitual era que estivesse excessivamente emocionada. Mas tinha que lembrar que o homem doente que visitou era lorde Giesler, o motivo pelo qual estava de castigo.
?A primeira foi que, de fato, a cura desse presunçoso está sendo espetacular e que nosso pai é o melhor no mundo. A segunda... ?Ela respirou fundo e, pela primeira vez em sua vida, olhou para a mãe com raiva, como se ela fosse a única culpada por fazê-la sofrer todas as emoções e sensações que nasceram nela quando foi beijada por lorde Giesler. ?Deve se sentir muito feliz em entender que sempre esteve certa sobre mim...
?Eu? Razão sobre você? Em quê? ?Sophia disse com uma mistura de surpresa e perplexidade.
?Que, embora nunca quis reconhecê-lo, hoje entendeu que por suas veias também corre sangue Arany.
A resposta saiu da boca de Madeleine. Sophia observou Mary dar-lhe um olhar furioso. Mas a menininha não se intimidou com essa ameaça silenciosa. Exibiu um sorriso enorme antes de colocar as mãos atrás das costas, girar nos calcanhares e seguir em direção à cozinha, esticando as pernas excessivamente.
?Se sente muito orgulhosa, certo? ?Mary soltou cerrando os dentes.
?Filha, por favor me diga o que aconteceu ?Sophia pediu, estendendo a mão para Mary, para que a aceitasse e poder lhe transmitir desse modo um pouco de paz.
?Posso resumir em algumas frases: nunca mais sairei de casa, nunca mais verei lorde Giesler e nunca deixarei o sangue de Arany tomar conta de mim ?hesitou antes de agarrar a alça da maleta e subir as escadas o mais rápido que podia.
Capítulo XII
Ela ficou trancada na biblioteca por horas tentando estudar o novo ensaio médico que havia adquirido, mas não conseguiu ler nem duas frases seguidas. A maldita voz alegre insistia em interrompê-la toda vez que começava a leitura. Resignada por não conseguir alcançar o que se propôs, ela fechou o livro e acariciou a longa trança do cabelo com as duas mãos enquanto contemplava as escassas brasas. Depois do que aconteceu com lorde Giesler, sua mãe, depois de considerar que os tubos de metal eram muito perigosos em suas mãos, proibiu Shira de usá-los nela e insistiu que fosse amarrado com um laço azul inofensivo. Embora, de acordo com Josephine, fosse a arma mais eficaz para estrangular qualquer malfeitor. Mary sorriu levemente ao se lembrar da manhã em que jogou seus tubos no lorde Giesler como se fossem projéteis. Mas aquele leve sorriso de diversão desapareceu quando ela também se lembrou de ter encontrado um deles guardado em uma gaveta da cômoda do lorde. Por que o escondia como se fosse um tesouro? Estaria esperando o momento para devolvê-lo? Com que finalidade? Que plano ele tinha em suas mãos? Mary se recostou no sofá e suspirou. Não tinha respostas para suas perguntas. Na verdade, era a primeira vez que não as encontrava. Seu mundo, baseado em executar uma rotina severa para facilitar o seu cérebro a admissão de novos conceitos médicos, mergulhou em um profundo caos desde que aquele homem irrompeu em sua vida. Nem se reconhecia quando se olhava no espelho! Não só seus olhos brilhavam de uma maneira estranha, mas até sua pele se contraiu tanto que parecia cinco anos mais jovem. Se isso consistia na natureza feminina, em rejuvenescer para seduzir os homens, que lhe durasse cinquenta anos mais...
Ela fechou os olhos, cansada de submetê-los por várias horas a uma luz fraca, e tentou sucumbir ao leve sono que a dominava. Mas foi incapaz de alcançá-lo porque havia a voz novamente, que não deixava de cantarolar uma canção absurda no dialeto Zíngaro sobre a salvação que lhe traria um maldito fogo. Fogo? Onde? E que salvação se referia? O único que precisava era eliminar um titã com cabelos loiros e olhos azuis da cabeça. Mas... como conseguiria uma proeza tão simples? Se ela, com o caráter e a determinação que possuía, não pudesse eliminá-lo de sua mente, como faria com o maldito fogo? O queimaria? Faria lorde Giesler entrar nele até que seu grandioso corpo se transformasse em cinzas? Essa ideia, bastante macabra, a fez sorrir novamente. Exceto em certas reuniões médicas, quando alguma promessa médica jovem se impunha pela força a seus argumentos, seu instinto assassino não aparecia. Ela proporcionava vida, não morte. No entanto, esse homem era o culpado por seu lado criminoso permanecer latente desde que acordava até adormecer.
Desesperada, porque a voz não parava de cantar, ela abriu os olhos e se levantou do sofá. Se não podia ler, pelo menos procuraria a pessoa que a interrompia para calá-la de uma vez por todas. Relutantemente colocou o livro sobre o sofá, amarrou o laço da bata branca e saiu da biblioteca.
Para sua surpresa no corredor, não havia ninguém. No entanto, a voz estava tão perto dela que parecia tê-la ao seu lado. Determinada, ela caminhou devagar até chegar ao pé da escada, olhou para o segundo andar e franziu a testa. Onde estaria? Quem seria? Só tinha duas alternativas possíveis: sua mãe e Madeleine. As duas eram as únicas pessoas na casa que costumavam falar em Romani. Quando colocou o pé no primeiro degrau, ouviu as badaladas do relógio. Eram duas da manhã, tarde demais para a irmãzinha ficar acordada. Normalmente, depois de se retirar para o quarto, permanecia até o amanhecer. No entanto, desde que Josephine partiu, ela ficou bastante inquieta e confusa. Talvez, incapaz de dormir, ela decidiu caminhar até que o cansaço a vencesse.
Encorajada para descobrir se Madeleine era a arquiteta de seu desespero, ela subiu as escadas, atravessou o corredor, ficou em frente à porta do quarto das gêmeas e a abriu muito lentamente. Não, não era ela. A menina se encontrava sobre a cama coberta com o lençol até a cabeça e tão quieta como uma estátua. Com discrição, saiu dali tal como entrou. Como sua primeira opção foi descartada, ainda lhe restava outra: sua mãe. Talvez a mente materna ainda estivesse nervosa após a partida de três de suas filhas. Talvez sua mãe não tenha conseguido adormecer facilmente ou... Sim, essa alternativa também se encaixava. O termo médico para definir a terceira opção era sonambulismo, embora seu pai nunca tenha falado sobre esse tipo de distúrbio na família. No entanto, tudo poderia acontecer com os Arany. Os Moore, felizmente para ela, sabiam controlar até as atividades que realizavam inconscientemente. Admitindo a possibilidade de encontrar sua mãe sonâmbula, ela lembrou o caso de Albert Tirrell, que foi absolvido de assassinato por alegar que estava sonâmbulo quando cometeu o crime. Certamente sua mãe não pensaria em matar ninguém, embora não lhe faltasse vontade. Era mais provável que a mente agitada a levasse à sua época juvenil, quando cantarolava absurdas canções ciganas enquanto lavava a roupa em um rio próximo do povoado.
Do alto da escada, Mary olhou para baixo. Nada. Sophia também não estava lá. Mas incrivelmente a voz, daquela área da casa, era ouvida mais claramente.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e contemplará seu destino. No fogo encontrará o que tanto deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
Fogo? Salvação? Mas por que não parava de uma vez por todas a maldita voz? Que tipo de babá instava a buscar uma fogueira? Isso nunca faria alguém dormir, mas sim incentivá-los a sair de suas camas e investigar os arredores.
Descansou a mão direita no corrimão de madeira enquanto olhava para a porta de entrada. Encontraria sua mãe lá fora? A porta se fecharia quando saiu? Não, não poderia dar essa opção como válida. Se isso tivesse acontecido, Sophia teria acordado rapidamente. Ninguém continuaria dormindo ao ouvir os gritos de uma cigana zangada. Essa reflexão a fez entender que sua mãe não deveria ser a autora dessa música e que, fora de sua casa, havia uma pessoa estranha. Por um momento duvidou sobre descer e resolver o enigma ou voltar para seu quarto. A segunda alternativa era a mais sensata e a teria tomado se a Mary do passado não tivesse desaparecido. No entanto, não era mais a mesma pessoa. Lorde Giesler a transformou completamente. Odiando ainda mais a causa de suas irracionalidades, desceu lentamente, sentindo na planta dos pés descalços a frieza e dureza de cada degrau. A melodia ficou tão forte e poderosa que, no meio da escada, ela não conseguiu mais mudar de ideia. Seu corpo estava preso, enfeitiçado pela voz harmoniosa. Pensando nesse fato irracional, ficou em frente à entrada, estendeu as mãos para as fechaduras e as girou uma a uma.
Quando abriu a porta, fechou os olhos quando sentiu a carícia de uma brisa noturna suave em seu rosto. A bata se moveu para trás, mas o laço impediu que se afastasse dela. Jamais havia sentido tanta paz, tanta tranquilidade. Era como se toda a inquietação que tinha vivido no passado nunca tivesse existido. Levou as mãos ao peito, captando como seu coração batia com lentidão. Continuava sem compreender a si mesma. Qualquer pessoa em sua situação estaria à beira da loucura. No entanto, ela desfrutava de um estado de repouso inverossímil.
«Abra os olhos, estenda suas mãos e aceite o destino que lhe ofereço. Toque nele; abrace-o... Encontre sua salvação...».
Tal como lhe indicaram as frases dessa canção que não parava, Mary abriu os olhos lentamente e ficou imóvel ao descobrir duas coisas: uma enorme fogueira no meio do jardim, que ardia sem a necessidade de lenha, e o maior corvo que tinha visto em sua vida, apoiado no corrimão de mármore. Aquela tranquilidade, aquela calma que notara percorrendo todas as partes de seu ser desapareceram quando viu como aquele imenso pássaro abria suas asas. Assustada com a aversão que sentia por esses tipos de animais, ela recuou, na esperança de entrar na sua casa novamente sem deixar o pássaro irritado. Mas não foi fácil avançar porque a porta, de maneira inexplicável, tinha se fechado. Com as costas apoiadas na madeira, fixou seus olhos de novo no animal. Este escondeu de novo as asas e a olhou. Quando os dois olhos se encontraram, Mary prendeu a respiração enquanto contemplava um fato inédito. Os corvos não tinham olhos negros? Então... por que os daquele animal eram azuis, muito parecidos, se não iguais aos do homem em que não queria pensar?
?Não tem nada melhor para fazer? Vá embora, pássaro miserável! Deixe-me em paz! ?Recriminou, num ato de valentia, o pássaro com a esperança de que se afastasse dela.
No entanto, o corvo não foi embora. Depois de ouvi-la, ele expandiu suas enormes asas novamente e as bateu com avidez. De repente, a brisa suave se tornou um tornado angustiante, elevando todas as folhas secas no chão para o céu. Horrorizada, ela fechou os olhos e colocou as mãos na frente do rosto para não se machucar. No instante em que se preparou para gritar que parasse, a tranquilidade voltou. Muito devagar, o mais lento que pôde, ela abriu os olhos, expulsou todo o ar retido em seus pulmões e afastou os braços. Então observou algo que a deixou paralisada. O maldito pássaro, aquele que queria ver longe dela, voou sobre o fogo desenhando enormes círculos.
?Não! ?Ela gritou enquanto corria em sua direção. Uma coisa era odiar esse tipo de animais e outra muito diferente era lhe desejar a morte. ?Afaste-se! Vai se queimar! —Continuou dizendo até ficar na frente da estranha fogueira.
Como da última vez, o corvo a ignorou e continuou seu voo sobre as chamas. A luz da grande fogueira alcançou a plumagem negra e a fez brilhar como uma estrela. De repente, seu olhar encontrou o do animal novamente. Mary começou a tremer, antecipando a terrível situação que veria em breve. Não podia testemunhar um ato tão horrendo. Por mais que não gostasse de tais pássaros, não seria capaz de viver com a dor de não ter evitado tal catástrofe. Reunindo a pouca força que tinha, levantou as mãos e começou a agitá-las, numa tentativa absurda de assustá-lo. No entanto, o corvo subiu ao céu, como se fosse um foguete, e logo mudou de direção, dirigindo-se para o interior do fogo em um mergulho.
?Não! ?Mary gritou horrorizada.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e você contemplará seu destino. Nas chamas você encontrará tanto o que deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
O animal não parou. Entrou na fogueira e ardeu. O que aconteceu depois deixou Mary muito confusa. Enquanto a voz continuava cantando, enquanto lágrimas de tristeza vagavam por seu rosto, a cor do fogo passou de laranja e vermelho para o branco e azul. Chocada ou perplexa, não conseguia descrever com precisão o estado em que estava. Talvez não houvesse uma palavra capaz de explicar que tipo de emoções e sensações a dominavam naquele momento.
«Não se afaste... Aí está... Sua salvação vem... Toque-o! Toque nele!».
A voz cantante insistia repetidamente. Sem tirar os olhos do fogo, enfeitiçada pela música e enfeitiçada pelo estranho fenômeno que testemunhou, aceitou a ordem e estendeu as mãos para as chamas brancas e azuis. As pontas de seus dedos não sentiram calor ou dor. O oposto. Uma leve cócega os recebeu quando passou por eles. Deu outro passo em direção ao fogo, desejando sentir aquele toque maravilhoso em todo o corpo. Se colocou no centro, no meio daquela fogueira incomum e começou a notar carícias fascinantes em sua pele. Nem a bata nem a camisola a impediram de sentir aquele toque magnífico. Cativada por esse estado de prazer, ela fechou os olhos e se rendeu à suavidade que a percorria. De repente, exatamente quando pensou que poderia morrer de prazer, seus lábios foram atacados e pressionados por uma boca. Ela parou de respirar, porque sua mente a informou sobre quem poderia beijá-la dessa maneira. Essa pressão, essa paixão e o ardor de tomá-la tinham um sobrenome único: Giesler. Tentou abrir os olhos para confirmar as suas suspeitas, mas não fez isso. Desejava continuar a sentir essa boca sobre a sua e que a liberdade que brotava em seu interior aumentasse. Por que lhe era tão agradável estar com ele? Por que não o odiava como se empenhava em fazer? E, por que não se retirava e voltava para casa? Todas as perguntas foram resolvidas com uma única resposta: porque o desejava. Sim, mesmo que lhe parecesse estranho, mesmo que tivesse dificuldade em admitir, ela desejava lorde Giesler. Mas... realmente que ele era sua salvação? A música se referia a esse homem específico? Como podia resgatá-la quem lhe converteu em uma mulher diferente? Até agora, sempre se gabou de ser uma Moore, de não ter em suas veias nem uma só gota de sangue Arany. No entanto, essa forma de reagir era mais própria de sua mãe que de seu pai... Com raiva da sua reflexão, abriu os olhos. A princípio, suas pupilas não lhe ofereceram uma imagem clara do lorde, mas com o passar dos segundos, o rosto ficou tão claro quanto a água de um rio. Assustada, porque seu corpo ardia de desejo de continuar em seus braços, de sentir o contato de seu robusto peito nu e de perceber a força de sua boca sobre a dela, deu um passo para trás e o olhou com estranheza. As chamas continuaram a cercá-lo, sua luz continuou iluminando a silhueta masculina que a tinha tão cativada. Alguma vez pôde imaginar que um homem como ele teria a coragem de admirá-la e desejá-la dessa maneira? Até que ponto devia sentir-se honrada ou apreciada? Devia aceitá-lo sem mais nem menos? E, o que estava vivendo? Sofreria algum transtorno mental? Porque não podia encontrar outra explicação ao que estava vendo e vivendo.
?Mary... vem... ?ele sussurrou com uma voz aveludada. ?Não saia do meu lado, meu amor... ?ele acrescentou, estendendo as mãos para ela.
Mary o observou em silêncio. O que devia fazer? O que desejava fazer? Suspirou fundo, para aplacar seu estado de excitação. Não conseguiu. Seu coração palpitava tão rápido que seu corpo se movia ao compasso daqueles batimentos. Sua pele buscava o contato que ele lhe proporcionava e sua boca ansiava aqueles lábios. Desviou o olhar do homem e o fixou no chão. Era uma alucinação, um sonho que o subconsciente lhe oferecia para entender de uma vez por todas que deveria se render a uma necessidade tão básica quanto o prazer carnal. Talvez o que a música estivesse tentando explicar fosse que ela só poderia ser salva aceitando em sonhos o que não poderia alcançar na vida real. Então... por que ela continuou se reprimindo? Porque construía muros quando tudo o que tinha a fazer era derrubá-los? Levantou seu rosto muito devagar, até que ambos os olhares se cruzaram novamente. Enfeitiçada não era a palavra exata para definir o que sentia por aquele homem. Tampouco era atração, nem desejo. Mas se negava a denominar algo tão imenso com um termo tão simples. Não. Ela não podia apaixonar-se por Lorde Giesler. Jamais o faria! A única coisa que tinha que fazer, era satisfazer essa parte de seu cérebro que a transtornava e que a normalidade retornasse a ela. Uma Moore! Já! Agora, mais do que nunca, seu sangue Arany a convidava a desfrutar do proibido, do imoral, do insano.
?Mary... ?voltou a dizer.
E desta vez não pensou, nem procurou os prós nem os contras da ação que realizaria. Se lançou a seus braços, aceitando com submissão o que aconteceria entre os dois.
?Sou sua! ?Gritou quando lorde Giesler a pegou nos braços.
?Para sempre? ?Perguntou ele aproximando essa boca que adorava a sua.
?Para sempre?Admitiu antes de lhe rodear com seus braços o pescoço e aproximar seus lábios aos do homem.
?Mary! Acorde de uma vez!
A voz de Madeleine e a sacudida que ela a sujeitou lhe fizeram voltar para sua casa, sua cama, seu quarto amado. Depois de abrir os olhos e ver a menininha ao seu lado, parecendo assustada, Mary se sentou e cobriu seu corpo excitado com o lençol.
?O que faz aqui? ?Perguntou com uma mistura de angústia e alívio.
?Tem que admitir que é a única que costuma ficar acordada a estas horas ?disse enquanto se sentava sobre a cama. ?Está bem? Você tem as bochechas vermelhas como as papoulas que Elizabeth cuida no jardim e seu cabelo está... molhado. ?Depois de dizer essas frases, se inclinou para Mary, estendeu a mão direita para a testa e rapidamente a afastou quando sentiu muito calor. ?Está doente! ?Exclamou espantada. ?Quer que chame a mãe? Te trago panos frescos?
?Não! ?Respondeu afastando os lençóis de seu corpo. Pulou da cama, caminhou em direção à janela enquanto aplacava o constrangimento e, uma vez que não conseguia se afastar da pequenina, virou-se para ela. O que poderia dizer a ela? Era certo falar sobre o sonho? Não, era melhor ficar calada. Pelo menos até encontrar uma explicação lógica para o que aconteceu. ?Apenas... Foi apenas um pesadelo ?disse apertando as mãos.
Madeleine ficou em silêncio por alguns segundos, observando a reação da irmã. Era estranho, apesar de Mary já ter se comportado de maneira diferente do resto do mundo. No entanto, algo não se encaixava. Ela nunca mentiu, como estava fazendo nesse momento. Mary era uma das pessoas que falava claramente, embora suas palavras magoassem o ser mais cruel da Terra. Por que agia assim? O que teria visto no sonho para assustá-la tanto? Havia apenas uma coisa que podia assustá-la, algo que ela zombava toda vez que o assunto aparecia: homens.
?Mary... ?começou a dizer enquanto colocava as mãos nos joelhos. ?Nesse pesadelo... viu fogo?
?Não!?Negou rapidamente a segunda das Moore.
?Um corvo??A pequena insistiu.
?Como te ocorre perguntar esse tipo de tolices? ?Respondeu indignada.
?Porque, de acordo com a mãe, quando ela sonhava com nosso pai, ela o viu deixar uma fogueira imensa e foi um corvo que a levou até ele.
?Disparates! ?Exclamou, acariciando seu rosto em desespero. ?Sonhos são produtos irreais. A parte inconsciente do nosso cérebro age quando estamos no estado de sonolência. Sonhos ou alucinações, querida intrometida, são vagas lembranças de acontecimentos que vivemos e nos produziu certa inquietação ou excitação. Da minha parte, tive um pesadelo com lorde Grayson. Como sempre, queria me humilhar em um debate sobre enxertos de pele em cicatrizes infectadas ?declarou categoricamente quando voltou para a cama. ?Então, não vi nenhum corvo ou fogo. Embora, agora que penso nisso... Os cabelos oleosos de Grayson não se parecem com penas molhadas? ?Acrescentou mordaz.
?Bem... lamento. Eu sei que o cavalheiro é um monstro. Papai sempre nos diz a coragem que você mostra quando o enfrenta ?Madeleine declarou sem desviar o olhar da irmã.
?Tolices!?Exclamou fazendo um movimento desdenhoso com a mão esquerda. ?Não é coragem, mas inteligência. Até um mosquito pode superar os debates desse petulante.
?Um mosquito? ?Retrucou Madeleine. ?Não dizem que os corvos são pássaros bastante inteligentes? ?Insistiu no assunto.
?Também comentam que um dia a raça humana aprenderá a respeitar e viver em paz para sempre. Mas não vamos falar sobre futuras falácias. Diga-me, qual foi o motivo da sua insônia? ?Mudou rapidamente a conversa.
?Eu senti Josephine aqui. ?Apontou para o peito. ?Algo aconteceu com ela.
?O que significa algo? ?Perguntou Mary. Não havia estudos científicos sobre isso, mas era verdade que todos falavam sobre a intensa relação que se formava no útero entre gêmeos e gêmeos idênticos. Essa união, essa percepção conjunta, apesar de não ser metodicamente estudada, ofereciam causas e efeitos reais.
?Seu coração ficou louco e fez o meu fazer isso também ?respondeu, subindo na cama para abraçar as pernas. ?Eu acho que ela encontrou o homem que se tornará seu marido. Embora também sinta que o conheceu de uma maneira pouco convencional. Eu percebi sua raiva, mas também um estranho... desejo ?alegou antes de suspirar.
?Mas... não disse que nunca encontraríamos um marido porque fomos submetidas à maldição que Jovenka nos enviou?
?Quebrou ?explicou olhando a camisola. ?Anne conseguiu derrotá-la graças a lorde Bennett. É por isso que, por alguns dias, todas vivemos num constante vaivém de sensações.
?O que quer dizer com isso? ?Perguntou, moendo o travesseiro com mais força do que o necessário.
?Não sentiu nada estranho? Não apreciou certas mudanças em seu corpo?
?Não ?mentiu.
Claro que tinha notado, sentido ou percebido! Mas não tinham nada a ver com maldições, mas com desejos carnais em relação a lorde Giesler. Seu corpo nu era a causa da perturbação mental que ela sofria! Agora entendia por que sua mãe estava com raiva de descobrir o que tinha acontecido. Não queria recriminar o fato de que ela o salvou, mas protegê-la da tentação!
?Pois eu sim ?Madeleine disse antes de jogar a cabeça para trás e suspirar novamente. ?Só espero que nenhuma de nós sofra e que Morgana nos ajude a encontrar o caminho certo.
?No caso hipotético de você estar certa... ?Mary começou a dizer enquanto acariciava o lençol com aparente tranquilidade. ?O que poderia acontecer?
?A visão que lhe contei alguns anos atrás seria cumprida ?Madeleine disse, fixando os olhos no rosto pálido da irmã.
?Entendo... ?Mary sussurrou enquanto tamborilava com as duas mãos o lençol. ?Mas é possível que não se cumpra ?insistiu. ?Lembre-se de que Elizabeth estava determinada a se casar com uma aristocrata e, realmente poderá cumprir seu desejo?
?Todas sabemos a razão pela qual Eli está determinada a alcançar essa classe social ?apontou a menina franzindo a testa. ?Mas, felizmente para ela, se apaixonará por um homem que a tratará como uma rainha.
?Disse a ela? Porque acho que isso pode confortá-la muito... ?disse zombando.
?Você sabe tão bem quanto eu que ela sofreu muito desde que Archie a traiu e essa foi a razão pela qual uma promessa tão absurda foi feita. No entanto, esquecerá o passado quando ele aparecer... ?revelou em tom de mistério.
?E você realmente acha que existe um homem que pode tolerar o comportamento de Josephine? ?Mary respondeu.
?Se existe alguém para você, por que não deveria haver para Josh? ?Respondeu com raiva.
?Certo. Essa tese carece de discussão. Se puder encontrar um homem capaz de suportar meu intelecto, Josh poderá encontrar alguém que possa dormir tranquilo enquanto tira brilho ao cano de sua nova arma. ?E depois dessas palavras, ela soltou uma risada.
?Não acredita em mim, certo??A jovem apontou tristemente. ?Para você, tudo o que posso ver são... visões infantis.
?O melhor que tem a doce fase infantil e inclusive a juvenil é que se pode fazer e dizer tudo o que lhe agrade, pois os mais velhos alegarão que são coisas da idade. No meu caso, por muito que pese aos nossos amados pais, considero que continuo na segunda. Por esse motivo faço e digo o que quero sem parar para pensar nas consequências desse comportamento ?garantiu.
?Mas logo terminará a etapa em que admite viver ?Madeleine disse esboçando um grande sorriso.
?Oh, que horror! Está insinuando que, quando me levantar, serei uma mulher adulta? ?E riu de novo. Quando terminou de rir, inclinou-se para a irmã, estendeu as mãos e colocou-as sobre as de Madeleine. ?Se veio para me divertir, conseguiu ?acrescentou dando tapinhas.
?Como pode ser tão cínica? ?A pequena a repreendeu enquanto se levantava da cama.
?O cinismo é apropriado para viver no mundo real. É lógico que, por sua idade, ainda não o tenha e que sonhe com uma vida cheia de fantasia e amor ?zombou. ?Garanto que adoro o teu positivismo, mas seja realista Madeleine, quem pode casar com uma mulher que antes de tomar banho tem que ter todas as suas armas limpas? Quem aceitará Anne, depois da morte de seus pretendentes? E Elizabeth? Você realmente acha que existe um homem que se renderá a seus pés quando descobrir que possui um coração negro sob sua beleza?
?E eu? Porque... quem vai aceitar uma moça que não pode tocar em ninguém, certo? ?Pulou da cama.
?O seu é um problema psíquico e tem uma solução. Basta usar luvas para...
?Você é uma mulher perversa! ?Madeleine retrucou. ?Tanto quanto foi Jovenka!
?Não fique nervosa... ?tentou acalmá-la. ?Certamente você age apenas para o nosso bem. Mas eu não gostaria que você se decepcionasse quando...
?Três dias! ?Gritou enquanto se dirigia para a porta. ?Em três dias tudo estará resolvido! E, nesse momento, serei eu quem ri, Mary.
?Três dias? Terei que esperar setenta e duas horas para confirmar que estou certa? ?Disse mordaz.
?Você se casará com o homem que viu esta noite em seus sonhos. ?Essa declaração deixou Mary tensa, mas ela tentou não mostrar a surpresa que as palavras haviam produzido. ?Ele lhe dará o que você nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!
?Por todos os livros que li! ?Continuou aparentemente divertida, embora ainda estivesse pasma com a alegação de Madeleine. ?Você acabou de me jogar uma maldição? Já não tivemos o suficiente com Anne?
?Continue assim, Mary. Continue pensando que nada vai mudar, que você é tão poderosa que pode controlar o mundo. Mas você esta errada ?disse enquanto abria a porta. ?Em três dias nossas irmãs voltarão e darão a nossos pais uma grande notícia. Quando isso acontecer... Sua vida cínica desaparecerá para sempre! ?Acrescentou antes de sair do quarto batendo a porta.
Mary não desviou o olhar da porta até que ouviu Madeleine fechar a sua. Era a primeira vez que discutiam. Jamais lhe fez mal, pois assumia que bastante dor lhe causava suportar dia após dia um comportamento tão abstraído e tímido. No entanto, desde que conheceu lorde Giesler, perdeu a cabeça. Não apenas sentia coisas indevidas, imorais e inapropriadas para ela, mas também o cinismo, enfatizado pela irmãzinha, aumentara. Talvez se tratasse de um mecanismo de defesa. Muitas pessoas agiam de maneira estranha para não mostrar ao mundo sua debilidade. Mas ela... Desde quando se tornou uma mulher fraca?
Irritada e decepcionada consigo mesma, afastou o lençol para o lado e caminhou lentamente em direção à janela. Não precisou fechar as cortinas para subir no peitoril da janela. Sua mãe ordenou que Shira as amarrasse nos dois lados para que a luz do dia chegasse ao quarto e a acordasse antes das nove da manhã. Subiu a camisola até as coxas e se sentou sobre o frio parapeito. Abraçou os joelhos e apoiou o queixo neles. Por que agiu assim com Madeleine? O que provocou sua fúria? A resposta surgiu sem a necessidade de esforço: Porque se tivesse razão, se a jovem vidente estivesse certa, o desejo, pelo qual lutou durante tantos anos, desapareceria e, tudo por quê? Por um homem. Esse gênero humano que odiava com todas suas forças porque a humilharam, a ultrajaram e, em mais de uma ocasião, cuspiram perto de seus sapatos para lhe deixar claro que não tinha valor algum, embora os seus conhecimentos fossem superiores aos deles.
Fechou os olhos e suspirou fundo, como se fosse uma anciã a ponto de expirar. Madeleine pensava que ela seria feliz com lorde Giesler? Duvidava. Era certo que a atração sexual entre ambos era ilógica, mas ninguém podia viver décadas junto a uma pessoa baseando-se na paixão. Ela, nos poucos momentos em que pensou em casamento, sonhava em conseguir o que seus pais possuíam: um casamento cheio de amor, respeito, consideração, apoio e acima de tudo confiança. Obviamente, não podia confiar em lorde Giesler, sua reputação como libertino era bastante considerável. Hoje poderia morrer beijando-a, tocando-a ou possuindo-a, mas... e amanhã? Bufou diante da reflexão tão anormal que tinha chegado, voltou para a cama, subiu nos lençóis e se cobriu com eles. Uma vez que notou o leve calor do sono, fechou os olhos e... abriu-os! Como se um dragão tivesse aparecido aos pés da cama, afastou os lençóis, se sentou e olhou para a porta.
?Como diabos soube? Como descobriu que sonhei com o corvo, com o fogo e com o lorde Giesler? ?Esbravejou antes de permanecer nessa posição o resto da noite.
Capítulo XIII
Nunca tinha vivido uma situação tão exasperante com Madeleine. Talvez porque, sendo a caçula das irmãs, o tratamento com ela sempre fora diferente. Nunca houve uma palavra ou um ato malicioso de sua parte, pelo contrário, raro era o dia em que não era obrigada a mimar ou protegê-la devido ao seu comportamento frágil. No entanto, durante os próximos dois dias, a doce e tenra Madeleine se tornou a vilã mais cruel do planeta. Toda vez que tinha a chance de conversar com ela, virava o rosto e levantava o queixo com orgulho. Todos os esforços que fez para suavizar a convivência entre as duas não obtiveram os resultados desejados. Madeleine nunca agiu assim. Era a primeira vez que tirava, de algum lugar de sua timidez, coragem e ousadia tão característica na família.
Se levantou da poltrona e esticou os braços, observando como suas trinta e três vértebras tomaram o lugar certo na coluna vertebral. Depois do chá, e depois de sofrer outra rejeição de Madeleine, decidiu se trancar na biblioteca e deixar o tempo passar antes de causar outra abordagem entre elas. Esperava que, durante aquelas três horas e antes da chegada do pôr do sol, Madeleine tivesse consciência de que havia cometido um erro. É claro que, uma vez que sua antiga relação retornasse, não haveria menção à bendita previsão. Tinha certeza de que o fracasso a humilharia a ponto de agravar seu caráter retraído.
Sob nenhuma circunstância duvidou sobre o que aconteceria quando o prazo indicado por sua irmã expirasse. A parte Moore, tão racional e sensata como sempre, afastou de sua mente qualquer assunto sobre previsões, bruxaria, magia ou feitiços e os manteve em alguma área do cérebro que usava como informação desnecessária. Tudo ao seu redor tinha uma explicação lógica, até a suposta maldição de Anne: isso nada mais era do que a conclusão de um compêndio de circunstâncias infelizes criados pelos dois noivos. Apesar disso, era uma lástima que Anne tivesse que sofrer as consequências de ações que não lhe correspondiam. Mas era assim que a sociedade hipócrita agia. Como não podiam culpar os mortos, porque consideravam falta de moralidade, dirigiam seus olhares e sussurros para os vivos, independentemente da inocência e do impacto sobre eles.
Depois de depositar o livro sobre a mesa à direita, se levantou do sofá e caminhou pela sala. Sentia um formigamento irritante nas pernas por mantê-las na mesma posição por tanto tempo. Muito lentamente, levantou a saia do descarado vestido azul, um que sua mãe comprou como castigo por sua contínua rebeldia, e mexeu os pés e o tornozelo. Felizmente, seu conhecimento profundo do corpo humano a alertou que não estavam machucados, mas contraídos pela falta de atividade. Deixou cair o tecido, cobrindo de novo os sapatos de couro que tinha decidido colocar nesse dia. Faltava apenas uma vassoura, um gorro cônico e um caldeirão para exibir a imagem de uma bruxa da qual todo mundo falava quando encontravam com ela na rua. Essa comparação, e a mistura real de sangue que possuíam as Moore, lhe fez sorrir. No fundo, não estavam mal encaminhadas. Se a premonição de Madeleine tivesse sido cumprida, até ela teria presumido que tinha origens mágicas. Talvez até admitisse que sua capacidade médica se devia, de certa forma, à origem cigana. Mas, felizmente, não era assim. Ela sempre soube que adquirir conhecimento seria a melhor ferramenta para realizar seu sonho: tornar-se uma pessoa tão extraordinária quanto seu pai. Portanto, durante suas leituras, nunca invocou nenhum espírito para ajudá-la a entender melhor os ensaios médicos. Era o suficiente ler e raciocinar. Essa era sua única habilidade e segredo. No entanto, apesar de ninguém mudar de ideia sobre a racionalidade necessária para a compreensão de todos os fatos, ela continuava dando voltas a um assunto. Como Madeleine descobriu os três elementos fundamentais de seu sonho? Embora considerasse a possibilidade de falar enquanto sua irmã tentava despertá-la, não terminava por aceitar essa afirmação como válida. Até o dia em que Anne partiu, esta nunca lhe fez referência a esse hábito inconsciente, e isso que dormia com ela desde que tinha uso da razão. Além disso, não tinha dúvida de que, se tivesse feito isso, teria a censurado assim que abrisse os olhos. Anne era a única das irmãs que não se sentia desvalorizada por sua inteligência e a confrontava sem piedade. Por esse motivo, toda vez que estava errada, havia a mais velha das Moore para lembrá-la de que, apesar de seu grande intelecto, tinha mais defeitos do que virtudes.
?Senhorita Mary! ?Shira exclamou abrindo a porta da biblioteca sem bater. ?Saia! Rápido!
?O que aconteceu? ?Perguntou, virando-se para ela tão rapidamente que suas pernas dobraram por falta de forças.
?Suas irmãs! Suas irmãs voltaram! ?Gritou feliz.
?Como disse? ?Mary retrucou arregalando os olhos.
?O que ouve! Exatamente agora, acaba de chegar uma carruagem com o brasão do visconde de Devon ?continuou eufórica. Vendo que a menina não era capaz de reagir, pois permanecia congelada no lugar e seu rosto empalideceu até adquirir a cor do leite, deu um passo em sua direção. ?Está bem? Já lhe disse mil vezes que não deve gastar tantas horas lendo esses livros. Ficará cega e sua pele desbotará. ?Shira estendeu a mão para Mary, mas ela deu um passo atrás, evitando qualquer contato. ?Sua mãe e Madeleine saíram para recebê-las ?lhe informou antes de se virar e seguir para a porta. ?Irá acompanhá-las ou explicou que decidiu continuar trancada na biblioteca?
?Sairei em breve ?comentou quase sem voz.
?Não faça elas esperarem senhorita Mary, ou temo que sua mãe a castigue novamente sem sair de casa por mais dois anos. ?Avisou antes de caminhar rapidamente para o corredor.
Haviam chegado! Estavam lá! Como era possível que Madeleine soubesse? Angustiada e atordoada, fechou os olhos e contou os dias que passaram desde que suas irmãs se foram. Não, ainda não tinha terminado o prazo que o visconde considerou oportuno para realizar o trabalho. Ainda restavam doze dias para o esperado retorno. Mantendo os olhos fechados, levou as mãos para o rosto e esfregou-o desesperada enquanto perambulava pelo centro da sala. Tinha que encontrar, o mais rápido possível, uma explicação lógica que a salvasse do atordoamento mental que sofria. Mas não encontrava com a rapidez que requeria. A opção de que Madeleine sabia desse fato antes dela não era válida. Nem a menininha saiu para a rua, nem ela saiu de casa, exceto quando Valéria a enganou para levá-la para a residência do irmão. Seria informada sobre o retorno durante a sua ausência? Não. Isso também não era plausível. Sua mãe não conseguia guardar um segredo que pertencia à família. Nada a faria calar, nem expressar a euforia que teria sentido depois de receber a notícia. No entanto, apesar de qualquer concepção surrealista, tinha acontecido. Suas irmãs estavam na entrada exatamente no dia que Madeleine mencionou. Realmente possuiria um dom Zíngaro? E se fosse assim... que lugar a lógica teria no mundo? Se o futuro pudesse ser previsto, deixariam de existir surpresas, os avanços médicos ou as preocupações para descobrir coisas novas. Bastaria procurar pessoas com a habilidade de Madeleine para que respondessem às perguntas que surgissem ao longo dos anos. O mundo se renderia a pensamentos transcendentais, deixaria de lado o real e basearia suas vidas na busca do imaginário, assim como fizeram os grandes pensadores. Refletindo sobre essa opção, tirou as mãos do rosto e arregalou os olhos. As teorias filosóficas seriam verdadeiras? Esses grandes gênios evocariam a verdade? Teriam o mesmo dom que sua irmã e, por esse motivo, viveram e pensaram de maneira tão diferente? Talvez Platão, Sócrates, Aristóteles e até o próprio Emanuel Kant proclamaram suas ideias depois de visualizá-las ou apresentá-las. Desesperada, apertou tanto os punhos que as unhas se cravaram nas palmas das mãos. Não devia refletir sobre o passado, mas sim no futuro. Segundo Madeleine, ela se casaria com lorde Giesler, seria feliz e ele a ajudaria a conseguir tudo o que sempre quis. Isso faria qualquer mulher feliz que, entre seus planos, abrigasse a possibilidade de conseguir um bom casamento. Mas ela nunca considerou uma ideia tão absurda. Apesar da afirmação de sua irmã, sabia que, uma vez que aceitasse o sobrenome Giesler, este a converteria em uma pessoa sem decisão, sem autoridade. Em poucas palavras: a anularia em todos os sentidos. Furiosa, correu para a janela, de onde podia contemplar o lado de fora de sua casa sem ser descoberta. Seu coração parou de bater quando viu que sua mãe abraçava Anne e ambas davam pequenos saltinhos de alegria. Junto a elas, Madeleine fazia o mesmo com Josh, que continuava vestindo roupas mais próprias de homens que de mulheres. Então viu como Elizabeth saía da carruagem. Embora escondesse o rosto com a aba larga do bonito chapéu branco, Mary notou que seus olhos estavam fixos no chão, como se tivesse vergonha de voltar para sua humilde casa. A mãe, ao vê-la, se afastou de Anne e a abraçou. Elizabeth não evitou o abraço, mas manteve os braços estendidos, como se não tivesse forças para abraçá-la. Um comportamento atípico nela porque, embora sempre se considerasse superior as outras por causa de sua beleza exuberante, nunca rejeitou uma carícia ou um abraço materno. Fechou os olhos, deixando para trás a estranha atitude de Elizabeth e se concentrando na questão que a preocupava. Como deveria agir? Como lutaria contra algo que ainda não havia chegado e que não se deseja? Quando obteve a resposta, arregalou os olhos e exibiu o sorriso mais maligno que sua boca pode esboçar em um momento tão exasperado. Ela tinha a solução para o problema. Felizmente para ela, sua mente ainda estava lúcida, apesar do colapso que suportava. O objetivo era muito simples: lutar com unhas e dentes para que a profecia de Madeleine não se cumprisse. Essa era uma das vantagens de conhecer o futuro, que se podia encontrar a maneira mais eficaz de evitá-lo. Satisfeita, feliz e cheia de energia, se virou para a porta e caminhou pela sala, juntando a ponta do pé esquerdo com o calcanhar do lado direito e vice-versa. Se suas irmãs entrassem em casa sem que ela as cumprimentasse corretamente, sua mãe ficaria com tanta raiva que aumentaria o castigo por mais alguns meses. E assim começava o plano para destruir seu futuro. Quanto mais castigos recebesse, menos chances teria de sair de casa e, é claro, as chances de encontrar aquele gigante com olhos claros e cabelos loiros seriam tão reduzidas que os chamaria de nada.
?Mary! ?Anne gritou quando ela entrou na biblioteca. ?Por que não veio nos receber? Estava de novo absorta em outra teoria sobre a radicalização de doenças infecciosas? ?Antes de receber uma resposta, avançou até ela, a abraçou e a fez girar. ?Senti sua falta, rata de biblioteca! ?acrescentou depois de lhe dar dois beijos estalados.
?Certeza? ?Estalou cética.
Enquanto as gêmeas falavam com Elizabeth na galeria, que lhes informou que se retirava ao seu quarto para descansar, Mary observou o rosto de Anne. Tinha um brilho especial nos olhos e, pela primeira vez desde a morte de Dick, irradiava felicidade. Então voltou sua atenção para Madeleine que, depois de esperar que Eli subisse para seu quarto, caminhou com Josh para onde elas estavam. Quando se entreolharam, a bruxinha deu a ela um sorriso tão pérfido que a deixou congelada. Esse gesto expressou tanta diversão e triunfo, que a perplexidade entre as profecias absurdas e o desaparecimento da razão voltou à sua mente.
?Por que não saiu para recebê-las? ?Esbravejou sua mãe, colocando as mãos na cintura. ?Quer ficar trancada pelo resto da vida? Porque eu garanto que é o castigo que você merece.
?Sinto muito, mãe. Fiquei tão surpresa com a chegada de minhas irmãs que fui incapaz de reagir. ?Nesse momento, Madeleine soltou uma sonora gargalhada. ?Mas se acha que devo ser castigada, desta vez não discutirei ?Mary persistiu antes de ser agarrada pelos braços fortes de Josh.
?Oh, mãe! ?Anne interveio, pegando as mãos de Sophia. ?Eu imploro, não a castigue hoje. Tenho que lhe dar ótimas notícias e não gostaria que Mary ficasse triste em um dia tão importante para mim.
«Para o inferno, Anne! ?pensou Mary. ?Não é um bom momento para assumir a postura de irmã solidária e protetora».
?Do que se trata? ?A mãe perguntou curiosa, fazendo desaparecer a raiva que causou a desobediência da segunda de suas filhas. ?Talvez seja por isso que voltaram tão cedo? ?Insistiu, sem afastar os olhos de Anne que tinha se separado dela o suficiente para começar a dar voltas.
?Vai se casar com o Visconde! ?Declarou Josh ao retornar ao lado de sua irmã gêmea. Se apoiou na moldura da porta, adotou uma postura típica masculina e olhou para sua mãe. ?Ele pediu e ela não pôde recusar ?acrescentou.
?De verdade? ?Perguntou a mãe surpresa, colocando as mãos nos ombros de Anne para fazê-la parar. ?Está certa da decisão que tomou?
?Sim ?respondeu, abaixando um pouco o rosto para esconder o rubor. ?Nunca estive tão segura de algo. Logan é o homem que esperei por toda a minha vida e o único que nos salvará da maldição. ?E aí terminou sua explicação. Era responsabilidade de Logan revelar ou não sua origem. Embora sua mãe deveria entender que, se ela o aceitou depois do que aconteceu no passado, o motivo era mais que evidente.
?Acho que já nos livrou dela ?Madeleine admitiu dando um passo à frente.
?Por que diz isso? ?Josh fez a pergunta que, quando a ouviu falar, se afastou do batente da porta, descruzou os braços e as pernas e seguiu a irmã gêmea.
?Pressenti faz alguns dias ?continuou dizendo a mais nova. ?Percebi que a escuridão ao nosso redor desapareceu. Agora só há luz sobre nós.
?Percebeu mais alguma coisa? ?Josh queria saber, e Madeleine se aproximou de por trás e falou entre sussurros.
?Você quer dizer a mudança emocional que sofreu ultimamente? Ou quer me perguntar sobre os sentimentos que teve em relação a um jovem mais severo do que um batalhão de soldados? ?Murmurou, antes de sorrir de orelha a orelha.
?Maldita seja! ?resmungou, revirando os olhos. ?Um dia poderei ter um segredo só para mim?
?Nunca ?Madeleine respondeu antes de se virar para ela e abraçá-la novamente.
?Há algo mais que eu deveria saber? ?Sophia disse, estreitando os olhos ao ver as duas menores sussurrando secretamente.
?Não! ?Josephine negou rapidamente se separando de Madeleine.
?Bem, Josh preciso lhe contar algo sobre o novo membro da família ?Anne interveio zombando.
?Novo membro??soltou a mãe arregalando os olhos. ?A que se refere?
?Se chama Galeón ?Josh respondeu feliz. ?É um dos cavalos que o visconde tem na residência e, devido à conexão que tivemos, me presenteou.
?Um cavalo? ?Mary estalou surpresa. ?E onde diabos pensou em mantê-lo, no seu quarto?
Sophia recuperou a cor do rosto, que empalideceu ao interpretar a afirmação de forma inadequada e respirou calmamente. Nunca considerou a possibilidade de que Josh se comportasse inadequadamente, mas depois de ouvir que a maldição se foi, tudo poderia acontecer...
?De verdade? ?Interveio Madeleine. ?E, como é?
?Ele é muito bom e inteligente ?declarou olhando para Mary. ?Cavalguei sobre ele durante toda a viagem. Não o viu? Amarrei-o em um dos ramos da árvore da entrada. Se quiser, podemos sair para que o conheça.
?Claro! ?A menina exclamou. ?Mal posso esperar para conhecer o novo membro Moore. Além disso, tenho o pressentimento de que esse cavalo te ajudará a conseguir aquilo que tanto sonhou ?lhe assegurou enquanto ambas caminhavam para a saída.
?É outra de suas visões? ?Josh estalou estreitando os olhos.
?Não. Desta vez é apenas um palpite... ?ela alegou misteriosamente enquanto a pegava pelo braço e a levava para fora.
Mas antes das duas saírem, Madeleine virou seu rosto para Mary. Quando ambas se encontraram com o olhar, a jovem separou os lábios para lhe lançar uma mensagem que só ela pôde captar: «Começa sua mudança». Essas três palavras lhe causaram um calafrio tão mortal que tentou apaziguá-lo, concentrando-se na irmã ausente.
?A propósito, onde está Elizabeth??Perguntou virando-se para Anne.
?Sofre uma tremenda dor de cabeça ?respondeu enquanto se sentava. ?Sofre desde sábado à noite. Embora me ofereci para aliviar sua dor, não quis aceitar qualquer ajuda da minha parte. Sinceramente, não é a mesma desde aquele dia ?comentou reflexiva. ?Durante a primeira viagem a Londres, decidiu viajar na segunda carruagem, acompanhada por Howlett, valete de Logan. Pensei que a dor desapareceria, porque o jovem me disse que tinha a solução para isso, mas não foi assim. Na última pousada que paramos para descansar, ficou todo o tempo dentro do veículo e não saiu dali até que teve que entrar no que viemos. Insisti em oferecer-lhe um analgésico, mas não aceitou. Se inclinou na direção da janela, fechou os olhos e não os abriu até que lhe anunciei que havíamos chegado ?explicou Anne com tristeza. Nutria a esperança de que Elizabeth não agisse dessa forma depois da notícia de seu compromisso com Logan. No entanto, nada podia ser dado como certo com ela.
?A viagem lhe provocou isso... ?concordou Sophia após assumir que, pela primeira vez, a inveja podia estar causando a Elizabeth um terrível desapego familiar.
?Se quiser, posso aparecer no seu quarto e descobrir ?declarou Mary colocando-se na frente delas.
?Temo que essa dor não desapareça com nenhum remédio seu ?Anne respondeu enquanto enroscava os dedos na saia do vestido.
?Por que diz isso??A mãe retrucou inquieta.
?Porque acho que não lhe agradou a notícia do meu compromisso. Você sabe que, desde o que aconteceu com Archie, ela insiste em se casar com um aristocrata e talvez o fato de eu ter conseguido sem pretender e sem sonhar...
?Bobagens! ?Mary a interrompeu. ?Elizabeth é uma presunçosa, uma petulante e um pouco estúpida, como os dessa bendita classe social, mas por suas veias e as nossas corre o mesmo sangue. Estou certa de que a dor de cabeça tem uma causa lógica. Não tenho a menor dúvida de que agirá como sempre uma vez que desapareça ?alegou como se fosse uma advogada defendendo seu cliente.
?Mas se você sair agora, não ouvirá o que aconteceu comigo durante esses dias. Não quer saber como Logan me pediu em casamento? ?Anne estalou estreitando os olhos.
?Certamente posso adivinhar a história sem precisar da ajuda de Madeleine... ?Mary disse colocando um dedo no queixo, enquanto batia no chão com a ponta de seu pé direito e fixava os olhos no teto. ?Como não teve que cuidar de sua virtude, porque Dick lhe tirou isso, o seduziu até que caísse aos seus pés. Após vários encontros clandestinos, decidiu que, devido à sua constituição e força, não encontraria outro homem que a satisfizesse na cama tanto quanto ele. Então você usou sua origem cigana para lançar um feitiço. Este agiu imediatamente, fazendo com que o pobre visconde se apaixonasse por você e te pedisse casamento, estou certa? ?Explicou mordaz.
?Mary Moore Arany!?Clamou sua mãe se levantando de um salto. ?Como se atreve a falar com sua irmã de maneira tão descarada e inapropriada? Por que não seleciona tudo o que aparece em sua mente e escolhe a coisa certa a cada momento?
?Vai me castigar? ?Teimou fingindo medo. ?Tenho certeza que mereço por cometer tanta insolência ?insistiu.
?Foi isso mesmo que aconteceu ?Anne interrompeu a conversa entre sua mãe zangada e Mary, esboçando um grande sorriso. Se os anos de experiência com ela não a enganavam, ela tentou executar um plano que implicava a palavra castigo. O que havia acontecido durante sua ausência? Por que agia dessa forma tão pouco racional? O melhor era descobrir antes que Logan aparecesse para pedir formalmente sua mão e se encontrasse no meio de uma grave disputa familiar. ?Embora você esteja errada sobre uma coisa, eu não o seduzi, ele foi quem me cativou e ambos chegamos à conclusão que, devido à nossa afinidade sexual, era conveniente compartilhar o resto de nossas vidas sob o mesmo quarto antes de manter encontros secretos e esporádicos.
Essa resposta deixou Sophia sem palavras, mas elas causaram mais estranheza em Mary. Como poderia falar assim na frente de sua mãe? Sua irmã havia perdido o pouco juízo que tinha? Se, como Madeleine disse, a maldição desapareceu, arrastou a baixa moralidade e bom senso de Anne com ela. Jovenka não teve mais de cem amantes? Bem, depois de ouvi-la, não lhe cabia a menor dúvida que, se o visconde corria a mesma sorte que os dois anteriores pretendentes, Anne superaria a velha cigana.
?Visite Elizabeth e descubra o que acontece com ela ?comentou Sophia uma vez que acalmou o imenso sufoco. ?Em seguida, tranque-se no seu quarto até eu chamá-la para jantar. Preciso conversar com seu pai sobre a atitude que você está adotando desde que operou lorde Giesler. Creio que...
?Operar? ?Anne disse surpresa. ?Lorde Giesler? E continua vivo?
?Sim ?Mary afirmou com orgulho. ?Lorde Giesler está são e salvo graças a minha sábia decisão e talento ?continuou com soberba.
?Tem que me contar tudo! ?Perguntou Anne se levantando da poltrona.
?Fará, mas quando terminar de me contar o que aconteceu durante sua ausência ?Sophia respondeu com autoridade.
?Então, se me desculparem, seria conveniente que visite Elizabeth ?disse Mary dando grandes passos para a porta antes que Anne interviesse de novo e sua mãe mudasse de opinião.
?Não vá muito longe ?Anne avisou quando sua irmã se aproximou da porta. ?Temos uma conversa pendente.
?Certamente não será tão divertida como a tua... ?apontou antes de sair e fechar.
Capítulo XIV
Depois que ouviu Anne começar sua história, ela encostou as costas na porta e suspirou profundamente. Nada, que sua primeira tentativa para que a castigassem saiu como esperava. Como conseguiu isso? Se tivesse falado com Anne dessa maneira descarada, antes que todas pensassem que a bendita maldição terminou, teria tido tal retaliação que nada nem ninguém a teria consolado em anos. No entanto, lá estava ela, ilesa, apesar do seu esforço para se magoar. Olhou para o andar de cima e franziu a testa ao lembrar que Elizabeth não se apresentou na biblioteca para cumprimentá-la. Ainda estava se comportando de maneira estranha. Até o momento, a irmã arrogante sempre agia como uma verdadeira aristocrata, incluindo, aquele comportamento arrogante, a hipocrisia que a classe social mostrava ao cumprimentar mesmo quando não queriam. Mas, por algum motivo, não reagiu como de costume. Não importava se sua cabeça doía, que estava enjoada ou que tinha quebrado um ombro, Elizabeth nunca evitava um encontro em família e menos depois de uma viagem como a que ela acabou de fazer. Quantas vezes saiu para fazer compras e, depois de voltar, aparecia diante dela para lhe contar tudo o que fez sem esquecer um mísero detalhe? Tantas que não se lembrava. No entanto, parecia que a viagem a transformou até o ponto de esquecer um princípio tão básico como era a cordialidade. De repente, a resposta que estava procurando para obter o castigo desejado apareceu. Talvez, se ela a censurasse por esse comportamento inadequado, sua mãe abandonaria a atitude passiva que adotava e retornaria a mulher que, com apenas um olhar, fazia suas filhas tremerem. Só esperava que Eli não agisse com a mesma benevolência que Anne. Realmente não precisava da compaixão de nenhuma de suas irmãs dessa vez.
Sem poder apagar o sorriso que sua boca desenhou ao ter outra alternativa entre as mãos, subiu as escadas de dois em dois. Mal respirou quando correu pelo corredor, nem quando se colocou na frente da porta. Tinha um novo objetivo e devia realizá-lo o quanto antes. Desesperada, agarrou a maçaneta, virou e entrou sem pedir permissão. Mas toda a emoção e felicidade que viveu durante a corrida, desapareceu de repente ao ver que Elizabeth não se encontrava onde ela esperava. O edredom permanecia encolhido aos pés da cama, o lençol jogado para o lado direito e o vestido que sua irmã usava quando chegou, estava no chão, jogado descuidadamente. Esse detalhe deixou Mary bastante confusa. Nunca, desde que se lembrava, Elizabeth havia tratado um vestido assim. Cuidava deles e os mimava como se fossem seus filhos. Às vezes, ela até supervisionava Shira quando os passava e engomava. O que teria acontecido com ela para agir dessa maneira? Seu coração começou a bater rapidamente, alertando-a de que a resposta que teria não seria do seu agrado. Tentou afastar aquele palpite, mais típico de Arany do que do sangue Moore, e se concentrou em tudo aquilo que observava. Não se deixaria levar por especulações absurdas, sua experiência no campo da medicina lhe sugeria que devia analisar tudo aquilo que encontrava para chegar a uma conclusão real.
Caminhou lentamente até a almofada, levantou-a e abriu a boca quando viu que a camisola não estava no lugar. Desde quando Elizabeth saía do quarto sem usar um de seus lindos vestidos ou sem arrumar mil vezes o penteado? Mais preocupada se possível, ela se dirigiu para a penteadeira. Sua irmã tinha uma grande variedade de utensílios para usar e embelezar um penteado, além de quatro chapéus de cores diferentes, expostos com muito cuidado no cabideiro que seu pai colocou em cima do espelho e quatro pincéis de diferentes materiais e formas. No entanto, Mary não prestou atenção aos objetos que prolongavam a harmonia da sala, mas ao que estava quebrado: o chapeuzinho que Elizabeth usava quando voltou. Ele se abaixou devagar e o pegou do chão. O que aconteceu? A ideia que Anne comentou ganhou força e intensidade. Apesar de não querer admiti-lo, todas as provas apontavam para essa opção. Irritada, porque não podia tolerar o ciúme tomando conta de Eli e sua terrível resposta emocional arruinando a pacífica vida familiar, ela deixou o chapéu branco na penteadeira e saiu rapidamente do quarto. Agora sua mãe não teria escolha senão castiga-la, porque os gritos de censura que ela daria a terceira das Moore seriam ouvidos até na própria Alemanha.
Pisando o chão como se quisesse quebrá-lo, percorreu o corredor de forma apressada. Levantou a saia do atrevido vestido e desceu as escadas com tal rapidez, que parecia ter brotado asas nos tornozelos. A situação seria resolvida no momento em que a encontrasse, e se tivesse que procurar em todos os cantos de sua casa, ela faria.
Mas não a encontrou... Elizabeth não estava dentro de casa.
Depois de percorrer cada esconderijo, por pouco mais de meia hora, não encontrou sinal da moça. Só havia um lugar para procurá-la: a estufa. Mary passou pela porta da biblioteca e ouviu como Anne continuava contando sua linda história de amor com o visconde, enquanto sua mãe se mantinha em silêncio. Nenhuma das duas suspeitava que a terceira das irmãs houvesse desaparecido. Tinham certeza que estava em seu quarto, descansando e sofrendo uma terrível dor de cabeça. Por alguns segundos, pensou em alertá-las sobre o problema, mas depois descartou essa opção. Se queria ser castigada, teria que reprovar o comportamento infantil da irmã. Depois de bufar, porque não gostava de ocupar o papel de mãe e muito menos quando procurava uma reprimenda, foi até a porta de saída. Uma vez que a abriu, foi incapaz de afastar o olhar da imagem que se produzia do lado de fora.
Madeleine estava no meio do jardim, aplaudindo a atitude de Josh. A gêmea cavalgava ao redor dela, dirigindo o animal com temperança e segurança, como um autêntico soldado. Mantinha as costas retas, enquanto seu corpo subia e descia ao ritmo do trote. Mary fixou os olhos no rosto da jovem e contemplou um orgulho e uma satisfação que invejou por alguns segundos. Então assistiu o movimento compassado de sua trança. O cabelo branco que Josh tanto detestava a fazia tão bonita, que qualquer homem ficaria prostrado a seus pés. Não entendia como ela ainda se chamava a irmã mais feia quando na verdade era uma jovem muito bonita. Por que eram obrigadas a pensar que só alcançariam uma beleza real e feminina se possuíssem os traços que ditavam os cânones sociais? Josh, apesar de sua contínua negação, era preciosa não só por sua diferença física, mas também por seu caráter. E inclusive esse comportamento selvagem que apresentava diariamente engrandecia esse esplendor feminino.
Admiração. Esse sentimento brotou em Mary ao contemplar a majestosa habilidade de Josh que, como acontecia a ela no campo da medicina, era difícil de superar. Não importava que todo mundo alegasse que seu dom era mais próprio de um homem que o de uma mulher, ela o possuía e exibia com muita dignidade. Mary suspirou fundo, refletindo sobre o futuro da jovem. Qual seria o seu destino? Se ela admitisse que a maldição existia, o que ainda não fez, confiaria que encontraria um marido capaz de aceitar seu comportamento estranho, mas ela sabia que isso não seria possível. Nenhum homem, dos que tinha conhecido até o momento, suportaria que sua esposa fosse mais preparada em temas masculinos que ele.
Deu um passo em frente, sem poder desviar o olhar dessa união entre humano e animal. Nunca se referiu a uma atividade tão branda para ela como expectadora, mas foi assim no fim. Majestade, beleza, divindade ou qualquer palavra que procurasse para defini-la não alcançaria a realidade. Josephine era, sem dúvida, uma amazona, uma guerreira, uma deusa a cavalo e onde ambos expressavam, num ato tão simples quanto correr, uma cumplicidade tão extraordinária que qualquer cavaleiro enlouqueceria para alcançar. No entanto, a magia da situação celestial desapareceu quando Mary percebeu como os quatro cascos do animal se cravavam repetidamente na grama, aquela que seus pais tão bem cuidavam.
?Mas como te ocorreu cavalgar por nosso jardim! ?Gritou para Josephine caminhando em sua direção. ?Não se lembra do esforço que nossos pais fizeram para mantê-lo desta forma? Demoraram anos para mantê-lo assim!
Josh, ao ouvi-la, moveu as rédeas de Galeão para que este se dirigisse para a irmã berrante. Uma vez que se colocou diante dela, e a observou tão pequenina e assustada, um sorriso maléfico se desenhou em seu rosto.
?Afasta agora mesmo esse perisodáctilo do meu lado! ?Lhe pediu enquanto andava para trás. Só parou quando suas costas tocaram o grosso muro de pedra que dividia o jardim da casa.
?Peri... o quê? ?Josh perguntou, descansando os antebraços na crina do cavalo. ?Se chama Galeón.
?Perisodáctilo ?Mary repetiu sem diminuir a raiva ou o medo que sentia na presença do grande animal, que a olhava com seus enormes olhos castanhos. ?Assim se denomina os mamíferos placentários. Aqueles que possuem em suas extremidades um número ímpar de dedos. Como pode ver, seu novo amigo tem um em cada perna e este se denomina casco.
?Gosta de ser chamado desse modo estranho, Galeón? ?Josh lhe perguntou, inclinando-se para a orelha esquerda do animal. Este, como resposta, relinchou e moveu a cabeça. Atitude que deixou Mary mais surpresa se isso fosse possível. ?Não volte a chamá-lo por esse nome porque não gosta.
?Pois não me importa se gosta ou não! ?Respondeu, movendo-se muito lentamente para a esquerda para sair daquela encruzilhada mortal.
?Para onde vai? ?Josh retrucou, depois de açoitar Galleon para andar atrás de sua irmã.
?Não me siga! Por acaso não sabe que esse quadrúpede pode me matar? ?Esbravejou sem olhar para ela e sem parar de andar.
?Galeón é inofensivo...
?Sim, é claro, como as benditas armas que você dorme até levantar ?respondeu se virando para as duas em um ato de coragem. ?Devo deduzir que esqueceu seu velho hábito de jogar com espadas, adagas ou pistolas para substituí-lo por... isso? ?Argumentou, apontando para o animal com um dedo.
?Você realmente acha que eu esqueci delas? ?Respondeu antes de soltar uma risada leve e levantar a perna da calça para mostrar a faca que estava escondendo na bota. ?Sempre estarão comigo, Mary. São e serão meus únicos aliados na luta contra um mundo injusto ?declarou firmemente.
?Quer lutar contra as injustiças? ?Repreendeu. -?Bem, precisará de um bom arsenal, Josh, porque posso garantir que encontrará, ao longo de sua vida, mais de um milhão.
?Vou comprá-los assim que... ?tentou responder, mas ficou em silêncio quando observou a presença de Madeleine que, como era habitual nela, apareceu sem fazer nenhum ruído.
?Aonde você vai Mary? ?A menina perguntou depois de acariciar o pescoço de Galeón. ?Está procurando sua mudança? ?Acrescentou sarcástica.
?Não ?negou veementemente. ?Estou procurando Elizabeth, e sobre minha mudança, posso garantir que sei como detê-la ?murmurou altiva.
?Se você diz... ?Madeleine respondeu exibindo um grande sorriso.
?Se retirou para seu quarto ?Josh interveio enquanto descia do cavalo. ?Sofre de uma terrível dor de cabeça desde...
?Sábado. Sim, eu sei ?Mary a cortou. ?Por esse motivo, minha mãe ordenou que eu a visitasse. Quer que eu a ajude a acalmar sua dor. No entanto, quando apareci no seu quarto, não a encontrei ?continuou.
?Estará na estufa ?Josh disse sem mostrar nenhum sinal de preocupação. ?Sabe que as ervas que cultiva são muito importantes para ela. Durante esses dias, se perguntou se Madeleine seria capaz de cuidar delas, como indicou. Talvez, apesar da dor de cabeça, quis confirmar que não quebrou um caule ou caiu uma folha ?acrescentou sorrindo enquanto pegava as rédeas e as enrolava entre os dedos.
?Quer que te acompanhe? ?Madeleine se ofereceu. ?Me fará bem falar com ela. Não quero que se zangue por algo que puder fazer.
?Não. Me interessa mais que passe seu tempo vigiando ao Josh e a esse bicho. Não sei onde pretende colocá-lo, mas não creio que a escolha que tenha tomado seja adequada...
?Pedirei ao pai para construirmos um estábulo ?assinalou a referida, virando Galeón em direção ao portão externo do jardim. ?Há espaço suficiente para...
Mary parou de ouvir a ideia futurista de Josh quando Madeleine a agarrou pelo braço e a puxou.
?Não esqueça o que eu te disse. Aceite de uma vez por todas o seu destino.
?Não, se puder evitar ?resmungou antes de se soltar daquele aperto e caminhar em direção à estufa enquanto ouvia a criança dar uma grande risada novamente.
***
Se pensou, por um momento, que o seu mau humor desapareceria durante o caminho para a estufa, se equivocou. Após a perseverança de Madeleine, sua raiva atingiu um nível insuperável. Ela estava com tanta raiva que podia aparecer diante de Elizabeth e, sem dizer uma única palavra, pegá-la pelos cabelos para arrastá-la para dentro de casa, como se fosse uma mulher da Pré-História. Pretendia esmagá-la? Bem, não o fez! Tudo o que conseguiu foi atormentá-la para alcançar a maneira de destruir o suposto futuro.
Com as bochechas tão vermelhas quanto as pétalas de uma Gerbera, ela apareceu na frente da porta da estufa e a abriu com tanta brusquidão que as paredes de vidro tremeram e a saia do vestido foi puxada para trás. Sem fechar, deu dois passos à frente e olhou em volta, procurando a familiar silhueta feminina. Mas não a encontrou com tanta facilidade.
Depois de fechar, começou a murmurar mais de uma dezena de impróprios inadequados para uma mulher. Logo caminhou decidida pelo estreito corredor que levava ao lago que seu pai encomendou a construção. A cada passo, seu nariz capturava um cheiro diferente, tornando-a incapaz de descobrir qual flor emitia uma fragrância específica. Parou no meio do caminho e observou tanto o que encontrou a sua direita como a sua esquerda. Um éden. Elizabeth construíra, sob aquelas paredes envidraçadas, um belo lugar cheio de cores e perfumes. Se concentrou em seu alvo e avançou lentamente, sem desviar o olhar do arco-íris floral dos dois lados. Antes de chegar à pequena cisterna, teve que desviar dos grandes galhos da única árvore que sua irmã plantou. Sorriu ao se lembrar do dia em que ela apareceu com aquela mudinha de laranjeira. Não tinha mais de seis anos e mostrava tal entusiasmo que seus olhos brilhavam como duas estrelas. Depois que explicou aos pais o que pretendia fazer com o pequeno talo, Elizabeth saiu para o jardim, olhou para o céu e seguiu para o lado esquerdo da casa. Depois cavou um buraco com suas próprias mãos para plantá-lo enquanto seus pais a observavam em silêncio. Dois meses depois, começaram a construir a estufa e, quando terminaram, Elizabeth se tornou a fada das plantas. Não podia calcular quantas classes possuía nem o que podia fazer com elas, mas sim admitia que seu dom havia se desenvolvido com grande mestria.
Com a imagem do maravilhoso rosto infantil coberto de terra, era estranho o dia em que não chegava manchado em sua casa, e pensando sobre a mudança que sofreu após a traição de Archie, avançou. Então, enquanto o som da roda que movia a água da lagoa alcançava seus ouvidos, encontrou a silhueta que procurava.
As frases que escolheu para reprovar seu comportamento inapropriado, desapareceram de imediato ao contemplá-la daquela maneira. Sua suposição foi confirmada e, em vez de se sentir feliz, conjecturando outra teoria correta, entristeceu. Como deduziu, Eli tinha saído de camisola. Mas não pensou que a encontraria com um aspecto tão desleixado. O seu cabelo, habitualmente recolhido com cuidado, estava solto e frisado, como se não o tivesse escovado em dias. Depois observou a planta dos pés e franziu a testa ao vê-las tão sujas e com manchas de sangue. A mão esquerda de Elizabeth estendia-se frouxa, sem forças, sobre essa parte de seu corpo, enquanto a outra se movia em círculos sobre a água do diminuto lago.
Por um segundo, duvidou se deveria insistir no motivo de sua presença ou deixá-la sozinha com seus pensamentos. Não teve que pensar muito a resposta, pois esta apareceu no momento que a ouviu soluçar.
?Eli? ?Perguntou reduzindo a distância entre elas. ?Está tudo bem? ?Esperou que lhe respondesse, ao não fazê-lo, prosseguiu: ?Anne me disse que sofre uma terrível dor de cabeça e vim para acalmar essa dor.
?Pode ir, Mary. Minha dor não desaparecerá com nada... ?disse depois de alguns segundos angustiantes.
?Duvido ?afirmou colocando a mão direita no ombro esquerdo de Elizabeth. ?Sabe que, quando me empenho, nenhuma dor ou doença suportará mi...
Mary ficou em silêncio enquanto olhava o rosto da irmã. Onde estava a moça bonita? Não havia um pequeno traço dessa beleza com a qual nasceu. Seus olhos azuis não tinham luz, talvez porque as olheiras ao redor eliminaram todo o brilho. Suas bochechas, descritas por ela mesma como perfeitas, agora não passavam de pele sobre ossos, e seus lábios não tinham a cor vermelha intensa que ela tanto admirava porque haviam perdido a tonalidade ao ponto da palidez. Sem pensar duas vezes, afastou a mão do ombro e a colocou na testa, para verificar se estava com febre. Mas Elizabeth não estava quente, muito pelo contrário. Estava tão fria quanto uma estátua de mármore.
?O que diabos aconteceu com você? ?Esbravejou com uma mistura de horror e angustia. ?Por que está assim? ?Antes que Elizabeth pudesse responder, Mary fixou os olhos na mão que ela mantinha submersa na água e instintivamente colocou as suas no peito. ?O que está fazendo com isso? Em que está pensando?
?Pelo que entendi, nossos pais nos dão a vida, mas o destino é quem dita quando deve terminar ?expôs voltando o olhar para a água. ?Talvez a minha deva terminar antes de...
?Não diga bobagens! ?Clamou antes de se inclinar para a adaga e puxá-la dos dedos. ?Este não é o fim, Elizabeth Moore Arany! É o começo de tudo! Como pode pensar em algo tão horrível! Você enlouqueceu? ?E jogou a arma na porta com tanta força que a lâmina de metal se rompeu ao impactar no chão. ?O que aconteceu? ?Insistiu sacudindo-a. ?O que essa cabeça maldita pensa?
E Elizabeth começou a chorar. Escondeu o rosto abatido com as mãos e não conseguiu se consolar até que Mary se sentou ao lado dela e a abraçou com força.
?Anne pensa que está assim porque se comprometeu com o visconde ?explicou enquanto lhe acariciava a mata de cabelo loiro emaranhado. ?Mas eu sei que não é verdade. Apesar desse comportamento repugnante que mostra, no fundo a pequena Elizabeth ainda vive em você. Aquele que corria para cá para descobrir se a nova semente havia germinado ou se as pétalas de uma flor se abriram antes da chegada do amanhecer.
?Eu sou horrível, Mary! ?Soluçou em seu peito. ?Sou a mulher mais horrível que já existiu no mundo!
?Não, querida. Você não é horrível. As circunstâncias fizeram você assim. Você nasceu bonita, como seu físico. O que acontece é...
?Mary... ?sussurrou levantando o rosto para ela. ?Sou horrível, juro pelo sangue que corre em nossas veias. Eu fiz... aconteceu... ?Mas não teve forças para falar, apoiou de novo a testa sobre o peito de sua irmã e continuou chorando sem consolo.
Como superaria isso? Como poderia contar para Mary o que havia acontecido? Não, não conseguia. Tinha que manter isso em segredo. Não só por seu bem, mas também pelo da família.
?Sabe? ?Mary começou a dizer enquanto a segurava com força. ?A vida é cruel para todo mundo. Por mais que tentemos lutar para nos libertar do que nos mantém presos, não obtemos sucesso. A felicidade, essa que muitas pessoas se orgulham de possuir, é uma mentira, uma ilusão fictícia. Ninguém consegue algo tão idílico.
?Então... pelo que vivemos, Mary? Por que ainda estamos neste mundo cruel? ?Perguntou sem levantar o rosto.
?Olhe para mim, Eli! ?Lhe pediu depois de colocar as mãos sobre seus ombros. ?Conte-me o que aconteceu com você, para que não tenha diante de mim a irmã que sempre quis chutar a bunda por ser presunçosa. Onde está a força que expressava? E esse caráter repulsivamente aristocrático.
?Desapareceu... ?murmurou abaixando a cabeça.
?Quem fez isso com você? ?Perseverou, erguendo o rosto com as duas mãos.
?Como o...? ?estalou perplexa.
?Você viu? O destino o colocou de volta em seu caminho? ?Insistiu. ?Porque se assim for, juro que desta vez o matarei com minhas próprias mãos!
?Não! ?Elizabeth respondeu, se levantando da borda empedrada que rodeava o lago. Sem olhar para Mary, esfregou as mãos, olhou para o chão e suspirou. ?Não sei nada de Archie desde que recebi aquela carta.
?Bom. Fico feliz em saber que o pai não terá que me visitar na prisão... por enquanto ?respondeu Mary levantando-se também. Pegou-a por trás e a abraçou com força. ?Se esse filho da puta não é o motivo da sua depressão, o que é?
?Não acredito que possa me amar se te contar ?lhe disse inclinando os ombros para frente.
?Você me ama? ?Lhe perguntou fazendo-a virar para ela. ?Me ama apesar de tudo o que digo ou faço?
?Claro! Você é minha irmã e sabe que te adoro, apesar de todas as coisas estranhas que faz ou diz.
?Exato! ?cortou-a. ?Sempre, apesar de todas as discussões que tivemos, nos amamos. Nisso consiste a família, Eli. E nada, nem ninguém pode eliminar esse vínculo existente entre nós. Podemos ser muito diferentes, felizmente para todas, mas essa desigualdade fez com que nos respeitemos e nos compreendamos. ?Respirou fundo e olhou-a com ternura. ?Por causa dessa compreensão de que falo, sei que sua dor de cabeça é falsa e que as especulações de Anne também são. Sua alma está quebrada. Algo horrível aconteceu com você nessa viagem e te machucou tanto que não será capaz de superá-lo sem ajuda. Só me resta dizer que estou aqui, contigo, e que juntas superaremos tudo.
?Tem sido... horrível ?expressou antes que as lágrimas aparecessem de novo.
?Minha intuição diz como se sente. Mas preciso que me conte tudo, só assim poderemos encontrar a melhor solução ?garantiu com firmeza.
?E se não pode me ajudar? E se for algo tão assustador que só possa ser resolvido com a minha morte ou voltando no tempo?
?Responda-me apenas uma coisa, Elizabeth ?comentou olhando-a nos olhos e tomando-a com ternura dos ombros. ?Essa coisa horrível nos fará procurar e tirar do galpão o berço onde nossos pais nos colocaram no nascimento?
?Não! ?Elizabeth gritou horrorizada.
?Então, querida irmã, todo o resto tem uma solução ?disse antes de abraçá-la e ouvir como Eli suspirava em seus braços.
Capítulo XV
Nos dez dias seguintes, não teve uma mera hora livre para estudar os ensaios que a Sra. Reform lhe deu. Sua mãe tornou-se tirana e continuou ordenando mil tarefas que ela tinha que terminar antes do anoitecer. Para assombro do resto da família, realizou todas, pois nenhuma implicava se afastar de sua casa. Enquanto pudesse estar ao cuidado de Elizabeth e se manter afastada de lorde Giesler, cumpriria sem questionar. Pelo contrário, Anne saía e entrava continuamente de casa. Às vezes, visitava os parentes de seu noivo e outras vezes, chamava urgentemente a costureira que, em sua opinião, não deveria ter muita experiência, pois a fazia experimentar o vestido várias vezes ao dia. Josh e Madeleine, com a desculpa de serem as menores, mal tinham responsabilidades. A única coisa que lhes foi confiada era controlar o novo membro da família. Ainda não dava crédito aos mimos e cuidados que o animal recebia. Acolheram-no com tanto amor, que nem sequer reparavam no fedorento cheiro que invadia o jardim depois de este defecar onde lhe apetecesse. Até seu pai se uniu à louca felicidade! Desde que o visconde colocou o anel em um dos dedos de sua primogênita, vestia-se com elegância e repassava o nó da gravata mil vezes, antes de transitar pelas ruas de Londres no interior da carruagem que seu futuro genro lhe deu. Todos viviam num eterno caos, num infinito disparate. No entanto, admitia que esse estado de desorientação e confusão familiar foi proveitoso para Elizabeth. Apenas reparavam em suas contínuas ausências ou que, cada vez que se reunia com eles, não via um de seus descarados vestidos, mas aqueles que Mary guardava no armário. Talvez evitassem falar do assunto ao dar por confiável a hipótese de Anne e Josh. Aquela em que Elizabeth chorava de ciúmes ao não ser ela quem casava com um aristocrata. Mas ela conhecia a verdade e sofria a agonia de sua irmã em suas próprias entranhas. Desde a tarde que passaram juntas na estufa, não pôde dormir nem uma só noite. Passava horas pensando no medo que Eli suportou e na solidão que se encontrou até aparecer o valete do visconde. Não se importava se ela se culpava por ter encorajado o miserável. A única coisa em que pensou foi que, se era verdade que Morgana cuidava dos de seu sangue, devia matar o gajo justo quando uma de suas mãos desagradáveis a tocou pela primeira vez.
Mary olhou de novo a cortina marrom, que a dona do comércio utilizava para separar a loja da oficina, e respirou com aborrecimento. Se aquela risonha vendedora não a atendesse em breve, sofreria uma apoplexia. Ela não deveria estar lá. Seu tempo era muito valioso para perder sentada em uma cadeira desconfortável e, como seguissem ignorando-a, o escândalo que lhe anunciou a sua mãe, se cumpriria em breve.
?Coloque um casaco e pegue o pedido ?Sophia ordenou depois de encontrá-la escondida no armário. ?A costureira está esperando por você.
?Anne não pode cuidar dessa tarefa? Hoje certamente terá que experimentar o vestido novamente e não será necessário nenhum esforço para suportar o peso de quatro bolsas ?propôs enquanto saía das sombras que lhe proporcionou o inútil esconderijo.
?Hoje não a visitará ?respondeu andando atrás de sua filha. ?Deve comparecer ao almoço oferecido pela Marquesa de Riderland em sua homenagem.
?E as gêmeas? ?Sugeriu se virando para sua mãe.
?Ainda são muito pequenas para passear sozinhas pelas ruas ?Sophia respondeu levantando o tom da voz e erguendo a sobrancelha direita.
?E eu sim posso fazê-lo? ?Disse com falso espanto. ?Não lhe preocupa a opinião que terão as pessoas de mim quando me virem caminhando sem proteção por Cover Garden?
?Desde quando se importa com que dirão, Mary? ?Espetou sua mãe cruzando os braços na frente do peito.
?Desde que minha honorável e maravilhosa irmã mais velha se comprometeu com um visconde ?expôs como se a resposta tivesse sido estudada mil vezes.
?Então... você faz isso por sua irmã? ?Sophia perguntou olhando para ela sem piscar.
?Claro! Você realmente pensou que eu faço isso para meu próprio benefício? ?Respondeu, fingindo estar ofendida. ?Temos que agir corretamente, pelo bem de Anne. Já sabe como a aristocracia gosta dos mexericos e fofocas; pensa que não fofocarão sobre a desproteção de uma das irmãs da futura Viscondessa de Devon? Será um verdadeiro escândalo! ?Acrescentou com aparente angústia.
Mary estava prestes a pular de alegria ao observar sua mãe refletir sobre o assunto. Tinha encontrado o ponto fraco: as fofocas. Até agora, Sophia só estava interessada em cuidar da reputação do marido, no entanto, desde o noivado, tudo mudou.
?Por um momento, apenas por um momento, pensei que era sincera, Mary Moore Arany. Mas, felizmente para mim, o sangue que nos une me adverte que sua intenção é diferente da que você diz. Limpe a farinha da saia, arrume o cabelo e vista o casaco. Quero os vestidos em nossa casa antes que Eugine termine de cozinhar as perdizes, entendido? ?Disse com raiva. Virou as costas e caminhou em direção à lareira.
?E se alguém quiser me machucar? ?Mary perseverou.
?Depois do que fez ao jovem Wang, acredito que ninguém tenha coragem suficiente para falar ou cumprimentar você ?disse Sophia atiçando o fogo.
Que o inferno congelasse! Mas, por que não o havia esquecido? Quanto tempo tinha passado, três, quatro anos? Era certo que a síncope que sofreu, quando abriu a porta e a encontrou escoltada por dois agentes, foi tão grande que seu pai teve que lhe administrar uma pequena dose de clorofórmio. Certamente, ela ficou de castigo em seu quarto por três dias, os mesmos que ela passou lendo e desfrutando de uma bela solidão. Quando ela pôde explicar o que aconteceu, seu pai caiu na gargalhada. Talvez porque ele foi o único que entendeu sua posição sobre doenças causadas por distúrbios celulares. Em vez disso, sua mãe só pediu a Morgana que a sociedade londrina ficasse surda e cega por duas semanas. Ela estava muito preocupada com a repercussão que seu marido sofreria quando as pessoas soubessem que a segunda de suas filhas havia golpeado, até quebrar o guarda-chuva, a carruagem do jovem Wang, que de dentro, pedia socorro. Logicamente, não podia culpá-la por desconhecer a importância que tinha a teoria da Patologia Celular em medicina, mas aquele petulante sim e por esse motivo, ao ouvi-lo dizer que se tratava de uma conjectura sem sentido para explicar as doenças dos organismos, perdeu o controle. Como podia falar dessa forma o filho de um médico que foi à universidade com Rudolf Virchow? Só um tolo, como Wang, podia soltar por sua boca semelhantes tolices. Obviamente, o temor de sua mãe apareceu antes do imaginado. As pessoas falaram sobre a agressão da filha perturbada do doutor Moore ao encantador Wang. Desde aquele dia, não importava se andava sozinha ou de noite, ninguém se aproximava e atravessavam a rua, quando levava um guarda-chuva na mão.
?Senhorita Moore?
A pergunta que a vendedora lançou ao ar, depois de sair pela décima quinta vez da sala dos fundos, tirou Mary de seus pensamentos. Ela se levantou da cadeira, onde estivera mais de uma hora, e se aproximou do balcão.
?Finalmente descobriram que estou aqui! ?Disse sarcasticamente. ?Pensei que me confundi de estabelecimento porque, apesar de ser a primeira, atenderam outras clientes antes de mim.
?Para fazer um excelente trabalho, é preciso ter paciência e tempo ?a funcionária manifestou, colocando sobre a bancada envernizada as bolsas que levava nas mãos.
?Não discuto isso. Mas garanto-lhe que tiveram tempo suficiente para confeccionar dois vestidos e emplumar quatro chapéus ?Mary insistiu, enquanto confirmava que as roupas que lhe oferecia eram as mesmas que fora buscar. Nas bolsas estava o vestido rosa pálido de Madeleine, o malva claro de Josephine, o marrom de sua mãe e quando observou o seu, franziu a testa e olhou à empregada como se buscasse a forma mais rápida de lhe quebrar o pescoço. Depois pegou com dois dedos o tecido daquela roupa verde, colocou-a frente ao nariz da trabalhadora e perguntou-lhe com raiva: ?Não lhe indicaram que este vestido devia ser azul marinho? Por que, não é? Acaso a costureira sofre de discromatopsia?[8]
?Expliquei a sua mãe que não era uma cor apropriada para um casamento tão importante e que todos os convidados à cerimônia pensariam que a jovem em questão se encontraria em período de luto ?explicou com orgulho enquanto a olhava de baixo a cima. ?Foi por isso que lhe pedi que reconsiderasse e, para satisfação pessoal, fez o mesmo. A senhora Moore é uma mulher muito inteligente e selecionou uma tonalidade bastante atual e...
?Estúpida? ?Mary a interrompeu. ?Porque não há outra maneira de descrevê-la. Agora, em vez de mostrar a imagem de uma jovem séria, correta e virtuosa, parecerei a garrafa que algum bucaneiro bêbado de Whitechapel leva em uma mão.
?Como ousa falar desse modo? ?Perguntou chocada. ?Nenhuma de nossas clientes se comparou com semelhante barbaridade! Todas estão encantadas com nosso trabalho! Minha oficina é única na cidade!
?Única? Certamente minha governanta conserta remendos menos emaranhadas do que estes ?comentou mal-humorada enquanto empilhava as bolsas com as duas mãos. ?E não se mostre tão ofuscada por uma crítica construtiva. Deve saber que será muito rentável para o seu negócio ouvir as opiniões dos clientes. Só assim obterão a perfeição da qual se vangloriam. Espero que a próxima vez que lhe encomendem uma peça de roupa de uma cor determinada, você morda a língua e não opine.
?Santo Deus! ?Exclamou horrorizada levando as mãos ao peito. ?Não a compararão com uma garrafa, mas com a filha do próprio diabo! Agora entendo por que desejava uma cor tão escura, combinaria com sua alma.
?Tenha cuidado com o que pensa... ?Mary lhe disse uma vez que abriu a porta. ?Pode ser que esta filha do diabo invoque a umas quantas almas errantes para que incomodem seus dóceis clientes.
Antes de fechar a porta, observou divertida como a vendedora não deixava de se benzer, ato ao qual estava bastante acostumada. As pessoas costumavam fazer isso depois de ouvi-la falar. Uma vez que saiu da loja, ela soltou uma grande risada e seguiu para a carruagem. Ela teria que usar um vestido horrível, mas a funcionária viveria assustada por um longo tempo. Satisfeita e orgulhosa de ser uma mulher tão sincera, ela avançou até que o cocheiro a viu chegar e saiu do veículo. Ele abriu a porta, desceu as escadas, esperando que ela subisse, mas não o fez.
Mary ficou de pé junto à carruagem, segurando as bolsas. Seus olhos, embora estivessem se movendo em direção ao interior da carruagem, não observaram nada em particular. Estava ausente, pensando silenciosamente sobre a ideia que acabava de aparecer em sua cabeça. Levantou o queixo e sentiu em seu rosto as carícias do leve vento que previa uma rápida chuva. Era o momento ideal. Se não, quando teria outra chance? Ela ficou trancada por um longo tempo, aceitando sem objeção tudo o que sua mãe ordenava, pois nada, exceto o que ela pediu horas antes, a afastava de seu propósito. Mas estava fora, sob um céu tão cinza como o mercúrio de um termômetro. De repente, pensou em seu pai e nas conversas que manteve com sua mãe sobre o incansável trabalho do mordomo de lorde Giesler. Segundo entendia, este realizava tudo o que lhe foi dito para que a recuperação de seu senhor fosse rápida e adequada. Claro, isso implicava também protegê-lo de uma possível chuva...
Ao deduzir que seu maior problema não ocorreria, jogou as bolsas dentro da carruagem, abotoou o casaco e disse ao empregado sem olhá-lo:
?Voltarei andando.
?Andando? ?Ele respondeu bastante surpreso.
?Sim, andando. É uma das habilidades físicas que caracterizam o ser humano. Por que acredita que nascemos com duas pernas? ?Garantiu sagaz.
?Não digo por isso, Srta. Moore. Permita-me informá-la que não seria certo deixá-la sozinha com esse tempo ?disse o amável trabalhador depois de fechar a porta. ?Se observar as nuvens, descobrirá que não tardará em chover e a senhora não gostará que uma de suas filhas adoeça dois dias antes da cerimônia.
?Não se preocupe com minha saúde, Owen. Asseguro-lhe que se aparecer essa chuva alugarei uma carruagem ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Deseja, pelo menos, que lhe ofereça um guarda-chuva? Sua mãe não lhe repreenderá se lhe explicar que se resguardou...
?Não! Sem guarda-chuva! ?Respondeu como se tivesse sido picada na bunda com um alfinete. ?Prometo que ela ficará mais zangada se eu o tiver.
?Como desejar ?terminou de lhe dizer antes de subir e açoitar o cavalo.
Mary se virou para sua esquerda e, enquanto escutava como se afastava a carruagem, observou com entusiasmo tudo o que tinha diante de seus olhos. Felizmente para ela, a rua estava muito calma. Talvez porque, como disse o empregado, a ameaça de chuva assustou muitos londrinos. No entanto, os poucos atrevidos que encontrou passavam ao seu lado sem reparar nela. Ato que agradeceu porque não queria observar rostos de espanto, assombro ou estranheza. Precisava, depois de tantos dias enclausurada em sua casa, sentir um pouco de liberdade e tranquilidade.
Com a mão direita ligeiramente levantada, pois a alça de sua retícula se encaixara na dobra de seu cotovelo, se dirigiu em primeiro lugar para a enorme fachada do Teatro Real de Drury Lane. Uma vez que se colocou em frente à porta, levantou o rosto para admirá-lo. Indubitavelmente, era um edifício grandioso. Segundo tinha lido, podia abrigar três mil e seiscentos espectadores e depois do último incêndio, ocorrido em 1809, os arquitetos encarregados da reconstrução usaram colunas de ferro para substituir aquelas de madeira que sustentam os cinco níveis das galerias. Mas se esses dados lhe pareceram extraordinários, o fato de saber que ali se celebravam, desde dois anos atrás, os melhores espetáculos e melodramas, a deixou sem palavras. Olhou intrigada o cartaz que alguém colocou na direita do pórtico e suspirou. Em outra ocasião, quando sua vida fosse menos agitada, poderia desfrutar da música que tocaria a orquestra que anunciava esse cartaz. Com uma inevitável sensação de saudade, já que desejava que a normalidade voltasse à casa dos Moore, continuou o caminho, se esquivando das bancas de frutas e verduras que encontrou.
Covent Garden era um lugar muito estimulante, como indicavam os jornais. Embora não parecesse tão perigoso quanto insistiam em descrever. Onde estavam as prostitutas, os bandidos e os criminosos que perseguiam os cantos do mercado em busca de uma vítima para assaltar? Porque ela não os via. A única coisa que tinha diante de seus olhos eram pessoas comuns e mundanas e que ofereciam suas mercadorias aos poucos clientes que andavam perto de suas bancas.
Continuou naquele lado da calçada e justamente quando determinou que o passeio deveria terminar, seu nariz capturou um maravilhoso aroma de café. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Insuperável... Se a bebida fosse tão boa quanto o aroma que emitia, não poderia voltar para casa sem saborear uma boa xícara. Com o nariz levantado, como se fosse um cão de caça, seguiu para o estabelecimento que o servia. Quando chegou, sorriu ao ver que não era a única pessoa que abandonava suas obrigações para deleitar-se com um costume tão pouco inglês. Talvez a maravilhosa tradição de ingerir só chá iniciava uma época de declínio, ou talvez houvesse mais gente tão estranha quanto ela.
Enquanto esperava sua vez, se apoiou na parede de maneira descontraída e procurou algumas moedas para pagar pela compra.
?Quanto me custaria passar uma hora com você, Srta. Moore? Garanto-lhe que pagarei com prazer.
Mary, muito lentamente, tirou a mão da retícula, se afastou da parede, levantou o rosto e olhou com altivez para o dono daquela voz. Ali estava o maior idiota do mundo, vestido com um traje cinza escuro, tal como ditava a moda nesse momento. Peter Wang a observava com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casaco e mostrava com orgulho um repugnante bigode louro, cujas extremidades se enrolavam para cima.
?O que disse? ?Perguntou tão indignada e furiosa que suas bochechas mudaram de cor pelo sufoco.
?Digo-lhe, senhorita Moore, que estou disposto a pagar tudo o que me peça se me oferecer algo interessante em troca ?Wang disse, verificando o vestido grosseiro de Mary. Depois de sorrir com malícia, avançou para ela. ?Imagino que seja por isso que está sozinha nesta parte de Londres, não é verdade? ?Falou olhando levemente ao redor. ?Finalmente assumiu que nunca alcançaria seu sonho e adotou a posição mais sensata para sua idade: recuperar o tempo perdido tornando-se amante de um distinto cavalheiro.
?Bom dia, senhorita, o que deseja tomar? ?Interveio a amável vendedora alheia, até o momento, da situação que se vivia na frente do posto.
?Bom Dia. Importa-se de me servir a maior xícara de café que você oferece aos seus clientes, por favor? ?Mary respondeu sem olhar para ela.
?Café? ?Perguntou Wang sem tirar os olhos dela. ?Como é normal em você, me confunde. Tinha deduzido, erroneamente, claro, que se tratava de uma mulher que adorava passar as horas do dia tomando chá com doces, dado o volume desproporcionado que tomaram seus quadris desde a última vez que nos vimos.
?Deus bendito! ?A vendedora soltou horrorizada ao ouvi-lo.
Gorda e prostituta. Até esse preciso instante a tinham dedicado muitos adjetivos e substantivos repugnantes, mas nenhum superava a brilhante descrição daquele energúmeno. Mary olhou de relance para a trabalhadora envergonhada. Ela colocou a xícara que pedira no balcão de metal com as mãos trêmulas e se afastou, como se estivesse lendo seus pensamentos. Sem prestar atenção às palavras de Wang, que perseverou em informar que sua robustez aumentara tanto que não seria bom para sua saúde, ela se virou para a esquerda, pegou a xícara e jogou nele.
?Maldita aberração! ?Exclamou. ?Como ousa falar comigo com tanta insolência? ?Vociferou. ?Você é o homem mais estúpido que eu já conheci na minha vida!
?É uma rameira! ?Wang esbravejou quando suas mãos com luvas pretas desabotoaram os botões do casaco.
Tudo o que aconteceu desde o momento em que atirou o café sobre Wang, transcorreu muito lentamente para Mary. O filho do médico tirou algumas roupas e as jogou no chão. Então gritou milhares de maldições quando não conseguiu acalmar as queimaduras que seu peito sofreu. Ele olhou para ela com tanta raiva que qualquer mulher teria morrido de medo. Avançou para ela, levantou o braço direito e estendeu os dedos para lhe acertar um bofetão. Mas não chegou a tocá-la. Uma mão enorme, que ela reconheceu rapidamente, apertou o pulso do agressor e o puxou com uma força tão grande que ele caiu no chão junto com suas roupas.
***
?Como foi capaz de fazer uma coisa dessas? ?Philip gritou pulando da cadeira. ?Aquela mãe ficou louca?
?Não creio que o termo louca seja muito apropriado para descrever a senhora Moore, milorde ?Disse Shals antes de dar uma gorjeta ao menino que lhe fez chegar a notícia. Quando este partiu, virou-se para o angustiado lorde e prosseguiu: ?Primeiro, devo descobrir o que aconteceu para que a senhorita Moore saísse sem proteção. Certamente você encontrará uma explicação tão divertida que estará rindo por vários dias...
Nem ele mesmo acreditava em suas próprias palavras! Como uma mãe, sabendo qual era a opinião da sociedade sobre a sua filha, deixava-a sair de casa sem acompanhante? Queria que chegasse o juízo final? Porque isso mesmo ia acontecer. Não só pelo que aquela moça poderia fazer, mas pelo que estava a ponto de realizar seu amo.
?Shals? ?Giesler perguntou ao vê-lo imóvel na frente do cabide.
?Sim senhor. Eu já tenho ?respondeu. Mostrou-lhe a jaqueta que havia pegado e caminhou até ele.
?Não há explicação... ?Philip continuou a falar enquanto o mordomo o ajudava a vestir a jaqueta. ?Mary não pode passear pelas ruas sem proteção. Além disso... não disse que começaria a chover em breve? ?Retrucou quando se virou para que Shals abotoasse os botões.
?De fato, milorde. As nuvens são tão cinzentas como a cinza que há em uma lareira depois de um enorme fogo. Se o vento não as mover, logo aparecerão as primeiras gotas. ?Terminou de colocar a jaqueta e correu para a porta do escritório para deixar passar o homem que, apesar de não estar totalmente recuperado de uma operação, percorreria Londres a pé para proteger a mulher que amava em segredo.
?Diga ao cocheiro que esteja pronto em um minuto ?ordenou Philip antes de entrar na sala de jantar e desabotoar a jaqueta.
Não fechou ao entrar. Não era hora de se preocupar em buscar um pouco de privacidade, mas de agir rapidamente. Ele foi até a vitrine de mogno, colocou a mão direita na borda e moveu os dedos até encontrar a chave. Uma vez que a encaixou na fechadura, virou-a para a direita e abriu a estreita e longa porta de vidro. O cheiro de pólvora atingiu seu nariz, fazendo-o lembrar diferentes episódios importantes de sua vida. Em qualquer outro momento, ele teria sorrido para inspirar a segurança e a diversão que esse perfume em particular transmitia. Mas agora isso só lhe dava um aroma, o de Mary, e expressava um desejo: cuidar dela.
Como tinha sido tão insensata de passear por Cover Garden sem proteção? Não gostava tanto de ler? Então, por que não havia lido nos jornais as críticas que fizeram sobre essa região em particular da cidade? Ainda bem que seu empregado foi sensato e lhe fez chegar a informação através daquele pequeno batedor de carteira. Sabia que ele agiria com rapidez e que nem uma chuva de ratos infectados com lepra lhe impediria ir buscá-la. Levantou a arma com a mão direita até que a culatra de marfim branca ficou à altura de seus olhos e com a outra mão carregou a munição, o projétil e o bloco de papel através do cano. Uma vez que ficou carregada e pronta, ele a guardou no bolso interior da jaqueta, fechou a porta da vitrine, colocou a chave no lugar, virou-se para a porta e enquanto saía, fechou ele mesmo a jaqueta.
?Tudo pronto, meu senhor ?Shals disse oferecendo-lhe o casaco. ?Quer que o acompanhe? Seguro que posso me ausentar algumas horas... ?acrescentou uma vez que o ajudou a colocá-lo.
?Não. Prefiro que esteja aqui caso apareça Valeria ou Martin ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Se isso acontecer, deseja que conte a versão real ou mais uma... ilusória? ?Sugeriu enquanto colocava o chapéu nas mãos.
?Real ?declarou antes de colocá-lo sobre a cabeça e sair de lá.
Shals encarou a grande figura de seu senhor até que ele entrou na carruagem com a ajuda do cocheiro. Nas duas semanas anteriores, lorde Giesler permaneceu muito calmo em sua residência, recuperando-se da operação. Ele próprio acreditava que, se continuasse assim, seu senhor morreria de tédio, porque nunca ficava em casa por tanto tempo, exceto quando chegava tão bêbado que não conseguia se lembrar de seu nome. No entanto, sua atitude mudou tanto que o serviço murmurava incessantemente sobre o estranho comportamento do homem que pagava seus honorários. Até chegaram a pensar que a senhorita Moore, durante a operação, lhe arrancou não só um pedaço de tripa envenenada, mas também a virilidade. Ninguém, exceto ele, entendia o motivo pelo qual ficava várias horas sentado em um sofá, prostrado em sua cama ou caminhando pela casa com muito cuidado para não se machucar: a senhorita Moore. Desde o dia em que os encontrou no quarto, em circunstâncias comprometedoras, lorde Giesler não tinha pensado em nada, exceto em curá-lo com rapidez e cortejá-la como era devido. Até tinha lido livros de medicina! Seu novo propósito consistia em que, a próxima vez que se encontrassem, a jovem se apaixonasse por ele tal como ele estava apaixonado por ela. No entanto, tinha a sensação de que seu primeiro encontro social não seria tão romântico quanto ele esperava...
Apesar de tudo, confiava na sabedoria da senhorita Moore e rezava para que não se metesse em nenhum problema. Se isso acontecesse, se seu senhor testemunhasse alguma ofensa contra ela... Que Deus tenha piedade do insensato! A arma que tinha guardado no bolso era de um tiro e só o usaria como advertência. Para ser sincero, não temia pelos danos que aquela bala poderia causar, mas o que aquelas duas mãos fortes e grandes poderiam fazer.
Shals suspirou quando a carruagem se perdeu na distância. Fechou devagar a porta, virou-se e caminhou pelo corredor como se algum empregado tivesse pedido sua ajuda.
Capítulo XVI
Philip observou, de sua carruagem e atrás da cortiça marrom escura, como Mary abandonava a loja na qual havia permanecido desde que ele chegou. Quando ele pretendia respirar com calma, coisa que não havia feito desde que soube que ela saíra de casa sozinha, observou, pasmo, que ela depositou as malas dentro da carruagem e se afastou. Antecipando o que aconteceria a seguir, colocou a mão esquerda com luvas na maçaneta da porta e abriu. Enquanto ele pisava nos paralelepípedos da calçada com seus sapatos pretos brilhantes, Mary conversava com o funcionário. Então, ela apertou os botões do casaco, virou e começou a descer a rua.
?Milorde? ?Lhe perguntou o cocheiro um tanto confuso ao descobrir que seu senhor abria a porta e saía da carruagem sem ajuda.
?Me espere aqui, Thenders. Se eu não aparecer em 10 minutos, você tem minha permissão para voltar ?lhe ordenou sem afastar seus olhos azulados da mulher.
?Como quiser senhor ?o servo respondeu depois de depositar as rédeas no assento.
Philip caminhou atrás de Mary, mantendo uma distância suficiente para que lhe não descobrisse, mas o apropriado para agir rapidamente, se necessário. Por mais que tentasse, era incapaz de tirar os olhos do corpo com o qual sonhara quase todas as noites. Suas mãos, exatamente como fizeram nessas alucinações eróticas, foram em sua direção para tocá-la, mas ele as bateu nos dois lados do casaco quando percebeu o que estava fazendo. Irritado com a perda incomum de controle, ele os colocou nos bolsos e os apertou. Sentia falta dela. Sim ele fez! Não havia manhã em que acordasse e se perguntasse que sentimento o invadiria se ela permanecesse ao seu lado. Mas essa melancolia não terminava quando se levantava da cama. A cada hora, a cada minuto, a cada segundo do dia sentia falta de inspirar o perfume feminino misturado com essências medicinais, desejava notar as carícias suaves de seus lábios e a necessidade de tê-la ao seu lado aumentou tanto que estava ficando louco. Como conseguiu o que muitas mulheres desejavam alcançar? Era sua paixão, seu intelecto ou talvez esse jeito tão especial que tinha de olhá-lo? Embora seus olhos emitissem raiva, ele sabia que a raiva não era real. Desejava-o, tanto ou mais do que ele desejava a ela. Só esperava o momento em que se rendesse a suas paixões. Uma vez que conseguisse romper essa rígida barreira, lutaria com todas as armas que tivesse a seu alcance para fazê-la sua para sempre.
Enquanto sua mente perversa lhe fez reviver algumas cenas que teve em seus sonhos lascivos, observou como Mary parava em frente à entrada do teatro. Depois de ler a placa à direita e pensar em algo que queria saber, continuou a caminhada sem ver como as pessoas, que caminhavam ao seu lado, a olhavam de canto de olho. Sem dúvida, todo mundo estava fazendo a mesma pergunta: que diabos uma mulher como ela estava fazendo sem vigilância? Mas ele não conseguia responder. Não sabia o motivo pelo qual a senhora Moore, uma mãe a quem descrevia como coerente, permitiu que sua filha andasse sem proteção por uma região bastante perigosa de Londres. De repente, esse desejo primitivo de cuidar dela se intensificou. Precisava fazê-los entender, a quem a olhava com receio, que não estava desprotegida, que ele a vigiava. No entanto, se obrigou a manter distância, porque se Mary o descobrisse, não lhe cabia nenhuma dúvida de que o atacaria como uma leoa recém parida.
Um enorme sorriso se desenhou em seu rosto ao apreciar como erguia o queixo, fechava os olhos suavemente e inspirava o cheiro de café, que emitia um estabelecimento localizado a três barracas de verduras. Como Shals o informou, sentia uma certa fraqueza por aquela bebida. Quantas xícaras tinha tomado no último dia em que o visitou? Não se lembrava se eram quatro ou cinco, mas seu fiel mordomo disse que precisou fazer duas cafeteiras para si mesma.
Sem poder apagar aquele pequeno sorriso de felicidade, pois esse pequeno gosto comum os unia mais do que aquilo que um anel de noivado poderia unir, ficou parado na frente dela. Claro, estava tão entusiasmada em procurar as moedas com que pagaria à vendedora que não reparou na sua presença.
Philip encostou o ombro esquerdo num poste, ficou de braços cruzados e continuou a observá-la. As pessoas mais atrevidas, ao passar por seu lado, o olhavam de relance. Os temerosos se afastavam. Talvez seu traje escuro, sua altura ou a ruga que apareceu em sua testa, ao contemplar como um jovem se aproximava de Mary com um sorriso irônico, avisasse que, se quisessem ficar seguros, deveriam se afastar dele rapidamente. Quando o rapaz ficou na frente dela, Giesler descruzou os braços, afastou-se do poste e deu um grande passo. Não atendeu à blasfêmia que um cocheiro soltou quando puxou com força as rédeas de seus cavalos para não atropelá-lo. Estava tão concentrado naquela cena, que tudo à sua volta desapareceu. Deu outro passo, ficando no meio da via, tirou uma luva e a jogou no chão. Logo, no passo seguinte, se desfez da outra. Mais um passo... Só restavam três e poderia escutar o que dizia aquele estranho para Mary para que se mostrasse tão tensa. Sua futura esposa, porque assim a denominou desde que entendeu que não podia ter em sua cama outra mulher que não fosse ela, sempre enfrentava o mundo com a bravura de um dragão. Entretanto, notava que nesta ocasião estava se contendo. Então, sua valente guerreira brotou. Se virou para a vendedora, que havia colocado uma xícara enorme de café no pequeno balcão de sua loja, o pegou e jogou no rapaz em questão.
Os três passos que faltavam até alcançá-los, Philip os converteu em um ao ouvir como aquele insensato a chamava de rameira e levantava seu braço para golpeá-la. Quando se colocou atrás do rapaz, lhe agarrou o pulso do braço levantado e o puxou com tanta força que este ficou estendido no chão, junto com as roupas que tirou.
?Lorde Giesler! ?Exclamou Mary. ?Não!
Mas Philip não a ouviu, nem percebeu como ela o agarrou pelas costas do casaco para detê-lo. Com um rápido movimento de ombros, deslizou o pesado casaco preto até que se soltar dele. Depois, desabotoou o casaco e atirou-o ao chão. Uma vez que deixou de sentir a pressão que aquelas roupas exerciam em seus braços, estendeu as mãos para o menino, o agarrou e o levantou sem pouco esforço.
?Como a chamou? ?Ele gritou, levantando tanto o jovem que seus pés não tocavam o chão.
?Milorde! Me solte! ?Wang gritou desesperado. ?Me solte! ?Repetiu.
?Como a chamou? ?Voltou a rosnar.
?Por acaso não viu? Essa desgraçada me jogou uma xícara de café fervendo! ?Tentou justificar.
?Rameira ?a vendedora terminou, que havia deixado seu posto e agarrado Mary pelos ombros para confortá-la. ?Chamou a senhorita de rameira e gorda.
?Cale a boca! ?Lhe gritou Mary afastando-se dela.
Aterrorizada, deu um passo em frente e justo quando ia abrir a boca para ordenar ao Titã de cabelos louros que o soltasse, seu sapato direito tropeçou com algo duro. Olhou para o chão e arregalou os olhos ao ver a coronha perolada de uma arma. Sua angústia cresceu tanto que ficou muda. Presa desse pânico que começava a brotar do mais fundo de sua alma, jogou o casaco negro, que havia tirado do lorde, e o jogou sobre a jaqueta, para que ninguém reparasse na presença dessa arma.
?Você ia bater nela? ?Perseverou Philip alheio aos movimentos dela.
?Lorde Giesler, lhe imploro, não precisa fazer um espetáculo por algo tão insignificante. Tudo estava esclarecido no instante em que... ?Tentou explicar, mas teve que calar-se quando seu agressor a interrompeu.
?Merece uma lição! ?Wang gritou olhando em volta, procurando uma pessoa para defendê-lo.
Philip o soltou e quando o jovem apoiou as plantas dos sapatos no chão, levantou seu braço direito e lhe deu uma bofetada que lhe cruzou a cara.
?Como esse? ?Berrou fora de si.
?Ninguém vai separá-los? ?Mary gritou desesperada.
A princípio, o tumulto que os cercava permaneceu silencioso, mas quando lorde Giesler deu um tapa no rosto, o clima mudou e começou a se ouvir gritos encorajadores daqueles que os observavam. Ninguém queria parar o confronto masculino, apesar de estar ciente de que não havia igualdade física entre eles. Enquanto Wang era um rapaz alto, mas bastante esquálido, o lorde superava em altura e seu corpo dobrava seu oponente em musculatura.
?Vamos! ?Philip insistiu enquanto arregaçava as mangas da camisa. ?Me devolva o tapa! O que espera, maldito rato? Onde está agora a coragem que mostrava ao atacar uma mulher? Mostre-a com um homem!
?Não vou lutar com você... ?disse Wang caminhando para trás. ?Não por essa!
?Não! ?Mary gritou novamente enquanto observava Philip se aproximar de Wang e começar a espancá-lo sem piedade.
Olhou aterrorizada ao seu redor, procurando alguém grande e valente o suficiente para impedi-lo. Mas ninguém se atrevia a intervir em uma briga em que um dos combatentes exibia a imagem de um deus irritado. Preferiam ser meros espectadores a serem feridos. Supondo que a única pessoa que podia terminar a luta era ela mesma, saltou para frente e agarrou-se ao pescoço de lorde Giesler.
?Solte-o! Solte-o! ?Repetiu uma e outra vez.
No entanto, ele não a ouvia. Seu corpo parecia um pêndulo. Movia-se da direita para a esquerda, conforme batia. Abriu a boca, com a pretensão de lhe morder o pescoço, mas logo pensou melhor. Seu pai não lhe disse que, se apertasse com força o pescoço de uma pessoa, esta deixava de respirar e podia perder a consciência? Pois isso mesmo faria. Evitando não cair, estendeu seu braço direito sobre a garganta do lorde e apertou com a intensidade suficiente para que sua agitada respiração se tornasse algo mais pausada.
Giesler, ao sentir como lhe faltava o ar, deu um passo para trás, olhou o rosto machucado do homem e sorriu satisfeito ao comprovar que o olho direito estava tão inchado que não poderia ver com clareza por várias semanas. Mas sua alegria aumentou ao observar dois fios de sangue sob seu nariz. Depois, muito devagar, olhou por cima do ombro para confirmar que os braços que rodeavam seu pescoço pertenciam a Mary. Quem, se não ela, teria o valor suficiente para freá-lo de uma maneira tão pouco usual? Estendeu os braços para trás e acolheu com suas mãos grandes os gostosos glúteos femininos. A falta de oxigênio o deixou tão nublado que não ouviu com clareza como ela gemeu diante do contato. A única coisa em que ele se concentrou foi que Mary não se machucasse ao deitá-la no chão. Enquanto as pessoas encorajavam o ato violento, o corpo de Mary desceu ao chão, roçando o seu. Em outro momento, enlouqueceria de desejo, no entanto, este não era. Precisava confirmar que não estava ferida.
?Está bem? Se machucou? ?Perguntou-lhe quando se virou para ela. Acariciou-lhe a bochecha esquerda e enfiou uma mecha desse cabelo negro despenteado atrás da orelha.
?Eu?! ?Estalou sem poder afastar seus olhos dele. ?. Eu estou perfeitamente, é ele quem não está! ?Acrescentou apontando com um dedo da mão esquerda para o filho do médico.
?Esse tolo importa menos para mim do que uma casca de ovo, Mary. A única coisa que me interessa é saber se você está bem ou tenho que continuar batendo nele até que não sem lembre como se chama ?afirmou enquanto olhava para aquele rosto corado de raiva e vergonha.
E o escândalo oferecido por aqueles que incentivaram a luta desapareceu para dar lugar a um estranho silêncio.
?Afastem-se! ?Ordenou um homem depois de soprar várias vezes com seu apito. ?Afastem-se do nosso caminho!
Philip virou-se para aqueles que tranquilizaram a multidão, escondeu Mary atrás do seu corpo e olhou para o local na rua onde dois agentes apareceram. Estes, ao reconhecê-lo, aproximaram-se dele e levaram a mão direita ao chapéu que cobriam suas cabeças.
?Giesler... ?Um dos policiais se referiu a ele pelo sobrenome devido à amizade que mantiveram durante vários anos.
?Thomas...
?O que aconteceu? ?Ele perguntou depois de dar um forte aperto de mão.
?Este estúpido quis bater em uma mulher ?Philip murmurou, dirigindo-se a Wang com um olhar de reprovação e ódio.
?Qual delas? ?O outro parceiro queria saber enquanto observava o rosto de todas as mulheres que estavam na frente da banca de café.
?Ela... ?declarou Philip afastando-se para o lado para que seus dois antigos companheiros da Scotland Yard descobrissem a quem se referia.
?Por Deus, senhorita Moore! É você de novo? ?Estalou Thomas atordoado. ?Mas por que agrediu novamente o senhor Wang? O que usou desta vez, essa bolsa? ?Acrescentou divertido.
?Não senhor. Desta vez o encharquei com uma xícara de café quente ?comentou Mary levantando o queixo de maneira altiva. ?Mas em minha defesa alegarei que eu não tive a culpa deste acidente. Ele veio até mim e me insultou.
?O que lhe disse desta vez para irritá-la, senhor Wang? ?Perseverou o outro agente com voz cansada enquanto o ajudava a levantar-se.
?Gorda e rameira ?a vendedora interveio. ?Assim a chamou diante dos meus clientes.
?Maldito bastardo! ?Philip deu um passo em direção a ele. Mas não podia chegar perto tudo o que ele desejava porque Thomas agiu rapidamente e ficou entre os dois.
?Muito obrigada pela ajuda ?Mary murmurou com sarcasmo à vendedora.
?De nada, senhorita. Nós mulheres devemos nos apoiar diante deste tipo de monstros ?a jovem disse sem perceber o tom acusatório de sua voz.
?E bem? ?Thomas perguntou a Wang. ?Tem algo a alegar?
Wang, que já estava segurando a roupa suja em um braço, retirou o sangue que saía do nariz com a manga esquerda da camisa e olhou para o seu agressor, depois para Mary, depois para as pessoas que se reuniram ao redor dele e terminou por encarar o agente que insistia em descobrir o que aconteceu. Ao deduzir que havia certa camaradagem entre lorde Giesler e os agentes, pela maneira como se cumprimentaram, determinou que a melhor maneira de resolver o problema era falar com alguma eloquência, mas sem esquecer seu objetivo: humilhar a sabe-tudo Moore.
?Só um infeliz incidente que foi mal interpretado com demasiada rapidez ?ele começou a dizer enquanto sacudia a poeira de suas roupas. ?Devo confessar que, desde que me tornei um médico qualificado, fiquei obcecado em encontrar um local adequado para cuidar de meus pacientes. ?Ele sorriu tanto que todo mundo admirou seus dentes brancos manchados de sangue. ?Por esse motivo caminhava distraído. Estava concentrado nesse edifício aí quando me topei com a senhorita Moore. Ela, que tinha comprado uma xícara de café, tampouco advertiu minha presença e quando se virou, derramou sem querer esse líquido quente sobre minhas roupas. Como não queria me queimar, porque as feridas de uma queimadura são terrivelmente dolorosas, tirei minhas roupas manchadas. Naquele momento, todos os presentes começaram a gritar, talvez pensassem que a puniria por um ato que, sem dúvida, ninguém poderia prever. No momento em que a Srta. Moore e eu íamos pedir desculpas, lorde Giesler apareceu perguntando o que estava acontecendo. Quando me virei para responder, tropecei em uma pedra e caí de bruços na calçada. Portanto, tenho rosto inchado e o nariz está quebrado e sangrando. ?comentou sem apagar um repugnante sorriso de sua boca.
?Então... não há nenhum caso? Não registrará uma denúncia? ?Thomas insistiu, que aceitou a história sem discordar porque libertaria seu amigo de ficar na prisão por algumas horas.
?A quem? ?Wang perguntou antes de soltar uma risada, que parou rapidamente quando sentiu uma leve dor na mandíbula. ?Não há denúncia possível, agente! A menos que queira levar diante de um juiz a felicidade que enfrento desde que consegui me formar em medicina ?respondeu Wang olhando de relance para Mary, quem o observava com os olhos injetados em sangue.
?Nesse caso... ?o outro guarda disse ?não temos nada para fazer aqui, certo?
?Se eu ainda usasse o uniforme ?Philip disse a Thomas ?o escoltaria até sua casa. O estado de felicidade que diz viver pode lhe provocar outro desafortunado incidente e garanto que não gostará, ao futuro doutor ?respondeu com ironia?que sua cabeça sofra um golpe tão forte que esqueça tudo o que tem conseguido até o momento.
Mary suspirou surpresa ao descobrir que lorde Giesler também entendeu as palavras envenenadas de Wang. Assombrada, olhou-o com admiração durante uns instantes e um sentimento estranho brotou do mais profundo de seu ser. Em seguida, sentiu um tremor em seu estômago e concluiu, estupefata e prestes a desmaiar, que era a primeira vez que se orgulhava de conhecer um homem que não fosse seu pai. Não só adorou aquele ato brutal e primitivo de proteção, pensamento que meditaria quando chegasse em sua casa, mas que a encantou descobrir que, debaixo daquela longa mata de cabelos dourados, havia uma mente lúcida e sensata.
?Agradeço a sua preocupação ?Wang apontou com relutância. ?É verdade que um médico não pode tentar duas vezes a sorte... se quiser continuar sendo, claro. ?Sorriu novamente. ?Senhorita Moore... ?se dirigiu a ela com uma leve reverência e sem eliminar o sorriso ?Sinto muito tê-la assustado e espero que este pequeno desentendimento não a impeça de comparecer na próxima sexta-feira à assembleia.
?Claro que assistirei! ?Mary respondeu furiosa. ?Como bem afirmou, sou inocente e tem sido sua falta de jeito, uma condição que deve estudar se quiser se tornar um bom médico, a causa desse alvoroço.
?Giesler? ?Thomas perguntou-lhe para confirmar que ele também deu por encerrado a discussão.
?Sem problemas. Assim que o levarem, acompanharei a senhorita Moore a sua casa ?declarou se aproximando de Mary novamente.
?Uma vez que este assunto está esclarecido e resolvido, desejo a ambos um bom dia ?concluiu Thomas enquanto apertava de novo a mão de seu amigo e se despedia de Mary com um leve movimento de cabeça. Então ficou ao lado de Wang e, sob o olhar atento daquela multidão silenciosa, o acompanhou pela rua junto com seu parceiro.
CONTINUA
Capítulo IX
Mary sorriu quando Shals apareceu com a quarta xícara de café. Era a primeira vez que ela se sentia admirada e amada. Portanto, em nenhum momento disse algo que pudesse machucá-los, embora quisesse repreender mais de um por resmungar como uma criança pequena. Para ser honesta consigo mesma, ela começou a se sentir confortável com a atenção incontável que lhe mostravam.
A cozinheira, quando a Sra. Reform anunciou que, devido à hora, eles teriam que almoçar lá, lhe perguntou qual prato era o favorito dela, qual bolo ela queria e ordenou a um lacaio que pegasse o melhor vinho que lorde Giesler mantinha na adega. Uma das donzelas não deixou de elogiar a grande habilidade que suas mãos possuíam quando espalhou um creme sobre as fendas de seus antebraços. Para que deixassem de elogiá-la, disse que sua irmã Elisabeth havia feito a pomada com as flores que ela cultivava em sua estufa e contou, com orgulho sincero, as inúmeras qualidades que Eli possuía para criar novas flores e pomadas curativas. Quando chegou a vez do cocheiro, ele sorriu para ela. Então ele explicou que tinha um leve desconforto na garganta. Depois de inspecionar essa área, ela indicou que deveria tomar infusões com mel e que precisava abandonar o hábito absurdo de fumar. Logicamente, a segunda ordem não agradou o lacaio gentil que, depois de ouvi-la, enrugou a testa. No entanto, não respondeu. Fez uma leve reverência, como se fosse uma dama, e se foi. Mary temia que, quando saísse, aliviaria sua raiva com outro cigarro.
Valeria, depois de voltar da cozinha pela quarta vez, sentou-se ao lado dela e observou com expectativa o que estava fazendo. Ela a acompanhou em suas gargalhadas, apoiou sua repreensão e garantiu que todos seguiriam suas ordens.
?Prometi a você que não visitaria meus filhos, mas acho que essa opção foi pior. ?A senhora Reform comentou quando as duas ficaram sozinhas na sala, onde Mary decidiu acomodar suas consultas repentinas.
?Não precisa se desculpar pelo que aconteceu, garanto que foi a melhor coisa que aconteceu comigo em cinco dias ?comentou antes de pegar a xícara. Ela tomou um gole leve e fechou os olhos para apreciar o sabor delicioso.
?Juro que não sabia de nada e que tudo isso me surpreendeu tanto quanto você Valeria insistiu.
?Shals disse ao meu pai que, depois do que fiz com lorde Giesler, ninguém nesta casa procuraria outro médico para vê-los e, como vi, não mentiu. ?disse sorrindo e curiosamente feliz.
?Shals é um bom homem... ?Valeria refletiu. ?E teve muita paciência com meu irmão ?acrescentou.
?Não ficará com raiva pelo que fiz, certo? ?Mary de repente soltou, depositando a xícara na mesa.
?Quem? Meu irmão? ?Mary assentiu. ?Não, claro que não! Philip é incapaz de ser cruel com as pessoas que trabalham para ele! Ao contrário! Se não acredita em mim, pode perguntar a eles. ?Diante do beicinho de irritação que Mary fez, ela continuou: ?Não sei o que aconteceu entre vocês dois, mas tenho certeza que não foi agradável. De qualquer forma, eu gostaria que desse a ele uma chance para mudar sua opinião sobre ele. ?Pegou sua xícara e tomou lentamente, sem desviar o olhar da jovem. Ela parecia estar reconsiderando suas palavras. Mas, pela maneira como franzia a testa, a esperança de que esquecesse qualquer coisa negativa se dissipou. ?Como disse na noite em que nos conhecemos, meus irmãos e eu crescemos em Brink Lane. Nossos pais, depois de deixarem a Alemanha, se estabeleceram lá e sobrevivemos com o pouco que obtinham dos trabalhos que lhes confiavam ?começou a narrar com o objetivo de amolecer aquele coração duro.
?Deve ter sido muito difícil para seu pai se adaptar a uma vida de necessidades depois de ter nascido e criado como um barão ?Mary declarou, tentando não lhe causar muito dano diante da lembrança.
?Estava muito apaixonado pela minha mãe e isso era a única coisa que precisava até que morreu ?suspirou triste. ?Te contei que morreu em seus braços e que minha mãe não quis se afastar dele, pois acreditava que, a qualquer momento, acordaria?
E uma emoção estranha para Mary oprimiu-lhe o peito.
?Se amavam muito? ?Perguntou perplexa.
?Eu nunca vi um casamento que se amassem tanto, e isso que eu daria minha vida por Trevor. Onde quer que estejam, certamente nada e ninguém poderá separar esse amor intenso e verdadeiro.
E essa era outra razão pela qual nunca se apaixonaria. Ela, por decreto da sociedade, teria que ocupar um segundo lugar no casamento. Seria obrigada a deixar tudo o que amava para atender às demandas de seu marido. Tal responsabilidade, como sempre havia imaginado, a transformaria em uma desgraçada. Procuraria uma maneira de não ter filhos, para que eles não fossem os reflexos de sua tristeza. Não. Absolutamente, ela não se casaria jamais. Mesmo depois de sua mãe ter sofrido mil apoplexias quando presumiu que sua segunda filha tinha decidido ser uma solteirona.
?Como conseguiu superar sua morte? ?Disse depois de afastar rapidamente suas próprias suposições.
?Não superou ?Valeria respondeu se levantando da cadeira. ?Minha mãe morreu logo depois.
?Que doença tinha? ?Mary insistiu, também se levantando da cadeira.
?Tristeza. Uma que nenhum médico pode curar com medicamentos ou operações.
?Sinto muito... ?murmurou envergonhada.
?Não sinta, eu parei de fazer isso há muitos anos. Ela queria estar com ele, queria ficar ao seu lado e lutou até que conseguiu.
?Como sobreviveram? ?Perguntou e, em seguida, se arrependeu de fazê-lo.
Não estava ciente da dor que Valeria mostrava em seu rosto? Por que insistia? Estava interessada em saber que vida lorde Giesler teve no passado? Não podia imaginá-lo mendigando nas ruas! Era tão... e se mostrava com tanto... Impossível!
?Ainda estou me perguntando. Talvez eles se tornaram nossos anjos da guarda e fizeram tudo o que puderam para que seus filhos vivessem, ou talvez o destino teve piedade de três pobres órfãos. ?Ela deu de ombros e, apesar da tristeza que sentia quando se lembrava daqueles anos, esboçou um sorriso. ?Quem sabe o que a vida nos reserva, Mary? Hoje pensa uma coisa, amanhã surge outra e, quando abre os olhos no terceiro dia, decide algo que não pensava antes.
?Bem, nisto tem razão. No entanto, tenho que lhe dizer que não há dia em que eu acorde e confirme um pensamento ?comentou, finalmente esboçando um grande sorriso.
?Qual? ?Valeria quis saber enquanto caminhavam em direção à porta.
Estava na hora de Mary visitar seu irmão. Se não estava enganada logo começaria a chamar Shals para perguntar se tinha notícias dela. Como agiria ao vê-la? Ele ficaria perplexo? Pensaria que estava vivendo um sonho? O que quer que fosse, apenas esperava que se lembrasse de que sua amada irmã a levara até ele e que a questão do baronato ainda estava pendente.
?Quer saber qual é a única ideia que consolidei ao longo dos anos? ?Mary respondeu com diversão.
?Sim.
?O de não procurar um marido. Nenhum homem será bom o suficiente para...
Não terminou sua estudada e perfeita exposição, pois, ao sair no corredor, observou que Shals subia e descia indeciso as escadas.
?Shals? ?Ela perguntou andando com firmeza em direção ao homem. ?O que aconteceu?
E a resposta foi dada pela voz de um Titã mal-humorado.
?Maldito seja! Ficaram surdos? ?Ouviu tão claramente que parecia que lorde Giesler estava ao seu lado.
?É um asno! Mas que modos são esses? ?Com raiva, arregaçou as mangas do vestido e subiu as escadas. ?Darei a ele a bronca que merece! Como pode ser tão insolente?
?Senhora... Faça algo! ?Shals pediu suplicando a Valeria. ?Não pode aparecer assim! Vai matá-lo!
?Seus planos e os meus não são os mesmos? ?Valeria perguntou com um sorriso de orelha a orelha.
?Senhora... não sei a que se refere? ?O mordomo abaixou ligeiramente a cabeça.
?Shals... você não tem por que se envergonhar. Eu li em seus olhos quando você a viu chegar. Você, tal como eu, quer que a Srta. Moore repare no meu irmão, certo?
?Senhora, tenha certeza que sim. Mas não acho que goste muito da ideia que tem a senhorita Moore agora mesmo sobre... reparar no meu senhor ?comentou com medo.
?O que você aposta que o deixa tão manso quanto um cordeirinho?
?Jamais apostarei com a esposa do antigo dono de um clube! ?Shals exclamou com aparente raiva.
?Porque sabe que perderia... certo??Insistiu, estreitando os olhos.
?Até os cílios, senhora Reform! Com você, perderia até os cílios! ?reiterou antes de seguir para a cozinha.
Valeria olhou para o primeiro andar. Mary já havia se virado para o corredor. Temia que a vida entediante de seu irmão cessasse no momento em que ela abrisse a porta e... que coincidência inoportuna que Mary o visitasse justamente quando todos tinham tarefas importantes a fazer! Pena que eles não pudessem estar presentes! Que pouco decoro! Uma mulher solteira ficar dentro do quarto de um homem... nu! O que pensariam da hospitalidade dos Giesler?
Sorriu de orelha a orelha, apertou os punhos em sinal de vitória e virou-se para a cozinha.
***
Todos os palavrões que decidiu soltar quando abrisse a porta desapareceram instantaneamente. Mary soltou abruptamente o ar que continha seus pulmões e fechou a boca com força. Ficou imóvel, paralisada da cabeça aos pés quando o viu em pé, de costas para ela. O quarto estava iluminado, porque alguma donzela abriu as cortinas e as janelas, permitindo-lhe observar claramente o quarto. Uma brisa suave, produzida pela corrente entre a porta e a janela, a recebeu assim que chegou. Mas ela não prestou atenção em como as belas cortinas se moviam, ou como a luz do sol refletia no espelho colocado em uma cômoda grande, ou se os móveis eram escuros, foscos ou devorados por cupins. Seus olhos focaram apenas nele, fazendo com que uma voz em sua cabeça evocasse a palavra perigo. Tudo o que tinha pensado gritar-lhe enquanto chegava desapareceu instantaneamente. Que palavras tinha escolhido? Que insultos lhe ocorreram? Nada. Ela não se lembrava de nada... No profundo suspiro que deu logo que o viu, a mulher enfurecida desapareceu, a pessoa que tinha infinitos palavrões mentais e, e em seu lugar se acomodou uma mulher que não podia afastar os olhos de um homem por sentir... desejo. Seu coração acelerou tanto que podia sair do peito, sem ter que usar um bisturi para abri-lo. Um calor raro subiu do centro das pernas para as bochechas, transformando-as em duas chamas de fogo. Respirou fundo para aplacar aquela emoção incomum. Não conseguiu. Seu batimento cardíaco ainda estava acelerado, suas bochechas continuavam acesas e a leve dor abdominal, que lembrava a que sofria toda vez que ia dormir sem janta, ficou mais torturante. Ela o comparou com o chefe de uma tribo da pré-história? Bem, essa ideia ainda era verdadeira. Concluiu que se tivesse vivido na era grega, lorde Giesler teria sido o muso de inúmeros escultores? Bem, isso também seria verdade. Mesmo que não quisesse reconhecê-lo, embora negasse essa ideia pelo resto da vida, morreria sabendo que esse homem era o único no mundo que lhe causava algum interesse pecaminoso. Que mulher seria incapaz de admitir que não sente atração por esse corpo? Era um espécime perfeito: suas pernas eram fortes e longas, assim como seus braços e ombros. Ele tinha uma cintura estreita, como os quadris. Que, felizmente para ela, permaneceram escondidos sob os calções. Disse que era perigoso? Bem, confirmava. Esse homem emanava perigo, não para os outros, mas apenas para ela, porque a atração por ele se tornava mais intensa, menos suportável. Deu um pequeno passo entrando no quarto, rezando pela primeira vez em sua vida ao Deus em que todos acreditavam, para que se virasse e quebrasse seu mutismo absurdo, seu encantamento, o feitiço... Mas ele não fez isso. Somente quando percebeu que se inclinava um pouco para a frente e colocava as mãos no curativo em volta da cintura, como se fosse uma faixa bonita, aquele bom senso, que saíra de sua cabeça, voltou a avisá-la de que o lorde estava prestes a realizar o maior disparate do mundo. Ela franziu a testa, como havia feito durante a subida nas escadas e na pequena corrida pelo corredor, e finalmente ela pôde gritar:
?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa.
?Mary? ?Giesler perguntou atordoado quando se virou muito lentamente em sua direção.
Mary engoliu em seco enquanto contemplava aquele rosto masculino. Ele estava sorrindo. Sim, seus lábios esboçaram o sorriso mais maravilhoso do mundo e, embora nunca tenha imaginado que a receberia com entusiasmo, porque ninguém no mundo, exceto sua família, a recebia com amor, ele estava fazendo isso. Havia visto alguma vez uma boca tão bonita, tão gloriosa? E para sua perdição e deleite, havia descoberto a suavidade daqueles lábios...
?Senhorita Moore.?O corrigiu, adotando a postura de uma mulher fria. ?Lembro-lhe que não deve me tratar com tanta familiaridade, lorde Giesler ?Acrescentou andando altivamente em direção aos pés da cama. Ela colocou as duas mãos na cintura e olhou para ele como se quisesse lhe arrancar os olhos. ?Que diabos está fazendo? Que parte de... “não deve se mexer”, não entendeu? Por acaso ficou surdo? Talvez seja por isso que pensa que seus fiéis funcionários estão ?garantiu com firmeza.
?Mary... ?sussurrou repleto de felicidade, como se ao seu lado estivesse um anjo iluminado por uma luz divina, em vez de uma mulher que o ameaçara lhe dar outro grande tapa. ?O que faz aqui? Como você está?
?Definitivamente... está surdo! ?Explodiu, revirando os olhos. ?Explodiu, revirando os olhos. Disse para não me chamar pelo meu nome e não preciso que se preocupe comigo, é você quem deve permanecer deitado na cama.
?Pretendia... ?Philip começou a dizer enquanto tentava se sentar novamente, um ato que o fez rosnar de dor.
?Maldição! ?Exclamou Mary indo em sua direção o mais rápido possível.
Sem pensar duas vezes, segurou os braços de Philip com força e o ajudou a se sentar o mais devagar possível. Depois que ele conseguiu, levantou as pernas e as estendeu no colchão. Quando se virou para ele, para gritar com ele até ficar sem voz, ficou sem palavras novamente, pois descobriu que os olhos azuis do lorde brilhavam, como se os raios do sol que passavam pela janela os impactassem neles. Seu rosto, recém barbeado, o tornava mais atraente, como se fosse possível, e seu cabelo não era mais escuro, mas brilhante e... lindo. Desviou o olhar quando uma rara dor no estômago a trouxe de volta ao mundo frívolo da sensatez. Não devia se deixar levar por atrações absurdas, nem por deslumbramentos miseráveis. Era uma Moore da cabeça aos pés e nela não podia surgir algo tão absurdo quanto o desejo por um homem!
?Segundo entendi, sua melhora é notória. Quer que todos os avanços que teve durante estes cinco dias retrocedam por tentar caminhar sem ajuda? ?Comentou com um tom menos rude enquanto lutava para acomodar as pernas que já estavam bem colocadas.
Aquilo que cheirava era loção de barbear ou perfume? Estava prestes a fechar os olhos e inspirar profundamente, mas a sensatez agiu novamente. Ela se afastou um pouco e, com as pontas dos dedos, pegou a parte de baixo do lençol para estendê-lo até cobrir o queixo. Quanto menos pudesse observar, menos tentação sentiria. Porque aquele corpo fazia seu sangue ferver, pensar em coisas impuras e, acima de tudo, a fazia perder a cabeça. Pelo menos, quando sua mãe a repreendesse por se colocar em outra situação comprometedora, podia se defender dizendo que ela o havia coberto e que ele estava usando calções que escondia seus atributos masculinos.
?Pensei que tinha perdido o interesse em mim ?Philip apontou em uma voz queixosa enquanto afastava o lençol.
Queria sufocá-lo? Porque teve essa impressão ao ver como tentava cobri-lo até o pescoço. Ou talvez houvesse outro motivo menos... sinistro? Suportou uma risada repentina e, muito lentamente, se descobriu até a cintura, exibindo a imagem completa de seu peito robusto. Queria descobrir o que havia se perguntado tantas vezes. Mas o leve sorriso, que foi incapaz de esboçar, se dissipou quando viu que ela estava voltando para o pé da cama e ainda demonstrava repulsa. Tão desagradável estava?
?Deixei-o em boas mãos, milorde. Meu pai, caso não se lembre, tem a habilidade de curar pessoas ?respondeu.
?Mas você me operou e, segundo entendi, lutou contra todos aqueles que se opuseram para não me deixar morrer ?contestou.
?Sou... como diria? Uma pessoa de bom coração? ?Respondeu, colocando as mãos no dossel de madeira.
Por que não conseguia parar de olhar para os lábios dele? Sua parte insensata queria senti-los novamente? Quantas vezes relembrou aquele momento? Um milhão? E, quantas vezes disse a si mesma, que o tapa havia sido a melhor coisa que tinha feito em sua vida? Uma, talvez? No caso hipotético de que estivesse pensado, pois não tinha mais certeza se o fez durante o confinamento forçado. Contou teias de aranha ou enumerou todos os possíveis defeitos de lorde Giesler? E por que sua mente não parava de imaginar como teria sido um beijo mais intenso? Essa pergunta aumentou muito seu desejo carnal... Maldita fosse, a parte primitiva do ser humano! Haviam construído grandes edifícios, navios para viajar de um continente a outro, chapéus horríveis com penas de pavão, mas... haviam conseguido fazer desaparecer o instinto carnal absurdo com o qual todo ser humano nascia? Não! As pessoas ainda eram primatas movidos por uma necessidade sexual absurda...
?O que tem, Mary ?enfatizou seu nome, embora ela não gostasse de ouvi-lo dizer. ?É uma habilidade mágica. Agradeço a Deus todos os dias pelo fato de aparecer e ter decidido salvar minha vida. ?Ele declarou com toda a sinceridade que podia oferecer naquele momento, porque sua mente procurava palavras que a deixassem orgulhosa enquanto um desejo masculino lutava para tirá-lo da cama, pegá-la nos braços, apoiá-la contra a parede e beijá-la com tanta paixão que os dois ficariam sem respiração.
?Não... Não deve... me dizer essas coisas, milorde.
Gaguejava? Ela?! Por que diabos fazia isso? Os servos não haviam oferecido milhares de elogios? Não começava a se acostumar com esses elogios? Então... por que ela se sentiu tão intimidada ao ouvir isso dele? E, naquele momento, toda a força, toda a raiva e toda a firmeza que sentia sempre que corria perigo, desapareceu como a neblina quando o sol aparece. Tinha que sair de lá o mais rápido possível. Até o ar parecia mais denso que nem conseguia respirar! Havia prometido a Valeria que iria visitá-lo, pois faria isso. Confirmaria o bom trabalho de seu pai e sairia mais rápido do que quando entrou.
?É verdade ?Philip garantiu, e não passou despercebido que, pela primeira vez desde que a conhecia, o escudo que protegia a mulher que ele desejava descobrir, desapareceu. ?É uma mulher engenhosa, corajosa e incrível. Uma mulher a quem devo minha vida ?garantiu solenemente. ?Estou em dívida com você. Pode me pedir o que quiser que encontrarei uma maneira de consegui-lo.
?Peço a lua, lorde Giesler ?disse.
Se recuperou o mais rápido que pôde para não mostrar uma imagem que estava escondendo desde que descobriu a maldade das pessoas. Ela não sofreria como Anne ou Elizabeth. Ela era diferente!
?Prometo que vou alcançá-la... ?Ao tentar se reclinar, outra cãibra terrível o nocauteou. Ele jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e respirou fundo.
?Relaxe, por favor ?lhe pediu em voz baixa quando veio até ele. ?Não deve fazer esforços desnecessários ?acrescentou, enquanto colocava as duas mãos sobre o curativo e apalpava lentamente para confirmar que não havia umidade.
?Me pediu a Lua, Mary Moore Arany, e eu juro que te darei ?comentou, sem abrir os olhos. Não queria assustá-la, não queria que se afastasse do seu lado e se para isso tivesse que ficar doente a vida toda, que Deus o concedesse!
?Estou satisfeita em poder comprar as publicações médicas que o Sr. Slow terá guardado para mim ?sussurrou, enquanto tomava a decisão de remover o curativo e confirmar que a ferida ainda estava fechada.
Olhou em volta e franziu o cenho. Onde diabos estava sua maleta? Era mais fácil para ela cortá-lo com a tesoura do que desembaraçá-lo gradualmente porque, dessa forma, ela precisaria tocá-lo, precisaria se aproximar o suficiente para poder inspirar aquele cheiro muito atraente para ela e que... Não havia lido em algum volume científico que o ser humano descobria a atração por uma pessoa simplesmente pelo cheiro? Bem, se essa teoria era verdadeira, tinha que concluir que não era ódio que sentia por lorde Giesler, mas... Algo mais próprio das Arany do que dos Moore! Irritada consigo mesma, desamarrou o nó que seu pai havia feito com as pontas do curativo e desenrolou-o com os olhos fechados. Enquanto não olhasse, a situação estaria sob controle...
?Por que não saiu de sua casa durante esses cinco dias?
A pergunta fez Mary abrir os olhos e olhá-lo ferozmente. Ele queria rir dela? Queria ridicularizá-la? Porque se lhe dissesse o motivo, nenhuma humilhação passada seria tão imensa quanto a que ela sofreria no presente. No entanto, ao descobrir que ele não a olhava, que mantinha seus cílios louros preciosos e longos unidos, relaxou e continuou a tarefa, envolvendo-se novamente em um estado de bem-estar ilógico para ela.
?Esteve doente? ?Insistiu em descobrir.
?Não ?respondeu.
?Então? ?Entreabriu o olho esquerdo e sorriu ao observar a raiva que exibia seu rosto. Não entendia muito bem se era devido à pergunta ou à repulsa diante da sua proximidade. Se fosse a segunda opção, ele estava morto. Porque, ao contrário de Mary, ele estava voando sem asas e pisando nas nuvens sem atravessa-las. Como o resto da humanidade definiria uma emoção semelhante?
?Estava de castigo ?finalmente declarou. Fixou os olhos no peito de Giesler, tentando definir se sua respiração ficaria agitada ao segurar uma risada. No entanto, permaneceu sereno, calmo e isso a incentivou a continuar: ?Minha mãe não achou engraçado que sua segunda filha, quem ela queria ver casada um dia, operasse um homem solteiro enquanto ele estava nu.
Ele ainda estava calmo, como se suas palavras não o afetassem. Ele não soltaria uma risada ou zombaria disso? Apoiaria a decisão de sua mãe? No entanto, quando colocou sua mão direita sobre o lado, para realizar um leve puxão e tirar o resto do curativo, observou que estava fingindo essa tranquilidade, já que seu batimento cardíaco era tão rápido quanto o dela. O que essa alteração significava? Concordava com o castigo ou se sentia culpado?
?Explicou que me deixou dormindo, que sua raiva não tinha raciocínio lógico? ?Ele perguntou, suportando estoicamente a dor que apareceu em seu peito quando descobriu que Mary havia sido injustamente punida por causa dele.
?Sim ?respondeu pouco antes de se ajoelhar para poder observar, de uma posição mais próxima, a ferida.
Como o pai lhe explicou, a sutura foi excelente. Ele mal teria uma linha branca fina no futuro. Sem dúvida, essa costura, apesar dos nervos que sofreu, era perfeita, como se estivesse costurado a vida toda. De repente, ela começou a rir enquanto deduzia a razão pela qual sua mãe havia levado o bastidor, os fios e o enorme tecido para o seu quarto.
?O que é tão engraçado, Mary? ?Philip estalou movendo-se suavemente para observá-la melhor.
?É incrível! ?Exclamou, incapaz de parar de rir. ?Só ela pode inventar uma tolice semelhante!
Intrigado, Philip queria se virar para Mary, mas ela o impediu, colocando novamente uma de suas mãos no centro daquele peito masculino e largo.
?Não se mexa, milorde. Agora é muito perigoso ?ela pediu, com uma voz suave.
?Então me responda ?ele implorou, num tom tão suplicante que Mary sentiu o desejo de abandonar toda a frieza que ela havia decidido mostrar, sentar ao lado dele e conversar como se fossem dois bons amigos.
?Já lhe disse que estive de castigo... ?começou a dizer.
?E que o motivo foi injusto porque, apesar de me ver nu, eu estava inconsciente e não era perigoso para você ?a interrompeu.
?Você não é perigoso, lorde Giesler, mas arrogante ?declarou, com um sorriso de orelha a orelha.
?Bem! Acaba de destroçar meu ego, Mary Moore Arany! ?Ele exclamou, colocando as mãos no peito. Ele a tocou. Havia chegado perto o suficiente daquela mão macia para roçar seus dedos suaves. Mas, para sua decepção, ela a afastou rapidamente. ?Tantos anos pensando que sou irresistível para as mulheres e agora acontece que alguém me garante que não sou tão sedutor quanto acreditei durante todo esse tempo ?acrescentou ironicamente.
?Vi muitos homens que...
?Quantos? ?Perguntou, arregalando os olhos e se levantando.
?Não vai me ouvir? ?Respondeu assim que jogou o curativo em algum canto do quarto. Se levantou do chão e colocou as duas mãos no peito de Giesler, para forçá-lo a se reclinar novamente na cama.
«Maldita insistência!» Mary pensou ao sentir como suas mãos aumentavam de temperatura, ao perceber a aspereza daquele pelo masculino e perceber que a respiração de lorde Giesler estava alterada, como se ele tivesse corrido atrás de um galgo.
?Quantos homens você viu nu, Mary Moore Arany? ?Insistiu, entrelaçando os dedos de cada mão nos pulsos dela.
?Isso importa para você, lorde Giesler? ?Se aventurou a dizer.
De repente, ela sentiu que os polegares do homem acariciavam aquela parte de sua pele, queimando-a sem compaixão. Queria se afastar, queria se distanciar, precisava evocar seu bom senso! Mas... não podia. Ele arrebatou toda a força que teve até agora, deixando-a vulnerável, fraca.
?Sim, me importa ?Philip sussurrou enquanto fixava os olhos naqueles belos lábios vermelhos.
?Por quê? ?Mary insistiu em uma voz que não podia reconhecer como sua.
?Porque quero saber quantos homens duelarei em breve ?afirmou antes de agarrar com força os pulsos e estendê-los para ambos os lados, fazendo com que ela caísse de bruços sobre ele. Com tão bom acerto que aquela preciosa boca impactou sobre a sua.
Antes que Mary tivesse tempo suficiente para reagir, Philips soltou os pulsos. Ele colocou uma mão atrás da nuca e a outra nas costas dela, imobilizando-a. Seus maravilhosos olhos azuis a observavam incrédulo e parecia que saltariam de suas orbitas. Ele hesitou. Por um segundo, duvidou da decisão que havia tomado, mas imediatamente a apagou da sua cabeça. A amava, desejava, precisava e queria que ela fosse... sua. Lentamente, ele pressionou seus lábios nos dela, pedindo-lhe para separá-los, mas Mary não entendeu bem o propósito que se havia definido. Ninguém a beijou com paixão? Mary foi sincera? Que Deus se compadecesse de sua alma perdida porque iria desfrutar muito ensinando-lhe o que significava a palavra prazer!
Atordoada não era a palavra que a definia exatamente. Nem mesmo outra poderia descrevê-la perfeitamente! Sua boca pressionava a dele, notava o calor do ar que fazia ao respirar tocar suas bochechas e percebia, com incrível precisão, como os batimentos de seu coração e os do lorde palpitavam juntos. Tentou se separar quando suas mãos ficaram livres, mas não conseguiu se mexer. Aquele perverso colocou uma de suas grandes mãos na nuca e a outra nas costas, impedindo-a de fazer qualquer movimento para se distanciar. Em pânico, ela abriu os olhos e tentou gritar, no entanto, algo aconteceu que a deixou tão confusa que a silenciou. Esse algo tinha um nome: língua. A ponta desse órgão muscular masculino tocou seus lábios, incentivando-a a separá-los. O que se propunha? O que devia fazer? Poderia considerar esse momento como um teste médico? Oh sim! Claro! E o adicionaria a qualquer manual sobre as interações sexuais entre um homem e uma mulher! Apertou os lábios com força, certificando-se de não deixar a língua ousada e descarada passar.
No entanto, essa ideia firme foi suprimida de sua mente quando as pontas dos dedos, colocadas em seu pescoço, começaram a acariciá-la lentamente. Encantada por essas carícias suaves, seu corpo relaxou e mergulhou em um improvável estado de bem-estar. Era consciente de como seus pelos se arrepiavam, como o calor nascido em seu sexo aumentava e como todo o seu ser ansiava por algo que ela nunca havia provado. Pela primeira vez, ela estava em um estado de fluidez e despreocupação, como se aquele homem a mantivesse protegida, segura e não existissem problemas a enfrentar. Havia apenas eles... dois. Lorde Giesler aproveitou esse momento de embriaguez erótico para invadir o interior da boca dela. Aquela língua masculina a possuiu, a acariciou com anseio, com desejo e com tanta paixão que finalmente fechou os olhos e se deixou levar. Nunca imaginou que uma coisa tão ridícula pudesse provocar algo tão grandioso! Agora entendia a razão pela qual Anne havia sucumbido com tanta facilidade. Se um homem a tivesse beijado dessa maneira, nada e ninguém a impediria de acabar consumindo a paixão iniciada. De repente, ouviu um rugido brotar da garganta masculina. Quando tentou se concentrar no motivo pelo qual fez esse som, outro saiu ainda mais alto. Se lorde Giesler tivesse sido o chefe de uma tribo, esse som poderia defini-lo como um chamado de posse, territorialidade, orgulho e glória, tornando-a sua única companheira de vida. Mas... Isso devia ser uma tolice, certo? Ele não podia reivindicá-la como sua, não havia nada científico que pudesse explicar tal suposição.
No entanto, mesmo que tudo fosse imaginário, era bonito deixar seu corpo relaxar e ser enganado acreditando que sua casa estava nos braços daquele homem. Um lar fictício, é claro, pois ela nunca pensou em morar naquele corpo masculino. Com coragem e vontade de experimentar, ela imitou os movimentos da pecaminosa língua viril até que ambas se encontraram. O sabor do café, que havia tomado antes de subir, se expandiu pelas bocas. Era como se estivesse tomando novamente um gole daquele líquido delicioso adoçado com o sabor rico dele. Foi nesse momento que admitiu com resignação que nunca mais tomaria um café tão gostoso e excitante. Os beijos eram sempre assim? Davam tanto prazer as duas pessoas? Porque não queria parar, era mais, doía ter que fazê-lo, mas a necessidade de respirar se tornou inegável. Quando abriu os olhos, notou que as pupilas de lorde Giesler haviam se dilatado e que suas íris estavam escuras, expressando um sentimento muito diferente da indiferença...
No momento em que sua mente começou a enumerar as possíveis razões pelas quais ele a olhava com tanto ardor, ele pegou seu rosto com as duas mãos e aproximou-o o suficiente para notar novamente o calor da respiração e a suavidade dos seus lábios.
?Vou te dar a lua, Mary ?ele declarou antes de beijá-la novamente e repetir um beijo atrevido, ousado, indecente e maravilhoso.
Mas tudo o que é belo não dura para sempre...
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou Shals batendo à porta com insistência.
?Não! ?Ele respondeu.
?Sim! ?Ela disse, se afastando rapidamente do seu lado.
Capítulo X
Ele devia lealdade ao seu senhor...
Desde que o contratou, catorze anos atrás, ele nunca o deixou indefeso e nessa ocasião também não o faria. Ele saiu da biblioteca, onde havia se escondido os últimos dez minutos para evitar encontrar a Sra. Reform e, depois de confirmar que não havia ninguém, caminhou rapidamente pelo corredor. Ele carregava a maleta da senhorita Moore na mão direita, essa era a desculpa que daria quando aparecesse no quarto. Depois de confirmar o estado de seu senhor, a agonia que estava sofrendo desde que a jovem subiu as escadas, pronta para colocar lorde Giesler em seu lugar, desapareceu. Com a agilidade de um ladrão habilidoso e um sorriso de satisfação que cruzava seu velho rosto, Shals começou a subir as escadas, fazendo o menor ruído possível. No entanto, seus olhos se arregalaram quando ouviu alguém bater na porta. Ele esperou o tempo suficiente, plantado lá, para confirmar que, exceto ele, ninguém mais ouvira as batidas insistentes da aldrava na madeira. Ele bufou, pois seu dever como mordomo principal o acusava de não cumprir a tarefa que lhe fora confiada. Pôs a maleta no degrau e recuou tudo o que lhe custara tanto. Parou em frente à entrada, esticou o colete de seu traje e mostrando a severidade própria do homem de confiança do lorde, abriu.
?Shals! Ainda bem que me ouviu! Estou há mais de cinco minutos batendo na porta! ?Martin disse enquanto tirava o casaco para oferecer a ele.
?Sinto muito, senhor, mas hoje temos a casa um tanto agitada ?comentou como um pedido de desculpas.
?Philip tem piorado? ?Ele perguntou inquieto olhando para o andar de cima enquanto tirava as luvas.
?Não, para alívio de todos nós, nosso senhor está muito bem ?explicou depois de pendurar o casaco de Martin no cabide e colocar as luvas na gaveta da cômoda da entrada. ?A causa da agitação se deve a...
?Martín! ?Valeria gritou quando apareceu no corredor. ?Que alegria vê-lo novamente! Desde quando está em Londres? Por que não veio me visitar? Esqueceu que tem seis sobrinhos esperando a presença de seu tio favorito? ?Acrescentou antes de envolvê-lo em um forte abraço maternal.
?Cheguei há alguns dias, peço desculpas por não ter aparecido em sua casa neste momento, mas tinha um assunto importante para resolver e não podia atrasá-lo ?desculpou-se, esboçando o sorriso mais terno e mais doce que um irmão que amava sua irmã poderia mostrar.
?Que assunto? ?Valeria entrelaçou seu braço esquerdo no direito de Martin.
?Falaremos depois disso, se não se importar. Eu gostaria muito que Philip estivesse presente quando oficializasse.
?Vai casar? ?Perguntou erguendo as sobrancelhas. ?Você conheceu uma mulher?
?Realmente pensa que sou incapaz de tirar os olhos dos livros? ?Perguntou com aversão.
?Eu não disse isso! Sei que, quando fizer isso, levantar seus olhos bonitos dos livros, encontrará a mulher que espera e nesse dia...
Shals aproveitou a distração dos irmãos para subir as escadas novamente. Teria que acabar com a agonia que sofria por não saber o que estava acontecendo no quarto do lorde. Ele precisava confirmar que a Srta. Moore não tinha gritado com ele, cuspido ou... matado. Daí que permanecessem em silêncio absoluto. Ele pegou a maleta e subiu os últimos degraus. Caminhou pelo corredor o mais rápido que seus pés o permitiam e, quando alcançou a porta do quarto do senhor que estava aberta, ficou surpreso ao ver a imagem que era oferecida lá dentro. Eles não eram capazes de ver a imagem que mostravam, pois ambos tinham os olhos fechados. Mas ele foi a única testemunha de um milagre. Em silêncio observou-os com tanto afeto que sentiu como seu coração lhe dava uma reviravolta. Seu senhor, o homem que negava o amor, dizendo que só podia trazer tragédias desastrosas ao mundo, aninhava o rosto da senhorita Moore em suas grandes mãos, enquanto as dela repousavam pacificamente em seu peito nu, como era habitual desde que adoeceu. A janela permanecia aberta, talvez Phiona a abriu ao amanhecer, para que o senhor admirasse o belo dia. No entanto, a beleza de fora era mínima se comparado a imagem dos dois. A brisa movia levemente as cortinas, a luz do sol atingia os dois, como se todos aqueles elementos naturais quisessem glorificar um momento tão bonito.
?Vou te dar a lua, Mary ?Lorde Giesler disse à mulher antes de beijá-la.
Ele poderia ter se virado e desaparecido sem ser visto ou ouvido, mas a voz da Sra. Reform indicava que os irmãos de seu senhor estavam indo visitá-lo. Deu um passo à frente, pegou na maçaneta com a ponta dos dedos e fechou a porta até ficar apenas uma pequena abertura. Essa opção seria mais adequada que apresentar-se sem avisar e fazer com que a senhorita Moore se encontrasse em um grande apuro. Seus lábios permaneceriam selados, embora jamais esqueceria o brilho que seu amo mostrou nos olhos ao olhá-la, nem a declaração dessas palavras tão firmes e seguras. Tinha se apaixonado. Finalmente! E de uma mulher que todo o serviço adorava, apesar de ter um comportamento tão áspero quanto a lixa de um ferreiro. Ele olhou para trás para garantir que a visita prematura chegasse ao patamar no primeiro andar. Que lorde Giesler o perdoasse, mas era mais sensato pôr um fim àquele momento romântico do que serem encontrados daquela maneira. Ele agarrou a maleta com força, colocou os nós dos dedos da outra mão na porta e bateu quase sem movê-la do lugar.
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou.
?Não! ?Ele gritou.
?Sim! ?Disse ela.
?Desculpe pela interrupção, excelência ?Shals comentou entrando rapidamente no quarto ?mas presumi que a senhorita Moore precisasse de sua maleta.
?Obrigada, Shals ?a jovem respondeu, depois de alisar as rugas do vestido com as mãos, ela sorriu e estendeu a palma da mão para pegar a maleta. ?Você é muito atencioso ?acrescentou se virando.
Colocou-a sobre a mesa pequena que estava ao seu lado e suspirou. Suas bochechas ainda estavam ardendo, seu coração ainda estava acelerado e suas mãos tremiam. Como foi capaz de enredar os dedos na alça da maleta se não podia controlá-los? Olhou para fora e uma brisa leve acalmou aquele estado de excitação que havia liberado segundos antes. Não podia acreditar no que tinha feito. Não apenas se deixou levar por um beijo, mas também ansiava por mais. Odiou o momento em que escolheu usar um vestido de mangas compridas, porque seus antebraços não podiam tocar o peito masculino, amaldiçoou o momento em que a costureira indicou que o decote era apropriado, porque queria descobrir se lorde Giesler gostaria de ver seu peito, como ela gostava de observar o dele, e estava com raiva de si mesma por não ser capaz de parar aquela situação.
?Milorde, desejo anunciar que seu irmão decidiu visitá-lo esta manhã ?prosseguiu falando o mordomo, que se colocou em frente aos pés da cama. ?E que aparecerá com a senhora Reform em breve...
?De fato, Martin, —disse Valeria, ao entrar no quarto. —A Srta. Moore decidiu visitar nosso irmão e confirmar que ele evolui satisfatoriamente.
Naquele momento, Mary queria pular pela janela e correr sem olhar para trás até chegar em casa, mas tudo o que fez foi respirar fundo, dirigir-se às pessoas que entravam no quarto e mostrar seu melhor sorriso.
?Mary, tenho a grande honra de apresentá-la ao nosso irmão mais novo, Martin Giesler.
Antes que ela pudesse dar um passo em direção a eles, o jovem, que se parecia muito com lorde Giesler, exceto que usava óculos e sua compleição era menos robusta, avançou em direção a ela, pegou uma das mãos e beijou os nós dos dedos.
?Cara Srta. Moore, é um prazer finalmente conhecê-la. Quero agradecer pessoalmente pelo fato de ter salvado a vida de meu irmão. ?Disse num tom gentil.
Com essas palavras muito cordiais e afetuosas, Mary corou, piscou várias vezes e deu um sorriso coquete. Enquanto isso, Philip estendeu a mão direita até encontrar o livro, que tentava ler até decidir se levantar, e pensou em jogá-lo em Martin. Mas ele se conteve. Seu irmão não era um rival para ele, certo?
?A honra e o prazer são meus ?ela respondeu com alguma timidez. Deu um passo atrás para manter distância e agarrou suas mãos.
?Porque motivo? ?Ele retrucou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?É uma grande satisfação para mim que um homem com seu talento me parabenize.
?Com meu talento? ?Martin insistiu, erguendo a sobrancelha direita.
?Sua fama é notória em toda a Inglaterra. Não há ninguém neste país que não tenha lido e admirado sua última publicação. Devo confessar que fiquei surpresa ao ler sua definição e cálculos em uma interseção variável em dois planos curvos. Foi esplêndido, se me permite o elogio, lord...
?Não sou lorde, apenas Martin Giesler ?ele a corrigiu rapidamente. ?É ele quem ostentará, se decidir fazê-lo algum dia ?concluiu?o título de Freiher Von Giesler. No entanto, lhe peço encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal, não acha? ?E sorriu para ela.
?Sendo assim, pode me chamar de Mary, e obrigada pelo elogio. Fico lisonjeada ao descobrir que há um homem neste mundo que não se intimida com o intelecto de uma mulher ?respondeu, acrescentando às suas palavras um sorriso fraco.
?Informava ao meu irmão ?Valeria interveio, que suportou o máximo que pôde a risada que queria explodir quando viu como Philip se contorcia na cama ?que aceitou o convite para almoçar conosco.
?Almoçar? ?Philip se intrometeu. ?Não seria educado ou apropriado, pois o anfitrião desta casa, que paga seus bons funcionários e a comida que colocam na mesa, não pode se comportar como tal devido a sua doença e indisponibilidade ?salientou.
?Oh, Philip! ?Exclamou Valeria com um sorriso fingido e movendo a mão direita com desdém. ?Sempre tão brincalhão! Não se preocupe Mary, não há nenhum problema. Além disso, desfrutaremos da agradável companhia de Martin. Sabe que foi o rapaz mais jovem que contrataram na Universidade? ?Enroscou o braço direito no esquerdo da moça e a fez caminhar em direção à porta. ?Nós já sabíamos que ele se tornaria uma pessoa muito importante, porque quando criança ele sempre pensava e raciocinava como um homem adulto. Em vez disso, Philip... Oh, Deus! Não sabe os problemas que tive que suportar por sua culpa! ?Exclamou novamente com aparente pesar. Quando estava a um passo de fazê-la sair do quarto, parou e olhou para ela. ?A propósito, você terminou? Talvez tenhamos interrompido a consulta e não conseguiu finalizá-la...
?Não se preocupe, tinha acabado de verificar quando apareceram. Só tenho que colocar um novo curativo, mas Shals pode fazer isso durante o dia ?garantiu.
Por nada no mundo, ficaria sozinha com ele novamente! Ela gostou do beijo? Sim! Tinha gostado de ver que havia um homem que a desejava? Sim! Mas aí concluía sua história. Não poderia se deixar levar pela emoção que lorde Giesler lhe causava. Era um homem perigoso para ela, demais para ficar sozinho com ele novamente.
?Que conclusão chegou? ?Valeria insistiu, acelerando o ritmo. ?Acha que logo poderá se levantar e deixar essa maldita cama?
?Conseguirá se permanecer deitado pelo tempo recomendado ?Mary alegou antes de sair de lá sem sequer se despedir com um olhar fugaz.
***
Os dois irmãos ficaram olhando para a porta e só se viraram quando Valeria e Mary desapareceram.
?Milorde ?Shals interveio, que permaneceu escondido em um canto do quarto o tempo todo ?com sua permissão, devo confirmar que o almoço está devidamente preparado. ?Deu um passo para a cama, fez uma rápida reverência e saiu dali antes que...
?Qual é o problema?! ?Martin gritou quando sentiu uma dor terrível no peito, causada pelo impacto de um livro voador inesperado.
?Qual é o problema? Você dirá... o que acontece com você? ?Explodiu. Apoiou os cotovelos sobre o colchão e acabou por se sentar.
?Não sei a que se refere ?disse agachado para pegar o livro que, após a colisão, tinha caído no chão aberto.
?Peço-lhe encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal ?repetiu as palavras que seu irmão usou como se estivesse mastigando a sola de um sapato.
?Isso? ?Ele retrucou, depois de depositar o livro na lareira. ?É considerado educação e respeito por uma mulher inteligente que, felizmente, salvou a vida de um ente querido.
Ele caminhou parando na frente de Philip e se apoiou com o ombro direito em um dossel de madeira. Poderia deixar escapar uma risada enorme? Porque Deus bem sabia que ele queria fazer isso! Se pegasse o espelho, que estava na cômoda, e o colocasse na frente de seu irmão, descobriria que os demônios realmente existiam. Como prometeu a Valeria, ele ofereceu uma atitude receptiva em relação a Mary, para que Philip reagisse. No entanto, admitiu que estava fascinado ao descobrir que ela havia lido sua última publicação.
?Educação e respeito? Você quase voa como se fosse um querubim em sua direção para beijar a mão dela! Beijar a mão dela! ?Repetiu, percebendo como uma estranha acidez queimava seu estômago.
?Não me disse algo sobre não distinguir entre dois bons seios femininos e duas formas de calcular um mesmo resultado? ?Ele comentou, mesmo sabendo que o inferno dividiria a terra em dois e que o próprio Satanás puxaria sua mão para arrancar sua alma. ?Bem, pela primeira vez na vida, tenho que provar que você está certo. A senhorita... Mary parece ter herdado um busto generoso e firme. Embora seu vestido azul não tivesse um decote muito ousado. Apesar de tudo, acho que quando me aproximei para beijar aquela mão doce e macia, nossos peitos se aproximaram o suficiente para calcular suas medidas. Você me pediu para contemplar também a largura dos quadris de uma mulher? Porque eu acreditava que... ?terminou de falar quando um travesseiro voou, das costas de Philip, para impactar seu rosto, fazendo com que seus óculos fossem atirados no meio do quarto. Como diabos ele estava se movendo com tanta agilidade se ainda estava convalescente?
?Não se aproxime dela! Entendido? ?Berrou. ?Ou juro por Deus que essa conversa será a última que temos pelo resto de nossas vidas.
Martin pegou os óculos do chão, colocou-os e olhou para o irmão. Pela primeira vez, uma ameaça a sua pessoa apareceu em seu rosto. Seria conveniente informá-lo de que Valeria havia planejado sua atuação em relação a Mary? E se decidisse se vingar dos dois? Se havia algo inquebrável em Philip, era sua necessidade dar uma lição às pessoas que o desafiavam. Um exemplo claro disso poderia ser assegurado pelo homem que, quando era adolescente, Philip o chamou de trapaceiro em um jogo de cartas que jogou no antigo clube de seu cunhado. Demorou quase quinze anos para encontrá-lo e, depois desse momento, o cavalheiro não conseguiu levantar a aba do chapéu por dois longos meses. De acordo com a versão de seu irmão, o Sr. Manther colidiu com seu ombro duro no momento em que saiu de White´s e, logicamente, não se afastou rapidamente para evitar um impacto inconveniente e doloroso no olho direito. Então, se não desejava usar um chapéu de abas largas por vários meses, era melhor dizer a verdade.
?Essa farsa foi ideia de Valeria ?finalmente confessou.
?O que significa ... esta farsa? ?perguntou estreitando os olhos.
?O de flertar com Mary ?esclareceu.
?Maldita mente perversa! ?Philip exclamou com raiva.
?Não tinha pensado falar com a senhorita Moore, já sabe que não sou muito versado em manter uma conversa agradável com as mulheres, mas Valeria, depois de encontrá-la no corredor, não parou de falar e falar... Me disse que havia deixado vocês algum tempo sozinhos e que assim lhe devia um grande favor. Que precisava da minha ajuda para descobrir se o seu interesse por essa moça era verdadeiro. Imagino que colocou suas esperanças nela para aceitar maldita baronia.
?Típico dela... ?Philip murmurou.
?Juro que minha presença tinha outro objetivo. Queria pedir conselhos sobre um assunto que tenho nas mãos ?Ele disse sem tirar os olhos do irmão. Relaxada a tensão entre ambos, Martin adotou uma postura mais calma: cruzou os braços na frente do peito e os pés à altura dos tornozelos.
?O que você precisa? ?Philip estalou, olhando para ele sem piscar.
A vida poderia dar algo doce e acido ao mesmo tempo? Porque é assim que se sentia. Ela passou de ter nos lábios a doce boca de Mary para a acidez de lutar com seu irmão para consegui-la. Agora, apesar de saber que tudo tinha sido um truque de Valeria, ainda não conseguia sentir novamente a ansiada doçura.
?Um em troca do outro, como quando éramos crianças? ?Observou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?Um em troca de outro ?admitiu enquanto seu corpo relaxava consideravelmente.
?Bom. Eu decidi estabelecer minha nova residência aqui em Londres ?Martin começou a dizer enquanto se aventurava a sentar ao lado de seu irmão. ?Conversei com Lawford Jr. e ele me disse que poderia investir na propriedade dos Bohanm. Como me informou, é um casal bastante antigo e deseja partir à sua casa de campo para desfrutar de um pouco de paz no tempo que lhe resta de vida.
?Sabe quais vizinhos terá? ?Philip estalou, franzindo a testa e olhando para ele... de novo.
?Ainda não vi, então...
?Os Moore! ?Explodiu de novo.
?De verdade? ?Ele perguntou, arregalando os olhos. ?Inferno de coincidência!
?Você não me disse que agiu de acordo com o plano de Valeria? ?Rosnou.
?Juro pela alma dos nossos pais que sim e que não fazia ideia que a família da Mary seria meus novos vizinhos. Só quero um lar tranquilo, onde possa continuar com... ?Ele se levantou, deu as costas para o irmão, caminhou até a varanda e ficou em silêncio.
?Com? ?Philip insistiu.
?Eu deixei o trabalho na Universidade ?ele disse finalmente, sem desviar o olhar do lado de fora.
?O que disse? Por quê? Você ficou louco? Você precisa de mim para isso? Não é capaz de enfrentar a ira de Valeria? Porque ficará com raiva quando descobrir e me culpará de sua decisão ?Philip comentou, mal respirando.
?Não te culpará de nada, porque lhe explicarei que me ofereceram mais uma alternativa... ?«Obrigatório?», pensou Martin. Não, não poderia dizer isso, era vital para o bem-estar da família que ninguém soubesse a verdade.
?Mas? ?Philip insistiu em saber.
?Tranquilo ?Ele respondeu, virando-se para o irmão. ?É verdade que o trabalho que fiz na Universidade foi gratificante, mas mal aproveitei o tempo livre. Anseio por uma casa, anseio por sua companhia, quero me casar, formar uma família e... viver ?lhe garantiu. Embora a verdadeira razão pela qual decidiu se estabelecer não tivesse nada a ver com a vida, mas com a morte, e não de uma pessoa, mas centenas, talvez milhares...
?Quando você pretende realizar seu novo futuro? ?Perguntou intrigado.
?Em uma semana, no máximo ?ele declarou depois de colocar as duas mãos nos bolsos e puxar os painéis frontais da jaqueta azul marinho. —O tempo que leva para Lawford confirmar a compra dessa residência.
?Bem... ?Philip murmurou acariciando uma barba inexistente. ?Embora Valeria fique brava com você por um longo tempo, devo confessar que é a melhor decisão que você tomou até agora. Já era hora de você voltar e decidir procurar uma esposa, que não será Mary, é claro ?Ele apontou examinando o rosto de seu irmão.
?Não será Mary, te garanto isso. ?Sorriu. ?De certa forma, foi responsável por esta decisão. ?Ao ver que seu irmão levantava uma sobrancelha em sinal de pergunta, acrescentou: ?Sofri muito ao pensar que poderia ter morrido. Tenho me perguntado todos estes dias o que teria acontecido se você... ?não terminou a frase, doía muito fazê-lo. ?Tinha pensado oferecer minha carta de demissão quando terminasse o curso, mas a enviei no mesmo dia que Pierre me fez chegar a missiva de Valeria para me informar sobre sua doença. ?Não era bem verdade, ele o escrevera vários meses antes, quando o estrangeiro apareceu em sua antiga casa e lhe disse que tinha menos de seis meses para aceitar a nova posição oferecida a ele. O anúncio da situação de Philip acelerou o processo. ?O tempo é curto e acho que devo aproveitar para viver com as pessoas que amo ?concluiu. Ele voltou para o lado do irmão e sentou-se novamente no canto inferior da cama?. Então, aqui estou eu, esperando um papel para realizar um sonho... ?refletiu. ?Agora é sua vez, irmão. Diga-me que segredo você mantém ?apelou.
?Vou aceitar a maldita baronia ?comentou depois de jogar a cabeça para trás, até tocar na cabeceira de madeira e suspirar.
?De verdade? Tem certeza? Valeria vai chorar de emoção! Está a muitos anos esperando você tomar essa decisão! ?Comentou feliz.
?Mas somente se eu puder me casar com ela ?disse uma vez que os olhos de ambos encontraram.
?Então... você gosta??Discorreu Martin acomodando os pés sobre a cama, como costumavam fazer quando eram crianças.
?Estou apaixonado, Martin. Não sei quando, nem como, nem por que aconteceu, mas concluí que não poderia viver sem ela. ?Ele admitiu, com um sorriso nos lábios.
?Eu tenho que te dizer uma coisa, Philip, ?ele começou a dizer adotando o tom que costumava falar com seus alunos —há um estudo e um termo médico que, até o momento, não foram levados em consideração, mas seria interessante se você o conhecesse.
?Qual? ?Sua voz soou como se estivesse a ponto de defender-se de um ataque repentino.
?O choque de gratidão. O que sofre um paciente que, ao ser salvo de uma morte certa, acredita que se apaixonou por seu salvador e...[7]
?Bobagens! ?Philip o interrompeu. ?Eu me apaixonei por Mary desde o momento em que a vi pela primeira vez. O que aconteceu a seguir apenas confirmou que ela é a única mulher que eu quero ter ao meu lado pelo resto da minha vida ?garantiu a ele.
?E por que vai assumir a baronia quando se casar com ela??Estalou intrigado.
?Porque me pediu a Lua e só poderei dá-la se me converter em um miserável aristocrata ?ele alegou antes de olhar para a maleta que, novamente, havia sido esquecida por sua dona.
Capítulo XI
Como ela poderia se comportar de uma maneira tão irracional? Por que era incapaz de sentir felicidade quando deixou a residência do lorde? Qual seria a razão médica pela qual notava uma forte pressão no peito? Estaria prestes a sofrer um derrame depois do que aconteceu com aquele homem?
Mary não tirou os olhos da janela enquanto voltava para casa acompanhada de Valeria. Tal como ela lhe prometeu, depois do almoço, conduziu-a até à livraria do senhor Slow e deu-lhe as três crônicas médicas que havia reservado. Deveria mostrar felicidade por ter conseguido tanto o que queria nos cinco dias de castigo, mas não foi assim. Pegou as revistas e as colocou dentro da pasta sem parar para ler seus títulos. Reagiu de modo automático, sem emoção. Talvez porque sua cabeça se recusava a se concentrar em outra coisa que não fosse... ele.
Acreditou, inutilmente, que todas as emoções e sensações produzidas durante o beijo desapareceriam uma vez que abandonasse o quarto. Errado. Ela os reviveu tantas vezes que sofreu inúmeras ondas de calor no almoço. Embora a conversa que teve com Martin tenha sido bastante agradável, não foi esplêndida nem maravilhosa. Apenas prestou atenção à conversa exaustiva que lhe ofereceu sobre o algoritmo quantitativo em diferentes equações. No fundo, e isso parecia inédito, ficou entediada. Em algum momento dessa explicação, sua alma deixou seu corpo para sair da sala de jantar, subir as escadas, correr pelo corredor para voltar aos braços de lorde Giesler. Seus lábios sentiram novamente a suavidade daquela boca masculina, provaram aquele maravilhoso sabor de café, sua língua dançou outra dança de carícias e, por isso, prazer e paixão retornaram.
Tal como concluiu, a melhor opção para manter um bem-estar mental e físico era evitar outro encontro com ele e eliminar de sua mente todos aqueles pensamentos tão inapropriados. Nunca se sentira tão atraída ou intimidada por um homem. Jamais deixou em um segundo plano quem era e em quem desejava se converter. No entanto, desde que aquele homem apareceu em sua vida, tudo se tornou um caos, pois não era capaz de se concentrar em nada exceto nele. Quantas vezes, desde que seu pai lhe deu a maleta, se esqueceu dela? Até que lorde Giesler se cruzou em seu caminho, nunca. Se havia noites que até dormia com ela na cama! Isso também tinha mudado, porque durante sua inesperada visita abandonou seu precioso presente em várias ocasiões...
Sem afastar o olhar do lado de fora suspirou fundo. Estava muito decepcionada por não ter sido capaz de controlar nem sua mente e nem seu corpo quando permaneceram juntos. Ela estava sempre atenta às traições que os outros podiam gerar, mas nunca imaginou que ela mesma seria a maior traidora de sua pessoa. Desde que Anne sofreu a angústia da morte de Dick ou do engano que Elizabeth padeceu por Archie, ela se esforçou para lutar contra tudo o que envolvia um relacionamento afetuoso com um homem. Tudo o que podiam obter dela eram conversas e discussões médicas. Qualquer sentimento afetivo estava vetado, negado, fechado. No entanto, lorde Giesler quebrou todas as barreiras que ela havia construído ao longo dos anos. Aquele gigante de olhos azuis e cabelos loiros havia se tornado seu ponto fraco, porque havia encontrado uma maneira de transformá-la, através de seus beijos e carícias, em um ser vulnerável, frágil e comum.
Ela se mexeu desconfortavelmente no assento enquanto apertava as mãos com força, que estavam no colo. Se não estava errada, como começava a ser habitual nela, suas bochechas já mostrariam um leve rubor por causa de suas divagações. Valeria poderia supor que isso se devia à ansiedade que lhe provocava chegar em casa e enfrentar novamente o castigo estabelecido por sua mãe. Mas essa não era a razão pela qual as bochechas pareciam duas pequenas chamas de fogo. A lembrança de como o corpo dela reagiu durante os beijos a alterou e a enfureceu a ponto de elevar a temperatura do corpo em mais de dez graus. Se tocasse o termômetro que guardava na maleta, o mercúrio aumentaria tanto que o pequeno tubo de vidro explodiria em suas mãos. Como se deixou levar tão facilmente? Por que seu cérebro foi incapaz de impedir isso? Não havia lido que a amígdala cerebral ajudava a encontrar a estratégia necessária para resolver uma situação de estresse, medo ou perigo? Então, por que a dela estava inativa quando lorde Giesler se encontrava próximo a ela? Bufou pelo nariz. Ansiava procurar respostas médicas para todas as suas perguntas e tinha uma solução para isso: procuraria o livro que seu pai mantinha na prateleira de seu escritório. Se bem lembrava, o médico e cientista francês Paul Broca explicaria como o sistema límbico funcionava. Talvez descobrisse qual dos seus quatro componentes era responsável pelas respostas emocionais. Depois que encontrasse o problema, lutaria contra ele. E se para isso tivesse que usar aqueles dolorosos choques elétricos, se submeteria sem hesitar um segundo. Ela precisava fazer tudo ao seu alcance para ser a Mary de sempre e se afastar de quem se tornara. Ela nunca foi uma mulher apaixonada, mas uma jovem respeitável que raciocinava, entendia e observava o mundo de uma perspectiva lógica. Não podia se transformar, da noite para o dia, na desavergonhada que havia percebido um certo prazer entre as pernas ou que ansiava que as mãos do homem viajassem cada centímetro de sua pele. De modo algum voltaria a desejar algo que tinha decidido não ter em sua vida. Por esse motivo, lorde Giesler tinha que morrer para ela.
?Mary? ?Valeria perguntou estreitando os olhos.
?Sim? ?Ela respondeu, virando-se para a companheira e desenhando um enorme sorriso. A consequente ao ter a certeza de uma vitória próxima.
?Está bem?
?Sim, muito bem. Por que pergunta? ?Continuou falando sem apagar o leve sorriso dos lábios. Esperava que seu rosto não decidisse traí-la também, porque não queria ser interrogada pelos poucos minutos restantes, para chegar em casa, sobre o motivo de estar tão ausente.
?Percebo você... distante ?Valeria alegou.
?É o meu estado normal ?respondeu enquanto estendia a mão para a alça da maleta e a colocou sobre as pernas. ?Minha cabeça não para de pensar sobre o que esses preciosos artigos médicos registram.
?No que você está pensando agora? ?Estalou com uma mistura de decepção e raiva.
?Claro! ?Mary exclamou, arregalando os olhos para enfatizar sua decepção. ?Estou ansiosa para descobrir que nova doença encontrara na Europa e me informar de como pode ser eliminada. Embora ultimamente não tenham encontrado muitos casos importantes. No mês passado, os quatro artigos que adquiri na livraria do senhor Slow falavam sobre o ensaio realizado por Henry Gray em mil oitocentos e quarenta e oito, intitulado A origem, conexões e distribuição dos nervos do olho humano. Uma descoberta magnífica para um jovem anatomista e cirurgião britânico. Sabia que tinha a minha idade quando foi eleito Membro da Royal Society? Embora ele tenha morrido cedo demais. Uma verdadeira tragédia para a sociedade médica. Mas... Quem iria supor que morreria de varíola aos trinta e cinco anos? Segundo dizem, foi transmitido por um sobrinho que ele cuidava e...
Valeria não soube o que dizer a respeito. Tinha assumido, ao vê-la tão calada e embaraçada, que estava revivendo o tempo que passou a sós com seu irmão, mas se equivocava. A jovem era imune aos encantos de Philip. E era a primeira mulher a fazer isso! Mas não desistiria tão cedo. O que estava em jogo era o baronato e, diante disso, lutaria incansavelmente.
?Você se lembrou do ensaio porque viu algo perigoso nos olhos do meu irmão? ?A interrompeu.
?Como? ?Mary estalou confusa.
?Eu me perguntava se o fato de você evocar esse livro médico tem algo a ver com alguma doença que tenha apreciado nos olhos de Philip ?insistiu.
?Não! Nada disso! ?Disse rapidamente.
?Menos mal! Porque, pelo que entendi, pessoas que têm olhos castanhos podem...
?Castanhos? ?Mary soltou. ?Pelo que me lembro, lorde Giesler tem íris azuis claras, muito parecidas com as minhas ?acrescentou.
Bom. Pelo menos, ela havia notado esse detalhe. Agora tinha que continuar com seu plano.
?Certo. Às vezes me confundo com os de meu marido ?se desculpou. ?Então imagino que seu pensamento não tem nada a ver com outra possível doença, certo?
?Exato! ?Garantiu. ?Seu irmão está muito recuperado e abandonará o quarto se permanecer uns dias mais em repouso. Para ser sincera, continuo fascinada com sua evolução.
?De verdade? ?Valeria continuou. Se ela tivesse que falar sobre doenças para que se concentrasse em Philip, faria isso sem hesitar por um único segundo. ?Observou a ferida? Acha que requer muita atenção? Não posso estar todos os dias em sua casa. Meus filhos e meu marido são um desastre se me ausento mais de três horas de minha casa. Não ficaria surpresa que, ao voltar, tenham queimado algum cômodo.
?Não se preocupes. A ferida está perfeita. Apenas ficará uma fina cicatriz. Tenho certeza de que meu pai, quando o visitar hoje à noite, confirmará minha opinião. Só espero que Shals não demore muito para enfaixá-lo para que não entre sujeira na fissura.
?Não precisa se preocupar com isso. As empregadas limpam o quarto todos os dias ?Valeria disse.
?Não se trata desse tipo de limpeza ?disse antes de soltar uma pequena risada. ?Centenas de bactérias foram descobertas que pululam pelo ambiente e são invisíveis ao olho humano. Uma delas pode entrar na ferida e infectá-la.
?E sabendo disso... como não lhe ocorreu enfaixá-lo você mesma? ?Valeria perguntou perplexa.
?Porque me arrastou para a sala de refeições e durante o almoço não me pareceu correto me ausentar no meio da maravilhosa conversa sobre algoritmos que Martin me ofereceu. Além disso, tenho certeza de que Shals o enfaixou depois de confirmar que a comida estava preparada. Como você me explicou, ele é um mordomo muito eficiente ?explicou com certeza.
?Ainda assim, acho que seria conveniente que voltasse amanhã para confirmar sua suposição ?Valeria expôs uma vez que olhou pela janela e observou os telhados da residência Moore. ?Não gostaria que Philip tivesse uma infecção agora que começa a melhorar.
?Não vejo necessidade de voltar ?manifestou com angústia. ?Mas prometo que, quando falar com meu pai, informarei o que aconteceu para confirmar que o curativo foi feito corretamente.
?Não quer ter certeza de que meu irmão evolui favoravelmente? Negligencia com tanta facilidade as pessoas que atende? ?Insistiu.
A carruagem parou na entrada de sua casa. Devia esperar que o cocheiro abrisse a porta e desdobrasse as escadas de metal, mas se sentia tão ansiosa para sair de lá que, como demorava um segundo a mais, ela mesma o faria.
?Como te disse, meu pai cuidará dele como fez até agora ?comentou com mais ênfase do que deveria. ?Além disso, lembre-se que ainda estou de castigo e quando minha mãe descobrir que me levou para a casa de seu irmão em vez de consultar seus filhos, não poderei sair de casa até que complete os trinta anos.
Graças a Deus o cocheiro já tinha aberto a porta! Com a maleta na mão, baixou o mais rápido que pôde, alisou a saia de seu vestido e se virou para Valeria, que ainda continuava imóvel em seu assento.
?Foi um dia magnífico, Valeria. E eu insisto que você não deve se preocupar com seu irmão, certamente ele voltará em breve à vida que tinha antes de ficar doente.
?Mas... não quer que eu vá com você até a porta? O que sua mãe vai dizer sobre mim? Prometi a ela que cuidaria de você e a levaria até ela sã e salva.
?Despeço-me em seu nome. Além disso, quando lhe explicar que estava com pressa de chegar em casa, caso algum dos seus filhos tenha incendiado um quarto, ela entenderá. Boa tarde e obrigada pelo presente ?disse antes de fechar a porta e caminhar a grandes passos para sua casa, seu santuário, seu lugar protegido e do qual nunca deveria ter saído.
***
?Não se preocupe com elas, mãe. Garanto-lhe que todas estão perfeitamente bem.
A afirmação de Madeleine fez com que Sophia levantasse o olhar do bastidor e o fixasse na mais nova de suas filhas. Permaneceu em silêncio, observando-a sem piscar. Logo, depois de descobrir aquele brilho tão bonito e sincero em seus olhos verdes, sorriu e voltou para a costura.
?Eu sei ?garantiu. ?Mas é inevitável me preocupar com elas.
?Continua inquieta pela visão que tive sobre Anne? Pensa que me equivoquei sobre lorde Bennett? Porque lhe prometo que era ele. Esse homem nos salvará da maldição ?declarou solene. Fechou a caderneta em que anotou a última receita que havia preparado naquela manhã, se levantou lentamente da cadeira e foi até a mãe para se sentar ao seu lado.
?Confio em suas visões, Madeleine. Se acredita que lorde Bennett é o homem destinado a Anne, esperarei que sua profecia seja cumprida.
?Desaparecerá algum dia? ?Perguntou depois de alguns minutos de silêncio que os utilizou para refletir e entrelaçou seus brancos dedos sobre a saia de seu vestido celeste. Um de cetim mate com rendas nos punhos e pescoço. ?Me refiro ao meu dom. Será que irá da mesma maneira que veio, sem avisar?
?O meu está comigo desde que nasci. Embora tenha desaparecido durante a gravidez, porque toda a minha energia se concentrou em criar uma nova vida, mas voltou uma vez que vieram ao mundo.
?Nunca desejou ter nascido normal? ?Insistiu.
?Você não se define assim? ?Sophia retrucou deixando a costura à esquerda e virando-se para a filha.
?Não ?respondeu sem hesitar um único segundo. ?Quem, de todas as pessoas que conhecemos, pode ter sonhos que preveem o que acontecerá a seguir?
?Madeleine... ?sussurrou, segurando as duas mãos para apertá-las entre as suas ?é uma menina muito especial e não deveria se sentir mal por ter nascido com uma habilidade tão magnífica. Esqueceu o que aconteceu naquele dia? O que você fez por aquela criança?
Madeleine fixou seus olhos nas mãos e mordeu ligeiramente o lábio inferior. Não, não havia esquecido. Jamais poderia fazer uma coisa semelhante! Mas foi nesse momento que seu dom tomou força, o controle de sua vida e não encontrava uma forma de pará-lo. Era verdade que naquele dia ela se sentiu feliz e orgulhosa de si mesma. No entanto, nem todas as suas visões eram boas. Muitas noites ela se levantava banhada em suor, tremendo e chorando inconsolavelmente porque a maldade a dominava.
?Essa criatura pode ser salva graças a você, pequena ?Sophia disse suavemente enquanto acariciava os dedos longos da filha com os polegares. ?Sua alma recorreu para a única pessoa que podia ouvi-la... ?acrescentou.
?Eu sei... ?murmurou, abaixando a cabeça.
?E também foi à razão pela qual Anne desistiu de sair naquele momento. Se você não tivesse nos contado o que viu, ela não estaria mais conosco. ?É verdade que nem todos os seus sonhos serão bons, mas você terá que se esforçar para dominá-los. Uma alma como a sua evocará forças boas e más. Sua missão é saber como filtrá-las.
?Como farei algo assim?
?Imagino que levará muito tempo para você conseguir, assim como eu fiz para desenvolver o meu. ?Ao ver que seus olhos se entristeciam, apertou com mais força suas mãos. ?Mas uma Arany sempre consegue o que se propõe, e não nasceu uma cigana que se renda sem antes lutar.
Madeleine suspirou profundamente e agradeceu as palavras reconfortantes de sua mãe com um leve sorriso. Esperava que tivesse razão, que não se confundisse porque realmente necessitava eliminar certos aspectos de seu dom. Rara era a noite que não ficava acordada, sentada sobre a cama, abraçando os joelhos enquanto se perguntava o que aconteceria uma vez que fechasse os olhos. Essa incerteza era a culpa de seu comportamento. Sempre ficava esquiva de todas as pessoas que se aproximavam dela. Não podia tocá-las, nem olhá-las sem descobrir, mediante aqueles malditos sonhos, algo sobre elas. Algumas vezes a faziam feliz, mas a maldade das pessoas não tinha limites. Seu coração começou a bater com força ao lembrar a tarde que o primeiro noivo de Anne lhe tocou uma mão para cumprimentá-la. Nessa noite, os seus sonhos foram sombrios, tenebrosos e insuportáveis. Seu espírito se desprendeu de seu corpo e saiu à rua, mostrando-lhe o que aconteceria depois de várias semanas. Não foi capaz de explicar a sua família, e nem muito menos a Anne, o que tinha visto. Talvez porque nem ela mesma acreditou. Mas Dick morreu... E como consequência de tudo isso se retraiu ainda mais do mundo.
?Mary acabou de chegar ?comentou Sophia se levantando rapidamente do sofá.
Caminhou para a janela e afastou lentamente a cortina para confirmar que, tal como intuiu, a carruagem da senhora Reform tinha parado no jardim. Olhou o relógio que havia sobre a lareira e franziu a testa. Já eram quatro horas da tarde e, embora tenha sido informada de que a filha almoçaria fora, estava com muita raiva de Mary. Ela deveria procurar qualquer desculpa para recusar o convite. Não era apropriado que ficasse fora de casa por tanto tempo com uma pessoa que mal conhecia, mesmo que estivesse muito agradecida por ter salvado a vida de seu irmão. Mas tinha que confiar em sua filha. Tinha certeza de que, se tivesse se encontrado em uma situação comprometedora, teria agido com sensatez. Embora depois de operar lorde Giesler completamente nu, ela não tivesse mais certeza do bom senso de sua filha.
Saiu silenciosamente da sala de costura e foi em direção à porta para recebê-las. Durante o breve trajeto, lembrou o momento em que a Sra. Reform apareceu em sua casa horas antes. Sua mente evocou a expressão serena que ela exibiu ao se apresentar e como mudou depois que a filha chegou. Como não percebeu isso? Por que seu instinto não a alertou para uma coisa dessas? «Morgana!», exclamou mentalmente enquanto avançava em direção à entrada, abrindo a porta ela mesma, para não demorar muito para descobrir se sua intuição era verdadeira.
?Boa tarde, mãe ?lhe disse Mary uma vez que se encontraram de frente.
?E Sra. Reform? ?Perguntou olhando para a carruagem.
?Disse-lhe que não me acompanhasse, que não era necessário que se incomodasse ?explicou enquanto entrava no hall.
?O que você fez? ?Esbravejou Sophia batendo a porta.
?Eu? Nada! Como pode pensar isso de mim? ?Disse com raiva.
?Porque as duas vezes que vi essa mulher nunca me pareceu uma pessoa desrespeitosa ?a mãe insistiu.
?Precisava voltar para casa o mais rápido possível. Como me disse, seus filhos podem atear fogo em qualquer cômodo da casa, se ficarem mais de três horas longe dela. ?Explicou enquanto dava o casaco a Shira, que apareceu sem fazer barulho.
?Mas... você não iria examiná-los? Porque, se bem me lembro, a senhora Reform disse que haviam sofrido um resfriado e queria confirmar que não teria nenhuma consequência ?Sophia disse, arregalando os olhos.
?Não. No final, me livrei da presença daqueles demônios ?Mary declarou antes de levantar as sobrancelhas castanhas várias vezes. Observando as bochechas e os olhos da mãe começarem a ficar avermelhados, ela decidiu que era hora de escapar. No entanto, quando ela deu um passo à frente, em direção às escadas, uma mão a parou.
?Onde você esteve Mary Moore? Por que não é capaz de me olhar na cara? O que esconde de mim? O que aconteceu?
?Ainda continuo de castigo, certo? ?Sophia estreitou os olhos em resposta. ?Bem, apenas lhe direi que curei pessoas, mas não foram filhos da Sra. Reform, mas os servos de lorde Giesler ?confessou com dignidade.
?Desobedeceu minha ordem e retornou naquele lugar? Por quê?
?A verdade? ?Mary soltou.
?Sim.
?Cheguei à conclusão de que Valeria estava muito assustada com o que aconteceu com o irmão e precisava que eu confirmasse que nosso pai está fazendo um bom trabalho.
?E? ?insistiu Sophia.
?E, como sempre, nunca fico satisfeita em fazer apenas uma coisa. Então, terminei por apresentar duas opiniões em vez de uma.
?Quais? ?Sophia percebeu como a filha estava ficando cada vez mais irritada. Até agora, nunca havia chegado em casa depois de visitar um paciente com tanta irascibilidade. O habitual era que estivesse excessivamente emocionada. Mas tinha que lembrar que o homem doente que visitou era lorde Giesler, o motivo pelo qual estava de castigo.
?A primeira foi que, de fato, a cura desse presunçoso está sendo espetacular e que nosso pai é o melhor no mundo. A segunda... ?Ela respirou fundo e, pela primeira vez em sua vida, olhou para a mãe com raiva, como se ela fosse a única culpada por fazê-la sofrer todas as emoções e sensações que nasceram nela quando foi beijada por lorde Giesler. ?Deve se sentir muito feliz em entender que sempre esteve certa sobre mim...
?Eu? Razão sobre você? Em quê? ?Sophia disse com uma mistura de surpresa e perplexidade.
?Que, embora nunca quis reconhecê-lo, hoje entendeu que por suas veias também corre sangue Arany.
A resposta saiu da boca de Madeleine. Sophia observou Mary dar-lhe um olhar furioso. Mas a menininha não se intimidou com essa ameaça silenciosa. Exibiu um sorriso enorme antes de colocar as mãos atrás das costas, girar nos calcanhares e seguir em direção à cozinha, esticando as pernas excessivamente.
?Se sente muito orgulhosa, certo? ?Mary soltou cerrando os dentes.
?Filha, por favor me diga o que aconteceu ?Sophia pediu, estendendo a mão para Mary, para que a aceitasse e poder lhe transmitir desse modo um pouco de paz.
?Posso resumir em algumas frases: nunca mais sairei de casa, nunca mais verei lorde Giesler e nunca deixarei o sangue de Arany tomar conta de mim ?hesitou antes de agarrar a alça da maleta e subir as escadas o mais rápido que podia.
Capítulo XII
Ela ficou trancada na biblioteca por horas tentando estudar o novo ensaio médico que havia adquirido, mas não conseguiu ler nem duas frases seguidas. A maldita voz alegre insistia em interrompê-la toda vez que começava a leitura. Resignada por não conseguir alcançar o que se propôs, ela fechou o livro e acariciou a longa trança do cabelo com as duas mãos enquanto contemplava as escassas brasas. Depois do que aconteceu com lorde Giesler, sua mãe, depois de considerar que os tubos de metal eram muito perigosos em suas mãos, proibiu Shira de usá-los nela e insistiu que fosse amarrado com um laço azul inofensivo. Embora, de acordo com Josephine, fosse a arma mais eficaz para estrangular qualquer malfeitor. Mary sorriu levemente ao se lembrar da manhã em que jogou seus tubos no lorde Giesler como se fossem projéteis. Mas aquele leve sorriso de diversão desapareceu quando ela também se lembrou de ter encontrado um deles guardado em uma gaveta da cômoda do lorde. Por que o escondia como se fosse um tesouro? Estaria esperando o momento para devolvê-lo? Com que finalidade? Que plano ele tinha em suas mãos? Mary se recostou no sofá e suspirou. Não tinha respostas para suas perguntas. Na verdade, era a primeira vez que não as encontrava. Seu mundo, baseado em executar uma rotina severa para facilitar o seu cérebro a admissão de novos conceitos médicos, mergulhou em um profundo caos desde que aquele homem irrompeu em sua vida. Nem se reconhecia quando se olhava no espelho! Não só seus olhos brilhavam de uma maneira estranha, mas até sua pele se contraiu tanto que parecia cinco anos mais jovem. Se isso consistia na natureza feminina, em rejuvenescer para seduzir os homens, que lhe durasse cinquenta anos mais...
Ela fechou os olhos, cansada de submetê-los por várias horas a uma luz fraca, e tentou sucumbir ao leve sono que a dominava. Mas foi incapaz de alcançá-lo porque havia a voz novamente, que não deixava de cantarolar uma canção absurda no dialeto Zíngaro sobre a salvação que lhe traria um maldito fogo. Fogo? Onde? E que salvação se referia? O único que precisava era eliminar um titã com cabelos loiros e olhos azuis da cabeça. Mas... como conseguiria uma proeza tão simples? Se ela, com o caráter e a determinação que possuía, não pudesse eliminá-lo de sua mente, como faria com o maldito fogo? O queimaria? Faria lorde Giesler entrar nele até que seu grandioso corpo se transformasse em cinzas? Essa ideia, bastante macabra, a fez sorrir novamente. Exceto em certas reuniões médicas, quando alguma promessa médica jovem se impunha pela força a seus argumentos, seu instinto assassino não aparecia. Ela proporcionava vida, não morte. No entanto, esse homem era o culpado por seu lado criminoso permanecer latente desde que acordava até adormecer.
Desesperada, porque a voz não parava de cantar, ela abriu os olhos e se levantou do sofá. Se não podia ler, pelo menos procuraria a pessoa que a interrompia para calá-la de uma vez por todas. Relutantemente colocou o livro sobre o sofá, amarrou o laço da bata branca e saiu da biblioteca.
Para sua surpresa no corredor, não havia ninguém. No entanto, a voz estava tão perto dela que parecia tê-la ao seu lado. Determinada, ela caminhou devagar até chegar ao pé da escada, olhou para o segundo andar e franziu a testa. Onde estaria? Quem seria? Só tinha duas alternativas possíveis: sua mãe e Madeleine. As duas eram as únicas pessoas na casa que costumavam falar em Romani. Quando colocou o pé no primeiro degrau, ouviu as badaladas do relógio. Eram duas da manhã, tarde demais para a irmãzinha ficar acordada. Normalmente, depois de se retirar para o quarto, permanecia até o amanhecer. No entanto, desde que Josephine partiu, ela ficou bastante inquieta e confusa. Talvez, incapaz de dormir, ela decidiu caminhar até que o cansaço a vencesse.
Encorajada para descobrir se Madeleine era a arquiteta de seu desespero, ela subiu as escadas, atravessou o corredor, ficou em frente à porta do quarto das gêmeas e a abriu muito lentamente. Não, não era ela. A menina se encontrava sobre a cama coberta com o lençol até a cabeça e tão quieta como uma estátua. Com discrição, saiu dali tal como entrou. Como sua primeira opção foi descartada, ainda lhe restava outra: sua mãe. Talvez a mente materna ainda estivesse nervosa após a partida de três de suas filhas. Talvez sua mãe não tenha conseguido adormecer facilmente ou... Sim, essa alternativa também se encaixava. O termo médico para definir a terceira opção era sonambulismo, embora seu pai nunca tenha falado sobre esse tipo de distúrbio na família. No entanto, tudo poderia acontecer com os Arany. Os Moore, felizmente para ela, sabiam controlar até as atividades que realizavam inconscientemente. Admitindo a possibilidade de encontrar sua mãe sonâmbula, ela lembrou o caso de Albert Tirrell, que foi absolvido de assassinato por alegar que estava sonâmbulo quando cometeu o crime. Certamente sua mãe não pensaria em matar ninguém, embora não lhe faltasse vontade. Era mais provável que a mente agitada a levasse à sua época juvenil, quando cantarolava absurdas canções ciganas enquanto lavava a roupa em um rio próximo do povoado.
Do alto da escada, Mary olhou para baixo. Nada. Sophia também não estava lá. Mas incrivelmente a voz, daquela área da casa, era ouvida mais claramente.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e contemplará seu destino. No fogo encontrará o que tanto deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
Fogo? Salvação? Mas por que não parava de uma vez por todas a maldita voz? Que tipo de babá instava a buscar uma fogueira? Isso nunca faria alguém dormir, mas sim incentivá-los a sair de suas camas e investigar os arredores.
Descansou a mão direita no corrimão de madeira enquanto olhava para a porta de entrada. Encontraria sua mãe lá fora? A porta se fecharia quando saiu? Não, não poderia dar essa opção como válida. Se isso tivesse acontecido, Sophia teria acordado rapidamente. Ninguém continuaria dormindo ao ouvir os gritos de uma cigana zangada. Essa reflexão a fez entender que sua mãe não deveria ser a autora dessa música e que, fora de sua casa, havia uma pessoa estranha. Por um momento duvidou sobre descer e resolver o enigma ou voltar para seu quarto. A segunda alternativa era a mais sensata e a teria tomado se a Mary do passado não tivesse desaparecido. No entanto, não era mais a mesma pessoa. Lorde Giesler a transformou completamente. Odiando ainda mais a causa de suas irracionalidades, desceu lentamente, sentindo na planta dos pés descalços a frieza e dureza de cada degrau. A melodia ficou tão forte e poderosa que, no meio da escada, ela não conseguiu mais mudar de ideia. Seu corpo estava preso, enfeitiçado pela voz harmoniosa. Pensando nesse fato irracional, ficou em frente à entrada, estendeu as mãos para as fechaduras e as girou uma a uma.
Quando abriu a porta, fechou os olhos quando sentiu a carícia de uma brisa noturna suave em seu rosto. A bata se moveu para trás, mas o laço impediu que se afastasse dela. Jamais havia sentido tanta paz, tanta tranquilidade. Era como se toda a inquietação que tinha vivido no passado nunca tivesse existido. Levou as mãos ao peito, captando como seu coração batia com lentidão. Continuava sem compreender a si mesma. Qualquer pessoa em sua situação estaria à beira da loucura. No entanto, ela desfrutava de um estado de repouso inverossímil.
«Abra os olhos, estenda suas mãos e aceite o destino que lhe ofereço. Toque nele; abrace-o... Encontre sua salvação...».
Tal como lhe indicaram as frases dessa canção que não parava, Mary abriu os olhos lentamente e ficou imóvel ao descobrir duas coisas: uma enorme fogueira no meio do jardim, que ardia sem a necessidade de lenha, e o maior corvo que tinha visto em sua vida, apoiado no corrimão de mármore. Aquela tranquilidade, aquela calma que notara percorrendo todas as partes de seu ser desapareceram quando viu como aquele imenso pássaro abria suas asas. Assustada com a aversão que sentia por esses tipos de animais, ela recuou, na esperança de entrar na sua casa novamente sem deixar o pássaro irritado. Mas não foi fácil avançar porque a porta, de maneira inexplicável, tinha se fechado. Com as costas apoiadas na madeira, fixou seus olhos de novo no animal. Este escondeu de novo as asas e a olhou. Quando os dois olhos se encontraram, Mary prendeu a respiração enquanto contemplava um fato inédito. Os corvos não tinham olhos negros? Então... por que os daquele animal eram azuis, muito parecidos, se não iguais aos do homem em que não queria pensar?
?Não tem nada melhor para fazer? Vá embora, pássaro miserável! Deixe-me em paz! ?Recriminou, num ato de valentia, o pássaro com a esperança de que se afastasse dela.
No entanto, o corvo não foi embora. Depois de ouvi-la, ele expandiu suas enormes asas novamente e as bateu com avidez. De repente, a brisa suave se tornou um tornado angustiante, elevando todas as folhas secas no chão para o céu. Horrorizada, ela fechou os olhos e colocou as mãos na frente do rosto para não se machucar. No instante em que se preparou para gritar que parasse, a tranquilidade voltou. Muito devagar, o mais lento que pôde, ela abriu os olhos, expulsou todo o ar retido em seus pulmões e afastou os braços. Então observou algo que a deixou paralisada. O maldito pássaro, aquele que queria ver longe dela, voou sobre o fogo desenhando enormes círculos.
?Não! ?Ela gritou enquanto corria em sua direção. Uma coisa era odiar esse tipo de animais e outra muito diferente era lhe desejar a morte. ?Afaste-se! Vai se queimar! —Continuou dizendo até ficar na frente da estranha fogueira.
Como da última vez, o corvo a ignorou e continuou seu voo sobre as chamas. A luz da grande fogueira alcançou a plumagem negra e a fez brilhar como uma estrela. De repente, seu olhar encontrou o do animal novamente. Mary começou a tremer, antecipando a terrível situação que veria em breve. Não podia testemunhar um ato tão horrendo. Por mais que não gostasse de tais pássaros, não seria capaz de viver com a dor de não ter evitado tal catástrofe. Reunindo a pouca força que tinha, levantou as mãos e começou a agitá-las, numa tentativa absurda de assustá-lo. No entanto, o corvo subiu ao céu, como se fosse um foguete, e logo mudou de direção, dirigindo-se para o interior do fogo em um mergulho.
?Não! ?Mary gritou horrorizada.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e você contemplará seu destino. Nas chamas você encontrará tanto o que deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
O animal não parou. Entrou na fogueira e ardeu. O que aconteceu depois deixou Mary muito confusa. Enquanto a voz continuava cantando, enquanto lágrimas de tristeza vagavam por seu rosto, a cor do fogo passou de laranja e vermelho para o branco e azul. Chocada ou perplexa, não conseguia descrever com precisão o estado em que estava. Talvez não houvesse uma palavra capaz de explicar que tipo de emoções e sensações a dominavam naquele momento.
«Não se afaste... Aí está... Sua salvação vem... Toque-o! Toque nele!».
A voz cantante insistia repetidamente. Sem tirar os olhos do fogo, enfeitiçada pela música e enfeitiçada pelo estranho fenômeno que testemunhou, aceitou a ordem e estendeu as mãos para as chamas brancas e azuis. As pontas de seus dedos não sentiram calor ou dor. O oposto. Uma leve cócega os recebeu quando passou por eles. Deu outro passo em direção ao fogo, desejando sentir aquele toque maravilhoso em todo o corpo. Se colocou no centro, no meio daquela fogueira incomum e começou a notar carícias fascinantes em sua pele. Nem a bata nem a camisola a impediram de sentir aquele toque magnífico. Cativada por esse estado de prazer, ela fechou os olhos e se rendeu à suavidade que a percorria. De repente, exatamente quando pensou que poderia morrer de prazer, seus lábios foram atacados e pressionados por uma boca. Ela parou de respirar, porque sua mente a informou sobre quem poderia beijá-la dessa maneira. Essa pressão, essa paixão e o ardor de tomá-la tinham um sobrenome único: Giesler. Tentou abrir os olhos para confirmar as suas suspeitas, mas não fez isso. Desejava continuar a sentir essa boca sobre a sua e que a liberdade que brotava em seu interior aumentasse. Por que lhe era tão agradável estar com ele? Por que não o odiava como se empenhava em fazer? E, por que não se retirava e voltava para casa? Todas as perguntas foram resolvidas com uma única resposta: porque o desejava. Sim, mesmo que lhe parecesse estranho, mesmo que tivesse dificuldade em admitir, ela desejava lorde Giesler. Mas... realmente que ele era sua salvação? A música se referia a esse homem específico? Como podia resgatá-la quem lhe converteu em uma mulher diferente? Até agora, sempre se gabou de ser uma Moore, de não ter em suas veias nem uma só gota de sangue Arany. No entanto, essa forma de reagir era mais própria de sua mãe que de seu pai... Com raiva da sua reflexão, abriu os olhos. A princípio, suas pupilas não lhe ofereceram uma imagem clara do lorde, mas com o passar dos segundos, o rosto ficou tão claro quanto a água de um rio. Assustada, porque seu corpo ardia de desejo de continuar em seus braços, de sentir o contato de seu robusto peito nu e de perceber a força de sua boca sobre a dela, deu um passo para trás e o olhou com estranheza. As chamas continuaram a cercá-lo, sua luz continuou iluminando a silhueta masculina que a tinha tão cativada. Alguma vez pôde imaginar que um homem como ele teria a coragem de admirá-la e desejá-la dessa maneira? Até que ponto devia sentir-se honrada ou apreciada? Devia aceitá-lo sem mais nem menos? E, o que estava vivendo? Sofreria algum transtorno mental? Porque não podia encontrar outra explicação ao que estava vendo e vivendo.
?Mary... vem... ?ele sussurrou com uma voz aveludada. ?Não saia do meu lado, meu amor... ?ele acrescentou, estendendo as mãos para ela.
Mary o observou em silêncio. O que devia fazer? O que desejava fazer? Suspirou fundo, para aplacar seu estado de excitação. Não conseguiu. Seu coração palpitava tão rápido que seu corpo se movia ao compasso daqueles batimentos. Sua pele buscava o contato que ele lhe proporcionava e sua boca ansiava aqueles lábios. Desviou o olhar do homem e o fixou no chão. Era uma alucinação, um sonho que o subconsciente lhe oferecia para entender de uma vez por todas que deveria se render a uma necessidade tão básica quanto o prazer carnal. Talvez o que a música estivesse tentando explicar fosse que ela só poderia ser salva aceitando em sonhos o que não poderia alcançar na vida real. Então... por que ela continuou se reprimindo? Porque construía muros quando tudo o que tinha a fazer era derrubá-los? Levantou seu rosto muito devagar, até que ambos os olhares se cruzaram novamente. Enfeitiçada não era a palavra exata para definir o que sentia por aquele homem. Tampouco era atração, nem desejo. Mas se negava a denominar algo tão imenso com um termo tão simples. Não. Ela não podia apaixonar-se por Lorde Giesler. Jamais o faria! A única coisa que tinha que fazer, era satisfazer essa parte de seu cérebro que a transtornava e que a normalidade retornasse a ela. Uma Moore! Já! Agora, mais do que nunca, seu sangue Arany a convidava a desfrutar do proibido, do imoral, do insano.
?Mary... ?voltou a dizer.
E desta vez não pensou, nem procurou os prós nem os contras da ação que realizaria. Se lançou a seus braços, aceitando com submissão o que aconteceria entre os dois.
?Sou sua! ?Gritou quando lorde Giesler a pegou nos braços.
?Para sempre? ?Perguntou ele aproximando essa boca que adorava a sua.
?Para sempre?Admitiu antes de lhe rodear com seus braços o pescoço e aproximar seus lábios aos do homem.
?Mary! Acorde de uma vez!
A voz de Madeleine e a sacudida que ela a sujeitou lhe fizeram voltar para sua casa, sua cama, seu quarto amado. Depois de abrir os olhos e ver a menininha ao seu lado, parecendo assustada, Mary se sentou e cobriu seu corpo excitado com o lençol.
?O que faz aqui? ?Perguntou com uma mistura de angústia e alívio.
?Tem que admitir que é a única que costuma ficar acordada a estas horas ?disse enquanto se sentava sobre a cama. ?Está bem? Você tem as bochechas vermelhas como as papoulas que Elizabeth cuida no jardim e seu cabelo está... molhado. ?Depois de dizer essas frases, se inclinou para Mary, estendeu a mão direita para a testa e rapidamente a afastou quando sentiu muito calor. ?Está doente! ?Exclamou espantada. ?Quer que chame a mãe? Te trago panos frescos?
?Não! ?Respondeu afastando os lençóis de seu corpo. Pulou da cama, caminhou em direção à janela enquanto aplacava o constrangimento e, uma vez que não conseguia se afastar da pequenina, virou-se para ela. O que poderia dizer a ela? Era certo falar sobre o sonho? Não, era melhor ficar calada. Pelo menos até encontrar uma explicação lógica para o que aconteceu. ?Apenas... Foi apenas um pesadelo ?disse apertando as mãos.
Madeleine ficou em silêncio por alguns segundos, observando a reação da irmã. Era estranho, apesar de Mary já ter se comportado de maneira diferente do resto do mundo. No entanto, algo não se encaixava. Ela nunca mentiu, como estava fazendo nesse momento. Mary era uma das pessoas que falava claramente, embora suas palavras magoassem o ser mais cruel da Terra. Por que agia assim? O que teria visto no sonho para assustá-la tanto? Havia apenas uma coisa que podia assustá-la, algo que ela zombava toda vez que o assunto aparecia: homens.
?Mary... ?começou a dizer enquanto colocava as mãos nos joelhos. ?Nesse pesadelo... viu fogo?
?Não!?Negou rapidamente a segunda das Moore.
?Um corvo??A pequena insistiu.
?Como te ocorre perguntar esse tipo de tolices? ?Respondeu indignada.
?Porque, de acordo com a mãe, quando ela sonhava com nosso pai, ela o viu deixar uma fogueira imensa e foi um corvo que a levou até ele.
?Disparates! ?Exclamou, acariciando seu rosto em desespero. ?Sonhos são produtos irreais. A parte inconsciente do nosso cérebro age quando estamos no estado de sonolência. Sonhos ou alucinações, querida intrometida, são vagas lembranças de acontecimentos que vivemos e nos produziu certa inquietação ou excitação. Da minha parte, tive um pesadelo com lorde Grayson. Como sempre, queria me humilhar em um debate sobre enxertos de pele em cicatrizes infectadas ?declarou categoricamente quando voltou para a cama. ?Então, não vi nenhum corvo ou fogo. Embora, agora que penso nisso... Os cabelos oleosos de Grayson não se parecem com penas molhadas? ?Acrescentou mordaz.
?Bem... lamento. Eu sei que o cavalheiro é um monstro. Papai sempre nos diz a coragem que você mostra quando o enfrenta ?Madeleine declarou sem desviar o olhar da irmã.
?Tolices!?Exclamou fazendo um movimento desdenhoso com a mão esquerda. ?Não é coragem, mas inteligência. Até um mosquito pode superar os debates desse petulante.
?Um mosquito? ?Retrucou Madeleine. ?Não dizem que os corvos são pássaros bastante inteligentes? ?Insistiu no assunto.
?Também comentam que um dia a raça humana aprenderá a respeitar e viver em paz para sempre. Mas não vamos falar sobre futuras falácias. Diga-me, qual foi o motivo da sua insônia? ?Mudou rapidamente a conversa.
?Eu senti Josephine aqui. ?Apontou para o peito. ?Algo aconteceu com ela.
?O que significa algo? ?Perguntou Mary. Não havia estudos científicos sobre isso, mas era verdade que todos falavam sobre a intensa relação que se formava no útero entre gêmeos e gêmeos idênticos. Essa união, essa percepção conjunta, apesar de não ser metodicamente estudada, ofereciam causas e efeitos reais.
?Seu coração ficou louco e fez o meu fazer isso também ?respondeu, subindo na cama para abraçar as pernas. ?Eu acho que ela encontrou o homem que se tornará seu marido. Embora também sinta que o conheceu de uma maneira pouco convencional. Eu percebi sua raiva, mas também um estranho... desejo ?alegou antes de suspirar.
?Mas... não disse que nunca encontraríamos um marido porque fomos submetidas à maldição que Jovenka nos enviou?
?Quebrou ?explicou olhando a camisola. ?Anne conseguiu derrotá-la graças a lorde Bennett. É por isso que, por alguns dias, todas vivemos num constante vaivém de sensações.
?O que quer dizer com isso? ?Perguntou, moendo o travesseiro com mais força do que o necessário.
?Não sentiu nada estranho? Não apreciou certas mudanças em seu corpo?
?Não ?mentiu.
Claro que tinha notado, sentido ou percebido! Mas não tinham nada a ver com maldições, mas com desejos carnais em relação a lorde Giesler. Seu corpo nu era a causa da perturbação mental que ela sofria! Agora entendia por que sua mãe estava com raiva de descobrir o que tinha acontecido. Não queria recriminar o fato de que ela o salvou, mas protegê-la da tentação!
?Pois eu sim ?Madeleine disse antes de jogar a cabeça para trás e suspirar novamente. ?Só espero que nenhuma de nós sofra e que Morgana nos ajude a encontrar o caminho certo.
?No caso hipotético de você estar certa... ?Mary começou a dizer enquanto acariciava o lençol com aparente tranquilidade. ?O que poderia acontecer?
?A visão que lhe contei alguns anos atrás seria cumprida ?Madeleine disse, fixando os olhos no rosto pálido da irmã.
?Entendo... ?Mary sussurrou enquanto tamborilava com as duas mãos o lençol. ?Mas é possível que não se cumpra ?insistiu. ?Lembre-se de que Elizabeth estava determinada a se casar com uma aristocrata e, realmente poderá cumprir seu desejo?
?Todas sabemos a razão pela qual Eli está determinada a alcançar essa classe social ?apontou a menina franzindo a testa. ?Mas, felizmente para ela, se apaixonará por um homem que a tratará como uma rainha.
?Disse a ela? Porque acho que isso pode confortá-la muito... ?disse zombando.
?Você sabe tão bem quanto eu que ela sofreu muito desde que Archie a traiu e essa foi a razão pela qual uma promessa tão absurda foi feita. No entanto, esquecerá o passado quando ele aparecer... ?revelou em tom de mistério.
?E você realmente acha que existe um homem que pode tolerar o comportamento de Josephine? ?Mary respondeu.
?Se existe alguém para você, por que não deveria haver para Josh? ?Respondeu com raiva.
?Certo. Essa tese carece de discussão. Se puder encontrar um homem capaz de suportar meu intelecto, Josh poderá encontrar alguém que possa dormir tranquilo enquanto tira brilho ao cano de sua nova arma. ?E depois dessas palavras, ela soltou uma risada.
?Não acredita em mim, certo??A jovem apontou tristemente. ?Para você, tudo o que posso ver são... visões infantis.
?O melhor que tem a doce fase infantil e inclusive a juvenil é que se pode fazer e dizer tudo o que lhe agrade, pois os mais velhos alegarão que são coisas da idade. No meu caso, por muito que pese aos nossos amados pais, considero que continuo na segunda. Por esse motivo faço e digo o que quero sem parar para pensar nas consequências desse comportamento ?garantiu.
?Mas logo terminará a etapa em que admite viver ?Madeleine disse esboçando um grande sorriso.
?Oh, que horror! Está insinuando que, quando me levantar, serei uma mulher adulta? ?E riu de novo. Quando terminou de rir, inclinou-se para a irmã, estendeu as mãos e colocou-as sobre as de Madeleine. ?Se veio para me divertir, conseguiu ?acrescentou dando tapinhas.
?Como pode ser tão cínica? ?A pequena a repreendeu enquanto se levantava da cama.
?O cinismo é apropriado para viver no mundo real. É lógico que, por sua idade, ainda não o tenha e que sonhe com uma vida cheia de fantasia e amor ?zombou. ?Garanto que adoro o teu positivismo, mas seja realista Madeleine, quem pode casar com uma mulher que antes de tomar banho tem que ter todas as suas armas limpas? Quem aceitará Anne, depois da morte de seus pretendentes? E Elizabeth? Você realmente acha que existe um homem que se renderá a seus pés quando descobrir que possui um coração negro sob sua beleza?
?E eu? Porque... quem vai aceitar uma moça que não pode tocar em ninguém, certo? ?Pulou da cama.
?O seu é um problema psíquico e tem uma solução. Basta usar luvas para...
?Você é uma mulher perversa! ?Madeleine retrucou. ?Tanto quanto foi Jovenka!
?Não fique nervosa... ?tentou acalmá-la. ?Certamente você age apenas para o nosso bem. Mas eu não gostaria que você se decepcionasse quando...
?Três dias! ?Gritou enquanto se dirigia para a porta. ?Em três dias tudo estará resolvido! E, nesse momento, serei eu quem ri, Mary.
?Três dias? Terei que esperar setenta e duas horas para confirmar que estou certa? ?Disse mordaz.
?Você se casará com o homem que viu esta noite em seus sonhos. ?Essa declaração deixou Mary tensa, mas ela tentou não mostrar a surpresa que as palavras haviam produzido. ?Ele lhe dará o que você nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!
?Por todos os livros que li! ?Continuou aparentemente divertida, embora ainda estivesse pasma com a alegação de Madeleine. ?Você acabou de me jogar uma maldição? Já não tivemos o suficiente com Anne?
?Continue assim, Mary. Continue pensando que nada vai mudar, que você é tão poderosa que pode controlar o mundo. Mas você esta errada ?disse enquanto abria a porta. ?Em três dias nossas irmãs voltarão e darão a nossos pais uma grande notícia. Quando isso acontecer... Sua vida cínica desaparecerá para sempre! ?Acrescentou antes de sair do quarto batendo a porta.
Mary não desviou o olhar da porta até que ouviu Madeleine fechar a sua. Era a primeira vez que discutiam. Jamais lhe fez mal, pois assumia que bastante dor lhe causava suportar dia após dia um comportamento tão abstraído e tímido. No entanto, desde que conheceu lorde Giesler, perdeu a cabeça. Não apenas sentia coisas indevidas, imorais e inapropriadas para ela, mas também o cinismo, enfatizado pela irmãzinha, aumentara. Talvez se tratasse de um mecanismo de defesa. Muitas pessoas agiam de maneira estranha para não mostrar ao mundo sua debilidade. Mas ela... Desde quando se tornou uma mulher fraca?
Irritada e decepcionada consigo mesma, afastou o lençol para o lado e caminhou lentamente em direção à janela. Não precisou fechar as cortinas para subir no peitoril da janela. Sua mãe ordenou que Shira as amarrasse nos dois lados para que a luz do dia chegasse ao quarto e a acordasse antes das nove da manhã. Subiu a camisola até as coxas e se sentou sobre o frio parapeito. Abraçou os joelhos e apoiou o queixo neles. Por que agiu assim com Madeleine? O que provocou sua fúria? A resposta surgiu sem a necessidade de esforço: Porque se tivesse razão, se a jovem vidente estivesse certa, o desejo, pelo qual lutou durante tantos anos, desapareceria e, tudo por quê? Por um homem. Esse gênero humano que odiava com todas suas forças porque a humilharam, a ultrajaram e, em mais de uma ocasião, cuspiram perto de seus sapatos para lhe deixar claro que não tinha valor algum, embora os seus conhecimentos fossem superiores aos deles.
Fechou os olhos e suspirou fundo, como se fosse uma anciã a ponto de expirar. Madeleine pensava que ela seria feliz com lorde Giesler? Duvidava. Era certo que a atração sexual entre ambos era ilógica, mas ninguém podia viver décadas junto a uma pessoa baseando-se na paixão. Ela, nos poucos momentos em que pensou em casamento, sonhava em conseguir o que seus pais possuíam: um casamento cheio de amor, respeito, consideração, apoio e acima de tudo confiança. Obviamente, não podia confiar em lorde Giesler, sua reputação como libertino era bastante considerável. Hoje poderia morrer beijando-a, tocando-a ou possuindo-a, mas... e amanhã? Bufou diante da reflexão tão anormal que tinha chegado, voltou para a cama, subiu nos lençóis e se cobriu com eles. Uma vez que notou o leve calor do sono, fechou os olhos e... abriu-os! Como se um dragão tivesse aparecido aos pés da cama, afastou os lençóis, se sentou e olhou para a porta.
?Como diabos soube? Como descobriu que sonhei com o corvo, com o fogo e com o lorde Giesler? ?Esbravejou antes de permanecer nessa posição o resto da noite.
Capítulo XIII
Nunca tinha vivido uma situação tão exasperante com Madeleine. Talvez porque, sendo a caçula das irmãs, o tratamento com ela sempre fora diferente. Nunca houve uma palavra ou um ato malicioso de sua parte, pelo contrário, raro era o dia em que não era obrigada a mimar ou protegê-la devido ao seu comportamento frágil. No entanto, durante os próximos dois dias, a doce e tenra Madeleine se tornou a vilã mais cruel do planeta. Toda vez que tinha a chance de conversar com ela, virava o rosto e levantava o queixo com orgulho. Todos os esforços que fez para suavizar a convivência entre as duas não obtiveram os resultados desejados. Madeleine nunca agiu assim. Era a primeira vez que tirava, de algum lugar de sua timidez, coragem e ousadia tão característica na família.
Se levantou da poltrona e esticou os braços, observando como suas trinta e três vértebras tomaram o lugar certo na coluna vertebral. Depois do chá, e depois de sofrer outra rejeição de Madeleine, decidiu se trancar na biblioteca e deixar o tempo passar antes de causar outra abordagem entre elas. Esperava que, durante aquelas três horas e antes da chegada do pôr do sol, Madeleine tivesse consciência de que havia cometido um erro. É claro que, uma vez que sua antiga relação retornasse, não haveria menção à bendita previsão. Tinha certeza de que o fracasso a humilharia a ponto de agravar seu caráter retraído.
Sob nenhuma circunstância duvidou sobre o que aconteceria quando o prazo indicado por sua irmã expirasse. A parte Moore, tão racional e sensata como sempre, afastou de sua mente qualquer assunto sobre previsões, bruxaria, magia ou feitiços e os manteve em alguma área do cérebro que usava como informação desnecessária. Tudo ao seu redor tinha uma explicação lógica, até a suposta maldição de Anne: isso nada mais era do que a conclusão de um compêndio de circunstâncias infelizes criados pelos dois noivos. Apesar disso, era uma lástima que Anne tivesse que sofrer as consequências de ações que não lhe correspondiam. Mas era assim que a sociedade hipócrita agia. Como não podiam culpar os mortos, porque consideravam falta de moralidade, dirigiam seus olhares e sussurros para os vivos, independentemente da inocência e do impacto sobre eles.
Depois de depositar o livro sobre a mesa à direita, se levantou do sofá e caminhou pela sala. Sentia um formigamento irritante nas pernas por mantê-las na mesma posição por tanto tempo. Muito lentamente, levantou a saia do descarado vestido azul, um que sua mãe comprou como castigo por sua contínua rebeldia, e mexeu os pés e o tornozelo. Felizmente, seu conhecimento profundo do corpo humano a alertou que não estavam machucados, mas contraídos pela falta de atividade. Deixou cair o tecido, cobrindo de novo os sapatos de couro que tinha decidido colocar nesse dia. Faltava apenas uma vassoura, um gorro cônico e um caldeirão para exibir a imagem de uma bruxa da qual todo mundo falava quando encontravam com ela na rua. Essa comparação, e a mistura real de sangue que possuíam as Moore, lhe fez sorrir. No fundo, não estavam mal encaminhadas. Se a premonição de Madeleine tivesse sido cumprida, até ela teria presumido que tinha origens mágicas. Talvez até admitisse que sua capacidade médica se devia, de certa forma, à origem cigana. Mas, felizmente, não era assim. Ela sempre soube que adquirir conhecimento seria a melhor ferramenta para realizar seu sonho: tornar-se uma pessoa tão extraordinária quanto seu pai. Portanto, durante suas leituras, nunca invocou nenhum espírito para ajudá-la a entender melhor os ensaios médicos. Era o suficiente ler e raciocinar. Essa era sua única habilidade e segredo. No entanto, apesar de ninguém mudar de ideia sobre a racionalidade necessária para a compreensão de todos os fatos, ela continuava dando voltas a um assunto. Como Madeleine descobriu os três elementos fundamentais de seu sonho? Embora considerasse a possibilidade de falar enquanto sua irmã tentava despertá-la, não terminava por aceitar essa afirmação como válida. Até o dia em que Anne partiu, esta nunca lhe fez referência a esse hábito inconsciente, e isso que dormia com ela desde que tinha uso da razão. Além disso, não tinha dúvida de que, se tivesse feito isso, teria a censurado assim que abrisse os olhos. Anne era a única das irmãs que não se sentia desvalorizada por sua inteligência e a confrontava sem piedade. Por esse motivo, toda vez que estava errada, havia a mais velha das Moore para lembrá-la de que, apesar de seu grande intelecto, tinha mais defeitos do que virtudes.
?Senhorita Mary! ?Shira exclamou abrindo a porta da biblioteca sem bater. ?Saia! Rápido!
?O que aconteceu? ?Perguntou, virando-se para ela tão rapidamente que suas pernas dobraram por falta de forças.
?Suas irmãs! Suas irmãs voltaram! ?Gritou feliz.
?Como disse? ?Mary retrucou arregalando os olhos.
?O que ouve! Exatamente agora, acaba de chegar uma carruagem com o brasão do visconde de Devon ?continuou eufórica. Vendo que a menina não era capaz de reagir, pois permanecia congelada no lugar e seu rosto empalideceu até adquirir a cor do leite, deu um passo em sua direção. ?Está bem? Já lhe disse mil vezes que não deve gastar tantas horas lendo esses livros. Ficará cega e sua pele desbotará. ?Shira estendeu a mão para Mary, mas ela deu um passo atrás, evitando qualquer contato. ?Sua mãe e Madeleine saíram para recebê-las ?lhe informou antes de se virar e seguir para a porta. ?Irá acompanhá-las ou explicou que decidiu continuar trancada na biblioteca?
?Sairei em breve ?comentou quase sem voz.
?Não faça elas esperarem senhorita Mary, ou temo que sua mãe a castigue novamente sem sair de casa por mais dois anos. ?Avisou antes de caminhar rapidamente para o corredor.
Haviam chegado! Estavam lá! Como era possível que Madeleine soubesse? Angustiada e atordoada, fechou os olhos e contou os dias que passaram desde que suas irmãs se foram. Não, ainda não tinha terminado o prazo que o visconde considerou oportuno para realizar o trabalho. Ainda restavam doze dias para o esperado retorno. Mantendo os olhos fechados, levou as mãos para o rosto e esfregou-o desesperada enquanto perambulava pelo centro da sala. Tinha que encontrar, o mais rápido possível, uma explicação lógica que a salvasse do atordoamento mental que sofria. Mas não encontrava com a rapidez que requeria. A opção de que Madeleine sabia desse fato antes dela não era válida. Nem a menininha saiu para a rua, nem ela saiu de casa, exceto quando Valéria a enganou para levá-la para a residência do irmão. Seria informada sobre o retorno durante a sua ausência? Não. Isso também não era plausível. Sua mãe não conseguia guardar um segredo que pertencia à família. Nada a faria calar, nem expressar a euforia que teria sentido depois de receber a notícia. No entanto, apesar de qualquer concepção surrealista, tinha acontecido. Suas irmãs estavam na entrada exatamente no dia que Madeleine mencionou. Realmente possuiria um dom Zíngaro? E se fosse assim... que lugar a lógica teria no mundo? Se o futuro pudesse ser previsto, deixariam de existir surpresas, os avanços médicos ou as preocupações para descobrir coisas novas. Bastaria procurar pessoas com a habilidade de Madeleine para que respondessem às perguntas que surgissem ao longo dos anos. O mundo se renderia a pensamentos transcendentais, deixaria de lado o real e basearia suas vidas na busca do imaginário, assim como fizeram os grandes pensadores. Refletindo sobre essa opção, tirou as mãos do rosto e arregalou os olhos. As teorias filosóficas seriam verdadeiras? Esses grandes gênios evocariam a verdade? Teriam o mesmo dom que sua irmã e, por esse motivo, viveram e pensaram de maneira tão diferente? Talvez Platão, Sócrates, Aristóteles e até o próprio Emanuel Kant proclamaram suas ideias depois de visualizá-las ou apresentá-las. Desesperada, apertou tanto os punhos que as unhas se cravaram nas palmas das mãos. Não devia refletir sobre o passado, mas sim no futuro. Segundo Madeleine, ela se casaria com lorde Giesler, seria feliz e ele a ajudaria a conseguir tudo o que sempre quis. Isso faria qualquer mulher feliz que, entre seus planos, abrigasse a possibilidade de conseguir um bom casamento. Mas ela nunca considerou uma ideia tão absurda. Apesar da afirmação de sua irmã, sabia que, uma vez que aceitasse o sobrenome Giesler, este a converteria em uma pessoa sem decisão, sem autoridade. Em poucas palavras: a anularia em todos os sentidos. Furiosa, correu para a janela, de onde podia contemplar o lado de fora de sua casa sem ser descoberta. Seu coração parou de bater quando viu que sua mãe abraçava Anne e ambas davam pequenos saltinhos de alegria. Junto a elas, Madeleine fazia o mesmo com Josh, que continuava vestindo roupas mais próprias de homens que de mulheres. Então viu como Elizabeth saía da carruagem. Embora escondesse o rosto com a aba larga do bonito chapéu branco, Mary notou que seus olhos estavam fixos no chão, como se tivesse vergonha de voltar para sua humilde casa. A mãe, ao vê-la, se afastou de Anne e a abraçou. Elizabeth não evitou o abraço, mas manteve os braços estendidos, como se não tivesse forças para abraçá-la. Um comportamento atípico nela porque, embora sempre se considerasse superior as outras por causa de sua beleza exuberante, nunca rejeitou uma carícia ou um abraço materno. Fechou os olhos, deixando para trás a estranha atitude de Elizabeth e se concentrando na questão que a preocupava. Como deveria agir? Como lutaria contra algo que ainda não havia chegado e que não se deseja? Quando obteve a resposta, arregalou os olhos e exibiu o sorriso mais maligno que sua boca pode esboçar em um momento tão exasperado. Ela tinha a solução para o problema. Felizmente para ela, sua mente ainda estava lúcida, apesar do colapso que suportava. O objetivo era muito simples: lutar com unhas e dentes para que a profecia de Madeleine não se cumprisse. Essa era uma das vantagens de conhecer o futuro, que se podia encontrar a maneira mais eficaz de evitá-lo. Satisfeita, feliz e cheia de energia, se virou para a porta e caminhou pela sala, juntando a ponta do pé esquerdo com o calcanhar do lado direito e vice-versa. Se suas irmãs entrassem em casa sem que ela as cumprimentasse corretamente, sua mãe ficaria com tanta raiva que aumentaria o castigo por mais alguns meses. E assim começava o plano para destruir seu futuro. Quanto mais castigos recebesse, menos chances teria de sair de casa e, é claro, as chances de encontrar aquele gigante com olhos claros e cabelos loiros seriam tão reduzidas que os chamaria de nada.
?Mary! ?Anne gritou quando ela entrou na biblioteca. ?Por que não veio nos receber? Estava de novo absorta em outra teoria sobre a radicalização de doenças infecciosas? ?Antes de receber uma resposta, avançou até ela, a abraçou e a fez girar. ?Senti sua falta, rata de biblioteca! ?acrescentou depois de lhe dar dois beijos estalados.
?Certeza? ?Estalou cética.
Enquanto as gêmeas falavam com Elizabeth na galeria, que lhes informou que se retirava ao seu quarto para descansar, Mary observou o rosto de Anne. Tinha um brilho especial nos olhos e, pela primeira vez desde a morte de Dick, irradiava felicidade. Então voltou sua atenção para Madeleine que, depois de esperar que Eli subisse para seu quarto, caminhou com Josh para onde elas estavam. Quando se entreolharam, a bruxinha deu a ela um sorriso tão pérfido que a deixou congelada. Esse gesto expressou tanta diversão e triunfo, que a perplexidade entre as profecias absurdas e o desaparecimento da razão voltou à sua mente.
?Por que não saiu para recebê-las? ?Esbravejou sua mãe, colocando as mãos na cintura. ?Quer ficar trancada pelo resto da vida? Porque eu garanto que é o castigo que você merece.
?Sinto muito, mãe. Fiquei tão surpresa com a chegada de minhas irmãs que fui incapaz de reagir. ?Nesse momento, Madeleine soltou uma sonora gargalhada. ?Mas se acha que devo ser castigada, desta vez não discutirei ?Mary persistiu antes de ser agarrada pelos braços fortes de Josh.
?Oh, mãe! ?Anne interveio, pegando as mãos de Sophia. ?Eu imploro, não a castigue hoje. Tenho que lhe dar ótimas notícias e não gostaria que Mary ficasse triste em um dia tão importante para mim.
«Para o inferno, Anne! ?pensou Mary. ?Não é um bom momento para assumir a postura de irmã solidária e protetora».
?Do que se trata? ?A mãe perguntou curiosa, fazendo desaparecer a raiva que causou a desobediência da segunda de suas filhas. ?Talvez seja por isso que voltaram tão cedo? ?Insistiu, sem afastar os olhos de Anne que tinha se separado dela o suficiente para começar a dar voltas.
?Vai se casar com o Visconde! ?Declarou Josh ao retornar ao lado de sua irmã gêmea. Se apoiou na moldura da porta, adotou uma postura típica masculina e olhou para sua mãe. ?Ele pediu e ela não pôde recusar ?acrescentou.
?De verdade? ?Perguntou a mãe surpresa, colocando as mãos nos ombros de Anne para fazê-la parar. ?Está certa da decisão que tomou?
?Sim ?respondeu, abaixando um pouco o rosto para esconder o rubor. ?Nunca estive tão segura de algo. Logan é o homem que esperei por toda a minha vida e o único que nos salvará da maldição. ?E aí terminou sua explicação. Era responsabilidade de Logan revelar ou não sua origem. Embora sua mãe deveria entender que, se ela o aceitou depois do que aconteceu no passado, o motivo era mais que evidente.
?Acho que já nos livrou dela ?Madeleine admitiu dando um passo à frente.
?Por que diz isso? ?Josh fez a pergunta que, quando a ouviu falar, se afastou do batente da porta, descruzou os braços e as pernas e seguiu a irmã gêmea.
?Pressenti faz alguns dias ?continuou dizendo a mais nova. ?Percebi que a escuridão ao nosso redor desapareceu. Agora só há luz sobre nós.
?Percebeu mais alguma coisa? ?Josh queria saber, e Madeleine se aproximou de por trás e falou entre sussurros.
?Você quer dizer a mudança emocional que sofreu ultimamente? Ou quer me perguntar sobre os sentimentos que teve em relação a um jovem mais severo do que um batalhão de soldados? ?Murmurou, antes de sorrir de orelha a orelha.
?Maldita seja! ?resmungou, revirando os olhos. ?Um dia poderei ter um segredo só para mim?
?Nunca ?Madeleine respondeu antes de se virar para ela e abraçá-la novamente.
?Há algo mais que eu deveria saber? ?Sophia disse, estreitando os olhos ao ver as duas menores sussurrando secretamente.
?Não! ?Josephine negou rapidamente se separando de Madeleine.
?Bem, Josh preciso lhe contar algo sobre o novo membro da família ?Anne interveio zombando.
?Novo membro??soltou a mãe arregalando os olhos. ?A que se refere?
?Se chama Galeón ?Josh respondeu feliz. ?É um dos cavalos que o visconde tem na residência e, devido à conexão que tivemos, me presenteou.
?Um cavalo? ?Mary estalou surpresa. ?E onde diabos pensou em mantê-lo, no seu quarto?
Sophia recuperou a cor do rosto, que empalideceu ao interpretar a afirmação de forma inadequada e respirou calmamente. Nunca considerou a possibilidade de que Josh se comportasse inadequadamente, mas depois de ouvir que a maldição se foi, tudo poderia acontecer...
?De verdade? ?Interveio Madeleine. ?E, como é?
?Ele é muito bom e inteligente ?declarou olhando para Mary. ?Cavalguei sobre ele durante toda a viagem. Não o viu? Amarrei-o em um dos ramos da árvore da entrada. Se quiser, podemos sair para que o conheça.
?Claro! ?A menina exclamou. ?Mal posso esperar para conhecer o novo membro Moore. Além disso, tenho o pressentimento de que esse cavalo te ajudará a conseguir aquilo que tanto sonhou ?lhe assegurou enquanto ambas caminhavam para a saída.
?É outra de suas visões? ?Josh estalou estreitando os olhos.
?Não. Desta vez é apenas um palpite... ?ela alegou misteriosamente enquanto a pegava pelo braço e a levava para fora.
Mas antes das duas saírem, Madeleine virou seu rosto para Mary. Quando ambas se encontraram com o olhar, a jovem separou os lábios para lhe lançar uma mensagem que só ela pôde captar: «Começa sua mudança». Essas três palavras lhe causaram um calafrio tão mortal que tentou apaziguá-lo, concentrando-se na irmã ausente.
?A propósito, onde está Elizabeth??Perguntou virando-se para Anne.
?Sofre uma tremenda dor de cabeça ?respondeu enquanto se sentava. ?Sofre desde sábado à noite. Embora me ofereci para aliviar sua dor, não quis aceitar qualquer ajuda da minha parte. Sinceramente, não é a mesma desde aquele dia ?comentou reflexiva. ?Durante a primeira viagem a Londres, decidiu viajar na segunda carruagem, acompanhada por Howlett, valete de Logan. Pensei que a dor desapareceria, porque o jovem me disse que tinha a solução para isso, mas não foi assim. Na última pousada que paramos para descansar, ficou todo o tempo dentro do veículo e não saiu dali até que teve que entrar no que viemos. Insisti em oferecer-lhe um analgésico, mas não aceitou. Se inclinou na direção da janela, fechou os olhos e não os abriu até que lhe anunciei que havíamos chegado ?explicou Anne com tristeza. Nutria a esperança de que Elizabeth não agisse dessa forma depois da notícia de seu compromisso com Logan. No entanto, nada podia ser dado como certo com ela.
?A viagem lhe provocou isso... ?concordou Sophia após assumir que, pela primeira vez, a inveja podia estar causando a Elizabeth um terrível desapego familiar.
?Se quiser, posso aparecer no seu quarto e descobrir ?declarou Mary colocando-se na frente delas.
?Temo que essa dor não desapareça com nenhum remédio seu ?Anne respondeu enquanto enroscava os dedos na saia do vestido.
?Por que diz isso??A mãe retrucou inquieta.
?Porque acho que não lhe agradou a notícia do meu compromisso. Você sabe que, desde o que aconteceu com Archie, ela insiste em se casar com um aristocrata e talvez o fato de eu ter conseguido sem pretender e sem sonhar...
?Bobagens! ?Mary a interrompeu. ?Elizabeth é uma presunçosa, uma petulante e um pouco estúpida, como os dessa bendita classe social, mas por suas veias e as nossas corre o mesmo sangue. Estou certa de que a dor de cabeça tem uma causa lógica. Não tenho a menor dúvida de que agirá como sempre uma vez que desapareça ?alegou como se fosse uma advogada defendendo seu cliente.
?Mas se você sair agora, não ouvirá o que aconteceu comigo durante esses dias. Não quer saber como Logan me pediu em casamento? ?Anne estalou estreitando os olhos.
?Certamente posso adivinhar a história sem precisar da ajuda de Madeleine... ?Mary disse colocando um dedo no queixo, enquanto batia no chão com a ponta de seu pé direito e fixava os olhos no teto. ?Como não teve que cuidar de sua virtude, porque Dick lhe tirou isso, o seduziu até que caísse aos seus pés. Após vários encontros clandestinos, decidiu que, devido à sua constituição e força, não encontraria outro homem que a satisfizesse na cama tanto quanto ele. Então você usou sua origem cigana para lançar um feitiço. Este agiu imediatamente, fazendo com que o pobre visconde se apaixonasse por você e te pedisse casamento, estou certa? ?Explicou mordaz.
?Mary Moore Arany!?Clamou sua mãe se levantando de um salto. ?Como se atreve a falar com sua irmã de maneira tão descarada e inapropriada? Por que não seleciona tudo o que aparece em sua mente e escolhe a coisa certa a cada momento?
?Vai me castigar? ?Teimou fingindo medo. ?Tenho certeza que mereço por cometer tanta insolência ?insistiu.
?Foi isso mesmo que aconteceu ?Anne interrompeu a conversa entre sua mãe zangada e Mary, esboçando um grande sorriso. Se os anos de experiência com ela não a enganavam, ela tentou executar um plano que implicava a palavra castigo. O que havia acontecido durante sua ausência? Por que agia dessa forma tão pouco racional? O melhor era descobrir antes que Logan aparecesse para pedir formalmente sua mão e se encontrasse no meio de uma grave disputa familiar. ?Embora você esteja errada sobre uma coisa, eu não o seduzi, ele foi quem me cativou e ambos chegamos à conclusão que, devido à nossa afinidade sexual, era conveniente compartilhar o resto de nossas vidas sob o mesmo quarto antes de manter encontros secretos e esporádicos.
Essa resposta deixou Sophia sem palavras, mas elas causaram mais estranheza em Mary. Como poderia falar assim na frente de sua mãe? Sua irmã havia perdido o pouco juízo que tinha? Se, como Madeleine disse, a maldição desapareceu, arrastou a baixa moralidade e bom senso de Anne com ela. Jovenka não teve mais de cem amantes? Bem, depois de ouvi-la, não lhe cabia a menor dúvida que, se o visconde corria a mesma sorte que os dois anteriores pretendentes, Anne superaria a velha cigana.
?Visite Elizabeth e descubra o que acontece com ela ?comentou Sophia uma vez que acalmou o imenso sufoco. ?Em seguida, tranque-se no seu quarto até eu chamá-la para jantar. Preciso conversar com seu pai sobre a atitude que você está adotando desde que operou lorde Giesler. Creio que...
?Operar? ?Anne disse surpresa. ?Lorde Giesler? E continua vivo?
?Sim ?Mary afirmou com orgulho. ?Lorde Giesler está são e salvo graças a minha sábia decisão e talento ?continuou com soberba.
?Tem que me contar tudo! ?Perguntou Anne se levantando da poltrona.
?Fará, mas quando terminar de me contar o que aconteceu durante sua ausência ?Sophia respondeu com autoridade.
?Então, se me desculparem, seria conveniente que visite Elizabeth ?disse Mary dando grandes passos para a porta antes que Anne interviesse de novo e sua mãe mudasse de opinião.
?Não vá muito longe ?Anne avisou quando sua irmã se aproximou da porta. ?Temos uma conversa pendente.
?Certamente não será tão divertida como a tua... ?apontou antes de sair e fechar.
Capítulo XIV
Depois que ouviu Anne começar sua história, ela encostou as costas na porta e suspirou profundamente. Nada, que sua primeira tentativa para que a castigassem saiu como esperava. Como conseguiu isso? Se tivesse falado com Anne dessa maneira descarada, antes que todas pensassem que a bendita maldição terminou, teria tido tal retaliação que nada nem ninguém a teria consolado em anos. No entanto, lá estava ela, ilesa, apesar do seu esforço para se magoar. Olhou para o andar de cima e franziu a testa ao lembrar que Elizabeth não se apresentou na biblioteca para cumprimentá-la. Ainda estava se comportando de maneira estranha. Até o momento, a irmã arrogante sempre agia como uma verdadeira aristocrata, incluindo, aquele comportamento arrogante, a hipocrisia que a classe social mostrava ao cumprimentar mesmo quando não queriam. Mas, por algum motivo, não reagiu como de costume. Não importava se sua cabeça doía, que estava enjoada ou que tinha quebrado um ombro, Elizabeth nunca evitava um encontro em família e menos depois de uma viagem como a que ela acabou de fazer. Quantas vezes saiu para fazer compras e, depois de voltar, aparecia diante dela para lhe contar tudo o que fez sem esquecer um mísero detalhe? Tantas que não se lembrava. No entanto, parecia que a viagem a transformou até o ponto de esquecer um princípio tão básico como era a cordialidade. De repente, a resposta que estava procurando para obter o castigo desejado apareceu. Talvez, se ela a censurasse por esse comportamento inadequado, sua mãe abandonaria a atitude passiva que adotava e retornaria a mulher que, com apenas um olhar, fazia suas filhas tremerem. Só esperava que Eli não agisse com a mesma benevolência que Anne. Realmente não precisava da compaixão de nenhuma de suas irmãs dessa vez.
Sem poder apagar o sorriso que sua boca desenhou ao ter outra alternativa entre as mãos, subiu as escadas de dois em dois. Mal respirou quando correu pelo corredor, nem quando se colocou na frente da porta. Tinha um novo objetivo e devia realizá-lo o quanto antes. Desesperada, agarrou a maçaneta, virou e entrou sem pedir permissão. Mas toda a emoção e felicidade que viveu durante a corrida, desapareceu de repente ao ver que Elizabeth não se encontrava onde ela esperava. O edredom permanecia encolhido aos pés da cama, o lençol jogado para o lado direito e o vestido que sua irmã usava quando chegou, estava no chão, jogado descuidadamente. Esse detalhe deixou Mary bastante confusa. Nunca, desde que se lembrava, Elizabeth havia tratado um vestido assim. Cuidava deles e os mimava como se fossem seus filhos. Às vezes, ela até supervisionava Shira quando os passava e engomava. O que teria acontecido com ela para agir dessa maneira? Seu coração começou a bater rapidamente, alertando-a de que a resposta que teria não seria do seu agrado. Tentou afastar aquele palpite, mais típico de Arany do que do sangue Moore, e se concentrou em tudo aquilo que observava. Não se deixaria levar por especulações absurdas, sua experiência no campo da medicina lhe sugeria que devia analisar tudo aquilo que encontrava para chegar a uma conclusão real.
Caminhou lentamente até a almofada, levantou-a e abriu a boca quando viu que a camisola não estava no lugar. Desde quando Elizabeth saía do quarto sem usar um de seus lindos vestidos ou sem arrumar mil vezes o penteado? Mais preocupada se possível, ela se dirigiu para a penteadeira. Sua irmã tinha uma grande variedade de utensílios para usar e embelezar um penteado, além de quatro chapéus de cores diferentes, expostos com muito cuidado no cabideiro que seu pai colocou em cima do espelho e quatro pincéis de diferentes materiais e formas. No entanto, Mary não prestou atenção aos objetos que prolongavam a harmonia da sala, mas ao que estava quebrado: o chapeuzinho que Elizabeth usava quando voltou. Ele se abaixou devagar e o pegou do chão. O que aconteceu? A ideia que Anne comentou ganhou força e intensidade. Apesar de não querer admiti-lo, todas as provas apontavam para essa opção. Irritada, porque não podia tolerar o ciúme tomando conta de Eli e sua terrível resposta emocional arruinando a pacífica vida familiar, ela deixou o chapéu branco na penteadeira e saiu rapidamente do quarto. Agora sua mãe não teria escolha senão castiga-la, porque os gritos de censura que ela daria a terceira das Moore seriam ouvidos até na própria Alemanha.
Pisando o chão como se quisesse quebrá-lo, percorreu o corredor de forma apressada. Levantou a saia do atrevido vestido e desceu as escadas com tal rapidez, que parecia ter brotado asas nos tornozelos. A situação seria resolvida no momento em que a encontrasse, e se tivesse que procurar em todos os cantos de sua casa, ela faria.
Mas não a encontrou... Elizabeth não estava dentro de casa.
Depois de percorrer cada esconderijo, por pouco mais de meia hora, não encontrou sinal da moça. Só havia um lugar para procurá-la: a estufa. Mary passou pela porta da biblioteca e ouviu como Anne continuava contando sua linda história de amor com o visconde, enquanto sua mãe se mantinha em silêncio. Nenhuma das duas suspeitava que a terceira das irmãs houvesse desaparecido. Tinham certeza que estava em seu quarto, descansando e sofrendo uma terrível dor de cabeça. Por alguns segundos, pensou em alertá-las sobre o problema, mas depois descartou essa opção. Se queria ser castigada, teria que reprovar o comportamento infantil da irmã. Depois de bufar, porque não gostava de ocupar o papel de mãe e muito menos quando procurava uma reprimenda, foi até a porta de saída. Uma vez que a abriu, foi incapaz de afastar o olhar da imagem que se produzia do lado de fora.
Madeleine estava no meio do jardim, aplaudindo a atitude de Josh. A gêmea cavalgava ao redor dela, dirigindo o animal com temperança e segurança, como um autêntico soldado. Mantinha as costas retas, enquanto seu corpo subia e descia ao ritmo do trote. Mary fixou os olhos no rosto da jovem e contemplou um orgulho e uma satisfação que invejou por alguns segundos. Então assistiu o movimento compassado de sua trança. O cabelo branco que Josh tanto detestava a fazia tão bonita, que qualquer homem ficaria prostrado a seus pés. Não entendia como ela ainda se chamava a irmã mais feia quando na verdade era uma jovem muito bonita. Por que eram obrigadas a pensar que só alcançariam uma beleza real e feminina se possuíssem os traços que ditavam os cânones sociais? Josh, apesar de sua contínua negação, era preciosa não só por sua diferença física, mas também por seu caráter. E inclusive esse comportamento selvagem que apresentava diariamente engrandecia esse esplendor feminino.
Admiração. Esse sentimento brotou em Mary ao contemplar a majestosa habilidade de Josh que, como acontecia a ela no campo da medicina, era difícil de superar. Não importava que todo mundo alegasse que seu dom era mais próprio de um homem que o de uma mulher, ela o possuía e exibia com muita dignidade. Mary suspirou fundo, refletindo sobre o futuro da jovem. Qual seria o seu destino? Se ela admitisse que a maldição existia, o que ainda não fez, confiaria que encontraria um marido capaz de aceitar seu comportamento estranho, mas ela sabia que isso não seria possível. Nenhum homem, dos que tinha conhecido até o momento, suportaria que sua esposa fosse mais preparada em temas masculinos que ele.
Deu um passo em frente, sem poder desviar o olhar dessa união entre humano e animal. Nunca se referiu a uma atividade tão branda para ela como expectadora, mas foi assim no fim. Majestade, beleza, divindade ou qualquer palavra que procurasse para defini-la não alcançaria a realidade. Josephine era, sem dúvida, uma amazona, uma guerreira, uma deusa a cavalo e onde ambos expressavam, num ato tão simples quanto correr, uma cumplicidade tão extraordinária que qualquer cavaleiro enlouqueceria para alcançar. No entanto, a magia da situação celestial desapareceu quando Mary percebeu como os quatro cascos do animal se cravavam repetidamente na grama, aquela que seus pais tão bem cuidavam.
?Mas como te ocorreu cavalgar por nosso jardim! ?Gritou para Josephine caminhando em sua direção. ?Não se lembra do esforço que nossos pais fizeram para mantê-lo desta forma? Demoraram anos para mantê-lo assim!
Josh, ao ouvi-la, moveu as rédeas de Galeão para que este se dirigisse para a irmã berrante. Uma vez que se colocou diante dela, e a observou tão pequenina e assustada, um sorriso maléfico se desenhou em seu rosto.
?Afasta agora mesmo esse perisodáctilo do meu lado! ?Lhe pediu enquanto andava para trás. Só parou quando suas costas tocaram o grosso muro de pedra que dividia o jardim da casa.
?Peri... o quê? ?Josh perguntou, descansando os antebraços na crina do cavalo. ?Se chama Galeón.
?Perisodáctilo ?Mary repetiu sem diminuir a raiva ou o medo que sentia na presença do grande animal, que a olhava com seus enormes olhos castanhos. ?Assim se denomina os mamíferos placentários. Aqueles que possuem em suas extremidades um número ímpar de dedos. Como pode ver, seu novo amigo tem um em cada perna e este se denomina casco.
?Gosta de ser chamado desse modo estranho, Galeón? ?Josh lhe perguntou, inclinando-se para a orelha esquerda do animal. Este, como resposta, relinchou e moveu a cabeça. Atitude que deixou Mary mais surpresa se isso fosse possível. ?Não volte a chamá-lo por esse nome porque não gosta.
?Pois não me importa se gosta ou não! ?Respondeu, movendo-se muito lentamente para a esquerda para sair daquela encruzilhada mortal.
?Para onde vai? ?Josh retrucou, depois de açoitar Galleon para andar atrás de sua irmã.
?Não me siga! Por acaso não sabe que esse quadrúpede pode me matar? ?Esbravejou sem olhar para ela e sem parar de andar.
?Galeón é inofensivo...
?Sim, é claro, como as benditas armas que você dorme até levantar ?respondeu se virando para as duas em um ato de coragem. ?Devo deduzir que esqueceu seu velho hábito de jogar com espadas, adagas ou pistolas para substituí-lo por... isso? ?Argumentou, apontando para o animal com um dedo.
?Você realmente acha que eu esqueci delas? ?Respondeu antes de soltar uma risada leve e levantar a perna da calça para mostrar a faca que estava escondendo na bota. ?Sempre estarão comigo, Mary. São e serão meus únicos aliados na luta contra um mundo injusto ?declarou firmemente.
?Quer lutar contra as injustiças? ?Repreendeu. -?Bem, precisará de um bom arsenal, Josh, porque posso garantir que encontrará, ao longo de sua vida, mais de um milhão.
?Vou comprá-los assim que... ?tentou responder, mas ficou em silêncio quando observou a presença de Madeleine que, como era habitual nela, apareceu sem fazer nenhum ruído.
?Aonde você vai Mary? ?A menina perguntou depois de acariciar o pescoço de Galeón. ?Está procurando sua mudança? ?Acrescentou sarcástica.
?Não ?negou veementemente. ?Estou procurando Elizabeth, e sobre minha mudança, posso garantir que sei como detê-la ?murmurou altiva.
?Se você diz... ?Madeleine respondeu exibindo um grande sorriso.
?Se retirou para seu quarto ?Josh interveio enquanto descia do cavalo. ?Sofre de uma terrível dor de cabeça desde...
?Sábado. Sim, eu sei ?Mary a cortou. ?Por esse motivo, minha mãe ordenou que eu a visitasse. Quer que eu a ajude a acalmar sua dor. No entanto, quando apareci no seu quarto, não a encontrei ?continuou.
?Estará na estufa ?Josh disse sem mostrar nenhum sinal de preocupação. ?Sabe que as ervas que cultiva são muito importantes para ela. Durante esses dias, se perguntou se Madeleine seria capaz de cuidar delas, como indicou. Talvez, apesar da dor de cabeça, quis confirmar que não quebrou um caule ou caiu uma folha ?acrescentou sorrindo enquanto pegava as rédeas e as enrolava entre os dedos.
?Quer que te acompanhe? ?Madeleine se ofereceu. ?Me fará bem falar com ela. Não quero que se zangue por algo que puder fazer.
?Não. Me interessa mais que passe seu tempo vigiando ao Josh e a esse bicho. Não sei onde pretende colocá-lo, mas não creio que a escolha que tenha tomado seja adequada...
?Pedirei ao pai para construirmos um estábulo ?assinalou a referida, virando Galeón em direção ao portão externo do jardim. ?Há espaço suficiente para...
Mary parou de ouvir a ideia futurista de Josh quando Madeleine a agarrou pelo braço e a puxou.
?Não esqueça o que eu te disse. Aceite de uma vez por todas o seu destino.
?Não, se puder evitar ?resmungou antes de se soltar daquele aperto e caminhar em direção à estufa enquanto ouvia a criança dar uma grande risada novamente.
***
Se pensou, por um momento, que o seu mau humor desapareceria durante o caminho para a estufa, se equivocou. Após a perseverança de Madeleine, sua raiva atingiu um nível insuperável. Ela estava com tanta raiva que podia aparecer diante de Elizabeth e, sem dizer uma única palavra, pegá-la pelos cabelos para arrastá-la para dentro de casa, como se fosse uma mulher da Pré-História. Pretendia esmagá-la? Bem, não o fez! Tudo o que conseguiu foi atormentá-la para alcançar a maneira de destruir o suposto futuro.
Com as bochechas tão vermelhas quanto as pétalas de uma Gerbera, ela apareceu na frente da porta da estufa e a abriu com tanta brusquidão que as paredes de vidro tremeram e a saia do vestido foi puxada para trás. Sem fechar, deu dois passos à frente e olhou em volta, procurando a familiar silhueta feminina. Mas não a encontrou com tanta facilidade.
Depois de fechar, começou a murmurar mais de uma dezena de impróprios inadequados para uma mulher. Logo caminhou decidida pelo estreito corredor que levava ao lago que seu pai encomendou a construção. A cada passo, seu nariz capturava um cheiro diferente, tornando-a incapaz de descobrir qual flor emitia uma fragrância específica. Parou no meio do caminho e observou tanto o que encontrou a sua direita como a sua esquerda. Um éden. Elizabeth construíra, sob aquelas paredes envidraçadas, um belo lugar cheio de cores e perfumes. Se concentrou em seu alvo e avançou lentamente, sem desviar o olhar do arco-íris floral dos dois lados. Antes de chegar à pequena cisterna, teve que desviar dos grandes galhos da única árvore que sua irmã plantou. Sorriu ao se lembrar do dia em que ela apareceu com aquela mudinha de laranjeira. Não tinha mais de seis anos e mostrava tal entusiasmo que seus olhos brilhavam como duas estrelas. Depois que explicou aos pais o que pretendia fazer com o pequeno talo, Elizabeth saiu para o jardim, olhou para o céu e seguiu para o lado esquerdo da casa. Depois cavou um buraco com suas próprias mãos para plantá-lo enquanto seus pais a observavam em silêncio. Dois meses depois, começaram a construir a estufa e, quando terminaram, Elizabeth se tornou a fada das plantas. Não podia calcular quantas classes possuía nem o que podia fazer com elas, mas sim admitia que seu dom havia se desenvolvido com grande mestria.
Com a imagem do maravilhoso rosto infantil coberto de terra, era estranho o dia em que não chegava manchado em sua casa, e pensando sobre a mudança que sofreu após a traição de Archie, avançou. Então, enquanto o som da roda que movia a água da lagoa alcançava seus ouvidos, encontrou a silhueta que procurava.
As frases que escolheu para reprovar seu comportamento inapropriado, desapareceram de imediato ao contemplá-la daquela maneira. Sua suposição foi confirmada e, em vez de se sentir feliz, conjecturando outra teoria correta, entristeceu. Como deduziu, Eli tinha saído de camisola. Mas não pensou que a encontraria com um aspecto tão desleixado. O seu cabelo, habitualmente recolhido com cuidado, estava solto e frisado, como se não o tivesse escovado em dias. Depois observou a planta dos pés e franziu a testa ao vê-las tão sujas e com manchas de sangue. A mão esquerda de Elizabeth estendia-se frouxa, sem forças, sobre essa parte de seu corpo, enquanto a outra se movia em círculos sobre a água do diminuto lago.
Por um segundo, duvidou se deveria insistir no motivo de sua presença ou deixá-la sozinha com seus pensamentos. Não teve que pensar muito a resposta, pois esta apareceu no momento que a ouviu soluçar.
?Eli? ?Perguntou reduzindo a distância entre elas. ?Está tudo bem? ?Esperou que lhe respondesse, ao não fazê-lo, prosseguiu: ?Anne me disse que sofre uma terrível dor de cabeça e vim para acalmar essa dor.
?Pode ir, Mary. Minha dor não desaparecerá com nada... ?disse depois de alguns segundos angustiantes.
?Duvido ?afirmou colocando a mão direita no ombro esquerdo de Elizabeth. ?Sabe que, quando me empenho, nenhuma dor ou doença suportará mi...
Mary ficou em silêncio enquanto olhava o rosto da irmã. Onde estava a moça bonita? Não havia um pequeno traço dessa beleza com a qual nasceu. Seus olhos azuis não tinham luz, talvez porque as olheiras ao redor eliminaram todo o brilho. Suas bochechas, descritas por ela mesma como perfeitas, agora não passavam de pele sobre ossos, e seus lábios não tinham a cor vermelha intensa que ela tanto admirava porque haviam perdido a tonalidade ao ponto da palidez. Sem pensar duas vezes, afastou a mão do ombro e a colocou na testa, para verificar se estava com febre. Mas Elizabeth não estava quente, muito pelo contrário. Estava tão fria quanto uma estátua de mármore.
?O que diabos aconteceu com você? ?Esbravejou com uma mistura de horror e angustia. ?Por que está assim? ?Antes que Elizabeth pudesse responder, Mary fixou os olhos na mão que ela mantinha submersa na água e instintivamente colocou as suas no peito. ?O que está fazendo com isso? Em que está pensando?
?Pelo que entendi, nossos pais nos dão a vida, mas o destino é quem dita quando deve terminar ?expôs voltando o olhar para a água. ?Talvez a minha deva terminar antes de...
?Não diga bobagens! ?Clamou antes de se inclinar para a adaga e puxá-la dos dedos. ?Este não é o fim, Elizabeth Moore Arany! É o começo de tudo! Como pode pensar em algo tão horrível! Você enlouqueceu? ?E jogou a arma na porta com tanta força que a lâmina de metal se rompeu ao impactar no chão. ?O que aconteceu? ?Insistiu sacudindo-a. ?O que essa cabeça maldita pensa?
E Elizabeth começou a chorar. Escondeu o rosto abatido com as mãos e não conseguiu se consolar até que Mary se sentou ao lado dela e a abraçou com força.
?Anne pensa que está assim porque se comprometeu com o visconde ?explicou enquanto lhe acariciava a mata de cabelo loiro emaranhado. ?Mas eu sei que não é verdade. Apesar desse comportamento repugnante que mostra, no fundo a pequena Elizabeth ainda vive em você. Aquele que corria para cá para descobrir se a nova semente havia germinado ou se as pétalas de uma flor se abriram antes da chegada do amanhecer.
?Eu sou horrível, Mary! ?Soluçou em seu peito. ?Sou a mulher mais horrível que já existiu no mundo!
?Não, querida. Você não é horrível. As circunstâncias fizeram você assim. Você nasceu bonita, como seu físico. O que acontece é...
?Mary... ?sussurrou levantando o rosto para ela. ?Sou horrível, juro pelo sangue que corre em nossas veias. Eu fiz... aconteceu... ?Mas não teve forças para falar, apoiou de novo a testa sobre o peito de sua irmã e continuou chorando sem consolo.
Como superaria isso? Como poderia contar para Mary o que havia acontecido? Não, não conseguia. Tinha que manter isso em segredo. Não só por seu bem, mas também pelo da família.
?Sabe? ?Mary começou a dizer enquanto a segurava com força. ?A vida é cruel para todo mundo. Por mais que tentemos lutar para nos libertar do que nos mantém presos, não obtemos sucesso. A felicidade, essa que muitas pessoas se orgulham de possuir, é uma mentira, uma ilusão fictícia. Ninguém consegue algo tão idílico.
?Então... pelo que vivemos, Mary? Por que ainda estamos neste mundo cruel? ?Perguntou sem levantar o rosto.
?Olhe para mim, Eli! ?Lhe pediu depois de colocar as mãos sobre seus ombros. ?Conte-me o que aconteceu com você, para que não tenha diante de mim a irmã que sempre quis chutar a bunda por ser presunçosa. Onde está a força que expressava? E esse caráter repulsivamente aristocrático.
?Desapareceu... ?murmurou abaixando a cabeça.
?Quem fez isso com você? ?Perseverou, erguendo o rosto com as duas mãos.
?Como o...? ?estalou perplexa.
?Você viu? O destino o colocou de volta em seu caminho? ?Insistiu. ?Porque se assim for, juro que desta vez o matarei com minhas próprias mãos!
?Não! ?Elizabeth respondeu, se levantando da borda empedrada que rodeava o lago. Sem olhar para Mary, esfregou as mãos, olhou para o chão e suspirou. ?Não sei nada de Archie desde que recebi aquela carta.
?Bom. Fico feliz em saber que o pai não terá que me visitar na prisão... por enquanto ?respondeu Mary levantando-se também. Pegou-a por trás e a abraçou com força. ?Se esse filho da puta não é o motivo da sua depressão, o que é?
?Não acredito que possa me amar se te contar ?lhe disse inclinando os ombros para frente.
?Você me ama? ?Lhe perguntou fazendo-a virar para ela. ?Me ama apesar de tudo o que digo ou faço?
?Claro! Você é minha irmã e sabe que te adoro, apesar de todas as coisas estranhas que faz ou diz.
?Exato! ?cortou-a. ?Sempre, apesar de todas as discussões que tivemos, nos amamos. Nisso consiste a família, Eli. E nada, nem ninguém pode eliminar esse vínculo existente entre nós. Podemos ser muito diferentes, felizmente para todas, mas essa desigualdade fez com que nos respeitemos e nos compreendamos. ?Respirou fundo e olhou-a com ternura. ?Por causa dessa compreensão de que falo, sei que sua dor de cabeça é falsa e que as especulações de Anne também são. Sua alma está quebrada. Algo horrível aconteceu com você nessa viagem e te machucou tanto que não será capaz de superá-lo sem ajuda. Só me resta dizer que estou aqui, contigo, e que juntas superaremos tudo.
?Tem sido... horrível ?expressou antes que as lágrimas aparecessem de novo.
?Minha intuição diz como se sente. Mas preciso que me conte tudo, só assim poderemos encontrar a melhor solução ?garantiu com firmeza.
?E se não pode me ajudar? E se for algo tão assustador que só possa ser resolvido com a minha morte ou voltando no tempo?
?Responda-me apenas uma coisa, Elizabeth ?comentou olhando-a nos olhos e tomando-a com ternura dos ombros. ?Essa coisa horrível nos fará procurar e tirar do galpão o berço onde nossos pais nos colocaram no nascimento?
?Não! ?Elizabeth gritou horrorizada.
?Então, querida irmã, todo o resto tem uma solução ?disse antes de abraçá-la e ouvir como Eli suspirava em seus braços.
Capítulo XV
Nos dez dias seguintes, não teve uma mera hora livre para estudar os ensaios que a Sra. Reform lhe deu. Sua mãe tornou-se tirana e continuou ordenando mil tarefas que ela tinha que terminar antes do anoitecer. Para assombro do resto da família, realizou todas, pois nenhuma implicava se afastar de sua casa. Enquanto pudesse estar ao cuidado de Elizabeth e se manter afastada de lorde Giesler, cumpriria sem questionar. Pelo contrário, Anne saía e entrava continuamente de casa. Às vezes, visitava os parentes de seu noivo e outras vezes, chamava urgentemente a costureira que, em sua opinião, não deveria ter muita experiência, pois a fazia experimentar o vestido várias vezes ao dia. Josh e Madeleine, com a desculpa de serem as menores, mal tinham responsabilidades. A única coisa que lhes foi confiada era controlar o novo membro da família. Ainda não dava crédito aos mimos e cuidados que o animal recebia. Acolheram-no com tanto amor, que nem sequer reparavam no fedorento cheiro que invadia o jardim depois de este defecar onde lhe apetecesse. Até seu pai se uniu à louca felicidade! Desde que o visconde colocou o anel em um dos dedos de sua primogênita, vestia-se com elegância e repassava o nó da gravata mil vezes, antes de transitar pelas ruas de Londres no interior da carruagem que seu futuro genro lhe deu. Todos viviam num eterno caos, num infinito disparate. No entanto, admitia que esse estado de desorientação e confusão familiar foi proveitoso para Elizabeth. Apenas reparavam em suas contínuas ausências ou que, cada vez que se reunia com eles, não via um de seus descarados vestidos, mas aqueles que Mary guardava no armário. Talvez evitassem falar do assunto ao dar por confiável a hipótese de Anne e Josh. Aquela em que Elizabeth chorava de ciúmes ao não ser ela quem casava com um aristocrata. Mas ela conhecia a verdade e sofria a agonia de sua irmã em suas próprias entranhas. Desde a tarde que passaram juntas na estufa, não pôde dormir nem uma só noite. Passava horas pensando no medo que Eli suportou e na solidão que se encontrou até aparecer o valete do visconde. Não se importava se ela se culpava por ter encorajado o miserável. A única coisa em que pensou foi que, se era verdade que Morgana cuidava dos de seu sangue, devia matar o gajo justo quando uma de suas mãos desagradáveis a tocou pela primeira vez.
Mary olhou de novo a cortina marrom, que a dona do comércio utilizava para separar a loja da oficina, e respirou com aborrecimento. Se aquela risonha vendedora não a atendesse em breve, sofreria uma apoplexia. Ela não deveria estar lá. Seu tempo era muito valioso para perder sentada em uma cadeira desconfortável e, como seguissem ignorando-a, o escândalo que lhe anunciou a sua mãe, se cumpriria em breve.
?Coloque um casaco e pegue o pedido ?Sophia ordenou depois de encontrá-la escondida no armário. ?A costureira está esperando por você.
?Anne não pode cuidar dessa tarefa? Hoje certamente terá que experimentar o vestido novamente e não será necessário nenhum esforço para suportar o peso de quatro bolsas ?propôs enquanto saía das sombras que lhe proporcionou o inútil esconderijo.
?Hoje não a visitará ?respondeu andando atrás de sua filha. ?Deve comparecer ao almoço oferecido pela Marquesa de Riderland em sua homenagem.
?E as gêmeas? ?Sugeriu se virando para sua mãe.
?Ainda são muito pequenas para passear sozinhas pelas ruas ?Sophia respondeu levantando o tom da voz e erguendo a sobrancelha direita.
?E eu sim posso fazê-lo? ?Disse com falso espanto. ?Não lhe preocupa a opinião que terão as pessoas de mim quando me virem caminhando sem proteção por Cover Garden?
?Desde quando se importa com que dirão, Mary? ?Espetou sua mãe cruzando os braços na frente do peito.
?Desde que minha honorável e maravilhosa irmã mais velha se comprometeu com um visconde ?expôs como se a resposta tivesse sido estudada mil vezes.
?Então... você faz isso por sua irmã? ?Sophia perguntou olhando para ela sem piscar.
?Claro! Você realmente pensou que eu faço isso para meu próprio benefício? ?Respondeu, fingindo estar ofendida. ?Temos que agir corretamente, pelo bem de Anne. Já sabe como a aristocracia gosta dos mexericos e fofocas; pensa que não fofocarão sobre a desproteção de uma das irmãs da futura Viscondessa de Devon? Será um verdadeiro escândalo! ?Acrescentou com aparente angústia.
Mary estava prestes a pular de alegria ao observar sua mãe refletir sobre o assunto. Tinha encontrado o ponto fraco: as fofocas. Até agora, Sophia só estava interessada em cuidar da reputação do marido, no entanto, desde o noivado, tudo mudou.
?Por um momento, apenas por um momento, pensei que era sincera, Mary Moore Arany. Mas, felizmente para mim, o sangue que nos une me adverte que sua intenção é diferente da que você diz. Limpe a farinha da saia, arrume o cabelo e vista o casaco. Quero os vestidos em nossa casa antes que Eugine termine de cozinhar as perdizes, entendido? ?Disse com raiva. Virou as costas e caminhou em direção à lareira.
?E se alguém quiser me machucar? ?Mary perseverou.
?Depois do que fez ao jovem Wang, acredito que ninguém tenha coragem suficiente para falar ou cumprimentar você ?disse Sophia atiçando o fogo.
Que o inferno congelasse! Mas, por que não o havia esquecido? Quanto tempo tinha passado, três, quatro anos? Era certo que a síncope que sofreu, quando abriu a porta e a encontrou escoltada por dois agentes, foi tão grande que seu pai teve que lhe administrar uma pequena dose de clorofórmio. Certamente, ela ficou de castigo em seu quarto por três dias, os mesmos que ela passou lendo e desfrutando de uma bela solidão. Quando ela pôde explicar o que aconteceu, seu pai caiu na gargalhada. Talvez porque ele foi o único que entendeu sua posição sobre doenças causadas por distúrbios celulares. Em vez disso, sua mãe só pediu a Morgana que a sociedade londrina ficasse surda e cega por duas semanas. Ela estava muito preocupada com a repercussão que seu marido sofreria quando as pessoas soubessem que a segunda de suas filhas havia golpeado, até quebrar o guarda-chuva, a carruagem do jovem Wang, que de dentro, pedia socorro. Logicamente, não podia culpá-la por desconhecer a importância que tinha a teoria da Patologia Celular em medicina, mas aquele petulante sim e por esse motivo, ao ouvi-lo dizer que se tratava de uma conjectura sem sentido para explicar as doenças dos organismos, perdeu o controle. Como podia falar dessa forma o filho de um médico que foi à universidade com Rudolf Virchow? Só um tolo, como Wang, podia soltar por sua boca semelhantes tolices. Obviamente, o temor de sua mãe apareceu antes do imaginado. As pessoas falaram sobre a agressão da filha perturbada do doutor Moore ao encantador Wang. Desde aquele dia, não importava se andava sozinha ou de noite, ninguém se aproximava e atravessavam a rua, quando levava um guarda-chuva na mão.
?Senhorita Moore?
A pergunta que a vendedora lançou ao ar, depois de sair pela décima quinta vez da sala dos fundos, tirou Mary de seus pensamentos. Ela se levantou da cadeira, onde estivera mais de uma hora, e se aproximou do balcão.
?Finalmente descobriram que estou aqui! ?Disse sarcasticamente. ?Pensei que me confundi de estabelecimento porque, apesar de ser a primeira, atenderam outras clientes antes de mim.
?Para fazer um excelente trabalho, é preciso ter paciência e tempo ?a funcionária manifestou, colocando sobre a bancada envernizada as bolsas que levava nas mãos.
?Não discuto isso. Mas garanto-lhe que tiveram tempo suficiente para confeccionar dois vestidos e emplumar quatro chapéus ?Mary insistiu, enquanto confirmava que as roupas que lhe oferecia eram as mesmas que fora buscar. Nas bolsas estava o vestido rosa pálido de Madeleine, o malva claro de Josephine, o marrom de sua mãe e quando observou o seu, franziu a testa e olhou à empregada como se buscasse a forma mais rápida de lhe quebrar o pescoço. Depois pegou com dois dedos o tecido daquela roupa verde, colocou-a frente ao nariz da trabalhadora e perguntou-lhe com raiva: ?Não lhe indicaram que este vestido devia ser azul marinho? Por que, não é? Acaso a costureira sofre de discromatopsia?[8]
?Expliquei a sua mãe que não era uma cor apropriada para um casamento tão importante e que todos os convidados à cerimônia pensariam que a jovem em questão se encontraria em período de luto ?explicou com orgulho enquanto a olhava de baixo a cima. ?Foi por isso que lhe pedi que reconsiderasse e, para satisfação pessoal, fez o mesmo. A senhora Moore é uma mulher muito inteligente e selecionou uma tonalidade bastante atual e...
?Estúpida? ?Mary a interrompeu. ?Porque não há outra maneira de descrevê-la. Agora, em vez de mostrar a imagem de uma jovem séria, correta e virtuosa, parecerei a garrafa que algum bucaneiro bêbado de Whitechapel leva em uma mão.
?Como ousa falar desse modo? ?Perguntou chocada. ?Nenhuma de nossas clientes se comparou com semelhante barbaridade! Todas estão encantadas com nosso trabalho! Minha oficina é única na cidade!
?Única? Certamente minha governanta conserta remendos menos emaranhadas do que estes ?comentou mal-humorada enquanto empilhava as bolsas com as duas mãos. ?E não se mostre tão ofuscada por uma crítica construtiva. Deve saber que será muito rentável para o seu negócio ouvir as opiniões dos clientes. Só assim obterão a perfeição da qual se vangloriam. Espero que a próxima vez que lhe encomendem uma peça de roupa de uma cor determinada, você morda a língua e não opine.
?Santo Deus! ?Exclamou horrorizada levando as mãos ao peito. ?Não a compararão com uma garrafa, mas com a filha do próprio diabo! Agora entendo por que desejava uma cor tão escura, combinaria com sua alma.
?Tenha cuidado com o que pensa... ?Mary lhe disse uma vez que abriu a porta. ?Pode ser que esta filha do diabo invoque a umas quantas almas errantes para que incomodem seus dóceis clientes.
Antes de fechar a porta, observou divertida como a vendedora não deixava de se benzer, ato ao qual estava bastante acostumada. As pessoas costumavam fazer isso depois de ouvi-la falar. Uma vez que saiu da loja, ela soltou uma grande risada e seguiu para a carruagem. Ela teria que usar um vestido horrível, mas a funcionária viveria assustada por um longo tempo. Satisfeita e orgulhosa de ser uma mulher tão sincera, ela avançou até que o cocheiro a viu chegar e saiu do veículo. Ele abriu a porta, desceu as escadas, esperando que ela subisse, mas não o fez.
Mary ficou de pé junto à carruagem, segurando as bolsas. Seus olhos, embora estivessem se movendo em direção ao interior da carruagem, não observaram nada em particular. Estava ausente, pensando silenciosamente sobre a ideia que acabava de aparecer em sua cabeça. Levantou o queixo e sentiu em seu rosto as carícias do leve vento que previa uma rápida chuva. Era o momento ideal. Se não, quando teria outra chance? Ela ficou trancada por um longo tempo, aceitando sem objeção tudo o que sua mãe ordenava, pois nada, exceto o que ela pediu horas antes, a afastava de seu propósito. Mas estava fora, sob um céu tão cinza como o mercúrio de um termômetro. De repente, pensou em seu pai e nas conversas que manteve com sua mãe sobre o incansável trabalho do mordomo de lorde Giesler. Segundo entendia, este realizava tudo o que lhe foi dito para que a recuperação de seu senhor fosse rápida e adequada. Claro, isso implicava também protegê-lo de uma possível chuva...
Ao deduzir que seu maior problema não ocorreria, jogou as bolsas dentro da carruagem, abotoou o casaco e disse ao empregado sem olhá-lo:
?Voltarei andando.
?Andando? ?Ele respondeu bastante surpreso.
?Sim, andando. É uma das habilidades físicas que caracterizam o ser humano. Por que acredita que nascemos com duas pernas? ?Garantiu sagaz.
?Não digo por isso, Srta. Moore. Permita-me informá-la que não seria certo deixá-la sozinha com esse tempo ?disse o amável trabalhador depois de fechar a porta. ?Se observar as nuvens, descobrirá que não tardará em chover e a senhora não gostará que uma de suas filhas adoeça dois dias antes da cerimônia.
?Não se preocupe com minha saúde, Owen. Asseguro-lhe que se aparecer essa chuva alugarei uma carruagem ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Deseja, pelo menos, que lhe ofereça um guarda-chuva? Sua mãe não lhe repreenderá se lhe explicar que se resguardou...
?Não! Sem guarda-chuva! ?Respondeu como se tivesse sido picada na bunda com um alfinete. ?Prometo que ela ficará mais zangada se eu o tiver.
?Como desejar ?terminou de lhe dizer antes de subir e açoitar o cavalo.
Mary se virou para sua esquerda e, enquanto escutava como se afastava a carruagem, observou com entusiasmo tudo o que tinha diante de seus olhos. Felizmente para ela, a rua estava muito calma. Talvez porque, como disse o empregado, a ameaça de chuva assustou muitos londrinos. No entanto, os poucos atrevidos que encontrou passavam ao seu lado sem reparar nela. Ato que agradeceu porque não queria observar rostos de espanto, assombro ou estranheza. Precisava, depois de tantos dias enclausurada em sua casa, sentir um pouco de liberdade e tranquilidade.
Com a mão direita ligeiramente levantada, pois a alça de sua retícula se encaixara na dobra de seu cotovelo, se dirigiu em primeiro lugar para a enorme fachada do Teatro Real de Drury Lane. Uma vez que se colocou em frente à porta, levantou o rosto para admirá-lo. Indubitavelmente, era um edifício grandioso. Segundo tinha lido, podia abrigar três mil e seiscentos espectadores e depois do último incêndio, ocorrido em 1809, os arquitetos encarregados da reconstrução usaram colunas de ferro para substituir aquelas de madeira que sustentam os cinco níveis das galerias. Mas se esses dados lhe pareceram extraordinários, o fato de saber que ali se celebravam, desde dois anos atrás, os melhores espetáculos e melodramas, a deixou sem palavras. Olhou intrigada o cartaz que alguém colocou na direita do pórtico e suspirou. Em outra ocasião, quando sua vida fosse menos agitada, poderia desfrutar da música que tocaria a orquestra que anunciava esse cartaz. Com uma inevitável sensação de saudade, já que desejava que a normalidade voltasse à casa dos Moore, continuou o caminho, se esquivando das bancas de frutas e verduras que encontrou.
Covent Garden era um lugar muito estimulante, como indicavam os jornais. Embora não parecesse tão perigoso quanto insistiam em descrever. Onde estavam as prostitutas, os bandidos e os criminosos que perseguiam os cantos do mercado em busca de uma vítima para assaltar? Porque ela não os via. A única coisa que tinha diante de seus olhos eram pessoas comuns e mundanas e que ofereciam suas mercadorias aos poucos clientes que andavam perto de suas bancas.
Continuou naquele lado da calçada e justamente quando determinou que o passeio deveria terminar, seu nariz capturou um maravilhoso aroma de café. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Insuperável... Se a bebida fosse tão boa quanto o aroma que emitia, não poderia voltar para casa sem saborear uma boa xícara. Com o nariz levantado, como se fosse um cão de caça, seguiu para o estabelecimento que o servia. Quando chegou, sorriu ao ver que não era a única pessoa que abandonava suas obrigações para deleitar-se com um costume tão pouco inglês. Talvez a maravilhosa tradição de ingerir só chá iniciava uma época de declínio, ou talvez houvesse mais gente tão estranha quanto ela.
Enquanto esperava sua vez, se apoiou na parede de maneira descontraída e procurou algumas moedas para pagar pela compra.
?Quanto me custaria passar uma hora com você, Srta. Moore? Garanto-lhe que pagarei com prazer.
Mary, muito lentamente, tirou a mão da retícula, se afastou da parede, levantou o rosto e olhou com altivez para o dono daquela voz. Ali estava o maior idiota do mundo, vestido com um traje cinza escuro, tal como ditava a moda nesse momento. Peter Wang a observava com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casaco e mostrava com orgulho um repugnante bigode louro, cujas extremidades se enrolavam para cima.
?O que disse? ?Perguntou tão indignada e furiosa que suas bochechas mudaram de cor pelo sufoco.
?Digo-lhe, senhorita Moore, que estou disposto a pagar tudo o que me peça se me oferecer algo interessante em troca ?Wang disse, verificando o vestido grosseiro de Mary. Depois de sorrir com malícia, avançou para ela. ?Imagino que seja por isso que está sozinha nesta parte de Londres, não é verdade? ?Falou olhando levemente ao redor. ?Finalmente assumiu que nunca alcançaria seu sonho e adotou a posição mais sensata para sua idade: recuperar o tempo perdido tornando-se amante de um distinto cavalheiro.
?Bom dia, senhorita, o que deseja tomar? ?Interveio a amável vendedora alheia, até o momento, da situação que se vivia na frente do posto.
?Bom Dia. Importa-se de me servir a maior xícara de café que você oferece aos seus clientes, por favor? ?Mary respondeu sem olhar para ela.
?Café? ?Perguntou Wang sem tirar os olhos dela. ?Como é normal em você, me confunde. Tinha deduzido, erroneamente, claro, que se tratava de uma mulher que adorava passar as horas do dia tomando chá com doces, dado o volume desproporcionado que tomaram seus quadris desde a última vez que nos vimos.
?Deus bendito! ?A vendedora soltou horrorizada ao ouvi-lo.
Gorda e prostituta. Até esse preciso instante a tinham dedicado muitos adjetivos e substantivos repugnantes, mas nenhum superava a brilhante descrição daquele energúmeno. Mary olhou de relance para a trabalhadora envergonhada. Ela colocou a xícara que pedira no balcão de metal com as mãos trêmulas e se afastou, como se estivesse lendo seus pensamentos. Sem prestar atenção às palavras de Wang, que perseverou em informar que sua robustez aumentara tanto que não seria bom para sua saúde, ela se virou para a esquerda, pegou a xícara e jogou nele.
?Maldita aberração! ?Exclamou. ?Como ousa falar comigo com tanta insolência? ?Vociferou. ?Você é o homem mais estúpido que eu já conheci na minha vida!
?É uma rameira! ?Wang esbravejou quando suas mãos com luvas pretas desabotoaram os botões do casaco.
Tudo o que aconteceu desde o momento em que atirou o café sobre Wang, transcorreu muito lentamente para Mary. O filho do médico tirou algumas roupas e as jogou no chão. Então gritou milhares de maldições quando não conseguiu acalmar as queimaduras que seu peito sofreu. Ele olhou para ela com tanta raiva que qualquer mulher teria morrido de medo. Avançou para ela, levantou o braço direito e estendeu os dedos para lhe acertar um bofetão. Mas não chegou a tocá-la. Uma mão enorme, que ela reconheceu rapidamente, apertou o pulso do agressor e o puxou com uma força tão grande que ele caiu no chão junto com suas roupas.
***
?Como foi capaz de fazer uma coisa dessas? ?Philip gritou pulando da cadeira. ?Aquela mãe ficou louca?
?Não creio que o termo louca seja muito apropriado para descrever a senhora Moore, milorde ?Disse Shals antes de dar uma gorjeta ao menino que lhe fez chegar a notícia. Quando este partiu, virou-se para o angustiado lorde e prosseguiu: ?Primeiro, devo descobrir o que aconteceu para que a senhorita Moore saísse sem proteção. Certamente você encontrará uma explicação tão divertida que estará rindo por vários dias...
Nem ele mesmo acreditava em suas próprias palavras! Como uma mãe, sabendo qual era a opinião da sociedade sobre a sua filha, deixava-a sair de casa sem acompanhante? Queria que chegasse o juízo final? Porque isso mesmo ia acontecer. Não só pelo que aquela moça poderia fazer, mas pelo que estava a ponto de realizar seu amo.
?Shals? ?Giesler perguntou ao vê-lo imóvel na frente do cabide.
?Sim senhor. Eu já tenho ?respondeu. Mostrou-lhe a jaqueta que havia pegado e caminhou até ele.
?Não há explicação... ?Philip continuou a falar enquanto o mordomo o ajudava a vestir a jaqueta. ?Mary não pode passear pelas ruas sem proteção. Além disso... não disse que começaria a chover em breve? ?Retrucou quando se virou para que Shals abotoasse os botões.
?De fato, milorde. As nuvens são tão cinzentas como a cinza que há em uma lareira depois de um enorme fogo. Se o vento não as mover, logo aparecerão as primeiras gotas. ?Terminou de colocar a jaqueta e correu para a porta do escritório para deixar passar o homem que, apesar de não estar totalmente recuperado de uma operação, percorreria Londres a pé para proteger a mulher que amava em segredo.
?Diga ao cocheiro que esteja pronto em um minuto ?ordenou Philip antes de entrar na sala de jantar e desabotoar a jaqueta.
Não fechou ao entrar. Não era hora de se preocupar em buscar um pouco de privacidade, mas de agir rapidamente. Ele foi até a vitrine de mogno, colocou a mão direita na borda e moveu os dedos até encontrar a chave. Uma vez que a encaixou na fechadura, virou-a para a direita e abriu a estreita e longa porta de vidro. O cheiro de pólvora atingiu seu nariz, fazendo-o lembrar diferentes episódios importantes de sua vida. Em qualquer outro momento, ele teria sorrido para inspirar a segurança e a diversão que esse perfume em particular transmitia. Mas agora isso só lhe dava um aroma, o de Mary, e expressava um desejo: cuidar dela.
Como tinha sido tão insensata de passear por Cover Garden sem proteção? Não gostava tanto de ler? Então, por que não havia lido nos jornais as críticas que fizeram sobre essa região em particular da cidade? Ainda bem que seu empregado foi sensato e lhe fez chegar a informação através daquele pequeno batedor de carteira. Sabia que ele agiria com rapidez e que nem uma chuva de ratos infectados com lepra lhe impediria ir buscá-la. Levantou a arma com a mão direita até que a culatra de marfim branca ficou à altura de seus olhos e com a outra mão carregou a munição, o projétil e o bloco de papel através do cano. Uma vez que ficou carregada e pronta, ele a guardou no bolso interior da jaqueta, fechou a porta da vitrine, colocou a chave no lugar, virou-se para a porta e enquanto saía, fechou ele mesmo a jaqueta.
?Tudo pronto, meu senhor ?Shals disse oferecendo-lhe o casaco. ?Quer que o acompanhe? Seguro que posso me ausentar algumas horas... ?acrescentou uma vez que o ajudou a colocá-lo.
?Não. Prefiro que esteja aqui caso apareça Valeria ou Martin ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Se isso acontecer, deseja que conte a versão real ou mais uma... ilusória? ?Sugeriu enquanto colocava o chapéu nas mãos.
?Real ?declarou antes de colocá-lo sobre a cabeça e sair de lá.
Shals encarou a grande figura de seu senhor até que ele entrou na carruagem com a ajuda do cocheiro. Nas duas semanas anteriores, lorde Giesler permaneceu muito calmo em sua residência, recuperando-se da operação. Ele próprio acreditava que, se continuasse assim, seu senhor morreria de tédio, porque nunca ficava em casa por tanto tempo, exceto quando chegava tão bêbado que não conseguia se lembrar de seu nome. No entanto, sua atitude mudou tanto que o serviço murmurava incessantemente sobre o estranho comportamento do homem que pagava seus honorários. Até chegaram a pensar que a senhorita Moore, durante a operação, lhe arrancou não só um pedaço de tripa envenenada, mas também a virilidade. Ninguém, exceto ele, entendia o motivo pelo qual ficava várias horas sentado em um sofá, prostrado em sua cama ou caminhando pela casa com muito cuidado para não se machucar: a senhorita Moore. Desde o dia em que os encontrou no quarto, em circunstâncias comprometedoras, lorde Giesler não tinha pensado em nada, exceto em curá-lo com rapidez e cortejá-la como era devido. Até tinha lido livros de medicina! Seu novo propósito consistia em que, a próxima vez que se encontrassem, a jovem se apaixonasse por ele tal como ele estava apaixonado por ela. No entanto, tinha a sensação de que seu primeiro encontro social não seria tão romântico quanto ele esperava...
Apesar de tudo, confiava na sabedoria da senhorita Moore e rezava para que não se metesse em nenhum problema. Se isso acontecesse, se seu senhor testemunhasse alguma ofensa contra ela... Que Deus tenha piedade do insensato! A arma que tinha guardado no bolso era de um tiro e só o usaria como advertência. Para ser sincero, não temia pelos danos que aquela bala poderia causar, mas o que aquelas duas mãos fortes e grandes poderiam fazer.
Shals suspirou quando a carruagem se perdeu na distância. Fechou devagar a porta, virou-se e caminhou pelo corredor como se algum empregado tivesse pedido sua ajuda.
Capítulo XVI
Philip observou, de sua carruagem e atrás da cortiça marrom escura, como Mary abandonava a loja na qual havia permanecido desde que ele chegou. Quando ele pretendia respirar com calma, coisa que não havia feito desde que soube que ela saíra de casa sozinha, observou, pasmo, que ela depositou as malas dentro da carruagem e se afastou. Antecipando o que aconteceria a seguir, colocou a mão esquerda com luvas na maçaneta da porta e abriu. Enquanto ele pisava nos paralelepípedos da calçada com seus sapatos pretos brilhantes, Mary conversava com o funcionário. Então, ela apertou os botões do casaco, virou e começou a descer a rua.
?Milorde? ?Lhe perguntou o cocheiro um tanto confuso ao descobrir que seu senhor abria a porta e saía da carruagem sem ajuda.
?Me espere aqui, Thenders. Se eu não aparecer em 10 minutos, você tem minha permissão para voltar ?lhe ordenou sem afastar seus olhos azulados da mulher.
?Como quiser senhor ?o servo respondeu depois de depositar as rédeas no assento.
Philip caminhou atrás de Mary, mantendo uma distância suficiente para que lhe não descobrisse, mas o apropriado para agir rapidamente, se necessário. Por mais que tentasse, era incapaz de tirar os olhos do corpo com o qual sonhara quase todas as noites. Suas mãos, exatamente como fizeram nessas alucinações eróticas, foram em sua direção para tocá-la, mas ele as bateu nos dois lados do casaco quando percebeu o que estava fazendo. Irritado com a perda incomum de controle, ele os colocou nos bolsos e os apertou. Sentia falta dela. Sim ele fez! Não havia manhã em que acordasse e se perguntasse que sentimento o invadiria se ela permanecesse ao seu lado. Mas essa melancolia não terminava quando se levantava da cama. A cada hora, a cada minuto, a cada segundo do dia sentia falta de inspirar o perfume feminino misturado com essências medicinais, desejava notar as carícias suaves de seus lábios e a necessidade de tê-la ao seu lado aumentou tanto que estava ficando louco. Como conseguiu o que muitas mulheres desejavam alcançar? Era sua paixão, seu intelecto ou talvez esse jeito tão especial que tinha de olhá-lo? Embora seus olhos emitissem raiva, ele sabia que a raiva não era real. Desejava-o, tanto ou mais do que ele desejava a ela. Só esperava o momento em que se rendesse a suas paixões. Uma vez que conseguisse romper essa rígida barreira, lutaria com todas as armas que tivesse a seu alcance para fazê-la sua para sempre.
Enquanto sua mente perversa lhe fez reviver algumas cenas que teve em seus sonhos lascivos, observou como Mary parava em frente à entrada do teatro. Depois de ler a placa à direita e pensar em algo que queria saber, continuou a caminhada sem ver como as pessoas, que caminhavam ao seu lado, a olhavam de canto de olho. Sem dúvida, todo mundo estava fazendo a mesma pergunta: que diabos uma mulher como ela estava fazendo sem vigilância? Mas ele não conseguia responder. Não sabia o motivo pelo qual a senhora Moore, uma mãe a quem descrevia como coerente, permitiu que sua filha andasse sem proteção por uma região bastante perigosa de Londres. De repente, esse desejo primitivo de cuidar dela se intensificou. Precisava fazê-los entender, a quem a olhava com receio, que não estava desprotegida, que ele a vigiava. No entanto, se obrigou a manter distância, porque se Mary o descobrisse, não lhe cabia nenhuma dúvida de que o atacaria como uma leoa recém parida.
Um enorme sorriso se desenhou em seu rosto ao apreciar como erguia o queixo, fechava os olhos suavemente e inspirava o cheiro de café, que emitia um estabelecimento localizado a três barracas de verduras. Como Shals o informou, sentia uma certa fraqueza por aquela bebida. Quantas xícaras tinha tomado no último dia em que o visitou? Não se lembrava se eram quatro ou cinco, mas seu fiel mordomo disse que precisou fazer duas cafeteiras para si mesma.
Sem poder apagar aquele pequeno sorriso de felicidade, pois esse pequeno gosto comum os unia mais do que aquilo que um anel de noivado poderia unir, ficou parado na frente dela. Claro, estava tão entusiasmada em procurar as moedas com que pagaria à vendedora que não reparou na sua presença.
Philip encostou o ombro esquerdo num poste, ficou de braços cruzados e continuou a observá-la. As pessoas mais atrevidas, ao passar por seu lado, o olhavam de relance. Os temerosos se afastavam. Talvez seu traje escuro, sua altura ou a ruga que apareceu em sua testa, ao contemplar como um jovem se aproximava de Mary com um sorriso irônico, avisasse que, se quisessem ficar seguros, deveriam se afastar dele rapidamente. Quando o rapaz ficou na frente dela, Giesler descruzou os braços, afastou-se do poste e deu um grande passo. Não atendeu à blasfêmia que um cocheiro soltou quando puxou com força as rédeas de seus cavalos para não atropelá-lo. Estava tão concentrado naquela cena, que tudo à sua volta desapareceu. Deu outro passo, ficando no meio da via, tirou uma luva e a jogou no chão. Logo, no passo seguinte, se desfez da outra. Mais um passo... Só restavam três e poderia escutar o que dizia aquele estranho para Mary para que se mostrasse tão tensa. Sua futura esposa, porque assim a denominou desde que entendeu que não podia ter em sua cama outra mulher que não fosse ela, sempre enfrentava o mundo com a bravura de um dragão. Entretanto, notava que nesta ocasião estava se contendo. Então, sua valente guerreira brotou. Se virou para a vendedora, que havia colocado uma xícara enorme de café no pequeno balcão de sua loja, o pegou e jogou no rapaz em questão.
Os três passos que faltavam até alcançá-los, Philip os converteu em um ao ouvir como aquele insensato a chamava de rameira e levantava seu braço para golpeá-la. Quando se colocou atrás do rapaz, lhe agarrou o pulso do braço levantado e o puxou com tanta força que este ficou estendido no chão, junto com as roupas que tirou.
?Lorde Giesler! ?Exclamou Mary. ?Não!
Mas Philip não a ouviu, nem percebeu como ela o agarrou pelas costas do casaco para detê-lo. Com um rápido movimento de ombros, deslizou o pesado casaco preto até que se soltar dele. Depois, desabotoou o casaco e atirou-o ao chão. Uma vez que deixou de sentir a pressão que aquelas roupas exerciam em seus braços, estendeu as mãos para o menino, o agarrou e o levantou sem pouco esforço.
?Como a chamou? ?Ele gritou, levantando tanto o jovem que seus pés não tocavam o chão.
?Milorde! Me solte! ?Wang gritou desesperado. ?Me solte! ?Repetiu.
?Como a chamou? ?Voltou a rosnar.
?Por acaso não viu? Essa desgraçada me jogou uma xícara de café fervendo! ?Tentou justificar.
?Rameira ?a vendedora terminou, que havia deixado seu posto e agarrado Mary pelos ombros para confortá-la. ?Chamou a senhorita de rameira e gorda.
?Cale a boca! ?Lhe gritou Mary afastando-se dela.
Aterrorizada, deu um passo em frente e justo quando ia abrir a boca para ordenar ao Titã de cabelos louros que o soltasse, seu sapato direito tropeçou com algo duro. Olhou para o chão e arregalou os olhos ao ver a coronha perolada de uma arma. Sua angústia cresceu tanto que ficou muda. Presa desse pânico que começava a brotar do mais fundo de sua alma, jogou o casaco negro, que havia tirado do lorde, e o jogou sobre a jaqueta, para que ninguém reparasse na presença dessa arma.
?Você ia bater nela? ?Perseverou Philip alheio aos movimentos dela.
?Lorde Giesler, lhe imploro, não precisa fazer um espetáculo por algo tão insignificante. Tudo estava esclarecido no instante em que... ?Tentou explicar, mas teve que calar-se quando seu agressor a interrompeu.
?Merece uma lição! ?Wang gritou olhando em volta, procurando uma pessoa para defendê-lo.
Philip o soltou e quando o jovem apoiou as plantas dos sapatos no chão, levantou seu braço direito e lhe deu uma bofetada que lhe cruzou a cara.
?Como esse? ?Berrou fora de si.
?Ninguém vai separá-los? ?Mary gritou desesperada.
A princípio, o tumulto que os cercava permaneceu silencioso, mas quando lorde Giesler deu um tapa no rosto, o clima mudou e começou a se ouvir gritos encorajadores daqueles que os observavam. Ninguém queria parar o confronto masculino, apesar de estar ciente de que não havia igualdade física entre eles. Enquanto Wang era um rapaz alto, mas bastante esquálido, o lorde superava em altura e seu corpo dobrava seu oponente em musculatura.
?Vamos! ?Philip insistiu enquanto arregaçava as mangas da camisa. ?Me devolva o tapa! O que espera, maldito rato? Onde está agora a coragem que mostrava ao atacar uma mulher? Mostre-a com um homem!
?Não vou lutar com você... ?disse Wang caminhando para trás. ?Não por essa!
?Não! ?Mary gritou novamente enquanto observava Philip se aproximar de Wang e começar a espancá-lo sem piedade.
Olhou aterrorizada ao seu redor, procurando alguém grande e valente o suficiente para impedi-lo. Mas ninguém se atrevia a intervir em uma briga em que um dos combatentes exibia a imagem de um deus irritado. Preferiam ser meros espectadores a serem feridos. Supondo que a única pessoa que podia terminar a luta era ela mesma, saltou para frente e agarrou-se ao pescoço de lorde Giesler.
?Solte-o! Solte-o! ?Repetiu uma e outra vez.
No entanto, ele não a ouvia. Seu corpo parecia um pêndulo. Movia-se da direita para a esquerda, conforme batia. Abriu a boca, com a pretensão de lhe morder o pescoço, mas logo pensou melhor. Seu pai não lhe disse que, se apertasse com força o pescoço de uma pessoa, esta deixava de respirar e podia perder a consciência? Pois isso mesmo faria. Evitando não cair, estendeu seu braço direito sobre a garganta do lorde e apertou com a intensidade suficiente para que sua agitada respiração se tornasse algo mais pausada.
Giesler, ao sentir como lhe faltava o ar, deu um passo para trás, olhou o rosto machucado do homem e sorriu satisfeito ao comprovar que o olho direito estava tão inchado que não poderia ver com clareza por várias semanas. Mas sua alegria aumentou ao observar dois fios de sangue sob seu nariz. Depois, muito devagar, olhou por cima do ombro para confirmar que os braços que rodeavam seu pescoço pertenciam a Mary. Quem, se não ela, teria o valor suficiente para freá-lo de uma maneira tão pouco usual? Estendeu os braços para trás e acolheu com suas mãos grandes os gostosos glúteos femininos. A falta de oxigênio o deixou tão nublado que não ouviu com clareza como ela gemeu diante do contato. A única coisa em que ele se concentrou foi que Mary não se machucasse ao deitá-la no chão. Enquanto as pessoas encorajavam o ato violento, o corpo de Mary desceu ao chão, roçando o seu. Em outro momento, enlouqueceria de desejo, no entanto, este não era. Precisava confirmar que não estava ferida.
?Está bem? Se machucou? ?Perguntou-lhe quando se virou para ela. Acariciou-lhe a bochecha esquerda e enfiou uma mecha desse cabelo negro despenteado atrás da orelha.
?Eu?! ?Estalou sem poder afastar seus olhos dele. ?. Eu estou perfeitamente, é ele quem não está! ?Acrescentou apontando com um dedo da mão esquerda para o filho do médico.
?Esse tolo importa menos para mim do que uma casca de ovo, Mary. A única coisa que me interessa é saber se você está bem ou tenho que continuar batendo nele até que não sem lembre como se chama ?afirmou enquanto olhava para aquele rosto corado de raiva e vergonha.
E o escândalo oferecido por aqueles que incentivaram a luta desapareceu para dar lugar a um estranho silêncio.
?Afastem-se! ?Ordenou um homem depois de soprar várias vezes com seu apito. ?Afastem-se do nosso caminho!
Philip virou-se para aqueles que tranquilizaram a multidão, escondeu Mary atrás do seu corpo e olhou para o local na rua onde dois agentes apareceram. Estes, ao reconhecê-lo, aproximaram-se dele e levaram a mão direita ao chapéu que cobriam suas cabeças.
?Giesler... ?Um dos policiais se referiu a ele pelo sobrenome devido à amizade que mantiveram durante vários anos.
?Thomas...
?O que aconteceu? ?Ele perguntou depois de dar um forte aperto de mão.
?Este estúpido quis bater em uma mulher ?Philip murmurou, dirigindo-se a Wang com um olhar de reprovação e ódio.
?Qual delas? ?O outro parceiro queria saber enquanto observava o rosto de todas as mulheres que estavam na frente da banca de café.
?Ela... ?declarou Philip afastando-se para o lado para que seus dois antigos companheiros da Scotland Yard descobrissem a quem se referia.
?Por Deus, senhorita Moore! É você de novo? ?Estalou Thomas atordoado. ?Mas por que agrediu novamente o senhor Wang? O que usou desta vez, essa bolsa? ?Acrescentou divertido.
?Não senhor. Desta vez o encharquei com uma xícara de café quente ?comentou Mary levantando o queixo de maneira altiva. ?Mas em minha defesa alegarei que eu não tive a culpa deste acidente. Ele veio até mim e me insultou.
?O que lhe disse desta vez para irritá-la, senhor Wang? ?Perseverou o outro agente com voz cansada enquanto o ajudava a levantar-se.
?Gorda e rameira ?a vendedora interveio. ?Assim a chamou diante dos meus clientes.
?Maldito bastardo! ?Philip deu um passo em direção a ele. Mas não podia chegar perto tudo o que ele desejava porque Thomas agiu rapidamente e ficou entre os dois.
?Muito obrigada pela ajuda ?Mary murmurou com sarcasmo à vendedora.
?De nada, senhorita. Nós mulheres devemos nos apoiar diante deste tipo de monstros ?a jovem disse sem perceber o tom acusatório de sua voz.
?E bem? ?Thomas perguntou a Wang. ?Tem algo a alegar?
Wang, que já estava segurando a roupa suja em um braço, retirou o sangue que saía do nariz com a manga esquerda da camisa e olhou para o seu agressor, depois para Mary, depois para as pessoas que se reuniram ao redor dele e terminou por encarar o agente que insistia em descobrir o que aconteceu. Ao deduzir que havia certa camaradagem entre lorde Giesler e os agentes, pela maneira como se cumprimentaram, determinou que a melhor maneira de resolver o problema era falar com alguma eloquência, mas sem esquecer seu objetivo: humilhar a sabe-tudo Moore.
?Só um infeliz incidente que foi mal interpretado com demasiada rapidez ?ele começou a dizer enquanto sacudia a poeira de suas roupas. ?Devo confessar que, desde que me tornei um médico qualificado, fiquei obcecado em encontrar um local adequado para cuidar de meus pacientes. ?Ele sorriu tanto que todo mundo admirou seus dentes brancos manchados de sangue. ?Por esse motivo caminhava distraído. Estava concentrado nesse edifício aí quando me topei com a senhorita Moore. Ela, que tinha comprado uma xícara de café, tampouco advertiu minha presença e quando se virou, derramou sem querer esse líquido quente sobre minhas roupas. Como não queria me queimar, porque as feridas de uma queimadura são terrivelmente dolorosas, tirei minhas roupas manchadas. Naquele momento, todos os presentes começaram a gritar, talvez pensassem que a puniria por um ato que, sem dúvida, ninguém poderia prever. No momento em que a Srta. Moore e eu íamos pedir desculpas, lorde Giesler apareceu perguntando o que estava acontecendo. Quando me virei para responder, tropecei em uma pedra e caí de bruços na calçada. Portanto, tenho rosto inchado e o nariz está quebrado e sangrando. ?comentou sem apagar um repugnante sorriso de sua boca.
?Então... não há nenhum caso? Não registrará uma denúncia? ?Thomas insistiu, que aceitou a história sem discordar porque libertaria seu amigo de ficar na prisão por algumas horas.
?A quem? ?Wang perguntou antes de soltar uma risada, que parou rapidamente quando sentiu uma leve dor na mandíbula. ?Não há denúncia possível, agente! A menos que queira levar diante de um juiz a felicidade que enfrento desde que consegui me formar em medicina ?respondeu Wang olhando de relance para Mary, quem o observava com os olhos injetados em sangue.
?Nesse caso... ?o outro guarda disse ?não temos nada para fazer aqui, certo?
?Se eu ainda usasse o uniforme ?Philip disse a Thomas ?o escoltaria até sua casa. O estado de felicidade que diz viver pode lhe provocar outro desafortunado incidente e garanto que não gostará, ao futuro doutor ?respondeu com ironia?que sua cabeça sofra um golpe tão forte que esqueça tudo o que tem conseguido até o momento.
Mary suspirou surpresa ao descobrir que lorde Giesler também entendeu as palavras envenenadas de Wang. Assombrada, olhou-o com admiração durante uns instantes e um sentimento estranho brotou do mais profundo de seu ser. Em seguida, sentiu um tremor em seu estômago e concluiu, estupefata e prestes a desmaiar, que era a primeira vez que se orgulhava de conhecer um homem que não fosse seu pai. Não só adorou aquele ato brutal e primitivo de proteção, pensamento que meditaria quando chegasse em sua casa, mas que a encantou descobrir que, debaixo daquela longa mata de cabelos dourados, havia uma mente lúcida e sensata.
?Agradeço a sua preocupação ?Wang apontou com relutância. ?É verdade que um médico não pode tentar duas vezes a sorte... se quiser continuar sendo, claro. ?Sorriu novamente. ?Senhorita Moore... ?se dirigiu a ela com uma leve reverência e sem eliminar o sorriso ?Sinto muito tê-la assustado e espero que este pequeno desentendimento não a impeça de comparecer na próxima sexta-feira à assembleia.
?Claro que assistirei! ?Mary respondeu furiosa. ?Como bem afirmou, sou inocente e tem sido sua falta de jeito, uma condição que deve estudar se quiser se tornar um bom médico, a causa desse alvoroço.
?Giesler? ?Thomas perguntou-lhe para confirmar que ele também deu por encerrado a discussão.
?Sem problemas. Assim que o levarem, acompanharei a senhorita Moore a sua casa ?declarou se aproximando de Mary novamente.
?Uma vez que este assunto está esclarecido e resolvido, desejo a ambos um bom dia ?concluiu Thomas enquanto apertava de novo a mão de seu amigo e se despedia de Mary com um leve movimento de cabeça. Então ficou ao lado de Wang e, sob o olhar atento daquela multidão silenciosa, o acompanhou pela rua junto com seu parceiro.
CONTINUA
Capítulo IX
Mary sorriu quando Shals apareceu com a quarta xícara de café. Era a primeira vez que ela se sentia admirada e amada. Portanto, em nenhum momento disse algo que pudesse machucá-los, embora quisesse repreender mais de um por resmungar como uma criança pequena. Para ser honesta consigo mesma, ela começou a se sentir confortável com a atenção incontável que lhe mostravam.
A cozinheira, quando a Sra. Reform anunciou que, devido à hora, eles teriam que almoçar lá, lhe perguntou qual prato era o favorito dela, qual bolo ela queria e ordenou a um lacaio que pegasse o melhor vinho que lorde Giesler mantinha na adega. Uma das donzelas não deixou de elogiar a grande habilidade que suas mãos possuíam quando espalhou um creme sobre as fendas de seus antebraços. Para que deixassem de elogiá-la, disse que sua irmã Elisabeth havia feito a pomada com as flores que ela cultivava em sua estufa e contou, com orgulho sincero, as inúmeras qualidades que Eli possuía para criar novas flores e pomadas curativas. Quando chegou a vez do cocheiro, ele sorriu para ela. Então ele explicou que tinha um leve desconforto na garganta. Depois de inspecionar essa área, ela indicou que deveria tomar infusões com mel e que precisava abandonar o hábito absurdo de fumar. Logicamente, a segunda ordem não agradou o lacaio gentil que, depois de ouvi-la, enrugou a testa. No entanto, não respondeu. Fez uma leve reverência, como se fosse uma dama, e se foi. Mary temia que, quando saísse, aliviaria sua raiva com outro cigarro.
Valeria, depois de voltar da cozinha pela quarta vez, sentou-se ao lado dela e observou com expectativa o que estava fazendo. Ela a acompanhou em suas gargalhadas, apoiou sua repreensão e garantiu que todos seguiriam suas ordens.
?Prometi a você que não visitaria meus filhos, mas acho que essa opção foi pior. ?A senhora Reform comentou quando as duas ficaram sozinhas na sala, onde Mary decidiu acomodar suas consultas repentinas.
?Não precisa se desculpar pelo que aconteceu, garanto que foi a melhor coisa que aconteceu comigo em cinco dias ?comentou antes de pegar a xícara. Ela tomou um gole leve e fechou os olhos para apreciar o sabor delicioso.
?Juro que não sabia de nada e que tudo isso me surpreendeu tanto quanto você Valeria insistiu.
?Shals disse ao meu pai que, depois do que fiz com lorde Giesler, ninguém nesta casa procuraria outro médico para vê-los e, como vi, não mentiu. ?disse sorrindo e curiosamente feliz.
?Shals é um bom homem... ?Valeria refletiu. ?E teve muita paciência com meu irmão ?acrescentou.
?Não ficará com raiva pelo que fiz, certo? ?Mary de repente soltou, depositando a xícara na mesa.
?Quem? Meu irmão? ?Mary assentiu. ?Não, claro que não! Philip é incapaz de ser cruel com as pessoas que trabalham para ele! Ao contrário! Se não acredita em mim, pode perguntar a eles. ?Diante do beicinho de irritação que Mary fez, ela continuou: ?Não sei o que aconteceu entre vocês dois, mas tenho certeza que não foi agradável. De qualquer forma, eu gostaria que desse a ele uma chance para mudar sua opinião sobre ele. ?Pegou sua xícara e tomou lentamente, sem desviar o olhar da jovem. Ela parecia estar reconsiderando suas palavras. Mas, pela maneira como franzia a testa, a esperança de que esquecesse qualquer coisa negativa se dissipou. ?Como disse na noite em que nos conhecemos, meus irmãos e eu crescemos em Brink Lane. Nossos pais, depois de deixarem a Alemanha, se estabeleceram lá e sobrevivemos com o pouco que obtinham dos trabalhos que lhes confiavam ?começou a narrar com o objetivo de amolecer aquele coração duro.
?Deve ter sido muito difícil para seu pai se adaptar a uma vida de necessidades depois de ter nascido e criado como um barão ?Mary declarou, tentando não lhe causar muito dano diante da lembrança.
?Estava muito apaixonado pela minha mãe e isso era a única coisa que precisava até que morreu ?suspirou triste. ?Te contei que morreu em seus braços e que minha mãe não quis se afastar dele, pois acreditava que, a qualquer momento, acordaria?
E uma emoção estranha para Mary oprimiu-lhe o peito.
?Se amavam muito? ?Perguntou perplexa.
?Eu nunca vi um casamento que se amassem tanto, e isso que eu daria minha vida por Trevor. Onde quer que estejam, certamente nada e ninguém poderá separar esse amor intenso e verdadeiro.
E essa era outra razão pela qual nunca se apaixonaria. Ela, por decreto da sociedade, teria que ocupar um segundo lugar no casamento. Seria obrigada a deixar tudo o que amava para atender às demandas de seu marido. Tal responsabilidade, como sempre havia imaginado, a transformaria em uma desgraçada. Procuraria uma maneira de não ter filhos, para que eles não fossem os reflexos de sua tristeza. Não. Absolutamente, ela não se casaria jamais. Mesmo depois de sua mãe ter sofrido mil apoplexias quando presumiu que sua segunda filha tinha decidido ser uma solteirona.
?Como conseguiu superar sua morte? ?Disse depois de afastar rapidamente suas próprias suposições.
?Não superou ?Valeria respondeu se levantando da cadeira. ?Minha mãe morreu logo depois.
?Que doença tinha? ?Mary insistiu, também se levantando da cadeira.
?Tristeza. Uma que nenhum médico pode curar com medicamentos ou operações.
?Sinto muito... ?murmurou envergonhada.
?Não sinta, eu parei de fazer isso há muitos anos. Ela queria estar com ele, queria ficar ao seu lado e lutou até que conseguiu.
?Como sobreviveram? ?Perguntou e, em seguida, se arrependeu de fazê-lo.
Não estava ciente da dor que Valeria mostrava em seu rosto? Por que insistia? Estava interessada em saber que vida lorde Giesler teve no passado? Não podia imaginá-lo mendigando nas ruas! Era tão... e se mostrava com tanto... Impossível!
?Ainda estou me perguntando. Talvez eles se tornaram nossos anjos da guarda e fizeram tudo o que puderam para que seus filhos vivessem, ou talvez o destino teve piedade de três pobres órfãos. ?Ela deu de ombros e, apesar da tristeza que sentia quando se lembrava daqueles anos, esboçou um sorriso. ?Quem sabe o que a vida nos reserva, Mary? Hoje pensa uma coisa, amanhã surge outra e, quando abre os olhos no terceiro dia, decide algo que não pensava antes.
?Bem, nisto tem razão. No entanto, tenho que lhe dizer que não há dia em que eu acorde e confirme um pensamento ?comentou, finalmente esboçando um grande sorriso.
?Qual? ?Valeria quis saber enquanto caminhavam em direção à porta.
Estava na hora de Mary visitar seu irmão. Se não estava enganada logo começaria a chamar Shals para perguntar se tinha notícias dela. Como agiria ao vê-la? Ele ficaria perplexo? Pensaria que estava vivendo um sonho? O que quer que fosse, apenas esperava que se lembrasse de que sua amada irmã a levara até ele e que a questão do baronato ainda estava pendente.
?Quer saber qual é a única ideia que consolidei ao longo dos anos? ?Mary respondeu com diversão.
?Sim.
?O de não procurar um marido. Nenhum homem será bom o suficiente para...
Não terminou sua estudada e perfeita exposição, pois, ao sair no corredor, observou que Shals subia e descia indeciso as escadas.
?Shals? ?Ela perguntou andando com firmeza em direção ao homem. ?O que aconteceu?
E a resposta foi dada pela voz de um Titã mal-humorado.
?Maldito seja! Ficaram surdos? ?Ouviu tão claramente que parecia que lorde Giesler estava ao seu lado.
?É um asno! Mas que modos são esses? ?Com raiva, arregaçou as mangas do vestido e subiu as escadas. ?Darei a ele a bronca que merece! Como pode ser tão insolente?
?Senhora... Faça algo! ?Shals pediu suplicando a Valeria. ?Não pode aparecer assim! Vai matá-lo!
?Seus planos e os meus não são os mesmos? ?Valeria perguntou com um sorriso de orelha a orelha.
?Senhora... não sei a que se refere? ?O mordomo abaixou ligeiramente a cabeça.
?Shals... você não tem por que se envergonhar. Eu li em seus olhos quando você a viu chegar. Você, tal como eu, quer que a Srta. Moore repare no meu irmão, certo?
?Senhora, tenha certeza que sim. Mas não acho que goste muito da ideia que tem a senhorita Moore agora mesmo sobre... reparar no meu senhor ?comentou com medo.
?O que você aposta que o deixa tão manso quanto um cordeirinho?
?Jamais apostarei com a esposa do antigo dono de um clube! ?Shals exclamou com aparente raiva.
?Porque sabe que perderia... certo??Insistiu, estreitando os olhos.
?Até os cílios, senhora Reform! Com você, perderia até os cílios! ?reiterou antes de seguir para a cozinha.
Valeria olhou para o primeiro andar. Mary já havia se virado para o corredor. Temia que a vida entediante de seu irmão cessasse no momento em que ela abrisse a porta e... que coincidência inoportuna que Mary o visitasse justamente quando todos tinham tarefas importantes a fazer! Pena que eles não pudessem estar presentes! Que pouco decoro! Uma mulher solteira ficar dentro do quarto de um homem... nu! O que pensariam da hospitalidade dos Giesler?
Sorriu de orelha a orelha, apertou os punhos em sinal de vitória e virou-se para a cozinha.
***
Todos os palavrões que decidiu soltar quando abrisse a porta desapareceram instantaneamente. Mary soltou abruptamente o ar que continha seus pulmões e fechou a boca com força. Ficou imóvel, paralisada da cabeça aos pés quando o viu em pé, de costas para ela. O quarto estava iluminado, porque alguma donzela abriu as cortinas e as janelas, permitindo-lhe observar claramente o quarto. Uma brisa suave, produzida pela corrente entre a porta e a janela, a recebeu assim que chegou. Mas ela não prestou atenção em como as belas cortinas se moviam, ou como a luz do sol refletia no espelho colocado em uma cômoda grande, ou se os móveis eram escuros, foscos ou devorados por cupins. Seus olhos focaram apenas nele, fazendo com que uma voz em sua cabeça evocasse a palavra perigo. Tudo o que tinha pensado gritar-lhe enquanto chegava desapareceu instantaneamente. Que palavras tinha escolhido? Que insultos lhe ocorreram? Nada. Ela não se lembrava de nada... No profundo suspiro que deu logo que o viu, a mulher enfurecida desapareceu, a pessoa que tinha infinitos palavrões mentais e, e em seu lugar se acomodou uma mulher que não podia afastar os olhos de um homem por sentir... desejo. Seu coração acelerou tanto que podia sair do peito, sem ter que usar um bisturi para abri-lo. Um calor raro subiu do centro das pernas para as bochechas, transformando-as em duas chamas de fogo. Respirou fundo para aplacar aquela emoção incomum. Não conseguiu. Seu batimento cardíaco ainda estava acelerado, suas bochechas continuavam acesas e a leve dor abdominal, que lembrava a que sofria toda vez que ia dormir sem janta, ficou mais torturante. Ela o comparou com o chefe de uma tribo da pré-história? Bem, essa ideia ainda era verdadeira. Concluiu que se tivesse vivido na era grega, lorde Giesler teria sido o muso de inúmeros escultores? Bem, isso também seria verdade. Mesmo que não quisesse reconhecê-lo, embora negasse essa ideia pelo resto da vida, morreria sabendo que esse homem era o único no mundo que lhe causava algum interesse pecaminoso. Que mulher seria incapaz de admitir que não sente atração por esse corpo? Era um espécime perfeito: suas pernas eram fortes e longas, assim como seus braços e ombros. Ele tinha uma cintura estreita, como os quadris. Que, felizmente para ela, permaneceram escondidos sob os calções. Disse que era perigoso? Bem, confirmava. Esse homem emanava perigo, não para os outros, mas apenas para ela, porque a atração por ele se tornava mais intensa, menos suportável. Deu um pequeno passo entrando no quarto, rezando pela primeira vez em sua vida ao Deus em que todos acreditavam, para que se virasse e quebrasse seu mutismo absurdo, seu encantamento, o feitiço... Mas ele não fez isso. Somente quando percebeu que se inclinava um pouco para a frente e colocava as mãos no curativo em volta da cintura, como se fosse uma faixa bonita, aquele bom senso, que saíra de sua cabeça, voltou a avisá-la de que o lorde estava prestes a realizar o maior disparate do mundo. Ela franziu a testa, como havia feito durante a subida nas escadas e na pequena corrida pelo corredor, e finalmente ela pôde gritar:
?Eu juro que, se der mais um passo, lhe dou outro tapa.
?Mary? ?Giesler perguntou atordoado quando se virou muito lentamente em sua direção.
Mary engoliu em seco enquanto contemplava aquele rosto masculino. Ele estava sorrindo. Sim, seus lábios esboçaram o sorriso mais maravilhoso do mundo e, embora nunca tenha imaginado que a receberia com entusiasmo, porque ninguém no mundo, exceto sua família, a recebia com amor, ele estava fazendo isso. Havia visto alguma vez uma boca tão bonita, tão gloriosa? E para sua perdição e deleite, havia descoberto a suavidade daqueles lábios...
?Senhorita Moore.?O corrigiu, adotando a postura de uma mulher fria. ?Lembro-lhe que não deve me tratar com tanta familiaridade, lorde Giesler ?Acrescentou andando altivamente em direção aos pés da cama. Ela colocou as duas mãos na cintura e olhou para ele como se quisesse lhe arrancar os olhos. ?Que diabos está fazendo? Que parte de... “não deve se mexer”, não entendeu? Por acaso ficou surdo? Talvez seja por isso que pensa que seus fiéis funcionários estão ?garantiu com firmeza.
?Mary... ?sussurrou repleto de felicidade, como se ao seu lado estivesse um anjo iluminado por uma luz divina, em vez de uma mulher que o ameaçara lhe dar outro grande tapa. ?O que faz aqui? Como você está?
?Definitivamente... está surdo! ?Explodiu, revirando os olhos. ?Explodiu, revirando os olhos. Disse para não me chamar pelo meu nome e não preciso que se preocupe comigo, é você quem deve permanecer deitado na cama.
?Pretendia... ?Philip começou a dizer enquanto tentava se sentar novamente, um ato que o fez rosnar de dor.
?Maldição! ?Exclamou Mary indo em sua direção o mais rápido possível.
Sem pensar duas vezes, segurou os braços de Philip com força e o ajudou a se sentar o mais devagar possível. Depois que ele conseguiu, levantou as pernas e as estendeu no colchão. Quando se virou para ele, para gritar com ele até ficar sem voz, ficou sem palavras novamente, pois descobriu que os olhos azuis do lorde brilhavam, como se os raios do sol que passavam pela janela os impactassem neles. Seu rosto, recém barbeado, o tornava mais atraente, como se fosse possível, e seu cabelo não era mais escuro, mas brilhante e... lindo. Desviou o olhar quando uma rara dor no estômago a trouxe de volta ao mundo frívolo da sensatez. Não devia se deixar levar por atrações absurdas, nem por deslumbramentos miseráveis. Era uma Moore da cabeça aos pés e nela não podia surgir algo tão absurdo quanto o desejo por um homem!
?Segundo entendi, sua melhora é notória. Quer que todos os avanços que teve durante estes cinco dias retrocedam por tentar caminhar sem ajuda? ?Comentou com um tom menos rude enquanto lutava para acomodar as pernas que já estavam bem colocadas.
Aquilo que cheirava era loção de barbear ou perfume? Estava prestes a fechar os olhos e inspirar profundamente, mas a sensatez agiu novamente. Ela se afastou um pouco e, com as pontas dos dedos, pegou a parte de baixo do lençol para estendê-lo até cobrir o queixo. Quanto menos pudesse observar, menos tentação sentiria. Porque aquele corpo fazia seu sangue ferver, pensar em coisas impuras e, acima de tudo, a fazia perder a cabeça. Pelo menos, quando sua mãe a repreendesse por se colocar em outra situação comprometedora, podia se defender dizendo que ela o havia coberto e que ele estava usando calções que escondia seus atributos masculinos.
?Pensei que tinha perdido o interesse em mim ?Philip apontou em uma voz queixosa enquanto afastava o lençol.
Queria sufocá-lo? Porque teve essa impressão ao ver como tentava cobri-lo até o pescoço. Ou talvez houvesse outro motivo menos... sinistro? Suportou uma risada repentina e, muito lentamente, se descobriu até a cintura, exibindo a imagem completa de seu peito robusto. Queria descobrir o que havia se perguntado tantas vezes. Mas o leve sorriso, que foi incapaz de esboçar, se dissipou quando viu que ela estava voltando para o pé da cama e ainda demonstrava repulsa. Tão desagradável estava?
?Deixei-o em boas mãos, milorde. Meu pai, caso não se lembre, tem a habilidade de curar pessoas ?respondeu.
?Mas você me operou e, segundo entendi, lutou contra todos aqueles que se opuseram para não me deixar morrer ?contestou.
?Sou... como diria? Uma pessoa de bom coração? ?Respondeu, colocando as mãos no dossel de madeira.
Por que não conseguia parar de olhar para os lábios dele? Sua parte insensata queria senti-los novamente? Quantas vezes relembrou aquele momento? Um milhão? E, quantas vezes disse a si mesma, que o tapa havia sido a melhor coisa que tinha feito em sua vida? Uma, talvez? No caso hipotético de que estivesse pensado, pois não tinha mais certeza se o fez durante o confinamento forçado. Contou teias de aranha ou enumerou todos os possíveis defeitos de lorde Giesler? E por que sua mente não parava de imaginar como teria sido um beijo mais intenso? Essa pergunta aumentou muito seu desejo carnal... Maldita fosse, a parte primitiva do ser humano! Haviam construído grandes edifícios, navios para viajar de um continente a outro, chapéus horríveis com penas de pavão, mas... haviam conseguido fazer desaparecer o instinto carnal absurdo com o qual todo ser humano nascia? Não! As pessoas ainda eram primatas movidos por uma necessidade sexual absurda...
?O que tem, Mary ?enfatizou seu nome, embora ela não gostasse de ouvi-lo dizer. ?É uma habilidade mágica. Agradeço a Deus todos os dias pelo fato de aparecer e ter decidido salvar minha vida. ?Ele declarou com toda a sinceridade que podia oferecer naquele momento, porque sua mente procurava palavras que a deixassem orgulhosa enquanto um desejo masculino lutava para tirá-lo da cama, pegá-la nos braços, apoiá-la contra a parede e beijá-la com tanta paixão que os dois ficariam sem respiração.
?Não... Não deve... me dizer essas coisas, milorde.
Gaguejava? Ela?! Por que diabos fazia isso? Os servos não haviam oferecido milhares de elogios? Não começava a se acostumar com esses elogios? Então... por que ela se sentiu tão intimidada ao ouvir isso dele? E, naquele momento, toda a força, toda a raiva e toda a firmeza que sentia sempre que corria perigo, desapareceu como a neblina quando o sol aparece. Tinha que sair de lá o mais rápido possível. Até o ar parecia mais denso que nem conseguia respirar! Havia prometido a Valeria que iria visitá-lo, pois faria isso. Confirmaria o bom trabalho de seu pai e sairia mais rápido do que quando entrou.
?É verdade ?Philip garantiu, e não passou despercebido que, pela primeira vez desde que a conhecia, o escudo que protegia a mulher que ele desejava descobrir, desapareceu. ?É uma mulher engenhosa, corajosa e incrível. Uma mulher a quem devo minha vida ?garantiu solenemente. ?Estou em dívida com você. Pode me pedir o que quiser que encontrarei uma maneira de consegui-lo.
?Peço a lua, lorde Giesler ?disse.
Se recuperou o mais rápido que pôde para não mostrar uma imagem que estava escondendo desde que descobriu a maldade das pessoas. Ela não sofreria como Anne ou Elizabeth. Ela era diferente!
?Prometo que vou alcançá-la... ?Ao tentar se reclinar, outra cãibra terrível o nocauteou. Ele jogou a cabeça para trás, fechou os olhos e respirou fundo.
?Relaxe, por favor ?lhe pediu em voz baixa quando veio até ele. ?Não deve fazer esforços desnecessários ?acrescentou, enquanto colocava as duas mãos sobre o curativo e apalpava lentamente para confirmar que não havia umidade.
?Me pediu a Lua, Mary Moore Arany, e eu juro que te darei ?comentou, sem abrir os olhos. Não queria assustá-la, não queria que se afastasse do seu lado e se para isso tivesse que ficar doente a vida toda, que Deus o concedesse!
?Estou satisfeita em poder comprar as publicações médicas que o Sr. Slow terá guardado para mim ?sussurrou, enquanto tomava a decisão de remover o curativo e confirmar que a ferida ainda estava fechada.
Olhou em volta e franziu o cenho. Onde diabos estava sua maleta? Era mais fácil para ela cortá-lo com a tesoura do que desembaraçá-lo gradualmente porque, dessa forma, ela precisaria tocá-lo, precisaria se aproximar o suficiente para poder inspirar aquele cheiro muito atraente para ela e que... Não havia lido em algum volume científico que o ser humano descobria a atração por uma pessoa simplesmente pelo cheiro? Bem, se essa teoria era verdadeira, tinha que concluir que não era ódio que sentia por lorde Giesler, mas... Algo mais próprio das Arany do que dos Moore! Irritada consigo mesma, desamarrou o nó que seu pai havia feito com as pontas do curativo e desenrolou-o com os olhos fechados. Enquanto não olhasse, a situação estaria sob controle...
?Por que não saiu de sua casa durante esses cinco dias?
A pergunta fez Mary abrir os olhos e olhá-lo ferozmente. Ele queria rir dela? Queria ridicularizá-la? Porque se lhe dissesse o motivo, nenhuma humilhação passada seria tão imensa quanto a que ela sofreria no presente. No entanto, ao descobrir que ele não a olhava, que mantinha seus cílios louros preciosos e longos unidos, relaxou e continuou a tarefa, envolvendo-se novamente em um estado de bem-estar ilógico para ela.
?Esteve doente? ?Insistiu em descobrir.
?Não ?respondeu.
?Então? ?Entreabriu o olho esquerdo e sorriu ao observar a raiva que exibia seu rosto. Não entendia muito bem se era devido à pergunta ou à repulsa diante da sua proximidade. Se fosse a segunda opção, ele estava morto. Porque, ao contrário de Mary, ele estava voando sem asas e pisando nas nuvens sem atravessa-las. Como o resto da humanidade definiria uma emoção semelhante?
?Estava de castigo ?finalmente declarou. Fixou os olhos no peito de Giesler, tentando definir se sua respiração ficaria agitada ao segurar uma risada. No entanto, permaneceu sereno, calmo e isso a incentivou a continuar: ?Minha mãe não achou engraçado que sua segunda filha, quem ela queria ver casada um dia, operasse um homem solteiro enquanto ele estava nu.
Ele ainda estava calmo, como se suas palavras não o afetassem. Ele não soltaria uma risada ou zombaria disso? Apoiaria a decisão de sua mãe? No entanto, quando colocou sua mão direita sobre o lado, para realizar um leve puxão e tirar o resto do curativo, observou que estava fingindo essa tranquilidade, já que seu batimento cardíaco era tão rápido quanto o dela. O que essa alteração significava? Concordava com o castigo ou se sentia culpado?
?Explicou que me deixou dormindo, que sua raiva não tinha raciocínio lógico? ?Ele perguntou, suportando estoicamente a dor que apareceu em seu peito quando descobriu que Mary havia sido injustamente punida por causa dele.
?Sim ?respondeu pouco antes de se ajoelhar para poder observar, de uma posição mais próxima, a ferida.
Como o pai lhe explicou, a sutura foi excelente. Ele mal teria uma linha branca fina no futuro. Sem dúvida, essa costura, apesar dos nervos que sofreu, era perfeita, como se estivesse costurado a vida toda. De repente, ela começou a rir enquanto deduzia a razão pela qual sua mãe havia levado o bastidor, os fios e o enorme tecido para o seu quarto.
?O que é tão engraçado, Mary? ?Philip estalou movendo-se suavemente para observá-la melhor.
?É incrível! ?Exclamou, incapaz de parar de rir. ?Só ela pode inventar uma tolice semelhante!
Intrigado, Philip queria se virar para Mary, mas ela o impediu, colocando novamente uma de suas mãos no centro daquele peito masculino e largo.
?Não se mexa, milorde. Agora é muito perigoso ?ela pediu, com uma voz suave.
?Então me responda ?ele implorou, num tom tão suplicante que Mary sentiu o desejo de abandonar toda a frieza que ela havia decidido mostrar, sentar ao lado dele e conversar como se fossem dois bons amigos.
?Já lhe disse que estive de castigo... ?começou a dizer.
?E que o motivo foi injusto porque, apesar de me ver nu, eu estava inconsciente e não era perigoso para você ?a interrompeu.
?Você não é perigoso, lorde Giesler, mas arrogante ?declarou, com um sorriso de orelha a orelha.
?Bem! Acaba de destroçar meu ego, Mary Moore Arany! ?Ele exclamou, colocando as mãos no peito. Ele a tocou. Havia chegado perto o suficiente daquela mão macia para roçar seus dedos suaves. Mas, para sua decepção, ela a afastou rapidamente. ?Tantos anos pensando que sou irresistível para as mulheres e agora acontece que alguém me garante que não sou tão sedutor quanto acreditei durante todo esse tempo ?acrescentou ironicamente.
?Vi muitos homens que...
?Quantos? ?Perguntou, arregalando os olhos e se levantando.
?Não vai me ouvir? ?Respondeu assim que jogou o curativo em algum canto do quarto. Se levantou do chão e colocou as duas mãos no peito de Giesler, para forçá-lo a se reclinar novamente na cama.
«Maldita insistência!» Mary pensou ao sentir como suas mãos aumentavam de temperatura, ao perceber a aspereza daquele pelo masculino e perceber que a respiração de lorde Giesler estava alterada, como se ele tivesse corrido atrás de um galgo.
?Quantos homens você viu nu, Mary Moore Arany? ?Insistiu, entrelaçando os dedos de cada mão nos pulsos dela.
?Isso importa para você, lorde Giesler? ?Se aventurou a dizer.
De repente, ela sentiu que os polegares do homem acariciavam aquela parte de sua pele, queimando-a sem compaixão. Queria se afastar, queria se distanciar, precisava evocar seu bom senso! Mas... não podia. Ele arrebatou toda a força que teve até agora, deixando-a vulnerável, fraca.
?Sim, me importa ?Philip sussurrou enquanto fixava os olhos naqueles belos lábios vermelhos.
?Por quê? ?Mary insistiu em uma voz que não podia reconhecer como sua.
?Porque quero saber quantos homens duelarei em breve ?afirmou antes de agarrar com força os pulsos e estendê-los para ambos os lados, fazendo com que ela caísse de bruços sobre ele. Com tão bom acerto que aquela preciosa boca impactou sobre a sua.
Antes que Mary tivesse tempo suficiente para reagir, Philips soltou os pulsos. Ele colocou uma mão atrás da nuca e a outra nas costas dela, imobilizando-a. Seus maravilhosos olhos azuis a observavam incrédulo e parecia que saltariam de suas orbitas. Ele hesitou. Por um segundo, duvidou da decisão que havia tomado, mas imediatamente a apagou da sua cabeça. A amava, desejava, precisava e queria que ela fosse... sua. Lentamente, ele pressionou seus lábios nos dela, pedindo-lhe para separá-los, mas Mary não entendeu bem o propósito que se havia definido. Ninguém a beijou com paixão? Mary foi sincera? Que Deus se compadecesse de sua alma perdida porque iria desfrutar muito ensinando-lhe o que significava a palavra prazer!
Atordoada não era a palavra que a definia exatamente. Nem mesmo outra poderia descrevê-la perfeitamente! Sua boca pressionava a dele, notava o calor do ar que fazia ao respirar tocar suas bochechas e percebia, com incrível precisão, como os batimentos de seu coração e os do lorde palpitavam juntos. Tentou se separar quando suas mãos ficaram livres, mas não conseguiu se mexer. Aquele perverso colocou uma de suas grandes mãos na nuca e a outra nas costas, impedindo-a de fazer qualquer movimento para se distanciar. Em pânico, ela abriu os olhos e tentou gritar, no entanto, algo aconteceu que a deixou tão confusa que a silenciou. Esse algo tinha um nome: língua. A ponta desse órgão muscular masculino tocou seus lábios, incentivando-a a separá-los. O que se propunha? O que devia fazer? Poderia considerar esse momento como um teste médico? Oh sim! Claro! E o adicionaria a qualquer manual sobre as interações sexuais entre um homem e uma mulher! Apertou os lábios com força, certificando-se de não deixar a língua ousada e descarada passar.
No entanto, essa ideia firme foi suprimida de sua mente quando as pontas dos dedos, colocadas em seu pescoço, começaram a acariciá-la lentamente. Encantada por essas carícias suaves, seu corpo relaxou e mergulhou em um improvável estado de bem-estar. Era consciente de como seus pelos se arrepiavam, como o calor nascido em seu sexo aumentava e como todo o seu ser ansiava por algo que ela nunca havia provado. Pela primeira vez, ela estava em um estado de fluidez e despreocupação, como se aquele homem a mantivesse protegida, segura e não existissem problemas a enfrentar. Havia apenas eles... dois. Lorde Giesler aproveitou esse momento de embriaguez erótico para invadir o interior da boca dela. Aquela língua masculina a possuiu, a acariciou com anseio, com desejo e com tanta paixão que finalmente fechou os olhos e se deixou levar. Nunca imaginou que uma coisa tão ridícula pudesse provocar algo tão grandioso! Agora entendia a razão pela qual Anne havia sucumbido com tanta facilidade. Se um homem a tivesse beijado dessa maneira, nada e ninguém a impediria de acabar consumindo a paixão iniciada. De repente, ouviu um rugido brotar da garganta masculina. Quando tentou se concentrar no motivo pelo qual fez esse som, outro saiu ainda mais alto. Se lorde Giesler tivesse sido o chefe de uma tribo, esse som poderia defini-lo como um chamado de posse, territorialidade, orgulho e glória, tornando-a sua única companheira de vida. Mas... Isso devia ser uma tolice, certo? Ele não podia reivindicá-la como sua, não havia nada científico que pudesse explicar tal suposição.
No entanto, mesmo que tudo fosse imaginário, era bonito deixar seu corpo relaxar e ser enganado acreditando que sua casa estava nos braços daquele homem. Um lar fictício, é claro, pois ela nunca pensou em morar naquele corpo masculino. Com coragem e vontade de experimentar, ela imitou os movimentos da pecaminosa língua viril até que ambas se encontraram. O sabor do café, que havia tomado antes de subir, se expandiu pelas bocas. Era como se estivesse tomando novamente um gole daquele líquido delicioso adoçado com o sabor rico dele. Foi nesse momento que admitiu com resignação que nunca mais tomaria um café tão gostoso e excitante. Os beijos eram sempre assim? Davam tanto prazer as duas pessoas? Porque não queria parar, era mais, doía ter que fazê-lo, mas a necessidade de respirar se tornou inegável. Quando abriu os olhos, notou que as pupilas de lorde Giesler haviam se dilatado e que suas íris estavam escuras, expressando um sentimento muito diferente da indiferença...
No momento em que sua mente começou a enumerar as possíveis razões pelas quais ele a olhava com tanto ardor, ele pegou seu rosto com as duas mãos e aproximou-o o suficiente para notar novamente o calor da respiração e a suavidade dos seus lábios.
?Vou te dar a lua, Mary ?ele declarou antes de beijá-la novamente e repetir um beijo atrevido, ousado, indecente e maravilhoso.
Mas tudo o que é belo não dura para sempre...
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou Shals batendo à porta com insistência.
?Não! ?Ele respondeu.
?Sim! ?Ela disse, se afastando rapidamente do seu lado.
Capítulo X
Ele devia lealdade ao seu senhor...
Desde que o contratou, catorze anos atrás, ele nunca o deixou indefeso e nessa ocasião também não o faria. Ele saiu da biblioteca, onde havia se escondido os últimos dez minutos para evitar encontrar a Sra. Reform e, depois de confirmar que não havia ninguém, caminhou rapidamente pelo corredor. Ele carregava a maleta da senhorita Moore na mão direita, essa era a desculpa que daria quando aparecesse no quarto. Depois de confirmar o estado de seu senhor, a agonia que estava sofrendo desde que a jovem subiu as escadas, pronta para colocar lorde Giesler em seu lugar, desapareceu. Com a agilidade de um ladrão habilidoso e um sorriso de satisfação que cruzava seu velho rosto, Shals começou a subir as escadas, fazendo o menor ruído possível. No entanto, seus olhos se arregalaram quando ouviu alguém bater na porta. Ele esperou o tempo suficiente, plantado lá, para confirmar que, exceto ele, ninguém mais ouvira as batidas insistentes da aldrava na madeira. Ele bufou, pois seu dever como mordomo principal o acusava de não cumprir a tarefa que lhe fora confiada. Pôs a maleta no degrau e recuou tudo o que lhe custara tanto. Parou em frente à entrada, esticou o colete de seu traje e mostrando a severidade própria do homem de confiança do lorde, abriu.
?Shals! Ainda bem que me ouviu! Estou há mais de cinco minutos batendo na porta! ?Martin disse enquanto tirava o casaco para oferecer a ele.
?Sinto muito, senhor, mas hoje temos a casa um tanto agitada ?comentou como um pedido de desculpas.
?Philip tem piorado? ?Ele perguntou inquieto olhando para o andar de cima enquanto tirava as luvas.
?Não, para alívio de todos nós, nosso senhor está muito bem ?explicou depois de pendurar o casaco de Martin no cabide e colocar as luvas na gaveta da cômoda da entrada. ?A causa da agitação se deve a...
?Martín! ?Valeria gritou quando apareceu no corredor. ?Que alegria vê-lo novamente! Desde quando está em Londres? Por que não veio me visitar? Esqueceu que tem seis sobrinhos esperando a presença de seu tio favorito? ?Acrescentou antes de envolvê-lo em um forte abraço maternal.
?Cheguei há alguns dias, peço desculpas por não ter aparecido em sua casa neste momento, mas tinha um assunto importante para resolver e não podia atrasá-lo ?desculpou-se, esboçando o sorriso mais terno e mais doce que um irmão que amava sua irmã poderia mostrar.
?Que assunto? ?Valeria entrelaçou seu braço esquerdo no direito de Martin.
?Falaremos depois disso, se não se importar. Eu gostaria muito que Philip estivesse presente quando oficializasse.
?Vai casar? ?Perguntou erguendo as sobrancelhas. ?Você conheceu uma mulher?
?Realmente pensa que sou incapaz de tirar os olhos dos livros? ?Perguntou com aversão.
?Eu não disse isso! Sei que, quando fizer isso, levantar seus olhos bonitos dos livros, encontrará a mulher que espera e nesse dia...
Shals aproveitou a distração dos irmãos para subir as escadas novamente. Teria que acabar com a agonia que sofria por não saber o que estava acontecendo no quarto do lorde. Ele precisava confirmar que a Srta. Moore não tinha gritado com ele, cuspido ou... matado. Daí que permanecessem em silêncio absoluto. Ele pegou a maleta e subiu os últimos degraus. Caminhou pelo corredor o mais rápido que seus pés o permitiam e, quando alcançou a porta do quarto do senhor que estava aberta, ficou surpreso ao ver a imagem que era oferecida lá dentro. Eles não eram capazes de ver a imagem que mostravam, pois ambos tinham os olhos fechados. Mas ele foi a única testemunha de um milagre. Em silêncio observou-os com tanto afeto que sentiu como seu coração lhe dava uma reviravolta. Seu senhor, o homem que negava o amor, dizendo que só podia trazer tragédias desastrosas ao mundo, aninhava o rosto da senhorita Moore em suas grandes mãos, enquanto as dela repousavam pacificamente em seu peito nu, como era habitual desde que adoeceu. A janela permanecia aberta, talvez Phiona a abriu ao amanhecer, para que o senhor admirasse o belo dia. No entanto, a beleza de fora era mínima se comparado a imagem dos dois. A brisa movia levemente as cortinas, a luz do sol atingia os dois, como se todos aqueles elementos naturais quisessem glorificar um momento tão bonito.
?Vou te dar a lua, Mary ?Lorde Giesler disse à mulher antes de beijá-la.
Ele poderia ter se virado e desaparecido sem ser visto ou ouvido, mas a voz da Sra. Reform indicava que os irmãos de seu senhor estavam indo visitá-lo. Deu um passo à frente, pegou na maçaneta com a ponta dos dedos e fechou a porta até ficar apenas uma pequena abertura. Essa opção seria mais adequada que apresentar-se sem avisar e fazer com que a senhorita Moore se encontrasse em um grande apuro. Seus lábios permaneceriam selados, embora jamais esqueceria o brilho que seu amo mostrou nos olhos ao olhá-la, nem a declaração dessas palavras tão firmes e seguras. Tinha se apaixonado. Finalmente! E de uma mulher que todo o serviço adorava, apesar de ter um comportamento tão áspero quanto a lixa de um ferreiro. Ele olhou para trás para garantir que a visita prematura chegasse ao patamar no primeiro andar. Que lorde Giesler o perdoasse, mas era mais sensato pôr um fim àquele momento romântico do que serem encontrados daquela maneira. Ele agarrou a maleta com força, colocou os nós dos dedos da outra mão na porta e bateu quase sem movê-la do lugar.
?Milorde, posso entrar? ?Perguntou.
?Não! ?Ele gritou.
?Sim! ?Disse ela.
?Desculpe pela interrupção, excelência ?Shals comentou entrando rapidamente no quarto ?mas presumi que a senhorita Moore precisasse de sua maleta.
?Obrigada, Shals ?a jovem respondeu, depois de alisar as rugas do vestido com as mãos, ela sorriu e estendeu a palma da mão para pegar a maleta. ?Você é muito atencioso ?acrescentou se virando.
Colocou-a sobre a mesa pequena que estava ao seu lado e suspirou. Suas bochechas ainda estavam ardendo, seu coração ainda estava acelerado e suas mãos tremiam. Como foi capaz de enredar os dedos na alça da maleta se não podia controlá-los? Olhou para fora e uma brisa leve acalmou aquele estado de excitação que havia liberado segundos antes. Não podia acreditar no que tinha feito. Não apenas se deixou levar por um beijo, mas também ansiava por mais. Odiou o momento em que escolheu usar um vestido de mangas compridas, porque seus antebraços não podiam tocar o peito masculino, amaldiçoou o momento em que a costureira indicou que o decote era apropriado, porque queria descobrir se lorde Giesler gostaria de ver seu peito, como ela gostava de observar o dele, e estava com raiva de si mesma por não ser capaz de parar aquela situação.
?Milorde, desejo anunciar que seu irmão decidiu visitá-lo esta manhã ?prosseguiu falando o mordomo, que se colocou em frente aos pés da cama. ?E que aparecerá com a senhora Reform em breve...
?De fato, Martin, —disse Valeria, ao entrar no quarto. —A Srta. Moore decidiu visitar nosso irmão e confirmar que ele evolui satisfatoriamente.
Naquele momento, Mary queria pular pela janela e correr sem olhar para trás até chegar em casa, mas tudo o que fez foi respirar fundo, dirigir-se às pessoas que entravam no quarto e mostrar seu melhor sorriso.
?Mary, tenho a grande honra de apresentá-la ao nosso irmão mais novo, Martin Giesler.
Antes que ela pudesse dar um passo em direção a eles, o jovem, que se parecia muito com lorde Giesler, exceto que usava óculos e sua compleição era menos robusta, avançou em direção a ela, pegou uma das mãos e beijou os nós dos dedos.
?Cara Srta. Moore, é um prazer finalmente conhecê-la. Quero agradecer pessoalmente pelo fato de ter salvado a vida de meu irmão. ?Disse num tom gentil.
Com essas palavras muito cordiais e afetuosas, Mary corou, piscou várias vezes e deu um sorriso coquete. Enquanto isso, Philip estendeu a mão direita até encontrar o livro, que tentava ler até decidir se levantar, e pensou em jogá-lo em Martin. Mas ele se conteve. Seu irmão não era um rival para ele, certo?
?A honra e o prazer são meus ?ela respondeu com alguma timidez. Deu um passo atrás para manter distância e agarrou suas mãos.
?Porque motivo? ?Ele retrucou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?É uma grande satisfação para mim que um homem com seu talento me parabenize.
?Com meu talento? ?Martin insistiu, erguendo a sobrancelha direita.
?Sua fama é notória em toda a Inglaterra. Não há ninguém neste país que não tenha lido e admirado sua última publicação. Devo confessar que fiquei surpresa ao ler sua definição e cálculos em uma interseção variável em dois planos curvos. Foi esplêndido, se me permite o elogio, lord...
?Não sou lorde, apenas Martin Giesler ?ele a corrigiu rapidamente. ?É ele quem ostentará, se decidir fazê-lo algum dia ?concluiu?o título de Freiher Von Giesler. No entanto, lhe peço encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal, não acha? ?E sorriu para ela.
?Sendo assim, pode me chamar de Mary, e obrigada pelo elogio. Fico lisonjeada ao descobrir que há um homem neste mundo que não se intimida com o intelecto de uma mulher ?respondeu, acrescentando às suas palavras um sorriso fraco.
?Informava ao meu irmão ?Valeria interveio, que suportou o máximo que pôde a risada que queria explodir quando viu como Philip se contorcia na cama ?que aceitou o convite para almoçar conosco.
?Almoçar? ?Philip se intrometeu. ?Não seria educado ou apropriado, pois o anfitrião desta casa, que paga seus bons funcionários e a comida que colocam na mesa, não pode se comportar como tal devido a sua doença e indisponibilidade ?salientou.
?Oh, Philip! ?Exclamou Valeria com um sorriso fingido e movendo a mão direita com desdém. ?Sempre tão brincalhão! Não se preocupe Mary, não há nenhum problema. Além disso, desfrutaremos da agradável companhia de Martin. Sabe que foi o rapaz mais jovem que contrataram na Universidade? ?Enroscou o braço direito no esquerdo da moça e a fez caminhar em direção à porta. ?Nós já sabíamos que ele se tornaria uma pessoa muito importante, porque quando criança ele sempre pensava e raciocinava como um homem adulto. Em vez disso, Philip... Oh, Deus! Não sabe os problemas que tive que suportar por sua culpa! ?Exclamou novamente com aparente pesar. Quando estava a um passo de fazê-la sair do quarto, parou e olhou para ela. ?A propósito, você terminou? Talvez tenhamos interrompido a consulta e não conseguiu finalizá-la...
?Não se preocupe, tinha acabado de verificar quando apareceram. Só tenho que colocar um novo curativo, mas Shals pode fazer isso durante o dia ?garantiu.
Por nada no mundo, ficaria sozinha com ele novamente! Ela gostou do beijo? Sim! Tinha gostado de ver que havia um homem que a desejava? Sim! Mas aí concluía sua história. Não poderia se deixar levar pela emoção que lorde Giesler lhe causava. Era um homem perigoso para ela, demais para ficar sozinho com ele novamente.
?Que conclusão chegou? ?Valeria insistiu, acelerando o ritmo. ?Acha que logo poderá se levantar e deixar essa maldita cama?
?Conseguirá se permanecer deitado pelo tempo recomendado ?Mary alegou antes de sair de lá sem sequer se despedir com um olhar fugaz.
***
Os dois irmãos ficaram olhando para a porta e só se viraram quando Valeria e Mary desapareceram.
?Milorde ?Shals interveio, que permaneceu escondido em um canto do quarto o tempo todo ?com sua permissão, devo confirmar que o almoço está devidamente preparado. ?Deu um passo para a cama, fez uma rápida reverência e saiu dali antes que...
?Qual é o problema?! ?Martin gritou quando sentiu uma dor terrível no peito, causada pelo impacto de um livro voador inesperado.
?Qual é o problema? Você dirá... o que acontece com você? ?Explodiu. Apoiou os cotovelos sobre o colchão e acabou por se sentar.
?Não sei a que se refere ?disse agachado para pegar o livro que, após a colisão, tinha caído no chão aberto.
?Peço-lhe encarecidamente que me chame de Martin. Depois de verificar que, diante dos meus olhos, possivelmente tenho a mulher mais erudita de toda a Grã-Bretanha, me vejo na obrigação e no prazer de manter um comportamento mais pessoal ?repetiu as palavras que seu irmão usou como se estivesse mastigando a sola de um sapato.
?Isso? ?Ele retrucou, depois de depositar o livro na lareira. ?É considerado educação e respeito por uma mulher inteligente que, felizmente, salvou a vida de um ente querido.
Ele caminhou parando na frente de Philip e se apoiou com o ombro direito em um dossel de madeira. Poderia deixar escapar uma risada enorme? Porque Deus bem sabia que ele queria fazer isso! Se pegasse o espelho, que estava na cômoda, e o colocasse na frente de seu irmão, descobriria que os demônios realmente existiam. Como prometeu a Valeria, ele ofereceu uma atitude receptiva em relação a Mary, para que Philip reagisse. No entanto, admitiu que estava fascinado ao descobrir que ela havia lido sua última publicação.
?Educação e respeito? Você quase voa como se fosse um querubim em sua direção para beijar a mão dela! Beijar a mão dela! ?Repetiu, percebendo como uma estranha acidez queimava seu estômago.
?Não me disse algo sobre não distinguir entre dois bons seios femininos e duas formas de calcular um mesmo resultado? ?Ele comentou, mesmo sabendo que o inferno dividiria a terra em dois e que o próprio Satanás puxaria sua mão para arrancar sua alma. ?Bem, pela primeira vez na vida, tenho que provar que você está certo. A senhorita... Mary parece ter herdado um busto generoso e firme. Embora seu vestido azul não tivesse um decote muito ousado. Apesar de tudo, acho que quando me aproximei para beijar aquela mão doce e macia, nossos peitos se aproximaram o suficiente para calcular suas medidas. Você me pediu para contemplar também a largura dos quadris de uma mulher? Porque eu acreditava que... ?terminou de falar quando um travesseiro voou, das costas de Philip, para impactar seu rosto, fazendo com que seus óculos fossem atirados no meio do quarto. Como diabos ele estava se movendo com tanta agilidade se ainda estava convalescente?
?Não se aproxime dela! Entendido? ?Berrou. ?Ou juro por Deus que essa conversa será a última que temos pelo resto de nossas vidas.
Martin pegou os óculos do chão, colocou-os e olhou para o irmão. Pela primeira vez, uma ameaça a sua pessoa apareceu em seu rosto. Seria conveniente informá-lo de que Valeria havia planejado sua atuação em relação a Mary? E se decidisse se vingar dos dois? Se havia algo inquebrável em Philip, era sua necessidade dar uma lição às pessoas que o desafiavam. Um exemplo claro disso poderia ser assegurado pelo homem que, quando era adolescente, Philip o chamou de trapaceiro em um jogo de cartas que jogou no antigo clube de seu cunhado. Demorou quase quinze anos para encontrá-lo e, depois desse momento, o cavalheiro não conseguiu levantar a aba do chapéu por dois longos meses. De acordo com a versão de seu irmão, o Sr. Manther colidiu com seu ombro duro no momento em que saiu de White´s e, logicamente, não se afastou rapidamente para evitar um impacto inconveniente e doloroso no olho direito. Então, se não desejava usar um chapéu de abas largas por vários meses, era melhor dizer a verdade.
?Essa farsa foi ideia de Valeria ?finalmente confessou.
?O que significa ... esta farsa? ?perguntou estreitando os olhos.
?O de flertar com Mary ?esclareceu.
?Maldita mente perversa! ?Philip exclamou com raiva.
?Não tinha pensado falar com a senhorita Moore, já sabe que não sou muito versado em manter uma conversa agradável com as mulheres, mas Valeria, depois de encontrá-la no corredor, não parou de falar e falar... Me disse que havia deixado vocês algum tempo sozinhos e que assim lhe devia um grande favor. Que precisava da minha ajuda para descobrir se o seu interesse por essa moça era verdadeiro. Imagino que colocou suas esperanças nela para aceitar maldita baronia.
?Típico dela... ?Philip murmurou.
?Juro que minha presença tinha outro objetivo. Queria pedir conselhos sobre um assunto que tenho nas mãos ?Ele disse sem tirar os olhos do irmão. Relaxada a tensão entre ambos, Martin adotou uma postura mais calma: cruzou os braços na frente do peito e os pés à altura dos tornozelos.
?O que você precisa? ?Philip estalou, olhando para ele sem piscar.
A vida poderia dar algo doce e acido ao mesmo tempo? Porque é assim que se sentia. Ela passou de ter nos lábios a doce boca de Mary para a acidez de lutar com seu irmão para consegui-la. Agora, apesar de saber que tudo tinha sido um truque de Valeria, ainda não conseguia sentir novamente a ansiada doçura.
?Um em troca do outro, como quando éramos crianças? ?Observou, erguendo as sobrancelhas loiras.
?Um em troca de outro ?admitiu enquanto seu corpo relaxava consideravelmente.
?Bom. Eu decidi estabelecer minha nova residência aqui em Londres ?Martin começou a dizer enquanto se aventurava a sentar ao lado de seu irmão. ?Conversei com Lawford Jr. e ele me disse que poderia investir na propriedade dos Bohanm. Como me informou, é um casal bastante antigo e deseja partir à sua casa de campo para desfrutar de um pouco de paz no tempo que lhe resta de vida.
?Sabe quais vizinhos terá? ?Philip estalou, franzindo a testa e olhando para ele... de novo.
?Ainda não vi, então...
?Os Moore! ?Explodiu de novo.
?De verdade? ?Ele perguntou, arregalando os olhos. ?Inferno de coincidência!
?Você não me disse que agiu de acordo com o plano de Valeria? ?Rosnou.
?Juro pela alma dos nossos pais que sim e que não fazia ideia que a família da Mary seria meus novos vizinhos. Só quero um lar tranquilo, onde possa continuar com... ?Ele se levantou, deu as costas para o irmão, caminhou até a varanda e ficou em silêncio.
?Com? ?Philip insistiu.
?Eu deixei o trabalho na Universidade ?ele disse finalmente, sem desviar o olhar do lado de fora.
?O que disse? Por quê? Você ficou louco? Você precisa de mim para isso? Não é capaz de enfrentar a ira de Valeria? Porque ficará com raiva quando descobrir e me culpará de sua decisão ?Philip comentou, mal respirando.
?Não te culpará de nada, porque lhe explicarei que me ofereceram mais uma alternativa... ?«Obrigatório?», pensou Martin. Não, não poderia dizer isso, era vital para o bem-estar da família que ninguém soubesse a verdade.
?Mas? ?Philip insistiu em saber.
?Tranquilo ?Ele respondeu, virando-se para o irmão. ?É verdade que o trabalho que fiz na Universidade foi gratificante, mas mal aproveitei o tempo livre. Anseio por uma casa, anseio por sua companhia, quero me casar, formar uma família e... viver ?lhe garantiu. Embora a verdadeira razão pela qual decidiu se estabelecer não tivesse nada a ver com a vida, mas com a morte, e não de uma pessoa, mas centenas, talvez milhares...
?Quando você pretende realizar seu novo futuro? ?Perguntou intrigado.
?Em uma semana, no máximo ?ele declarou depois de colocar as duas mãos nos bolsos e puxar os painéis frontais da jaqueta azul marinho. —O tempo que leva para Lawford confirmar a compra dessa residência.
?Bem... ?Philip murmurou acariciando uma barba inexistente. ?Embora Valeria fique brava com você por um longo tempo, devo confessar que é a melhor decisão que você tomou até agora. Já era hora de você voltar e decidir procurar uma esposa, que não será Mary, é claro ?Ele apontou examinando o rosto de seu irmão.
?Não será Mary, te garanto isso. ?Sorriu. ?De certa forma, foi responsável por esta decisão. ?Ao ver que seu irmão levantava uma sobrancelha em sinal de pergunta, acrescentou: ?Sofri muito ao pensar que poderia ter morrido. Tenho me perguntado todos estes dias o que teria acontecido se você... ?não terminou a frase, doía muito fazê-lo. ?Tinha pensado oferecer minha carta de demissão quando terminasse o curso, mas a enviei no mesmo dia que Pierre me fez chegar a missiva de Valeria para me informar sobre sua doença. ?Não era bem verdade, ele o escrevera vários meses antes, quando o estrangeiro apareceu em sua antiga casa e lhe disse que tinha menos de seis meses para aceitar a nova posição oferecida a ele. O anúncio da situação de Philip acelerou o processo. ?O tempo é curto e acho que devo aproveitar para viver com as pessoas que amo ?concluiu. Ele voltou para o lado do irmão e sentou-se novamente no canto inferior da cama?. Então, aqui estou eu, esperando um papel para realizar um sonho... ?refletiu. ?Agora é sua vez, irmão. Diga-me que segredo você mantém ?apelou.
?Vou aceitar a maldita baronia ?comentou depois de jogar a cabeça para trás, até tocar na cabeceira de madeira e suspirar.
?De verdade? Tem certeza? Valeria vai chorar de emoção! Está a muitos anos esperando você tomar essa decisão! ?Comentou feliz.
?Mas somente se eu puder me casar com ela ?disse uma vez que os olhos de ambos encontraram.
?Então... você gosta??Discorreu Martin acomodando os pés sobre a cama, como costumavam fazer quando eram crianças.
?Estou apaixonado, Martin. Não sei quando, nem como, nem por que aconteceu, mas concluí que não poderia viver sem ela. ?Ele admitiu, com um sorriso nos lábios.
?Eu tenho que te dizer uma coisa, Philip, ?ele começou a dizer adotando o tom que costumava falar com seus alunos —há um estudo e um termo médico que, até o momento, não foram levados em consideração, mas seria interessante se você o conhecesse.
?Qual? ?Sua voz soou como se estivesse a ponto de defender-se de um ataque repentino.
?O choque de gratidão. O que sofre um paciente que, ao ser salvo de uma morte certa, acredita que se apaixonou por seu salvador e...[7]
?Bobagens! ?Philip o interrompeu. ?Eu me apaixonei por Mary desde o momento em que a vi pela primeira vez. O que aconteceu a seguir apenas confirmou que ela é a única mulher que eu quero ter ao meu lado pelo resto da minha vida ?garantiu a ele.
?E por que vai assumir a baronia quando se casar com ela??Estalou intrigado.
?Porque me pediu a Lua e só poderei dá-la se me converter em um miserável aristocrata ?ele alegou antes de olhar para a maleta que, novamente, havia sido esquecida por sua dona.
Capítulo XI
Como ela poderia se comportar de uma maneira tão irracional? Por que era incapaz de sentir felicidade quando deixou a residência do lorde? Qual seria a razão médica pela qual notava uma forte pressão no peito? Estaria prestes a sofrer um derrame depois do que aconteceu com aquele homem?
Mary não tirou os olhos da janela enquanto voltava para casa acompanhada de Valeria. Tal como ela lhe prometeu, depois do almoço, conduziu-a até à livraria do senhor Slow e deu-lhe as três crônicas médicas que havia reservado. Deveria mostrar felicidade por ter conseguido tanto o que queria nos cinco dias de castigo, mas não foi assim. Pegou as revistas e as colocou dentro da pasta sem parar para ler seus títulos. Reagiu de modo automático, sem emoção. Talvez porque sua cabeça se recusava a se concentrar em outra coisa que não fosse... ele.
Acreditou, inutilmente, que todas as emoções e sensações produzidas durante o beijo desapareceriam uma vez que abandonasse o quarto. Errado. Ela os reviveu tantas vezes que sofreu inúmeras ondas de calor no almoço. Embora a conversa que teve com Martin tenha sido bastante agradável, não foi esplêndida nem maravilhosa. Apenas prestou atenção à conversa exaustiva que lhe ofereceu sobre o algoritmo quantitativo em diferentes equações. No fundo, e isso parecia inédito, ficou entediada. Em algum momento dessa explicação, sua alma deixou seu corpo para sair da sala de jantar, subir as escadas, correr pelo corredor para voltar aos braços de lorde Giesler. Seus lábios sentiram novamente a suavidade daquela boca masculina, provaram aquele maravilhoso sabor de café, sua língua dançou outra dança de carícias e, por isso, prazer e paixão retornaram.
Tal como concluiu, a melhor opção para manter um bem-estar mental e físico era evitar outro encontro com ele e eliminar de sua mente todos aqueles pensamentos tão inapropriados. Nunca se sentira tão atraída ou intimidada por um homem. Jamais deixou em um segundo plano quem era e em quem desejava se converter. No entanto, desde que aquele homem apareceu em sua vida, tudo se tornou um caos, pois não era capaz de se concentrar em nada exceto nele. Quantas vezes, desde que seu pai lhe deu a maleta, se esqueceu dela? Até que lorde Giesler se cruzou em seu caminho, nunca. Se havia noites que até dormia com ela na cama! Isso também tinha mudado, porque durante sua inesperada visita abandonou seu precioso presente em várias ocasiões...
Sem afastar o olhar do lado de fora suspirou fundo. Estava muito decepcionada por não ter sido capaz de controlar nem sua mente e nem seu corpo quando permaneceram juntos. Ela estava sempre atenta às traições que os outros podiam gerar, mas nunca imaginou que ela mesma seria a maior traidora de sua pessoa. Desde que Anne sofreu a angústia da morte de Dick ou do engano que Elizabeth padeceu por Archie, ela se esforçou para lutar contra tudo o que envolvia um relacionamento afetuoso com um homem. Tudo o que podiam obter dela eram conversas e discussões médicas. Qualquer sentimento afetivo estava vetado, negado, fechado. No entanto, lorde Giesler quebrou todas as barreiras que ela havia construído ao longo dos anos. Aquele gigante de olhos azuis e cabelos loiros havia se tornado seu ponto fraco, porque havia encontrado uma maneira de transformá-la, através de seus beijos e carícias, em um ser vulnerável, frágil e comum.
Ela se mexeu desconfortavelmente no assento enquanto apertava as mãos com força, que estavam no colo. Se não estava errada, como começava a ser habitual nela, suas bochechas já mostrariam um leve rubor por causa de suas divagações. Valeria poderia supor que isso se devia à ansiedade que lhe provocava chegar em casa e enfrentar novamente o castigo estabelecido por sua mãe. Mas essa não era a razão pela qual as bochechas pareciam duas pequenas chamas de fogo. A lembrança de como o corpo dela reagiu durante os beijos a alterou e a enfureceu a ponto de elevar a temperatura do corpo em mais de dez graus. Se tocasse o termômetro que guardava na maleta, o mercúrio aumentaria tanto que o pequeno tubo de vidro explodiria em suas mãos. Como se deixou levar tão facilmente? Por que seu cérebro foi incapaz de impedir isso? Não havia lido que a amígdala cerebral ajudava a encontrar a estratégia necessária para resolver uma situação de estresse, medo ou perigo? Então, por que a dela estava inativa quando lorde Giesler se encontrava próximo a ela? Bufou pelo nariz. Ansiava procurar respostas médicas para todas as suas perguntas e tinha uma solução para isso: procuraria o livro que seu pai mantinha na prateleira de seu escritório. Se bem lembrava, o médico e cientista francês Paul Broca explicaria como o sistema límbico funcionava. Talvez descobrisse qual dos seus quatro componentes era responsável pelas respostas emocionais. Depois que encontrasse o problema, lutaria contra ele. E se para isso tivesse que usar aqueles dolorosos choques elétricos, se submeteria sem hesitar um segundo. Ela precisava fazer tudo ao seu alcance para ser a Mary de sempre e se afastar de quem se tornara. Ela nunca foi uma mulher apaixonada, mas uma jovem respeitável que raciocinava, entendia e observava o mundo de uma perspectiva lógica. Não podia se transformar, da noite para o dia, na desavergonhada que havia percebido um certo prazer entre as pernas ou que ansiava que as mãos do homem viajassem cada centímetro de sua pele. De modo algum voltaria a desejar algo que tinha decidido não ter em sua vida. Por esse motivo, lorde Giesler tinha que morrer para ela.
?Mary? ?Valeria perguntou estreitando os olhos.
?Sim? ?Ela respondeu, virando-se para a companheira e desenhando um enorme sorriso. A consequente ao ter a certeza de uma vitória próxima.
?Está bem?
?Sim, muito bem. Por que pergunta? ?Continuou falando sem apagar o leve sorriso dos lábios. Esperava que seu rosto não decidisse traí-la também, porque não queria ser interrogada pelos poucos minutos restantes, para chegar em casa, sobre o motivo de estar tão ausente.
?Percebo você... distante ?Valeria alegou.
?É o meu estado normal ?respondeu enquanto estendia a mão para a alça da maleta e a colocou sobre as pernas. ?Minha cabeça não para de pensar sobre o que esses preciosos artigos médicos registram.
?No que você está pensando agora? ?Estalou com uma mistura de decepção e raiva.
?Claro! ?Mary exclamou, arregalando os olhos para enfatizar sua decepção. ?Estou ansiosa para descobrir que nova doença encontrara na Europa e me informar de como pode ser eliminada. Embora ultimamente não tenham encontrado muitos casos importantes. No mês passado, os quatro artigos que adquiri na livraria do senhor Slow falavam sobre o ensaio realizado por Henry Gray em mil oitocentos e quarenta e oito, intitulado A origem, conexões e distribuição dos nervos do olho humano. Uma descoberta magnífica para um jovem anatomista e cirurgião britânico. Sabia que tinha a minha idade quando foi eleito Membro da Royal Society? Embora ele tenha morrido cedo demais. Uma verdadeira tragédia para a sociedade médica. Mas... Quem iria supor que morreria de varíola aos trinta e cinco anos? Segundo dizem, foi transmitido por um sobrinho que ele cuidava e...
Valeria não soube o que dizer a respeito. Tinha assumido, ao vê-la tão calada e embaraçada, que estava revivendo o tempo que passou a sós com seu irmão, mas se equivocava. A jovem era imune aos encantos de Philip. E era a primeira mulher a fazer isso! Mas não desistiria tão cedo. O que estava em jogo era o baronato e, diante disso, lutaria incansavelmente.
?Você se lembrou do ensaio porque viu algo perigoso nos olhos do meu irmão? ?A interrompeu.
?Como? ?Mary estalou confusa.
?Eu me perguntava se o fato de você evocar esse livro médico tem algo a ver com alguma doença que tenha apreciado nos olhos de Philip ?insistiu.
?Não! Nada disso! ?Disse rapidamente.
?Menos mal! Porque, pelo que entendi, pessoas que têm olhos castanhos podem...
?Castanhos? ?Mary soltou. ?Pelo que me lembro, lorde Giesler tem íris azuis claras, muito parecidas com as minhas ?acrescentou.
Bom. Pelo menos, ela havia notado esse detalhe. Agora tinha que continuar com seu plano.
?Certo. Às vezes me confundo com os de meu marido ?se desculpou. ?Então imagino que seu pensamento não tem nada a ver com outra possível doença, certo?
?Exato! ?Garantiu. ?Seu irmão está muito recuperado e abandonará o quarto se permanecer uns dias mais em repouso. Para ser sincera, continuo fascinada com sua evolução.
?De verdade? ?Valeria continuou. Se ela tivesse que falar sobre doenças para que se concentrasse em Philip, faria isso sem hesitar por um único segundo. ?Observou a ferida? Acha que requer muita atenção? Não posso estar todos os dias em sua casa. Meus filhos e meu marido são um desastre se me ausento mais de três horas de minha casa. Não ficaria surpresa que, ao voltar, tenham queimado algum cômodo.
?Não se preocupes. A ferida está perfeita. Apenas ficará uma fina cicatriz. Tenho certeza de que meu pai, quando o visitar hoje à noite, confirmará minha opinião. Só espero que Shals não demore muito para enfaixá-lo para que não entre sujeira na fissura.
?Não precisa se preocupar com isso. As empregadas limpam o quarto todos os dias ?Valeria disse.
?Não se trata desse tipo de limpeza ?disse antes de soltar uma pequena risada. ?Centenas de bactérias foram descobertas que pululam pelo ambiente e são invisíveis ao olho humano. Uma delas pode entrar na ferida e infectá-la.
?E sabendo disso... como não lhe ocorreu enfaixá-lo você mesma? ?Valeria perguntou perplexa.
?Porque me arrastou para a sala de refeições e durante o almoço não me pareceu correto me ausentar no meio da maravilhosa conversa sobre algoritmos que Martin me ofereceu. Além disso, tenho certeza de que Shals o enfaixou depois de confirmar que a comida estava preparada. Como você me explicou, ele é um mordomo muito eficiente ?explicou com certeza.
?Ainda assim, acho que seria conveniente que voltasse amanhã para confirmar sua suposição ?Valeria expôs uma vez que olhou pela janela e observou os telhados da residência Moore. ?Não gostaria que Philip tivesse uma infecção agora que começa a melhorar.
?Não vejo necessidade de voltar ?manifestou com angústia. ?Mas prometo que, quando falar com meu pai, informarei o que aconteceu para confirmar que o curativo foi feito corretamente.
?Não quer ter certeza de que meu irmão evolui favoravelmente? Negligencia com tanta facilidade as pessoas que atende? ?Insistiu.
A carruagem parou na entrada de sua casa. Devia esperar que o cocheiro abrisse a porta e desdobrasse as escadas de metal, mas se sentia tão ansiosa para sair de lá que, como demorava um segundo a mais, ela mesma o faria.
?Como te disse, meu pai cuidará dele como fez até agora ?comentou com mais ênfase do que deveria. ?Além disso, lembre-se que ainda estou de castigo e quando minha mãe descobrir que me levou para a casa de seu irmão em vez de consultar seus filhos, não poderei sair de casa até que complete os trinta anos.
Graças a Deus o cocheiro já tinha aberto a porta! Com a maleta na mão, baixou o mais rápido que pôde, alisou a saia de seu vestido e se virou para Valeria, que ainda continuava imóvel em seu assento.
?Foi um dia magnífico, Valeria. E eu insisto que você não deve se preocupar com seu irmão, certamente ele voltará em breve à vida que tinha antes de ficar doente.
?Mas... não quer que eu vá com você até a porta? O que sua mãe vai dizer sobre mim? Prometi a ela que cuidaria de você e a levaria até ela sã e salva.
?Despeço-me em seu nome. Além disso, quando lhe explicar que estava com pressa de chegar em casa, caso algum dos seus filhos tenha incendiado um quarto, ela entenderá. Boa tarde e obrigada pelo presente ?disse antes de fechar a porta e caminhar a grandes passos para sua casa, seu santuário, seu lugar protegido e do qual nunca deveria ter saído.
***
?Não se preocupe com elas, mãe. Garanto-lhe que todas estão perfeitamente bem.
A afirmação de Madeleine fez com que Sophia levantasse o olhar do bastidor e o fixasse na mais nova de suas filhas. Permaneceu em silêncio, observando-a sem piscar. Logo, depois de descobrir aquele brilho tão bonito e sincero em seus olhos verdes, sorriu e voltou para a costura.
?Eu sei ?garantiu. ?Mas é inevitável me preocupar com elas.
?Continua inquieta pela visão que tive sobre Anne? Pensa que me equivoquei sobre lorde Bennett? Porque lhe prometo que era ele. Esse homem nos salvará da maldição ?declarou solene. Fechou a caderneta em que anotou a última receita que havia preparado naquela manhã, se levantou lentamente da cadeira e foi até a mãe para se sentar ao seu lado.
?Confio em suas visões, Madeleine. Se acredita que lorde Bennett é o homem destinado a Anne, esperarei que sua profecia seja cumprida.
?Desaparecerá algum dia? ?Perguntou depois de alguns minutos de silêncio que os utilizou para refletir e entrelaçou seus brancos dedos sobre a saia de seu vestido celeste. Um de cetim mate com rendas nos punhos e pescoço. ?Me refiro ao meu dom. Será que irá da mesma maneira que veio, sem avisar?
?O meu está comigo desde que nasci. Embora tenha desaparecido durante a gravidez, porque toda a minha energia se concentrou em criar uma nova vida, mas voltou uma vez que vieram ao mundo.
?Nunca desejou ter nascido normal? ?Insistiu.
?Você não se define assim? ?Sophia retrucou deixando a costura à esquerda e virando-se para a filha.
?Não ?respondeu sem hesitar um único segundo. ?Quem, de todas as pessoas que conhecemos, pode ter sonhos que preveem o que acontecerá a seguir?
?Madeleine... ?sussurrou, segurando as duas mãos para apertá-las entre as suas ?é uma menina muito especial e não deveria se sentir mal por ter nascido com uma habilidade tão magnífica. Esqueceu o que aconteceu naquele dia? O que você fez por aquela criança?
Madeleine fixou seus olhos nas mãos e mordeu ligeiramente o lábio inferior. Não, não havia esquecido. Jamais poderia fazer uma coisa semelhante! Mas foi nesse momento que seu dom tomou força, o controle de sua vida e não encontrava uma forma de pará-lo. Era verdade que naquele dia ela se sentiu feliz e orgulhosa de si mesma. No entanto, nem todas as suas visões eram boas. Muitas noites ela se levantava banhada em suor, tremendo e chorando inconsolavelmente porque a maldade a dominava.
?Essa criatura pode ser salva graças a você, pequena ?Sophia disse suavemente enquanto acariciava os dedos longos da filha com os polegares. ?Sua alma recorreu para a única pessoa que podia ouvi-la... ?acrescentou.
?Eu sei... ?murmurou, abaixando a cabeça.
?E também foi à razão pela qual Anne desistiu de sair naquele momento. Se você não tivesse nos contado o que viu, ela não estaria mais conosco. ?É verdade que nem todos os seus sonhos serão bons, mas você terá que se esforçar para dominá-los. Uma alma como a sua evocará forças boas e más. Sua missão é saber como filtrá-las.
?Como farei algo assim?
?Imagino que levará muito tempo para você conseguir, assim como eu fiz para desenvolver o meu. ?Ao ver que seus olhos se entristeciam, apertou com mais força suas mãos. ?Mas uma Arany sempre consegue o que se propõe, e não nasceu uma cigana que se renda sem antes lutar.
Madeleine suspirou profundamente e agradeceu as palavras reconfortantes de sua mãe com um leve sorriso. Esperava que tivesse razão, que não se confundisse porque realmente necessitava eliminar certos aspectos de seu dom. Rara era a noite que não ficava acordada, sentada sobre a cama, abraçando os joelhos enquanto se perguntava o que aconteceria uma vez que fechasse os olhos. Essa incerteza era a culpa de seu comportamento. Sempre ficava esquiva de todas as pessoas que se aproximavam dela. Não podia tocá-las, nem olhá-las sem descobrir, mediante aqueles malditos sonhos, algo sobre elas. Algumas vezes a faziam feliz, mas a maldade das pessoas não tinha limites. Seu coração começou a bater com força ao lembrar a tarde que o primeiro noivo de Anne lhe tocou uma mão para cumprimentá-la. Nessa noite, os seus sonhos foram sombrios, tenebrosos e insuportáveis. Seu espírito se desprendeu de seu corpo e saiu à rua, mostrando-lhe o que aconteceria depois de várias semanas. Não foi capaz de explicar a sua família, e nem muito menos a Anne, o que tinha visto. Talvez porque nem ela mesma acreditou. Mas Dick morreu... E como consequência de tudo isso se retraiu ainda mais do mundo.
?Mary acabou de chegar ?comentou Sophia se levantando rapidamente do sofá.
Caminhou para a janela e afastou lentamente a cortina para confirmar que, tal como intuiu, a carruagem da senhora Reform tinha parado no jardim. Olhou o relógio que havia sobre a lareira e franziu a testa. Já eram quatro horas da tarde e, embora tenha sido informada de que a filha almoçaria fora, estava com muita raiva de Mary. Ela deveria procurar qualquer desculpa para recusar o convite. Não era apropriado que ficasse fora de casa por tanto tempo com uma pessoa que mal conhecia, mesmo que estivesse muito agradecida por ter salvado a vida de seu irmão. Mas tinha que confiar em sua filha. Tinha certeza de que, se tivesse se encontrado em uma situação comprometedora, teria agido com sensatez. Embora depois de operar lorde Giesler completamente nu, ela não tivesse mais certeza do bom senso de sua filha.
Saiu silenciosamente da sala de costura e foi em direção à porta para recebê-las. Durante o breve trajeto, lembrou o momento em que a Sra. Reform apareceu em sua casa horas antes. Sua mente evocou a expressão serena que ela exibiu ao se apresentar e como mudou depois que a filha chegou. Como não percebeu isso? Por que seu instinto não a alertou para uma coisa dessas? «Morgana!», exclamou mentalmente enquanto avançava em direção à entrada, abrindo a porta ela mesma, para não demorar muito para descobrir se sua intuição era verdadeira.
?Boa tarde, mãe ?lhe disse Mary uma vez que se encontraram de frente.
?E Sra. Reform? ?Perguntou olhando para a carruagem.
?Disse-lhe que não me acompanhasse, que não era necessário que se incomodasse ?explicou enquanto entrava no hall.
?O que você fez? ?Esbravejou Sophia batendo a porta.
?Eu? Nada! Como pode pensar isso de mim? ?Disse com raiva.
?Porque as duas vezes que vi essa mulher nunca me pareceu uma pessoa desrespeitosa ?a mãe insistiu.
?Precisava voltar para casa o mais rápido possível. Como me disse, seus filhos podem atear fogo em qualquer cômodo da casa, se ficarem mais de três horas longe dela. ?Explicou enquanto dava o casaco a Shira, que apareceu sem fazer barulho.
?Mas... você não iria examiná-los? Porque, se bem me lembro, a senhora Reform disse que haviam sofrido um resfriado e queria confirmar que não teria nenhuma consequência ?Sophia disse, arregalando os olhos.
?Não. No final, me livrei da presença daqueles demônios ?Mary declarou antes de levantar as sobrancelhas castanhas várias vezes. Observando as bochechas e os olhos da mãe começarem a ficar avermelhados, ela decidiu que era hora de escapar. No entanto, quando ela deu um passo à frente, em direção às escadas, uma mão a parou.
?Onde você esteve Mary Moore? Por que não é capaz de me olhar na cara? O que esconde de mim? O que aconteceu?
?Ainda continuo de castigo, certo? ?Sophia estreitou os olhos em resposta. ?Bem, apenas lhe direi que curei pessoas, mas não foram filhos da Sra. Reform, mas os servos de lorde Giesler ?confessou com dignidade.
?Desobedeceu minha ordem e retornou naquele lugar? Por quê?
?A verdade? ?Mary soltou.
?Sim.
?Cheguei à conclusão de que Valeria estava muito assustada com o que aconteceu com o irmão e precisava que eu confirmasse que nosso pai está fazendo um bom trabalho.
?E? ?insistiu Sophia.
?E, como sempre, nunca fico satisfeita em fazer apenas uma coisa. Então, terminei por apresentar duas opiniões em vez de uma.
?Quais? ?Sophia percebeu como a filha estava ficando cada vez mais irritada. Até agora, nunca havia chegado em casa depois de visitar um paciente com tanta irascibilidade. O habitual era que estivesse excessivamente emocionada. Mas tinha que lembrar que o homem doente que visitou era lorde Giesler, o motivo pelo qual estava de castigo.
?A primeira foi que, de fato, a cura desse presunçoso está sendo espetacular e que nosso pai é o melhor no mundo. A segunda... ?Ela respirou fundo e, pela primeira vez em sua vida, olhou para a mãe com raiva, como se ela fosse a única culpada por fazê-la sofrer todas as emoções e sensações que nasceram nela quando foi beijada por lorde Giesler. ?Deve se sentir muito feliz em entender que sempre esteve certa sobre mim...
?Eu? Razão sobre você? Em quê? ?Sophia disse com uma mistura de surpresa e perplexidade.
?Que, embora nunca quis reconhecê-lo, hoje entendeu que por suas veias também corre sangue Arany.
A resposta saiu da boca de Madeleine. Sophia observou Mary dar-lhe um olhar furioso. Mas a menininha não se intimidou com essa ameaça silenciosa. Exibiu um sorriso enorme antes de colocar as mãos atrás das costas, girar nos calcanhares e seguir em direção à cozinha, esticando as pernas excessivamente.
?Se sente muito orgulhosa, certo? ?Mary soltou cerrando os dentes.
?Filha, por favor me diga o que aconteceu ?Sophia pediu, estendendo a mão para Mary, para que a aceitasse e poder lhe transmitir desse modo um pouco de paz.
?Posso resumir em algumas frases: nunca mais sairei de casa, nunca mais verei lorde Giesler e nunca deixarei o sangue de Arany tomar conta de mim ?hesitou antes de agarrar a alça da maleta e subir as escadas o mais rápido que podia.
Capítulo XII
Ela ficou trancada na biblioteca por horas tentando estudar o novo ensaio médico que havia adquirido, mas não conseguiu ler nem duas frases seguidas. A maldita voz alegre insistia em interrompê-la toda vez que começava a leitura. Resignada por não conseguir alcançar o que se propôs, ela fechou o livro e acariciou a longa trança do cabelo com as duas mãos enquanto contemplava as escassas brasas. Depois do que aconteceu com lorde Giesler, sua mãe, depois de considerar que os tubos de metal eram muito perigosos em suas mãos, proibiu Shira de usá-los nela e insistiu que fosse amarrado com um laço azul inofensivo. Embora, de acordo com Josephine, fosse a arma mais eficaz para estrangular qualquer malfeitor. Mary sorriu levemente ao se lembrar da manhã em que jogou seus tubos no lorde Giesler como se fossem projéteis. Mas aquele leve sorriso de diversão desapareceu quando ela também se lembrou de ter encontrado um deles guardado em uma gaveta da cômoda do lorde. Por que o escondia como se fosse um tesouro? Estaria esperando o momento para devolvê-lo? Com que finalidade? Que plano ele tinha em suas mãos? Mary se recostou no sofá e suspirou. Não tinha respostas para suas perguntas. Na verdade, era a primeira vez que não as encontrava. Seu mundo, baseado em executar uma rotina severa para facilitar o seu cérebro a admissão de novos conceitos médicos, mergulhou em um profundo caos desde que aquele homem irrompeu em sua vida. Nem se reconhecia quando se olhava no espelho! Não só seus olhos brilhavam de uma maneira estranha, mas até sua pele se contraiu tanto que parecia cinco anos mais jovem. Se isso consistia na natureza feminina, em rejuvenescer para seduzir os homens, que lhe durasse cinquenta anos mais...
Ela fechou os olhos, cansada de submetê-los por várias horas a uma luz fraca, e tentou sucumbir ao leve sono que a dominava. Mas foi incapaz de alcançá-lo porque havia a voz novamente, que não deixava de cantarolar uma canção absurda no dialeto Zíngaro sobre a salvação que lhe traria um maldito fogo. Fogo? Onde? E que salvação se referia? O único que precisava era eliminar um titã com cabelos loiros e olhos azuis da cabeça. Mas... como conseguiria uma proeza tão simples? Se ela, com o caráter e a determinação que possuía, não pudesse eliminá-lo de sua mente, como faria com o maldito fogo? O queimaria? Faria lorde Giesler entrar nele até que seu grandioso corpo se transformasse em cinzas? Essa ideia, bastante macabra, a fez sorrir novamente. Exceto em certas reuniões médicas, quando alguma promessa médica jovem se impunha pela força a seus argumentos, seu instinto assassino não aparecia. Ela proporcionava vida, não morte. No entanto, esse homem era o culpado por seu lado criminoso permanecer latente desde que acordava até adormecer.
Desesperada, porque a voz não parava de cantar, ela abriu os olhos e se levantou do sofá. Se não podia ler, pelo menos procuraria a pessoa que a interrompia para calá-la de uma vez por todas. Relutantemente colocou o livro sobre o sofá, amarrou o laço da bata branca e saiu da biblioteca.
Para sua surpresa no corredor, não havia ninguém. No entanto, a voz estava tão perto dela que parecia tê-la ao seu lado. Determinada, ela caminhou devagar até chegar ao pé da escada, olhou para o segundo andar e franziu a testa. Onde estaria? Quem seria? Só tinha duas alternativas possíveis: sua mãe e Madeleine. As duas eram as únicas pessoas na casa que costumavam falar em Romani. Quando colocou o pé no primeiro degrau, ouviu as badaladas do relógio. Eram duas da manhã, tarde demais para a irmãzinha ficar acordada. Normalmente, depois de se retirar para o quarto, permanecia até o amanhecer. No entanto, desde que Josephine partiu, ela ficou bastante inquieta e confusa. Talvez, incapaz de dormir, ela decidiu caminhar até que o cansaço a vencesse.
Encorajada para descobrir se Madeleine era a arquiteta de seu desespero, ela subiu as escadas, atravessou o corredor, ficou em frente à porta do quarto das gêmeas e a abriu muito lentamente. Não, não era ela. A menina se encontrava sobre a cama coberta com o lençol até a cabeça e tão quieta como uma estátua. Com discrição, saiu dali tal como entrou. Como sua primeira opção foi descartada, ainda lhe restava outra: sua mãe. Talvez a mente materna ainda estivesse nervosa após a partida de três de suas filhas. Talvez sua mãe não tenha conseguido adormecer facilmente ou... Sim, essa alternativa também se encaixava. O termo médico para definir a terceira opção era sonambulismo, embora seu pai nunca tenha falado sobre esse tipo de distúrbio na família. No entanto, tudo poderia acontecer com os Arany. Os Moore, felizmente para ela, sabiam controlar até as atividades que realizavam inconscientemente. Admitindo a possibilidade de encontrar sua mãe sonâmbula, ela lembrou o caso de Albert Tirrell, que foi absolvido de assassinato por alegar que estava sonâmbulo quando cometeu o crime. Certamente sua mãe não pensaria em matar ninguém, embora não lhe faltasse vontade. Era mais provável que a mente agitada a levasse à sua época juvenil, quando cantarolava absurdas canções ciganas enquanto lavava a roupa em um rio próximo do povoado.
Do alto da escada, Mary olhou para baixo. Nada. Sophia também não estava lá. Mas incrivelmente a voz, daquela área da casa, era ouvida mais claramente.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e contemplará seu destino. No fogo encontrará o que tanto deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
Fogo? Salvação? Mas por que não parava de uma vez por todas a maldita voz? Que tipo de babá instava a buscar uma fogueira? Isso nunca faria alguém dormir, mas sim incentivá-los a sair de suas camas e investigar os arredores.
Descansou a mão direita no corrimão de madeira enquanto olhava para a porta de entrada. Encontraria sua mãe lá fora? A porta se fecharia quando saiu? Não, não poderia dar essa opção como válida. Se isso tivesse acontecido, Sophia teria acordado rapidamente. Ninguém continuaria dormindo ao ouvir os gritos de uma cigana zangada. Essa reflexão a fez entender que sua mãe não deveria ser a autora dessa música e que, fora de sua casa, havia uma pessoa estranha. Por um momento duvidou sobre descer e resolver o enigma ou voltar para seu quarto. A segunda alternativa era a mais sensata e a teria tomado se a Mary do passado não tivesse desaparecido. No entanto, não era mais a mesma pessoa. Lorde Giesler a transformou completamente. Odiando ainda mais a causa de suas irracionalidades, desceu lentamente, sentindo na planta dos pés descalços a frieza e dureza de cada degrau. A melodia ficou tão forte e poderosa que, no meio da escada, ela não conseguiu mais mudar de ideia. Seu corpo estava preso, enfeitiçado pela voz harmoniosa. Pensando nesse fato irracional, ficou em frente à entrada, estendeu as mãos para as fechaduras e as girou uma a uma.
Quando abriu a porta, fechou os olhos quando sentiu a carícia de uma brisa noturna suave em seu rosto. A bata se moveu para trás, mas o laço impediu que se afastasse dela. Jamais havia sentido tanta paz, tanta tranquilidade. Era como se toda a inquietação que tinha vivido no passado nunca tivesse existido. Levou as mãos ao peito, captando como seu coração batia com lentidão. Continuava sem compreender a si mesma. Qualquer pessoa em sua situação estaria à beira da loucura. No entanto, ela desfrutava de um estado de repouso inverossímil.
«Abra os olhos, estenda suas mãos e aceite o destino que lhe ofereço. Toque nele; abrace-o... Encontre sua salvação...».
Tal como lhe indicaram as frases dessa canção que não parava, Mary abriu os olhos lentamente e ficou imóvel ao descobrir duas coisas: uma enorme fogueira no meio do jardim, que ardia sem a necessidade de lenha, e o maior corvo que tinha visto em sua vida, apoiado no corrimão de mármore. Aquela tranquilidade, aquela calma que notara percorrendo todas as partes de seu ser desapareceram quando viu como aquele imenso pássaro abria suas asas. Assustada com a aversão que sentia por esses tipos de animais, ela recuou, na esperança de entrar na sua casa novamente sem deixar o pássaro irritado. Mas não foi fácil avançar porque a porta, de maneira inexplicável, tinha se fechado. Com as costas apoiadas na madeira, fixou seus olhos de novo no animal. Este escondeu de novo as asas e a olhou. Quando os dois olhos se encontraram, Mary prendeu a respiração enquanto contemplava um fato inédito. Os corvos não tinham olhos negros? Então... por que os daquele animal eram azuis, muito parecidos, se não iguais aos do homem em que não queria pensar?
?Não tem nada melhor para fazer? Vá embora, pássaro miserável! Deixe-me em paz! ?Recriminou, num ato de valentia, o pássaro com a esperança de que se afastasse dela.
No entanto, o corvo não foi embora. Depois de ouvi-la, ele expandiu suas enormes asas novamente e as bateu com avidez. De repente, a brisa suave se tornou um tornado angustiante, elevando todas as folhas secas no chão para o céu. Horrorizada, ela fechou os olhos e colocou as mãos na frente do rosto para não se machucar. No instante em que se preparou para gritar que parasse, a tranquilidade voltou. Muito devagar, o mais lento que pôde, ela abriu os olhos, expulsou todo o ar retido em seus pulmões e afastou os braços. Então observou algo que a deixou paralisada. O maldito pássaro, aquele que queria ver longe dela, voou sobre o fogo desenhando enormes círculos.
?Não! ?Ela gritou enquanto corria em sua direção. Uma coisa era odiar esse tipo de animais e outra muito diferente era lhe desejar a morte. ?Afaste-se! Vai se queimar! —Continuou dizendo até ficar na frente da estranha fogueira.
Como da última vez, o corvo a ignorou e continuou seu voo sobre as chamas. A luz da grande fogueira alcançou a plumagem negra e a fez brilhar como uma estrela. De repente, seu olhar encontrou o do animal novamente. Mary começou a tremer, antecipando a terrível situação que veria em breve. Não podia testemunhar um ato tão horrendo. Por mais que não gostasse de tais pássaros, não seria capaz de viver com a dor de não ter evitado tal catástrofe. Reunindo a pouca força que tinha, levantou as mãos e começou a agitá-las, numa tentativa absurda de assustá-lo. No entanto, o corvo subiu ao céu, como se fosse um foguete, e logo mudou de direção, dirigindo-se para o interior do fogo em um mergulho.
?Não! ?Mary gritou horrorizada.
«Toque nele... toque nele e ele aparecerá na sua frente. Toque... toque e você contemplará seu destino. Nas chamas você encontrará tanto o que deseja... Nas chamas encontrará sua salvação...».
O animal não parou. Entrou na fogueira e ardeu. O que aconteceu depois deixou Mary muito confusa. Enquanto a voz continuava cantando, enquanto lágrimas de tristeza vagavam por seu rosto, a cor do fogo passou de laranja e vermelho para o branco e azul. Chocada ou perplexa, não conseguia descrever com precisão o estado em que estava. Talvez não houvesse uma palavra capaz de explicar que tipo de emoções e sensações a dominavam naquele momento.
«Não se afaste... Aí está... Sua salvação vem... Toque-o! Toque nele!».
A voz cantante insistia repetidamente. Sem tirar os olhos do fogo, enfeitiçada pela música e enfeitiçada pelo estranho fenômeno que testemunhou, aceitou a ordem e estendeu as mãos para as chamas brancas e azuis. As pontas de seus dedos não sentiram calor ou dor. O oposto. Uma leve cócega os recebeu quando passou por eles. Deu outro passo em direção ao fogo, desejando sentir aquele toque maravilhoso em todo o corpo. Se colocou no centro, no meio daquela fogueira incomum e começou a notar carícias fascinantes em sua pele. Nem a bata nem a camisola a impediram de sentir aquele toque magnífico. Cativada por esse estado de prazer, ela fechou os olhos e se rendeu à suavidade que a percorria. De repente, exatamente quando pensou que poderia morrer de prazer, seus lábios foram atacados e pressionados por uma boca. Ela parou de respirar, porque sua mente a informou sobre quem poderia beijá-la dessa maneira. Essa pressão, essa paixão e o ardor de tomá-la tinham um sobrenome único: Giesler. Tentou abrir os olhos para confirmar as suas suspeitas, mas não fez isso. Desejava continuar a sentir essa boca sobre a sua e que a liberdade que brotava em seu interior aumentasse. Por que lhe era tão agradável estar com ele? Por que não o odiava como se empenhava em fazer? E, por que não se retirava e voltava para casa? Todas as perguntas foram resolvidas com uma única resposta: porque o desejava. Sim, mesmo que lhe parecesse estranho, mesmo que tivesse dificuldade em admitir, ela desejava lorde Giesler. Mas... realmente que ele era sua salvação? A música se referia a esse homem específico? Como podia resgatá-la quem lhe converteu em uma mulher diferente? Até agora, sempre se gabou de ser uma Moore, de não ter em suas veias nem uma só gota de sangue Arany. No entanto, essa forma de reagir era mais própria de sua mãe que de seu pai... Com raiva da sua reflexão, abriu os olhos. A princípio, suas pupilas não lhe ofereceram uma imagem clara do lorde, mas com o passar dos segundos, o rosto ficou tão claro quanto a água de um rio. Assustada, porque seu corpo ardia de desejo de continuar em seus braços, de sentir o contato de seu robusto peito nu e de perceber a força de sua boca sobre a dela, deu um passo para trás e o olhou com estranheza. As chamas continuaram a cercá-lo, sua luz continuou iluminando a silhueta masculina que a tinha tão cativada. Alguma vez pôde imaginar que um homem como ele teria a coragem de admirá-la e desejá-la dessa maneira? Até que ponto devia sentir-se honrada ou apreciada? Devia aceitá-lo sem mais nem menos? E, o que estava vivendo? Sofreria algum transtorno mental? Porque não podia encontrar outra explicação ao que estava vendo e vivendo.
?Mary... vem... ?ele sussurrou com uma voz aveludada. ?Não saia do meu lado, meu amor... ?ele acrescentou, estendendo as mãos para ela.
Mary o observou em silêncio. O que devia fazer? O que desejava fazer? Suspirou fundo, para aplacar seu estado de excitação. Não conseguiu. Seu coração palpitava tão rápido que seu corpo se movia ao compasso daqueles batimentos. Sua pele buscava o contato que ele lhe proporcionava e sua boca ansiava aqueles lábios. Desviou o olhar do homem e o fixou no chão. Era uma alucinação, um sonho que o subconsciente lhe oferecia para entender de uma vez por todas que deveria se render a uma necessidade tão básica quanto o prazer carnal. Talvez o que a música estivesse tentando explicar fosse que ela só poderia ser salva aceitando em sonhos o que não poderia alcançar na vida real. Então... por que ela continuou se reprimindo? Porque construía muros quando tudo o que tinha a fazer era derrubá-los? Levantou seu rosto muito devagar, até que ambos os olhares se cruzaram novamente. Enfeitiçada não era a palavra exata para definir o que sentia por aquele homem. Tampouco era atração, nem desejo. Mas se negava a denominar algo tão imenso com um termo tão simples. Não. Ela não podia apaixonar-se por Lorde Giesler. Jamais o faria! A única coisa que tinha que fazer, era satisfazer essa parte de seu cérebro que a transtornava e que a normalidade retornasse a ela. Uma Moore! Já! Agora, mais do que nunca, seu sangue Arany a convidava a desfrutar do proibido, do imoral, do insano.
?Mary... ?voltou a dizer.
E desta vez não pensou, nem procurou os prós nem os contras da ação que realizaria. Se lançou a seus braços, aceitando com submissão o que aconteceria entre os dois.
?Sou sua! ?Gritou quando lorde Giesler a pegou nos braços.
?Para sempre? ?Perguntou ele aproximando essa boca que adorava a sua.
?Para sempre?Admitiu antes de lhe rodear com seus braços o pescoço e aproximar seus lábios aos do homem.
?Mary! Acorde de uma vez!
A voz de Madeleine e a sacudida que ela a sujeitou lhe fizeram voltar para sua casa, sua cama, seu quarto amado. Depois de abrir os olhos e ver a menininha ao seu lado, parecendo assustada, Mary se sentou e cobriu seu corpo excitado com o lençol.
?O que faz aqui? ?Perguntou com uma mistura de angústia e alívio.
?Tem que admitir que é a única que costuma ficar acordada a estas horas ?disse enquanto se sentava sobre a cama. ?Está bem? Você tem as bochechas vermelhas como as papoulas que Elizabeth cuida no jardim e seu cabelo está... molhado. ?Depois de dizer essas frases, se inclinou para Mary, estendeu a mão direita para a testa e rapidamente a afastou quando sentiu muito calor. ?Está doente! ?Exclamou espantada. ?Quer que chame a mãe? Te trago panos frescos?
?Não! ?Respondeu afastando os lençóis de seu corpo. Pulou da cama, caminhou em direção à janela enquanto aplacava o constrangimento e, uma vez que não conseguia se afastar da pequenina, virou-se para ela. O que poderia dizer a ela? Era certo falar sobre o sonho? Não, era melhor ficar calada. Pelo menos até encontrar uma explicação lógica para o que aconteceu. ?Apenas... Foi apenas um pesadelo ?disse apertando as mãos.
Madeleine ficou em silêncio por alguns segundos, observando a reação da irmã. Era estranho, apesar de Mary já ter se comportado de maneira diferente do resto do mundo. No entanto, algo não se encaixava. Ela nunca mentiu, como estava fazendo nesse momento. Mary era uma das pessoas que falava claramente, embora suas palavras magoassem o ser mais cruel da Terra. Por que agia assim? O que teria visto no sonho para assustá-la tanto? Havia apenas uma coisa que podia assustá-la, algo que ela zombava toda vez que o assunto aparecia: homens.
?Mary... ?começou a dizer enquanto colocava as mãos nos joelhos. ?Nesse pesadelo... viu fogo?
?Não!?Negou rapidamente a segunda das Moore.
?Um corvo??A pequena insistiu.
?Como te ocorre perguntar esse tipo de tolices? ?Respondeu indignada.
?Porque, de acordo com a mãe, quando ela sonhava com nosso pai, ela o viu deixar uma fogueira imensa e foi um corvo que a levou até ele.
?Disparates! ?Exclamou, acariciando seu rosto em desespero. ?Sonhos são produtos irreais. A parte inconsciente do nosso cérebro age quando estamos no estado de sonolência. Sonhos ou alucinações, querida intrometida, são vagas lembranças de acontecimentos que vivemos e nos produziu certa inquietação ou excitação. Da minha parte, tive um pesadelo com lorde Grayson. Como sempre, queria me humilhar em um debate sobre enxertos de pele em cicatrizes infectadas ?declarou categoricamente quando voltou para a cama. ?Então, não vi nenhum corvo ou fogo. Embora, agora que penso nisso... Os cabelos oleosos de Grayson não se parecem com penas molhadas? ?Acrescentou mordaz.
?Bem... lamento. Eu sei que o cavalheiro é um monstro. Papai sempre nos diz a coragem que você mostra quando o enfrenta ?Madeleine declarou sem desviar o olhar da irmã.
?Tolices!?Exclamou fazendo um movimento desdenhoso com a mão esquerda. ?Não é coragem, mas inteligência. Até um mosquito pode superar os debates desse petulante.
?Um mosquito? ?Retrucou Madeleine. ?Não dizem que os corvos são pássaros bastante inteligentes? ?Insistiu no assunto.
?Também comentam que um dia a raça humana aprenderá a respeitar e viver em paz para sempre. Mas não vamos falar sobre futuras falácias. Diga-me, qual foi o motivo da sua insônia? ?Mudou rapidamente a conversa.
?Eu senti Josephine aqui. ?Apontou para o peito. ?Algo aconteceu com ela.
?O que significa algo? ?Perguntou Mary. Não havia estudos científicos sobre isso, mas era verdade que todos falavam sobre a intensa relação que se formava no útero entre gêmeos e gêmeos idênticos. Essa união, essa percepção conjunta, apesar de não ser metodicamente estudada, ofereciam causas e efeitos reais.
?Seu coração ficou louco e fez o meu fazer isso também ?respondeu, subindo na cama para abraçar as pernas. ?Eu acho que ela encontrou o homem que se tornará seu marido. Embora também sinta que o conheceu de uma maneira pouco convencional. Eu percebi sua raiva, mas também um estranho... desejo ?alegou antes de suspirar.
?Mas... não disse que nunca encontraríamos um marido porque fomos submetidas à maldição que Jovenka nos enviou?
?Quebrou ?explicou olhando a camisola. ?Anne conseguiu derrotá-la graças a lorde Bennett. É por isso que, por alguns dias, todas vivemos num constante vaivém de sensações.
?O que quer dizer com isso? ?Perguntou, moendo o travesseiro com mais força do que o necessário.
?Não sentiu nada estranho? Não apreciou certas mudanças em seu corpo?
?Não ?mentiu.
Claro que tinha notado, sentido ou percebido! Mas não tinham nada a ver com maldições, mas com desejos carnais em relação a lorde Giesler. Seu corpo nu era a causa da perturbação mental que ela sofria! Agora entendia por que sua mãe estava com raiva de descobrir o que tinha acontecido. Não queria recriminar o fato de que ela o salvou, mas protegê-la da tentação!
?Pois eu sim ?Madeleine disse antes de jogar a cabeça para trás e suspirar novamente. ?Só espero que nenhuma de nós sofra e que Morgana nos ajude a encontrar o caminho certo.
?No caso hipotético de você estar certa... ?Mary começou a dizer enquanto acariciava o lençol com aparente tranquilidade. ?O que poderia acontecer?
?A visão que lhe contei alguns anos atrás seria cumprida ?Madeleine disse, fixando os olhos no rosto pálido da irmã.
?Entendo... ?Mary sussurrou enquanto tamborilava com as duas mãos o lençol. ?Mas é possível que não se cumpra ?insistiu. ?Lembre-se de que Elizabeth estava determinada a se casar com uma aristocrata e, realmente poderá cumprir seu desejo?
?Todas sabemos a razão pela qual Eli está determinada a alcançar essa classe social ?apontou a menina franzindo a testa. ?Mas, felizmente para ela, se apaixonará por um homem que a tratará como uma rainha.
?Disse a ela? Porque acho que isso pode confortá-la muito... ?disse zombando.
?Você sabe tão bem quanto eu que ela sofreu muito desde que Archie a traiu e essa foi a razão pela qual uma promessa tão absurda foi feita. No entanto, esquecerá o passado quando ele aparecer... ?revelou em tom de mistério.
?E você realmente acha que existe um homem que pode tolerar o comportamento de Josephine? ?Mary respondeu.
?Se existe alguém para você, por que não deveria haver para Josh? ?Respondeu com raiva.
?Certo. Essa tese carece de discussão. Se puder encontrar um homem capaz de suportar meu intelecto, Josh poderá encontrar alguém que possa dormir tranquilo enquanto tira brilho ao cano de sua nova arma. ?E depois dessas palavras, ela soltou uma risada.
?Não acredita em mim, certo??A jovem apontou tristemente. ?Para você, tudo o que posso ver são... visões infantis.
?O melhor que tem a doce fase infantil e inclusive a juvenil é que se pode fazer e dizer tudo o que lhe agrade, pois os mais velhos alegarão que são coisas da idade. No meu caso, por muito que pese aos nossos amados pais, considero que continuo na segunda. Por esse motivo faço e digo o que quero sem parar para pensar nas consequências desse comportamento ?garantiu.
?Mas logo terminará a etapa em que admite viver ?Madeleine disse esboçando um grande sorriso.
?Oh, que horror! Está insinuando que, quando me levantar, serei uma mulher adulta? ?E riu de novo. Quando terminou de rir, inclinou-se para a irmã, estendeu as mãos e colocou-as sobre as de Madeleine. ?Se veio para me divertir, conseguiu ?acrescentou dando tapinhas.
?Como pode ser tão cínica? ?A pequena a repreendeu enquanto se levantava da cama.
?O cinismo é apropriado para viver no mundo real. É lógico que, por sua idade, ainda não o tenha e que sonhe com uma vida cheia de fantasia e amor ?zombou. ?Garanto que adoro o teu positivismo, mas seja realista Madeleine, quem pode casar com uma mulher que antes de tomar banho tem que ter todas as suas armas limpas? Quem aceitará Anne, depois da morte de seus pretendentes? E Elizabeth? Você realmente acha que existe um homem que se renderá a seus pés quando descobrir que possui um coração negro sob sua beleza?
?E eu? Porque... quem vai aceitar uma moça que não pode tocar em ninguém, certo? ?Pulou da cama.
?O seu é um problema psíquico e tem uma solução. Basta usar luvas para...
?Você é uma mulher perversa! ?Madeleine retrucou. ?Tanto quanto foi Jovenka!
?Não fique nervosa... ?tentou acalmá-la. ?Certamente você age apenas para o nosso bem. Mas eu não gostaria que você se decepcionasse quando...
?Três dias! ?Gritou enquanto se dirigia para a porta. ?Em três dias tudo estará resolvido! E, nesse momento, serei eu quem ri, Mary.
?Três dias? Terei que esperar setenta e duas horas para confirmar que estou certa? ?Disse mordaz.
?Você se casará com o homem que viu esta noite em seus sonhos. ?Essa declaração deixou Mary tensa, mas ela tentou não mostrar a surpresa que as palavras haviam produzido. ?Ele lhe dará o que você nunca receberá por si mesma. Por mais irreal que possa parecer, ao seu lado será feliz. Terá filhos e se tornará uma mãe tão protetora quanto a nossa. Seu sangue Arany brotará de uma vez por todas!
?Por todos os livros que li! ?Continuou aparentemente divertida, embora ainda estivesse pasma com a alegação de Madeleine. ?Você acabou de me jogar uma maldição? Já não tivemos o suficiente com Anne?
?Continue assim, Mary. Continue pensando que nada vai mudar, que você é tão poderosa que pode controlar o mundo. Mas você esta errada ?disse enquanto abria a porta. ?Em três dias nossas irmãs voltarão e darão a nossos pais uma grande notícia. Quando isso acontecer... Sua vida cínica desaparecerá para sempre! ?Acrescentou antes de sair do quarto batendo a porta.
Mary não desviou o olhar da porta até que ouviu Madeleine fechar a sua. Era a primeira vez que discutiam. Jamais lhe fez mal, pois assumia que bastante dor lhe causava suportar dia após dia um comportamento tão abstraído e tímido. No entanto, desde que conheceu lorde Giesler, perdeu a cabeça. Não apenas sentia coisas indevidas, imorais e inapropriadas para ela, mas também o cinismo, enfatizado pela irmãzinha, aumentara. Talvez se tratasse de um mecanismo de defesa. Muitas pessoas agiam de maneira estranha para não mostrar ao mundo sua debilidade. Mas ela... Desde quando se tornou uma mulher fraca?
Irritada e decepcionada consigo mesma, afastou o lençol para o lado e caminhou lentamente em direção à janela. Não precisou fechar as cortinas para subir no peitoril da janela. Sua mãe ordenou que Shira as amarrasse nos dois lados para que a luz do dia chegasse ao quarto e a acordasse antes das nove da manhã. Subiu a camisola até as coxas e se sentou sobre o frio parapeito. Abraçou os joelhos e apoiou o queixo neles. Por que agiu assim com Madeleine? O que provocou sua fúria? A resposta surgiu sem a necessidade de esforço: Porque se tivesse razão, se a jovem vidente estivesse certa, o desejo, pelo qual lutou durante tantos anos, desapareceria e, tudo por quê? Por um homem. Esse gênero humano que odiava com todas suas forças porque a humilharam, a ultrajaram e, em mais de uma ocasião, cuspiram perto de seus sapatos para lhe deixar claro que não tinha valor algum, embora os seus conhecimentos fossem superiores aos deles.
Fechou os olhos e suspirou fundo, como se fosse uma anciã a ponto de expirar. Madeleine pensava que ela seria feliz com lorde Giesler? Duvidava. Era certo que a atração sexual entre ambos era ilógica, mas ninguém podia viver décadas junto a uma pessoa baseando-se na paixão. Ela, nos poucos momentos em que pensou em casamento, sonhava em conseguir o que seus pais possuíam: um casamento cheio de amor, respeito, consideração, apoio e acima de tudo confiança. Obviamente, não podia confiar em lorde Giesler, sua reputação como libertino era bastante considerável. Hoje poderia morrer beijando-a, tocando-a ou possuindo-a, mas... e amanhã? Bufou diante da reflexão tão anormal que tinha chegado, voltou para a cama, subiu nos lençóis e se cobriu com eles. Uma vez que notou o leve calor do sono, fechou os olhos e... abriu-os! Como se um dragão tivesse aparecido aos pés da cama, afastou os lençóis, se sentou e olhou para a porta.
?Como diabos soube? Como descobriu que sonhei com o corvo, com o fogo e com o lorde Giesler? ?Esbravejou antes de permanecer nessa posição o resto da noite.
Capítulo XIII
Nunca tinha vivido uma situação tão exasperante com Madeleine. Talvez porque, sendo a caçula das irmãs, o tratamento com ela sempre fora diferente. Nunca houve uma palavra ou um ato malicioso de sua parte, pelo contrário, raro era o dia em que não era obrigada a mimar ou protegê-la devido ao seu comportamento frágil. No entanto, durante os próximos dois dias, a doce e tenra Madeleine se tornou a vilã mais cruel do planeta. Toda vez que tinha a chance de conversar com ela, virava o rosto e levantava o queixo com orgulho. Todos os esforços que fez para suavizar a convivência entre as duas não obtiveram os resultados desejados. Madeleine nunca agiu assim. Era a primeira vez que tirava, de algum lugar de sua timidez, coragem e ousadia tão característica na família.
Se levantou da poltrona e esticou os braços, observando como suas trinta e três vértebras tomaram o lugar certo na coluna vertebral. Depois do chá, e depois de sofrer outra rejeição de Madeleine, decidiu se trancar na biblioteca e deixar o tempo passar antes de causar outra abordagem entre elas. Esperava que, durante aquelas três horas e antes da chegada do pôr do sol, Madeleine tivesse consciência de que havia cometido um erro. É claro que, uma vez que sua antiga relação retornasse, não haveria menção à bendita previsão. Tinha certeza de que o fracasso a humilharia a ponto de agravar seu caráter retraído.
Sob nenhuma circunstância duvidou sobre o que aconteceria quando o prazo indicado por sua irmã expirasse. A parte Moore, tão racional e sensata como sempre, afastou de sua mente qualquer assunto sobre previsões, bruxaria, magia ou feitiços e os manteve em alguma área do cérebro que usava como informação desnecessária. Tudo ao seu redor tinha uma explicação lógica, até a suposta maldição de Anne: isso nada mais era do que a conclusão de um compêndio de circunstâncias infelizes criados pelos dois noivos. Apesar disso, era uma lástima que Anne tivesse que sofrer as consequências de ações que não lhe correspondiam. Mas era assim que a sociedade hipócrita agia. Como não podiam culpar os mortos, porque consideravam falta de moralidade, dirigiam seus olhares e sussurros para os vivos, independentemente da inocência e do impacto sobre eles.
Depois de depositar o livro sobre a mesa à direita, se levantou do sofá e caminhou pela sala. Sentia um formigamento irritante nas pernas por mantê-las na mesma posição por tanto tempo. Muito lentamente, levantou a saia do descarado vestido azul, um que sua mãe comprou como castigo por sua contínua rebeldia, e mexeu os pés e o tornozelo. Felizmente, seu conhecimento profundo do corpo humano a alertou que não estavam machucados, mas contraídos pela falta de atividade. Deixou cair o tecido, cobrindo de novo os sapatos de couro que tinha decidido colocar nesse dia. Faltava apenas uma vassoura, um gorro cônico e um caldeirão para exibir a imagem de uma bruxa da qual todo mundo falava quando encontravam com ela na rua. Essa comparação, e a mistura real de sangue que possuíam as Moore, lhe fez sorrir. No fundo, não estavam mal encaminhadas. Se a premonição de Madeleine tivesse sido cumprida, até ela teria presumido que tinha origens mágicas. Talvez até admitisse que sua capacidade médica se devia, de certa forma, à origem cigana. Mas, felizmente, não era assim. Ela sempre soube que adquirir conhecimento seria a melhor ferramenta para realizar seu sonho: tornar-se uma pessoa tão extraordinária quanto seu pai. Portanto, durante suas leituras, nunca invocou nenhum espírito para ajudá-la a entender melhor os ensaios médicos. Era o suficiente ler e raciocinar. Essa era sua única habilidade e segredo. No entanto, apesar de ninguém mudar de ideia sobre a racionalidade necessária para a compreensão de todos os fatos, ela continuava dando voltas a um assunto. Como Madeleine descobriu os três elementos fundamentais de seu sonho? Embora considerasse a possibilidade de falar enquanto sua irmã tentava despertá-la, não terminava por aceitar essa afirmação como válida. Até o dia em que Anne partiu, esta nunca lhe fez referência a esse hábito inconsciente, e isso que dormia com ela desde que tinha uso da razão. Além disso, não tinha dúvida de que, se tivesse feito isso, teria a censurado assim que abrisse os olhos. Anne era a única das irmãs que não se sentia desvalorizada por sua inteligência e a confrontava sem piedade. Por esse motivo, toda vez que estava errada, havia a mais velha das Moore para lembrá-la de que, apesar de seu grande intelecto, tinha mais defeitos do que virtudes.
?Senhorita Mary! ?Shira exclamou abrindo a porta da biblioteca sem bater. ?Saia! Rápido!
?O que aconteceu? ?Perguntou, virando-se para ela tão rapidamente que suas pernas dobraram por falta de forças.
?Suas irmãs! Suas irmãs voltaram! ?Gritou feliz.
?Como disse? ?Mary retrucou arregalando os olhos.
?O que ouve! Exatamente agora, acaba de chegar uma carruagem com o brasão do visconde de Devon ?continuou eufórica. Vendo que a menina não era capaz de reagir, pois permanecia congelada no lugar e seu rosto empalideceu até adquirir a cor do leite, deu um passo em sua direção. ?Está bem? Já lhe disse mil vezes que não deve gastar tantas horas lendo esses livros. Ficará cega e sua pele desbotará. ?Shira estendeu a mão para Mary, mas ela deu um passo atrás, evitando qualquer contato. ?Sua mãe e Madeleine saíram para recebê-las ?lhe informou antes de se virar e seguir para a porta. ?Irá acompanhá-las ou explicou que decidiu continuar trancada na biblioteca?
?Sairei em breve ?comentou quase sem voz.
?Não faça elas esperarem senhorita Mary, ou temo que sua mãe a castigue novamente sem sair de casa por mais dois anos. ?Avisou antes de caminhar rapidamente para o corredor.
Haviam chegado! Estavam lá! Como era possível que Madeleine soubesse? Angustiada e atordoada, fechou os olhos e contou os dias que passaram desde que suas irmãs se foram. Não, ainda não tinha terminado o prazo que o visconde considerou oportuno para realizar o trabalho. Ainda restavam doze dias para o esperado retorno. Mantendo os olhos fechados, levou as mãos para o rosto e esfregou-o desesperada enquanto perambulava pelo centro da sala. Tinha que encontrar, o mais rápido possível, uma explicação lógica que a salvasse do atordoamento mental que sofria. Mas não encontrava com a rapidez que requeria. A opção de que Madeleine sabia desse fato antes dela não era válida. Nem a menininha saiu para a rua, nem ela saiu de casa, exceto quando Valéria a enganou para levá-la para a residência do irmão. Seria informada sobre o retorno durante a sua ausência? Não. Isso também não era plausível. Sua mãe não conseguia guardar um segredo que pertencia à família. Nada a faria calar, nem expressar a euforia que teria sentido depois de receber a notícia. No entanto, apesar de qualquer concepção surrealista, tinha acontecido. Suas irmãs estavam na entrada exatamente no dia que Madeleine mencionou. Realmente possuiria um dom Zíngaro? E se fosse assim... que lugar a lógica teria no mundo? Se o futuro pudesse ser previsto, deixariam de existir surpresas, os avanços médicos ou as preocupações para descobrir coisas novas. Bastaria procurar pessoas com a habilidade de Madeleine para que respondessem às perguntas que surgissem ao longo dos anos. O mundo se renderia a pensamentos transcendentais, deixaria de lado o real e basearia suas vidas na busca do imaginário, assim como fizeram os grandes pensadores. Refletindo sobre essa opção, tirou as mãos do rosto e arregalou os olhos. As teorias filosóficas seriam verdadeiras? Esses grandes gênios evocariam a verdade? Teriam o mesmo dom que sua irmã e, por esse motivo, viveram e pensaram de maneira tão diferente? Talvez Platão, Sócrates, Aristóteles e até o próprio Emanuel Kant proclamaram suas ideias depois de visualizá-las ou apresentá-las. Desesperada, apertou tanto os punhos que as unhas se cravaram nas palmas das mãos. Não devia refletir sobre o passado, mas sim no futuro. Segundo Madeleine, ela se casaria com lorde Giesler, seria feliz e ele a ajudaria a conseguir tudo o que sempre quis. Isso faria qualquer mulher feliz que, entre seus planos, abrigasse a possibilidade de conseguir um bom casamento. Mas ela nunca considerou uma ideia tão absurda. Apesar da afirmação de sua irmã, sabia que, uma vez que aceitasse o sobrenome Giesler, este a converteria em uma pessoa sem decisão, sem autoridade. Em poucas palavras: a anularia em todos os sentidos. Furiosa, correu para a janela, de onde podia contemplar o lado de fora de sua casa sem ser descoberta. Seu coração parou de bater quando viu que sua mãe abraçava Anne e ambas davam pequenos saltinhos de alegria. Junto a elas, Madeleine fazia o mesmo com Josh, que continuava vestindo roupas mais próprias de homens que de mulheres. Então viu como Elizabeth saía da carruagem. Embora escondesse o rosto com a aba larga do bonito chapéu branco, Mary notou que seus olhos estavam fixos no chão, como se tivesse vergonha de voltar para sua humilde casa. A mãe, ao vê-la, se afastou de Anne e a abraçou. Elizabeth não evitou o abraço, mas manteve os braços estendidos, como se não tivesse forças para abraçá-la. Um comportamento atípico nela porque, embora sempre se considerasse superior as outras por causa de sua beleza exuberante, nunca rejeitou uma carícia ou um abraço materno. Fechou os olhos, deixando para trás a estranha atitude de Elizabeth e se concentrando na questão que a preocupava. Como deveria agir? Como lutaria contra algo que ainda não havia chegado e que não se deseja? Quando obteve a resposta, arregalou os olhos e exibiu o sorriso mais maligno que sua boca pode esboçar em um momento tão exasperado. Ela tinha a solução para o problema. Felizmente para ela, sua mente ainda estava lúcida, apesar do colapso que suportava. O objetivo era muito simples: lutar com unhas e dentes para que a profecia de Madeleine não se cumprisse. Essa era uma das vantagens de conhecer o futuro, que se podia encontrar a maneira mais eficaz de evitá-lo. Satisfeita, feliz e cheia de energia, se virou para a porta e caminhou pela sala, juntando a ponta do pé esquerdo com o calcanhar do lado direito e vice-versa. Se suas irmãs entrassem em casa sem que ela as cumprimentasse corretamente, sua mãe ficaria com tanta raiva que aumentaria o castigo por mais alguns meses. E assim começava o plano para destruir seu futuro. Quanto mais castigos recebesse, menos chances teria de sair de casa e, é claro, as chances de encontrar aquele gigante com olhos claros e cabelos loiros seriam tão reduzidas que os chamaria de nada.
?Mary! ?Anne gritou quando ela entrou na biblioteca. ?Por que não veio nos receber? Estava de novo absorta em outra teoria sobre a radicalização de doenças infecciosas? ?Antes de receber uma resposta, avançou até ela, a abraçou e a fez girar. ?Senti sua falta, rata de biblioteca! ?acrescentou depois de lhe dar dois beijos estalados.
?Certeza? ?Estalou cética.
Enquanto as gêmeas falavam com Elizabeth na galeria, que lhes informou que se retirava ao seu quarto para descansar, Mary observou o rosto de Anne. Tinha um brilho especial nos olhos e, pela primeira vez desde a morte de Dick, irradiava felicidade. Então voltou sua atenção para Madeleine que, depois de esperar que Eli subisse para seu quarto, caminhou com Josh para onde elas estavam. Quando se entreolharam, a bruxinha deu a ela um sorriso tão pérfido que a deixou congelada. Esse gesto expressou tanta diversão e triunfo, que a perplexidade entre as profecias absurdas e o desaparecimento da razão voltou à sua mente.
?Por que não saiu para recebê-las? ?Esbravejou sua mãe, colocando as mãos na cintura. ?Quer ficar trancada pelo resto da vida? Porque eu garanto que é o castigo que você merece.
?Sinto muito, mãe. Fiquei tão surpresa com a chegada de minhas irmãs que fui incapaz de reagir. ?Nesse momento, Madeleine soltou uma sonora gargalhada. ?Mas se acha que devo ser castigada, desta vez não discutirei ?Mary persistiu antes de ser agarrada pelos braços fortes de Josh.
?Oh, mãe! ?Anne interveio, pegando as mãos de Sophia. ?Eu imploro, não a castigue hoje. Tenho que lhe dar ótimas notícias e não gostaria que Mary ficasse triste em um dia tão importante para mim.
«Para o inferno, Anne! ?pensou Mary. ?Não é um bom momento para assumir a postura de irmã solidária e protetora».
?Do que se trata? ?A mãe perguntou curiosa, fazendo desaparecer a raiva que causou a desobediência da segunda de suas filhas. ?Talvez seja por isso que voltaram tão cedo? ?Insistiu, sem afastar os olhos de Anne que tinha se separado dela o suficiente para começar a dar voltas.
?Vai se casar com o Visconde! ?Declarou Josh ao retornar ao lado de sua irmã gêmea. Se apoiou na moldura da porta, adotou uma postura típica masculina e olhou para sua mãe. ?Ele pediu e ela não pôde recusar ?acrescentou.
?De verdade? ?Perguntou a mãe surpresa, colocando as mãos nos ombros de Anne para fazê-la parar. ?Está certa da decisão que tomou?
?Sim ?respondeu, abaixando um pouco o rosto para esconder o rubor. ?Nunca estive tão segura de algo. Logan é o homem que esperei por toda a minha vida e o único que nos salvará da maldição. ?E aí terminou sua explicação. Era responsabilidade de Logan revelar ou não sua origem. Embora sua mãe deveria entender que, se ela o aceitou depois do que aconteceu no passado, o motivo era mais que evidente.
?Acho que já nos livrou dela ?Madeleine admitiu dando um passo à frente.
?Por que diz isso? ?Josh fez a pergunta que, quando a ouviu falar, se afastou do batente da porta, descruzou os braços e as pernas e seguiu a irmã gêmea.
?Pressenti faz alguns dias ?continuou dizendo a mais nova. ?Percebi que a escuridão ao nosso redor desapareceu. Agora só há luz sobre nós.
?Percebeu mais alguma coisa? ?Josh queria saber, e Madeleine se aproximou de por trás e falou entre sussurros.
?Você quer dizer a mudança emocional que sofreu ultimamente? Ou quer me perguntar sobre os sentimentos que teve em relação a um jovem mais severo do que um batalhão de soldados? ?Murmurou, antes de sorrir de orelha a orelha.
?Maldita seja! ?resmungou, revirando os olhos. ?Um dia poderei ter um segredo só para mim?
?Nunca ?Madeleine respondeu antes de se virar para ela e abraçá-la novamente.
?Há algo mais que eu deveria saber? ?Sophia disse, estreitando os olhos ao ver as duas menores sussurrando secretamente.
?Não! ?Josephine negou rapidamente se separando de Madeleine.
?Bem, Josh preciso lhe contar algo sobre o novo membro da família ?Anne interveio zombando.
?Novo membro??soltou a mãe arregalando os olhos. ?A que se refere?
?Se chama Galeón ?Josh respondeu feliz. ?É um dos cavalos que o visconde tem na residência e, devido à conexão que tivemos, me presenteou.
?Um cavalo? ?Mary estalou surpresa. ?E onde diabos pensou em mantê-lo, no seu quarto?
Sophia recuperou a cor do rosto, que empalideceu ao interpretar a afirmação de forma inadequada e respirou calmamente. Nunca considerou a possibilidade de que Josh se comportasse inadequadamente, mas depois de ouvir que a maldição se foi, tudo poderia acontecer...
?De verdade? ?Interveio Madeleine. ?E, como é?
?Ele é muito bom e inteligente ?declarou olhando para Mary. ?Cavalguei sobre ele durante toda a viagem. Não o viu? Amarrei-o em um dos ramos da árvore da entrada. Se quiser, podemos sair para que o conheça.
?Claro! ?A menina exclamou. ?Mal posso esperar para conhecer o novo membro Moore. Além disso, tenho o pressentimento de que esse cavalo te ajudará a conseguir aquilo que tanto sonhou ?lhe assegurou enquanto ambas caminhavam para a saída.
?É outra de suas visões? ?Josh estalou estreitando os olhos.
?Não. Desta vez é apenas um palpite... ?ela alegou misteriosamente enquanto a pegava pelo braço e a levava para fora.
Mas antes das duas saírem, Madeleine virou seu rosto para Mary. Quando ambas se encontraram com o olhar, a jovem separou os lábios para lhe lançar uma mensagem que só ela pôde captar: «Começa sua mudança». Essas três palavras lhe causaram um calafrio tão mortal que tentou apaziguá-lo, concentrando-se na irmã ausente.
?A propósito, onde está Elizabeth??Perguntou virando-se para Anne.
?Sofre uma tremenda dor de cabeça ?respondeu enquanto se sentava. ?Sofre desde sábado à noite. Embora me ofereci para aliviar sua dor, não quis aceitar qualquer ajuda da minha parte. Sinceramente, não é a mesma desde aquele dia ?comentou reflexiva. ?Durante a primeira viagem a Londres, decidiu viajar na segunda carruagem, acompanhada por Howlett, valete de Logan. Pensei que a dor desapareceria, porque o jovem me disse que tinha a solução para isso, mas não foi assim. Na última pousada que paramos para descansar, ficou todo o tempo dentro do veículo e não saiu dali até que teve que entrar no que viemos. Insisti em oferecer-lhe um analgésico, mas não aceitou. Se inclinou na direção da janela, fechou os olhos e não os abriu até que lhe anunciei que havíamos chegado ?explicou Anne com tristeza. Nutria a esperança de que Elizabeth não agisse dessa forma depois da notícia de seu compromisso com Logan. No entanto, nada podia ser dado como certo com ela.
?A viagem lhe provocou isso... ?concordou Sophia após assumir que, pela primeira vez, a inveja podia estar causando a Elizabeth um terrível desapego familiar.
?Se quiser, posso aparecer no seu quarto e descobrir ?declarou Mary colocando-se na frente delas.
?Temo que essa dor não desapareça com nenhum remédio seu ?Anne respondeu enquanto enroscava os dedos na saia do vestido.
?Por que diz isso??A mãe retrucou inquieta.
?Porque acho que não lhe agradou a notícia do meu compromisso. Você sabe que, desde o que aconteceu com Archie, ela insiste em se casar com um aristocrata e talvez o fato de eu ter conseguido sem pretender e sem sonhar...
?Bobagens! ?Mary a interrompeu. ?Elizabeth é uma presunçosa, uma petulante e um pouco estúpida, como os dessa bendita classe social, mas por suas veias e as nossas corre o mesmo sangue. Estou certa de que a dor de cabeça tem uma causa lógica. Não tenho a menor dúvida de que agirá como sempre uma vez que desapareça ?alegou como se fosse uma advogada defendendo seu cliente.
?Mas se você sair agora, não ouvirá o que aconteceu comigo durante esses dias. Não quer saber como Logan me pediu em casamento? ?Anne estalou estreitando os olhos.
?Certamente posso adivinhar a história sem precisar da ajuda de Madeleine... ?Mary disse colocando um dedo no queixo, enquanto batia no chão com a ponta de seu pé direito e fixava os olhos no teto. ?Como não teve que cuidar de sua virtude, porque Dick lhe tirou isso, o seduziu até que caísse aos seus pés. Após vários encontros clandestinos, decidiu que, devido à sua constituição e força, não encontraria outro homem que a satisfizesse na cama tanto quanto ele. Então você usou sua origem cigana para lançar um feitiço. Este agiu imediatamente, fazendo com que o pobre visconde se apaixonasse por você e te pedisse casamento, estou certa? ?Explicou mordaz.
?Mary Moore Arany!?Clamou sua mãe se levantando de um salto. ?Como se atreve a falar com sua irmã de maneira tão descarada e inapropriada? Por que não seleciona tudo o que aparece em sua mente e escolhe a coisa certa a cada momento?
?Vai me castigar? ?Teimou fingindo medo. ?Tenho certeza que mereço por cometer tanta insolência ?insistiu.
?Foi isso mesmo que aconteceu ?Anne interrompeu a conversa entre sua mãe zangada e Mary, esboçando um grande sorriso. Se os anos de experiência com ela não a enganavam, ela tentou executar um plano que implicava a palavra castigo. O que havia acontecido durante sua ausência? Por que agia dessa forma tão pouco racional? O melhor era descobrir antes que Logan aparecesse para pedir formalmente sua mão e se encontrasse no meio de uma grave disputa familiar. ?Embora você esteja errada sobre uma coisa, eu não o seduzi, ele foi quem me cativou e ambos chegamos à conclusão que, devido à nossa afinidade sexual, era conveniente compartilhar o resto de nossas vidas sob o mesmo quarto antes de manter encontros secretos e esporádicos.
Essa resposta deixou Sophia sem palavras, mas elas causaram mais estranheza em Mary. Como poderia falar assim na frente de sua mãe? Sua irmã havia perdido o pouco juízo que tinha? Se, como Madeleine disse, a maldição desapareceu, arrastou a baixa moralidade e bom senso de Anne com ela. Jovenka não teve mais de cem amantes? Bem, depois de ouvi-la, não lhe cabia a menor dúvida que, se o visconde corria a mesma sorte que os dois anteriores pretendentes, Anne superaria a velha cigana.
?Visite Elizabeth e descubra o que acontece com ela ?comentou Sophia uma vez que acalmou o imenso sufoco. ?Em seguida, tranque-se no seu quarto até eu chamá-la para jantar. Preciso conversar com seu pai sobre a atitude que você está adotando desde que operou lorde Giesler. Creio que...
?Operar? ?Anne disse surpresa. ?Lorde Giesler? E continua vivo?
?Sim ?Mary afirmou com orgulho. ?Lorde Giesler está são e salvo graças a minha sábia decisão e talento ?continuou com soberba.
?Tem que me contar tudo! ?Perguntou Anne se levantando da poltrona.
?Fará, mas quando terminar de me contar o que aconteceu durante sua ausência ?Sophia respondeu com autoridade.
?Então, se me desculparem, seria conveniente que visite Elizabeth ?disse Mary dando grandes passos para a porta antes que Anne interviesse de novo e sua mãe mudasse de opinião.
?Não vá muito longe ?Anne avisou quando sua irmã se aproximou da porta. ?Temos uma conversa pendente.
?Certamente não será tão divertida como a tua... ?apontou antes de sair e fechar.
Capítulo XIV
Depois que ouviu Anne começar sua história, ela encostou as costas na porta e suspirou profundamente. Nada, que sua primeira tentativa para que a castigassem saiu como esperava. Como conseguiu isso? Se tivesse falado com Anne dessa maneira descarada, antes que todas pensassem que a bendita maldição terminou, teria tido tal retaliação que nada nem ninguém a teria consolado em anos. No entanto, lá estava ela, ilesa, apesar do seu esforço para se magoar. Olhou para o andar de cima e franziu a testa ao lembrar que Elizabeth não se apresentou na biblioteca para cumprimentá-la. Ainda estava se comportando de maneira estranha. Até o momento, a irmã arrogante sempre agia como uma verdadeira aristocrata, incluindo, aquele comportamento arrogante, a hipocrisia que a classe social mostrava ao cumprimentar mesmo quando não queriam. Mas, por algum motivo, não reagiu como de costume. Não importava se sua cabeça doía, que estava enjoada ou que tinha quebrado um ombro, Elizabeth nunca evitava um encontro em família e menos depois de uma viagem como a que ela acabou de fazer. Quantas vezes saiu para fazer compras e, depois de voltar, aparecia diante dela para lhe contar tudo o que fez sem esquecer um mísero detalhe? Tantas que não se lembrava. No entanto, parecia que a viagem a transformou até o ponto de esquecer um princípio tão básico como era a cordialidade. De repente, a resposta que estava procurando para obter o castigo desejado apareceu. Talvez, se ela a censurasse por esse comportamento inadequado, sua mãe abandonaria a atitude passiva que adotava e retornaria a mulher que, com apenas um olhar, fazia suas filhas tremerem. Só esperava que Eli não agisse com a mesma benevolência que Anne. Realmente não precisava da compaixão de nenhuma de suas irmãs dessa vez.
Sem poder apagar o sorriso que sua boca desenhou ao ter outra alternativa entre as mãos, subiu as escadas de dois em dois. Mal respirou quando correu pelo corredor, nem quando se colocou na frente da porta. Tinha um novo objetivo e devia realizá-lo o quanto antes. Desesperada, agarrou a maçaneta, virou e entrou sem pedir permissão. Mas toda a emoção e felicidade que viveu durante a corrida, desapareceu de repente ao ver que Elizabeth não se encontrava onde ela esperava. O edredom permanecia encolhido aos pés da cama, o lençol jogado para o lado direito e o vestido que sua irmã usava quando chegou, estava no chão, jogado descuidadamente. Esse detalhe deixou Mary bastante confusa. Nunca, desde que se lembrava, Elizabeth havia tratado um vestido assim. Cuidava deles e os mimava como se fossem seus filhos. Às vezes, ela até supervisionava Shira quando os passava e engomava. O que teria acontecido com ela para agir dessa maneira? Seu coração começou a bater rapidamente, alertando-a de que a resposta que teria não seria do seu agrado. Tentou afastar aquele palpite, mais típico de Arany do que do sangue Moore, e se concentrou em tudo aquilo que observava. Não se deixaria levar por especulações absurdas, sua experiência no campo da medicina lhe sugeria que devia analisar tudo aquilo que encontrava para chegar a uma conclusão real.
Caminhou lentamente até a almofada, levantou-a e abriu a boca quando viu que a camisola não estava no lugar. Desde quando Elizabeth saía do quarto sem usar um de seus lindos vestidos ou sem arrumar mil vezes o penteado? Mais preocupada se possível, ela se dirigiu para a penteadeira. Sua irmã tinha uma grande variedade de utensílios para usar e embelezar um penteado, além de quatro chapéus de cores diferentes, expostos com muito cuidado no cabideiro que seu pai colocou em cima do espelho e quatro pincéis de diferentes materiais e formas. No entanto, Mary não prestou atenção aos objetos que prolongavam a harmonia da sala, mas ao que estava quebrado: o chapeuzinho que Elizabeth usava quando voltou. Ele se abaixou devagar e o pegou do chão. O que aconteceu? A ideia que Anne comentou ganhou força e intensidade. Apesar de não querer admiti-lo, todas as provas apontavam para essa opção. Irritada, porque não podia tolerar o ciúme tomando conta de Eli e sua terrível resposta emocional arruinando a pacífica vida familiar, ela deixou o chapéu branco na penteadeira e saiu rapidamente do quarto. Agora sua mãe não teria escolha senão castiga-la, porque os gritos de censura que ela daria a terceira das Moore seriam ouvidos até na própria Alemanha.
Pisando o chão como se quisesse quebrá-lo, percorreu o corredor de forma apressada. Levantou a saia do atrevido vestido e desceu as escadas com tal rapidez, que parecia ter brotado asas nos tornozelos. A situação seria resolvida no momento em que a encontrasse, e se tivesse que procurar em todos os cantos de sua casa, ela faria.
Mas não a encontrou... Elizabeth não estava dentro de casa.
Depois de percorrer cada esconderijo, por pouco mais de meia hora, não encontrou sinal da moça. Só havia um lugar para procurá-la: a estufa. Mary passou pela porta da biblioteca e ouviu como Anne continuava contando sua linda história de amor com o visconde, enquanto sua mãe se mantinha em silêncio. Nenhuma das duas suspeitava que a terceira das irmãs houvesse desaparecido. Tinham certeza que estava em seu quarto, descansando e sofrendo uma terrível dor de cabeça. Por alguns segundos, pensou em alertá-las sobre o problema, mas depois descartou essa opção. Se queria ser castigada, teria que reprovar o comportamento infantil da irmã. Depois de bufar, porque não gostava de ocupar o papel de mãe e muito menos quando procurava uma reprimenda, foi até a porta de saída. Uma vez que a abriu, foi incapaz de afastar o olhar da imagem que se produzia do lado de fora.
Madeleine estava no meio do jardim, aplaudindo a atitude de Josh. A gêmea cavalgava ao redor dela, dirigindo o animal com temperança e segurança, como um autêntico soldado. Mantinha as costas retas, enquanto seu corpo subia e descia ao ritmo do trote. Mary fixou os olhos no rosto da jovem e contemplou um orgulho e uma satisfação que invejou por alguns segundos. Então assistiu o movimento compassado de sua trança. O cabelo branco que Josh tanto detestava a fazia tão bonita, que qualquer homem ficaria prostrado a seus pés. Não entendia como ela ainda se chamava a irmã mais feia quando na verdade era uma jovem muito bonita. Por que eram obrigadas a pensar que só alcançariam uma beleza real e feminina se possuíssem os traços que ditavam os cânones sociais? Josh, apesar de sua contínua negação, era preciosa não só por sua diferença física, mas também por seu caráter. E inclusive esse comportamento selvagem que apresentava diariamente engrandecia esse esplendor feminino.
Admiração. Esse sentimento brotou em Mary ao contemplar a majestosa habilidade de Josh que, como acontecia a ela no campo da medicina, era difícil de superar. Não importava que todo mundo alegasse que seu dom era mais próprio de um homem que o de uma mulher, ela o possuía e exibia com muita dignidade. Mary suspirou fundo, refletindo sobre o futuro da jovem. Qual seria o seu destino? Se ela admitisse que a maldição existia, o que ainda não fez, confiaria que encontraria um marido capaz de aceitar seu comportamento estranho, mas ela sabia que isso não seria possível. Nenhum homem, dos que tinha conhecido até o momento, suportaria que sua esposa fosse mais preparada em temas masculinos que ele.
Deu um passo em frente, sem poder desviar o olhar dessa união entre humano e animal. Nunca se referiu a uma atividade tão branda para ela como expectadora, mas foi assim no fim. Majestade, beleza, divindade ou qualquer palavra que procurasse para defini-la não alcançaria a realidade. Josephine era, sem dúvida, uma amazona, uma guerreira, uma deusa a cavalo e onde ambos expressavam, num ato tão simples quanto correr, uma cumplicidade tão extraordinária que qualquer cavaleiro enlouqueceria para alcançar. No entanto, a magia da situação celestial desapareceu quando Mary percebeu como os quatro cascos do animal se cravavam repetidamente na grama, aquela que seus pais tão bem cuidavam.
?Mas como te ocorreu cavalgar por nosso jardim! ?Gritou para Josephine caminhando em sua direção. ?Não se lembra do esforço que nossos pais fizeram para mantê-lo desta forma? Demoraram anos para mantê-lo assim!
Josh, ao ouvi-la, moveu as rédeas de Galeão para que este se dirigisse para a irmã berrante. Uma vez que se colocou diante dela, e a observou tão pequenina e assustada, um sorriso maléfico se desenhou em seu rosto.
?Afasta agora mesmo esse perisodáctilo do meu lado! ?Lhe pediu enquanto andava para trás. Só parou quando suas costas tocaram o grosso muro de pedra que dividia o jardim da casa.
?Peri... o quê? ?Josh perguntou, descansando os antebraços na crina do cavalo. ?Se chama Galeón.
?Perisodáctilo ?Mary repetiu sem diminuir a raiva ou o medo que sentia na presença do grande animal, que a olhava com seus enormes olhos castanhos. ?Assim se denomina os mamíferos placentários. Aqueles que possuem em suas extremidades um número ímpar de dedos. Como pode ver, seu novo amigo tem um em cada perna e este se denomina casco.
?Gosta de ser chamado desse modo estranho, Galeón? ?Josh lhe perguntou, inclinando-se para a orelha esquerda do animal. Este, como resposta, relinchou e moveu a cabeça. Atitude que deixou Mary mais surpresa se isso fosse possível. ?Não volte a chamá-lo por esse nome porque não gosta.
?Pois não me importa se gosta ou não! ?Respondeu, movendo-se muito lentamente para a esquerda para sair daquela encruzilhada mortal.
?Para onde vai? ?Josh retrucou, depois de açoitar Galleon para andar atrás de sua irmã.
?Não me siga! Por acaso não sabe que esse quadrúpede pode me matar? ?Esbravejou sem olhar para ela e sem parar de andar.
?Galeón é inofensivo...
?Sim, é claro, como as benditas armas que você dorme até levantar ?respondeu se virando para as duas em um ato de coragem. ?Devo deduzir que esqueceu seu velho hábito de jogar com espadas, adagas ou pistolas para substituí-lo por... isso? ?Argumentou, apontando para o animal com um dedo.
?Você realmente acha que eu esqueci delas? ?Respondeu antes de soltar uma risada leve e levantar a perna da calça para mostrar a faca que estava escondendo na bota. ?Sempre estarão comigo, Mary. São e serão meus únicos aliados na luta contra um mundo injusto ?declarou firmemente.
?Quer lutar contra as injustiças? ?Repreendeu. -?Bem, precisará de um bom arsenal, Josh, porque posso garantir que encontrará, ao longo de sua vida, mais de um milhão.
?Vou comprá-los assim que... ?tentou responder, mas ficou em silêncio quando observou a presença de Madeleine que, como era habitual nela, apareceu sem fazer nenhum ruído.
?Aonde você vai Mary? ?A menina perguntou depois de acariciar o pescoço de Galeón. ?Está procurando sua mudança? ?Acrescentou sarcástica.
?Não ?negou veementemente. ?Estou procurando Elizabeth, e sobre minha mudança, posso garantir que sei como detê-la ?murmurou altiva.
?Se você diz... ?Madeleine respondeu exibindo um grande sorriso.
?Se retirou para seu quarto ?Josh interveio enquanto descia do cavalo. ?Sofre de uma terrível dor de cabeça desde...
?Sábado. Sim, eu sei ?Mary a cortou. ?Por esse motivo, minha mãe ordenou que eu a visitasse. Quer que eu a ajude a acalmar sua dor. No entanto, quando apareci no seu quarto, não a encontrei ?continuou.
?Estará na estufa ?Josh disse sem mostrar nenhum sinal de preocupação. ?Sabe que as ervas que cultiva são muito importantes para ela. Durante esses dias, se perguntou se Madeleine seria capaz de cuidar delas, como indicou. Talvez, apesar da dor de cabeça, quis confirmar que não quebrou um caule ou caiu uma folha ?acrescentou sorrindo enquanto pegava as rédeas e as enrolava entre os dedos.
?Quer que te acompanhe? ?Madeleine se ofereceu. ?Me fará bem falar com ela. Não quero que se zangue por algo que puder fazer.
?Não. Me interessa mais que passe seu tempo vigiando ao Josh e a esse bicho. Não sei onde pretende colocá-lo, mas não creio que a escolha que tenha tomado seja adequada...
?Pedirei ao pai para construirmos um estábulo ?assinalou a referida, virando Galeón em direção ao portão externo do jardim. ?Há espaço suficiente para...
Mary parou de ouvir a ideia futurista de Josh quando Madeleine a agarrou pelo braço e a puxou.
?Não esqueça o que eu te disse. Aceite de uma vez por todas o seu destino.
?Não, se puder evitar ?resmungou antes de se soltar daquele aperto e caminhar em direção à estufa enquanto ouvia a criança dar uma grande risada novamente.
***
Se pensou, por um momento, que o seu mau humor desapareceria durante o caminho para a estufa, se equivocou. Após a perseverança de Madeleine, sua raiva atingiu um nível insuperável. Ela estava com tanta raiva que podia aparecer diante de Elizabeth e, sem dizer uma única palavra, pegá-la pelos cabelos para arrastá-la para dentro de casa, como se fosse uma mulher da Pré-História. Pretendia esmagá-la? Bem, não o fez! Tudo o que conseguiu foi atormentá-la para alcançar a maneira de destruir o suposto futuro.
Com as bochechas tão vermelhas quanto as pétalas de uma Gerbera, ela apareceu na frente da porta da estufa e a abriu com tanta brusquidão que as paredes de vidro tremeram e a saia do vestido foi puxada para trás. Sem fechar, deu dois passos à frente e olhou em volta, procurando a familiar silhueta feminina. Mas não a encontrou com tanta facilidade.
Depois de fechar, começou a murmurar mais de uma dezena de impróprios inadequados para uma mulher. Logo caminhou decidida pelo estreito corredor que levava ao lago que seu pai encomendou a construção. A cada passo, seu nariz capturava um cheiro diferente, tornando-a incapaz de descobrir qual flor emitia uma fragrância específica. Parou no meio do caminho e observou tanto o que encontrou a sua direita como a sua esquerda. Um éden. Elizabeth construíra, sob aquelas paredes envidraçadas, um belo lugar cheio de cores e perfumes. Se concentrou em seu alvo e avançou lentamente, sem desviar o olhar do arco-íris floral dos dois lados. Antes de chegar à pequena cisterna, teve que desviar dos grandes galhos da única árvore que sua irmã plantou. Sorriu ao se lembrar do dia em que ela apareceu com aquela mudinha de laranjeira. Não tinha mais de seis anos e mostrava tal entusiasmo que seus olhos brilhavam como duas estrelas. Depois que explicou aos pais o que pretendia fazer com o pequeno talo, Elizabeth saiu para o jardim, olhou para o céu e seguiu para o lado esquerdo da casa. Depois cavou um buraco com suas próprias mãos para plantá-lo enquanto seus pais a observavam em silêncio. Dois meses depois, começaram a construir a estufa e, quando terminaram, Elizabeth se tornou a fada das plantas. Não podia calcular quantas classes possuía nem o que podia fazer com elas, mas sim admitia que seu dom havia se desenvolvido com grande mestria.
Com a imagem do maravilhoso rosto infantil coberto de terra, era estranho o dia em que não chegava manchado em sua casa, e pensando sobre a mudança que sofreu após a traição de Archie, avançou. Então, enquanto o som da roda que movia a água da lagoa alcançava seus ouvidos, encontrou a silhueta que procurava.
As frases que escolheu para reprovar seu comportamento inapropriado, desapareceram de imediato ao contemplá-la daquela maneira. Sua suposição foi confirmada e, em vez de se sentir feliz, conjecturando outra teoria correta, entristeceu. Como deduziu, Eli tinha saído de camisola. Mas não pensou que a encontraria com um aspecto tão desleixado. O seu cabelo, habitualmente recolhido com cuidado, estava solto e frisado, como se não o tivesse escovado em dias. Depois observou a planta dos pés e franziu a testa ao vê-las tão sujas e com manchas de sangue. A mão esquerda de Elizabeth estendia-se frouxa, sem forças, sobre essa parte de seu corpo, enquanto a outra se movia em círculos sobre a água do diminuto lago.
Por um segundo, duvidou se deveria insistir no motivo de sua presença ou deixá-la sozinha com seus pensamentos. Não teve que pensar muito a resposta, pois esta apareceu no momento que a ouviu soluçar.
?Eli? ?Perguntou reduzindo a distância entre elas. ?Está tudo bem? ?Esperou que lhe respondesse, ao não fazê-lo, prosseguiu: ?Anne me disse que sofre uma terrível dor de cabeça e vim para acalmar essa dor.
?Pode ir, Mary. Minha dor não desaparecerá com nada... ?disse depois de alguns segundos angustiantes.
?Duvido ?afirmou colocando a mão direita no ombro esquerdo de Elizabeth. ?Sabe que, quando me empenho, nenhuma dor ou doença suportará mi...
Mary ficou em silêncio enquanto olhava o rosto da irmã. Onde estava a moça bonita? Não havia um pequeno traço dessa beleza com a qual nasceu. Seus olhos azuis não tinham luz, talvez porque as olheiras ao redor eliminaram todo o brilho. Suas bochechas, descritas por ela mesma como perfeitas, agora não passavam de pele sobre ossos, e seus lábios não tinham a cor vermelha intensa que ela tanto admirava porque haviam perdido a tonalidade ao ponto da palidez. Sem pensar duas vezes, afastou a mão do ombro e a colocou na testa, para verificar se estava com febre. Mas Elizabeth não estava quente, muito pelo contrário. Estava tão fria quanto uma estátua de mármore.
?O que diabos aconteceu com você? ?Esbravejou com uma mistura de horror e angustia. ?Por que está assim? ?Antes que Elizabeth pudesse responder, Mary fixou os olhos na mão que ela mantinha submersa na água e instintivamente colocou as suas no peito. ?O que está fazendo com isso? Em que está pensando?
?Pelo que entendi, nossos pais nos dão a vida, mas o destino é quem dita quando deve terminar ?expôs voltando o olhar para a água. ?Talvez a minha deva terminar antes de...
?Não diga bobagens! ?Clamou antes de se inclinar para a adaga e puxá-la dos dedos. ?Este não é o fim, Elizabeth Moore Arany! É o começo de tudo! Como pode pensar em algo tão horrível! Você enlouqueceu? ?E jogou a arma na porta com tanta força que a lâmina de metal se rompeu ao impactar no chão. ?O que aconteceu? ?Insistiu sacudindo-a. ?O que essa cabeça maldita pensa?
E Elizabeth começou a chorar. Escondeu o rosto abatido com as mãos e não conseguiu se consolar até que Mary se sentou ao lado dela e a abraçou com força.
?Anne pensa que está assim porque se comprometeu com o visconde ?explicou enquanto lhe acariciava a mata de cabelo loiro emaranhado. ?Mas eu sei que não é verdade. Apesar desse comportamento repugnante que mostra, no fundo a pequena Elizabeth ainda vive em você. Aquele que corria para cá para descobrir se a nova semente havia germinado ou se as pétalas de uma flor se abriram antes da chegada do amanhecer.
?Eu sou horrível, Mary! ?Soluçou em seu peito. ?Sou a mulher mais horrível que já existiu no mundo!
?Não, querida. Você não é horrível. As circunstâncias fizeram você assim. Você nasceu bonita, como seu físico. O que acontece é...
?Mary... ?sussurrou levantando o rosto para ela. ?Sou horrível, juro pelo sangue que corre em nossas veias. Eu fiz... aconteceu... ?Mas não teve forças para falar, apoiou de novo a testa sobre o peito de sua irmã e continuou chorando sem consolo.
Como superaria isso? Como poderia contar para Mary o que havia acontecido? Não, não conseguia. Tinha que manter isso em segredo. Não só por seu bem, mas também pelo da família.
?Sabe? ?Mary começou a dizer enquanto a segurava com força. ?A vida é cruel para todo mundo. Por mais que tentemos lutar para nos libertar do que nos mantém presos, não obtemos sucesso. A felicidade, essa que muitas pessoas se orgulham de possuir, é uma mentira, uma ilusão fictícia. Ninguém consegue algo tão idílico.
?Então... pelo que vivemos, Mary? Por que ainda estamos neste mundo cruel? ?Perguntou sem levantar o rosto.
?Olhe para mim, Eli! ?Lhe pediu depois de colocar as mãos sobre seus ombros. ?Conte-me o que aconteceu com você, para que não tenha diante de mim a irmã que sempre quis chutar a bunda por ser presunçosa. Onde está a força que expressava? E esse caráter repulsivamente aristocrático.
?Desapareceu... ?murmurou abaixando a cabeça.
?Quem fez isso com você? ?Perseverou, erguendo o rosto com as duas mãos.
?Como o...? ?estalou perplexa.
?Você viu? O destino o colocou de volta em seu caminho? ?Insistiu. ?Porque se assim for, juro que desta vez o matarei com minhas próprias mãos!
?Não! ?Elizabeth respondeu, se levantando da borda empedrada que rodeava o lago. Sem olhar para Mary, esfregou as mãos, olhou para o chão e suspirou. ?Não sei nada de Archie desde que recebi aquela carta.
?Bom. Fico feliz em saber que o pai não terá que me visitar na prisão... por enquanto ?respondeu Mary levantando-se também. Pegou-a por trás e a abraçou com força. ?Se esse filho da puta não é o motivo da sua depressão, o que é?
?Não acredito que possa me amar se te contar ?lhe disse inclinando os ombros para frente.
?Você me ama? ?Lhe perguntou fazendo-a virar para ela. ?Me ama apesar de tudo o que digo ou faço?
?Claro! Você é minha irmã e sabe que te adoro, apesar de todas as coisas estranhas que faz ou diz.
?Exato! ?cortou-a. ?Sempre, apesar de todas as discussões que tivemos, nos amamos. Nisso consiste a família, Eli. E nada, nem ninguém pode eliminar esse vínculo existente entre nós. Podemos ser muito diferentes, felizmente para todas, mas essa desigualdade fez com que nos respeitemos e nos compreendamos. ?Respirou fundo e olhou-a com ternura. ?Por causa dessa compreensão de que falo, sei que sua dor de cabeça é falsa e que as especulações de Anne também são. Sua alma está quebrada. Algo horrível aconteceu com você nessa viagem e te machucou tanto que não será capaz de superá-lo sem ajuda. Só me resta dizer que estou aqui, contigo, e que juntas superaremos tudo.
?Tem sido... horrível ?expressou antes que as lágrimas aparecessem de novo.
?Minha intuição diz como se sente. Mas preciso que me conte tudo, só assim poderemos encontrar a melhor solução ?garantiu com firmeza.
?E se não pode me ajudar? E se for algo tão assustador que só possa ser resolvido com a minha morte ou voltando no tempo?
?Responda-me apenas uma coisa, Elizabeth ?comentou olhando-a nos olhos e tomando-a com ternura dos ombros. ?Essa coisa horrível nos fará procurar e tirar do galpão o berço onde nossos pais nos colocaram no nascimento?
?Não! ?Elizabeth gritou horrorizada.
?Então, querida irmã, todo o resto tem uma solução ?disse antes de abraçá-la e ouvir como Eli suspirava em seus braços.
Capítulo XV
Nos dez dias seguintes, não teve uma mera hora livre para estudar os ensaios que a Sra. Reform lhe deu. Sua mãe tornou-se tirana e continuou ordenando mil tarefas que ela tinha que terminar antes do anoitecer. Para assombro do resto da família, realizou todas, pois nenhuma implicava se afastar de sua casa. Enquanto pudesse estar ao cuidado de Elizabeth e se manter afastada de lorde Giesler, cumpriria sem questionar. Pelo contrário, Anne saía e entrava continuamente de casa. Às vezes, visitava os parentes de seu noivo e outras vezes, chamava urgentemente a costureira que, em sua opinião, não deveria ter muita experiência, pois a fazia experimentar o vestido várias vezes ao dia. Josh e Madeleine, com a desculpa de serem as menores, mal tinham responsabilidades. A única coisa que lhes foi confiada era controlar o novo membro da família. Ainda não dava crédito aos mimos e cuidados que o animal recebia. Acolheram-no com tanto amor, que nem sequer reparavam no fedorento cheiro que invadia o jardim depois de este defecar onde lhe apetecesse. Até seu pai se uniu à louca felicidade! Desde que o visconde colocou o anel em um dos dedos de sua primogênita, vestia-se com elegância e repassava o nó da gravata mil vezes, antes de transitar pelas ruas de Londres no interior da carruagem que seu futuro genro lhe deu. Todos viviam num eterno caos, num infinito disparate. No entanto, admitia que esse estado de desorientação e confusão familiar foi proveitoso para Elizabeth. Apenas reparavam em suas contínuas ausências ou que, cada vez que se reunia com eles, não via um de seus descarados vestidos, mas aqueles que Mary guardava no armário. Talvez evitassem falar do assunto ao dar por confiável a hipótese de Anne e Josh. Aquela em que Elizabeth chorava de ciúmes ao não ser ela quem casava com um aristocrata. Mas ela conhecia a verdade e sofria a agonia de sua irmã em suas próprias entranhas. Desde a tarde que passaram juntas na estufa, não pôde dormir nem uma só noite. Passava horas pensando no medo que Eli suportou e na solidão que se encontrou até aparecer o valete do visconde. Não se importava se ela se culpava por ter encorajado o miserável. A única coisa em que pensou foi que, se era verdade que Morgana cuidava dos de seu sangue, devia matar o gajo justo quando uma de suas mãos desagradáveis a tocou pela primeira vez.
Mary olhou de novo a cortina marrom, que a dona do comércio utilizava para separar a loja da oficina, e respirou com aborrecimento. Se aquela risonha vendedora não a atendesse em breve, sofreria uma apoplexia. Ela não deveria estar lá. Seu tempo era muito valioso para perder sentada em uma cadeira desconfortável e, como seguissem ignorando-a, o escândalo que lhe anunciou a sua mãe, se cumpriria em breve.
?Coloque um casaco e pegue o pedido ?Sophia ordenou depois de encontrá-la escondida no armário. ?A costureira está esperando por você.
?Anne não pode cuidar dessa tarefa? Hoje certamente terá que experimentar o vestido novamente e não será necessário nenhum esforço para suportar o peso de quatro bolsas ?propôs enquanto saía das sombras que lhe proporcionou o inútil esconderijo.
?Hoje não a visitará ?respondeu andando atrás de sua filha. ?Deve comparecer ao almoço oferecido pela Marquesa de Riderland em sua homenagem.
?E as gêmeas? ?Sugeriu se virando para sua mãe.
?Ainda são muito pequenas para passear sozinhas pelas ruas ?Sophia respondeu levantando o tom da voz e erguendo a sobrancelha direita.
?E eu sim posso fazê-lo? ?Disse com falso espanto. ?Não lhe preocupa a opinião que terão as pessoas de mim quando me virem caminhando sem proteção por Cover Garden?
?Desde quando se importa com que dirão, Mary? ?Espetou sua mãe cruzando os braços na frente do peito.
?Desde que minha honorável e maravilhosa irmã mais velha se comprometeu com um visconde ?expôs como se a resposta tivesse sido estudada mil vezes.
?Então... você faz isso por sua irmã? ?Sophia perguntou olhando para ela sem piscar.
?Claro! Você realmente pensou que eu faço isso para meu próprio benefício? ?Respondeu, fingindo estar ofendida. ?Temos que agir corretamente, pelo bem de Anne. Já sabe como a aristocracia gosta dos mexericos e fofocas; pensa que não fofocarão sobre a desproteção de uma das irmãs da futura Viscondessa de Devon? Será um verdadeiro escândalo! ?Acrescentou com aparente angústia.
Mary estava prestes a pular de alegria ao observar sua mãe refletir sobre o assunto. Tinha encontrado o ponto fraco: as fofocas. Até agora, Sophia só estava interessada em cuidar da reputação do marido, no entanto, desde o noivado, tudo mudou.
?Por um momento, apenas por um momento, pensei que era sincera, Mary Moore Arany. Mas, felizmente para mim, o sangue que nos une me adverte que sua intenção é diferente da que você diz. Limpe a farinha da saia, arrume o cabelo e vista o casaco. Quero os vestidos em nossa casa antes que Eugine termine de cozinhar as perdizes, entendido? ?Disse com raiva. Virou as costas e caminhou em direção à lareira.
?E se alguém quiser me machucar? ?Mary perseverou.
?Depois do que fez ao jovem Wang, acredito que ninguém tenha coragem suficiente para falar ou cumprimentar você ?disse Sophia atiçando o fogo.
Que o inferno congelasse! Mas, por que não o havia esquecido? Quanto tempo tinha passado, três, quatro anos? Era certo que a síncope que sofreu, quando abriu a porta e a encontrou escoltada por dois agentes, foi tão grande que seu pai teve que lhe administrar uma pequena dose de clorofórmio. Certamente, ela ficou de castigo em seu quarto por três dias, os mesmos que ela passou lendo e desfrutando de uma bela solidão. Quando ela pôde explicar o que aconteceu, seu pai caiu na gargalhada. Talvez porque ele foi o único que entendeu sua posição sobre doenças causadas por distúrbios celulares. Em vez disso, sua mãe só pediu a Morgana que a sociedade londrina ficasse surda e cega por duas semanas. Ela estava muito preocupada com a repercussão que seu marido sofreria quando as pessoas soubessem que a segunda de suas filhas havia golpeado, até quebrar o guarda-chuva, a carruagem do jovem Wang, que de dentro, pedia socorro. Logicamente, não podia culpá-la por desconhecer a importância que tinha a teoria da Patologia Celular em medicina, mas aquele petulante sim e por esse motivo, ao ouvi-lo dizer que se tratava de uma conjectura sem sentido para explicar as doenças dos organismos, perdeu o controle. Como podia falar dessa forma o filho de um médico que foi à universidade com Rudolf Virchow? Só um tolo, como Wang, podia soltar por sua boca semelhantes tolices. Obviamente, o temor de sua mãe apareceu antes do imaginado. As pessoas falaram sobre a agressão da filha perturbada do doutor Moore ao encantador Wang. Desde aquele dia, não importava se andava sozinha ou de noite, ninguém se aproximava e atravessavam a rua, quando levava um guarda-chuva na mão.
?Senhorita Moore?
A pergunta que a vendedora lançou ao ar, depois de sair pela décima quinta vez da sala dos fundos, tirou Mary de seus pensamentos. Ela se levantou da cadeira, onde estivera mais de uma hora, e se aproximou do balcão.
?Finalmente descobriram que estou aqui! ?Disse sarcasticamente. ?Pensei que me confundi de estabelecimento porque, apesar de ser a primeira, atenderam outras clientes antes de mim.
?Para fazer um excelente trabalho, é preciso ter paciência e tempo ?a funcionária manifestou, colocando sobre a bancada envernizada as bolsas que levava nas mãos.
?Não discuto isso. Mas garanto-lhe que tiveram tempo suficiente para confeccionar dois vestidos e emplumar quatro chapéus ?Mary insistiu, enquanto confirmava que as roupas que lhe oferecia eram as mesmas que fora buscar. Nas bolsas estava o vestido rosa pálido de Madeleine, o malva claro de Josephine, o marrom de sua mãe e quando observou o seu, franziu a testa e olhou à empregada como se buscasse a forma mais rápida de lhe quebrar o pescoço. Depois pegou com dois dedos o tecido daquela roupa verde, colocou-a frente ao nariz da trabalhadora e perguntou-lhe com raiva: ?Não lhe indicaram que este vestido devia ser azul marinho? Por que, não é? Acaso a costureira sofre de discromatopsia?[8]
?Expliquei a sua mãe que não era uma cor apropriada para um casamento tão importante e que todos os convidados à cerimônia pensariam que a jovem em questão se encontraria em período de luto ?explicou com orgulho enquanto a olhava de baixo a cima. ?Foi por isso que lhe pedi que reconsiderasse e, para satisfação pessoal, fez o mesmo. A senhora Moore é uma mulher muito inteligente e selecionou uma tonalidade bastante atual e...
?Estúpida? ?Mary a interrompeu. ?Porque não há outra maneira de descrevê-la. Agora, em vez de mostrar a imagem de uma jovem séria, correta e virtuosa, parecerei a garrafa que algum bucaneiro bêbado de Whitechapel leva em uma mão.
?Como ousa falar desse modo? ?Perguntou chocada. ?Nenhuma de nossas clientes se comparou com semelhante barbaridade! Todas estão encantadas com nosso trabalho! Minha oficina é única na cidade!
?Única? Certamente minha governanta conserta remendos menos emaranhadas do que estes ?comentou mal-humorada enquanto empilhava as bolsas com as duas mãos. ?E não se mostre tão ofuscada por uma crítica construtiva. Deve saber que será muito rentável para o seu negócio ouvir as opiniões dos clientes. Só assim obterão a perfeição da qual se vangloriam. Espero que a próxima vez que lhe encomendem uma peça de roupa de uma cor determinada, você morda a língua e não opine.
?Santo Deus! ?Exclamou horrorizada levando as mãos ao peito. ?Não a compararão com uma garrafa, mas com a filha do próprio diabo! Agora entendo por que desejava uma cor tão escura, combinaria com sua alma.
?Tenha cuidado com o que pensa... ?Mary lhe disse uma vez que abriu a porta. ?Pode ser que esta filha do diabo invoque a umas quantas almas errantes para que incomodem seus dóceis clientes.
Antes de fechar a porta, observou divertida como a vendedora não deixava de se benzer, ato ao qual estava bastante acostumada. As pessoas costumavam fazer isso depois de ouvi-la falar. Uma vez que saiu da loja, ela soltou uma grande risada e seguiu para a carruagem. Ela teria que usar um vestido horrível, mas a funcionária viveria assustada por um longo tempo. Satisfeita e orgulhosa de ser uma mulher tão sincera, ela avançou até que o cocheiro a viu chegar e saiu do veículo. Ele abriu a porta, desceu as escadas, esperando que ela subisse, mas não o fez.
Mary ficou de pé junto à carruagem, segurando as bolsas. Seus olhos, embora estivessem se movendo em direção ao interior da carruagem, não observaram nada em particular. Estava ausente, pensando silenciosamente sobre a ideia que acabava de aparecer em sua cabeça. Levantou o queixo e sentiu em seu rosto as carícias do leve vento que previa uma rápida chuva. Era o momento ideal. Se não, quando teria outra chance? Ela ficou trancada por um longo tempo, aceitando sem objeção tudo o que sua mãe ordenava, pois nada, exceto o que ela pediu horas antes, a afastava de seu propósito. Mas estava fora, sob um céu tão cinza como o mercúrio de um termômetro. De repente, pensou em seu pai e nas conversas que manteve com sua mãe sobre o incansável trabalho do mordomo de lorde Giesler. Segundo entendia, este realizava tudo o que lhe foi dito para que a recuperação de seu senhor fosse rápida e adequada. Claro, isso implicava também protegê-lo de uma possível chuva...
Ao deduzir que seu maior problema não ocorreria, jogou as bolsas dentro da carruagem, abotoou o casaco e disse ao empregado sem olhá-lo:
?Voltarei andando.
?Andando? ?Ele respondeu bastante surpreso.
?Sim, andando. É uma das habilidades físicas que caracterizam o ser humano. Por que acredita que nascemos com duas pernas? ?Garantiu sagaz.
?Não digo por isso, Srta. Moore. Permita-me informá-la que não seria certo deixá-la sozinha com esse tempo ?disse o amável trabalhador depois de fechar a porta. ?Se observar as nuvens, descobrirá que não tardará em chover e a senhora não gostará que uma de suas filhas adoeça dois dias antes da cerimônia.
?Não se preocupe com minha saúde, Owen. Asseguro-lhe que se aparecer essa chuva alugarei uma carruagem ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Deseja, pelo menos, que lhe ofereça um guarda-chuva? Sua mãe não lhe repreenderá se lhe explicar que se resguardou...
?Não! Sem guarda-chuva! ?Respondeu como se tivesse sido picada na bunda com um alfinete. ?Prometo que ela ficará mais zangada se eu o tiver.
?Como desejar ?terminou de lhe dizer antes de subir e açoitar o cavalo.
Mary se virou para sua esquerda e, enquanto escutava como se afastava a carruagem, observou com entusiasmo tudo o que tinha diante de seus olhos. Felizmente para ela, a rua estava muito calma. Talvez porque, como disse o empregado, a ameaça de chuva assustou muitos londrinos. No entanto, os poucos atrevidos que encontrou passavam ao seu lado sem reparar nela. Ato que agradeceu porque não queria observar rostos de espanto, assombro ou estranheza. Precisava, depois de tantos dias enclausurada em sua casa, sentir um pouco de liberdade e tranquilidade.
Com a mão direita ligeiramente levantada, pois a alça de sua retícula se encaixara na dobra de seu cotovelo, se dirigiu em primeiro lugar para a enorme fachada do Teatro Real de Drury Lane. Uma vez que se colocou em frente à porta, levantou o rosto para admirá-lo. Indubitavelmente, era um edifício grandioso. Segundo tinha lido, podia abrigar três mil e seiscentos espectadores e depois do último incêndio, ocorrido em 1809, os arquitetos encarregados da reconstrução usaram colunas de ferro para substituir aquelas de madeira que sustentam os cinco níveis das galerias. Mas se esses dados lhe pareceram extraordinários, o fato de saber que ali se celebravam, desde dois anos atrás, os melhores espetáculos e melodramas, a deixou sem palavras. Olhou intrigada o cartaz que alguém colocou na direita do pórtico e suspirou. Em outra ocasião, quando sua vida fosse menos agitada, poderia desfrutar da música que tocaria a orquestra que anunciava esse cartaz. Com uma inevitável sensação de saudade, já que desejava que a normalidade voltasse à casa dos Moore, continuou o caminho, se esquivando das bancas de frutas e verduras que encontrou.
Covent Garden era um lugar muito estimulante, como indicavam os jornais. Embora não parecesse tão perigoso quanto insistiam em descrever. Onde estavam as prostitutas, os bandidos e os criminosos que perseguiam os cantos do mercado em busca de uma vítima para assaltar? Porque ela não os via. A única coisa que tinha diante de seus olhos eram pessoas comuns e mundanas e que ofereciam suas mercadorias aos poucos clientes que andavam perto de suas bancas.
Continuou naquele lado da calçada e justamente quando determinou que o passeio deveria terminar, seu nariz capturou um maravilhoso aroma de café. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Insuperável... Se a bebida fosse tão boa quanto o aroma que emitia, não poderia voltar para casa sem saborear uma boa xícara. Com o nariz levantado, como se fosse um cão de caça, seguiu para o estabelecimento que o servia. Quando chegou, sorriu ao ver que não era a única pessoa que abandonava suas obrigações para deleitar-se com um costume tão pouco inglês. Talvez a maravilhosa tradição de ingerir só chá iniciava uma época de declínio, ou talvez houvesse mais gente tão estranha quanto ela.
Enquanto esperava sua vez, se apoiou na parede de maneira descontraída e procurou algumas moedas para pagar pela compra.
?Quanto me custaria passar uma hora com você, Srta. Moore? Garanto-lhe que pagarei com prazer.
Mary, muito lentamente, tirou a mão da retícula, se afastou da parede, levantou o rosto e olhou com altivez para o dono daquela voz. Ali estava o maior idiota do mundo, vestido com um traje cinza escuro, tal como ditava a moda nesse momento. Peter Wang a observava com as mãos enfiadas nos bolsos de seu casaco e mostrava com orgulho um repugnante bigode louro, cujas extremidades se enrolavam para cima.
?O que disse? ?Perguntou tão indignada e furiosa que suas bochechas mudaram de cor pelo sufoco.
?Digo-lhe, senhorita Moore, que estou disposto a pagar tudo o que me peça se me oferecer algo interessante em troca ?Wang disse, verificando o vestido grosseiro de Mary. Depois de sorrir com malícia, avançou para ela. ?Imagino que seja por isso que está sozinha nesta parte de Londres, não é verdade? ?Falou olhando levemente ao redor. ?Finalmente assumiu que nunca alcançaria seu sonho e adotou a posição mais sensata para sua idade: recuperar o tempo perdido tornando-se amante de um distinto cavalheiro.
?Bom dia, senhorita, o que deseja tomar? ?Interveio a amável vendedora alheia, até o momento, da situação que se vivia na frente do posto.
?Bom Dia. Importa-se de me servir a maior xícara de café que você oferece aos seus clientes, por favor? ?Mary respondeu sem olhar para ela.
?Café? ?Perguntou Wang sem tirar os olhos dela. ?Como é normal em você, me confunde. Tinha deduzido, erroneamente, claro, que se tratava de uma mulher que adorava passar as horas do dia tomando chá com doces, dado o volume desproporcionado que tomaram seus quadris desde a última vez que nos vimos.
?Deus bendito! ?A vendedora soltou horrorizada ao ouvi-lo.
Gorda e prostituta. Até esse preciso instante a tinham dedicado muitos adjetivos e substantivos repugnantes, mas nenhum superava a brilhante descrição daquele energúmeno. Mary olhou de relance para a trabalhadora envergonhada. Ela colocou a xícara que pedira no balcão de metal com as mãos trêmulas e se afastou, como se estivesse lendo seus pensamentos. Sem prestar atenção às palavras de Wang, que perseverou em informar que sua robustez aumentara tanto que não seria bom para sua saúde, ela se virou para a esquerda, pegou a xícara e jogou nele.
?Maldita aberração! ?Exclamou. ?Como ousa falar comigo com tanta insolência? ?Vociferou. ?Você é o homem mais estúpido que eu já conheci na minha vida!
?É uma rameira! ?Wang esbravejou quando suas mãos com luvas pretas desabotoaram os botões do casaco.
Tudo o que aconteceu desde o momento em que atirou o café sobre Wang, transcorreu muito lentamente para Mary. O filho do médico tirou algumas roupas e as jogou no chão. Então gritou milhares de maldições quando não conseguiu acalmar as queimaduras que seu peito sofreu. Ele olhou para ela com tanta raiva que qualquer mulher teria morrido de medo. Avançou para ela, levantou o braço direito e estendeu os dedos para lhe acertar um bofetão. Mas não chegou a tocá-la. Uma mão enorme, que ela reconheceu rapidamente, apertou o pulso do agressor e o puxou com uma força tão grande que ele caiu no chão junto com suas roupas.
***
?Como foi capaz de fazer uma coisa dessas? ?Philip gritou pulando da cadeira. ?Aquela mãe ficou louca?
?Não creio que o termo louca seja muito apropriado para descrever a senhora Moore, milorde ?Disse Shals antes de dar uma gorjeta ao menino que lhe fez chegar a notícia. Quando este partiu, virou-se para o angustiado lorde e prosseguiu: ?Primeiro, devo descobrir o que aconteceu para que a senhorita Moore saísse sem proteção. Certamente você encontrará uma explicação tão divertida que estará rindo por vários dias...
Nem ele mesmo acreditava em suas próprias palavras! Como uma mãe, sabendo qual era a opinião da sociedade sobre a sua filha, deixava-a sair de casa sem acompanhante? Queria que chegasse o juízo final? Porque isso mesmo ia acontecer. Não só pelo que aquela moça poderia fazer, mas pelo que estava a ponto de realizar seu amo.
?Shals? ?Giesler perguntou ao vê-lo imóvel na frente do cabide.
?Sim senhor. Eu já tenho ?respondeu. Mostrou-lhe a jaqueta que havia pegado e caminhou até ele.
?Não há explicação... ?Philip continuou a falar enquanto o mordomo o ajudava a vestir a jaqueta. ?Mary não pode passear pelas ruas sem proteção. Além disso... não disse que começaria a chover em breve? ?Retrucou quando se virou para que Shals abotoasse os botões.
?De fato, milorde. As nuvens são tão cinzentas como a cinza que há em uma lareira depois de um enorme fogo. Se o vento não as mover, logo aparecerão as primeiras gotas. ?Terminou de colocar a jaqueta e correu para a porta do escritório para deixar passar o homem que, apesar de não estar totalmente recuperado de uma operação, percorreria Londres a pé para proteger a mulher que amava em segredo.
?Diga ao cocheiro que esteja pronto em um minuto ?ordenou Philip antes de entrar na sala de jantar e desabotoar a jaqueta.
Não fechou ao entrar. Não era hora de se preocupar em buscar um pouco de privacidade, mas de agir rapidamente. Ele foi até a vitrine de mogno, colocou a mão direita na borda e moveu os dedos até encontrar a chave. Uma vez que a encaixou na fechadura, virou-a para a direita e abriu a estreita e longa porta de vidro. O cheiro de pólvora atingiu seu nariz, fazendo-o lembrar diferentes episódios importantes de sua vida. Em qualquer outro momento, ele teria sorrido para inspirar a segurança e a diversão que esse perfume em particular transmitia. Mas agora isso só lhe dava um aroma, o de Mary, e expressava um desejo: cuidar dela.
Como tinha sido tão insensata de passear por Cover Garden sem proteção? Não gostava tanto de ler? Então, por que não havia lido nos jornais as críticas que fizeram sobre essa região em particular da cidade? Ainda bem que seu empregado foi sensato e lhe fez chegar a informação através daquele pequeno batedor de carteira. Sabia que ele agiria com rapidez e que nem uma chuva de ratos infectados com lepra lhe impediria ir buscá-la. Levantou a arma com a mão direita até que a culatra de marfim branca ficou à altura de seus olhos e com a outra mão carregou a munição, o projétil e o bloco de papel através do cano. Uma vez que ficou carregada e pronta, ele a guardou no bolso interior da jaqueta, fechou a porta da vitrine, colocou a chave no lugar, virou-se para a porta e enquanto saía, fechou ele mesmo a jaqueta.
?Tudo pronto, meu senhor ?Shals disse oferecendo-lhe o casaco. ?Quer que o acompanhe? Seguro que posso me ausentar algumas horas... ?acrescentou uma vez que o ajudou a colocá-lo.
?Não. Prefiro que esteja aqui caso apareça Valeria ou Martin ?respondeu levantando as abas do casaco.
?Se isso acontecer, deseja que conte a versão real ou mais uma... ilusória? ?Sugeriu enquanto colocava o chapéu nas mãos.
?Real ?declarou antes de colocá-lo sobre a cabeça e sair de lá.
Shals encarou a grande figura de seu senhor até que ele entrou na carruagem com a ajuda do cocheiro. Nas duas semanas anteriores, lorde Giesler permaneceu muito calmo em sua residência, recuperando-se da operação. Ele próprio acreditava que, se continuasse assim, seu senhor morreria de tédio, porque nunca ficava em casa por tanto tempo, exceto quando chegava tão bêbado que não conseguia se lembrar de seu nome. No entanto, sua atitude mudou tanto que o serviço murmurava incessantemente sobre o estranho comportamento do homem que pagava seus honorários. Até chegaram a pensar que a senhorita Moore, durante a operação, lhe arrancou não só um pedaço de tripa envenenada, mas também a virilidade. Ninguém, exceto ele, entendia o motivo pelo qual ficava várias horas sentado em um sofá, prostrado em sua cama ou caminhando pela casa com muito cuidado para não se machucar: a senhorita Moore. Desde o dia em que os encontrou no quarto, em circunstâncias comprometedoras, lorde Giesler não tinha pensado em nada, exceto em curá-lo com rapidez e cortejá-la como era devido. Até tinha lido livros de medicina! Seu novo propósito consistia em que, a próxima vez que se encontrassem, a jovem se apaixonasse por ele tal como ele estava apaixonado por ela. No entanto, tinha a sensação de que seu primeiro encontro social não seria tão romântico quanto ele esperava...
Apesar de tudo, confiava na sabedoria da senhorita Moore e rezava para que não se metesse em nenhum problema. Se isso acontecesse, se seu senhor testemunhasse alguma ofensa contra ela... Que Deus tenha piedade do insensato! A arma que tinha guardado no bolso era de um tiro e só o usaria como advertência. Para ser sincero, não temia pelos danos que aquela bala poderia causar, mas o que aquelas duas mãos fortes e grandes poderiam fazer.
Shals suspirou quando a carruagem se perdeu na distância. Fechou devagar a porta, virou-se e caminhou pelo corredor como se algum empregado tivesse pedido sua ajuda.
Capítulo XVI
Philip observou, de sua carruagem e atrás da cortiça marrom escura, como Mary abandonava a loja na qual havia permanecido desde que ele chegou. Quando ele pretendia respirar com calma, coisa que não havia feito desde que soube que ela saíra de casa sozinha, observou, pasmo, que ela depositou as malas dentro da carruagem e se afastou. Antecipando o que aconteceria a seguir, colocou a mão esquerda com luvas na maçaneta da porta e abriu. Enquanto ele pisava nos paralelepípedos da calçada com seus sapatos pretos brilhantes, Mary conversava com o funcionário. Então, ela apertou os botões do casaco, virou e começou a descer a rua.
?Milorde? ?Lhe perguntou o cocheiro um tanto confuso ao descobrir que seu senhor abria a porta e saía da carruagem sem ajuda.
?Me espere aqui, Thenders. Se eu não aparecer em 10 minutos, você tem minha permissão para voltar ?lhe ordenou sem afastar seus olhos azulados da mulher.
?Como quiser senhor ?o servo respondeu depois de depositar as rédeas no assento.
Philip caminhou atrás de Mary, mantendo uma distância suficiente para que lhe não descobrisse, mas o apropriado para agir rapidamente, se necessário. Por mais que tentasse, era incapaz de tirar os olhos do corpo com o qual sonhara quase todas as noites. Suas mãos, exatamente como fizeram nessas alucinações eróticas, foram em sua direção para tocá-la, mas ele as bateu nos dois lados do casaco quando percebeu o que estava fazendo. Irritado com a perda incomum de controle, ele os colocou nos bolsos e os apertou. Sentia falta dela. Sim ele fez! Não havia manhã em que acordasse e se perguntasse que sentimento o invadiria se ela permanecesse ao seu lado. Mas essa melancolia não terminava quando se levantava da cama. A cada hora, a cada minuto, a cada segundo do dia sentia falta de inspirar o perfume feminino misturado com essências medicinais, desejava notar as carícias suaves de seus lábios e a necessidade de tê-la ao seu lado aumentou tanto que estava ficando louco. Como conseguiu o que muitas mulheres desejavam alcançar? Era sua paixão, seu intelecto ou talvez esse jeito tão especial que tinha de olhá-lo? Embora seus olhos emitissem raiva, ele sabia que a raiva não era real. Desejava-o, tanto ou mais do que ele desejava a ela. Só esperava o momento em que se rendesse a suas paixões. Uma vez que conseguisse romper essa rígida barreira, lutaria com todas as armas que tivesse a seu alcance para fazê-la sua para sempre.
Enquanto sua mente perversa lhe fez reviver algumas cenas que teve em seus sonhos lascivos, observou como Mary parava em frente à entrada do teatro. Depois de ler a placa à direita e pensar em algo que queria saber, continuou a caminhada sem ver como as pessoas, que caminhavam ao seu lado, a olhavam de canto de olho. Sem dúvida, todo mundo estava fazendo a mesma pergunta: que diabos uma mulher como ela estava fazendo sem vigilância? Mas ele não conseguia responder. Não sabia o motivo pelo qual a senhora Moore, uma mãe a quem descrevia como coerente, permitiu que sua filha andasse sem proteção por uma região bastante perigosa de Londres. De repente, esse desejo primitivo de cuidar dela se intensificou. Precisava fazê-los entender, a quem a olhava com receio, que não estava desprotegida, que ele a vigiava. No entanto, se obrigou a manter distância, porque se Mary o descobrisse, não lhe cabia nenhuma dúvida de que o atacaria como uma leoa recém parida.
Um enorme sorriso se desenhou em seu rosto ao apreciar como erguia o queixo, fechava os olhos suavemente e inspirava o cheiro de café, que emitia um estabelecimento localizado a três barracas de verduras. Como Shals o informou, sentia uma certa fraqueza por aquela bebida. Quantas xícaras tinha tomado no último dia em que o visitou? Não se lembrava se eram quatro ou cinco, mas seu fiel mordomo disse que precisou fazer duas cafeteiras para si mesma.
Sem poder apagar aquele pequeno sorriso de felicidade, pois esse pequeno gosto comum os unia mais do que aquilo que um anel de noivado poderia unir, ficou parado na frente dela. Claro, estava tão entusiasmada em procurar as moedas com que pagaria à vendedora que não reparou na sua presença.
Philip encostou o ombro esquerdo num poste, ficou de braços cruzados e continuou a observá-la. As pessoas mais atrevidas, ao passar por seu lado, o olhavam de relance. Os temerosos se afastavam. Talvez seu traje escuro, sua altura ou a ruga que apareceu em sua testa, ao contemplar como um jovem se aproximava de Mary com um sorriso irônico, avisasse que, se quisessem ficar seguros, deveriam se afastar dele rapidamente. Quando o rapaz ficou na frente dela, Giesler descruzou os braços, afastou-se do poste e deu um grande passo. Não atendeu à blasfêmia que um cocheiro soltou quando puxou com força as rédeas de seus cavalos para não atropelá-lo. Estava tão concentrado naquela cena, que tudo à sua volta desapareceu. Deu outro passo, ficando no meio da via, tirou uma luva e a jogou no chão. Logo, no passo seguinte, se desfez da outra. Mais um passo... Só restavam três e poderia escutar o que dizia aquele estranho para Mary para que se mostrasse tão tensa. Sua futura esposa, porque assim a denominou desde que entendeu que não podia ter em sua cama outra mulher que não fosse ela, sempre enfrentava o mundo com a bravura de um dragão. Entretanto, notava que nesta ocasião estava se contendo. Então, sua valente guerreira brotou. Se virou para a vendedora, que havia colocado uma xícara enorme de café no pequeno balcão de sua loja, o pegou e jogou no rapaz em questão.
Os três passos que faltavam até alcançá-los, Philip os converteu em um ao ouvir como aquele insensato a chamava de rameira e levantava seu braço para golpeá-la. Quando se colocou atrás do rapaz, lhe agarrou o pulso do braço levantado e o puxou com tanta força que este ficou estendido no chão, junto com as roupas que tirou.
?Lorde Giesler! ?Exclamou Mary. ?Não!
Mas Philip não a ouviu, nem percebeu como ela o agarrou pelas costas do casaco para detê-lo. Com um rápido movimento de ombros, deslizou o pesado casaco preto até que se soltar dele. Depois, desabotoou o casaco e atirou-o ao chão. Uma vez que deixou de sentir a pressão que aquelas roupas exerciam em seus braços, estendeu as mãos para o menino, o agarrou e o levantou sem pouco esforço.
?Como a chamou? ?Ele gritou, levantando tanto o jovem que seus pés não tocavam o chão.
?Milorde! Me solte! ?Wang gritou desesperado. ?Me solte! ?Repetiu.
?Como a chamou? ?Voltou a rosnar.
?Por acaso não viu? Essa desgraçada me jogou uma xícara de café fervendo! ?Tentou justificar.
?Rameira ?a vendedora terminou, que havia deixado seu posto e agarrado Mary pelos ombros para confortá-la. ?Chamou a senhorita de rameira e gorda.
?Cale a boca! ?Lhe gritou Mary afastando-se dela.
Aterrorizada, deu um passo em frente e justo quando ia abrir a boca para ordenar ao Titã de cabelos louros que o soltasse, seu sapato direito tropeçou com algo duro. Olhou para o chão e arregalou os olhos ao ver a coronha perolada de uma arma. Sua angústia cresceu tanto que ficou muda. Presa desse pânico que começava a brotar do mais fundo de sua alma, jogou o casaco negro, que havia tirado do lorde, e o jogou sobre a jaqueta, para que ninguém reparasse na presença dessa arma.
?Você ia bater nela? ?Perseverou Philip alheio aos movimentos dela.
?Lorde Giesler, lhe imploro, não precisa fazer um espetáculo por algo tão insignificante. Tudo estava esclarecido no instante em que... ?Tentou explicar, mas teve que calar-se quando seu agressor a interrompeu.
?Merece uma lição! ?Wang gritou olhando em volta, procurando uma pessoa para defendê-lo.
Philip o soltou e quando o jovem apoiou as plantas dos sapatos no chão, levantou seu braço direito e lhe deu uma bofetada que lhe cruzou a cara.
?Como esse? ?Berrou fora de si.
?Ninguém vai separá-los? ?Mary gritou desesperada.
A princípio, o tumulto que os cercava permaneceu silencioso, mas quando lorde Giesler deu um tapa no rosto, o clima mudou e começou a se ouvir gritos encorajadores daqueles que os observavam. Ninguém queria parar o confronto masculino, apesar de estar ciente de que não havia igualdade física entre eles. Enquanto Wang era um rapaz alto, mas bastante esquálido, o lorde superava em altura e seu corpo dobrava seu oponente em musculatura.
?Vamos! ?Philip insistiu enquanto arregaçava as mangas da camisa. ?Me devolva o tapa! O que espera, maldito rato? Onde está agora a coragem que mostrava ao atacar uma mulher? Mostre-a com um homem!
?Não vou lutar com você... ?disse Wang caminhando para trás. ?Não por essa!
?Não! ?Mary gritou novamente enquanto observava Philip se aproximar de Wang e começar a espancá-lo sem piedade.
Olhou aterrorizada ao seu redor, procurando alguém grande e valente o suficiente para impedi-lo. Mas ninguém se atrevia a intervir em uma briga em que um dos combatentes exibia a imagem de um deus irritado. Preferiam ser meros espectadores a serem feridos. Supondo que a única pessoa que podia terminar a luta era ela mesma, saltou para frente e agarrou-se ao pescoço de lorde Giesler.
?Solte-o! Solte-o! ?Repetiu uma e outra vez.
No entanto, ele não a ouvia. Seu corpo parecia um pêndulo. Movia-se da direita para a esquerda, conforme batia. Abriu a boca, com a pretensão de lhe morder o pescoço, mas logo pensou melhor. Seu pai não lhe disse que, se apertasse com força o pescoço de uma pessoa, esta deixava de respirar e podia perder a consciência? Pois isso mesmo faria. Evitando não cair, estendeu seu braço direito sobre a garganta do lorde e apertou com a intensidade suficiente para que sua agitada respiração se tornasse algo mais pausada.
Giesler, ao sentir como lhe faltava o ar, deu um passo para trás, olhou o rosto machucado do homem e sorriu satisfeito ao comprovar que o olho direito estava tão inchado que não poderia ver com clareza por várias semanas. Mas sua alegria aumentou ao observar dois fios de sangue sob seu nariz. Depois, muito devagar, olhou por cima do ombro para confirmar que os braços que rodeavam seu pescoço pertenciam a Mary. Quem, se não ela, teria o valor suficiente para freá-lo de uma maneira tão pouco usual? Estendeu os braços para trás e acolheu com suas mãos grandes os gostosos glúteos femininos. A falta de oxigênio o deixou tão nublado que não ouviu com clareza como ela gemeu diante do contato. A única coisa em que ele se concentrou foi que Mary não se machucasse ao deitá-la no chão. Enquanto as pessoas encorajavam o ato violento, o corpo de Mary desceu ao chão, roçando o seu. Em outro momento, enlouqueceria de desejo, no entanto, este não era. Precisava confirmar que não estava ferida.
?Está bem? Se machucou? ?Perguntou-lhe quando se virou para ela. Acariciou-lhe a bochecha esquerda e enfiou uma mecha desse cabelo negro despenteado atrás da orelha.
?Eu?! ?Estalou sem poder afastar seus olhos dele. ?. Eu estou perfeitamente, é ele quem não está! ?Acrescentou apontando com um dedo da mão esquerda para o filho do médico.
?Esse tolo importa menos para mim do que uma casca de ovo, Mary. A única coisa que me interessa é saber se você está bem ou tenho que continuar batendo nele até que não sem lembre como se chama ?afirmou enquanto olhava para aquele rosto corado de raiva e vergonha.
E o escândalo oferecido por aqueles que incentivaram a luta desapareceu para dar lugar a um estranho silêncio.
?Afastem-se! ?Ordenou um homem depois de soprar várias vezes com seu apito. ?Afastem-se do nosso caminho!
Philip virou-se para aqueles que tranquilizaram a multidão, escondeu Mary atrás do seu corpo e olhou para o local na rua onde dois agentes apareceram. Estes, ao reconhecê-lo, aproximaram-se dele e levaram a mão direita ao chapéu que cobriam suas cabeças.
?Giesler... ?Um dos policiais se referiu a ele pelo sobrenome devido à amizade que mantiveram durante vários anos.
?Thomas...
?O que aconteceu? ?Ele perguntou depois de dar um forte aperto de mão.
?Este estúpido quis bater em uma mulher ?Philip murmurou, dirigindo-se a Wang com um olhar de reprovação e ódio.
?Qual delas? ?O outro parceiro queria saber enquanto observava o rosto de todas as mulheres que estavam na frente da banca de café.
?Ela... ?declarou Philip afastando-se para o lado para que seus dois antigos companheiros da Scotland Yard descobrissem a quem se referia.
?Por Deus, senhorita Moore! É você de novo? ?Estalou Thomas atordoado. ?Mas por que agrediu novamente o senhor Wang? O que usou desta vez, essa bolsa? ?Acrescentou divertido.
?Não senhor. Desta vez o encharquei com uma xícara de café quente ?comentou Mary levantando o queixo de maneira altiva. ?Mas em minha defesa alegarei que eu não tive a culpa deste acidente. Ele veio até mim e me insultou.
?O que lhe disse desta vez para irritá-la, senhor Wang? ?Perseverou o outro agente com voz cansada enquanto o ajudava a levantar-se.
?Gorda e rameira ?a vendedora interveio. ?Assim a chamou diante dos meus clientes.
?Maldito bastardo! ?Philip deu um passo em direção a ele. Mas não podia chegar perto tudo o que ele desejava porque Thomas agiu rapidamente e ficou entre os dois.
?Muito obrigada pela ajuda ?Mary murmurou com sarcasmo à vendedora.
?De nada, senhorita. Nós mulheres devemos nos apoiar diante deste tipo de monstros ?a jovem disse sem perceber o tom acusatório de sua voz.
?E bem? ?Thomas perguntou a Wang. ?Tem algo a alegar?
Wang, que já estava segurando a roupa suja em um braço, retirou o sangue que saía do nariz com a manga esquerda da camisa e olhou para o seu agressor, depois para Mary, depois para as pessoas que se reuniram ao redor dele e terminou por encarar o agente que insistia em descobrir o que aconteceu. Ao deduzir que havia certa camaradagem entre lorde Giesler e os agentes, pela maneira como se cumprimentaram, determinou que a melhor maneira de resolver o problema era falar com alguma eloquência, mas sem esquecer seu objetivo: humilhar a sabe-tudo Moore.
?Só um infeliz incidente que foi mal interpretado com demasiada rapidez ?ele começou a dizer enquanto sacudia a poeira de suas roupas. ?Devo confessar que, desde que me tornei um médico qualificado, fiquei obcecado em encontrar um local adequado para cuidar de meus pacientes. ?Ele sorriu tanto que todo mundo admirou seus dentes brancos manchados de sangue. ?Por esse motivo caminhava distraído. Estava concentrado nesse edifício aí quando me topei com a senhorita Moore. Ela, que tinha comprado uma xícara de café, tampouco advertiu minha presença e quando se virou, derramou sem querer esse líquido quente sobre minhas roupas. Como não queria me queimar, porque as feridas de uma queimadura são terrivelmente dolorosas, tirei minhas roupas manchadas. Naquele momento, todos os presentes começaram a gritar, talvez pensassem que a puniria por um ato que, sem dúvida, ninguém poderia prever. No momento em que a Srta. Moore e eu íamos pedir desculpas, lorde Giesler apareceu perguntando o que estava acontecendo. Quando me virei para responder, tropecei em uma pedra e caí de bruços na calçada. Portanto, tenho rosto inchado e o nariz está quebrado e sangrando. ?comentou sem apagar um repugnante sorriso de sua boca.
?Então... não há nenhum caso? Não registrará uma denúncia? ?Thomas insistiu, que aceitou a história sem discordar porque libertaria seu amigo de ficar na prisão por algumas horas.
?A quem? ?Wang perguntou antes de soltar uma risada, que parou rapidamente quando sentiu uma leve dor na mandíbula. ?Não há denúncia possível, agente! A menos que queira levar diante de um juiz a felicidade que enfrento desde que consegui me formar em medicina ?respondeu Wang olhando de relance para Mary, quem o observava com os olhos injetados em sangue.
?Nesse caso... ?o outro guarda disse ?não temos nada para fazer aqui, certo?
?Se eu ainda usasse o uniforme ?Philip disse a Thomas ?o escoltaria até sua casa. O estado de felicidade que diz viver pode lhe provocar outro desafortunado incidente e garanto que não gostará, ao futuro doutor ?respondeu com ironia?que sua cabeça sofra um golpe tão forte que esqueça tudo o que tem conseguido até o momento.
Mary suspirou surpresa ao descobrir que lorde Giesler também entendeu as palavras envenenadas de Wang. Assombrada, olhou-o com admiração durante uns instantes e um sentimento estranho brotou do mais profundo de seu ser. Em seguida, sentiu um tremor em seu estômago e concluiu, estupefata e prestes a desmaiar, que era a primeira vez que se orgulhava de conhecer um homem que não fosse seu pai. Não só adorou aquele ato brutal e primitivo de proteção, pensamento que meditaria quando chegasse em sua casa, mas que a encantou descobrir que, debaixo daquela longa mata de cabelos dourados, havia uma mente lúcida e sensata.
?Agradeço a sua preocupação ?Wang apontou com relutância. ?É verdade que um médico não pode tentar duas vezes a sorte... se quiser continuar sendo, claro. ?Sorriu novamente. ?Senhorita Moore... ?se dirigiu a ela com uma leve reverência e sem eliminar o sorriso ?Sinto muito tê-la assustado e espero que este pequeno desentendimento não a impeça de comparecer na próxima sexta-feira à assembleia.
?Claro que assistirei! ?Mary respondeu furiosa. ?Como bem afirmou, sou inocente e tem sido sua falta de jeito, uma condição que deve estudar se quiser se tornar um bom médico, a causa desse alvoroço.
?Giesler? ?Thomas perguntou-lhe para confirmar que ele também deu por encerrado a discussão.
?Sem problemas. Assim que o levarem, acompanharei a senhorita Moore a sua casa ?declarou se aproximando de Mary novamente.
?Uma vez que este assunto está esclarecido e resolvido, desejo a ambos um bom dia ?concluiu Thomas enquanto apertava de novo a mão de seu amigo e se despedia de Mary com um leve movimento de cabeça. Então ficou ao lado de Wang e, sob o olhar atento daquela multidão silenciosa, o acompanhou pela rua junto com seu parceiro.