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O DESERTOR / Daniel Silva
O DESERTOR / Daniel Silva

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Seis meses após o dramático final de As Regras de Moscou, Gabriel Allon regressa à lua de mel com Chiara e à restauração de uma peça setecentista do Vaticano. Mas sua paz é efêmera. De Londres chega a notícia de que Grigori Bulganov, espião e desertor russo que salvou sua vida em Moscou, desapareceu sem deixar rastro. Nos dias que se seguem, Gabriel e equipe travarão duelo mortal com Ivan Kharkov, um dos homens mais perigosos do mundo. Confrontado com a possibilidade de perder a coisa mais importante de sua vida, Gabriel será posto à prova. E nunca mais será o mesmo. Com enredo surpreendente e personagens inesquecíveis, O Desertor é um thriller explosivo.

 

 


 

 


PRIMEIRA PARTE

JOGADAS DE ABERTURA

CAPÍTULO 1

PROVÍNCIA DE VLADIMIRSKAYA, RÚSSIA

Pyotr Luzhkov estava prestes a ser morto e sentia-se grato por isso.

Era o fim de Outubro, mas o Outono já era apenas uma memória. Tinha sido curto e desagradável, como uma velha babushka a despir apressadamente um vestido coçado. E agora isto: céus carregados, frio ártico, neve fustigada pelo vento. O plano de abertura do interminável Inverno russo.

Pyotr Luzhkov, de tronco nu, descalço, com as mãos amarradas atrás das costas, mal se dava conta do frio. Na verdade, naquele momento, teria até dificuldade em lembrar-se do próprio nome. Julgava estar a ser levado por dois homens por uma floresta de bétulas adentro, mas não tinha certeza. Fazia sentido que estivessem numa floresta. Esse era o lugar onde os russos gostavam de tratar dos seus assuntos sanguinários. Kurapaty, Bykivnia, Katyn, Butovo*... Sempre em florestas. Luzhkov estava prestes a juntar-se a uma grandiosa tradição russa: a morte entre as árvores.

 

*Locais de massacres famosos na União Soviética. (N. do T.)

 


Havia um outro costume russo quando se tratava de matar: infligir dor intencionalmente. Pyotr Luzhkov tinha sido obrigado a escalar montanhas de dor. Tinham-lhe partido os dedos todos. Tinham-lhe partido os braços e as costelas. Tinham-lhe partido o nariz e o maxilar. Tinham-no espancado mesmo já depois de estar inconsciente. Tinham-no espancado porque lhes tinham dito para o fazerem. Tinham-no espancado porque eram russos. A única altura em que tinham parado fora enquanto estavam a beber vodca. Quando a vodca acabou, tinham-no espancado ainda com mais força. Agora, estava na etapa final da sua travessia, a longa caminhada até uma sepultura não identificada. Os russos tinham uma designação para isso: iirhaya mera, a mais grave forma de punição. Normalmente, era reservada aos traidores, mas Pyotr Luzhkov não tinha traído ninguém. Fora enganado pela mulher do patrão e o patrão perdera tudo por causa disso. Alguém tinha de pagar. Mais cedo ou mais tarde, toda a gente acabaria por pagar. Agora, conseguia ver o patrão, em pé, sozinho, no meio dos troncos em forma de pau de fósforo das bétulas. Casaco de couro preto, cabelo cor de prata, cabeça parecida com a torre de um tanque. Estava a olhar para a pistola de grosso calibre que tinha na mão. Luzhkov tinha de lhe tirar o chapéu. Não havia assim tantos oligarcas com estômago para tratarem eles próprios das suas execuções. Mas a verdade também não havia assim tantos oligarcas como ele.

A sepultura já tinha sido cavada. O patrão de Luzhkov inspecionava-a com grande atenção, como se estivesse a calcular se era suficientemente grande para colocar lá um corpo. Ao ser forçado a ajoelhar-se, Luzhkov foi capaz de sentir o cheiro caraterístico da água-de-colônia. Sândalo e fumo. O cheiro do poder. O cheiro do diabo.

O diabo deu-lhe mais um soco na cara. Luzhkov não o sentiu. A seguir, o diabo encostou-lhe a pistola à nuca e desejou-lhe uma ótima noite. Luzhkov teve um vislumbre cor-de-rosa do seu próprio sangue. A seguir, escuridão. Estava finalmente morto. E sentia-se grato por isso.

CAPÍTULO 2

LONDRES: JANEIRO

O assassinato de Pyotr Luzhkov passou em grande parte despercebido. Ninguém o chorou; não houve mulheres a vestirem-se de preto por ele. Não houve polícias a investigarem a sua morte nem jornais russos que se tivessem dado ao trabalho de a noticiar. Não em Moscou. Não em São Petersburgo. E sem dúvida que na cidade russa por vezes conhecida como Londres também não. Mas se os ecos da morte de Luzhkov tivessem chegado a Bristol Mews, a casa do coronel Grigori Bulganov, e dissidente russo, este não teria ficado surpreendido, ainda que neste caso teria sentido uma súbita angústia motivada pela culpa. Se Grigori não tivesse fechado o pobre Pyotr dentro da caixa-forte de Ivan Kharkov, o guarda-costas ainda poderia estar vivo.

Entre os lordes de Thames House e de Vauxhall Cross, os quartéis-generais à beira-rio do MI5 e do MI6, Grigori Bulganov desencadeara sempre grande fascínio e considerável discussão. As opiniões eram diversas, mas a verdade normalmente era isso que acontecia quando os dois serviços eram obrigados a tomar uma posição sobre o mesmo assunto. Era uma dádiva dos deuses, apregoavam os seus apoiantes. Na melhor das hipóteses, tinha tanto de bom como de mau, resmungavam os seus detratores. Ficou famosa a descrição feita por um espirituoso do último andar de Thames House, referindo-se a ele como de que Downing Street Precisava tanto como de um telhado que deixasse entrar água como se Londres, que agora acolhia mais de um quarto de milhão de cidadãos russos, tivesse espaço para mais um descontente determinado em arranjar problemas ao Kremlin. O homem do MI5 tinha deixado registrada oficialmente a sua profecia de que, um dia, iriam todos arrepender-se da decisão de conceder asilo e um passaporte britânico a Grigori Bulganov. Mas até ele ficou surpreendido com a rapidez com que esse dia chegou.

Enquanto antigo coronel da divisão de contraespionagem do Serviço Federal de Segurança da Federação Russa, mais conhecido como FSB, Grigori Bulganov dera à costa no Verão anterior, como derivado inesperado de uma operação de espionagem multinacional organizada contra um tal Ivan Kharkov, oligarca russo e traficante de armas internacional. Apenas um punhado de agentes britânicos teve conhecimento da verdadeira amplitude do envolvimento de Grigori no caso. E ainda menos sabiam que, se não fosse pela sua ação, uma equipe inteira de agentes israelenses poderia ter sido morta em solo russo. Tal como os desertores do KGB que o precederam, Grigori desapareceu durante uns tempos num mundo de casas seguras e herdades isoladas no campo. Atuando em conjunto, uma equipe anglo-americana submeteu-o a um interrogatório constante, dia e noite, primeiro sobre a estrutura da rede de tráfico de armas de Ivan, para a qual Grigori tinha trabalhado enquanto agente pago, motivo de grande vergonha, e a seguir sobre as artes do ofício do serviço de segurança a que pertencera. Os interrogadores britânicos acharam-no encantador; os americanos, menos, fazendo questão de continuar a apertá-lo, o que na linguagem da CIA significava submetê-lo a um teste com um detetor de mentiras. Passou com distinção. Quando os interrogadores se mostraram satisfeitos e chegou a altura de decidir o que fazer com ele, os sabujos dos serviços de segurança internos levaram a cabo avaliações altamente secretas e emitiram as suas recomendações, também em segredo. No final de todo o processo, considerou-se que Grigori, embora caído em desgraça entre os seus antigos camaradas, não enfrentava nenhuma ameaça grave. Mesmo o outrora temido Ivan Kharkov, que estava a lamber as feridas na Rússia, foi considerado incapaz de realizar uma ação concertada. fez três pedidos: queria manter o nome, morar em Londres e não ter nenhum dispositivo de segurança visível à sua volta. Estar escondido à vista de toda a gente, sem que ninguém reparasse nele, dar-lhe-ia, argumentou, o máximo de proteção possível em relação aos seus inimigos. O MI5 concordou prontamente com as suas exigências, em especial a terceira. Para as equipes de segurança, era necessário dinheiro, e podia ser dado melhor uso aos recursos humanos noutros campos, nomeadamente contra os extremistas jihadistas de produção caseira, dentro da própria Grã-Bretanha. Compraram-lhe uma pequena e adorável casinha, fruto da reconversão de uma antiga cavalariça, num local isolado em Maida Vale, atribuíram-lhe uma remuneração mensal generosa e efetuaram um único depósito num banco da City que teria causado certamente um escândalo se o montante tivesse vindo alguma vez a público. Um advogado do MI5 negociou discretamente um acordo para a escrita de um livro, junto de uma respeitada casa editorial londrina. O montante do adiantamento foi recebido com espanto entre os membros mais importantes de ambos os serviços, que estavam também eles, na sua maioria, a trabalhar nos seus próprios livros em segredo, claro.

Durante um tempo, parecia que Grigori iria ser uma das aves mais raras no mundo do serviço secreto: um caso sem complicações. Fluente em inglês, lançou-se à vida em Londres com a voragem de um prisioneiro libertado a tentar compensar o tempo perdido. Frequentava os teatros e fazia o circuito dos museus. Leituras de poesia, ballet, música de câmara: ia a todas essas coisas. Começou a trabalhar no seu livro e almoçava uma vez por semana com a sua editora, que por acaso era uma beldade de trinta e dois anos, com pele de porcelana. A única coisa que lhe faltava na vida era o xadrez. O agente do MI5 responsável por ele sugeriu-lhe que se inscrevesse no Central London Chess Club, uma venerável instituição fundada por um grupo de funcionários públicos durante a Primeira Guerra Mundial. A sua ficha de inscrição era uma obra-prima em termos de ambiguidade. Não fornecia qualquer morada, número de telefone fixo, celular ou e-mail. A sua profissão era descrita como “serviços de tradução” e o empregador como “o próprio”. Chegada a altura de enumerar uma lista de passatempos ou de quaisquer outros interesses, tinha escrito “xadrez”.

Mas nenhum caso de grande envergadura se encontra alguma vez inteiramente livre de controvérsia e os veteranos alertaram para o fato de nunca terem conhecido um desertor, especialmente um desertor russo, que não perdesse as estribeiras de tempos a tempos. Grigori perdeu as dele no dia em que o primeiro-ministro britânico anunciou que uma importante conspiração terrorista tinha sido desmantelada. Segundo parecia, a Al-Qaeda planejara abater em simultâneo vários aviões a jato com recurso a mísseis antiaéreos russos mísseis que tinham sido adquiridos ao antigo benfeitor de Grigori, Ivan Kharkov. No espaço de vinte e quatro horas, Grigori viu-se sentado em frente das câmaras da BBC, afirmando que tinha desempenhado um papel fundamental em toda aquela questão. Nos dias e semanas que se seguiram, continuaria a ser uma presença assídua na televisão, na Grã-Bretanha e em muitos outros locais. Com o seu estatuto de celebridade agora cimentado, começou a frequentar os círculos dos emigrantes russos e a andar na pândega com dissidentes russos de toda a espécie. Seduzido pela atenção repentina, utilizou a sua fama recém-descoberta como uma plataforma para lançar acusações desabridas ao seu antigo serviço de segurança e ao presidente russo, o qual caraterizava como sendo um Hitler em potência. Quando o Kremlin respondeu com rumores e burburinhos desconfortáveis sobre russos a planejarem um golpe em solo britânico, o agente responsável por Grigori sugeriu-lhe que amenizasse um pouco o seu discurso. E também o fez a sua editora, que queria guardar alguma coisa para o livro.

Contra a sua vontade, passou a não dar tanto nas vistas, mas a diferença foi mínima. Em vez de provocar conflitos com o Kremlin, concentrou a sua considerável energia no livro que estava para sair e no xadrez. Nesse Inverno, entrou no torneio anual do clube e foi avançando sem dificuldades na sua categoria como um tanque russo irrompendo pelas ruas de Praga, queixou-se uma das suas vítimas. Nas meias-finais, derrotou o campeão em título sem qualquer esforço. A vitória na final parecia inevitável. Na tarde da final do campeonato, almoçou no Soho com um jornalista da Vanity Fair. Ao regressar a Maida Vale, comprou na Clifton Nurseries uma planta para a casa e foi levantar um conjunto de camisas à sua lavanderia, na Elgin Avenue. Depois de uma curta sesta, um ritual antes de qualquer jogo, tomou banho e vestiu-se para a batalha, deixando a sua casa poucos minutos antes das seis. Tudo isso explica por que motivo estava Grigori Bulganov, desertor e dissidente, a atravessar a Harrow Road, em Londres, às h12, na segunda terça-feira de Janeiro. Por razões que seriam esclarecidas mais tarde, caminhava num ritmo mais rápido do que o normal. Quanto ao xadrez, era naquele momento a última coisa que lhe passava pela cabeça.

O jogo estava marcado para as seis e meia da tarde, no local habitual do clube, a Lower Vestry House da St. George’s Church, em Bloomsbury. Simon Finch, o adversário de Grigori, chegou às seis e um quarto. Sacudindo a água da chuva do seu casaco de oleado, olhou de soslaio para três avisos afixados no painel informativo que havia no hall. Um proibia que se fumasse, outro alertava para que não se impedisse o corredor em caso de incêndio e o terceiro, colocado pelo próprio Finch, exortava a todos que usassem as instalações para reciclar o lixo que fizessem. Nas palavras de George Mercer, presidente do clube e campeão por seis vezes, Finch era “um chato de Camden Town”, que vinha adornado com todas as necessárias convicções políticas da sua tribo. Libertem a Palestina. Libertem o Tibete. Fim ao genocídio em Darfur. Fim à Guerra do Iraque. Reciclar ou morrer. A única causa em que Finch parecia não acreditar era no trabalho. Descrevia-se a si mesmo como “um ativista social e jornalista freelancer, o que Clive Atherton, o tesoureiro reacionário do clube, traduzia com precisão como “preguiçoso e chupista”. Mas até mesmo Clive era o primeiro a admitir que o xadrez de Finch era extraordinariamente sedutor: fluido, artístico, instintivo e impiedoso como uma serpente. “A educação dispendiosa do Simon não foi um desperdício completo”, gostava de dizer Clive. “Apenas mal empregado.” O sobrenome dava a ideia errada, já que Finch [pequena ave canora] era comprido e lânguido, com cabelo castanho fraco que lhe caía quase até os ombros e óculos com armações de metal que lhe intensificavam o olhar firme e resoluto de revolucionário. Naquele momento, tinha acabado de acrescentar um quarto item ao painel uma carta muito lisonjeira da Regent Hall Church, a agradecer ao clube por ter organizado o primeiro torneio anual de xadrez do Exército de Salvação em favor dos sem-abrigo e, a seguir, deslizou pelo corredor exíguo até o vestiário improvisado, onde pendurou o casaco no cabide com rodinhas. Na quitinete, enfiou vinte pence num porco mealheiro gigante, pegou numa cafeteira de prata com a inscrição CLUBE DE XADREZ e serviu-se de uma xícara de café morno. O Jovem Tom Blakemore uma alcunha que dava igualmente a ideia errada, já que o Jovem Tom tinha pelo menos oitenta e cinco anos chocou contra ele à saída da quitinete. Finch pareceu nem reparar. Mais tarde, entrevistado por um homem do MI5, o Jovem Tom revelou que não ficara ofendido. Afinal de contas, não havia um único membro do clube que desse a Finch a mínima oportunidade de ganhar a taça de campeão. “Ele parecia um homem a ser levado para o cadafalso”, disse o Jovem Tom. “A única coisa que faltava era o capuz preto.” Finch entrou na arrecadação e, de uma fila de prateleiras a ceder, retirou um tabuleiro, uma caixa com peças, um relógio analógico de torneio e uma folha para as pontuações. Com o café numa mão e o material para o jogo cuidadosamente equilibrado na outra, entrou na sala principal da sacristia, com paredes cor de mostarda e quatro janelas encardidas: três com vista para os passeios da Little Russell Street e uma quarta que dava para o pátio. Na parede, por baixo de um pequeno crucifixo, estava pendurado o quadro do torneio.

Havia ainda um jogo por disputar: S. FINCH VERSUS G. BULGANOV.

Finch virou-se e examinou a sala. Seis mesas de cavalete tinham sido instaladas para as disputas da noite, uma reservada para a final do campeonato e as restantes para os jogos normais os “amigáveis”, na linguagem específica do clube. Ateu convicto, Finch escolheu o lugar mais afastado do crucifixo e preparou-se metodicamente para a contenda. Verificou se a ponta do lápis estava afiada e escreveu a data e o número do tabuleiro na folha para as pontuações. Fechou os olhos e viu o jogo tal como esperava que se desenrolasse. A seguir, quinze minutos depois de se sentar no seu lugar, olhou para o relógio: 18h42. Grigori estava atrasado. “Estranho”, pensou Finch. O russo nunca se atrasava.

Finch começou a mover as peças na sua cabeça viu um rei tombado de lado, resignado, viu Grigori a abanar a cabeça em sinal de vergonha e observou a marcha implacável do relógio. 18h45... 18h51... 18h58...

“Onde estás, Grigori?”, pensou. “Onde estás, raios?” Em última análise, o papel de Finch seria menor e, na opinião de todos os envolvidos, misericordiosamente breve. Houve quem quisesse investigar com maior atenção algumas das suas ligações políticas mais deploráveis. E houve quem se recusasse a tocar nele, ajuizando corretamente que Finch era um homem que, acima de tudo, se deleitaria em ter uma boa discussão em público com os serviços de segurança. No entanto, no final de todo o processo, ficaria estabelecido que o seu único crime tinha sido de desportivismo. Porque às 19h05 em ponto a hora registrada pela sua própria mão na folha oficial para as pontuações exerceu o direito de reclamar vitória por desistência do adversário, tornando-se assim o único jogador na história do clube a ganhar a final do campeonato sem mexer uma única peça. Era uma honra duvidosa, algo que os jogadores de xadrez do serviço secreto britânicos nunca iriam perdoar verdadeiramente. Ari Shamron, o lendário mestre espião israelense, diria mais tarde que nunca tinha corrido tanto sangue a partir de um começo tão humilde. Mas até mesmo Shamron, que era culpado de ocasionais floreados retóricos, sabia que o comentário estava longe de ser exato. Pois os acontecimentos que se seguiram tiveram a sua verdadeira origem não no desaparecimento de Grigori, mas numa contenda fabricada pelo próprio Shamron. Grigori, confidenciaria ele aos seus mais devotos acólitos, tinha sido apenas um aviso à complacente comunidade internacional. Uma luz de sinalização numa torre de vigia longínqua. E o isco utilizado para chamar Gabriel a mostrar-se.

Na noite seguinte, a folha para as pontuações estava na posse do MI5, juntamente com o livro de registros de todo o torneio. Os americanos foram informados do desaparecimento de Grigori vinte e quatro horas mais tarde, mas, por razões nunca explicadas por inteiro, o serviço secreto britânicos esperaram quatro longos dias até acabarem por comunicar o fato aos israelenses. Shamron, que combatera na guerra pela independência de Israel e que odiava os ingleses desde então, classificou a demora de previsível. Num espaço de poucos minutos, estava ao telefone com Uzi Navot, dando-lhe ordem de marcha. Navot obedeceu com relutância; era aquilo que fazia melhor.

CAPÍTULO 3

ÚMBRIA, ITÁLIA

 

Guido Reni era um homem peculiar, mesmo para um artista. Era propenso a ataques de ansiedade, assolado por sentimentos de culpa motivados pela sua homossexualidade reprimida e tão inseguro em relação ao seu talento, que só trabalhava sob a envolvência protetora de uma capa. Mantinha uma devoção invulgarmente intensa à Virgem Maria, mas sentia uma aversão tão profunda pelas mulheres, que não as deixava sequer tocar na sua roupa suja. Acreditava que havia bruxas a persegui-lo. As faces coravam-se-lhe de embaraço ao mero som de uma obscenidade.

Se tivesse seguido o conselho do pai, Reni teria aprendido a tocar cravo. Em vez disso, aos nove anos, entrou para o ateliê do mestre flamengo Denys Calvaert e embarcou numa carreira de pintor. Terminada a aprendizagem, deixou a sua casa em Bolonha, em 1601, e viajou para Roma, onde obteve rapidamente uma encomenda do sobrinho do Papa para produzir um retábulo de altar, A Crucificação de São Pedro, para a Igreja de San Paolo alle Tre Fontane.

A pedido do seu influente mecenas, Reni inspirou-se numa obra exposta na Igreja de Santa Maria del Popolo. O seu criador, um pintor controverso e errático conhecido como Caravaggio, não se sentiu lisonjeado com a imitação de Reni e jurou matá-lo, caso isso voltasse a acontecer mais alguma vez.

Antes de começar a trabalhar no retábulo de Reni, o restaurador tinha ido a Roma ver o Caravaggio novamente. Era evidente que Reni fora buscar coisas ao seu rival de forma mais notória, a sua técnica de utilização do claro-escuro para insuflar vida nas figuras e as fazer realçar, com grande força, em relação ao que estava em segundo plano —, mas também havia muitas diferenças entre os dois quadros. Enquanto Caravaggio tinha colocado a cruz invertida diagonalmente, atravessando toda a cena, Reni posicionara-a na vertical e ao centro. Enquanto Caravaggio tinha mostrado o rosto em sofrimento de Pedro, Reni ocultara-o com destreza. O que deixou o restaurador mais impressionado foi a representação de Reni das mãos de Pedro. No retábulo de Caravaggio, já estavam atadas à cruz. Mas na representação de Reni as mãos estavam livres, com a direita esticada para cima. Estaria Pedro a tentar chegar ao prego que lhe estava prestes a ser espetado nos pés? Ou estaria a implorar a Deus que o salvasse de uma morte tão terrível? O restaurador estava a trabalhar no quadro há mais de um mês. Tendo removido a camada amarelecida de verniz, estava agora ocupado com a parte final e mais importante do restauração: retocar os bocados deteriorados pelo tempo e pela tensão. O retábulo tinha sofrido danos substanciais nos quatro séculos que se seguiram desde que Reni o pintara com efeito, as fotografias tiradas a meio do restauração tinham lançado os proprietários num período triste de histeria e recriminação. Em circunstâncias normais, o restaurador talvez os tivesse poupado ao choque de verem o quadro despido até o seu verdadeiro estado, mas estas dificilmente eram circunstâncias normais. O Reni estava agora na posse do Vaticano. Por o restaurador ser considerado um dos melhores do mundo e por ser um amigo pessoal do Papa e do seu poderoso secretário particular —, podia trabalhar para a Santa Sé como freelancer e selecionar os seus próprios trabalhos. Até podia restaurar não no sofisticado laboratório de conservação do Vaticano, mas numa propriedade rural isolada no Sul da Úmbria.

A Vila dei Fiori ficava a oitenta quilômetros para norte de Roma, num planalto entre os rios Tibre e Nera. Havia um grande negócio de gado e um centro equestre de onde saíam alguns dos melhores cavalos de salto de toda a Itália. Havia porcos que ninguém comia, cabras com propósitos exclusivos de entretenimento e, no Verão, campos a transbordar de girassóis. A villa propriamente dita ficava no final de um longo caminho de cascalho, la deado por enormes pinheiros mansos. No século XI, fora um mosteiro. Ainda restava uma pequena capela e os vestígios de um forno onde os monges tinham cozido o seu pão todos os dias. Rente ao chão, junto à casa, havia uma piscina grande e um jardim com uma latada, onde alecrim e alfazema cresciam em paredes de pedra etrusca. Viam-se cães por todo o lado: um quarteto de sabujos que deambulava pelos pastos, devorando raposas e coelhos, e um par de terriers neuróticos que patrulhava o perímetro dos estábulos com o fervor dos guerreiros santos.

Embora a via fosse propriedade de um nobre italiano decadente chamado conde Gasparri, o seu funcionamento quotidiano era supervisionado por quatro empregados: Margherita, a jovem governanta; Anna, a talentosa cozinheira; Isabella, a etérea jovem meio sueca que cuidava dos cavalos; e Carlos, um vaqueiro argentino que tratava do gado, das colheitas e da pequena vinha. O restaurador e o pessoal da villa coexistiam numa espécie de paz fria. Tinham-lhes dito que era um italiano chamado Alessio Vianelli, filho de um diplomata italiano que tinha vivido grande parte da sua vida no estrangeiro. O restaurador não se chamava Alessio Vianelli, não era filho de um diplomata e nem sequer era italiano. O seu nome verdadeiro era Gabriel Allon e vinha do vale de Jezreel, em Israel. De estatura abaixo da média, com pouco mais do que um metro e setenta, tinha o físico bem cuidado de um ciclista. A cara era alta na testa e estreita no queixo, e o nariz comprido e aquilino parecia ter sido esculpido em madeira. Os olhos eram de um verde-esmeralda de tons intensos; o curto cabelo escuro apresentava-se grisalho nas têmporas. Inteiramente ambidestro, era capaz de pintar igualmente bem com qualquer uma das mãos. No momento, estava a utilizar a esquerda. Ao olhar de relance para o relógio que tinha no pulso, reparou que era quase meia-noite. Ponderou se devia ou não continuar a trabalhar. Mais uma hora, calculou, e o fundo do quadro estaria acabado. Era melhor terminá-lo já. O diretor da Galeria de Quadros do Vaticano queria muito ter o Reni outra vez em exposição a tempo da Semana Santa, o cerco anual de peregrinos e turistas Por altura da Primavera. Gabriel se comprometera fazer todos os esforços possíveis para cumprir o prazo de entrega, mas não era uma promessa concreta. Era um perfeccionista que olhava cada trabalho como uma defesa da sua reputação. Conhecido pela leveza do seu estilo, era da opinião de que um restaurador devia ser um espírito transitório, que devia aparecer e sumir-se sem deixar traço, mas apenas um quadro devolvido à sua glória original, com os danos produzidos ao longo dos séculos desfeitos. O seu estúdio ocupava o que deveria ter sido a sala de estar formal da villa. Esvaziada da mobília, agora continha apenas os seus materiais, duas fortes lâmpadas e uma pequena aparelhagem portátil. La Bohème saía das colunas, com o volume reduzido ao nível de um sussurro. Era um homem com muitos inimigos e, ao contrário do que acontecia com Guido Reni, eles não eram produtos da sua imaginação. Era por isso que ouvia a sua música tão baixinho e que andava sempre com uma pistola carregada, uma Beretta de nove milímetros. A coronha estava manchada de tinta: um salpico de Ticiano, um pouquinho de Bellini, uma gota de Rafael e de Veronese.

Apesar da hora, trabalhou com energia e concentração e conseguiu terminar o que queria no momento em que as últimas notas da ópera se diluíam no silêncio. Limpou os pincéis e a paleta e, a seguir, reduziu a intensidade das lâmpadas. À meia-luz, o fundo do quadro recuou para a escuridão e as quatro figuras começaram a brilhar suavemente. Parado à frente do quadro, com o queixo apoiado na mão e a cabeça inclinada para o lado, pôs-se a planejar a próxima sessão. De manhã, começaria a trabalhar no algoz principal, uma figura de capa vermelha, com um prego numa mão e uma marreta na outra. Sentiu uma certa e sinistra afinidade com o executor. Noutros tempos, ocultado por outros nomes, tinha desempenhado um serviço semelhante para os seus patrões em Tel Aviv.

Apagou as lâmpadas e subiu os degraus de pedra até o quarto.

A cama estava vazia; Chiara, a sua mulher, estava há três dias em Veneza, de visita aos pais. Tinham suportado longas separações por causa do trabalho, mas esta era a primeira vez que escolhiam que assim fosse. Solitário por natureza e obsessivo em relação aos seus hábitos de trabalho, Gabriel esperara que a curta ausência dela fosse fácil de suportar. Mas, na verdade, sentia-se tremendamente triste sem ela. Essas sensações traziam-lhe um conforto peculiar: era normal que um homem com um casamento feliz tivesse saudades da mulher. Para Gabriel Allon um filho de sobreviventes do Holocausto, artista e restaurador talentoso, assassino e espião —, a vida tinha sido tudo menos normal.

Sentou-se no lado da cama de Chiara e passou em revista a pilha de material de leitura que ela tinha na mesinha-de-cabeceira. Revistas de moda, publicações de design de interiores, edições italianas de policiais americanos populares, um livro sobre puericultura intrigante, pensou ele, dado que não tinham filhos e, pelo menos tanto quanto sabia, não estavam à espera de um. Chiara tinha começado a abordar o assunto cautelosamente. Gabriel receava que, dentro de pouco tempo, isso passasse a ser um ponto de discórdia no casamento de ambos. A decisão de voltar a casar já o tinha atormentado suficientemente e a ideia de ter outro filho, ainda que com uma mulher que amava tanto como Chiara, era de momento incompreensível. O seu único filho fora morto num atentado a bomba em Viena e estava enterrado no Monte das Oliveiras, em Jerusalém. Leah, a sua primeira mulher, sobrevivera à explosão e estava agora num hospital psiquiátrico no cimo do monte Herzl, encerrada numa prisão motivada pela memória e num corpo devastado pelo fogo. Tinha sido por causa do trabalho de Gabriel que aqueles que ele amava tinham sofrido este destino. Jurara nunca trazer ao mundo outra criança que pudesse servir como alvo para os seus inimigos. Descalçou as sandálias e atravessou o chão de pedra até a mesa. Na tela do seu computador portátil, um ícone com a forma de um envelope piscava, tentando chamar-lhe a atenção. A mensagem tinha chegado há várias horas. Gabriel fizera o possível para não pensar nisso, porque sabia que ela só podia ter vindo de um lugar. No entanto, ignorá-la para sempre não era uma opção. O melhor era despachar aquilo. Com relutância, clicou no ícone e surgiu uma linha de caracteres sem sentido na tela. Ao introduzir uma senha na janela apropriada, a codificação esfumou-se, deixando no seu lugar algumas palavras perfeitamente visíveis: MALACHI SOLICITA ENCONTRO. PRIORIDADE R 1.

Gabriel franziu o sobrolho. Malachi era a palavra-código para o chefe de Operações Especiais. Prioridade R era reservada a questões de urgência de tempo, normalmente de vida e morte. Hesitou e, a seguir, teclou uma resposta.

Demorou apenas noventa segundos para que a réplica chegasse: MALACHI ESPERA VÊ-LO EM BREVE.

Gabriel desligou o computador e enfiou-se na cama vazia. Malachi espera ver-te em breve... Duvidava de que fosse esse o caso, já que ele e Malachi não estavam propriamente de boas relações um com o outro. Ao fechar os olhos, viu uma mão a estender-se para um prego de ferro. Passou um pincel de leve na paleta e pintou até adormecer. A seguir, pintou mais um pouco.

 


CAPÍTULO 4

 

AMELIA, ÚMBRIA

 

Percorrer a estrada da Vila dei Fiori até a cidadezinha de Amelia, na colina, é ver Itália em toda a sua vetusta glória e, pensou Gabriel com tristeza, em toda a sua angústia moderna. Tinha morado na Itália durante grande parte da sua vida adulta e observara a vagarosa mas metódica marcha do país a caminho do esquecimento total. As provas da decadência estavam por todo o lado: instituições governamentais a transbordarem de corrupção e incompetência; uma economia débil demais para providenciar emprego suficiente para os jovens; linhas costeiras outrora gloriosas conspurcadas pela poluição e pelos detritos. Por alguma razão, estes fatos escapavam à atenção dos escritores de viagens do mundo inteiro, que todos os anos deitavam cá para fora, em catadupa, inúmeras palavras de elogio às virtudes e à beleza da vida italiana. Quanto aos próprios italianos, tinham respondido ao deteriorante estado das coisas casando tarde, ou nem isso, e tendo menos filhos. A taxa de natalidade na Itália estava entre as mais baixas da Europa Ocidental e havia mais italianos acima dos sessenta anos do que abaixo dos vinte, um marco demográfico na história humana. Itália já era um país de pessoas idosas e estava a envelhecer rapidamente. Se as tendências continuassem na mesma linha, sem serem mitigadas, o país iria conhecer um declínio em termos de população como já não se via desde a Peste Negra.

Amelia, a mais antiga das cidades da Úmbria, tinha passado pelo último surto da Peste Negra e, muito provavelmente, por todos os que o antecederam. Fundada por membros de tribos da Úmbria muito antes do dealbar do cristianismo, fora conquistada pelos etruscos, romanos, godos e lombardos, antes de ser colocada por fim sob o domínio dos papas. As suas muralhas de cor parda tinham mais de três metros de espessura e muitas das suas ruas antigas apenas podiam ser percorridas a pé. Nos tempos que corriam, já poucos habitantes de Amelia procuravam refúgio atrás da segurança das muralhas. A maioria morava na parte nova da cidade, um labirinto disforme de prédios de apartamentos pesadões e centros comerciais de betão que se prolongava pela parte sul da colina. A rua principal, a Via Rimembranze, era o lugar onde a maioria dos habitantes de Amelia passava as suas amplas quantidades de tempo livre. Ao final da tarde, passeavam pelos passeios e reuniam-se nas esquinas das ruas, trocando mexericos e observando o movimento do trânsito pelo vale abaixo, em direção a Orvieto. O misterioso inquilino da Villa dei Fiori estava entre os seus tópicos de conversa preferidos. Visto como um forasteiro que tratava dos seus assuntos delicadamente mas com um ar de distanciamento, era alvo de substancial desconfiança e de não pouca inveja. Os rumores sobre a sua presença na villa apenas eram alimentados pelo fato de os empregados se recusarem a falar sobre a natureza do trabalho dele. Tem a ver com as artes, respondiam evasivamente quando questionados. Prefere que o deixem em paz. Algumas das mulheres mais velhas achavam que ele era um espírito maligno que tinha de ser expulso de Amelia antes que fosse tarde demais. Algumas das mais novas estavam secretamente apaixonadas pelo estranho dos olhos cor de esmeralda e namoriscavam-no descaradamente naquelas raras ocasiões em que ele se aventurava até a cidade.

Entre as suas mais ardentes admiradoras, contava-se a moça que se encontrava atrás do reluzente balcão de vidro da Pasticceria Massimo. Tinha os óculos à gata de uma bibliotecária e um sorriso permanente e ligeiramente desaprovador. Gabriel pediu um cappuccino e uma variedade de bolos e dirigiu-se a uma mesa ao fundo do café, já ocupada por um homem com cabelo ruivo-alourado e os ombros maciços de um lutador profissional. Estava a fingir que lia um jornal local a fingir, sabia Gabriel, porque o italiano não era uma das línguas que ele dominasse.

— Alguma coisa interessante, Uzi? perguntou Gabriel, em alemão.

Uzi Navot olhou furiosamente para Gabriel durante alguns segundos e depois retomou a sua apreciação do jornal.

— Se não me engano, parece que há uma espécie de crise política qualquer em Roma respondeu, na mesma língua.

Gabriel sentou-se no lugar vago.

— O primeiro-ministro está envolvido neste momento num escândalo financeiro bem complicado.

— Mais um?

— Qualquer coisa a ver com o pagamento de propina em vários projetos grandes de construção no Norte. Como seria de esperar, a oposição exige sua renúncia. E ele promete solenemente que vai continuar no cargo e partir para a luta.

— Talvez fosse melhor se a Igreja ainda mandasse por aqui.

— Está propondo a reconstituição dos Estados papais?

— É melhor um papa do que um primeiro-ministro playboy com um cabelo que parece cheio de graxa de sapato. Ele elevou a corrupção a uma forma de arte.

— Nosso último primeiro-ministro também tinha graves deficiências de nível ético.

— É verdade. Mas, felizmente, não é ele que protege o país dos inimigos. Esse trabalho ainda é do Boulevard King Saul.

O Boulevard King Saul era a sede do serviço secreto de Israel. A agência possuía um nome comprido e deliberadamente enganador, que tinha muito pouco a ver com a verdadeira natureza do seu trabalho. Seus funcionários referiam-se a ela apenas como “o Escritório” e nada mais.

A moça pôs o cappuccino na frente de Gabriel e um prato de bolo no meio da mesa. Navot fez uma careta.

— O que há, Uzi? Não me diga que a Bella te pôs outra vez de dieta?

— O que te leva a pensar que eu alguma vez deixei de estar de dieta?

— O diâmetro da tua cintura.

— Nem todos podemos ser abençoados com teu físico elegante e metabolismo rápido, Gabriel. Os meus antepassados eram judeus austríacos anafados.

— Então, por que razão se deve lutar contra a natureza? Come um, Uzi, pelo menos para bem do teu disfarce.

A escolha de Navot, um bolo em forma de trompete cheio de natas, desapareceu com duas dentadas. Hesitou e, a seguir, decidiu-se por outro repleto de um creme doce de amêndoa. Sumiu-se no tempo que Gabriel demorou a despejar um pacote de açúcar no café.

— Não tive possibilidade de comer no avião disse Navot, envergonhado. Pede-me um café.

Gabriel pediu outro cappuccino e depois olhou para Navot. Estava outra vez a olhar fixamente para os bolos.

— Força, Uzi. A Bella não vai saber nunca.

— Isso é o que tu julgas. A Bella sabe tudo.

Bella tinha trabalhado como analista no Escritório para a Síria do Escritório, antes de aceitar um cargo de professora de História Levantina na Universidade Ben-Gurion. Navot, um veterano responsável pelos agentes e ele próprio um agente secreto versado na arte da manipulação, era incapaz de a enganar.

— Os rumores são verdadeiros? perguntou Gabriel.

— E que rumores são esses? — Os que dizem que tu e a Bella se casaram. Os que falam de um casamento discreto junto ao mar, na Cesareia, só com um punhado de amigos íntimos e família a assistir. E o Velho, claro. O chefe das Operações Especiais nunca poderia casar sem a bênção de Shamron.

As Operações Especiais constituíam o lado negro de uns serviços negros. A unidade realizava as missões que mais ninguém queria, ou se atrevia, levar a cabo. Os seus agentes eram executores e sequestradores; chantagistas e gente que instalava aparelhos de escuta; homens de inteleto e engenho, com uma veia criminosa maior do que a dos próprios criminosos; multilingues e camaleões que se sentiam em casa nos hotéis e salões mais elegantes da Europa ou nas piores ruelas de Beirute e Bagdá. Navot nunca tinha conseguido ultrapassar o fato de lhe ter sido atribuído o comando da unidade por Gabriel ter recusado o cargo. Enquanto Gabriel era brilhante, ele era competente; enquanto Gabriel era por vezes imprudente, ele era cauteloso. Em qualquer outro serviço, em qualquer outra terra, ele teria sido uma estrela. Mas o Escritório valorizara sempre agentes como Gabriel, homens de uma criatividade livre das amarras da ortodoxia. Navot era o primeiro a admitir que não era mais do que um mero operacional, tendo passado toda a carreira a labutar à sombra de Gabriel.

— A Bella quis que estivesse presente o mínimo possível de pessoas ligadas ao Escritório. A voz de Navot soava sem grande convicção. Ela não queria que o copo-d’água se parecesse com uma reunião de espiões. Foi por isso que eu não fui convidado? Navot dedicou vários segundos à tarefa de juntar umas quantas migalhas num montinho minúsculo. Gabriel tomou nota disso mentalmente. Os psicólogos comportamentais do Escritório referiam-se às tácticas de adiamento assim tão óbvias pelo nome de atividade de deslocamento.

— Força, Uzi. Não me vais ferir os sentimentos.

Navot empurrou as migalhas para o chão com as costas da mão e olhou para Gabriel, em silêncio, durante um momento. Não foste convidado para o meu casamento porque eu não te queria no meu casamento. Não depois daquela brincadeira que fizeste em Moscou.

A moça pôs o café à frente de Navot e, sentindo a tensão, refugiou-se atrás da sua barricada de vidro. Gabriel espreitou pela Janela e pôs-se a olhar para um trio de velhos a avançar lentamente pelo passeio, fortemente agasalhados para se protegerem do frio cortante. Os seus pensamentos, no entanto, estavam voltados para uma noite chuvosa de Agosto em Moscou. Estava parado na pequena praça decrépita em frente ao colossal e ameaçador prédio de apartamentos estalinista, conhecido como a Casa no Cais. Navot apertava-lhe o braço com toda a força e falava-lhe ao ouvido em voz baixa. Dizia que a operação para roubar os arquivos pessoais do traficante de armas Ivan Kharkov tinha ficado comprometida. Que Ari Shamron, o mentor e chefe de ambos, lhes tinha ordenado que batessem em retirada até o Aeroporto Sheremetyevo e apanhassem o avião para Tel Aviv que os esperava. Que Gabriel não tinha outra opção a não ser deixar para trás a sua agente, a mulher de Ivan, obrigada a enfrentar uma morte certa.

— Eu tinha de ficar, Uzi. Era a única maneira de conseguir tirar a Elena viva daquele lugar.

— Desobedeceste a uma ordem direta de Shamron e de mim, o teu superior direto, se bem que apenas em teoria. E puseste em perigo a vida de toda a equipe, incluindo a da tua mulher. Que imagem achas que isso deu de mim perante o resto da divisão? A de um chefe sensato que manteve a cabeça fria enquanto uma operação ia pelo cano abaixo.

— Não, Gabriel. Deu-me a imagem de um covarde que estava disposto a deixar morrer um agente para não ter de arriscar o pescoço e a carreira. Despejou três pacotes de açúcar no café e mexeu-o furiosamente, uma única vez, com uma colher de prata minúscula.

E sabes uma coisa? Eles teriam acertado se tivessem dito isso. Em tudo, menos na parte de eu ser um covarde. Não sou um covarde.

— Ninguém iria alguma vez acusar-te de fugir de uma luta, Uzi.

— Mas admito que tenho instintos de sobrevivência bem afiados. Temos de os ter neste tipo de trabalho, não só no terreno, mas também na Boulevard King Saul. Nem todos fomos abençoados com os teus talentos. Alguns de nós até precisam de um emprego. Alguns de nós até têm em vista promoções. Bateu de leve com a colher na borda da xícara e pôs no pires. Fui direito a uma verdadeira tempestade quando regressei naquela noite a Tel Aviv. Foram buscar-nos ao aeroporto e levaram-nos diretamente para a Boulevard King Saul. Quando lá chegamos, tu já estavas desaparecido há várias horas. Não paravam de ligar do Gabinete do primeiro-ministro para receberem atualizações e Shamron estava com uma fúria verdadeiramente homicida. Ainda bem que ele se encontrava em Londres; caso contrário, ter-me-ia matado com as próprias mãos. Na altura, partiu-se do princípio de que tu estavas morto. E eu era o tipo que tinha deixado que isso acontecesse. Ficamos para ali sentados durante horas, à espera de informações. Foi uma noite má, Gabriel. Nunca mais quero voltar a passar por outra igual.

— Eu também não, Uzi.

— Não duvido. Navot olhou para a cicatriz junto ao olho direito de Gabriel. Quando amanheceu, já tínhamos perdido praticamente toda a esperança de que ainda pudesses estar vivo. E foi nessa altura que um dos funcionários da divisão de comunicações entrou pela Sala de Operações adentro a dizer que tu tinhas ligado pela linha de emergência... da Ucrânia, de todos os lugares possíveis e imagináveis. Quando ouvimos a tua voz pela primeira vez, foi um pandemônio. Não só tinhas conseguido sair vivo da Rússia com os segredos mais tenebrosos de Ivan Kharkov, como também tinhas trazido com você um carregamento de desertores, incluindo o coronel Grigori Bulganov, o oficial do FSB com a patente mais elevada que alguma vez tinha passado para este lado. Nada mau para uma noite de trabalho. Moscou esteve entre os teus melhores momentos. Mas, para mim, será uma mancha permanente num registro sem mácula, salvo isso. E foi você que a puseste lá, Gabriel. Foi por isso que não foste convidado para o meu casamento.

— Peço desculpas, Uzi.

— Por quê?

— Por te deixar numa posição difícil.

— Mas não por não ter acatado uma ordem direta?

Gabriel ficou em silêncio. Navot abanou a cabeça lentamente. — És um sacana de um convencido, Gabriel. Devia ter quebrado seu braço em Moscou e arrastado para o carro.

— O que quer que eu diga, Uzi?

— Quero que me diga que isso nunca mais voltará a acontecer.

— E se acontecer?

— Primeiro, quebro seu braço. Depois, me demito de Operações Especiais, o que não deixará outra opção a não ser dar o cargo a você. E eu sei o quanto você quer isso...

Gabriel levantou a mão direita.

— Nunca mais, Uzi... no terreno ou em qualquer outro lugar.

— Diga.

— Peço desculpas pelo que ocorreu entre nós em Moscou. E juro que nunca mais desobedecerei outra ordem direta sua.

Navot pareceu instantaneamente pacificado. Os confrontos pessoais nunca tinham sido seu forte.

— É só isso, Uzi? Fez esta viagem toda até a Úmbria porque queria um pedido de desculpas?

— E uma promessa, Gabriel. Não esqueça da promessa.

— Não esqueci.

— Ótimo.

Apoiou os cotovelosna mesa e inclinou-se. — Porque eu quero que me ouça com muita atenção. Vamos voltar para sua villa das flores e vai fazer as malas. Vamos para Roma e passamos a noite na embaixada. Amanhã de manhã, quando o voo das dez partir do Aeroporto de Fiumicino para Tel Aviv, estaremos nesse avião, na segunda fila da primeira classe, um ao lado do outro.

— E por que faremos isso?

— Porque Grigori Bulganov desapareceu.

— O que quer dizer com desapareceu?

— Quero dizer que desapareceu, Gabriel. Sumiu sem deixar rastro. Desapareceu.


CAPÍTULO 5

 

 

AMELIA, ÚMBRIA

— Há quanto tempo ele está desaparecido? — Faz agora mais ou menos uma semana.

— Sê mais específico, Uzi.

O coronel Grigori Bulganov foi visto pela última vez a entrar numa limusine Mercedes na Harrow Road, às seis horas e doze minutos, ao fim da tarde de terça-feira.

Estavam a andar no meio do crepúsculo moribundo, ao longo de uma rua estreita e empedrada, no centro histórico de Amelia. Seguindo-os, uns passos atrás, ia um par de guarda-costas com olhos claros. Era um sinal preocupante. Navot costumava viajar apenas com uma bat leveyha, uma agente com funções de escolta, para proteção. O fato de ter trazido dois assassinos experimentados indicava que levava a sério a ameaça à vida de Gabriel. Quando os ingleses se decidiram a informar-nos? Fizeram um telefonema discreto para a base de Londres no sábado à tarde, quatro dias depois dos acontecimentos. Como era sabat, o agente de serviço era um garoto que não compreendeu bem O significado daquilo que lhe tinham acabado de dizer. Escreveu um telegrama e enviou-o para o Boulevard King Saul como uma mensagem de prioridade mínima. Felizmente, o agente de serviço no Escritório Europeu percebeu de fato o que estava em causa e fez de imediato uma chamada de cortesia para Shamron.

Gabriel abanou a cabeça. Já tinham passado vários anos desde que Shamron saíra pela última vez em serviço enquanto chefe e, no entanto, o Escritório continuava a ser o seu feudo pessoal. Estava repleto de agentes como Gabriel e Navot, homens que haviam sido recrutados e treinados por Shamron, homens que atuavam de acordo com um credo, e o mesmo se passava até com a linguagem em que falavam, escrita por ele. Em Israel, Shamron era conhecido como o Memuneh, aquele que manda, e continuaria a sê-lo até o dia em que decidisse finalmente que o país se encontrava suficientemente seguro para ele poder morrer.

— E parto do princípio de que, a seguir, Shamron te tenha ligado a ti disse Gabriel.

— Ligou, sim, embora tenha sido claramente uma chamada sem nenhum tipo de cortesia. Disse-me para te enviar uma mensagem. E depois disse-me para pegar em dois dos rapazes e meter-me num avião. Parece ser esta a minha sina na vida: o filho mais novo e cumpridor que é enviado para o meio de sabe-se lá onde, de tantos em tantos meses, para ir à procura do irmão mais velho e indisciplinado.

— E Grigori estava sob vigilância quando entrou no carro?

— Ao que parece, não.

— Então, como os ingleses têm tanta certeza sobre o que aconteceu?

— Tinham seus ajudantezinhos eletrônicos observando.

Navot se referia à CCTV, a rede ubíqua de dez mil câmaras de televisão de circuito fechado que deu à Polícia Metropolitana de Londres a capacidade de monitorizar as atividades, criminosas ou de outro tipo, em praticamente todas as ruas da capital britânica. Um estudo recente efetuado pelo governo concluíra que o sistema tinha falhado no seu objetivo primordial: dissuadir o crime e prender os criminosos. Apenas três por cento dos roubos de rua era resolvido com o recurso à tecnologia CCTV e os índices do crime em Londres estavam a subir em flecha. Os responsáveis da polícia, embaraçados, justificaram o fracasso apontando que os criminosos tinham levado as câmaras em linha de conta e ajustado as suas tácticas, passando, por exemplo, a usar máscaras e chapéus para esconderem a sua identidade. Aparentemente, não houve ninguém no comando das operações que tivesse considerado essa possibilidade antes de se gastarem centenas de milhões de libras e de a privacidade das pessoas ser invadida a uma escala nunca vista. Os súbditos do Reino Unido, o local de nascimento da democracia ocidental, viviam agora num mundo orwelliano onde cada movimento seu era vigiado pelos olhos do Estado.

— Quando os ingleses descobriram que ele tinha desaparecido? — perguntou Gabriel.

— Foi só na manhã seguinte. Estava previsto que ele telefonasse todas as noites, às dez, para dar notícias. Quando não ligou na terça-feira, o agente responsável por ele não ficou especialmente preocupado. Grigori jogava xadrez todas as terças à noite, num clubinho em Bloomsbury. Na passada terça-feira, era a final do torneio anual do clube. Toda a gente estava à espera que Grigori vencesse facilmente.

— Não fazia ideia de que ele jogava.

— Calculo que ele nunca tenha tido hipótese de mencionar isso durante aquela noite que vocês passaram juntos nas salas de interrogatórios, em Lubyanka. Estava ocupado demais tentando perceber como um funcionário de nível médio do Ministério da Cultura de Israel tinha conseguido desarmar e matar assassinos chechenos.

— Se bem me lembro, Uzi, eu nunca teria estado naquela escadaria se não fosse por você e Shamron. Era um daqueles trabalhinhos rápidos, de entrar e sair que vocês estão sempre inventando. Do tipo dos que supostamente devem correr sem problemas. Do tipo em que supostamente ninguém se fere. Mas parece que as coisas nunca correm dessa maneira.

— Há homens que nascem formidáveis. Outros limitam-se a receber todas as missões formidáveis saídas do Boulevard King Saul. Missões que os fazem ir parar a celas na cave de Lubyanka. E, se não fosse pelo coronel Grigori Bulganov, eu nunca teria saído vivo daquele lugar. Ele salvou-me a vida, Uzi. Duas vezes. Eu lembro-me respondeu Navot sardonicamente. Todos nós nos lembramos.

— E porque os ingleses não nos avisaram mais cedo?

— Acharam que era possível que Grigori se tivesse simplesmente afastado da reserva. Ou que estivesse enfiado com uma moça qualquer num hotelzinho à beira-mar. Queriam ter certeza de que ele estava desaparecido antes de fazerem disparar o alarme de incêndio. Ele desapareceu, Gabriel. E o último lugar na Terra em que se sabe que ele esteve foi naquele carro. É como se aquela viatura fosse um portal no qual ele caísse no esquecimento total.

— E tenho certeza de que foi. Eles já têm alguma teoria? Têm. E receio que não vás gostar dela. É que, sabes, Gabriel, os mandarins do serviço secreto britânicos chegaram à conclusão de que o coronel Grigori Bulganov voltou a desertar.

— Voltou a desertar? Só pode estar brincando.

— Mas não estou. E mais ainda: convenceram-se de que ele sempre foi um agente duplo este tempo todo. Acham que ele veio para o Ocidente para nos enganar russos e recolher informações sobre a comunidade de dissidentes russos de Londres. E agora, tendo sido bem-sucedido, voltou para casa para ser recebido como herói. E adivinha quem eles culpam por esta catástrofe?

— A pessoa que, antes de tudo acontecer, trouxe Grigori para o Ocidente.

— Correto. Culpam você.

— Que conveniente. Grigori Bulganov é tão agente duplo russo como eu. Os ingleses fabricaram essa teoria ridícula para se eximir de responsabilidade. Nunca deveriam tê-lo deixado viver em Londres abertamente. No outono passado, eu não conseguia ligar a BBC ou a CNN Internacional sem ver a cara dele.

— Então, o que acha que aconteceu?

— Foi executado, Uzi. Ou pior.

— O que pode ser pior do que isso?

— Ser sequestrado por Ivan Kharkov.

Gabriel parou de andar e virou-se de frente para Navot, na rua deserta. — Mas a verdade você já sabe isso, Uzi. Ou não estaria aqui.

CAPÍTULO 6

AMELIA, ÚMBRIA

 

 

Subiram as ruas tortuosas até a piazza, no ponto mais alto da cidade, e ficaram a olhar lá para baixo, para as luzes a brilharem como pedaços de topázio e granada na superfície do vale. Os dois guarda-costas estavam à espera do outro lado da praça, bem longe do alcance do ouvido. Um tinha um celular encostado à orelha; o outro, um isqueiro a um cigarro. Quando Gabriel viu o lampejo da chama, uma imagem passou-lhe de repente pela cabeça. Ia a atravessar as planícies enevoadas da Rússia Ocidental, ao romper do dia, no lugar do passageiro de um grande Volga, com a cabeça a latejar e o olho direito tapado por uma tosca ligadura. Duas mulheres lindas dormiam como crianças pequenas no banco de trás. Uma era Olga Sukhova, a figura mais famosa entre os jornalistas russos que se opunham ao governo. A outra era Elena Kharkov, a mulher de Ivan Borisovich Kharkov: oligarca, traficante de armas, assassino. Ao volante, cigarro ardendo entre o polegar e o indicador, ia Grigori Bulganov. Falava em voz baixa para não acordar as mulheres, com os olhos fixos numa estrada russa sem fim.

— Sabe o que fazemos com traidores, Gabriel? Levamos para uma salinha pequena e os obrigamos a se ajoelhar. A seguir, damos um tiro na nuca com uma pistola de grande calibre. Certificamo-nos de que a bala saia pelo rosto para que não sobre nada para a família ver. Depois, jogamos o corpo numa sepultura não identificada. Muita coisa que mudou na Rússia desde a queda do comunismo. Mas a punição para a traição continua a mesma. Prometa uma coisa, Gabriel. Prometa que eu não vou acabar numa sepultura não identificada.

Gabriel ouviu um esvoaçar repentino de asas e, ao olhar para cima, viu um grupo de gralhas girando em volta do campanário românico da piazza. A voz que ouviu a seguir era a de Uzi Navot.

— Pode ter certeza de uma coisa, Gabriel. A única pessoa que Ivan Kharkov quer ver morta mais do que Grigori é você. E quem pode condená-lo? Primeiro, você roubou os segredos dele. Depois, a mulher e os filhos.

— Eu não roubei nada. Elena quis desertar. Eu apenas ajudei.

— Duvido que Ivan veja a coisa dessa forma. E o Memuneh também não. O Memuneh acha que Ivan está de volta ao ativo; acha que Ivan fez a sua primeira jogada.

Gabriel ficou em silêncio. Navot puxou a gola do sobretudo para cima.

— Lembre-se, no outono passado, buscávamos informações sobre uma unidade especial que Ivan tinha criado em seu próprio serviço de segurança privada. Essa unidade recebeu uma missão simples. Encontrar Elena, recuperar as crianças e matar todos da operação. Deixamos a coisa morrer e pensamos que Ivan tinha se acalmado. O desaparecimento de Grigori sugere o contrário.

— Ivan nunca vai me encontrar, Uzi. Não aqui.

— Está disposto a apostar a vida nisso?

— Há cinco pessoas que sabem que estou neste país: o primeiro-ministro italiano, os chefes do serviço secreto e de segurança italianos, o Papa e o secretário particular do Papa. Isso já são cinco pessoas a mais. Navot pôs a sua grande mão no ombro de Gabriel. Quero que me ouças com muita atenção. O fato de Grigori Bulganov ter deixado Londres voluntariamente ou com uma pistola russa apontada a ele tem muito pouca ou nenhuma importância. A tua posição está comprometida, Gabriel. E vais deixar este lugar hoje à noite.

— Já fiquei com a minha posição comprometida noutras alturas.

Além disso, Grigori não tem qualquer conhecimento do meu disfarce ou de onde eu estou a viver. Não pode trair-me e Shamron sabe disso. Ele está a utilizar o desaparecimento de Grigori como a desculpa mais recente para me fazer voltar para Israel. E, assim que eu lá estiver, irá enfiar-me na solitária. E tenho certeza de que, quando as minhas defesas estiverem no ponto mais fraco, irá oferecer-me uma saída. Serei o diretor e tu ficarás à frente das Operações Especiais. E Shamron vai poder finalmente morrer em paz, sabendo que os seus dois filhos preferidos controlam finalmente o seu querido Escritório.

— Isso pode ser a estratégia global de Shamron, mas de momento ele só está preocupado com a tua segurança. Não tem segundas intenções.

— Shamron é a personificação das segundas intenções, Uzi.

E tu também.

Navot tirou a mão de cima do ombro de Gabriel. — Tenho muita pena, mas isso não é discutível, Gabriel. Pode vir a ser o chefe um dia, mas por enquanto estou mandando você sair da Itália e voltar para casa. Não vai desobedecer a outra ordem, ok?

Gabriel não deu resposta.

— Tem inimigos demais para ficar sozinho no mundo, Gabriel. Pode achar que seu amigo, o Papa, tomará conta de você, mas está enganado. Precisa de nós tanto quanto precisamos de você. Além disso, somos a única família que tens. Navot fez um sorriso perspicaz. As horas incontáveis que tinha passado nas salas de conferências no Boulevard King Saul tinham-lhe aguçado significativamente o talento para a argumentação. Agora, era um adversário temível, com o qual era preciso lidar com cuidado. Estou a trabalhar num quadro atirou Gabriel. Não Posso ir-me embora sem que esteja terminado.

— Quanto tempo? — perguntou Navot.

Três meses, pensou Gabriel. E depois disse: Três dias.

Navot soltou um suspiro. Dirigia uma unidade constituída por várias centenas de agentes altamente qualificados mas em que apenas um tinha seus movimentos ditados pelos ritmos volúveis da restauração de quadros dos Velhos Mestres.

— Presumo que sua mulher ainda esteja em Veneza?

— Volta hoje à noite.

— Ela devia ter dito que ia para Veneza antes de partir. Você pode ter serviços particulares, Gabriel, mas sua mulher é funcionária em tempo integral do Escritório. Exige-se que mantenha o supervisor, eu, a par de seus movimentos, pessoais e profissionais. Talvez você possa fazer a gentileza de lembrá-la desse fato.

— Vou tentar, Uzi, mas ela nunca ouve nada do que eu digo.

Navot olhou com irritação para o relógio de pulso, um grande aparelho de aço inoxidável que fazia tudo exceto dar horas certas. Era uma versão mais nova daquele que Shamron usava, a razão pela qual Navot o tinha comprado logo para começar. Tenho de tratar de uns assuntos em Paris e Bruxelas. Volto cá daqui a três dias para te vir buscar a ti e à Chiara. Voltaremos juntos para Israel.

— Tenho certeza de que podemos encontrar o aeroporto sozinhos, Uzi. Fomos bem treinados.

— É isso que me preocupa. — Navot virou-se e olhou para os guarda-costas. — Aliás, eles ficam com você. Pensa neles como sendo hóspedes fortemente armados.

— Não preciso deles.

— Não tem escolha respondeu Navot.

— Presumo que não saibam falar italiano.

— São filhos de colonos da Judeia e Samaria. Mal sabem falar inglês.

— Então, como espera que eu explique a presença deles aos empregados da villa?

— Isso não é um problema meu.

Esticou três grossos dedos na cara de Gabriel. — Tem três dias para acabar o diabo desse quadro. Três dias. Depois, você e sua mulher voltam para casa.

CAPÍTULO 7

VILLA DEI FIORI, ÚMBRIA

O estúdio de Gabriel estava na semiescuridão, com o retábulo envolto pelas trevas. Gabriel tentou passar por ele sem parar, mas não conseguiu como sempre, a atração exercida por um trabalho em andamento era simplesmente forte demais. Acendendo uma lâmpada, pôs-se a contemplar a pálida mão que se esticava para a parte de cima do quadro. Durante um instante, não era a mão de São Pedro mas a de Grigori Bulganov. E não tentava chegar a Deus, mas a Gabriel.

Prometa-me uma coisa, Gabriel. Prometa-me que eu não acabarei numa sepultura não identificada.

A visão foi perturbada pelo som de alguém a cantar. Gabriel apagou a lâmpada e subiu os degraus de pedra até o quarto. A cama, que não estava feita quando saíra, parecia agora ter sido preparada por um decorador profissional para uma sessão de fotos. Chiara estava a executar um último ajuste num par de almofadas decorativas, dois discos inúteis, adornados com rendas brancas, que Gabriel atirava sempre para o chão antes de se enfiar dentro dos lençóis. Havia uma pequena mala de fim-de-semana ao fundo da cama, ao lado de uma Beretta de nove milímetros. Gabriel guardou a arma na gaveta de cima da mesinha-de-cabeceira e baixou o volume do rádio.

Chiara olhou para cima, como que surpresa pela presença dele. Trazia calças jeans azuis, desbotadas, uma camisola bege e umas botas de camurça que acrescentavam cinco centímetros à sua figura, já de si alta. Tinha o cabelo rebelde apanhado na nuca, com a ajuda de um travessão, e puxado para a frente, por cima do ombro. Os olhos cor de caramelo exibiam um tom mais escuro do que o normal. Não era um bom sinal. Os olhos de Chiara eram um barômetro fidedigno do seu estado de espírito.

— Não ouvi seu carro a chegar.

— De repente, não devia deixar o rádio tão alto.

— Por que Margherita não fez a cama?

— Disse a ela para não entrar aqui enquanto você estivesse fora.

— E claro que você não podia ter esse trabalho.

— Não consegui descobrir as instruções.

Ela abanou a cabeça lentamente para mostrar seu desapontamento.

— Se pode restaurar os quadros dos Velhos Mestres, também pode fazer uma cama. Como fazia quando era pequeno?

— Minha mãe tentava me obrigar.

— E?

— Eu dormia em cima da roupa da cama.

— Não admira que Shamron tenha recrutado você.

— Na verdade, os psicólogos do Escritório acharam que era bem revelador. Disseram que demonstra espírito independente e capacidade para resolver problemas.

— Então é por isso que agora se recusa a fazer? Porque quer demonstrar sua independência?

Gabriel respondeu com um beijo. Os lábios dela estavam muito quentes.

— Como estava Veneza?

— Quase suportável. Quando o tempo está frio e chuvoso, é quase possível imaginar que Veneza ainda é uma verdadeira cidade. A Piazza di San Marco está infestada de turistas, claro. Bebem as suas xícaras de cappuccino de dez euros e posam para fotos com aqueles pombos horrorosos. Me conte, Gabriel, que férias são essas?

— Achei que o presidente da Câmara tinha acabado com os vendedores de alpiste.

— Os turistas alimentam os pombos do mesmo jeito. Se adoram pombos tanto assim, deviam levá-los para casa de lembrança. Sabe quantos turistas visitaram Veneza este ano?

— Vinte milhões.

— Exatamente. Bastaria que cada pessoa levasse um desses pássaros nojentos e o problema ficaria resolvido em poucos meses.

Era estranho ouvir Chiara falar de Veneza de forma tão dura. Na verdade, houve uma época, não assim há tanto tempo, em que ela nunca teria imaginado uma vida fora dos pitorescos canais e ruelas estreitas da sua cidade natal. Filha do rabi principal da cidade, tinha passado a infância no mundo isolado do velho gueto judeu, ausentando-se apenas o tempo suficiente para tirar um mestrado em História, na Universidade de Pádua. Regressou a Veneza depois de terminar o mestrado e começou a trabalhar no pequeno museu judeu no Campo del Ghetto Nuovo, onde poderia ter permanecido para sempre se não tivesse sido descoberta por um olheiro do Escritório durante uma visita a Israel. O olheiro apresentou-se, num café em Tel Aviv, e perguntou a Chiara se não estaria interessada em fazer mais pelo povo judeu do que simplesmente trabalhar num museu, num gueto moribundo. Chiara disse que sim e desapareceu nos meandros do sigiloso programa de treinos do Escritório. Um ano mais tarde, retornou a sua antiga vida, desta vez como agente secreto dos israelenses. Uma de suas primeiras missões foi dar proteção, sem que a sua presença fosse revelada, a um indisciplinado assassino a serviço do Escritório chamado Gabriel Allon, que tinha vindo para Veneza restaurar O retábulo de Bellini, em San Zaccaria. Informou-o de sua existência pouco tempo depois, em Roma, após um incidente que envolveu troca de tiros e a polícia italiana. Fechado sozinho com Chiara num apartamento seguro, Gabriel quis tocar nela desesperadamente. Esperou até o caso estar resolvido e terem voltado a Veneza. Foi aí, numa casa no canal de Cannaregio, que fizeram amor pela primeira vez, numa cama preparada com lençóis lavados. Tinha sido como fazer amor com uma figura pintada pela mão de Veronese. E agora essa mesma figura franzia o sobrolho enquanto ele despia o casaco de couro e o atirava para as costas de uma cadeira. Ela fez questão de mostrar que o pendurava no armário e, a seguir, abriu o fecho da pequena mala de fim-de-semana, começando a tirar o que lá estava dentro. A roupa estava toda lavada e meticulosamente dobrada.

— A minha mãe insistiu em lavar-me a roupa antes de eu partir.

— Ela acha que nós não temos máquina de lavar? É veneziana, Gabriel. Não acha que viver numa quinta seja o mais apropriado para uma moça. As pastagens e o gado deixam-na nervosa. Começou a guardar a roupa lavada nas gavetas da cômoda. Então e porque não estavas cá quando eu cheguei? — Tive uma reunião.

— Uma reunião? Em Amelia? Com quem?

Gabriel contou.

— Pensei que vocês não se falassem mais.

— O que tem que ser tem que ser.

— Que amoroso — respondeu Chiara friamente. E meu nome veio à baila?

— Uzi está ofendido com você por não ter informado ao Escritório que ia a Veneza.

— Era pessoal.

— Sabe bem que pessoal não existe para o Escritório.

— Por que toma o partido dele?

— Não estou tomando partido de ninguém. Foi uma simples constatação.

— E desde quando você liga para as regras do Escritório? Faz o que entende, quando bem entende, e ninguém se atreve sequer a te tocar.

— E Uzi dá tratamento preferencial a você por estar casada comigo.

— Continuo zangada com ele por ter deixado você para trás em Moscou.

— Uzi não teve culpa, Chiara. Ele tentou me obrigar a partir, mas eu me neguei.

— E quase conseguiu que te matassem. E teria morrido se não fosse Grigori.

Ficou de repente em silêncio, durante um momento, enquanto dobrava novamente duas peças de roupa. — Vocês comeram alguma coisa?

— Uzi devorou uns cem bolos no Massimo. Eu tomei café.

— E como ele está de peso?

— Parece que ganhou uns quilinhos com a felicidade pós-nupcial.

— Você não engordou nem um depois que nos casamos.

— Suponho que isso queira dizer que sou profundamente infeliz.

— E é?

— Não seja boba, Chiara.

Ela enfiou o polegar no cós dos jeans.

— Acho que estou engordando.

— Está linda.

Ela fez uma careta.

— Não devia dizer que estou linda. Devia dizer que não estou engordando.

— Sua blusa parece estar um pouquinho mais apertada do que o normal.

— São os cozinhados da Anna. Se continuar a comer assim, vou ficar como uma daquelas velhotas da cidade. De repente, devia comprar já um vestido preto e despachar a coisa.

— Eu dei-lhe a noite de folga. Achei que podia ser agradável estarmos sozinhos, para variar.

— Graças a Deus. Vou preparar qualquer coisa para comeres. Estás muito magro. Fechou a gaveta da cômoda. Então e o que trouxe o Uzi à cidade? — Anda a fazer a sua volta semianual de visita aos ativos europeus.

A dar palmadinhas nas costas. A mostrar a bandeira.

— Será que deteto uma pontinha de rancor na tua voz? Porque raio eu havia de me sentir rancoroso? Porque tu devias estar a fazer a luxuosa volta de visita aos nossos ativos europeus, em vez do Uzi.

— As viagens já não são o que eram em tempos, Chiara. Além disso, eu não quis o cargo.

— Mas nunca te sentiste confortável com o fato de eles o terem dado ao Uzi quando tu o recusaste. Achas que ele não tem nem o inteleto nem a criatividade para isso.

— Shamron e os seus acólitos no Boulevard King Saul discordam.

E, se fosse a ti, Chiara, mantinha-me nas boas graças do Uzi.

É provável que ele um dia venha a ser o diretor. Não depois de Moscou. De acordo com os rumores que andam por aí a circular, o Uzi teve sorte em não perder o emprego. Sentou-se na borda da cama e tentou descalçar a bota direita sem grande convicção. Ajuda-me pediu, esticando o pé na direção de Gabriel. Não quer sair.

Gabriel agarrou na bota, puxando pela biqueira e pelo tacão, e ela soltou-se do pé com facilidade.

— De repente, da próxima vez, devias tentar puxar por ela.

— És muito mais forte do que eu.

Levantou a outra perna.

— Então e quanto tempo pensas fazer-me ficar à espera desta vez, Gabriel? — Antes de quê? — Antes de me dizeres porque o Uzi fez esta viagem toda até a Úmbria para te ver. E porque dois guarda-costas do Escritório te seguiram até casa.

— Pensava que não me tinhas ouvido chegar.

— Estava a mentir.

Gabriel descalçou-lhe a segunda bota.

— Nunca me mintas, Chiara. Acontecem coisas más quando dois amantes mentem um ao outro.

CAPÍTULO 8

VILLA DEL FIORI, ÚMBRIA

 

 

Talvez os ingleses tenham razão. Talvez Grigori tenha mesmo voltado a desertar.

— E talvez o Guido Reni apareça cá hoje à noite, mais daqui a bocado, para me ajudar a acabar o retábulo dele.

Chiara tirou um ovo da embalagem e partiu-o com destreza e uma só mão para dentro de uma tigela. Estava no meio da cozinha rústica da villa, numa área isolada. Gabriel estava do outro lado, empoleirado num banco de madeira, com um copo de vinho merlot da Úmbria na mão.

— Vai me matar com esses ovos, Chiara.

— Beba seu vinho. Se beber vinho, pode comer todos os ovos que quiser.

— Isso é um disparate.

— É verdade. Por que acha que os italianos vivem para sempre?

Gabriel fez o que ela sugeriu e bebeu um pouco de vinho. Chiara partiu outro ovo na borda da tigela, mas desta vez um fragmento da casca ficou alojado na gema. Irritada, retirou-o delicadamente Com a ponta da unha e deu-lhe um piparote, atirando-o para dentro do caixote do lixo.

— Mas o que está fazendo, afinal de contas?

— Frittata com batata e cebola e spaghetti alla carbonara di Zuccine.

Voltou a atenção para um trio de panelas e frigideiras a salpicar para fora e a borbulhar na fornalha velha. Abençoada com um sentido nato e bem veneziano de estética, trazia uma qualidade artística a tudo o que fazia, em especial à comida. As refeições dela, tal como as camas, pareciam perfeitas demais para serem perturbadas. Gabriel interrogava-se várias vezes sobre o que a teria podido levar a sentir-se atraída por uma relíquia marcada e quebrada como ele. Talvez ela o visse como uma sala decrépita precisando ser redecorada.

— Anna podia ter deixado alguma coisa para comermos sem ser ovos e queijo.

— Acha que ela está tentando matar você entupindo suas artérias com colesterol?

— Não me surpreenderia nada. Ela me detesta.

— Tente ser simpático com ela.

Um fio de cabelo isolado tinha conseguido escapar ao constrangimento imposto pelo travessão de Chiara e caíra sobre seu rosto. Ela puxou-o para trás da orelha e lançou um sorriso diabólico a Gabriel.

— Parece que você precisa fazer fazer uma escolha — afirmou. — Uma escolha em relação ao futuro. Uma escolha em relação à vida.

— Eu não sou bom em tomar decisões em relação à vida.

— Sim, já reparei nisso. Lembro-me de uma certa tarde em Jerusalém, não há muito tempo. Tinha-me cansado de esperar que te decidisses a casar comigo e, por isso, tinha ganho finalmente coragem para te deixar. Quando me enfiei naquele carro, à porta do nosso apartamento, estive sempre à espera que viesses a correr atrás de mim e me implorasses para ficar. Mas não o fizeste. Provavelmente, estavas aliviado por ser eu a partir. Assim, era mais fácil. Fui um parvo, Chiara, mas isso já lá vai há muito tempo. Ela espetou um garfo numa batata, tirou-a para fora da frigideira, provou-a e a seguir acrescentou um pouquinho mais de sal. Eu sabia que era a Leah, claro. Ainda estavas casado com ela. Parou por um instante e depois acrescentou em voz baixa: — E ainda estavas apaixonado por ela.

— O que tudo isso tem a ver com a situação presente? És um homem que leva os seus votos a sério, Gabriel. Fizeste uma promessa solene à Leah e não a conseguiste quebrar, apesar de ela já não viver no presente. Também fizeste um juramento perante o Escritório e parece que também não consegues quebrar esse.

— Eu dei a eles mais da metade da minha vida.

— Então, o que vai fazer? Dar o resto dela? Quer acabar como Shamron? Tem oitenta anos e não consegue dormir porque está preocupado com a segurança do Estado. Fica sentado no terraço à noite, no mar da Galileia, olhando fixamente para leste, vigiando os inimigos.

— Não haveria um estado de Israel se não fosse por homens como Shamron. Ele estava lá no momento da criação. E não quer ver o trabalho de sua vida destruído.

— Há muitos homens e mulheres qualificados que podem cuidar da segurança de Israel.

— Experimente dizer isso a Shamron.

— Vai por mim, Gabriel. Já experimentei.

— Então, o que está sugerindo?

— Deixe-os, desta vez para sempre. Restaure quadros. Viva sua vida.

— Onde?

Ela levantou os braços para indicar que o espaço à volta serviria mais do que perfeitamente.

— Isto é só um acordo temporário. Mais cedo ou mais tarde, o conde vai querer sua villa de volta.

— Encontraremos uma nova. Ou então mudamos para Roma para você ficar mais perto do Vaticano. Os italianos deixarão você morar onde quiser, desde que não abuse desse passaporte e da nova identidade que ofereceram com tanta generosidade por ter salvado a vida ao Papa.

— Uzi diz que eu nunca terei coragem de me afastar para sempre. Diz que o Escritório é minha única família.

— Forme uma nova família, Gabriel. — Chiara fez uma pausa. — Comigo.

Provou o ucchini e apagou o fogo. Ao virar-se, viu Gabriel olhando atentamente para ela, com a mão encostada ao queixo pensativamente.

— Por que está me olhando dessa maneira?

— De que maneira, Chiara?

— Como se eu fosse um dos teus quadros.

— Estou só pensando com meus botões por que você deixou aquele livro de puericultura no quarto, num lugar onde sabia que eu veria. E por que não deu um só gole no vinho que eu servi.

— Dei.

— Não deu, Chiara. Estou observando.

— Simplesmente não viu.

— Então dê um agora.

— Gabriel! O que te deu?

Levantou o copo e bebeu um gole. — Está satisfeito?

Não estava.

— Você está grávida, Chiara?

— Não, Gabriel, não estou grávida. Mas gostaria de ficar em futuro próximo.

Pegou a mão dele.

— Eu sei que tem medo pelo que aconteceu a Dani. Mas a melhor forma de honrar a memória dele é ter outra criança. Somos judeus, Gabriel. É isso que fazemos. Choramos os mortos e os guardamos no coração. Mas vivemos as nossas vidas.

— Com nomes que não são os nossos e perseguidos por homens que querem nos matar.

Chiara soltou um suspiro de exasperação e quebrou mais um ovo na borda da tigela. Desta vez, a casca desfez-se em pedaços na mão dela.

— Veja só o que me fez.

Limpou os restos do ovo com papel de cozinha. — Tem três dias até Uzi voltar. O que vai fazer?

— Preciso ir a Londres descobrir o que aconteceu realmente com Grigori Bulganov.

— Grigori não é problema seu. Deixa os ingleses tratarem disso.

— Os ingleses têm problemas mais importantes do que um desertor desaparecido. Varreram Grigori para baixo do tapete. Já passaram para outra.

— E tu também devias fazê-lo. Acrescentou um último ovo e começou a batê-los. Os russos têm memória de elefante, Gabriel... quase tanto como os árabes. Ivan perdeu tudo depois de a Elena desertar: as casas que tinha na Inglaterra e na França e todas aquelas contas bancárias em Londres e Zurique, cheias do seu dinheiro sujo. É alvo de um mandado de captura internacional por parte da Interpol e não pode pôr um pé fora da Rússia. Não lhe resta mais nada a não ser planejar a tua morte. Se fores para Londres e começares a escarafunchar por lá, há grandes hipóteses de ele vir a saber disso.

— Por isso, vou fazê-lo discretamente e, a seguir, volto para casa.

E depois poderemos continuar com a nossa vida.

O braço de Chiara parou de repente.

— Tu ganhas a vida a mentir, Gabriel. Espero que não estejas a mentir-me neste momento.

— Eu nunca te menti, Chiara. E nunca o farei.

— E o que vais fazer em relação aos guarda-costas?

— Ficam aqui com você.

— O Uzi não vai ficar contente.

Gabriel levantou o vinho para a luz.

— O Uzi nunca está contente.

CAPÍTULO 9

VILLA DEL FIORI LONDRES

O Escritório tinha um lema: “Por via do logro, farás a guerra.” Normalmente, o logro era infligido aos inimigos de Israel. De vez em quando, também era necessário enganar quem se encontrava do mesmo lado. Gabriel teve pena deles; eram bons rapazes, com um futuro risonho. Apenas lhes tinha calhado a missão errada na hora errada.

Chamavam-se Lior e Motti Lior era o mais velho e o mais experiente dos dois, enquanto Motti era um jovem estagiário que saíra da Academia há pouco mais de um ano. Ambos os rapazes tinham estudado as façanhas da lenda em causa e agarrado imediatamente a oportunidade de o escoltar de volta a Israel em segurança. Ao contrário de Uzi Navot, olhavam para os três dias de trabalho extra na linda villa na Úmbria como um golpe de sorte. E quando Chiara lhes pediu para não fazerem grande alarido, para que Gabriel pudesse terminar o quadro antes de regressar a casa, concordaram sem protestar. Sentiam-se simplesmente honrados por estar na presença dele. Iriam manter uma distância respeitável.

Passaram essa noite no pequeno chalé, cheio de correntes de ar, destinado às visitas, a dormirem por turnos e a vigiarem com grande atenção a janela do estúdio de Gabriel, que brilhava com uma luz branca intensa. E, se se pusessem à escuta, igualmente com grande atenção, conseguiam distinguir o som tênue de música primeiro a Tosca, depois a Madame Butterfly, e, por fim, numa altura em que os raios da aurora irrompiam pela herdade, La Bohème. Quando os primeiros sinais de vida começaram a fazer-se sentir na villa por volta das oito da manhã, dirigiram-se os dois à cozinha e depararam com três mulheres Chiara, Anna e Margherita a tomarem o pequeno-almoço em conjunto, na área isolada. A porta que dava para a sala de estar estava fechada à chave e havia dois sabujos vigilantes enroscados no chão, à frente dela. Aceitando uma xícara de café a escaldar, Lior perguntou se não seria possível dar uma espreitadela e ver como ele estava. “Não o recomendaria”, respondeu Chiara, em voz baixa. “Ele costuma ficar um pouquinho para o rabugento quando o prazo de entrega começa a aproximar-se.” Lior, filho de um escritor, compreendeu completamente.

Os guarda-costas passaram o resto desse dia a tentarem manter-se ocupados. Saíram numa ou outra missão de reconhecimento e juntaram-se aos empregados da villa para um almoço agradável, mas durante grande parte do tempo estiveram presos ao seu pequeno bunker de estuque. De tantas em tantas horas, espetavam a cabeça para dentro da parte principal da villa para ver se conseguiam ter nem que fosse um só vislumbre da lenda. Em vez disso, viam apenas portas fechadas, vigiadas pelos sabujos. “Ele está a trabalhar a um ritmo frenético”, explicou Chiara no final dessa tarde, quando Lior voltou a reunir a coragem necessária para solicitar autorização para entrar no estúdio. “Não há maneira de prever o que pode acontecer se o perturbar. Confie em mim, não é aconselhável a quem tenha um espírito mais impressionável.” Por isso, regressaram ao seu posto, como bons soldados, e ficaram sentados na varandinha lá fora, à medida que a noite começava a cair. Desmoralizados, puseram-se a olhar fixamente para a luz branca e a ouvir o som tênue da música. E ficaram à espera que a lenda emergisse da caverna. Às seis horas, não tendo visto qualquer sinal dele desde a noite anterior, chegaram à conclusão de que tinham sido enganados, mas não se atreveram a entrar no estúdio para confirmar as suas suspeitas. Em vez disso, passaram vários minutos a discutir sobre quem devia comunicar a notícia a Uzi Navot. Por fim, foi Lior, o mais velho e o mais experiente dos dois, quem fez o telefonema. Era um bom rapaz, com um futuro risonho.

Apenas lhe tinha calhado a missão errada na hora errada.

Havia lugares bem piores do que Bristol Mews para um desertor, impedido de se deslocar, passar os seus últimos dias. Chegava-se lá por um caminho à saída de Bristol Gardens, sendo que de um lado havia um ginásio onde se davam aulas de Pilates que prometiam fortalecer e trazer maiores capacidades aos seus clientes, e, do outro, um restaurantezinho desconsolado chamado D Place. O pátio era comprido e retangular, pavimentado com pedras arredondadas cinzentas e adornado com tijoleira. O pináculo da St. Saviour Church espreitava a norte, e as janelas de uma casa grande com dois andares, a leste. A porta da pequena casinha no número 8, tal como a sua vizinha no número 7, estava pintada num tom alegre de amarelo-vivo.

Os cortinados estavam corridos na janela do rés-do-chão.

Mesmo assim, Gabriel conseguia ver uma luz a brilhar lá dentro. Tinha chegado a Londres a meio da tarde, depois de viajar diretamente de Roma para a capital britânica, servindo-se de um passaporte italiano falso e de um bilhete que lhe fora comprado por um amigo que tinha no Vaticano. Depois de efetuar um controle de rotina para detetar se estaria ou não sob vigilância, tinha entrado numa cabina telefônica perto de Oxford Circus e marcado um número que memorizara, e que tocou no interior de Thames House, o quartel-general do MI5. De acordo com as instruções, voltara a telefonar trinta minutos mais tarde e tinham-lhe dado uma morada, nº 8, Bristol Mews, e também uma hora: 19h. Neste momento, as 19h30 estavam a aproximar-se. O seu atraso era intencional. Gabriel Allon nunca chegava a lado nenhum às horas previstas. Gabriel estendeu o braço para tocar à campainha, mas, antes que conseguisse fazê-lo, a porta abriu-se sozinha. Parado no hall de entrada, estava Graham Seymour, o diretor-adjunto do MI5. Usava um fato cinzento-carvão que lhe assentava de forma perfeita e uma gravata cor de vinho. Tinha um rosto distinto e equilibrado e o cabelo possuía um tom prateado que lhe dava o ar de um daqueles modelos que se veem nos anúncios a bugigangas dispendiosas mas desnecessárias do gênero daqueles que usam relógios caros, escrevem com canetas de tinta permanente caras e passam os Verões a velejar pelas ilhas gregas a bordo de um iate feito por encomenda e cheio de mulheres mais novas. Tudo em Seymour denotava confiança e compostura. Até o seu aperto de mão era uma arma concebida para demonstrar a quem o recebia que tinha encontrado um adversário à altura ou superior, revelando que Seymour frequentara as melhores escolas, pertencia aos melhores clubes e era ainda um opositor temível num campo de tênis; revelando que não devia ser encarado com leviandade. E tinha o benefício extra de ser verdade. Tudo, menos o tênis. Nos últimos anos, uma lesão nas costas diminuíra-lhe as capacidades. Embora ainda continuasse a ser bastante bom, Seymour tinha decidido que não era suficientemente bom e pusera de lado a raquete. Além disso, as exigências do seu emprego eram de tal forma, que lhe sobrava pouco tempo para o lazer. Graham Seymour tinha a tarefa nada invejável de manter o Reino Unido seguro num mundo perigoso. Não era um trabalho por que Gabriel ansiasse. Os tempos do Império Britânico podiam já ter passado há muito, mas os revolucionários, exilados e proscritos do mundo pareciam encontrar à mesma o caminho para Londres.

— Estás atrasado lançou Seymour.

— O trânsito estava horrível.

— Não me digas.

Seymour trancou novamente a porta e levou Gabriel até a cozinha. Pequena, mas renovada recentemente, exibia eletrodomésticos alemães e bancadas em mármore italiano a reluzirem, tudo novinho em folha. Gabriel já tinha visto várias assim nas revistas de design de interiores que Chiara andava sempre a ler.

— Que encantador disse, olhando à sua volta teatralmente. Faz com que uma pessoa se pergunte porque terá Grigori querido abandonar tudo isto para voltar para Moscou, uma cidade tão triste.

Gabriel abriu o frigorífico e olhou lá para dentro. O que encontrou deixava poucas dúvidas de que o dono era um homem de meia-idade que não recebia visitas muitas vezes, especialmente mulheres. Numa prateleira, havia uma lata de arenque salgado e um frasco aberto de molho de tomate; noutra, um pedaço de patê e uma fatia de queijo camembert muito curado. O congelador tinha apenas vodca. Gabriel fechou a porta e olhou para Seymour, que espreitava para dentro do cesto do filtro da cafeteira, franzindo o nariz com repugnância.

Acho que devíamos mesmo chamar cá alguém para limpar este lugar.

Despejou o filtro do café no caixote do lixo e apontou com a mão para a pequena mesa, parecida com a de um café. Gostava de te mostrar uma coisa. Deve pôr fim a quaisquer dúvidas que tenhas em relação a Grigori e a quem ele deve lealdade. A mesa estava vazia, com a exceção de uma pasta de diplomata com fechaduras de segredo. Seymour rodou os ferrolhos com os polegares e, com um estalido repentino, fez com que se abrissem em simultâneo. Tirou cá para fora duas coisas: um leitor de DVD portátil fabricado no Japão e um único disco, protegido por um invólucro de plástico transparente. Ligou o aparelho e inseriu o disco. Quinze segundos depois, surgiu uma imagem na tela: Grigori Bulganov, a abrigar-se de uma chuva ligeira, à entrada de Bristol Mews. No canto inferior esquerdo da imagem, estava a indicação da localização da câmara que a tinha captado: BRISTOL GARDENS. No canto superior direito, via-se a data, dia 10 de Janeiro, e por baixo dela a hora: 17h47m39s, e a contagem prosseguia. Agora, Grigori acendia um cigarro, com a mão esquerda em forma de concha para não deixar apagar a chama. Voltando a enfiar o isqueiro no bolso, inspecionou a rua em ambos os sentidos. Aparentemente convencido de que não havia perigo, deitou o cigarro ao chão e começou a andar. Com as câmaras a seguirem-lhe cada passo, foi até o fim da Formosa Street e atravessou o Grand Union Canal por uma ponte de metal para peões, revestida de ambos os lados por candeeiros brancos esféricos. Quatro jovens com camisolas com capuz vagueavam pela escuridão, na margem contrária; passou por eles discretamente, sem lhes lançar um único olhar, e atravessou o conjunto de habitações sociais sombrias que preenchia o Delamere Terrace. Passavam poucos segundos das seis quando desceu umas escadas de pedra até a doca conhecida como Browning’s Pool. Aí, entrou no Waterside Café, voltando a sair precisamente dois minutos e quinze segundos depois, com um copo de papel, tapado por uma tampa de plástico, na mão. Deixou-se ficar à porta do café durante pouco mais de um minuto e, a seguir, deitou o copo num caixote do lixo e avançou pelo cais até chegar a mais umas escadas, estas em direção a Warwick Crescent. Parou por breves instantes na rua silenciosa para acender outro cigarro e fumou-o durante a caminhada até a Harrow Road Bridge. Andando agora a um ritmo visivelmente mais rápido, seguiu pela Harrow Road, onde, às 18h12m32s em ponto, parou subitamente e se encaminhou para o trânsito. De imediato, uma limusine Mercedes preta encostou ao passeio e uma porta abriu-se rapidamente. Grigori entrou para a parte de trás e o carro avançou aos solavancos até desaparecer da imagem. Cinco segundos mais tarde, um homem passou à frente da câmara, batendo com a ponta do chapéu-de-chuva no passeio enquanto caminhava. A seguir, em sentido contrário, apareceu uma mulher nova. Vestia um sobretudo de couro, não trazia chapéu-de-chuva e não tinha nada na cabeça para a proteger da chuva.


CAPÍTULO 10

MAIDA VALE, LONDRES

 

 

A imagem dissipou-se numa tempestade de estática, cinzenta e branca. Graham Seymour carregou no botão de STOP.

— Como pode ver, Grigori entrou de livre vontade naquele carro. Sem hesitação. Sem nenhum sinal de aflição ou medo. Ele é um profissional, Graham. Foi treinado para nunca mostrar medo, nem que estivesse quase a morrer de susto. Ele era sem dúvida um profissional. Enganou a todos. Até conseguiu enganar você, Gabriel. E, pelo que ouço dizer, você tem um olho para falsificações.

Gabriel recusou-se a responder à provocação.

— Conseguiram seguir os movimentos do carro com a CCTV? Virou à esquerda para a Edgware Road e, a seguir, cortou à direita na St. John’s Wood Road. Acabou por entrar num estacionamento subterrâneo em Primrose Hill, onde permaneceu durante cinquenta e sete minutos. Quando voltou a sair, a parte de trás parecia já não levar ninguém. E não havia câmaras no parque? Seymour abanou a cabeça.

— Saiu mais algum carro antes do Mercedes?

— Quatro carros grandes e uma única van Ford Transit. Estava tudo bem com os carros. Quanto à van, tinha o logotipo de um serviço de limpeza de carpetes de Battersea. Mas o proprietário disse que nessa tarde não teve nenhum serviço marcado para aquela zona. E, além disso, a matrícula não correspondia a nenhum dos veículos alugados em nome da firma— Então, Grigori saiu do parque na parte de trás da Ford? É com essa suposição que estamos a trabalhar. Depois de sair do parque, a van seguiu para nordeste, em direção a Brentwood, um subúrbio logo à saída da M25. E foi nessa altura que passou a estar fora do alcance da CCTV e desapareceu de vista. Então e o Mercedes?

— Sudeste. Perdemos de vista perto de Shooter’s Hill. No dia seguinte, foi descoberto um carro completamente queimado no estuário do Tâmisa, a leste de Gravesend. Quem quer que tenha posto fogo não se deu ao trabalho de retirar os números de série. Correspondiam aos números de um carro comprado há duas semanas por alguém com um nome russo e endereço pouco preciso. Inútil dizer que todas as tentativas de localizar essa pessoa se revelaram infrutíferas.

— A porta desse carro foi claramente aberta por dentro. E pareceu que havia pelo menos uma pessoa na parte de trás.

— Na verdade, havia duas.

Seymour exibiu uma foto 20x25 com o carro em primeiro plano. Apesar do grão da imagem e das sombras fortemente carregadas, mostrava duas figuras no banco de trás. Gabriel ficou especialmente intrigado com a que se encontrava mais perto da janela do lado do motorista. Era uma mulher.

— Suponho que não terá conseguido uma foto antes de entrarem no carro, não?

— Infelizmente, não. Os russos serviram-se deliberadamente de um hiato nas câmeras a poucos quilômetros do Aeroporto de Heathrow. Nunca vimos ninguém entrar nem sair. Parecem ter-se sumido sem deixar rastro, tal e qual como Grigori. Gabriel ficou a olhar com atenção para a imagem durante mais um momento.

Parece ser muita preparação para uma coisa que podia ter sido tratada de uma forma muito mais simples. Se Grigori estava a planejar voltar a desertar, porque não lhe deram um passaporte, passagem de avião e mudança de visual? Podia ter saído de Londres de manhã e chegado em casa a tempo do seu borscht e da galinha à Kiev.

Seymour já tinha uma resposta preparada.

— Os russos partiriam sempre do princípio de que nós mantínhamos Grigori debaixo de vigilância. Do ponto de vista deles, tinham de criar um cenário que parecesse completamente inocente aos olhos das câmaras da CCTV. Levantou a mão comprida e pálida na direção da tela, agora em branco. Tu próprio viste isso, Gabriel. Ele estava claramente a ver se havia vigias. Quando teve certeza de que não o estávamos a seguir, enviou algum tipo de sinal. E a seguir os seus velhos camaradas recolheram-no.

— As Regras de Moscou?

— Exatamente.

— Presumo que tenham examinado o percurso de Grigori, à procura de marcas de giz, de marcas de fita adesiva ou de outros sinais de comunicação impessoal.

— Examinamos.

— E?

— Nada. Mas, como profissional de campo, você sabe que há variadas maneiras de enviar um sinal. Com chapéu, sem chapéu. Com cigarro, sem cigarro. Relógio no pulso esquerdo, no direito.

— Grigori era destro. E usava relógio, como sempre, no pulso esquerdo. Além disso, era um relógio diferente do que ele tinha na Rússia no outono passado.

— Você tem mesmo um olho apurado.

— Tenho sim. E, quando olho para essas imagens da CCTV, vejo uma coisa diferente. Vejo um homem assustado com alguma coisa e se esforçando muito para não mostrar. Alguma coisa fez com que Grigori parasse abruptamente. E alguma coisa o fez entrar naquele carro. Não foi uma nova deserção, Graham. Foi um sequestro. Os russos roubaram Grigori bem debaixo do seu nariz.

— Thames House não vê a coisa assim. Nem nossos colegas do outro lado do rio. Quanto a Downing Street e ao Foreign Office, estão inclinados a aceitar nossas conclusões. O primeiro-ministro não tem vontade nenhuma de entrar em outro confronto de alto risco com os russos. Não depois do caso Litvinenko. E não com uma cúpula do G-8 virando a esquina.

Confrontados com o colapso financeiro global, os líderes do Grupo dos Oito, as nações mais industrializadas do mundo, tinham acabado de concordar em conversações de emergência em fevereiro para coordenar políticas fiscais e de estímulo monetário. Para grande consternação dos muitos burocratas e jornalistas que também estariam presentes, a cúpula seria em Moscou. Mas Gabriel não estava preocupado com a iminente cúpula do G-8. Pensava em Alexander Litvinenko, o antigo agente do FSB envenenado com uma dose de polônio-210 altamente radioativo.

— Seu comportamento depois do assassinato de Litvinenko provavelmente convenceu os russos de que podiam fazer qualquer coisa e se safar sem problemas. Afinal, os russos praticaram o equivalente a um ato de terrorismo nuclear no coração de Londres e vocês responderam com uma reprimenda diplomática.

Seymour encostou um dedo na boca, pensativamente. — Isso é uma teoria interessante. Mas lamento dizer que a nossa resposta ao assassinato do Litvinenko, por mais débil que possa ter sido em sua opinião, não teve qualquer relevância no caso de Grigori.

Gabriel sabia que era inútil insistir nesse ponto. Graham Seymour era um colega de confiança e um aliado ocasional, mas a sua lealdade ao país viria sempre em primeiro lugar. E o mesmo se aplicava a Gabriel.

— Eram essas as regras do jogo.

— Será preciso lembrar que Grigori ajudou vocês e os americanos a descobrir os mísseis de Ivan? Se não fosse ele, vários aviões comerciais poderiam ter explodido em pleno ar num único dia.

— Por acaso, toda a informação de que precisávamos fazia parte dos registros que você e Elena roubaram do escritório de Ivan. Na verdade, o primeiro-ministro teve de ser convencido a conceder asilo e um passaporte britânico a Grigori. Londres já abriga vários dissidentes russos proeminentes, incluindo um punhado de multimilionários que entraram em rota de colisão com o regime. Ele estava relutante em espetar mais um dedo no olho de Moscou.

— Então, o que o levou a mudar de ideia?

— Nós dissemos que era o mais indicado a fazer. Afinal, os americanos tinham concordado em receber Elena e os filhos dela. Sentimos que tínhamos de fazer nossa parte. Grigori prometeu que seria um bom menino e não chamaria atenção. E foi o que fez.

Seymour calou-se por um instante e depois acrescentou: — Durante um tempo.

— Até se transformar num desertor e dissidente feito celebridade.

Seymour acenou com a cabeça, em sinal de concordância. Deviam tê-lo fechado numa casinha no campo e deitado a chave fora.

— Grigori insistiu em vir para Londres. Os russos adoram Londres.

— Então, isto até acabou por resultar bastante bem para vocês. Nunca quiseram Grigori, e agora os russos tiveram a gentileza de o tirarem das suas mãos.

— Nós não vemos a coisa assim.

— Então, como a veem? Seymour fez questão de mostrar que estava a ponderar muito bem a questão.

— Como seria de esperar, as motivações de Grigori são agora alvo de um debate bastante intenso. E, como também seria de esperar, as opiniões dividem-se. Há quem acredite que ele já vinha podre desde o início. E há outros que acham que ele simplesmente mudou de opinião. Mudou de opinião? — Um tanto como aconteceu com aquele tipo, o Yurchenko, que se passou para o lado dos americanos nos anos oitenta. Lembras-te do Vitaly Yurchenko? Poucos meses depois de ter desertado, estava a jantar num restaurantezinho francês horrível em Georgetown quando disse ao agente da CIA responsável por ele que ia dar uma volta. Nunca mais voltou.

— Grigori com saudades de casa? Gabriel abanou a cabeça. Ele mal podia esperar para se pôr a mexer da Rússia. Nunca na vida iria regressar de livre e espontânea vontade. As próprias palavras dele sugerem o contrário. Seymour tirou um envelope castanho-amarelado, sem nada escrito, da mala de diplomata e segurou-o entre dois dedos. És capaz de querer ouvir isto antes de jurares fidelidade eterna a um homem como Grigori. Ele não é bem do tipo casadouro.

CAPÍTULO 11

MAIDA VALE, LONDRES

 

 

A carta tinha a data de 12 de janeiro e estava endereçada ao nome falso do agente do MI5 responsável por Grigori. O texto era curto, com cinco frases, e estava escrito em inglês, que Grigori falava bastante bem suficientemente bem, recordou Gabriel, para ter. conduzido um interrogatório bastante aterrorizador nas caves de Lubyanka. Graham Seymour leu a carta em voz alta. E depois entregou-a a Gabriel, que a leu em silêncio.

 

Peço desculpas por não te ter informado dos meus planos de voltar para casa, Monty, mas tenho certeza de que consegue compreender por que não os revelei. Espero que as minhas ações não deixem uma mancha permanente em seu registro. Você é decente demais para um mundo como este. Gostei muito do tempo que passamos juntos, especialmente o xadrez. Quase tornou Londres suportável.

Cumprimentos, G

 

— Foi enviada de Zurique para uma caixa postal do MI5 em Camden Town. Este endereço só era conhecido por um punhado de superiores, pelo agente responsável por Grigori e por ele próprio. Quer que continue?

— Por favor.

— Os nossos especialistas ligaram o papel A4 da carta a uma empresa alemã de papelaria, localizada em Hamburgo. Por estranho que pareça, o envelope foi produzido pela mesma empresa, mas apresentava um estilo ligeiramente diferente. Os nossos especialistas também atribuíram, e de modo conclusivo, a letra, juntamente com várias impressões digitais latentes encontradas na superfície do papel, a Grigori Bulganov.

— A letra pode ser falsificada, Graham. Como os quadros.

— E as impressões digitais?

Gabriel pegou a mão de Seymour pelo pulso e a pôs no papel.

— Estamos falando de russos, Graham. Não jogam pelas regras do marquês de Queensberry.

Seymour libertou a mão de Gabriel.

— A carta torna evidente que Grigori estava a colaborar. Vinha dirigida ao agente responsável por ele, com o seu nome de disfarce correto, e foi enviada para a morada certa.

— Talvez o tenham torturado. Ou talvez a tortura não tenha sido necessária, porque Grigori sabia muito bem o que lhe aconteceria se não colaborasse. Ele foi um deles, Graham. Conhecia os seus métodos. Utilizava-os de tempos a tempos. E eu bem o sei. Vi-o no seu elemento.

— Se Grigori foi raptado, para que fazer uma charada com a carta?

— Os russos cometeram um crime grave no seu país. É mais do que natural que pudessem tentar esconder o que fizeram com uma brincadeira destas. Nada de sequestro, nada de crime. Seymour olhou atentamente para Gabriel com os seus olhos cor de granito. Tal como o seu aperto de mão, eram uma arma injusta. Dois homens estão a olhar para uma pintura abstrata. Um vê nuvens sobre um campo de trigo, o outro vê um par de baleias azuis acasalando. Quem tem razão? Será que importa? Estás a ver onde quero chegar, Gabriel?

— Estou a tentar ao máximo, Graham.

— Seu desertor desapareceu. E nada que possamos dizer agora irá alterar isso.

— O meu desertor? Você o trouxe para cá.

— E vocês aceitaram protegê-lo. Downing Street devia ter apresentado um protesto oficial junto do embaixador russo uma hora depois de Grigori ter faltado ao primeiro telefonema de controle a que estava obrigado.

— Um protesto oficial?

Seymour abanou a cabeça lentamente. De repente, não estás ciente do fato de que o Reino Unido tem mais dinheiro investido na Rússia do que em qualquer outro país ocidental. O primeiro-ministro não tem qualquer intenção de colocar esses investimentos sob risco dando início a uma nova discussão acalorada com o Kremlin.

— “Quando enforcarmos os capitalistas, eles nos venderão a corda.”

— Stalin, não é? E o velho tinha uma certa razão. O capitalismo é o ponto mais forte do Ocidente e a sua maior fraqueza.

Gabriel pôs a carta em cima da mesa e mudou de assunto.

— Se bem me lembro, Grigori trabalhava num livro.

Seymour entregou a Gabriel uma pilha de folhas. Tinha aproximadamente dois centímetros e meio de espessura e estava presa por molas metálicas. Gabriel olhou para a primeira página: ASSASSINO NO KREMLIN, de Grigori Bulganov.

— Achei que era um título que ficava, e de que maneira, no ouvido. Duvido que os russos concordassem. Presumo que o tenha lido?

Seymour assentiu.

— Ele é bem duro com o Kremlin e não é lá muito simpático com seu antigo serviço. Acusa o FSB de todo o tipo de pecado, incluindo assassinatos, extorsões e ligações com o crime organizado e os oligarcas. E também argumenta de forma muito persuasiva que o FSB esteve envolvido nos atentados a prédios em Moscou, aqueles que o presidente russo usou como justificativa para reenviar o Exército Vermelho à Chechênia. Afirma que conhecia pessoalmente os agentes envolvidos na operação e identifica os nomes de dois.

— Há alguma referência a mim?

— Há um capítulo no livro sobre o caso Kharkov, mas não é lá muito preciso. Segundo Grigori, foi ele que descobriu sozinho os mísseis que Ivan vendeu à Al-Qaeda. Não há nenhuma referência no manuscrito a você nem a alguma ligação israelense.

— E notas à mão ou os arquivos de computador?

— Verificamos tudo. Para Grigori, você não existe.

Gabriel folheou as páginas do manuscrito. Na sexta página, havia uma nota à margem, em inglês. Leu-a e olhou para Seymour, à espera de uma explicação.

— É da editora que Grigori tinha na Buckley and Hobbes. Suponho que, a certa altura, teremos de contar que não receberão nenhum livro nos próximos tempos.

— Vocês leram as notas dela?

— Lemos tudo.

Gabriel virou mais umas páginas e depois parou outra vez para examinar outra nota à margem. Ao contrário da primeira, estava escrita em russo.

— Deve ser do Grigori — sugeriu Seymour.

— Não corresponde à letra da carta.

— A carta foi escrita no alfabeto romano. A nota está em cirílico.

— Confie em mim, Graham. Não foram escritas pela mesma pessoa.

Gabriel folheou rapidamente as páginas que faltavam e encontrou outras anotações escritas pela mesma mão. Quando levantou os olhos do manuscrito, Seymour tirava o DVD do leitor. Colocou-o novamente no invólucro de plástico transparente e entregou-o a Gabriel. A mensagem era clara: a sessão de informações tinha terminado. E se dúvidas houvesse sobre as intenções de Seymour, elas se eclipsaram quando ele se pôs a olhar entediado para o relógio de pulso. Gabriel fez um último pedido. Queria ver o resto da casa. Seymour levantou-se lentamente.

— Mas não vamos levantar tábuas do assoalho ou descascar o papel de parede — afirmou. — Tenho um jantar. E já estou dez minutos atrasado.

CAPÍTULO 12

MAIDA VALE, LONDRES

 

Gabriel seguiu Seymour por dois lances de escadas estreitas até o quarto. Na mesinha-de-cabeceira à direita da cama de casal, havia um cinzeiro cheio de cigarros calcados. Eram todos da mesma marca: Sobranie White Russians, iguais aos que Grigori tinha fumado durante o interrogatório a Gabriel em Lubyanka e durante a fuga de ambos da Rússia. Havia vários livros amontoados debaixo do candeeiro de leitura, em latão: Tolstoi, Dostoievski, Agatha Christie, P. D. James.

— Ele adorava ler thrillers policiais ingleses — revelou Seymour. — Achava que ler P. D. James o ajudaria a ficar mais parecido conosco, embora por que uma pessoa haveria de querer ficar mais parecida conosco é algo que me ultrapassa.

Embaixo da cama havia uma caixa branca com logotipo de uma lavanderia da Elgin Avenue. Levantando a tampa, Gabriel viu meia dúzia de camisas, cuidadosamente engomadas, dobradas e embrulhadas em papel de seda. Em cima das camisas, um recibo de venda em dinheiro. A data do recibo correspondia à data do desaparecimento de Grigori. A hora da transação era registrada às 15h42.

— Partimos do princípio de que os controladores de Grigori queriam que o último dia dele em Londres fosse tão normal quanto possível — disse Seymour.

Gabriel achou que a explicação era, na melhor das hipóteses, duvidosa. Entrou no banheiro e abriu o armário de medicamentos. Espalhados entre várias loções, cremes e instrumentos para cuidar da aparência, estavam três frascos de remédios com receita médica: um para dormir, outro para ansiedade e um terceiro para enxaquecas.

— Quem receitou isso?

— Um médico que trabalha para nós.

— Grigori nunca me pareceu uma pessoa ansiosa.

— Ele disse que era a pressão de escrever um livro com um prazo.

Gabriel tirou um frasco de um remédio para indigestão do armário e virou o rótulo para Seymour.

— Ele tinha estômago instável — explicou Seymour.

— Então, não deveria comer arenque salgado e molho de tomate.

Gabriel fechou o armário e levantou a tampa do cesto da roupa.

Estava vazio.

— Onde está a roupa suja?

— Deixou-a na lavanderia na tarde em que desapareceu. Exatamente o que eu faria se estivesse me preparando para voltar a desertar.

Gabriel apagou as luzes do banheiro e desceu atrás de Seymour as escadas até a sala de estar. Havia vários jornais espalhados em cima da mesa de café, alguns londrinos e o resto da Rússia: Kommersant, Komsomolskaya Pravda, Moskovskaya Gazeta. Num dos cantos da mesa, estava um copo para o chá de estilo russo, com seu conteúdo há muito evaporado. Ao lado do copo, via-se outro cinzeiro cheio de guimbas. Gabriel examinou-as com a ponta de uma caneta. Eram todas iguais: Sobranie White Russians. Foi então que ouviu o som de risos vindo do pátio. Afastando as persianas da janela da frente, viu embaixo um casal de braço dado.

— Presumo que tenham uma câmara instalada no pátio, não é verdade?

Seymour apontou para uma calha de águas pluviais próxima do caminho para a casa.

— Houve algum russo dando uma espiada?

— Ninguém que possamos ligar à Rezidentura local.

Rezidentura era a palavra utilizada pelo SVR, o serviço secreto externo russo, para descrever operações em embaixadas locais. O resident era o chefe da base e a residentura denominava a própria base. Era um resquício dos tempos do KGB. Tal como a maior parte das coisas relacionadas com o SVR.

— E o que acontece quando alguém entra no pátio?

— Se é alguém que mora aqui, não acontece nada. Se não reconhecemos a pessoa, pomos alguém a segui-la e investigamos. Até agora, todos limpos.

— E não houve ninguém a tentar entrar na casa propriamente dita? Seymour abanou a cabeça. Gabriel soltou as persianas e dirigiu-se à mesa atulhada de Grigori. No centro, estava um pequeno computador portátil com a tela preto e, ao lado deste, um telefone com um atendedor de chamadas incorporado. Uma luzinha vermelha de mensagens piscava tenuemente.

— Essas devem ser novas disse Seymour.

— Importas-te? Sem esperar por uma resposta, Gabriel esticou o braço e carregou no botão de PLAYBACK. Ouviu-se um tom estridente e, a seguir, uma voz de homem robótica anunciou que havia três mensagens novas. A primeira era do serviço de lavanderia e limpeza a seco Sparlde Clean, a pedir a Mr. Bulganov que fosse buscar a roupa que lhe pertencia; a segunda era de um dos produtores do programa Panorama, da BBC, que queria marcar uma entrevista a Mr. Bulganov para um documentário em preparação sobre o ressurgimento da Rússia.

A última mensagem era de uma mulher que falava com um sotaque russo pronunciado. A voz tinha a qualidade de uma escala musical menor. Dó menor, pensou Gabriel. Clave de concentração na solenidade. Clave de introspeção filosófica. A mulher disse que tinha acabado de ler as páginas mais recentes do manuscrito e que queria falar delas quando fosse conveniente para Grigori. Não deixou nenhum número para uma chamada de resposta, nem mencionou o seu nome. Para Gabriel, isso não era necessário. O som daquela voz andava a ecoar-lhe na memória desde o momento do primeiro encontro entre ambos. Muito prazer, dissera-lhe ela naquela noite em Moscou. Sou Olga Sukhova.

— Suponho que agora já sabemos quem escreveu aquelas notas no manuscrito de Grigori.

— Suponho que sim.

— Quero vê-la, Graham.

— Lamento, mas isso não vai ser possível. Seymour desligou o atendedor de chamadas. Roma já falou. O caso está encerrado.

CAPÍTULO 13

MAIDA VALE, LONDRES

Os quarteirões de projetos habitacionais que se erguiam sobre Delamere Terrace pareciam uma coisa que os soviéticos podiam ter construído nos tempos áureos do “socialismo desenvolvido”. Projetados de forma tosca e mal construídos, todos os prédios tinham nomes muito ingleses e sugeriam que no seu interior se desenrolava uma existência tranquila e campestre, apresentando ainda um letreiro a indicar que a área estava sob vigilância constante. Grigori tinha passado por essas habitações poucos minutos antes de desaparecer. Gabriel, recapitulando os passos do russo, fazia-o naquele momento. Ainda que detestasse admiti-lo, as informações fornecidas por Seymour tinham-lhe abalado a confiança absoluta na inocência de Grigori. Teria voltado a desertar? Ou fora raptado? Gabriel tinha certeza de que a resposta podia ser encontrada ali, nas ruas de Maida Vale.

Mostra-me como eles fizeram isso, Grigori. Mostra-me como eles te fizeram entrar naquele carro.

Foi até Browning’s Pool e parou à porta do Waterside Café, àquela hora já fechado e com as persianas corridas. Reviu o vídeo mentalmente. Às 18h03m37 em ponto, parecia que Grigori tinha reparado num casal a atravessar a Westbourne Terrace Road Bridge, vindo da Blomfield Road. O homem trazia um impermeável com cinto e um chapéu encerado, além de levar um guarda-chuva aberto na mão esquerda. A mulher ia encostada ao ombro dele de forma carinhosa. Trazia um casaco de lã com uma gola de pele e ia a ler qualquer coisa um mapa da cidade, pensou Gabriel, ou talvez algum tipo de guia.

Gabriel virou-se naquele momento, Grigori também e seguiu pela Browning’s Pool, em direção aos degraus que davam na Warwick Crescent. No fim dos degraus, parou, porque Grigori tinha parado, mas não acendeu nenhum cigarro. Em vez disso, avançou até Harrow Road, onde Grigori tinha visto alguma coisa ou alguém que o fizera apressar o ritmo. Gabriel fez o mesmo e continuou a andar pelas calçadas vazias por mais uns duzentos metros.

Apesar da hora, o trânsito na movimentada via de quatro faixas continuava terrível. Parou por breves instantes junto à St. Mary’s Church, deu mais uns passos e parou outra vez. Foi aqui, pensou. Tinha sido naquele lugar que Grigori se sentira muito assustado para continuar. O lugar onde tinha congelado abruptamente e se encaminhara impulsivamente na direção do trânsito. Na gravação, parecia que tinha ponderado, por curtos instantes, tentar atravessar a estrada movimentada. E nessa altura, tal como agora, isso teria significado quase Com certeza uma morte por outros meios.

Gabriel olhou para a esquerda e viu um muro de tijolos com dois metros de altura e coberto de graffiti. A seguir, olhou para a direita e viu o rio de aço e vidro fluindo pela Harrow Road. Por que teria ele parado ali? E por que teria ele entrado sem hesitar quando um carro apareceu sem que ninguém chamasse? Seria um plano de fuga previamente combinado? Ou uma cilada perfeitamente montada? Ajude-me, Grigori. Será que eles enviaram um antigo inimigo para te assustar e obrigar a voltar? Ou enviaram um amigo para te levar gentilmente pela mão?

Gabriel olhou fixamente para o clarão dos faróis que se aproximavam. E, por um instante, viu de relance uma figura pequena e bem vestida avançando em sua direção, batendo com o guarda-chuva na calçada. E viu a mulher. Uma mulher com casaco de couro sem guarda-chuva. Uma mulher sem nada na cabeça para protegê-la da chuva. Ia passar por ele agora, em grande velocidade, como se estivesse atrasada para um encontro, e seguiu em passo acelerado pela Harrow Road. Gabriel tentou lembrar-se de suas feições, mas não conseguiu. Eram fantasmagóricas e incompletas, como os primeiros e indistintos traços de um esboço inacabado. E, por isso, ficou ali parado, sozinho, com o trânsito de Londres na hora do rush a rugir em seus ouvidos, vendo-a desaparecer na escuridão.

CAPÍTULO 14

LONDRES OESTE

 

 

Tinham transcorrido mais de trinta e seis horas desde que Gabriel dormira pela última vez, e morria de cansaço. Em circunstâncias normais, teria procurado a base local e pedido para usar um apartamento seguro. Mas isso não era uma opção, já que os ativos da base local estavam provavelmente envolvidos numa busca frenética por ele naquele preciso momento. Teria de ficar num hotel. E não num bom hotel, com check-in computorizado a que se pudesse aceder por via de um software de extração de dados. Teria de ser o tipo de hotel onde se aceitasse dinheiro vivo e os empregados rissem de pedidos de luxos como serviço de quarto, telefones que funcionassem e toalhas lavadas. O Grand Hotel Berkshire era um lugar exatamente desse gênero. Ficava no fim de uma fila de casas de estilo eduardiano caindo aos pedaços na West Cromwell Road. O gerente do turno da noite, um homem decrépito com uma camisola decrépita, mostrou-se Pouco surpreendido quando Gabriel lhe revelou que não tinha reserva e ainda menos quando lhe anunciou que iria pagar a conta da sua estadia três noites, talvez duas, se o seu negócio corresse bem inteiramente em dinheiro vivo. A seguir, Gabriel entregou-lhe duas notas de vinte libras novinhas em folha e disse-lhe que não estava à espera de nenhum tipo de visitas, nem queria que o incomodassem com telefonemas nem com o serviço de limpeza dos quartos. O gerente do turno da noite enfiou o dinheiro no bolso e prometeu a Gabriel que a sua estadia seria não só confidencial, como segura. Gabriel deu-lhe as boas-noites e subiu sozinho para o quarto.

No terceiro andar e com vista para a rua movimentada, o quarto tresandava a solidão e à água-de-colônia horrenda do último inquilino. Ao fechar a porta depois de entrar, Gabriel sentiu-se dominado por uma onda súbita de depressão. Quantas noites teria ele passado em quartos exatamente como aquele? Talvez Chiara tivesse razão. Talvez fosse altura de abandonar finalmente o Escritório e deixar que fossem outros homens a combater. Iria para as colinas da Úmbria, dar à sua nova mulher o filho que ela tanto queria, o filho a que Gabriel se tinha negado por causa do que acontecera numa noite de neve em Viena, numa outra vida. Não tinha escolhido essa vida. Haviam sido outros a escolhê-la por ele. Tinha sido escolhida por Yasser Arafat e por um bando de terroristas palestinianos conhecido como Setembro Negro. E tinha sido escolhida por Ari Shamron.

Shamron fora buscá-lo numa tarde de sol em Jerusalém, em Setembro de 1972. Gabriel era um promissor jovem pintor que tinha renunciado a uma colocação numa unidade militar de elite, de forma a poder prosseguir a sua formação na Academia de Artes e Design de Bezalel. Tinham acabado de atribuir a Shamron o comando da Operação Ira de Deus, a operação confidencial executada pelo serviço secreto israelenses com o objetivo de perseguir e matar os perpetradores do massacre das Olimpíadas de Munique de 1972. Precisava de um instrumento de vingança e Gabriel era exatamente o tipo de jovem de que ele andava à procura: atrevido mas inteligente, leal mas independente, emocionalmente frio mas inerentemente decente. E também falava alemão fluentemente, com o sotaque de Berlim herdado da mãe, e viajara bastante pela Europa em criança. Após um mês de treino intenso, Shamron enviou-o para Roma, onde Gabriel matou um homem chamado Wadal Abdel Zwaiter no hall de um prédio de apartamentos na Piazza Annibaliano. Depois, ele e a sua equipe de agentes passaram os três anos seguintes a caçarem as suas presas por toda a Europa Ocidental, matando à noite e em plena luz do dia, vivendo com o medo de que, a qualquer momento, pudessem ser presos pela polícia europeia e acusados de homicídio.

Quando Gabriel regressou finalmente a casa, tinha as têmporas da cor da cinza e o rosto era o de um homem vinte anos mais velho. Leah, com quem casara pouco tempo antes de deixar Israel, mal o reconheceu quando ele entrou no apartamento de ambos. Ela própria uma artista talentosa, pediu-lhe que posasse para lhe pintar o retrato. Pintado no estilo de Egon Schiele, mostrava um jovem atormentado, prematuramente envelhecido pela sombra da morte. Era um dos melhores trabalhos de Leah. Gabriel sempre o detestara, pois representava com uma honestidade brutal o peso que a Ira de Deus tinha exercido sobre si.

Exausto fisicamente e tendo perdido a vontade de pintar, procurou refúgio em Veneza, onde estudou a arte do restauração com o famoso Umberto Conti. Quando a sua aprendizagem chegou ao fim, Shamron chamou-o de volta ao ativo. Trabalhando sob o disfarce de restaurador de arte profissional, Gabriel eliminou os inimigos mais perigosos de Israel e levou a cabo uma série de investigações que lhe granjeou amigos importantes em Washington, no Vaticano e em Londres. Mas também tinha adversários poderosos. Não conseguia andar por uma rua sem se sentir atormentado pelo medo de estar a ser perseguido por um dos seus inimigos. Tal como não conseguia dormir num quarto de hotel sem barricar primeiro a porta com uma cadeira, coisa que estava a fazer naquele preciso momento.

Introduziu o disco com a gravação captada pela CCTV no leitor de DVD do quarto e a seguir, depois de tirar apenas os sapatos, deitou-se na cama. Ao longo de várias horas, ficou a ver e a rever o vídeo das imagens de vigilância, tentando cruzar o que conseguia ver na tela com o que tinha sentido nas ruas de Maida Vale. Incapaz de encontrar uma ligação, desligou a televisão. À medida que os seus olhos se iam ajustando à escuridão, as imagens dos últimos momentos de Grigori surgiam-lhe como fotografias num retroprojetor. Grigori a entrar num carro na Harrow Road. Um homem bem vestido com guarda-chuva. Uma mulher com um sobretudo de couro, sem nada na cabeça para a proteger da chuva. A última imagem dissolveu-se e deu lugar a um quadro, escurecido por uma camada de verniz sujo. Gabriel fechou os olhos, molhou uma mecha de algodão num solvente e esfregou-a na superfície suavemente.

A resposta surgiu-lhe uma hora antes de amanhecer. Tateou na escuridão à procura do controle da televisão e apontou para a tela que, uns segundos depois, voltou à vida piscando. Eram 17h47 da terça-feira anterior. Grigori Bulganov estava à entrada de Bristol Mews. Às 17h48, atirou o cigarro para o chão e começou a andar.

Seguiu pelo agora familiar percurso até o Waterside Café. Às 18h03m37, o jovem casal apareceu precisamente à hora prevista, com um impermeável com cinto para o homem e um casaco de lã com uma gola de pele para a mulher. Gabriel puxou o filme para trás e viu a cena uma segunda e depois uma terceira vez. A seguir, carregou no botão de PAUSA. De acordo com o relógio que surgia na tela, eram 18h04m25s quando o casal chegou ao fim da Westbourne Terrace Road Bridge. Se a operação tinha sido bem planejada e todas as evidências indicavam que sim —, havia tempo mais do que suficiente.

Gabriel fez avançar o vídeo até os trinta segundos finais e ficou a ver, uma última vez, Grigori a entrar na parte de trás do Mercedes No momento em que o carro desaparecia da imagem, um homem pequeno e bem vestido surgia pela esquerda. A seguir, uns segundos depois, veio a mulher com o sobretudo de couro. Sem chapéu-de-chuva.

Nem nada na cabeça para a proteger da chuva.

Gabriel parou a imagem e olhou para os sapatos dela.


CAPÍTULO 15

WESTMINSTER, LONDRES

Estava um frio cortante na Parliament Square, mas não era um frio suficientemente forte para afastar os manifestantes. Havia a inevitável manifestação contra os crimes de Israel, outra a exigir que os americanos abandonassem o Iraque, e ainda uma terceira, prognosticando que o Sul da Inglaterra se transformaria em breve num deserto devido ao aquecimento global. Gabriel atravessou a praça até o lado contrário e sentou-se num banco vazio, em frente à North Tower da Abadia de Westminster. Era o mesmo banco onde em tempos se sentara à espera que a filha do embaixador americano fosse deixada na abadia por dois homens-bomba jihadistas. Interrogou-se se Graham Seymour teria escolhido o local intencionalmente ou se se teria simplesmente esquecido dos acontecimentos desagradáveis dessa manhã.

Uma limusine Jaguar com motorista abrandou e parou junto à praça pouco depois das três. Seymour saiu da parte de trás do carro, vestindo um sobretudo com gola de veludo. Esperou que a limusine descesse a Victoria Street a grande velocidade e depois foi ter ao banco. Desta vez, era Seymour quem estava atrasado. Peço desculpa, Gabriel, a minha reunião com o primeiro-ministro demorou mais do que o esperado.

Como ele está? Tendo em conta que é o líder britânico menos popular em toda uma geração, até pareceu bastante bem. E, para variar, até fomos capazes de lhe dar algumas boas notícias.

E quais foram? — Boa tentativa.

Vá lá, Graham. Gabriel olhou de relance para a fachada da abadia. Já temos uma história em conjunto, tu e eu.

Seymour não disse nada durante uns momentos.

— Que raio de dia horroroso aquele, não foi? Não sei se alguma vez serei capaz de tirar aquela imagem da cabeça, a tua imagem a...

— Eu lembro-me, Graham. Estava lá.

Seymour enfiou as pontas do cachecol de lã por baixo da lapela do sobretudo.

— Enquanto estamos aqui a falar, há agentes da Polícia Metropolitana a fazerem rusgas por East London inteira.

— East London? Calculo que não andem a prender russos. É uma célula da Al-Qaeda que andamos a vigiar há algum tempo. Uma coisa a sério. Estavam a tratar dos últimos preparativos de um plano para atacar vários alvos financeiros e turísticos. As perdas em termos de vidas teriam sido significativas.

— E quando vão anunciar as detenções?

— O primeiro-ministro está a contar fazer um comunicado ainda esta noite, mesmo a tempo das News at Ten. Os assessores dele têm a esperança que isto lhe dê um empurrão bem necessário nas sondagens de opinião. Seymour parou de falar por um instante.

— Preciso voltar à Thames House. Acompanhe-me.

Os dois homens levantaram-se juntos e seguiram pela praça em direção às Casas do Parlamento. Formavam um par incongruente, Gabriel em jeans e casaco de couro, Seymour com seu terno sob medida e sobretudo.

— Honra seja feita, Gabriel. Por sua sugestão, escavamos um pouquinho mais fundo e conseguimos imagens novas captadas pela CCTV nas ruas circundantes. O casal que atravessou a Westbourne Terrace Road Bridge às seis e três minutos entrou num carro à espera numa rua secundária sossegada. Levou-os até a Edgware Road, onde a mulher saiu sozinha. Tinha trocado de casaco no caminho.

Olhou para Gabriel com admiração.

— Posso saber o que te levou a suspeitar dela?

— O guarda-chuva.

— Mas ela não levava nenhum.

— Precisamente. Caía uma chuva fininha, mas a mulher não usava guarda-chuva. Precisava das mãos livres.

Gabriel olhou de lado para Seymour. — As pessoas como eu não andam com guarda-chuva, Graham.

— Os assassinos, quer dizer?

Gabriel não respondeu diretamente.

— Se Grigori não tivesse resolvido entrar naquele carro, a mulher provavelmente o mataria bem ali. Suponho que ele deve ter decidido que era melhor arriscar. É melhor ser um desertor desaparecido do que morto.

— E o que mais reparou nela?

— Não se deu ao trabalho de trocar os sapatos. Suponho que não havia tempo.

— O que eu não faria para ter esse olho!

— É um defeito profissional.

— De qual das profissões?

Gabriel limitou-se a sorrir. Tinham chegado à ponta ao sul das Casas do Parlamento e atravessavam naquele momento os Victoria Tower Gardens. À frente deles, erguia-se a pesada fachada cinzenta da Thames House. De repente, Seymour já não parecia ter pressa em voltar para o trabalho.

— Sua descoberta apresenta um óbvio dilema. Se eu comunicar isto ao meu diretor-geral, haverá uma batalha feroz nos Serviços de Segurança Britânicos. Vão me rotular de herege. E sabe o que fazemos com os hereges.

— Não quero que diga nada, Graham. —  Gabriel fez uma pausa e depois acrescentou: — Não sem que eu fale com Olga primeiro.

— Lamento, mas isso está fora de questão. O meu DG me crucificaria se soubesse a quantidade de informações que já te dei. Seu envolvimento neste caso terminou neste momento. Aliás, se se apressar, até pode fazer as malas e pegar o último Eurostar para Paris. Sai às sete e trinta e nove em ponto.

— Preciso falar com ela, Graham. Só por uns minutos.

Seymour parou de andar e contemplou as luzes que brilhavam intensamente no último andar de Thames House.

— Por que eu sei que vou me arrepender disso?

Virou-se para Gabriel. — Tem vinte e quatro horas. Depois, quero você fora do país.

Gabriel passou duas vezes o dedo no coração.

— Ela está escondida em Oxford, no lado mais bonito da Magdalen Bridge. Número 24 da Rectory Road. Usa o nome de Marina Chesnikova. Arranjamos emprego para ela ensinar estudantes de russo na universidade.

— Como é a segurança em volta dela?

— Igual à de Grigori. Teve vigias nos primeiros meses e depois pediu para nos afastarmos. Tem um agente responsável por ela e deve telefonar a dar notícias todos os dias. Monitoramos seus telefones e a seguimos de tempos em tempos para ter certeza de que não está sob vigilância e que se comporta bem.

— Gostaria muito que não a seguissem amanhã. Nem a mim.

— Você nem sequer está aqui. E quanto a Chesnikova, vou dizer para esperá-lo. Não me desaponte.

Deu uma palmadinha no ombro de Gabriel, num jeito de advertência, e avançou sozinho pela Horseferry Road.

— Que tipo de carro era?

Seymour deu meia-volta.

— Qual carro?

— O carro que levou a mulher de Maida Vale para Edgware.

— Era um Vauxhall Insignia.

— Cor?

— Acho que chamam azul-metro.

— Uma van com porta traseira?

— Não, uma van fechada, na verdade. E não esqueça: quero você no último trem para Paris amanhã à noite.

— Às sete e trinta em nove. Em ponto.

CAPÍTULO 16

OXFORD

 

O vento soprava vindo do Noroeste, ao longo do vale de Evesham e descendo as encostas das colinas de Cotswold. Fustigava as lojas da Cornmarket Street ao passar por ela, dava a volta ao Peckwater Quad, na Christ Church, e cercava a pequena frota de barcas amarradas umas às outras debaixo da Magdalen Bridge. Gabriel parou por uns instantes para admirar aquela imagem emblemática de uma Inglaterra há muito desaparecida e depois recomeçou a sua caminhada, seguindo pela Plain, em direção à Cowley Road. Oxford, lembrava-se ele da última visita, não era uma cidade mas duas: uma cidadela acadêmica de universidades e pináculos em pedra na margem ocidental do rio Cherwell, e uma cidade industrial em tijolos, a leste. Tinha sido no bairro de Cowley que um jovem fabricante de bicicletas chamado William Morris construíra a sua primeira fábrica de automóveis, em 1913, transformando instantaneamente Oxford num importante centro industrial britânico. E, embora o bairro tivesse permanecido fiel às raízes operárias, tinha sido transformado numa área de lojas, cafés e discotecas de grande animação. Os estudantes e os professores universitários encontravam alojamento nas casas exíguas, tal como os imigrantes vindos do Paquistão, da China, do Caribe e da África. O bairro também acolhia recém-chegados dos antigos países comunistas do Leste europeu. Com efeito, quando Gabriel passou por uma mercearia de produtos biológicos ouviu duas mulheres falando em russo enquanto examinavam tomates.

No centro da Jeune Street, uma idosa dedicava-se à tarefa inteiramente fútil de varrer o pó do hall de uma igreja metodista, com as pontas do cachecol a esvoaçarem como bandeiras ao vento. Ao lado da entrada, via-se um letreiro azul e branco no qual se lia: A TERRA É DO SENHOR: É NOSSA PARA QUE A APROVEITEMOS, NOSSA PARA QUE A LAVREMOS E DEFENDAMOS. Gabriel percorreu mais um quarteirão, até a Rectory Road, e contornou a esquina.

A rua descia abruptamente e curvava para a esquerda ligeiramente, mas o suficiente para que ele não conseguisse ver onde terminava. Gabriel fez toda a rua uma vez, à procura de sinais que indicassem a presença de vigias. Não encontrando nenhum, voltou para trás, até a casa do número 24. Ao longo do passeio, havia um pequeno muro de tijolo com ervas daninhas a brotarem da argamassa. Por trás do muro, num pequeno pedaço de cascalho branco, estava um grande caixote verde do lixo. Havia uma bicicleta encostada, sem a roda da frente e com o selim coberto por uma sacola plástica de compras. O caminho de entrada talvez tivesse um metro de comprimento e ia dar a uma porta de madeira a lascar, num pequeno recanto. Aparentemente, a campainha já não funcionava, pois não aconteceu nada quando Gabriel carregou no botão com o polegar. Bateu três vezes na porta com força e ouviu o tap-tap-tap de passos femininos no hall. A seguir, o som de uma voz, uma mulher falando em inglês com sotaque russo.

— Quem é, por favor?

— É Natan Golani. Ficamos sentados ao lado um do outro do verão passado, num jantar na residência do embaixador israelense. Conversamos durante uns minutos no terraço, quando você saiu para fumar um cigarro. Disse que os russos não conseguem viver como um povo normal e que nunca conseguirão.

Gabriel ouviu o som de uma corrente deslizando e viu a porta abrir lentamente. A mulher que estava parada na minúscula entrada tinha no colo um gato siamês, com olhos azuis luminosos que combinavam na perfeição com os dela. Usava blusa preta justa, calça cinza e elegantes botas pretas. O cabelo, antes comprido e da cor do linho, estava agora curto e escuro. O rosto, no entanto, permanecia inalterado. Era um dos mais belos que Gabriel alguma vez vira: heroico, vulnerável, virtuoso. O rosto de um ícone russo em carne e osso. O rosto da própria Rússia. Até há seis meses, Olga Sukhova praticara uma das atividades mais perigosas do mundo: o jornalismo russo. Enquanto repórter da revista Moskovskaya Gazeta, um semanário de investigação socialmente empenhado, tinha exposto as atrocidades do Exército Vermelho na Chechênia, revelara a corrupção nas mais altas instâncias do Kremlin e fora uma crítica inflexível do ataque à democracia perpetrado pelo presidente russo. O seu trabalho deixara-a com uma visão sombria do país e do futuro dele, ainda que nada pudesse tê-la preparado para a descoberta mais importante da sua carreira: um oligarca e traficante de armas russo estava a preparar-se para vender algumas das mais sofisticadas armas russas a terroristas da Al-Qaeda. Apesar de nunca ter sido publicada pela Gaeta, a história resultou no assassinato de dois colegas de Olga. O primeiro, Aleksandr Lubin, foi apunhalado até a morte num quarto de hotel, na estância de esqui francesa de Courchevel. O segundo, um editor chamado Boris Ostrovsky, morreu nos braços de Gabriel, no chão da Basílica de São Pedro, vítima de envenenamento. E se não fosse por Gabriel e Grigori Bulganov, Olga Sukhova também teria sido seguramente assassinada.

A natureza perigosa do trabalho de Olga e as ameaças constantes à sua vida tinham-na deixado com um conhecimento das artes do ofício da espionagem tão apurado como o de um agente experimentado. Tal como Gabriel, partia do princípio de que todas as salas, até as salas da sua própria casa, se encontravam sob escuta. As conversas importantes deviam ser tidas em locais públicos. E isso explicava o fato de, cinco minutos depois de Gabriel chegar, estarem os dois a caminhar pelo passeio varrido pelo vento da St. Clement's Street. Gabriel escutou o barulho das botas dela a baterem no chão e pensou numa tarde enevoada em Moscou, durante a qual tinham caminhado entre os mortos do Cemitério de Novodevichy, sempre com a sombra das equipes alternadas de vigias russos. Talvez devesse beijar-me agora, Mr. Golani. É melhor que o FSB fique com a impressão de que tencionamos passar a ser amantes.

— Sente saudade? perguntou ele.

— De Moscou? — Ela sorriu de forma triste. — Sinto muita saudade. Do barulho. Dos cheiros. Do trânsito horrendo. Às vezes, até dou por mim com saudade da neve. Janeiro já está quase no fim e ainda não caiu um só floco. Na BBC, a mulher chamou isso de onda de frio. Em Moscou, chamamos de primavera.

Olhou para ele.

— Neva em Oxford?

— Se neva, não terá nada a ver com o que acontece em sua terra.

— Nada tem a ver com a minha terra. Oxford é uma cidade encantadora, mas tenho de confessar que a considero entediante. Moscou tem muitos problemas, mas pelo menos nunca é entediante. Pode não compreender isso, mas sinto saudade dos meus tempos de jornalista.

— Uma mulher muito inteligente e bonita me disse uma vez que não havia jornalismo na Rússia... pelo menos, jornalismo sério.

— É verdade. O regime conseguiu silenciar os críticos da imprensa, não com censura aberta, mas com assassinatos, intimidações e mudanças forçadas de proprietários. Agora, a Gazeta não passa de um tabloide de escândalos, cheio de histórias sobre estrelas pop, homenzinhos do espaço e lobisomens que vivem nas florestas nos arredores de Moscou. Tenho certeza de que ficará contente se eu lhe disser que a tiragem nunca foi tão grande.

— Pelo menos, ninguém está sendo morto.

— Isso é verdade. O pobre Boris foi o último a morrer.

Apertou o braço de Gabriel melancolicamente. Mas reparei num artigo sobre Ivan que apareceu no site da Gaeta no mês passado. Ele tinha ido à festa de inauguração de um novo restaurante em Moscou. A nova mulher dele, a Yekaterina, estava tão deslumbrante como sempre. E o próprio Ivan também mostrava bom aspecto. Aliás, estava até bronzeado. Franziu o sobrolho de forma teatral. Onde acha que Ivan conseguiu ficar com um bronzeado na Rússia e no meio do Inverno? Num daqueles solários? Não, não me parece. Ivan não é do gênero de expor a pele a radiações. Costumava ir até Saint-Tropez para ficar bronzeado. De repente, escapuliu-se sorrateiramente até Courchevel, com um passaporte falso, para esquiar um pouquinho na época natalícia. Ou, então, foi visitar um dos antigos redutos dele em África.

— Temos andado a apanhar informações de que ele anda a reconstruir as suas antigas redes.

— Não me diga.

— Também tem ouvido coisas parecidas?

— Para ser honesta, tento não pensar em Ivan. Tenho um blog popular aqui no Reino Unido e também em Moscou, e o FSB lança ataques cibernéticos constantes.

Sorriu fugazmente.

— Sinto prazer em saber que consigo irritar o Kremlin, mesmo de uma casinha em Cowley.

— Talvez fosse melhor se...

— O quê? — interrompeu ela. — Se me mantivesse calada? O povo russo está calado há tempo demais. O regime tem utilizado esse silêncio como uma justificação para esmagar qualquer aparência de democracia e impor uma forma de totalitarismo moderado. Alguém tem de falar abertamente. E se tenho de ser eu, então que seja. Já o fiz antes.

Tinham chegado ao outro lado da Magdalen Bridge: o lado dos Pináculos, da pedra calcária e dos grandes pensamentos. Olga parou na High Street e fez de conta que estava a ler o placard informativo. Tenho de confessar que não fiquei surpresa quando Graham Seymour me ligou ontem à noite e disse que você viria. Suponho que tenha a ver com Grigori. Ele está desaparecido, não está?

Gabriel acenou com a cabeça.

— Já receava isso quando ele não respondeu ao meu telefonema. Nunca tinha feito isso. Como veio de Londres para Oxford?

— No trem de Paddington.

— E os ingleses o seguiram?

— Não.

— Tem certeza?

— Tanto quanto é possível ter.

— E os russos? Foi seguido por russos?

— Até agora, parecem não ter conhecimento da minha presença aqui.

— Duvido que continuem assim por muito tempo.

Olhou para o outro lado da rua, na direção da entrada para o Jardim Botânico de Oxford.

— Vamos falar ali dentro, está bem? Sempre gostei de jardins no inverno.

CAPÍTULO 17

OXFORD

 

— Meu Deus — murmurou ela. — Quando isso vai terminar? Quando vai terminar de vez?

— É possível, Olga? Há alguma possibilidade de Grigori ter resolvido voltar para casa?

Ela limpou as lágrimas que lhe escorriam pela cara e olhou em redor do jardim. — Já esteve aqui?

Parecia uma pergunta estranha, tendo em conta o que ele acabara de contar. Mas Gabriel conhecia Olga o suficiente para entender que tinha um propósito.

— Esta é a minha primeira visita.

— Há cento e cinquenta anos, um matemático da Christ Church costumava vir aqui com uma moça e as duas irmãs dela. O matemático era Charles Lutwidge Dodgson. A moça era Alice Liddell. As visitas serviram de inspiração para um livro que Dodgson escreveria sob o pseudônimo de Lewis Carroll... — As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, claro. Apropriado, não acha?

— Como assim?

— A teoria dos ingleses sobre Grigori é uma história digna do Lewis Carroll. O ódio que ele sentia pelo regime e pelo antigo serviço era real. A ideia de que voltaria para a Rússia de livre vontade é absurda.

Sentaram-se num banco de madeira no centro do jardim, ao lado de uma fonte. Gabriel não disse a Olga que chegara à mesma conclusão e que tinha as provas fotográficas para a sustentar.

— Estava ajudando no livro dele.

— E passava tempo com ele?

— Mais do que os ingleses provavelmente imaginavam.

— Via-o muitas vezes?

Olga olhou para o céu, como se procurasse uma resposta.

— De quinze em quinze dias.

— E onde se encontravam?

— Normalmente, aqui, em Oxford. Fui a Londres duas ou três vezes, quando precisei de uma mudança de ares.

— Como combinavam os encontros?

— Por telefone.

— Falavam ao telefone abertamente?

— Usávamos um código rudimentar. Grigori dizia que a capacidade de escuta dos serviços russos já não era a mesma de outros tempos, mas que mesmo assim ainda era suficientemente boa para justificar precauções razoáveis.

— E como Grigori vinha até aqui?

— Como você veio. No trem de Paddington.

— E era cuidadoso?

— Era o que ele dizia.

— E vinha a sua casa?

— Às vezes.

— E nas outras?

— Íamos almoçar no centro da cidade. Ou tomar café.

Apontou para o pináculo do Magdalen College. — Há um café muito agradável do outro lado da rua, chamado Queen’s Lane. Grigori gostava muito dele.

Gabriel conhecia. O Queen’s Lane era o café mais antigo de Oxford. Naquele momento, no entanto, seus pensamentos estavam virados para outro lugar. Duas mulheres próximas da terceira idade tinham acabado de entrar no jardim. Uma debatia-se com uma brochura que se ia agitando com o vento; a outra estava a prender um cachecol debaixo do queixo. Gabriel examinou-as minuciosamente durante uns momentos e, a seguir, retomou o interrogatório.

— E em Londres?

— Numa lojinha de sanduíches horrorosa perto do metrô Notting Hill Gate. Ele gostava de lá porque era perto da embaixada russa. Tinha um prazer perverso passar na frente dela de tempos em tempos, só para se divertir.

A embaixada russa, uma estrutura branca que lembrava um bolo de casamento muito ornamentado e que tinha um muro de alta segurança a cercá-la, ficava na ponta mais a norte dos Jardins do Palácio de Kensington. O próprio Gabriel tinha passado por lá na tarde do dia anterior enquanto fazia tempo para a reunião com Graham Seymour.

— Alguma vez foi à casa dele?

— Não, mas a descrição que ele fez me deixou com com um pouquinho de inveja. É pena eu não ter sido capanga do FSB. Teria gostado de ganhar uma casa simpática em Londres para juntar ao meu passaporte britânico novo.

— E quanto tempo Grigori costumava ficar aqui quando vinha?

— Duas ou três horas, às vezes um pouquinho mais.

— E alguma vez passou a noite?

— Pergunta se éramos amantes?

— Só estou perguntando.

— Não, ele nunca passou cá a noite.

— E eram amantes?

— Não, não éramos amantes. Eu nunca seria capaz de fazer amor com um homem tão parecido com Lênin.

— Essa é a única razão?

— Ele já foi do FSB. Esses sacanas olharam para o lado enquanto muitos amigos meus eram assassinados. Além disso, Grigori não estava interessado em mim. Continuava apaixonado pela mulher.

— Irina? Pelo que Grigori me contou, quase se mataram um ao outro antes de finalmente se divorciarem.

— As opiniões dele devem ter mudado com o tempo e a mudança de ares. Disse que tinha sido um idiota, que se embrenhou demais no trabalho. Ela andava a sair com outro homem, mas ainda não tinha aceitado casar com ele. Grigori achava que iria conseguir intrometer-se entre ambos, afastá-la do namorado e trazê-la para Inglaterra. Queria que a Irina soubesse que ele se tinha tornado uma pessoa muito importante. Achava que ela se apaixonaria por ele outra vez se o pudesse ver no seu novo elemento e na sua casinha nova e toda elegante de Londres.

— E ele mantinha contato com ela?

Olga aquiesceu.

— E ela respondia aos avanços dele?

— Aparentemente, sim, mas Grigori nunca entrava em detalhes.

— Se bem me lembro, ela é agente de viagens.

— Trabalha para uma empresa chamada Galaxy Travel, em Moscou, na Rua Tverskaya. Trata dos voos e do alojamento de russos que vão viajar para a Europa Ocidental. A clientela-alvo da Galaxy é de classe alta. E depois acrescentou, num tom claro de desprezo: Novos russos. O tipo de russo que gosta de passar os Invernos em Courchevel e os Verões em Saint-Tropez. Tirou um maço de cigarros do bolso do casaco. Suspeito que neste momento o negócio ande bastante fraco para os lados da Galaxy Travel. A recessão mundial atingiu a Rússia com extrema dureza. Não fez qualquer tentativa para esconder o prazer que essa situação lhe causava. Mas isso era previsível. As economias que dependem dos recursos naturais são sempre vulneráveis ao ciclo inevitável de explosão econômica e falência. Pergunto a mim própria qual será a reação do regime a este novo paradigma.

Olga tirou um cigarro do maço e enfiou-o entre os lábios. Quando Gabriel lhe lembrou que não era permitido fumar no jardim, ela reagiu acendendo o cigarro de qualquer forma. Eu agora posso ter um passaporte britânico, mas continuo a ser russa. Os sinais de proibição de fumar não significam nada para nós.

— E as pessoas ainda se interrogam porque os russos morrem aos cinquenta e oito anos.

— Só os homens. Nós, as mulheres, vivemos muito mais tempo Expirou uma nuvem de fumo, que o vento atirou diretamente para a cara de Gabriel. Pediu desculpa e trocou de lugar com ele. Lembro-me da noite em que partimos todos juntos... Nós os quatro, todos apertados naquele Volga pequenino, a avançar lentamente pelas estradas desoladas da Rússia. Grigori e eu não parávamos de fumar. Você ia encostado à janela, com aquela ligadura a tapar-lhe o olho, a implorar-nos que parássemos. Nós não podíamos parar. Estávamos aterrorizados, mas também estávamos excitados com o que estava à nossa frente. Tínhamos esperanças tão elevadas, Grigori e eu! Íamos mudar a Rússia. As esperanças da Elena eram mais modestas. Ela só queria ver os filhos outra vez.

Soprou o fumo por cima do ombro e olhou para ele.

— Você a tem visto?

— Elena?

Ele abanou a cabeça.

— Tem falado com ela?

— Nem uma palavra.

— Nenhum contato?

— Escreveu-me uma carta. Eu pintei um quadro para ela.

Gabriel pediu que apagasse o cigarro. Enquanto ela enterrava a guimba no cascalho, junto aos pés, ele viu um grupo de quatro turistas entrando no jardim.

— O que achou quando Grigori se transformou em dissidente célebre?

— Admirei a coragem dele. Mas achei que estava sendo um idiota com uma vida tão pública. Disse para não dar tanto na vista. Avisei-o de que iria se meter-se em problemas. Ele não quis ouvir. Tinha sido enfeitiçado pelo Viktor.

— Viktor?

— Viktor Orlov.

Gabriel reconheceu o nome, claro. Viktor Orlov era um dos oligarcas russos originais, o pequeno bando de intrépidos capitalistas que tinha engolido os ativos valiosos do antigo Estado soviético E fizera biliões pelo caminho. Enquanto os russos comuns enfrentavam sérias dificuldades para sobreviver, Viktor ganhava uma fortuna enorme com petróleo e aço. Mais tarde, acabou por entrar em rota de colisão com o regime pós-Yeltsin e fugiu para a Grã-Bretanha para se antecipar a um mandado de prisão. Agora, era um dos críticos mais claros, ainda que de pouca confiança, do regime. Orlov raramente deixava que coisas triviais como fatos se intrometessem nas acusações obscenas que levantava com regularidade contra o presidente russo e os seus comparsas no Kremlin.

— Já teve contato com ele alguma vez? — perguntou Gabriel. — Com Viktor?

Olga sorriu de forma prudente. — Uma vez, há uma centena de anos, em Moscou. Foi logo depois de Yeltsin deixar a presidência. Os novos senhores do Kremlin queriam que Viktor vendesse os seus negócios voluntariamente, de modo a voltarem para as mãos do Estado... ao preço da chuva, claro.

Por razões compreensíveis, Viktor não se mostrou interessado. As coisas ficaram feias... mas a verdade é sempre assim. O Kremlin começou a falar em rusgas e apreensões. É isso que o Kremlin faz quando quer qualquer coisa. Traz o poder do Estado a lume.

— E Viktor achou que podia ajudar?

— Convidou-me para almoçar. Disse que tinha uma exclusiva para mim: um homem cujo trabalho era arranjar moças para entretenimento do presidente. Garotas muito novas, Gabriel. Quando eu respondi que não tocaria nessa história, ficou furioso. Um mês depois, fugiu do país. Oficialmente, os russos querem-no de volta para responder acusações de fraude e evasão fiscal.

— E sem ser oficialmente?

— O Kremlin quer que Viktor abdique da participação majoritária na Ruzoil, a gigantesca companhia energética siberiana. Vale vários bilhões de dólares.

— O que o Viktor queria de Grigori?

— Os motivos do Viktor para se opor ao Kremlin eram irremediavelmente transparentes e longe de serem nobres. Grigori dava-lhe uma coisa que ele nunca tinha tido até aí.

— Respeitabilidade.

— Correto. E mais: Grigori conhecia alguns dos segredos mais tenebrosos do regime. Segredos que o Viktor poderia manejar como uma arma. Grigori era a resposta às suas preces e aproveitou-se dele. É isso que o Viktor faz. Usa as pessoas e, quando elas já não têm valor para ele, atira-as aos lobos. E Olga disse alguma destas coisas a Grigori?

— Claro. Mas não se saiu especialmente bem. Grigori achava que podia tomar conta de si próprio e não gostava de ter uma jornalista mandando tomar cuidado. Ele era como um homem mais velho apaixonado por uma moça bonita. Não andava a pensar como deve ser. Gostava de estar perto do Viktor, dos carros, das festas, das casas, do vinho caro. Era como uma droga. Grigori estava agarrado.

— Quando foi a última vez que o viu?

— Há duas semanas. Estava muito animado. Segundo parecia, a Irina andava a pensar seriamente em vir para Londres. Mas também estava nervoso. Por causa da Irina

— Não, por causa da sua segurança. Estava convencido de que andava a ser vigiado.

— Por quem?

— Não entrou em detalhes. Deu-me as últimas páginas que tinha escrito do manuscrito. E depois deu-me uma carta para eu guardar. Disse-me que, se por acaso lhe acontecesse alguma coisa, UM amigo dele viria procurá-lo. E tinha certeza absoluta de que, mais tarde ou mais cedo, esse homem acabaria por vir ter a Oxford Para se encontrar comigo. Grigori gostava desse homem e respeitava-o muito. Aparentemente, tinham feito uma espécie de pato durante uma longa viagem pelo campo russo. Enfiou discretamente a carta na mão de Gabriel e acendeu mais um cigarro. Tenho de admitir que não me lembro de ouvir isso. Devia estar a dormir nessa altura.

 

 

 

CONTINUA