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Series & Trilogias Literarias
CAPÍTULO 18
OXFORD
— Nunca a leu? — perguntou Gabriel.
— Não, nunca.
— Difícil acreditar.
— Por quê?
— Porque você era tempos atrás a jornalista de investigação mais famosa da Rússia.
— E?
— Os jornalistas de investigação são bisbilhoteiros
— Como os espiões?
— Sim, como os espiões.
— Eu não leio o correio das outras pessoas. É impróprio.
Estavam sentados no Queen’s Lane Coffee House, janela com treliça. Gabriel estava virado para a rua; Olga, para o interior do café, cheio de movimento. Segurava a carta numa mão e uma caneca de chá na outra.
— Acho que isto põe fim ao debate sobre se Grigori voltou a desertar ou foi raptado. De forma bastante definitiva.
Por coincidência, a carta também tinha cinco frases, embora, ao contrário da que tinha sido falsificada e que anunciava que Grigori voltara a desertar, tivesse sido escrita num processador de texto e não à mão. Não trazia nenhum cumprimento, pois um cumprimento teria sido inseguro. Gabriel tirou-a das mãos de Olga e leu-a uma vez mais:
SE ISTO LHE CHEGOU ÀS MÃOS É PORQUE IVAN ME CAPTUROU. SÓ POSSO CULPAR A MIM MESMO, POR ISSO NÃO SE SINTA NA OBRIGAÇÃO DE MANTER A PROMESSA QUE ME FEZ NAQUELA NOITE NA RÚSSIA. MAS TENHO UM FAVOR PARA LHE PEDIR; RECEIO QUE A MINHA VONTADE DE ESTAR OUTRA VEZ JUNTO DA MINHA EX-MULHER A POSSA TER COLOCADO EM PERIGO. SE OS SEUS AGENTES EM MOSCOU PUDESSEM VER COMO ELA ESTÁ, DE TEMPOS A TEMPOS, FICARIA AGRADECIDO. POR FIM, SE EU PUDER DAR UM PEQUENO CONSELHO A PARTIR DA COVA, SERÁ ESTE: CAMINHE COM CUIDADO.
Presa à carta por um clipe, estava uma fotografia de 7,5 por 12,5 cm. Mostrava Grigori e a ex-mulher sentados diante de uma mesa carregada de vodca, em tempos mais felizes. Irina Bulganova era uma mulher atraente, com cabelo louro curto e um corpo compacto que sugeria uma juventude atlética. Gabriel nunca a tinha visto antes. Mesmo assim, achou que a cara dela tinha algo de remotamente familiar.
— Acredita nisso? — perguntou Olga.
— Em qual parte?
— Na parte relacionada a Ivan. Acha que ele seria mesmo capaz de de uma operação tão complexa?
— Ivan é KGB até a medula. A rede de tráfico de armas dele era a mais sofisticada que o mundo já vira. Havia dezenas de antigos e atuais agentes do serviço secreto, incluindo o próprio Grigori, a serviço dela. Grigori recebia dinheiro de Ivan. E depois o traiu. Na Rússia, o preço da traição continua o mesmo.
— Virshqya mera — disse Olga em voz baixa. — A mais grave forma de punição. Acha que ele está morto?
— É possível. Mas duvido.
— Mas ele desapareceu há uma semana.
— Pode parecer que é muito tempo, mas não é. Ivan vai querer informações; tudo o que Grigori contou aos ingleses e aos americanos sobre a rede dele. E, depois disso, suspeito que os rapazes de Lubyanka também vão querer uma conversinha com ele. Os russos têm muita paciência em interrogatórios hostis. Chamam a isso secar uma fonte completamente.
— Que encantador.
— São os sucessores de Dzerjinsky, Yezhov e Beria. Não são um grupo lá muito encantador, especialmente quando está em causa alguém que se pôs a revelar segredos de família aos ingleses e aos americanos.
— Presumo que também já tenha feito estas coisas, não?
— Interrogatórios? — Gabriel abanou a cabeça. — Para ser honesto, nunca foram a minha especialidade.
— E quanto tempo demora para fazer bem feito?
— Isso depende.
— De quê?
— Do fato de a pessoa colaborar ou não. E, mesmo que colabore, podem demorar semanas ou meses até que tenha certeza do que ela disse aos interrogadores tudo o que eles querem saber. Basta perguntar a quem está detido na prisão de Guantánamo. Há quem esteja sendo interrogado sem parar há anos.
— Pobre Grigori. Pobre e tolo Grigori.
— Ele foi tolo. Nunca devia ter vivido tão abertamente. Devia ter ficado de bico calado. Só estava chamando problemas.
— E é possível tirá-lo de lá de alguma maneira?
— Isso não está fora de questão. Mas, por hora, a minha preocupação é você.
Gabriel olhou pela janela. O sol tinha deslizado para trás dos telhados das faculdades e a High Street estava agora à sombra. Um ônibus municipal de Oxford passou lentamente e com grande barulho, seguido de uma procissão de estudantes em bicicleta. Olga tinha contato com Grigori. Ele sabe tudo de você. Seu nome de disfarce. Seu endereço. Temos de partir do princípio de que agora Ivan também sabe disso.
— Tenho um número de telefone para onde devo ligar, no caso de haver uma emergência. Os ingleses dizem que podem vir buscar-me numa questão de minutos.
— Como pode calcular, não ando especialmente impressionado com os serviços de segurança ingleses nestes últimos tempos.
— E pretende fazer-me sair de Oxford sem os informar? Nem que seja à força, se for necessário. Onde está esse seu passaporte britânico novo? — Na gaveta de cima da minha mesinha-de-cabeceira. Vai precisar dele, bem como de uma muda de roupa e de tudo o resto que não queira deixar para trás.
— Preciso do meu computador e dos meus papéis. E da Cassandra.
Não me vou embora sem a Cassandra.
— Quem é a Cassandra? — A minha gata.
— Deixamos-lhe bastante comida e água. E amanhã mando alguém vir buscar o bicho.
Cassandra é uma menina, Gabriel, não é um bicho. A não ser que ela seja uma gata-guia para cegos, não a deixarão entrar no Eurostar.
— No Eurostar? — Nós vamos para Paris. E temos de nos despachar se queremos apanhar o último trem.
A que horas parte? Às sete e trinta e nove, pensou ele. Em ponto.
CAPÍTULO 19
OXFORD
O ônibus municipal número 5 de Oxford parte da estação de trens, segue pela área de comércio de Templars Square e atravessa a Magdalen Bridge, em direção ao longínquo bairro social de Blackbird Leys. Gabriel e Olga entraram em frente ao All Souls College e saíram na primeira parada da Cowley Road. Com eles, apearam-se mais cinco passageiros. Quatro seguiram o seu caminho O quinto, um homem de meia-idade, caminhou atrás deles durante um curto período de tempo, antes de entrar na igreja, na esquina da Jeune Street. Do interior, vinha o som de vozes que se elevavam em oração.
— Fazem serviços ao final da tarde de todas as quartas-feiras.
— Espere lá dentro enquanto eu vou buscar as suas coisas. Quero despedir-me de Cassandra e certificar-me de que ela fica bem.
— Não confia em mim para lhe dar de comer?
— Consigo ver que não gosta de animais.
— Por acaso, até é o contrário. E tenho as cicatrizes para provar.
Viraram para a Rectory Road e seguiram diretamente para a porta de Olga. A bicicleta dela continuava encostada ao caixote do lixo, por trás do minúsculo muro de tijolo. Havia um folheto verde-claro, anunciando um novo restaurante indiano com entrega em domicílio pendurado no trinco. Olga tirou-o antes de enfiar a chave na fechadura, mas a chave não girou. Em seguida, na rua escura, ouviu-se o motor de um carro. E Gabriel sentiu a nuca fervendo.
Para uma pessoa normal, os dois acontecimentos consecutivos significariam provavelmente muito pouco. Porém, para um homem como Gabriel Allon, eram o equivalente a um sinal de perigo em néon a piscar. Virando a cabeça rapidamente para a direita, viu o carro aproximar-se a grande velocidade, vindo da St. Clement’s Street, com os faróis apagados. O motorista tinha ombros largos e segurava o volante calmamente com duas mãos. Logo atrás dele, saindo pela janela traseira que ia aberta, Gabriel reparou numa forma que lhe foi instantaneamente familiar: uma pistola semiautomática equipada com um silenciador.
Cairam numa cilada, como Grigori antes deles. Mas não seria um sequestro, era uma operação de extermínio. Para sobreviver aos dez segundos seguintes, Gabriel precisava de jogar à defesa, algo que ia contra décadas de experiência e de treino. Infelizmente, não tinha outra escolha. Viera até Oxford desarmado.
Recuou um passo e deu um pontapé fulminante na porta. Sólida como uma antepara, ela se recusou a se mexer. Olhando de relance para a esquerda, viu o minúsculo jardim de cascalho branco. No exato momento em que os primeiros tiros embateram violentamente na porta, ele agarrou o braço de Olga e a fez agachar-se, atrás do pequeno e grosso muro de tijolo.
Os disparos não duraram mais do que cinco segundos o tempo suficiente para gastar um carregador, pensou Gabriel e o motorista não parou para o homem da pistola a poder recarregar ou trocar de arma. Gabriel levantou a cabeça quando o carro se preparava para fazer a curva ligeira da rua. A tempo de confirmar a marca e o modelo.
Vauxhall Insignia.
Uma van fechada.
Azul escuro. Acho que chamam azul-metro...
— Está me esmagando.
— Você está bem?
— Acho que sim. Mas me lembre de nunca mais deixar você me trazer para casa.
Gabriel deixou-se ficar no chão ainda mais um instante, levantando-se a seguir e dando outro pontapé na porta, este estimulado pela adrenalina e pela raiva. O ferrolho cedeu e a porta voou para dentro de casa, como se tivesse sido atingida por uma onda de choque. Avançando cautelosamente para o hall, reparou num par de olhos felinos a olhar calmamente para ele ao fundo das escadas. Pegou a gata e apertou-a contra o peito.
— Não vou embora daqui sem ela.
— Sim, mas então se apresse, Miss Chesnikova. Gostaria de sair antes de as pessoas armadas voltem para terminar o trabalho.
SEGUNDA PARTE
ANATOLY
CAPÍTULO 20
LE MARAIS, PARIS
O bairro parisiense conhecido como Le Marais fica na margem direita do Sena e estende-se por partes do terceiro e quarto arrondissements. Em tempos um conjunto de terrenos pantanosos, tinha sido um local bastante na moda durante a monarquia, um bairro-de-lata para a classe operária após a Revolução e, no século XX, a área judia mais vibrante da cidade. Cenário de rusgas aterrorizadoras perpetradas pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial, caíra num estado de ruína por volta dos anos sessenta, altura em que o governo lançou um esforço concertado no sentido de o fazer regressar à vida. Agora um dos bairros mais na berra em Paris, o Le Marais estava repleto de lojas chiques, museus de arte e restaurantes da moda. Era num desses restaurantes, na Rue des Archives, que Uzi Navot aguardava ao final da tarde do dia seguinte. Trazia uma camisola de gola alta que dava a impressão, nada favorecedora, de que tinha a cabeça diretamente aparafusada aos ombros corpulentos. Mal ergueu os olhos quando Gabriel e Olga se sentaram.
Tinham chegado a Paris na noite anterior, pouco depois das dez, e dado entrada num insípido hotelzinho de trânsito em frente à Gare du Nord, do outro lado da rua. A viagem tinha sido calma; não ocorrera mais nenhum ataque por parte de assassinos russos e a gata de Olga portou-se tão bem quanto seria possível esperar durante o percurso de trem de Oxford para a estação de Paddington. Devido à proibição de levar animais no Eurostar, Gabriel não tivera outra escolha a não ser arranjar alojamento para a gata em Londres. Tinha-a levado para uma galeria de arte em St. James’s, cujo dono era um homem chamado Julian Isherwood. Ao longo dos anos, Isherwood tinha sofrido muitas afrontas devido à ligação secreta que mantinha com o Escritório, mas imporem-lhe a gata de uma desconhecida sem aviso era, disse ele, o derradeiro insulto. No entanto, o seu estado de espírito alterou-se radicalmente quando viu Olga pela primeira vez. Mas a verdade Gabriel já sabia que isso iria acontecer. Julian Isherwood tinha um fraco por três coisas: quadros italianos, vinho francês e mulheres bonitas. Em especial, mulheres russas. E, tal como Uzi Navot, era fácil de apaziguar. Não sei porque tivemos de vir a este estava agora a dizer Navot. Sabe como gosto do frango à caçarola de Jo Goldenberg.
— Está fechado, Uzi. Não ouviu dizer?
— Eu sei. Mas ainda não consigo acreditar nisso. O que é o Marais sem Jo Goldenberg?
Durante mais de meio século, a delicatessen kosher ocupara uma esquina proeminente da Rue des Rosiers. Judeus vindos de todos os cantos do mundo tinham enchido as banquetas vermelhas e gastas do restaurante, empanturrando-se com caviar, fígado picado, peito e latkes de batata. Tal como o tinham feito estrelas de cinema francesas, ministros do governo e escritores e jornalistas famosos. Mas a proeminência do Jo Goldenberg tornou-o alvo de extremistas e terroristas, e, em agosto de 1982, seis clientes foram mortos num atentado com granadas e metralhadoras pelo grupo terrorista Abu Nidal. Contudo, em última análise, não foi o terrorismo que derrubou esse marco parisiense, mas a subida em flecha da renda e as repetidas intimações judiciais devido às deficientes condições sanitárias.
— Por sorte aquele frango não te matou, Uzi. Só Deus sabe há quanto tempo já estava ali antes de o jogarem numa tigela e servirem.
— Estava excelente. E o borscht também. Você adorava o borscht do Jo Goldenberg.
— Eu detesto borscht. Sempre detestei borscht.
— Então, por que pediu?
— Você pediu por mim. Aliás, você comeu por mim.
— Não me lembro disso.
— Você que sabe, Uzi.
Falavam num francês rápido. Navot voltou-se para Olga e perguntou em inglês: — Você teria apreciado uma boa tigela de borscht, não teria, miss Sukhova?
— Sou russa. Por que cargas d’água viria a Paris pedir borscht?
Navot olhou outra vez para Gabriel.
— Ela é sempre assim tão simpática? — perguntou em hebraico.
— Os russos têm um senso de humor mais para o negro.
— Você bem sabe.
Navot olhou pela janela e espreitou de relance a rua estreita. Este lugar mudou desde que eu me fui embora de Paris. Costumava cá vir sempre que tinha umas quantas horas livres. Era como um pequeno pedaço de Tel Aviv, mesmo no centro de Paris. Agora... Abanou a cabeça lentamente. É só mais outro lugar Para se ir comprar uma mala ou jóias caras. Já nem sequer se conseguem arranjar cá bons falafel1 — É exatamente assim que o presidente da Câmara o quer. Arrumado e limpinho, com montes de lojas chiques a pagarem grandes rendas e grandes impostos. Até tentaram meter cá um McDonald’s há uns meses, mas as pessoas do bairro ergueram-se em protesto.
O pobre Jo Goldenberg já não conseguia aguentar o negócio. Nos últimos tempos, a renda que o restaurante pagava era de trezentos mil euros por ano.
— Não admira que a cozinha fosse a balbúrdia total. Navot olhou para o menu. Quando voltou a falar, o tom era decididamente menos cordial: Deixa-me ver se eu percebo bem isto. Vou a Itália e ordeno-te que regresses a Israel porque acreditamos que a tua vida possa estar em perigo. Respondes-me que precisas de três dias para acabar um quadro e eu concordo estupidamente. A seguir, no espaço de vinte e quatro horas, venho a descobrir que te escapuliste dos teus guarda-costas e viajaste para Londres para investigar o desaparecimento de um tal Grigori Bulganov, um desertor russo desaparecido. E hoje de manhã recebo uma mensagem a dizer que chegaste a Paris, acompanhado pelo russo número dois, a Olga Sukhova. Deixei escapar alguma coisa? — Tivemos de deixar ficar a gata da Olga na galeria do Julian. Precisas de mandar alguém da base de Londres ir buscá-la. Caso contrário, o Julian é bem capaz de a soltar em pleno Green Park. Gabriel tirou a carta de Grigori do bolso do casaco e deitou-a para cima da mesa. Navot leu-a em silêncio; o seu rosto uma máscara impenetrável. A seguir, olhou novamente para ele.
— Quero saber tudo o que você fez na Inglaterra, Gabriel. Nada de atalhos, rasuras, cortes ou resumos. Compreende?
Gabriel fez um relato completo a Navot, começando pelo primeiro encontro com Graham Seymour e terminando na tentativa de assassinato na porta da casa de Olga.
— Eles destruíram a fechadura? — perguntou Navot.
— Foi um belo pormenor.
— É uma pena que o atirador não tenha percebido que você estava desarmado. Podia ter simplesmente saído do carro e te matado.
— Não está falando sério, Uzi.
— Não, mas dizer isso faz com que me sinta melhor. Muito desleixo para uma equipe de assassinos russos, não acha?
— Não é assim tão fácil matar uma pessoa de um veículo em movimento.
— A não ser que seja Gabriel Allon. Quando marcamos alguém, essa pessoa morre. E os russos também costumam ser assim. São fanáticos pelo planejamento e à preparação. Gabriel acenou com a cabeça, em sinal de concordância. Então, porque iriam enviar um par de amadores até Oxford? Porque partiram do princípio de que seria fácil. Provavelmente, acharam que a segunda linha seria capaz de dar conta do recado.
— Acha que Olga era o alvo e não você?
— Exatamente.
— Como sabe?
— Eu só estava no país há três dias. Até mesmo nós teríamos dificuldade para organizar uma execução assim tão depressa.
— Então, por que não cancelaram a coisa quando viram que ela não estava sozinha?
— É possível que tenham simplesmente achado que eu era um namorado de Olga ou um dos alunos dela, e não alguém que sabe que o melhor é se jogar no chão quando uma fechadura para de funcionar de repente.
Um garçom aproximou-se da mesa. Navot mandou-o embora com um gesto sutil da mão.
— Teria sido mais sensato compartilhar essas observações com Graham Seymour. Ele deixou você comandar sua própria investigação sobre o desaparecimento de Grigori. E como você retribuiu? Escapulindo do país com outro desertor deles.
Navot deu um sorriso amargo. — Eu e Graham podíamos formar nosso próprio clubinho. Homens que confiaram em você e acabaram queimados.
Olhou para Olga e passou do hebraico para o inglês. — Seus vizinhos só repararam nos buracos de bala e na porta da frente arrombada por volta das oito horas. Como não a encontraram em lugar algum, telefonaram para a polícia de Thames Valley.
— Receio saber o que aconteceu em seguida — respondeu ela. — Como meu endereço tinha indicação especial de segurança, o agente de serviço contatou de imediato o chefe de polícia.
— E adivinhe o que o chefe da polícia fez?
— Suspeito que tenha ligado para o Ministério do Interior. E que o Ministério do Interior tenha procurado Graham Seymour.
Navot desviou o olhar de Olga para Gabriel.
— E o que acha que Graham Seymour fez?
— Ligou para o chefe da nossa base de Londres. Que há três dias já passava discretamente a cidade no pente-fino, a sua procura.
E, a seguir, acrescentou: — E quando o chefe da base veio ao telefone, deu-lhe uma bronca. Parabéns, Gabriel. Conseguiu deixar as relações entre os ingleses e o Escritório no nível mais baixo. Eles querem uma explicação completa do que aconteceu em Oxford na noite passada. E também que devolvam a desertora deles. Graham Seymour espera nos ver em Londres amanhã de manhã, bem cedinho.
— Todos?
— Você, eu e Olga.
Depois, quase como se fosse uma reflexão tardia, acrescentou: — E o Velho também.
— E como Shamron conseguiu se envolver nisso?
— Da maneira de sempre. Shamron tem aversão a vácuos. Vê um espaço vazio e preenche.
— Diga a ele para não sair de Tiberíades. Diga que podemos tratar disso.
— Por favor, Gabriel. Na opinião de Shamron, ainda somos dois garotos tentando aprender a andar de bicicleta, e ele não consegue largar o selim. Além disso, é tarde demais. Ele já está aqui.
— Onde?
— Num apartamento seguro em Montmartre. Olga e eu vamos ficar aqui e aproveitar para nos conhecermos melhor. Shamron gostaria de dar uma palavrinha com você. Em particular.
— Sobre o quê?
— Não me disse. Afinal, sou apenas o chefe de Operações Especiais.
Navot olhou para o menu e franziu o sobrolho. Nada de frango de panela.
— Você sabe como eu gostava do frango de panela do Jo Goldenberg. A única coisa melhor que frango de panela era borscht.
CAPÍTULO 21
MONTMARTRE, PARIS
O prédio de apartamentos ficava na ponta mais a leste de Montmartre, ao lado do cemitério. Tinha um pátio interior bem cuidado e uma escadaria elegante, coberta por uma passadeira já gasta. O apartamento ficava no terceiro andar; da janela da sala de estar, mobilada com conforto, talvez tivesse sido possível ver a cúpula branca da Basílica do Sagrado Coração se Shamron não estivesse a tapar a vista. Ao ouvir a porta a abrir, virou-se lentamente e fitou Gabriel durante um longo momento, como se estivesse a ponderar se devia ordenar que lhe dessem um tiro ou que o atirassem para o meio de cães selvagens. Trazia um fato às riscas cinzento e uma dispendiosa e reluzente gravata de seda prateada. Dava-lhe o ar de um homem de negócios envelhecido da Europa Central, que ganhava dinheiro de maneiras suspeitas e nunca perdia ao bacará.
— Sentimos sua falta ao almoço, Ari.
— Eu não almoço.
— Nem quando vem a Paris?
— Eu detesto Paris. Especialmente no inverno.
Puxou uma cigarreira do bolso e abriu a tampa com o polegar.
— Pensei que tivesse finalmente parado de fumar.
— E eu pensei que você estivesse na Itália terminando um quadro.
Tirou um cigarro, bateu com a ponta na tampa três vezes e enfiou-o entre os lábios. E ainda te perguntas porque eu não me reformo.
O isqueiro soltou uma chama. Não era seu velho Zippo todo amassado, mas uma engenhoca vistosa prateada que, ao comando de Shamron, produziu pequena chama azul. O cigarro, no entanto, era da marca habitual. Sem filtro e turco, lançava um odor acre muito próprio de Shamron, como seu jeito de caminhar e a vontade inabalável de esmagar quem fosse tolo o bastante para se opor a ele. Descrever a influência de Ari Shamron na defesa e segurança do estado de Israel equivalia a explicar o papel desempenhado pela água na formação e manutenção da vida na Terra. Em muitos aspetos, Ari Shamron era o estado de Israel. Tinha combatido na guerra que conduziu à reconstituição de Israel e passara os sessenta anos seguintes a proteger o país de uma multidão de inimigos disposta a destruí-lo. A sua estrela tinha brilhado com maior intensidade em tempos de guerra e de crise. Foi nomeado diretor do Escritório pela primeira vez pouco depois do desastre da Guerra do Yom Kippur, em 1973, e manteve-se no cargo por mais tempo do que qualquer outro chefe antes ou depois dele. Quando uma sucessão de escândalos públicos arrastrou a reputação do Escritório até o nível mais baixo da sua história, Shamron viu a sua reforma ser interrompida e, com a ajuda de Gabriel, fez o serviço regressar à sua antiga glória. E, tal como a primeira, a segunda reforma foi involuntária. Em certos meios, equiparada à destruição do Segundo Templo. O papel de Shamron era agora o de uma eminência parda. Apesar de já não deter um posto ou título formal, continuava a ser a mão oculta que guiava as políticas de segurança de Israel. Não era invulgar entrar em casa dele à meia-noite e encontrar vários homens amontoados à volta da mesa da cozinha, em mangas de camisa e a gritarem uns com os outros através de uma nuvem densa de fumaça de cigarro e a pobre Gilah, a sua paciente mulher, sentada no quarto ao lado, com seu crochê e seu Mozart, à espera que os rapazes se fossem embora para poder ir tratar da louça. Conseguiste criar um belo alvoroço do outro lado do canal da Mancha, meu filho. Mas a verdade isso já se tornou sua especialidade.
Shamron exalou um fluxo de fumaça em direção ao teto, onde rodopiou à meia-luz, como nuvens de tempestade se acumulando.
— Segundo parece, seu amigo Graham Seymour luta para manter o emprego. Mazel tov, Gabriel. Nada mau para três dias de trabalho.
— Graham vai sobreviver. É o que ele faz sempre.
— E a que custo? — perguntou Shamron, mais a si mesmo do que a Gabriel. — Downing Street e os órgãos superiores do MI5 e do MI6 estão em rebuliço por suas ações. Fazem um burburinho desagradável, ameaçando suspender a cooperação conosco numa ampla série de matérias sensíveis. Precisamos deles neste momento. E você também.
— Por quê?
— Você não reparou, mas os mulás de Teerã estão prestes a finalizar a sua arma nuclear. Eu e o nosso novo primeiro-ministro partilhamos uma filosofia parecida. Não acreditamos em ficar sentadinhos enquanto planejam nossa destruição. E, quando há pessoas a falar em dizimar-nos da face da terra, preferimos levá-los à letra. Perdemos os dois as nossas famílias no primeiro Holocausto e não vamos perder o nosso país por causa de um segundo... pelo menos, sem darmos luta. Shamron tirou os óculos e inspecionou as lentes, à procura de impurezas. Se formos forçados a atacar o Irã, podemos esperar uma resposta feroz por parte do exército que eles têm no Líbano: o Hezbollah. Fique sabendo que uma delegação do Hezbollah fez recentemente uma viagem secreta a Moscou para umas comprinhas E não estavam à procura de bonecas russas nem de chapcas. Foram falar com seu velho amigo Ivan Kharkov. O que se diz por aí: Ivan vendeu três mil mísseis antitanque Komet instalados em veículos, bem como vários milhares de lança-granadas RPG-32. Segundo parece, também deu um desconto simpático por saber que eles usariam as armas contra nós.
— E temos certeza de que foi Ivan?
— Ouvimos o nome dele ser mencionado em várias interceptações.
Shamron pôs os óculos outra vez e examinou Gabriel minuciosamente durante uns momentos.
— Com adversários como Irã, Hezbollah e Ivan Kharkov, precisamos de amigos onde quer que os possamos encontrar, Gabriel. É por isso que precisamos estar de boas relações com os ingleses. Fez uma pausa. E é por isso que eu preciso que tu termines a tua lua-de-mel interminável e regresses a casa. Gabriel conseguia ver onde a conversa ia dar. Resolveu não facilitar ainda mais a tarefa a Shamron fazendo-lhe uma pergunta que o colocasse logo à sua mercê. Este, visivelmente irritado com o silêncio calculado, esborrachou o cigarro num cinzeiro que estava em cima da mesa de café.
— Há já vários anos que o nosso novo primeiro-ministro é um admirador seu. O mesmo não se pode dizer dos sentimentos dele em relação ao diretor atual do Escritório. Ele e Amos coexistiram brevemente no AMAN [serviço secreto militar israelense]. O ódio entre ambos era mútuo e mantém-se até hoje. Amos não vai sobreviver por muito tempo. Na semana passada, num jantar privado, o primeiro-ministro perguntou quem eu queria que fosse o próximo chefe do Escritório. Dei seu nome, claro.
— Já deixei mais do que claro que não estou interessado no cargo.
— Já ouvi esse discurso antes. É cansativo. E, mais importante ainda, não reflete a realidade atual. O estado de Israel enfrenta uma ameaça sem comparação com qualquer outra da sua história. Se ainda não reparou, não somos muito populares neste momento. a ameaça iraniana significa ainda maior instabilidade e potencial violência em toda a região. O que pretende fazer, Gabriel? Ficar sentado em sua quinta na Itália restaurando quadros para o Papa?
— Sim.
— Isso não é realista.
— Para você não, Ari, mas é isso que pretendo fazer. Dei minha vida ao Escritório. Perdi meu filho. Perdi uma mulher. Derramei o sangue de outros homens e o meu. Acabou-se. Diga ao primeiro-ministro para escolher outra pessoa.
— Ele precisa de você. Seu país precisa de você.
— Está sendo um pouquinho hiperbólico, não acha?
— Não, apenas honesto. O país perdeu a fé nos seus líderes políticos. A nossa sociedade está a começar a desgastar-se. O povo precisa de alguém em quem possa acreditar. Alguém em quem possa confiar. Alguém irrepreensível.
— Eu fui um assassino. Não me consideraria uma pessoa irrepreensível. Tu foste um soldado no campo de batalha secreto. Trouxeste justiça aos que não a podiam procurar eles mesmos. E perdi tudo ao longo do caminho. Quase me perdi a mim mesmo.
— Mas sua vida foi restaurada, como um de seus quadros. Tem a Chiara. Quem sabe? Talvez em breve tenha outra criança.
— Há alguma coisa que eu deva saber, Ari? O isqueiro de Shamron voltou a soltar uma chama. As suas palavras seguintes foram ditas não para Gabriel, mas para a cúpula da Basílica do Sagrado Coração, iluminada por projetores: — Venha para casa, Gabriel. Assuma o controle do Escritório. Nasceu para isso. Seu futuro ficou determinado quando sua mãe o chamou Gabriel.
— Isso foi exatamente o que disse quando me recrutou para a Operação Ira de Deus.
— Foi?
Shamron esboçou um ligeiro sorriso, recordando-se.
— Não admira que na época tivesse dito sim.
Há já vários anos que Shamron andava a fazer alusões a um cenário desse gênero, mas até então nunca o tinha afirmado de forma tão inequívoca. Gabriel, se fosse suficientemente tolo para aceitar a proposta, sabia perfeitamente como passaria o resto da vida. Na verdade, bastava-lhe olhar para o homem que tinha à sua frente. Comandar o Escritório tinha arruinado a saúde a Shamron e lançado o caos na sua vida familiar. O país considerava-o um tesouro nacional, mas, no que aos filhos dizia respeito, Shamron era o pai que nunca estivera presente. O pai que tinha faltado a festas de anos e aniversários. O pai que viajava em carros blindados, rodeado por homens armados. Não era a vida que Gabriel queria, tal como não pretendia infligi-la àqueles de quem gostava. Mas dizer agora essas palavras a Shamron não era uma opção. O melhor era dar a entender que havia ainda uma réstia de esperança e tirar proveito da situação. Shamron compreenderia isso. Seria exatamente assim que ele procederia se os papéis estivessem invertidos.
E quanto tempo eu teria até ter de assumir o controle? — Isso quer dizer que aceitas o cargo? — Não, quer dizer que vou pensar na proposta... com duas condições.
— Eu não gosto de ultimatos. A OLP aprendeu essa lição à bruta.
— Queres ouvir as minhas condições? — Se insistes.
— Número um: acabar o meu quadro.
Shamron fechou os olhos e assentiu com a cabeça.
— E a segunda? — Tirar Grigori Bulganov da Rússia antes que Ivan o mate. — Já receava que fosses dizer isso. Shamron deu uma última passa no cigarro e apagou-o, esmagando-o no cinzeiro lentamente. Vai ver se há café por aqui. Sabes que sou incapaz de discutir uma operação sem café.
CAPÍTULO 22
MONTMARTRE, PARIS
Gabriel deitou café dentro da cafeteira de êmbolo e fez um relatório a Shamron enquanto esperava que a água fervesse. Shamron estava sentado à mesinha, sem se mexer, em mangas de camisa e com os dedos das mãos, cheias de manchas de fígado, entrelaçados por baixo do queixo. Mexeu-se pela primeira vez para ler a carta que Grigori tinha deixado a Olga Sukhova em Oxford, e, passado um momento, para aceitar a sua primeira xícara de café. Estava a deitar-lhe açúcar quando anunciou o seu veredicto: É óbvio que Ivan está a planejar perseguir e matar toda a gente que esteve envolvida na operação contra ele. Primeiro, foi atrás de Grigori. Depois, da Olga. Mas a pessoa que ele realmente quer és tu.
— Então, o que queres que eu faça? Que passe o resto da minha vida escondido? Gabriel abanou a cabeça. Citando o grande Ari Shamron, não acredito em ficar sentadinho enquanto há gente a planejar a minha destruição. A mim, parece-me que temos escolha. Podemos viver com medo, ou podemos ripostar.
— E como sugeres que façamos isso? — Tratando Ivan e os agentes deles como se fossem terroristas. Acabando com eles antes que possam ir atrás de mais alguém. E, se tivermos sorte, pode ser que consigamos recuperar Grigori Por onde pensas começar? Gabriel abriu o fecho da pequena mala de fim-de-semana e tirou de lá uma fotografia ampliada de um grande Mercedes com duas pessoas no banco de trás. Shamron pôs uns óculos de leitura em meia lua já amolgados e examinou a imagem. A seguir, Gabriel colocou outra fotografia à frente dele: a que tinha sido anexada à carta de oxford. Grigori e Irina em tempos mais felizes...
— Suponho que saibamos como conseguiram que ele entrasse no carro tão tranquilamente disse Shamron. Partilhaste isso com os teus amigos ingleses? — Sou capaz de me ter esquecido enquanto estava a fugir do país, apenas um passo à frente de uma equipe de assassinos russos. Acompanhado pela desertora do Graham Seymour. Shamron examinou a fotografia minuciosamente durante uns momentos. Diz-me o que tens em mente, meu filho.
— Eu fiz uma promessa a Grigori na noite em que ele me salvou a vida. Pretendo cumprir essa promessa.
— Grigori Bulganov tem um passaporte britânico. Isso torna-o um problema britânico.
— O Graham Seymour deixou-me uma coisa mais do que evidente em Londres, Ari. No que diz respeito aos ingleses, Grigori é meu desertor e não deles. E se eu não o tentar recuperar, ninguém o fará.
Shamron bateu com as pontas dos dedos na fotografia.
— E achas que ela te pode ajudar? — Ela viu as caras deles. Ouviu-lhes as vozes. Se conseguirmos chegar a ela, pode ajudar-nos.
— Então e se ela não estiver disposta a ajudar-te? E se participou na operação de livre vontade? Suponho que tudo é possível...
— Mas...? Duvido disso muito seriamente. Com base no que Grigori me contou, a Irina detestava o FSB e tudo o que ele representava.
Foi uma das razões para o casamento deles se ter desfeito. E houve alguma outra razão? Ela tinha vergonha de Grigori por ele aceitar dinheiro de Ivan Kharkov. Chamava-lhe dinheiro sujo. Recusava-se a usá-lo. De repente, a Irina mudou de opinião. Os russos são capazes de ser muito persuasivos, Gabriel. Se há uma coisa que aprendi nesta vida, toda a gente tem um preço.
És capaz de ter razão, Ari. Mas não vamos poder ter certeza enquanto não lhe perguntarmos.
— Uma conversa? É isso que estás a sugerir? — Qualquer coisa desse gênero.
— E o que te leva a crer que eles não a mataram? — Liguei-lhe para o escritório hoje de manhã. Ela atendeu o telefone. Shamron bebeu um pouco de café e ponderou as implicações da afirmação de Gabriel.
— Deixa-me pôr uma coisa bem clara logo de início. Em nenhuma circunstância, tu ou qualquer outra pessoa que tenha feito parte da operação inicial contra Ivan poderão voltar a Moscou.
Nunca.
— Eu não faço qualquer tenção de voltar.
— Então, como vais organizar um encontro com ela? Gabriel revelou as linhas gerais do seu plano. Shamron rodopiou o isqueiro nas pontas dos dedos enquanto escutava: duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda.
— Tem uma falha. Estás a presumir que ela vai colaborar.
— Não estou a presumir nada.
— Terás de lidar com ela com cuidado até teres certeza onde reside a sua lealdade.
— E depois disso também.
— Calculo que gostaria de utilizar sua antiga equipe.
— Poupa tempo não termos de nos familiarizar com outras pessoas.
— E quanto dinheiro isso me vai custar?
Gabriel pôs mais café na xícara de Shamron e sorriu. O Velho tinha trabalhado para o Escritório numa altura em que era necessário contar todos os tostões e continuava a agir como se os fundos operacionais saíssem diretamente de seu próprio bolso.
— Cem mil devem ser suficientes.
— Cem mil!
— Ia pedir duzentos.
— Vou transferir os fundos para sua conta em Zurique amanhã. Mal tenha instalado uma base de operações, envio a equipe. E o que vai dizer a Amos?
— O mínimo possível.
— E aos ingleses?
— Deixa isso comigo. Vou informá-los de seus planos e deixar bem claro que compartilharemos todas e quaisquer informações que descobrir.
Shamron interrompeu-se por instantes. — Vai compartilhar sem problema, não vai, Gabriel?
— Sem dúvida.
— Para ser honesto, tenho certeza de que eles ficarão aliviados por tratarmos disso. A última coisa que Downing Street quer é outro confronto com os russos... não com a economia britânica ligada à máquina de respiração artificial. Estão mais interessados em garantir que o dinheiro russo continua a entrar nos bancos londrinos.
— Isso deixa-nos com um problema.
— Só um?
— Olga.
— Amanhã, devolvo-a aos ingleses e carrego suas culpas. Trouxe-lhes um presentinho comigo, uns zunzuns que temos ouvido no Líbano sobre uma possível conspiração terrorista em Londres.
— Pode falar dos zunzuns no Líbano, Ari, mas, lamento, Olga não volta já ao Reino Unido.
— Não pode deixar que fique aqui em Paris.
— Não pretendo. Vou levá-la comigo. Ela é realmente boa, sabe? Alguma coisa me diz que a minha estada em Londres não será agradável.
Shamron deu um gole no café.
— É melhor falar com Uzi. Não mencione a nossa conversa sobre o controle do Escritório. Ele não vai ficar encantado com a perspectiva de trabalhar para você.
— Eu nunca disse que aceitaria o cargo, Ari. Disse que pensaria nisso.
— Eu ouvi da primeira vez. Mas sei que não me enganaria, não em relação a uma coisa tão importante quanto esta.
— Preciso que me faça outro favor enquanto estiver em Londres.
— Qual é?
— Tive de deixar a gata da Olga com Julian Isherwood.
Shamron recomeçou a dar voltas com o isqueiro.
— Detesto gatos. E a única coisa que detesto mais do que os gatos que mentem.
CAPÍTULO 23
LAGO COMO, ITÁLIA
O lago de Como fica no canto nordeste da região da Lombardia, apenas a poucos quilômetros da fronteira com a Suíça. Com a forma de um Y invertido, encontra-se rodeado por gigantescos picos alpinos e polvilhado de cidadezinhas e aldeias pitorescas. Um dos lagos mais profundos da Europa, infelizmente também está entre os mais poluídos. Na verdade, um estudo recente levado a cabo por um grupo ambiental italiano concluiu que os níveis de batérias eram sessenta e oito vezes superiores ao limite máximo permitido para as pessoas poderem tomar banho em segurança. Os culpados seriam os sistemas de esgoto antiquados junto ao lago, que vertiam das quintas e vinhas próximas, e uma redução da pluviosidade e da acumulação de neve nas montanhas, atribuída, correta ou incorretamente, ao aquecimento global. Pressionado pela indústria local de turismo, o governo prometera tomar medidas vigorosas para impedir que o lago se perdesse para todo o sempre. A maioria dos italianos não estava propriamente à espera que acontecesse alguma coisa. O governo assemelhava-se bastante a um velhaco encantador a fazer promessas, mas não tão bom a cumpri-las.
No entanto, estar nos terraços da Vila Teresa era o mesmo que esquecer pura e simplesmente que as magníficas águas do lago de Como se encontravam sequer afetadas. Na verdade, em certas alturas do dia e com a luz e as condições meteorológicas apropriadas, Podia até imaginar-se que não havia nenhuma coisa chamada aquecimento global, que não havia nenhuma guerra no Iraque nem no Afeganistão nenhuma crise financeira mundial, nem qualquer possível ameaça a pairar sobre o círculo de montanhas protetoras. Construída no século XVIII por um rico comerciante milanês, a villa ficava localizada na sua própria pequena península. Tinha três andares, num tom laranja-escuro, e apenas se podia lá chegar de barco um fato que Herr Heinrich Kiever, o chefe de operações da Matrix Technologies, uma empresa sediada em Zug, na Suíça, considerava altamente apelativo.
Segundo parecia, Herr Kiever andava à procura de um retiro isolado onde seus empregados pudessem terminar o projeto no qual trabalhavam, sem distrações e num cenário que inspirasse a grandeza. Depois de uma pequena visita, declarou que a Vila Teresa era a imagem da perfeição. Os contratos foram assinados durante o café, na pequena cidade de Laglio, local de residência de uma estrela de cinema americana cuja presença, extremamente publicitada, em Como era, na opinião de muitos dos habitués de longa data, a pior coisa que acontecera ao lago desde a invenção do motor a gasolina. Herr Kiever pagou o valor total do arrendamento com um cheque visado, levantado no seu banco em Zurique. A seguir, informou o agente imobiliário de que necessitava de privacidade total, o que significava nada de arrumadeiras, cozinheiros ou telefonemas de acompanhamento da agência. Se houvesse algum problema, explicou, o agente seria o primeiro a saber.
Herr Kiever instalou-se na villa nessa mesma tarde, juntamente com duas mulheres. Uma era uma morena estonteante, com um rosto que parecia um ícone russo; a outra, uma italiana atraente que vinha acompanhada por dois guarda-costas iguais. Sem que tal chegasse ao conhecimento da agência imobiliária, Herr Kiever e os guarda-costas tiveram uma discussão curta mas acalorada antes de efetuarem uma inspeção meticulosa à propriedade, à procura de microfones ocultos ou de outros equipamentos de escuta. Convencidos de que a vila se encontrava segura, ocuparam os respetivos quartos e esperaram pela chegada dos restantes hóspedes. Ao todo, eram seis, quatro homens e duas mulheres, e não vinham de Zug, mas sim de um anônimo prédio do Boulevard King Saul, em Tel Aviv. Tinham viajado para a Europa em separado, usando nomes falsos e munidos de passaportes falsos. Três aterrissaram em Roma e fizeram a viagem de carro para norte; três aterrissaram em Zurique e seguiram de carro para sul. Por um qualquer milagre, chegaram ao local de desembarque privativo apenas com cinco minutos de intervalo. Herr Kiever, que estava à espera deles para lhes dar as boas-vindas, declarou que isso era um bom presságio. Os seis viajantes coibiram-se de comentar. Já tinham navegado sob o comando de Herr Kiever e sabiam que as águas mais calmas davam muitas vezes lugar a mares fustigados por tempestades, com pouco ou nenhum aviso.
Quem também o sabia era o mais recente elemento a juntar-se a este ilustre bando de agentes: Olga Sukhova. Conheciam-na de nome e reputação, claro, mas nenhum deles se encontrara antes com a afamada jornalista russa. Gabriel encarregou-se das apresentações de uma forma deliberadamente evasiva, como só um veterano do mundo da espionagem seria capaz de fazer. Forneceu nomes próprios a Olga, mas não fez qualquer referência a cargos atuais ou façanhas profissionais anteriores. Para Gabriel, os seis indivíduos eram folhas em branco, ferramentas que lhe tinham sido emprestadas por um poder superior.
Aproximaram-se dela dois a dois e apertaram-lhe a mão cuidadosamente.
As mulheres, Rimona e Dia, foram as primeiras. Rimona tinha trinta e tal anos e cabelo pelos ombros, da cor do arenito de Jerusalém. Major do exército com funções no IDF1, trabalhara como analista no AMAN durante vários anos, tendo sido depois transferida para o Escritório, onde fazia atualmente parte de uma força especial dedicada ao Irã. Dina, elegante e de cabelo escuro, era uma especialista do Escritório em terrorismo que conhecera pessoalmente os seus horrores. Em Outubro de 1994, estava na Praça Dizengoff, em Tel Aviv, quando um terrorista do Hamas detonou o seu cinto suicida a bordo de um ônibus da carreira número 5. Morreram vinte e uma pessoas nesse dia, incluindo a mãe de Dina e duas das suas irmãs. A própria Dina tinha ficado gravemente ferida na perna e ainda coxeava ligeiramente. Seguiram-se dois homens, dos seus quarenta anos, Yossi e Yakov.
Alto e com pouco cabelo, Yossi trabalhava atualmente no Escritório de Investigação da Rússia, como o Mossad se referia a sua divisão de análise de dados. Tinha lido os clássicos no All Souls College, em Oxford, e falava com um sotaque britânico pronunciado. Yaakov, um homem compacto, com cabelo preto e faces bexigosas, tinha o ar de quem nunca perderia tempo com livros e conhecimento. Ao longo de muitos anos, exercera funções no Escritório de Assuntos Árabes do Shin Bet, os serviços de segurança internos de Israel, recrutando espiões e informantes na Cisjordânia e em Gaza. Tal como Rimona, tinha sido transferido recentemente para o Escritório e estava naquele momento supervisionando agentes no Líbano.
A seguir, veio uma dupla de contrários com um atributo em comum. Falavam ambos fluentemente o russo. O primeiro era Eli Lavon. Uma figura pequena e delicada, com cabelo grisalho fino e olhos castanhos inteligentes, Lavon era considerado o melhor artista de vigilância de rua que o Escritório produzira. Tinha trabalhado lado a lado com Gabriel em inúmeras operações e era o mais próximo que Gabriel tinha de um irmão. Tal como Gabriel, os laços que uniam Lavon ao Escritório eram tênues. Professor de Arqueologia Bíblica na Universidade Hebraica de Jerusalém, podia ser habitualmente encontrado enterrado até a cintura em valas de escavações, vasculhando no meio do pó e dos artefatos do passado antigo de Israel. Duas vezes por ano, dava palestras sobre técnicas de vigilância na Academia, e não parava de ver sua aposentadoria interrompida por Gabriel, que nunca se sentia verdadeiramente confortável no terreno sem o lendário Eli Lavon dando proteção.
A figura ao lado de Lavon tinha olhos da cor das geleiras, o rosto pálido com ossos delicados. Nascido em Moscou, filho de dois cientistas judeus dissidentes, Mikhail Abramov fora para Israel na adolescência, a poucas semanas do colapso da União Soviética. Descrito uma vez por Shamron como “o Gabriel sem consciência”, juntara-se ao Escritório após ter sido membro das forças especiais Sayeret Matkal, a serviço das quais matara vários líderes dos terroristas do Hamas e da Jihad Islâmica palestina. Mas os seus talentos não se limitavam às armas; no Verão anterior, em Saint-Tropez, infiltrara-se no séquito de Ivan Kharkov, juntamente com uma agente da CIA chamada Sarah Bancroft. De todos os que se encontravam reunidos na vila, Mikhail tinha sido o único a ter o distinto desprazer de partilhar efetivamente uma refeição com Ivan. Mais tarde, admitiu que fora a experiência mais aterrorizadora da sua vida profissional e isto vindo de um homem que perseguira terroristas ao longo das terras bravias dos Territórios Ocupados.
Nos corredores e nas salas de reunião do Boulevard King Saul, estas seis pessoas eram conhecidas pelo nome de código de “Barato” a palavra hebraica para relâmpago —, devido à capacidade de se reunirem e atacarem rapidamente. Tinham atuado em conjunto, muitas vezes em condições de estresse insuportável, em campos de batalha secretos que se estendiam de Moscou a Marselha, passando pela ilha particular caribenha de São Bartolomeu. Normalmente, comportavam-se de uma maneira altamente profissional e com poucas irrupções de egotismo ou mesquinhez. De vez em quando, um assunto aparentemente trivial, como a atribuição dos respetivos quartos, podia desencadear explosões de infantilidade e instantes de mau humor. Incapazes de resolverem por si mesmos a disputa, voltavam-se para Gabriel, o soberano sábio, que impunha unilateralmente um acordo e arranjava forma de não satisfazer ninguém, O que, bem vistas as coisas, todos acabavam por considerar justo.
Depois de estabelecerem uma ligação segura com a Avenida Rei Sal, juntaram-se para um jantar de trabalho. Comeram como uma família que voltava a encontrar-se, coisa que em muitos aspetos eram, embora a sua conversa fosse mais circunspecta do que o habitual, devido à presença de um estranho. Pelos seus olhares inquiridores, Gabriel conseguia perceber que tinham ouvido rumores em Tel Aviv. Rumores de que Amos já pertencia ao passado. Rumores de que Gabriel estaria prestes a ocupar o lugar que lhe pertencia por direito, na suíte do diretor na Boulevard King Saul. Apenas Rimona, sobrinha de Shamron por afinidade, se atreveu a perguntar se era verdade. Fê-lo num sussurro e em hebraico, para que Olga não pudesse compreender. Quando Gabriel fingiu não ouvir, ela deu-lhe um pontapé à socapa no tornozelo, uma admoestação que só alguém da família de Shamron se atreveria a tentar.
Mudaram-se para o salão depois do jantar e foi aí que, em frente de uma lareira a crepitar, Gabriel levou a cabo o primeiro briefing formal da operação. Grigori Bulganov, russo que salvara a vida a Gabriel por duas vezes, tinha sido raptado por Ivan Kharkov e levado para a Rússia, onde estava, com toda a probabilidade, a ser submetido a um interrogatório severo que terminaria com a sua execução. Iriam trazê-lo de volta, disse Gabriel, e dar cabo dos agentes de Ivan. E começariam a sua missão com uma extração e um interrogatório realizados por eles próprios.
Noutro país, noutra agência de serviços secretos, uma proposta desse gênero poderia ter sido recebida com expressões de incredulidade ou até mesmo de gozo. Mas não no Escritório. Aí, havia uma palavra para esse tipo de pensamento fora do convencional: meshuggah, que em hebraico significava louco ou insensato. No Escritório, não havia ideia meshuggah demais. Às vezes, quanto mais meshuggah, melhor. Era um estado de espírito; era o que tornava o Escritório grande.
E havia ainda outra coisa que os distinguia dos outros serviços: a liberdade que os agentes de categoria inferior tinham para fazer sugestões e até para colocar em causa as suposições dos seus superiores. Gabriel não se sentiu minimamente ofendido quando a sua equipe se lançou numa rigorosa decomposição do plano. Embora fossem uma mistura eclética — na verdade, em relação à maioria deles, a ideia nunca fora serem agentes operacionais —, tinham levado a cabo algumas das operações mais intrépidas e perigosas da história do Escritório. Tinham assassinado e raptado, cometido fraudes, roubos e falsificações. Eram os segundos olhos de Gabriel, a rede de segurança de Gabriel.
A discussão durou outra hora. Quase sempre, foi conduzida em inglês, para benefício de Olga, mas por vezes recorria-se ao hebraico, por razões de segurança ou por não haver mais nenhuma linguagem que servisse. Ocasionalmente, havia instantes em que o mau feitio aflorava ou se ouvia um ou outro insulto, mas, na maior parte do tempo, o tom manteve-se cortês. Quando foi resolvida a última questão, Gabriel finalizou a sessão e dividiu a equipe em vários grupos de trabalho. Yaakov e Yossi ficariam incumbidos de adquirir os veículos e verificar a segurança dos percursos. Dina, Rimona e Chiara preparariam toda a organização em termos dos disfarces que serviriam de cobertura e criariam o necessário conjunto de sites da Internet, brochuras e convites. Os membros que falavam russo, Mikhail e Eli Lavon, encarregar-se-iam do interrogatório propriamente dito, com Olga a servir de consultora. Gabriel não tinha nenhuma tarefa específica, a não ser supervisionar tudo e preocupar-se. Era apropriado, pensou, pois tratava-se de um papel que Shamron já tinha desempenhado muitas vezes.
À meia-noite, depois de a mesa ter sido levantada e a louça lavada, subiram as escadas em direção aos quartos, uns atrás dos outros, para dormirem algumas horas. Gabriel e Chiara, sozinhos na suíte principal, fizeram amor silenciosamente. A seguir, ficaram deitados ao lado um do outro, na escuridão, com Gabriel a olhar fixamente para o teto e Chiara a passar-lhe o dedo suavemente pela face.
Onde estás? — perguntou ela.
Moscou — respondeu ele.
E o que estás a fazer? A observar a Irina.
E o que vês? Ainda não tenho bem certeza.
Chiara ficou em silêncio por um momento.
Ficas mais contente do que nunca quando eles estão por perto, Gabriel. Talvez o Uzi tivesse razão. Talvez o Escritório seja a única família que possuis.
Tu és a minha família, Chiara.
Tem certeza de que queres deixá-los? Tenho certeza.
Ouvi dizer que Shamron tem outros planos.
Costuma ter sempre.
— E quando vai dizer-lhe que não vai aceitar o cargo?
— Assim que tirar Grigori dos russos.
— Prometa uma coisa, Gabriel. Prometa que não vai se aproximar demais de Ivan. Beijou-o. — Ele gosta de quebrar coisas bonitas.
CAPÍTULO 24
BELLAGIO, ITÁLIA
A Northern Italian Travel Association [Associação de Agências de Viagens do Norte da Itália], ou NITA, ocupava um conjunto de pequenos escritórios numa exígua via de pedestre na cidade de Bellagio ou, pelo menos, era isso que alegava. A missão que afirmava ter era a de encorajar o turismo no Norte da Itália, promovendo agressivamente a beleza e o estilo de vida incomparáveis da região, com os seus esforços a direcionarem-se em especial aos agentes de turismo e escritores de viagens de outros países. Um site da associação apareceu on-line pouco tempo depois de a equipe de Gabriel se ter reunido na margem oposta do lago, na Villa Teresa. Assim como uma bonita brochura, impressa não na Itália mas sim em Tel Aviv, e um convite para o terceiro seminário e mostra anual de Inverno no Grand Hotel Villa Serbelloni algo de estranho, uma vez que ninguém do Serbelloni teria sido capaz de se recordar de um primeiro seminário e mostra anual, ou de um segundo.
Faltando apenas setenta e duas horas para o início da conferência, foi com grande consternação que os organizadores foram informados de um cancelamento de última hora e começaram à procura de um substituto. O nome de Irina Bulganova, da Galaxy Travel, na Rua Tverskaya, em Moscou, surgiu rapidamente. Fosse a NITA uma associação de agências de viagens igual às outras e talvez tivesse havido dúvidas em relação à possibilidade de a Sra. Bulganova conseguir viajar para Itália assim tão de repente, No entanto, a NITA possuía meios e métodos a que nem as organizações mais sofisticadas tinham acesso. Entraram no computador dela e inspecionaram a sua agenda de compromissos. Leram-lhe os e-mails e ouviram os telefonemas dela. Os colegas que se encontravam em Moscou seguiram a Sra. Bulganova para todo o lado e até lhe espreitaram para o passaporte para confirmar que estava tudo em ordem.
As investigações efetuadas revelaram muito sobre o estado confuso das suas relações pessoais. Descobriram, por exemplo, que a Sra. Bulganova tinha deixado o namorado recentemente e pelas razões mais vagas; descobriram que andava com dificuldades em dormir à noite e que preferia a música à televisão; descobriram que tinha feito um telefonema para o quartel-general do FSB não há muito tempo, solicitando informações sobre o paradeiro do ex-marido, e que perante as suas perguntas se tinham livrado dela de uma forma seca. Vendo bem as coisas, acreditavam que uma mulher na posição da Sra. Bulganova pudesse apreciar com entusiasmo a oportunidade de fazer uma visita a Itália com todas as despesas pagas. E qual o moscovita que não apreciaria? No dia em que foi enviado o convite, a previsão meteorológica alertava para fortes nevascas e temperaturas que podiam atingir os vinte graus negativos. Foi enviado via e-mail e assinado por nada mais, nada menos do que Veronica Ricci, diretora-geral da NITA. O convite começava com um pedido de desculpas pela natureza tardia da proposta e concluía prometendo viagens de avião em primeira classe, alojamento num hotel de luxo e cozinha italiana gourmet. Se a Sra. Bulganova decidisse comparecer — e a NITA mantinha a fervorosa esperança de que o fizesse —, seguir-se-iam um pacote informativo, bilhetes de avião e uma cesta de boas-vindas. O e-mail esquecia-se de referir que os referidos materiais já se encontravam em Moscou e que seriam entregues por uma empresa transportadora que não existia. Tal como não mencionava o fato de que a senhora Bulganova permaneceria sob vigilância para haver a garantia de não estar a ser seguida por agentes de Ivan Kharkov. Restava apenas o pedido: que respondesse o mais depressa possível, de modo a que fossem tomadas outras providências, no caso de ela não poder comparecer.
Felizmente, tal contingência não viria a ser necessária, pois exatamente sete horas e doze minutos após o e-mail ter sido enviado, chegou uma resposta de Moscou. Na Vila Teresa, os festejos foram ruidosos mas curtos. Irina Bulganova viajaria para Itália. E havia muito trabalho para fazer.
Em todas as operações, gostava Shamron de dizer, há um ponto de obstrução. Se for ultrapassado com sucesso, a operação pode navegar facilmente em direção ao mar aberto. Mas basta haver um desvio no rumo, mesmo que seja de poucos graus, e é possível que ela fique encalhada num banco de areia ou, pior ainda, que se desfaça por completo contra as rochas. Para esta operação, o ponto de obstrução era nada mais, nada menos do que a própria Irina. Naquele preciso momento, continuavam sem saber se ela era uma dádiva dos Céus ou se lhes poderia trazer o Diabo até a porta de casa. Se soubessem lidar bem com ela, a operação poderia ficar na história como uma das melhores da equipe. Se cometessem algum erro, era possível que ela pudesse causar a morte de todos eles. Ensaiaram tudo como se as suas vidas dependessem disso.
O russo de Mikhail era superior ao de Eli Lavon e, por isso, seria Mikhail, apesar da sua juventude, quem iria fazer de interrogador Principal. Lavon, abençoado com uma cara amável e uma aparência nada ameaçadora, desempenharia o papel de protetor e sábio. A única variável, claro, era a própria Irina. Olga ajudou-os a prepararem-se para qualquer contingência. Seguindo as instruções de Gabriel, mostrava-se aterrorizada num minuto e beligerante no outro. Amaldiçoou-os e insultou-os sem parar, desatou a chorar, fez voto de silêncio e, por uma vez, chegou mesmo a atirar-se a eles numa fúria cega. Chegados à última noite, Mikhail e Lavon tinham Plena confiança de que estavam preparados para toda e qualquer versão de Irina que pudessem encontrar. Tudo aquilo de que precisavam agora era da estrela do espetáculo.
Mas seria ela um peão de Ivan ou uma vítima dele? Era a questão que os atormentava desde o início e que, ao longo daquela última e longa noite de espera, ocupou primeiramente seus pensamentos. Gabriel deixou claro que acreditava em Irina, mas era o primeiro a admitir que sua fé tinha de ser analisada segundo o prisma do seu bem conhecido apreço pelas mulheres russas. As mulheres, dizia vezes sem conta, eram a única esperança da Rússia. Havia outros membros da equipe, Yaakov em particular, que adoptavam uma visão bastante menos otimista daquilo que os aguardava. Yaakov tinha visto a raça humana no seu pior e temia que estivessem prestes a acolher um dos agentes de Ivan no seu seio. O fato de ela ainda continuar viva, argumentava, era a prova da sua perfídia. “Se Irina fosse boa, Ivan já a teria matado”, dizia. “É isso que Ivan faz.” Com a ajuda dos agentes em Moscou e no Boulevard King Saul, mantiveram os preparativos finais de Irina sob vigilância apertada, à procura de sinais de deslealdade. Na véspera da sua viagem, acompanharam um par de telefonemas dela, para uma amiga de infância, o outro para a mãe. Ouviram o despertador tocar a uma hora imprópria, 2h30 da madrugada, e voltaram a ouvi-lo disparar dez minutos mais tarde, enquanto ela tomava banho. E, às três e cinco, vislumbraram uma amostra do seu mau feitio quando ligou para a empresa de limusines para lhes dizer que o carro ainda não tinha chegado. Mikhail, que estava a ouvir a gravação da chamada através da ligação segura, recusou-se a traduzi-la para o resto da equipe. A não ser que Irina fosse uma atriz premia da, disse ele, a fúria dela era verdadeira.
Acabou que o carro se atrasou apenas quinze minutos, coisa espantosa para fim de janeiro, e ela chegou ao Aeroporto Sheremetyevo às 3h45. Shmuel Peled, agente da base de Moscou, viu-a de relance quando saiu do carro em fúria apressada e entrou no terminal. O avião, o voo 606 da Austrian Airlines, partiu na hora prevista e chegou ao Aeroporto Schwechat, em Viena, às 6h47 locais. Dina, que pegara um avião para a capital austríaca no dia anterior, estava à espera quando ela saiu da serpentina. Seguiram para o portão de embarque, separadas por uma distância considerável, e instalaram-se nos seus lugares de primeira classe, na terceira fila — Irina no 3C, junto ao corredor, e Dina no 3A, à janela, que, ao aterrissarem em Milão, enviou uma mensagem a Gabriel. A estrela tinha chegado. O espetáculo estava prestes a começar.
Assim que as portas do avião se abriram, Irina já estava outra vez em movimento, a caminho da área de controle de passaportes, num ritmo rápido e decidido, próprio de uma parada militar, e com o queixo levantado, em jeito de desafio. Como a maior parte dos russos, tinha pavor a encontros com homens de uniforme e apresentou os seus documentos de viagem como se estivesse preparada para o combate. Após ter sido autorizada a entrar na Itália sem quaisquer demoras, dirigiu-se para o hall das chegadas, onde se encontrava Chiara, segurando um letreiro que dizia:
NITA DÁ AS BOAS-VINDAS A IRINA BULGANOVA, DA GALAXY TRAVEL.
Lior e Motti, os sempre presentes guarda-costas de Chiara, passavam o tempo num quiosque de informações ali perto, mas sem nunca tirarem os olhos de cima da sua presa.
Ninguém pareceu reparar em Dina no momento em que esta avançou para o exterior do aeroporto, para a área de recolha de passageiros, onde Gabriel se encontrava, parado à porta de um luxuoso miniônibus alugado e com um fato preto de motorista e uns óculos de sol muito grandes. Atrás dele, com dois carros a separá-los, Yaakov estava sentado ao volante de um grande Lancia, a fazer de conta que lia as páginas de desporto do Corriere della Sera. Dina sentou-se no banco da frente e ficou a ver Irina a entrar no miniônibus. Depois de as inspecionar rapidamente, à procura de transmissores que permitissem indicar a sua localização, Gabriel colocou as malas dela na bagageira.
A viagem demorou noventa minutos. Tinham-na ensaiado por diversas vezes e, chegados àquela manhã, podiam tê-la feito de olhos fechados. Após saírem do aeroporto, seguiram para nordeste, atravessando uma série de cidadezinhas e aldeias, até a cidade de Como. Se o Hotel Villa Serbelloni fosse o seu verdadeiro destino, teriam evitado o lago e o seu Y invertido e avançado diretamente Para Bellagio. Em vez disso, seguiram pela parte mais ocidental da linha da costa, até Tremezzo, e pararam numa doca privada. Esperava-os um barco, com Lior ao leme e Movi na popa, que transportou Chiara e Irina lentamente, ao longo das águas tranquilas da enseada e até a grande villa laranja-escura, localizada na ponta da sua própria península. No imponente foyer de entrada havia um homem com olhos da cor das geleiras e um rosto pálido de ossos delicados.
— Bem-vinda à Itália — disse ele a Irina num russo perfeito. — Posso ver seu passaporte, por favor?
CAPÍTULO 25
LAGO COMO, ITÁLIA
Existe uma gravação áudio do que se passou a seguir. Tem um minuto e doze segundos de duração e encontra-se até hoje nos arquivos do Boulevard King Saul, onde é considerado obrigatório ouvi-la, pelas lições em termos das artes do ofício e, igualmente em grande escala, pelo seu puro valor de entretenimento. Gabriel avisara-os em relação ao temperamento de Irina, mas nada os podia ter preparado para a ferocidade da sua reação. Mais tarde, Eli Lavon, o arqueólogo bíblico, descreveria esses acontecimentos como uma das batalhas mais épicas da história do povo judeu.
Gabriel não esteve presente para assistir. Nesse momento, ia a atravessar a enseada de barco e escutando tudo por um minifone. Ao ouvir o que julgou ser uma jarra de cristal se estilhaçando, apressou-se na direção da villa e espiou a sala de jantar. Nessa altura, a escaramuça já terminara e tinha sido declarada uma cessação temporária das hostilidades. Irina estava sentada num dos lados da mesa retangular, respirando com dificuldade devido ao esforço exercido, com Yaakov e Rimona segurando-a pelo braço. Yossi estava em pé, mais afastado, com a camisa rasgada e quatro arranhões paralelos nas costas da mão. Dina estava junto dele, face esquerda ardendo e vermelha, como se tivesse acabado de ser esbofeteada o que acontecera de fato. Mikhail estava bem em frente a Irina, do outro lado da mesa e de rosto inexpressivo. Tinha Lavon a seu lado, um anjo apaziguador, olhos postos nas mãos minúsculas, como se tivesse achado todo aquele lamentável espetáculo profundamente constrangedor.
Gabriel escapuliu discretamente para a biblioteca, onde Olga Sukhova, antiga jornalista socialmente engajada e atual membro de pleno direito da equipe, estava sentada diante de um monitor de vídeo e fones na cabeça. Gabriel sentou-se ao lado dela e colocou um segundo par de fones, olhando depois para a tela. Mikhail estava agora a folhear as páginas do passaporte de Irina, lentamente, com uma insolência burocrática. Pôs o documento em cima da mesa e olhou fixamente para Irina durante uns momentos, antes de recomeçar por fim a falar em russo. Gabriel destapou um ouvido e pôs-se a escutar a tradução de Olga assim que o interrogatório teve início.
— Seu nome é Irina Iosifovna Bulganova, nascida em Moscou, em dezembro de 1965?
— Correto.
— Irina Iosifovna Bulganova, ex-mulher de Grigori Bulganov, do Serviço Federal de Segurança da Federação Russa?
— Correto.
— Irina Iosifovna Bulganova, traidora e espiã a serviço dos inimigos da Federação Russa?
— Não sei do que está falando.
— Eu acho que sabe. Acho que sabe exatamente do que estou falando.
Olga tirou os olhos do monitor.
—Ele não devia ser tão bruto com ela. A pobre mulher está aterrorizada.
Gabriel não deu resposta. Mais lá para a frente, talvez Mikhail pudesse aliviar um pouco a pressão, mas não naquele momento. Primeiro, precisavam de respostas para umas quantas perguntas. Seria ela um peão de Ivan ou uma vítima dele? Tinha sido enviada pelos céus ou haveria um agente do diabo entre eles?
CAPÍTULO 26
LAGO COMO, ITÁLIA
— Quem é você? — perguntou ela.
— Se quiser me chamar de alguma coisa, pode usar Yevgeny.
— E para quem trabalha?
— Isso não é importante.
— É russo?
— Mais uma vez, isso não é importante. O que é importante é seu passaporte. Enquanto cidadã da Federação Russa, não pode entrar no Reino Unido sem antes obter visto. Por favor, explique como conseguiu entrar no país sem esse visto no passaporte.
— Nunca na vida estive no Reino Unido.
— Está mentindo, Irina Iosifovna.
— Estou dizendo a verdade. Você mesmo disse. Russos precisam de visto para visitar o Reino Unido. Meu passaporte não tem nenhum visto. Portanto, é óbvio que eu nunca estive lá.
— Mas foi a Londres no início deste mês e participou do sequestro de seu ex-marido, o coronel Grigori Nikolaevich Bulganov, do Serviço Federal de Segurança da Federação Russa.
— Isso é completamente ridículo.
— Manteve contato com seu ex-marido depois de ele desertar para o Reino Unido?
Ela hesitou por uns instantes e, a seguir, respondeu com sinceridade: — Mantive.
— Discutiram a possibilidade de reatar o romance. De voltarem a se casar, talvez.
— Você não tem nada a ver com isso.
— Tenho tudo a ver com isso. Agora, responda: Grigori queria que fosse para Londres?
— Eu nunca disse que concordava.
— Mas falaram sobre isso.
— Eu me limitei a ouvir.
— Seu marido é um desertor, Irina Iosifovna. Manter contato com ele é um ato de traição ao Estado.
— Grigori me procurou. Eu não fiz nada de errado.
Ela resistia. Gabriel preparara-se para este cenário. Gabriel preparara-se para tudo. Deem uma chicotada nela, pensou. Façam com que entenda que não estão para brincadeiras.
Mikhail colocou três folhas em cima da mesa.
— Onde estava nos dias dez e onze de janeiro?
— Estava em Moscou.
— Deixe-me perguntar mais uma vez. Pense bem antes de responder. Onde estava nos dias dez e onze de janeiro?
Irina ficou calada. Mikhail apontou para a primeira folha. — O calendário que tem em seu computador não mostra entrada alguma nesses dias. Nenhuma reunião, nenhum almoço de trabalho, nenhum telefonema com clientes. Absolutamente nada.
— Janeiro é sempre um mês de pouco movimento. Este ano, com a recessão...
Mikhail interrompeu-a abruptamente com um gesto seco da mão e bateu de leve na segunda folha com as pontas dos dedos. — Seus registros telefônicos indicam que recebeu mais de trinta chamadas para o celular, e não fez nenhuma.
Tendo apenas silêncio como resposta, pôs o dedo em cima da terceira folha. — O seu endereço de e-mail mostra um padrão semelhante: muitos e-mails recebidos, nenhum enviado. É capaz de explicar isto? Não.
Mikhail tirou uma pasta de arquivo da mala de diplomata que tinha aos pés. Abrindo-a com uma solenidade funérea, tirou dela uma única fotografia: o coronel Grigori Bulganov, a entrar num grande Mercedes em Londres, na Harrow Road, às 18h12 da tarde de onze de Janeiro. Pegou-lhe pelas pontas cuidadosamente, como se fosse uma prova crucial que precisasse de ser preservada, e virou-a para que Irina a pudesse ver. Ela conseguiu manter um silêncio estoico, mas a sua expressão alterara-se. Gabriel, olhando fixamente para a cara dela no monitor, viu que se tratava de medo. Um medo recordado, pensou, como o medo próprio de um trauma de infância. Mais um empurrãozinho e tê-la-iam na mão. Simultaneamente, Mikhail apresentou uma segunda fotografia, uma ampliação da primeira. Estava cheia de grão e tinha muitas sombras, mas não deixava dúvidas em relação à identidade da mulher sentada no banco de trás, mais perto da janela.
— Isto faz de você cúmplice de um crime muito grave cometido em solo britânico.
Os olhos de Irina percorreram a sala rapidamente, como se procurassem uma saída. Mikhail voltou a guardar as duas fotografias na mala de diplomata com toda a calma.
— Vamos começar de novo, sim? E, desta vez, a senhora vai responder às minhas perguntas dizendo a verdade. Não tem visto de entrada no Reino Unido, válido ou não, no seu passaporte. Como conseguiu entrar no país?
A resposta dela veio de forma tão baixa, que foi quase inaudível. Na verdade, Mikhail e Lavon não tinham certeza do que tinham acabado de ouvir. No entanto, não havia dúvida no posto de escuta na biblioteca, que recebia, sem nenhuma interferência, o sinal de transmissão vindo de um par de microfones ultrassensíveis, escondido na mesa a centímetros do lugar de Irina.
Olga olhou para Gabriel e disse: — Nós a pegamos.
Mikhail olhou para Irina e pediu que falasse mais alto.
— Usei um passaporte diferente — repetiu ela, desta vez mais alto.
— Com isso, quer dizer que estava usando outro nome?
— Correto.
— E quem lhe deu esse passaporte?
— Disseram que eram amigos de Grigori. Disseram que tinha de utilizar um passaporte falso para a minha própria proteção.
— E por que não me contou isso da primeira vez?
— Disseram que eu nunca poderia falar do assunto com ninguém. Disseram que me matariam.
Uma lágrima escorreu por sua face. Limpou-a energicamente, afastando-a como se se sentisse envergonhada com a sua tristeza.
— Ameaçaram matar minha família inteira. Não são humanas, essas pessoas. São animais. Por favor, tem de acreditar em mim. Não foi Mikhail quem respondeu mas sim a figura sentada à sua esquerda, até então em silêncio. A alminha bondosa, com cabelo fino e um fato amarrotado. O anjo apaziguador, que agora segurava uma carta nas mãos minúsculas. A carta deixada por Grigori Bulganov em Oxford, duas semanas antes do seu desaparecimento. Em seguida, entregou a carta a Irina, como se estivesse a oferecer uma bandeira dobrada à mulher de um soldado caído em combate. Ao lê-la, as mãos dela tremiam.
Receio que a minha vontade de estar outra vez junto da minha ex-mulher a possa ter colocado em perigo. Se os seus agentes em Moscou pudessem ver como ela está, de tempos a tempos, ficaria agradecido.
— Não achamos que ele esteja morto — afirmou Lavon.
Ainda não. Mas temos de trabalhar rapidamente para o conseguirmos recuperar.
— Quem são os senhores?
— Somos amigos, Irina. Pode confiar em nós.
— E o que querem de mim?
— Conte-nos como eles fizeram a coisa. Conte-nos como eles levaram seu marido. E não deixe nada de fora. Pode ficar surpresa, mas, às vezes, os detalhes menores são os mais importantes.
CAPÍTULO 27
LAGO COMO, ITÁLIA
Ela pediu chá e autorização para fumar. Yossi e Dina trataram do chá; Lavon, ele próprio um fumador inveterado, acompanhou-a num cigarro. Com a ligação entre ambos cimentada pelo tabaco partilhado, ela rodou o corpo uns centímetros e levou a mão ao lado da cara, como uma pala, excluindo assim Mikhail do seu campo de visão. Para Irina, Mikhail já não existia. E, por isso, Mikhail não precisava de saber que o homem que a tinha enganado e levado a participar no sequestro do marido a contatara pela primeira vez no dia 19 de Dezembro. Lembrava-se da data com precisão por ser o seu aniversário. Um aniversário que tinha em comum com Leonid Brejnev, o que, durante a sua infância, fora uma grande honra na escola.
Era uma segunda-feira, recordou ela, e os seus colegas tinham insistido em levá-la a tomar champanhe e comer sushi na 02 Lounge do Hotel Ritz-Carlton. Tendo em conta o estado da economia russa, tinha achado uma coisa bastante desregrada para se estar a fazer. Mas precisavam todos de uma desculpa para se embebedarem e o dia de anos dela parecia uma razão tão boa como qualquer outra. O estado de embriaguez foi atingido às oito horas e assim continuaram todos até as dez, altura em que chegaram, a cambalear, à Rua Tverskaya e foram à procura dos respetivos carros, ainda que nenhum deles, incluindo Irina Iosifovna Bulganova, ex-mulher de Grigori Nikolaevich Bulganov, estivesse em mínimas condições de guiar.
Tinha deixado o carro a uns quarteirões de distância, numa rua estreita onde a Milícia da Cidade de Moscou1, mediante um suborno razoável, claro, permitia que os moscovitas estacionassem durante o dia inteiro sem medo de uma multa. O agente da milícia de serviço era uma criança borbulhenta de vinte anos, que parecia ter ficado congelado com o frio. Sentindo ainda o efeito do álcool, Irina tentara oferecer-lhe uma generosa mão-cheia de rublos. Mas o rapaz afastou-se e fez questão de mostrar com clareza que se recusava a aceitar o dinheiro. De início, Irina achou a exibição bastante divertida, mas depois viu um homem parado junto ao carro dela. Reconheceu-lhe o tipo instantaneamente. Era um membro dos siloviki, a irmandade de antigos e atuais agentes dos serviços de segurança russos. Sabia-o porque estivera casada com um desses homens durante doze anos. Tinham sido os piores anos da sua vida. Irina considerou a hipótese de se afastar, mas sabia que não estava em condições de tomar medidas evasivas. E, mesmo que não estivesse bêbeda, não tinha qualquer hipótese de se esconder por muito tempo. Não na Rússia. Por isso, aproximou-se e, com mais coragem do que a que de fato sentia naquele momento, exigiu saber o que raio tinha o carro dela de tão interessante. O homem cumprimentou-a — ao estilo russo, nome próprio e patronímico —, pedindo desculpas pelas circunstâncias pouco ortodoxas do encontro. Disse que tinha uma mensagem importante sobre o marido dela.
— Ex-marido —, respondeu Irina.
— Ex-marido —, repetiu ele, corrigindo-se. Por sinal, ela podia chamá-lo Anatoly.
— Suponho que ele não mostrou nenhuma identificação... — perguntou Lavon, no tom mais dócil de que foi capaz.
— Claro que não.
— Podia fazer o favor de descrevê-lo?
— Alto, bem constituído, queixo robusto, cabelo louro ficando grisalho.
— Idade?
— Acima de cinquenta.
— Barba?
— Não.
— Óculos?
— Naquela hora, não. Mais tarde, sim.
Lavon deixou cair o assunto. Por ora.
— E o que aconteceu depois?
— Ofereceu-se para me levar para jantar. Eu respondi que não tinha o hábito de jantar com desconhecidos. Ele disse que não era um desconhecido; era um amigo de Grigori, de Londres. Sabia que era meu aniversário. Disse que tinha um presente para mim.
— E acreditou nele porque tinha contato com Grigori?
— Correto.
— E, por isso, foi com ele?
— Sim.
— E como se deslocaram?
— No meu carro.
— Quem dirigiu?
— Ele.
— E onde foram?
— Ao Café Pushkin. Conhece o Café Pushkin?
Lavon, acenando com a cabeça de um modo quase imperceptível, indicou que, sim, conhecia de fato o famoso Café Pushkin. Apesar da crise financeira, continuava a ser praticamente impossível conseguir uma reserva. Mas o homem chamado Anatoly tinha sido, de alguma forma, capaz de assegurar uma valiosa mesa para dois, num canto isolado no segundo andar. Pediu champanhe, que era a última coisa de que ela necessitava, e fez um brinde. A seguir, entregou-lhe uma caixa de uma joalheria. Lá dentro, estavam uma pulseira de ouro e um bilhete. Disse-lhe que eram ambos de Grigori.
— A caixa tinha algum nome escrito?
— Bulgari. A pulseira deve ter custado uma fortuna.
— E o bilhete? A letra era a de Grigori?
— Parecia sem dúvida ser a dele.
— E o que dizia?
— Dizia que nunca mais queria que voltássemos a passar um aniversário separados. Dizia que queria que eu viajasse para Londres com o homem chamado Anatoly. Dizia para não me preocupar com dinheiro. Seria tudo tratado e pago por Viktor.
— Sem sobrenome?
— Nenhum.
— Mas a senhora sabia que era do Viktor Orlov?
— Já tinha lido sobre Grigori e Viktor na Internet. Até vi uma foto dos dois lado a lado. E Anatoly descreveu a relação que tinha com o senhor Orlov?
— Disse que trabalhava para ele como segurança.
— Foram essas as palavras exatas dele?
— Sim.
— E a carta? Presumo que tenha ficado emocionada com ela, não? Irina assentiu com a cabeça, envergonhada.
— Parecia tudo real.
Claro que parecia, pensou Gabriel, fitando Irina no monitor. Tinha parecido real porque Anatoly, tal como Gabriel, era um profissional, bem versado nas artes da manipulação e da sedução. E, por isso, não foi surpresa nenhuma para Gabriel quando Irina revelou: que ela e Anatoly tinham passado o resto daquela noite a conversar agradavelmente. Tinham falado de muitas coisas, disse ela, passando de um assunto para o outro com o à-vontade de velhos amigos. Anatoly parecera saber muitas coisas sobre o casamento de Irina, coisas que nunca poderia ter sabido a não ser que Grigori lhe tivesse contado — ou, pelo menos, era isso que Irina pensava na altura. Durante a sobremesa, quase como uma reflexão tardia, ele mencionara que o governo britânico estava preparado para lhe conceder asilo se ela fosse viver para Londres. O dinheiro, tinha dito, não seria um problema. Viktor trataria do dinheiro. Viktor trataria de tudo.
— E a senhora aceitou ir? — perguntou Lavon.
— Eu aceitei fazer uma pequena visita, mas nada mais.
— E a seguir? — Falamos dos preparativos para a viagem. Ele disse que, de-vido às circunstâncias que rodeavam Grigori, teríamos de proceder com grande cuidado. Caso contrário, era possível que as autoridades russas não me autorizassem a sair do país. Disse-me para não falar com ninguém. Que me contataria quando fosse altura de partir. A seguir, levou-me a casa. Não se deu ao trabalho de me perguntar a morada, pois já a sabia.
— E falou disso a alguém? — A vivalma.
— E quando ele a contatou novamente? — No dia nove de Janeiro, quando eu estava de saída do escritório. Um homem apareceu ao meu lado na Rua Tverskaya e disse-me para espreitar para dentro do armário do quarto quando chegasse a casa. Estavam lá malas e uma bolsa. As malas tinham lá dentro roupa muito bem arrumada, tudo do meu tamanho. A bolsa continha o sortido habitual de coisas, mas também um passaporte russo, bilhetes de avião para Londres e uma carteira recheada de cartões de crédito e dinheiro. Havia também um conjunto de instruções, que eu devia destruir depois de ler.
— E tinha de partir no dia seguinte? — Correto.
Fale-me do passaporte.
A fotografia era a minha, mas o nome era falso.
Qual era? Natalia Primakova.
Encantador afirmou Lavon.
Sim respondeu ela. Gostei bastante dele.
CAPÍTULO 28
LAGO COMO, ITÁLIA
Ela não dormiu naquela noite. Nem sequer tentou. Estava nervosa demais, excitada demais. E, sim, talvez um pouquinho assustada de mais. Andando de um lado para o outro, percorreu as divisões do pequeno apartamento que em tempos partilhara com Grigori e observou demoradamente as lembranças mais triviais, como se pudesse não voltá-las a ver. Violando as instruções rigorosas de Anatoly, telefonou à mãe, uma tradição de família antes de qualquer viagem de alguma magnitude, e enfiou alguns objetos pessoais nas malas de Natalia Primakova. Um molho de canas amarelecidas; um medalhão com uma fotografia da avó lá dentro; uma pequena cruz de ouro que a mãe lhe tinha dado depois da queda do comunismo. E, por último, a aliança de casamento.
— Achou que podia estar deixando a Rússia para sempre?
— Permiti a mim mesma considerar essa hipótese.
— E recorda-se do número do voo?
— Voo 247 da Aeroflot, com partida de Sheremetyevo às 14h35 e chegada a Londres, ao Aeroporto de Heathrow, às 15h40.
— Muito impressionante.
— É assim que ganho a vida.
— E a que horas saiu do apartamento?
— Às dez. O trânsito de Moscou é terrível a essa hora do dia, especialmente na Leningradsky Prospekt.
— Como seguiu para o aeroporto?
— Enviaram um carro.
— Houve algum problema com o seu novo passaporte? De maneira nenhuma.
Viajou em primeira classe ou econômica? Primeira classe.
Reconheceu alguém durante o voo? Ninguém.
E quando chegou a Londres? Algum problema com o passaporte lá? Nenhum. Quando o funcionário das alfândegas me pediu para indicar o propósito da minha visita, respondi turismo. Carimbou-me logo o passaporte e desejou-me uma boa estadia.
E quando entrou no hall das chegadas? Vi Anatoly à minha espera, junto à barreira. — Uma pausa e, a seguir: — Na verdade, viu-me ele a mim. De início, não o reconheci.
Usava óculos? E um chapéu de feltro.
Importava-se de descrever o estado de espírito dele, por favor? Calmo, muito sério e profissional. Pegou numa das minhas malas e levou-me para o exterior. Havia um carro à espera.
Lembra-se da marca? Era um Mercedes.
E o modelo? Não sou lá muito boa com os modelos. Mas era grande.
E a cor? Preto, claro. Parti do princípio de que fosse do Viktor. Um homem como o Viktor Orlov apenas andaria num carro preto. O que aconteceu a seguir? Ele disse que Grigori estava à espera num lugar seguro. Mas que primeiro, para minha proteção, tínhamos de nos assegurar de que não havia ninguém a seguir-nos.
— E disse quem achava que pudesse estar seguindo vocês?
— Não, mas era evidente que se referia ao serviço secreto.
— Falou com você?
— Passou a maior parte do tempo ao telefone.
— Fez chamadas ou atendeu-as?
— As duas coisas.
— Falava inglês ou russo?
— Só russo. Muito coloquial.
— Fizeram alguma parada?
— Apenas uma.
— Lembra-se de onde foi?
— Foi numa estrada sossegada, não muito longe do aeroporto, ao lado de uma espécie de lago ou represa. O motorista saiu lá para fora e fez qualquer coisa à parte da frente e à parte de trás do carro. Acha que é possível que tenha estado a mudar a matrícula? Não sei dizer. Por essa altura, já estava escuro. Anatoly comportou-se como se não estivesse a acontecer nada.
— Por acaso, lembra a hora?
— Não, mas depois seguimos diretamente para o centro de Londres. Estávamos contornando o Hyde Park quando o telefone de Anatoly tocou. Disse umas palavras em russo e depois olhou para mim e sorriu. Disse que era seguro irmos ver Grigori.
— E depois?
— As coisas aconteceram muito depressa. Pus um pouco de batom e arrumei o cabelo. Depois, vi uma coisa pelo canto do olho. Um movimento. — Interrompeu-se por uns instantes. — Anatoly tinha uma arma na mão, apontada para meu coração. Disse que se eu fizesse um som me mataria.
Calou-se subitamente, como se estivesse relutante em continuar. Depois, com um ligeiro empurrãozinho de Lavon, recomeçou a falar: — O carro parou muito repentinamente e Anatoly abriu a porta com a outra mão. Vi Grigori parado no meio da calçada. Vi meu marido.
— Anatoly disse alguma coisa?
Ela assentiu com a cabeça, pestanejando para afastar as lágrimas. — Nunca me esquecerei das palavras dele. Disse a Grigori para entrar no carro ou eu morreria. Grigori obedeceu, claro. Não tinha escolha.
Lavon deu um momento para ela se recompor.
— E Grigori disse alguma coisa depois de entrar?
— Disse que faria tudo o que eles quisessem. Que não havia necessidade de me fazer mal ou ameaçar de nenhuma maneira. — Mais uma pausa. — Anatoly disse a Grigori para calar a boca. Ou espalharia meus miolos por todo o carro.
— Grigori falou com você alguma vez?
— Só uma. Disse que lamentava muito.
— E depois disso?
— Não disse mais nenhuma palavra. Mal olhou para mim.
— Quanto tempo estiveram juntos?
— Só alguns minutos. Fomos para um estacionamento ali perto. Enfiaram Grigori na parte de trás de uma van com um logotipo nos lados. Algum tipo de serviço de limpeza.
— E para onde a senhora foi?
— Anatoly levou-me para um prédio contíguo, através de uma passagem subterrânea, e subimos para a rua de elevador. Havia um carro à espera ali perto. Estava uma mulher ao volante. Anatoly disse-me para seguir as instruções dela com atenção, e que, se eu alguma vez falasse disto a alguém, seria morta. E, a seguir, a minha mãe seria morta. E, a seguir, os meus dois irmãos seriam mortos, bem como os filhos deles.
Caiu um silêncio pesado na sala de jantar da villa. Irina resolveu fumar mais um cigarro; depois, emocionalmente exausta, relatou os detalhes que faltavam da sua provação, num tom de voz neutro. A longa viagem até a cidade à beira-mar de Harwich. A noite passada sem dormir no Hotel Continental. A atribulada travessia até Hoek van Holland, a bordo do ferry para carros, o Stena Britannica. A viagem para casa no voo 418 da Aeroflot, operado pela KLM Rogai Dutch Airlines, com partida de Amsterdam às 20h40 e chegada a Sheremetyevo às duas da madrugada seguinte.
— Você e a mulher viajaram juntas ou separadas?
— Juntas.
— Ela chegou a dizer o nome dela?
— Não, mas ouvi a comissária chamá-la senhora Gro.
— E quando chegaram a Moscou?
— Um carro e um motorista levaram-me para meu apartamento. Na manhã seguinte, voltei ao trabalho como se nada tivesse acontecido.
— Houve mais algum contato?
— Nada.
— Ficou com a impressão de estar sendo vigiada?
— Se estava, não consegui ver.
— E quando recebeu o convite para a conferência na Itália, não fizeram nenhuma tentativa para impedir sua presença?
Ela abanou a cabeça.
— E não se sentiu minimamente relutante depois do que tinha acabado de passar?
— O convite pareceu real. Como o de Anatoly. — Silêncio, e a seguir: — Calculo que não haja realmente nenhuma conferência, não?
— Não, não há.
— Quem são os senhores? — perguntou outra vez.
— Somos verdadeiramente amigos do seu marido. E vamos fazer tudo o que pudermos para que consiga tê-lo de volta.
— O que acontece agora?
— O mesmo que antes. Vai voltar para seu trabalho na Galaxy Travel e fazer de conta que isso nunca aconteceu. Depois de estar presente no terceiro seminário e mostra anual da Associação de Agências de Viagens do Norte da Itália, claro.
— Mas o senhor acabou de dizer que não era real. A realidade é um estado de espírito, Irina. A realidade pode ser aquilo que você muito bem quiser que seja.
CAPÍTULO 29
LAGO COMO, ITÁLIA • LONDRES
Durante os três dias seguintes, puseram-na delicadamente à prova. Descreveram as refeições suntuosas que não comeria, os coquetéis em que não marcaria presença e os seminários profundamente enfadonhos de que seria misericordiosamente poupada. Levaram-na num cruzeiro glacial pelo lago e numa longa viagem de carro através das montanhas. Encheram-lhe as malas com presentes e brochuras para os colegas. E aguardaram com preocupação a hora da sua partida. Não havia um único entre eles que duvidasse da sua autenticidade — e não havia um único que quisesse enviá-la para a Rússia novamente. Quando chegou a altura de partir, ela avançou decidida para o avião, da mesma maneira como tinha saído dele três dias antes, com o queixo levantado e num ritmo rápido, próprio de uma parada militar. Nessa noite, amontoaram-se em redor da ligação segura, à espera do comunicado de Moscou a avisar que ela tinha chegado em segurança. E isso aconteceu, para grande alívio de todos, poucos minutos depois da meia-noite. Shmuel Peled seguiu-a até casa e declarou que não havia absolutamente nenhuma razão para pensar que ela tivesse alguém atrás de si. Na manhã seguinte, sentada a sua mesa na Galaxy Travel, Irina enviou um e-mail a Veronica Ricci, da NITA, agradecendo-lhe a maravilhosa viagem. E a signora Ricci pediu à Sra. Bulganova para se manter em contato. Gabriel não esteve presente em Como para assistir ao final bem-sucedido da operação. Acompanhado por Olga Sukhova, viajou Para Londres de avião na manhã a seguir ao interrogatório e foi imediata e rapidamente transportado para um apartamento seguro em Victoria. Graham Seymour estava à sua espera e, antes de o deixar finalmente: falar, obrigou Gabriel a ouvir uma longa repreensão de dez minutos. Depois de insistir primeiro que os microfones fossem desligados, Gabriel descreveu o notável interrogatório que tinham acabado de levar a cabo nas margens do lago de Como. De imediato, Seymour telefonou para a Thames House por uma linha segura e colocou uma única questão: chegara alguma mulher com um passaporte russo em nome de Natalia Primakova ao Aeroporto de Heathrow, a bordo do voo 247 da Aeroflot, na tarde de 10 de Janeiro? ligaram de volta de Thames House passados minutos. A resposta era afirmativa.
— Gostaria de marcar uma reunião com o primeiro-ministro e o meu diretor-geral imediatamente. Se estiveres disposto a isso, acho que devias ser tu a informá-los. Afinal de contas, provaste que todos nós estávamos enganados, Gabriel, o que te dá o direito de nos esfregar isso no nariz.
— Não tenho intenção de esfregar seu nariz com nada. E a última coisa que quero que faças menciones qualquer parte disto ao teu primeiro-ministro ou diretor-geral.
— Grigori Bulganov é um súbdito britânico e, como tal, são-lhe devidas todas as proteções conferidas pela coroa britânica. Não temos outra escolha a não ser apresentar as nossas provas aos russos e insistir que nos devolvam Grigori de imediato. Ivan Kharkov teve muito trabalho para apanhar Grigori, contando, com toda a probabilidade, com a bênção do FSB e do próprio Kremlin. Achas mesmo que ele o irá entregar porque o primeiro-ministro britânico insiste nisso? Temos de jogar o jogo segundo as mesmas regras que Ivan. Temos de ser nós próprios a ir buscá-lo. — Graham Seymour fez mais um telefonema e, a seguir, vestiu o sobretudo. O Escritório de segurança de Heathrow está a arranjar-nos fotografias. Tu e a Olga ficam aqui. E façam mesmo o possível para limitar ao mínimo os tiroteios. Já tenho problemas de sobra neste momento.
Mas Gabriel não ficou no apartamento seguro durante muito tempo. Na verdade, escapuliu-se poucos minutos depois de Seymour ter partido e seguiu diretamente para Cheyne Walk, em Chelsea. Em tempos uma marginal sossegada à beira-rio, esta histórica rua londrina tinha agora vista para o movimentado Chelsea Embankment. Em algumas das imponentes casas, havia placas em bronze que celebravam ocupantes famosos do passado. Turner vivera secretamente no número 119, Rossetti no 19. Henry James passara os seus últimos dias no número 21; George Eliot fizera o mesmo no número 4. Atualmente, poucos artistas e escritores podiam dar-se ao luxo de viver em Cheyne Walk. Tornara-se o domínio restrito de estrangeiros ricos, das estrelas pop e dos homens do dinheiro da City. E por acaso também era a morada londrina de um tal Viktor Orlov, oligarca russo e crítico exilado do Kremlin, que residia na mansão de cinco andares do número 43. O mesmo Viktor Orlov que era agora o alvo de uma investigação clandestina conduzida por uma equipe a escarafunchar na Boulevard King Saul. Gabriel entrou no pequeno parque do outro lado da rua e sentou-se num banco. A casa de Orlov era alta e estreita e via-se coberta de glicínias. Tal como as restantes residências ao longo da elegante fila de casas, estava instalada a vários metros de distância da rua, atrás de uma vedação de ferro forjado. Uma limusine Bentley blindada estava parada à porta, com um motorista ao volante. Logo atrás do Bentley, estava um Range Rover preto, ocupado por quatro membros da equipe responsável pela segurança de Orlov, todos eles antigos operacionais dos Serviços Aéreos Especiais britânicos, ou SAS Na Boulevard King Saul, descobrira-se que os guarda-costas tinham sido fornecidos pela Exton Executive Security Services Ltda. na HM Street, Mayfair. A Exton era considerada a melhor empresa de segurança privada de Londres, um feito nada de desprezar numa cidade repleta de gente rica e preocupada com a sua segurança. Gabriel estava prestes a ir-se embora quando viu três guarda-costas a saírem do Range Rover. Um foi colocar-se junto ao portão do número 43, enquanto os outros dois bloqueavam o passeio em ambas as direções. Com o perímetro de segurança instalado, a por da frente da casa abriu-se e Viktor Orlov saiu cá para fora, flanqueado por mais dois guarda-costas. Gabriel pouco conseguiu ver do famoso bilionário russo além de uma cabeça grisalha com cabelo espetado e de um relance de uma gravata cor-de-rosa com um enorme nó duplo. Orlov baixou-se e entrou para o banco de trás do Bentley, enquanto as portas se fechavam rapidamente. Uns segundos mais tarde, o cortejo de carros seguia a toda a velocidade pela Royal Hospital Road. Gabriel ficou sentado no banco por mais dez minutos e, a seguir, levantou-se e voltou para Victoria.
Demorou menos de uma hora para o Escritório de segurança de Heathrow produzir o primeiro conjunto de fotografias do homem conhecido apenas com Anatoly. Infelizmente, nenhuma ajudou especialmente. Gabriel não ficou surpreendido. Tudo em Anatoly sugeria que era um profissional. E, como qualquer bom profissional, sabia como deslocar-se por um aeroporto sem que conseguissem tirar-lhe uma fotografia. O chapéu de feltro ajudara bastante para lhe esconder a cara, mas ele próprio fizera grande parte do trabalho com mudanças de direção e movimentos subtis. Ainda assim, as câmaras fizeram um esforço meritório: aqui, um vislumbre de um queixo robusto, ali, parte de um perfil, acolá, uma imagem de uma boca fechada e inflexível. Ao passar em revista as cópias das fotografias no apartamento seguro em Victoria, Gabriel sentiu-se preocupado. Anatoly era um verdadeiro profissional. E estava a jogar o jogo com o dinheiro de Ivan.
Os dois serviços secretos britânicos compararam as fotografias com as suas bases de dados de agentes secretos russos conhecidos, mas nenhum deles tinha grandes esperanças de encontrar alguma correspondência. Entre ambos, chegaram a seis possíveis candidatos, tendo sido todos eles descartados por Gabriel mais tarde, ainda durante essa noite. E foi nesse momento que Seymour decidiu que estava provavelmente na altura de envolver os pavorosos americanos na questão. Gabriel ofereceu-se para fazer ele próprio a viagem’ Havia uma pessoa na América que estava desejoso de ver. Já não falava com ela há meses. Ela escrevera-lhe uma carta certa vez; e e pintara-lhe um quadro.
CAPÍTULO 30
QUARTEL-GENERAL DA CIA, VIRGINIA
Os serviços secretos referem-se aos seus espiões de diferentes maneiras. O Escritório chama de agentes de coleta e chama sua divisão de Coletas. Os espiões da CIA são agentes responsáveis por casos e estão adstritos ao Serviço Clandestino Nacional. O mandato de Adrian Carter como chefe do NCS teve início quando este ainda era conhecido pelo antigo nome: Diretoria de Operações. Considerado um dos mais brilhantes guerreiros secretos da CIA, Carter tinha deixado marca em todas as principais operações secretas americanas das últimas duas gerações. Manipulara uma ou outra eleição, derrubara um ou outro governo democraticamente eleito e fizera de conta que não sabia de nada em relação a mais execuções e assassinatos do que gostaria de se lembrar. “Fiz o trabalho do Senhor na Polônia e apoiei e sustentei o regime do Diabo em El Salvador num só ano”, confessara uma vez a Gabriel, num momento de franqueza entre agências. “E, para terminar, forneci armas aos santos guerreiros muçulmanos no Afeganistão, mesmo sabendo que um dia fariam chover fogo e morte em cima de mim.” Desde a manhã de 11 de setembro de 2001 que Adrian Carter cuidava primordialmente de uma coisa: impedir outro ataque em território americano pelas forças do extremismo islâmico global.
Para realizar esse objetivo, tinha utilizado tácticas e métodos qui até mesmo um guerreiro secreto endurecido pelas batalhas, como ele, considerava por vezes repreensíveis. As prisões secretas, as rendições extraordinárias, o uso de técnicas de interrogatório coercitivas: tudo tinha sido tornado público, com grande prejuízo para Carter. Há anos que jornalistas e políticos bem-intencionados de Capitol Hill caçavam o sangue de Carter. Ele deveria estar na lista dos candidatos a diretor da CIA. Em vez disso, vivia com medo de um dia ser acusado por suas ações no decurso da guerra global contra o terrorismo. Adrian Carter tinha mantido a América protegida dos inimigos e, por disso, penaria no fogo do inferno por toda a eternidade.
Na manhã seguinte, estava à espera de Gabriel numa sala de reuniões do sétimo andar do quartel-general da CIA, o Valhalla do vasto e frequentemente disfuncional aparelho de espionagem americano. Carter era a antítese de Graham Seymour em termos de aspecto: cabelo desgrenhado e ralo, bigode proeminente que já tinha passado de moda com a música disco. Da maneira como se encontrava vestido naquele momento, com calça de flanela e paletó de malha vermelho, tinha o ar de um professor de uma pequena universidade, do tipo que defende causas nobres e é espinha constante na garganta do reitor. Olhou para Gabriel por cima dos óculos de leitura, como se estivesse ligeiramente surpreendido por o ver, e estendeu-lhe a mão. Era fria como o gelo e seca. Gabriel tinha contatado Carter na véspera, antes de partir de Londres, por via de um telegrama seguro enviado da base da CIA na embaixada americana, o qual fornecera a Carter apenas os contornos mais gerais do caso. Agora, Gabriel estava a explicar-lhe os detalhes. Depois da conclusão do relatório, Carter passou em revista as provas físicas, começando pela carta que Grigori tinha deixado em Oxford e terminando nas fotos de vigilância, tiradas no Aeroporto de Heathrow, do homem conhecido apenas como Anatoly.
Com toda a honestidade — disse Carter —, nós nunca acreditamos muito na história de que Grigori tinha mudado de opinião e voltado a desertar para a pátria. Como és capaz de te lembrar, eu até tive a oportunidade de passar algum tempo com ele na noite em que vocês saíram da Rússia.
De fato, Gabriel lembrava-se disso, claro. Num feito de logística de que apenas a CIA seria capaz, Carter fizera aterrissar um esquadrão de jatos executivos Gulfstream em Kiev, apenas umas quantas horas após o carro que transportava Gabriel e o seu trio de desertores russos ter atravessado a fronteira com a Ucrânia. Gabriel regressara a Israel, enquanto Grigori e Olga tinham viajado de avião para o exílio no Reino Unido. Já Carter levara Elena Kharkov para os Estados Unidos, onde lhe foi concedido o estatuto de desertora. O seu paradeiro atual estava tão bem guardado, que nem mesmo Gabriel fazia qualquer ideia do: lugar onde a CIA a escondera. Enviamos uma equipe para interrogar Grigori passadas vinte e quatro horas da chegada dele a Inglaterra — retomou Carter. Nenhum dos envolvidos expressou alguma vez qualquer cepticismo em relação à sua autenticidade. Depois do seu desaparecimento, ordenei que se fizesse uma revisão das gravações e das transcrições para ver se nos tinha escapado alguma coisa.
E? Grigori era um verdadeiro menino de ouro. Escusado será dizer, mas ficamos bastante surpreendidos quando os ingleses acharam o contrário. No que a Langley diz respeito, pareceu-nos uma tentativa bastante transparente para impingir para cima de você alguma da culpa no desaparecimento dele. Só se podem culpar a eles próprios. Nunca o deviam ter deixado envolver-se com a gente da oposição que gravita à volta de Londres. Era apenas uma questão de tempo até que Ivan o pegasse.
E Ivan continua alvo da vigilância da NSA?
— Absolutamente.
— E sabem que ele acabou de vender milhares de mísseis antitanque e lança-granadas RPG ao Hezbollah?
— Ouvimos rumores nesse sentido. Mas, no momento, acompanhar as atividades empresariais de Ivan está no fim da nossa lista de prioridades. Nossa principal preocupação é proteger a ex-mulher e os filhos dele.
— Ele já tentou algum procedimento formal para recuperá-los?
— Há dois meses, o embaixador russo levantou a questão numa reunião de rotina com a secretária de Estado, que mostrou surpresa e respondeu que analisaria o assunto. É uma boa jogadora de pôquer, ela. Teria dado uma excelente agente. Uma semana depois, disse ao embaixador que a Elena Kharkov e os filhos não moram nos Estados Unidos naquele momento, nem nunca mor no passado. O embaixador agradeceu-lhe profusamente pelos seus esforços e nunca mais voltou a levantar a questão.
— Ivan deve saber que eles cá estão, Adrian.
— Claro que sabe. Mas não há nada que ele e os seus amigos no Kremlin possam fazer em relação a isso. A operação que tu executaste em Saint-Tropez no Verão passado foi uma coisa bela. Arrancaste as crianças das mãos de Ivan com toda a limpeza e uma capa de legalidade. Além disso, quando Ivan se divorciou de Elena num tribunal russo, abdicou, para todos os efeitos e em termos legais, dos direitos sobre os filhos. A única forma que de conseguir ficar com eles é roubá-los. E isso não vai acontecer, pois nós cuidamos melhor dos nossos desertores do que os ingleses.
— Ela está num lugar seguro, espero.
— Muito seguro. Mas me permite um pequeno conselho, de um amigo para outro? Leve a sério as palavras de Grigori. Esqueça a promessa daquela noite na Rússia. Além disso, suspeito que Ivan já lhe tenha enfiado uma bala na nuca. E, conhecendo Ivan, imagino que tenha sido ele mesmo a tratar disso. Volte para casa e para sua mulher e deixe os ingleses limparem a porcaria que fizeram.
— Gosto de cumprir minhas promessas. E achava que você também, Adrian.
Carter pôs as mãos no queixo. — Você está sendo injusto. Mas, se é assim que vê a questão, em que Langley pode ajudar?
— Dê essas fotos de Anatoly ao Centro de Contraterrorismo. Veja se eles conseguem juntar um nome e um currículo a esse rosto.
— Vou pedir ao chefe que trate disso pessoalmente. — Carter recolheu as fotos. — Quanto tempo pensa em ficar na cidade?
— O tempo necessário.
— Um dos nossos agentes está prestes a partir para uma missão no estrangeiro. Ela queria saber se você está livre para jantar.
Gabriel não se deu ao trabalho de perguntar o nome do agente.
— Aonde ela vai, Adrian?
— Isso é confidencial.
— Não preciso lembrar que ela estava na operação contra Ivan, não é?
— Não, não precisa.
— Então, por que você deixa que ela saia do país?
— Sua preocupação com a segurança dela é comovente, mas completamente desnecessária. O que respondo sobre o jantar?
Gabriel hesitou um instante. — Fica para a próxima, Adrian. É complicado.
— Por quê? Por ela estar com alguém de sua equipe?
— Do que está falando?
— Ela e Mikhail são namorados. Estou surpreso de que ninguém tenha contado a você.
— Há quanto tempo?
— Começou pouco depois da operação em Saint-Tropez. Como Mikhail trabalha para um serviço secreto estrangeiro, ela foi obrigada a informar à Seção de Pessoal sobre a relação. Seção que não ficou contente com a situação, mas eu intercedi a favor deles.
— Mas que atencioso, Adrian. Pensando melhor, vou jantar com ela.
Carter escreveu hora e local num pedaço de papel. — Tente ser simpático, Gabriel. Acho que ela está feliz. Há muito tempo que Sarah não era feliz.
CAPÍTULO 31
GEORGETOWN, WASHINGTON, D. C
O Restaurante 1789, um marco de Georgetown, é considerado um dos melhores em Washington e é um dos poucos onde ainda se exige que os cavalheiros tragam um casaco. Com essa advertência, Carter disse a Gabriel para ir à Brooks Brothers, onde este escolheu, em dez minutos, calça de gabardine, camisa clássica branca e o necessário blazer azul. Mas estabeleceu seu limite quando se tratou da gravata. Como a maior parte dos israelenses, usava-as apenas por obrigação ou para efeito de disfarce. Além disso, se usasse gravata, Sarah poderia ficar com a ideia errada. O blazer já iria causar-lhe problemas suficientes.
Chegou uns minutos adiantado e a maître informou-o de que a sua companhia já se encontrava sentada. Não ficou surpreendido; tinha supervisionado o treino de Sarah Bancroft pessoalmente e considerava-a um dos melhores e mais naturais agentes que alguma vez encontrara. Multilíngue, viajada e extremamente culta, tinha estado a trabalhar como curadora assistente na Phillips Collection, em Washington, quando Gabriel a recrutou para encontrar um mestre terrorista que se escondia entre o séquito do bilionário saudita Zizi al-Bakari. Depois da operação, Sarah juntou-se à CIA a temo inteiro e foi colocada no Centro de Contraterrorismo. Gabriel tinha voltado a pedi-la emprestada no último Verão e, com a ajuda de um quadro falsificado, colocara-a junto de Elena Kharkov. Mikhail fizera o papel do namorado russo-americano de Sarah durante a operação e tinham passado várias noites juntos num hotel de cinco estrelas em Saint-Tropez. Gabriel calculou que a atração tivesse começado aí.
Era uma situação que não lhe agradava por uma série de razões, desde logo por violar a proibição imposta por ele relativamente a relações sexuais entre membros da sua equipe. Mas a sua ira tinha limites. Sabia que a combinação singular de estresse e tédio podia levar por vezes a complicações românticas no terreno. Na verdade, podia falar por experiência própria. Vinte anos antes, enquanto se preparava para um importante assassinato em Tunes, tivera um caso amoroso com a sua agente assistente que quase lhe destruíra o casamento com Leah.
A maître levou-o a uma mesa num canto, junto à lareira. Sarah estava sentada no banco corrido, com os ombros voltados de maneira a poder observar toda a sala. Trazia um vestido preto sem mangas e um colar de pérolas de duas voltas. O cabelo claro caía-lhe sobre os ombros e os olhos azuis e muito grandes brilhavam à luz forte das velas. Tinha uma mão pousada no pé de um copo de martini, enquanto a outra estava suavemente encostada ao queixo pequeno e esférico. Quando Gabriel lhe beijou a face, ela cheirava a lilás.
— Posso pedir um para você? — perguntou, batendo de leve na base do copo com uma das suas unhas feitas.
— Preferia beber a acetona que usa para tirar o esmalte das unhas.
— E quer isso com uma rodela de limão ou só com gelo?
Olhou para a maître. — Um copo de champanhe, por favor. Coisa boa. Este senhor teve um dia longo.
A maître retirou-se. Sarah sorriu e levou o martini aos lábios.
— Dizem que faz mal beber na véspera de um voo, Sarah.
— Se consigo sobreviver a suas operações, acho que sobrevivo a um voo transatlântico com um pouquinho de gim no sangue.
— Então, é para a Europa? É para lá que Carter está te enviando?
— Adrian avisou para estar atenta a você. Não vai conseguir tirar nada de mim.
— Acho que tenho o direito de saber.
— Sério? — Largou o copo e inclinou-se sobre a mesa. — Pode ter dificuldade em acreditar nisso, Gabriel, mas a verdade é que eu não trabalho para o Escritório. Faço parte do Serviço Clandestino Nacional da CIA, o que significa que é Adrian Carter, e não você, que estabelece as minhas missões.
— E não quer dizer isso um pouquinho mais alto? Não tenho certeza de que os cozinheiros e o pessoal que lava os pratos tenham conseguido te ouvir.
— Não foi você que me disse que praticamente todas as conversas profissionais importantes que já teve se passaram em lugares públicos?
Era verdade. As salas seguras só eram seguras se não tivessem colocado escutas lá.
— Pelo menos, elimine uns quantos lugares. Dormirei mais descansado se souber que em Langley, no alto de toda aquela sabedoria infinita, não decidiram te enviar para a Arábia Saudita ou Moscou.
— Pode dormir em paz, em Langley ninguém decidiu nada.
— Então, é mesmo para a Europa?
— Gabriel, realmente!...
— E que tipo de trabalho vai fazer?
Ela soltou um suspiro de exasperação.
— Tem a ver com os esforços continuados do meu país no sentido de combater o terrorismo global.
— Mas que nobre isso é. E pensar que ainda há quatro anos estava montando uma exposição intitulada “Impressionistas no Inverno”.
— Espero que isso tenha sido um elogio.
— Foi sim.
— É óbvio que não aprova que eu faça uma operação sem você.
— Já expressei minhas preocupações. Mas Adrian é seu patrão, não eu. E se Adrian acha que é apropriado, quem sou eu para questionar julgamento dele?
— É Gabriel Allon, nem mais nem menos.
O garçom apareceu. Entregou o menus e fez relatório pormenorizado dos pratos especiais da noite. Depois que se foi, Gabriel passou os olhos pela lista das entradas e, com o máximo de indiferença de que foi capaz, perguntou se Mikhail sabia dos planos de viagem de Sarah. Tendo apenas silêncio como resposta, tirou os olhos do menu e viu Sarah olhando para ele embasbacada, as faces coradas.
— Ainda bem que não ficou assim quando Zizi e Ivan estavam por perto — disse Gabriel.
— Mikhail contou?
— Por acaso, foi o chefe do Serviço Clandestino Nacional que deixou escapar isso durante a conversa.
Sarah não deu resposta.
— Então, é verdade, não é? Anda mesmo namorando uma pessoa da minha equipe?
— Está com ciúme ou zangado?
— Por que diabos haveria de estar com ciúme, Sarah?
— Eu não podia ficar caidinha por você para sempre. Tinha de seguir minha vida.
— E não podia arranjar mais ninguém a não ser uma pessoa que trabalha para mim?
— É engraçado como as coisas acabaram por se desenrolar. Suponho que havia qualquer coisa no Mikhail que achei familiar.
— Namorar um homem do serviço secreto de um país estrangeiro não é propriamente uma jogada lá muito inteligente em termos de carreira, Sarah.
— Langley anda com problemas para manter os talentos mais jovens e promissores. Estão dispostos a contornar algumas velhas regras.
— Talvez fosse melhor eu ter uma conversa discreta com a Seção de Pessoal. Pode ser que eles fiquem com umas quantas dúvidas.
— Você não se atreveria, Gabriel. E também não tem direito de interferir em minha vida privada.
A vida privada de Sarah, sabia Gabriel, estava em ruínas desde as 9h03 da manhã de 11 de setembro de 2001, quando o voo 175 da United Airlines mergulhou na Torre Sul do World Trade Center. A bordo do avião condenado ia um jovem formado em Harvard, um advogado chamado Ben Callahan. Ben tinha conseguido dar um telefonema nos momentos finais de vida e a chamada foi para Sarah. Desde então, ela se permitira gostar de apenas um outro homem. Infelizmente, esse homem tinha sido Gabriel.
— Devia pensar muito e bem antes de se envolver com um homem que ganha a vida matando pessoas. Mikhail já fez coisas terríveis pelo bem do país dele. — Gabriel interrompeu-se por uns instantes e, a seguir, acrescentou: — Coisas desse gênero fazem com que, às vezes, seja difícil estar com ele.
— Parece uma pessoa que eu conheço.
— Não é brincadeira, Sarah. É sua vida. Além disso, os israelenses são conhecidos por não serem de confiança. Basta perguntar a qualquer mulher israelense.
— Por acaso, os israelenses que eu conheço são bem maravilhosos.
Silêncio.
— Isso é porque somos os melhores dos melhores.
— Incluindo Mikhail?
— Ele não faria parte da minha equipe se não fosse. Há quanto tempo está com ele?
— Ele já veio aqui algumas vezes e nos encontramos em Paris uma vez.
— Não é seguro você ficar sozinha em Paris.
— Não estou sozinha. Estou com Mikhail. — E depois: — É quase como estar com você.
As palavras dela ficaram pairando entre ambos por um momento.
— É disso que se trata, Sarah?
— Gabriel, por favor.
— Porque eu me sentiria mal se Mikhail acabasse magoado de alguma forma.
— Tenho certeza de que vou ser a única a acabar magoada.
— Não se eu tiver algum voto na matéria.
Ela sorriu pela primeira vez desde que o nome de Mikhail viera à baila.
— Ia contar hoje à noite. Só estávamos esperando até ter certeza de que era...
A voz dela foi sumindo.
— Até ter certeza de que era o quê?
— Verdadeiro.
— E é?
Ela segurou a mão dele.
— Não fique aborrecido, Gabriel. Estava com esperança de que isso pudesse ser uma comemoração.
— Não estou aborrecido.
Ela olhou para o copo de champanhe dele. Não o tinha tocado.
— Quer outra coisa?
— Acetona para tirar esmalte. Com gelo e uma rodela de limão.
Como Gabriel tinha viajado para Washington com o completo conhecimento da CIA, a Divisão de Trabalhos Domésticos atribuíra-lhe um apartamento não muito seguro na Tunlaw Road, ao norte de Georgetown. Por um curioso acaso do destino, o apartamento tinha vista para a entrada dos fundos da embaixada russa. Ao atravessar o vestíbulo, Gabriel sentiu o celular seguro vibrando no bolso. Era Adrian Carter.
— Onde está?
Gabriel disse.
— Tenho uma coisa que você precisa ver imediatamente. Vamos aí te buscar.
A ligação foi interrompida. Quinze minutos depois, Gabriel entrava no banco de trás de um grande carro preto, na New Monco Avenue. Carter passou-lhe uma folha: a transcrição de uma comunicação interceptada pela Agência de Segurança Nacional, com data da noite anterior, hora de Moscou. O alvo era Ivan Kharkov, que falava com alguém no quartel-general do FSB, na Praça Lubyanka. E, embora grande parte da conversa fosse em russo coloquial codificado, era evidente que Ivan dera algo ao FSB e agora queria de volta. E essa coisa era Grigori Bulganov.
— Tinha razão, Gabriel. Ivan entregou Grigori ao FSB para que eles também pudessem acertar contas. Segundo parece, o interrogatório do FSB está indo devagar demais para o gosto de Ivan. Ele gastou muito dinheiro para pôr as mãos em cima de Grigori e está farto de esperar. Mas a boa notícia: Grigori está vivo.
— E há algum modo vocês persuadirem o FSB a mantê-lo vivo?
— Nem por sombra. Nossas relações com o serviço russo pioram a cada dia. Eles nunca tolerariam que nos intrometêssemos em assunto estritamente interno. E, sinceramente, se os papéis fossem invertidos, nós também não. Do ponto de vista deles, Grigori é desertor e traidor. Pode ter certeza de que querem matá-lo tanto quanto Ivan.
— O CIC [Contra-Terrorismo] já tem alguma coisa para mim?
— Ainda não. Quem sabe? Talvez seu amigo Anatoly seja um fantasma.
— Não acredito em fantasmas, Adrian. Se há alguma coisa que eu sei sobre Ivan é que ele não confiaria o sequestro de Grigori a alguém que não conhecesse. É assim que Ivan funciona. É tudo pessoal. Por isso, é possível que uma pessoa que tenha passado um tempo considerável com Ivan tenha visto esse homem em determinado momento. — Gabriel fez uma pausa. — Quem sabe, Adrian? Talvez até saiba seu nome verdadeiro.
Carter disse ao motorista para voltar para o apartamento seguro e depois olhou para Gabriel.
— Amanhã de manhã, um carro vai buscar você às seis. Lamento informar que vamos fazer isso sem risco desnecessário. Só vai saber seu destino quando já estiver em pleno voo.
— E que roupa devo levar?
Carter sorriu. — Quente. Muito quente.
CAPÍTULO 32
NORTE DO ESTADO DE NOVA YORK
O Parque de Adirondack, um vasto espaço selvagem que se estende ao longo de quase dois milhões e meio de hetares na parte nordeste do estado de Nova York, é a maior área protegida dos Estados: Unidos. Aproximadamente do tamanho do Vermont, é maior do que outros sete estados americanos — tão grande, na verdade, que os parques nacionais de Yellowstone, Yosemite, o Glacier, o Grand Canyon e as Great Smoky Mountains podiam caber todos à vontade dentro da sua área limítrofe. Gabriel só ficou ao corrente destes fatos passada uma hora da descolagem, quando o piloto do avião, um veterano do programa de rendição extraordinária da CIA, lhe revelara o destino do voo. A previsão meteorológica era bastante desagradável: céu limpo, com temperaturas máximas que talvez chegassem a zero grau. Gabriel partiu do pressuposto de que o piloto tinha convertido a temperatura de graus Fahrenheit para graus centígrados, para benefício do seu passageiro estrangeiro.
Não tinha.
Passavam poucos minutos das dez quando o avião aterrou no Aeroporto Regional de Adirondack, em frente ao lago Saranac Adrian Carter tinha pedido para que um Ford Explorer fosse deixado no estacionamento. Por um qualquer milagre, o motor conseguiu começar a trabalhar logo à primeira tentativa. Gabriel pôs o aquecedor no máximo e passou vários minutos deploráveis a raspar o gelo dos vidros. Quando voltou a sentar-se ao volante, já o conseguia sentir na cara. O manômetro de temperatura do Explorer indicava oito graus negativos. Não era possível, pensou. Com certeza que era mau funcionamento do painel de instrumentos. Carter, uma alma prudente como poucas outras, decretara que ninguém poderia aproximar-se do local determinado com nada que transmitisse ou recebesse um sinal, incluindo sistemas de navegação GPS. Gabriel seguiu um conjunto de instruções datilografadas que lhe tinha sido dado a bordo do avião. Ao sair do aeroporto, virou à direita e seguiu pela Route 186 até Lake Clear. Virou outra vez à direita, para a Route 30, e continuou em direção a Upper St. Regis Lake. Seguiu-se Spitfire Lake, depois Lower St. Regis, e ainda a pequena cidadezinha universitária de Paul Smiths. Poucos metros depois da entrada para a faculdade, ficava a Keese Mills Road, um caminho tortuoso que seguia para leste, em direção a uma das regiões mais remotos daquela área protegida. Nesta parte dos montes Adirondacks, os Rockefeller tinham mantido um vasto retiro de verão, que incluía a sua própria estação de ferroviária para o trem particular da família. O destino de Gabriel, embora fosse bem mais pequeno do que a herdade dos Rockefeller, era pouco menos isolado. A entrada ficava do lado esquerdo da estrada e, tal como Carter prevenira, era fácil não dar com ela. Da primeira vez, Gabriel passou por ela em grande velocidade e teve de continuar a guiar durante mais meio quilômetro até conseguir descobrir um local adequado para fazer uma inversão de marcha na estrada coberta de gelo.
Durante cerca de cem metros, um trilho estreito foi embrenhando cada vez mais no denso bosque, até surgir um portão de segurança metálico. Não havia mais vedações nem barreiras visíveis, mas Gabriel sabia que o terreno circundante estava repleto de câmaras, sensores de calor e detetores de movimento. E alguma coisa tinha tomado nota da sua chegada, já que o portão começara a abrir-se lentamente ainda antes de ele ter parado a viatura. Do outro lado, viu um jipe Grand Cherokee a aproximar-se dele a toda a velocidade, ao longo de uma clareira. Ao volante, estava um homem dos seus cinquenta e tal anos, com um porte de soldado. Chamava-se Fielding. Ex-agente do Grupo de Operações Especiais da CIA, Fielding era o responsável pela segurança.
— Nós avisamos de que a entrada era difícil de encontrar — disse Fielding, com a janela do carro aberta.
— Estiveram me observando?
Fielding limitou-se a sorrir.
— Lembrou de deixar o celular em casa?
— Lembrei.
— E o BlackBerry? — Não suporto essas coisas.
— Não tem canetas secretas nem óculos de raios X?
— A única coisa eletrônica que tenho comigo é o meu relógio, e terei prazer em jogá-lo em algum lago, se isso o deixar mais confortável.
— Desde que não seja algum dispositivo israelense secreto que transmita e receba sinais, pode ficar com ele. Além disso, os lagos estão todos congelados. — Fielding puxou pelo motor. — Ainda temos uma boa viagenzinha pela frente. Não fique muito para trás. Ou pode conseguir uma bala dos snipers escondidos.
Fielding acelerou a fundo pela clareira. Quando chegaram à fila seguinte de árvores, Gabriel já tinha recuperado a distância. Passado cerca de um quilômetro, a estrada começou a subir por uma colina íngreme. Apesar de ter sido lavrada e limpa de ervas daninhas nessa manhã, a superfície da terra já se encontrava completamente congelada. Fielding escalou-a sem problemas, mas Gabriel sentiu dificuldades em manter a tração. Alterou a definição da tração às quatro rodas de alta para baixa e fez uma segunda tentativa. Dessa vez, os pneus cravaram-se no gelo e a van lá foi avançando, à força e lentamente, em direção ao topo da colina. Nos dez segundos que Gabriel tinha demorado para fazer o ajustamento, Fielding sumira de vista. Encontrou-o passado um momento, parado junto a uma bifurcação na estrada. Seguiram para a esquerda e fizeram mais três quilômetros, até que chegaram a uma clareira no ponto mais alto da propriedade.
No centro havia um casarão tradicional de Adirondack, com o seu telhado alto e varandas monumentais viradas para sudeste, em direção ao tênue calor vindo do sol do meio-dia e aos lagos congelados de St. Regis. Havia um segundo casarão mais próximo da orla da floresta, mais pequeno do que o edifício principal mas ainda assim imponente por si mesmo. Entre as duas estruturas, havia um prado, onde duas crianças fortemente agasalhadas estavam a construir um boneco de neve com grande afinco, vigiadas por uma mulher alta e de cabelos escuros, com um casaco de lã de carneiro. Ouvindo o som de veículos a aproximarem-se, virou-se com uma agilidade animal e depois, passados uns segundos, levantou a mão bem alto, com grande teatralidade.
Gabriel estacionou atrás de Fielding e desligou o motor. Quando chegou a altura de abrir a porta, a mulher corria para ele desajeitadamente, no meio da neve que lhe dava pelo joelho. Lançou-lhe os braços ao pescoço e beijou-o com grande esmero em ambas as faces.
— Bem-vindo ao único lugar do mundo onde Ivan nunca vai me encontrar — disse Elena Kharkov. — Meu Deus, Gabriel, não posso acreditar que esteja mesmo aqui!
CAPÍTULO 33
NORTE DO ESTADO DE NOVA YORK
Almoçaram na grande sala de jantar rústica, por baixo de um lustre com hastes de veado, tradicional em Adirondack. Elena estava sentada de costas para uma janela elevada, enquadrada pelos lagos ao fundo e com Anna à sua esquerda e Nikolai à direita. E embora Gabriel tivesse executado o que resultou num sequestro legal do gémeos Kharkov no Sul da França, no Verão anterior, até então nunca os tinha visto em pessoa. Naquele momento, estava impressionado, tal como acontecera com Sarah Bancroft quando os conheceu, com a sua aparência. Anna, alta e magra e de cabelo preto abençoada com uma elegância natural, era uma versão mais pequena da mãe; Nikolai, louro e compacto, com uma testa larga e sobrance lhas robustas, era a cópia perfeita do pai mal-afamado. Com efeito, ao longo de uma refeição de contrário agradável, Gabriel teve a desconfortável sensação de que, do outro lado da mesa, Ivan Kharkov, o seu inimigo mais implacável, lhe escrutinava todos os movimentos.
E também ficou impressionado com o som das suas vozes. O inglês deles era perfeito e possuía apenas um ligeiro traço de sotaque russo. Não era surpreendente, pensou. Em muitos aspetos, os filhos dos Kharkov praticamente não eram sequer russos. Tinham passado a maior parte da sua vida numa mansão em Knightsbridge e frequentado um colégio privado londrino. No Inverno, tinham passado as férias em Courchevel; no Verão, moviam-se de armas e bagagens para a Villa Soleil, o palácio de Ivan à beira-mar. em Saint-Tropez. Quanto à Rússia, era um lugar que tinham visitado umas quantas semanas por ano, apenas para manterem contato com as suas raízes. Anna, a mais conversadora dos dois, falou do país natal como se fosse uma coisa sobre a qual tinha lido em livros. Nikolai pouco disse. Limitou-se a olhar fixamente para Gabriel durante muito tempo, como se suspeitasse que o inexplicado convidado para o almoço era de algum modo responsável pelo fato de ele viver agora no cume de uma montanha nos Adirondacks e não em West London ou no Sul da França.
Terminada a refeição, as crianças deram um beijo na mãe e levaram os pratos para a cozinha obedientemente. Demorou um pouquinho até se habituarem à vida sem empregados — disse Elena depois de saírem da sala. — Acho que é melhor que eles vivam como crianças normais durante algum tempo. — Sorriu perante o absurdo da sua afirmação. Bom, quase normais.
— E como eles têm lidado com a adaptação?
— Tão bem quanto se pode esperar, tendo em conta as circunstâncias. A vida deles, tal como a conheciam, acabou num abrir e fechar de olhos, e tudo porque os guarda-costas russos que tinham foram mandados parar pela polícia por conduzirem em excesso de velocidade quando se iam embora da praia de Saint-Tropez. Suspeito que terão sido as únicas pessoas que a polícia mandou parar por excesso de velocidade no Sul da França durante o Verão inteiro.
— Os gendarmes podem ser bem imprevisíveis na aplicação das normas de trânsito.
— E também podem ser muito amáveis. Cuidaram bem dos meus filhos enquanto os mantiveram detidos. Nikolai ainda hoje fala com grande ternura do tempo que passou na esquadra de Saint-Tropez. E também gostou do mosteiro nos Alpes. Para eles, a fuga Não passou de uma grande aventura. E tenho de lhe agradecer por isso, Gabriel. Tornou-lhes as coisas muito fáceis. O que elas sabem ao certo sobre o que aconteceu ao Pai?
— Sabem que ele teve alguns problemas com os negócios. E sabem que ele se divorciou de mim para casar com a amiga, a Yekate rina. Quanto ao tráfico de armas e os assassinatos... — A sua voz foi sumindo. — Ainda são muito novos para compreenderem. Vou esperar que fiquem um pouquinho mais velhos e só depois lhes contarei a verdade. Então, poderão tirar as suas próprias conclusões.
— Com certeza que devem estar curiosos.
— Claro que estão. Já não veem nem falam com Ivan há seis meses. Tem sido duro para o Nikolai. O pai é como um ídolo para ele. Tenho certeza que me culpa pela sua ausência. ,como a Elena lhes explica o fato de viverem isolados e rodeados de guarda-costas? — Na verdade, essa parte não é assim tão difícil. A Anna e o Nikolai são filhos de um oligarca russo. Passaram a — vida inteira rodeados de homens com armas e rádios, pelo que é algo que lhes parece perfeitamente natural. Quanto ao isolamento, o que lhes digo é apenas temporário. Um dia, dentro de pouco tempo, poderão ter amigos e ir à escola como quaisquer crianças americanas normais. Para já, têm uma tutora da CIA encantadora. Trabalha com eles das nove às três. A seguir, certifico-me de que eles vão lá para fora brincar, independentemente do tempo que faça. Temos várias centenas de hetares, dois lagos e um rio. Há muitas coisas para as crianças fazerem. É um paraíso. Mas eu nunca poderia ter-me dado ao luxo disto se não fosse graças a si e aos seus ajudantes. Elena estava a referir-se à equipe de ciberespecialistas do Escritório que, nos dias que se seguiram à sua deserção, tinham saqueado as contas bancárias de Ivan em Moscou e Zurique e deitado a mão a mais de vinte milhões de dólares em dinheiro. As “transferências bancárias não autorizadas”, como a elas se referiam eufemisticamente na Boulevard King Saul, eram uma das muitas ações relacionadas com o caso que pisavam os limites da legalidade. Depois de tudo se ter processado, Ivan não se encontrara em posição de perder tempo com o problema do dinheiro desaparecido ou de questionar a sequência de acontecimentos que levara à perda de custódia dos filhos. Estava a braços com acusações, vindas do Ocidente, de que tinha vendido alguns dos mísseis antiaéreos mais mortíferos da Rússia aos terroristas da Al-Qaeda, uma venda concluída com a bênção do Kremlin e do próprio presidente russo. O Adrian disse-me que a CIA apenas aceitou fornecer-lhe proteção a si e aos seus filhos durante dois anos — afirmou Gabriel’ É óbvio que não acha que isso seja tempo suficiente.
— Não, não acho.
— Os contribuintes americanos não podem pagar a fatura para sempre. Quando os homens da CIA forem embora, contrato meus próprios guarda-costas.
— E o que vai acontecer quando o dinheiro acabar?
— Suponho que possa vender aquele quadro que falsificou para mim. — Sorriu. — Gostaria de vê-lo?
Levou-o para o salão e parou à frente de uma cópia exata de Duas Crianças Numa Praia, de Mary Cassatt. Era a segunda versão do quadro que Gabriel produzira. A primeira tinha sido vendida a Ivan Kharkov por dois milhões e meio de dólares e estava agora na posse dos delegados do Ministério Público francês.
— Não tenho certeza de que combine com a decoração de Adirondack.
— Não quero saber. Vou deixá-lo ficar exatamente onde está — encostou a mão ao queixo e inclinou a cabeça para o lado.
— Acho que é melhor do que a primeira, não acha? As suas pinceladas estavam um pouquinho empastadas na primeira versão. Esta está perfeita. — Olhou para ele. — Mas suponho que não tenha feito esta viagem toda para falar dos meus filhos ou para ouvir as minhas críticas ao seu trabalho.
Gabriel ficou em silêncio. Elena contemplou o quadro. Sabe, Gabriel, você devia ter seguido mesmo uma carreira de artista. Podia ter sido grande. E, com um pouquinho de sorte, nunca teria tido o infortúnio de conhecer meu marido. Mais de cem profissionais do serviço secreto de quatro países tinham estado envolvidos no caso Kharkov e a maior parte continuava curiosa com uma coisa: por que Elena Varlamova, a linda e culta filha de um economista de Leningrado a serviço do Partido Comunista tinha resolvido se casar com um bandido como Ivan Kharkov?
Ele já trabalhava há algum tempo para a Quinta Direção Principal do KGB na época do casamento e parecia destinado a ter uma carreira cintilante. Mas, no fim da década de 1980, enquanto a União Soviética respirava ofegante no leito de morte, sua sorte conheceu uma mudança de rumo inesperada. Numa tentativa desesperada para insuflar vida na moribunda economia soviética, Mikhail Gorbachev introduzira reformas econômicas que tinham permitido a formação limitada de capital de investimento. Encorajado pelos superiores, Ivan deixou o KGB e criou um dos primeiros bancos privados da Rússia. Auxiliado pela mão oculta dos seus antigos colegas, o banco depressa se tornou extraordinariamente rentável e, quando a União Soviética soltou por fim o último suspiro, Ivan estava numa posição única para se apoderar de alguns dos seus bens mais valiosos. Entre eles, estava uma frota de navios e de aviões de carga, que ele converteu numa das maiores companhias de transporte de mercadorias do mundo. Passado pouco tempo, os barcos e os aviões de Ivan partiam para destinos em África, no Médio Oriente e na América Latina, carregados com um dos poucos produtos que os russos faziam bem: armas.
Ivan gostava de se gabar de ser capaz de deitar a mão a qualquer coisa e de a enviar para qualquer lado, em alguns casos de um dia para o outro. Não se importava minimamente com questões morais; apenas com o dinheiro. Estava disposto a vender fosse a quem fosse, desde que conseguissem pagar. E, se não conseguissem, oferecia-se para providenciar financiamento através do seu banco. Vendia as armas a ditadores e vendia-as a rebeldes. Vendia-as a combatentes da liberdade com ressentimentos legítimos e a maníacos dados ao genocídio que chacinavam mulheres e crianças. Especializou-se no fornecimento de armas a regimes tão intoleráveis, que não eram capazes de obter armamento pelas fontes legais. Aperfeiçoou a prática de vender a ambos os lados de um conflito, moderando judiciosa’ mente o fluxo de armas, de maneira a prolongar as mortes e a maximizar os lucros. Destruiu países. Destruiu povos. E, pelo caminho, tornou-se extremamente rico. Durante vários anos, tinha conseguido manter a sua rede de mortandade cuidadosamente escondida. Para o resto do mundo,. Ivan Kharkov era o símbolo perfeito da Nova Rússia — um investidor e homem de negócios arguto que se deslocava com facilidade entre o Oriente e o Ocidente, colecionando casas dispendiosas, iates de luxo e amantes lindas. Mais tarde, Elena admitira a Gabriel ter tido parte ativa no grandioso logro perpetrado por Ivan. Tinha fechado os olhos às suas escapadelas românticas, exatamente como se protegera a ela própria numa ignorância voluntária quanto à verdadeira fonte da muita riqueza do marido.
Mas, por vezes, as vidas são viradas do avesso num instante. A de Gabriel alterara-se uma noite, em Viena, no tempo que demorou para que um detonador fizesse disparar uma carga de explosivo plástico colocada debaixo do seu carro. Para Elena Kharkov, tinha sido na noite em que ouvira por acaso uma conversa telefônica entre o marido e o seu chefe de segurança, Arkady Medvedev. Confrontada com a possibilidade de milhares de pessoas inocentes virem a morrer por causa da avidez do marido, preferiu traí-lo a ficar calada. As suas ações levaram-na a uma villa isolada nas colinas por cima de Saint-Tropez, onde se ofereceu para ajudar Gabriel a roubar os segredos de Ivan. A operação que se seguiu tinha quase posto um fim à vida de ambos. Havia uma imagem que iria perdurar para sempre na terrível galeria das recordações de Gabriel: a imagem de Elena Kharkov, amarrada a uma cadeira no armazém do marido, Com a pistola de Arkady Medvedev encostada à cabeça. Arkady queria que Gabriel lhe revelasse o paradeiro de Anna e Nikolai. Elena estava preparada para morrer para não ter de responder.
É melhor carregares no gatilho, Arkady, porque Ivan nunca irá ficar com essas crianças’ Agora, sentado diante de uma lareira no salão da mansão de Adirondack, Gabriel estava a dar-lhe a notícia de que Ivan tinha conseguido raptar Grigori Bulganov, o homem que lhes tinha salvo a vida naquela noite. E que Olga Sukhova, a velha amiga de Elena, dos tempos da Universidade Estatal de Leningrado, fora alvo de uma tentativa de assassinato em Oxford. Elena recebeu as notícias de forma calma, como se tivesse sido informada de uma morte há mui, to esperada. A seguir, recebeu uma fotografia: um homem parado no hall das chegadas do Aeroporto de Heathrow. O modo como a expressão dela se ensombrou repentinamente mostrou a Gabriel que a sua viagem não tinha sido em vão.
— Já o tinha visto?
Elena acenou com a cabeça.
— Em Moscou, há muito tempo. Era uma visita habitual na nossa casa, na Zhukovka.
— E costumava ir sozinho?
Ela abanou a cabeça.
— Só com o Arkady.
— Alguma vez lhe disseram o nome dele?
— Nunca me diziam os nomes deles.
— E nunca aconteceu de ouvir um por acaso?
— Receio que não.
Gabriel tentou esconder a desilusão e perguntou se conseguia lembrar-se de mais alguma coisa. Ela olhou para a fotografia, como se estivesse a tentar limpar o pó da memória.
— Lembro-me de que o Arkady se mostrava sempre muito respeitador na presença dele. Eu achava isso bastante estranho, porque o Arkady não se mostrava respeitador à frente de ninguém.
Desviou os olhos da fotografia e fitou Gabriel. É uma pena que o tenha matado. Ele podia ter-lhe dito o nome.
O mundo é um lugar muito melhor sem pessoas como o Arkady Medvedev.
Isso é verdade. Às vezes, até desejava que tivesse sido eu a matá-lo. — Virou a cabeça e olhou fixamente para o outro lado da sala, na direção do quadro. — A questão que se coloca é por que razão terá Ivan contratado este mesmo homem para me tirar os meus filhos? Gabriel pegou na mão de Elena e apertou-a de uma forma reconfortante.
Já tive oportunidade de experimentar a segurança do Adrian em primeira mão. Aqui, Ivan não tem hipótese nenhuma de alguma vez a conseguir encontrar a si e às crianças. Sentir-me-ia melhor sabendo que você estava aqui. Olhou para ele. É capaz de ficar aqui conosco, Gabriel? Só por um dia ou dois? Não sei se Grigori pode dispensar um dia ou dois. Grigori? Olhou desanimada para a lareira. Eu sei o que o meu marido e os amigos dele do FSB fazem a quem os trai.
Devia esquecer Grigori. É melhor concentrar-se nos vivos.
CAPÍTULO 34
NORTE DO ESTADO DE NOVA YORK
Gabriel concordou em passar lá a noite e voltar a Washington na manhã seguinte. Depois de se instalar num dos quartos de hóspedes no segundo andar, foi à procura de um telefone. Como medida de segurança, Ed Fielding tinha retirado todos os telefones do casarão principal. Com efeito, havia apenas um único telefone em toda a propriedade capaz de comunicar com o mundo exterior. Ficava no segundo edifício, em cima da mesa da sala de Fielding. Um pequeno letreiro advertia que todas as chamadas, independentemente da origem ou destino, eram acompanhadas e gravadas.
— Não é brincadeira nenhuma — avisou Fielding ao passar o fone a Gabriel. — De um profissional para outro. Fielding saiu do gabinete e fechou a porta Não estando disposto a revelar os procedimentos normais de comunicação do Escritório, Gabriel telefonou para o Boulevard King Saul utilizando o número geral e pediu para falar com Uzi Navot. A conversa entre ambos foi curta e levada a cabo numa forma de hebraico que nenhum supercomputador da NSA poderia alguma vez decifrar. Em poucos segundos, Navot conseguiu fazer um ponto da situação completo a Gabriel. Irina Bulganova tinha aterrado em Moscou em segurança, a equipe de Gabriel estava a regressar a Israel e Chiara voltava agora para a Úmbria, acompanhada pelos seus guarda-costas. Na verdade, acrescentou Navot depois de verificar que horas eram, provavelmente já lá deviam estar.
Gabriel desligou e ponderou se devia ligar ou não a Chiara. Decidiu que não era seguro. Contatar o Escritório através de uma linha da CIA era uma coisa, mas falar com Chiara ligando para casa ou para o celular era outra bem diferente. Iria ter de esperar até se encontrar fora da bolha da CIA para tentar contatá-la. Ao pousar o fone, pensou nas palavras que Elena acabara de proferir. Devia esquecer Grigori. É melhor concentrar-se nos vivos. Talvez ela tivesse razão. Talvez ele tivesse feito uma promessa que não poderia de maneira nenhuma cumprir. Talvez fosse altura de ir para casa e cuidar da mulher. Abriu a porta e avançou para o corredor, onde estava Ed Fielding, encostado à parede.
— Está tudo bem?
— Está tudo ótimo.
— Quer dar uma volta de carro?
— Até onde?
— Eu sei que está preocupado com Elena. Achei que ficaria mais descansado se mostrasse nossas medidas de segurança.
— Mesmo tendo em conta que eu trabalho para um serviço estrangeiro?
— Adrian diz que és da família. Isso é tudo o que eu preciso de saber.
Gabriel seguiu Fielding, em direção ao frio cortante do final da tarde. Esperara que a viagem fosse feita de jipe. Em vez disso, Fielding levou-o para um anexo, onde duas motos de neve brilhavam sob luzes fluorescentes suspensas. De um armário metálico, o homem da CIA retirou um par de capacetes, duas parcas, duas máscaras para a cara em neoprene e luvas windstopper. Cinco minutos mais tarde, depois de uma aula rudimentar sobre o funcionamento do veículo, Gabriel já ia lançado pelo bosque, atrás da quase tempestade de neve que Fielding ia produzindo pelo caminho, em direção a um canto longínquo da propriedade.
Examinaram primeiro a ponta mais ocidental da propriedade E, a seguir, o limite a sul, assinalado por um pequeno afluente do rio St. Regis. Duas semanas antes, um urso-preto tinha entrado na propriedade vindo do outro lado do rio e feito disparar detectores de movimento e sensores de calor infravermelhos. Fielding reagiu ao intruso enviando dois guardas, que se defrontaram com o urso trinta segundos depois da chegada do animal. Na perspectiva de ser transformado em tapete, o urso retirou-se sensatamente para o outro lado do rio e nunca mais foi visto.
— E há por aí outros animais selvagens com que devamos nos preocupar? — perguntou Gabriel.
— Só com veados, linces, castores e um ou outro lobo.
— Lobos?
— Apareceu um ainda no outro dia. Bem grande.
— E são perigosos?
— Só se os surpreendermos.
Fielding acelerou a fundo e desapareceu no meio de uma nuvem branca. Gabriel seguiu-o pela tortuosa margem do leito do riacho, até a ponta mais a leste da propriedade, assinalada por uma vedação de metal com arame farpado no topo. Mais ou menos a cada cinquenta metros, havia um letreiro a avisar que se tratava de uma propriedade privada e que quem fosse suficientemente tolo ao ponto de lá entrar seria processado até as últimas consequências da lei. Enquanto percorriam a vedação, em grande velocidade e lado a lado, Gabriel reparou que Fielding estava a falar pelo rádio. Quando chegaram à estrada, era evidente que se passava alguma coisa. Fielding parou e fez sinal a Gabriel para fazer o mesmo.
— Telefone.
Gabriel não precisava de perguntar quem tinha feito o telefonema. Apenas uma pessoa sabia onde ele estava ou como contatá-lo.
— Do que se trata?
— Ele não disse. Mas quer falar com você imediatamente. Fielding levou Gabriel de volta às instalações pelo caminho mais curto possível. A noite já estava a cair quando chegaram, e os dois casarões de Adirondack já pouco mais eram do que silhuetas recortadas no horizonte cor de fogo. Elena Kharkov estava parada à en trada do casarão principal, com os braços cruzados por baixo do peito e o longo cabelo escuro soprado pelo vento glacial. Gabriel e Fielding passaram por ela a toda a velocidade, sem dizerem uma palavra, e entraram no segundo edifício. O telefone no gabinete de Fielding estava fora do descanso. Gabriel levantou o fone rapidamente, encostando-o à orelha, e ouviu a voz de Adrian Carter. Se houve de fato uma gravação da conversa que se seguiu, não existiu durante muito tempo. Carter nunca falaria dela, a não ser para dizer que tinha sido uma das mais difíceis da sua longa carreira. A única outra testemunha foi Ed Fielding. O responsável pela segurança não conseguiu ouvir as palavras de Carter, mas pôde aperceber-se do peso terrível que provocavam. Viu uma mão a agarrar o telefone com tanta força, que os nós dos dedos ficaram brancos. E viu os olhos. Os olhos verdes invulgarmente vivos e que naquele momento ardiam com uma raiva aterrorizadora. Quando Fielding saiu discretamente do gabinete, chegou à conclusão de que nunca antes tinha visto uma raiva assim tão grande. Não sabia o que o seu amigo Adrian Carter estava a dizer ao lendário assassino israelense. Mas tinha certeza de uma coisa. Iria jorrar sangue. E homens iriam morrer.
TERCEIRA PARTE
QUITES
CAPÍTULO 35
TIBERÍADES, ISRAEL
Há muito que Ari Shamron tinha perdido a dádiva do sono. Como a maioria dos homens, fora-lhe tirada já tarde na vida, mas por razões que eram unicamente suas. Contara tantas mentiras, urdira tantos logros, que já não era capaz de distinguir entre fato e ficção, verdade e mentira. Condenado pelo seu trabalho a permanecer acordado para sempre, Shamron passava noites inteiras a deambular sem fim pelas salas de arquivo seguras do seu passado, revivendo casos antigos, percorrendo velhos campos de batalha e confrontando inimigos vencidos há muito.
E depois havia o telefone. Durante: a longa e turbulenta carreira de Shamron, tinha tocado às horas mais aterradoras, normalmente com notícias de mortes. Por ele ter dedicado a vida a proteger o estado de Israel e, logo, o povo judeu, os telefonemas tinham sido um autêntico catálogo de horrores. Fora informado de atos de guerra e de atos de terrorismo, de sequestros de aviões e de explosões assassinas causadas por homens-bomba, de embaixadas e sinagogas reduzidas a escombros. E, em tempos, muitos anos atrás, tinha sido acordado com a notícia de que um homem que adorava como um filho acabara de perder a família com a explosão de uma bomba colocada num carro em Viena. Mas a chamada de Uzi Navot que chegou já bem tarde naquela noite foi quase de mais, fazendo com que Shamron soltasse um grito de raiva e se agarrasse ao peito, angustiado. Gilah, deitada ao lado dele na altura, diria mais tarde que tinha temido que o marido estivesse a ter outro ataque cardíaco. Shamron acalmou-se rapidamente e disparou umas quantas ordens vigorosas antes de pousar o fone delicadamente.
Deixou-se ficar sem se mexer durante um longo momento, com a respiração rápida e superficial. Havia um ritual na casa de Shamron. No final desse gênero de telefonemas, Gilah costumava fazer uma única pergunta: “Quantos morreram desta vez?” Mas, pela reação do marido, Gilah pôde perceber que esta chamada tinha sido diferente. Por isso, esticou a mão, no escuro, e tocou na pele seca do rosto cavado dele. Pela segunda vez apenas no casamento de ambos, sentiu lágrimas a escorrerem.
— O que se passa, Ari? Que aconteceu? Ao ouvir a resposta, levou as duas mãos à cara e chorou.
— Onde ele está?
— Na América.
— E já sabe?
— Acabaram de lhe dizer.
— E vem para casa?
— Chega de manhã.
— E já sabemos quem foi?
— Temos as nossas suspeitas.
— O que vais fazer?
— Amos não me quer por perto. Acha que vou ser uma distração.
— E quem é o Amos para te dizer o que deves fazer? O Gabriel é como um filho para ti. Diz ao Amos que ele pode mas é ir-se lixar. Diz-lhe que vai voltar para a Boulevard King Saul.
Shamron ficou em silêncio durante um momento.
— De repente, ele não vai me querer lá...
— Quem?
— Gabriel.
E por que acha isso, Ari?
— Porque se eu não o tivesse...
A voz foi sumindo.
— Porque se não o tivesse recrutado há não sei quanto tempo, nada disso teria acontecido? Era isso que ia dizer?
Shamron não respondeu.
— Gabriel é mais parecido com você do que pensa. Não teve outra escolha a não ser lutar. Nenhum de nós tem.
Gilah limpou as lágrimas do rosto do marido.
— Levante-se da cama, Ari. Vai para Tel Aviv. E não deixes de estar à espera em Ben-Gurion quando ele chegar. Ele precisa ver uma cara conhecida. — Interrompeu-se por uns instantes e depois rematou: — Ele precisa ver o seu abba1.
Shamron sentou-se na cama e desceu os pés lentamente até o chão.
— Posso fazer um café ou qualquer coisa para você comer?
— Não há tempo.
— Vou pegar umas roupas limpas.
Gilah acendeu o candeeiro da sua mesinha-de-cabeceira e saiu da cama. Shamron voltou a pegar no telefone e ligou para o barracão dos guardas ao fundo do caminho de entrada para a sua casa. Quem atendeu foi Rami, o chefe de longa data do seu serviço de segurança permanente.
— Prepare o carro — ordenou Shamron.
— O que houve, chefe?
— É Gabriel. Você logo ficará sabendo.
Shamron desligou o telefone e pôs-se em pé. Nessa altura, Gilah já tinha a roupa dele estendida na cama: calça passada caqui, camisa clássica branca, jaqueta de couro de piloto, com um rasgão no peito do lado direito. Shamron esticou-se na sua direção e deu-lhe um puxãozinho suave. Vamos travar mais uma luta juntos, pensou. Uma última operação.
Acendeu um cigarro e vestiu-se lentamente, como se estivesse colocando uma armadura para a batalha. Colocou o casaco e dirigiu-se para a cozinha, onde Gilah fazia café.
— Eu disse que não havia tempo.
— É para mim, Ari.
— Devia voltar para a cama, Gilah.
— Agora, já não consigo dormir.
Olhou para o cigarro que ardia entre os dedos amarelados do marido, mas sabia que o melhor era não o repreender.
— Tente não fumar demais. O médico...
— Eu sei o que ele diz.
Ela deu-lhe um beijo no rosto.
— Liga quando puder?
— Ligo.
Shamron saiu. A casa estava virada para leste, em direção ao mar da Galileia e à avassaladora massa escura dos montes Golã. Shamron comprara-a há muitos anos porque ela lhe permitia vigiar os inimigos de Israel. Porém, naquela noite, esses inimigos estavam para lá do horizonte. Com as suas ações, tinham acabado de declarar guerra ao Escritório. E agora o Escritório iria retribuir na mesma moeda.
A limusine blindada estava à espera no caminho de entrada. Rami ajudou-o a entrar para o banco de trás e depois instalou-se à frente ao lado do motorista. Quando o carro arrancou, o guarda-costas lançou um olhar rápido por cima do ombro e perguntou para onde iam.
— Boulevard King Saul.
Rami fez um aceno curto com a cabeça. Shamron pegou o telefone seguro e pressionou a tecla de discagem rápida. A voz que respondeu era jovem, masculina e impertinente. Fez com que Shanron ficasse logo rangendo os dentes de fúria. Trucidar vozes dessas era um dos seus passatempos preferidos.
— Preciso falar com ele imediatamente.
— Ele está dormindo.
— Mas não por muito mais tempo.
— Pediu para não ser perturbado a não ser que seja um caso de crise nacional.
— Então, sugiro que o acorde.
— É bom que seja importante.
O assessor pôs Shamron em espera, nunca uma boa ideia. Trinta segundos depois, surgiu na linha uma outra voz. Carregada de sono, pertencia ao primeiro-ministro de Israel.
— O que há, Ari?
— Perdemos dois rapazes na Itália esta noite — respondeu Shamron. — E a mulher de Gabriel está desaparecida.
Foi Margherita, a governanta, quem fez a descoberta. Mais tarde, ao ser interrogada pelas autoridades italianas e quando lhe perguntaram que horas eram na altura, responderia que talvez passassem cinco minutos das dez, embora tivesse admitido que não olhara para o seu relógio. As horas acabaram por corresponder de forma satisfatória aos seus registros de celular, que indicavam que ela tinha feito a primeira chamada às 22h07. E também encaixavam bem com o que ela fizera nessa noite. Várias testemunhas iriam recordar-se de tê-la visto sair de um café em Amelia por volta das 21h50, o que lhe dava mais do que tempo suficiente para regressar à Villa dei Fiori na sua pequenina lambreta.
A primeira indicação de problemas, disse ela, tinha sido a presença de um carro à frente do portão de segurança. Um Fiat grande parecia ter sido estacionado por um motorista bêbado, com a parte da frente encostada a uma árvore e os faróis apagados. Disse à policia que partira do princípio de que tivesse sido abandonado ou tivesse estado envolvido num acidente de pequena importância. Em vez de se aproximar do carro, preferira iluminá-lo primeiro com o feixe de luz do farol da lambreta. Foi então que reparou nas janelas partidas e nos pouquinhos de vidro espalhados pelo chão como cristais. E também se apercebeu de que o carro lhe era familiar. Pertencia aos dois amigos do restaurador, os jovens com nomes estranhos que não falavam nenhuma língua conhecida. Disse à polícia que nunca tinha acreditado verdadeiramente na história deles, pois o seu pai fora soldado e ela era capaz de reconhecer um par de guarda-costas quando via um. Descendo da moto, apressara-se para junto do carro para ver se havia alguém ferido e o que encontrara, disse, não era de modo algum nenhum acidente. Os dois homens tinham levado uma série de tiros e estavam encharcados em sangue. Apesar de Margherita ter sido a primeira pessoa a ser interrogada pela Polícia, a verdade não fora ela a chamá-la. Tal como os outros membros do pessoal da villa, recebera instruções precisas sobre o que fazer em caso de haver algum incidente que envolvesse o restaurador ou a mulher. Deveria telefonar ao conde Gasparri, o proprietário ausente da villa, e informá-lo em primeiro lugar. Coisa que tinha feito às 22h07. O conde tinha então telefonado apressadamente ao monsenhor Luigi Donati, o secretário pessoal de Sua Santidade, o papa Paulo VII, o qual contatara o Escritório Central dos Serviços de Segurança do Vaticano. Passados vinte minutos, unidades da Polizia di Stato e dos carabiniere tinham chegado à entrada da villa e selado o local com cordões. Sem serem capazes de encontrar as chaves do carro, os agentes abriram a bagageira à força. Lá dentro, tinham encontrado três malas, uma cheia de artigos femininos, e uma carteira de senhora. O agente responsável deduzira rapidamente que a cena do crime representava mais do que apenas um duplo homicídio. Tudo levava a crer que tinha estado uma mulher dentro do carro. E a mulher estava agora desaparecida. Sem que os agentes presentes no local tivessem conhecimento disso, tinha sido feito um telefonema discreto do Vaticano para os empregadores da mulher, em Tel Aviv. O agente que atendera a chamada contatara imediatamente Uzi Navot, que naquele momento se dirigia para casa, no subúrbio de Petah Tikvah, em Tel Aviv, e que fez uma inversão de marcha repentina e imprudente, voltando ao Boulevard King Saul a uma velocidade perigosa. Pelo caminho, fez três chamadas no telefone seguro: uma para Adrian Carter, em Langley, a seguinte para o diretor do Escritório e uma terceira para o Memuneh, aquele que mandava.
Quanto a Gabriel, desconhecia a maior parte da tempestade em volta. Com efeito, no mesmo momento em que Shamron despertava o primeiro-ministro, ele fazia todo o possível para consolar uma desesperada Elena Kharkov. Seus dois filhos, Anna e Nikolai, brincavam tranquilamente na sala ao lado, sem ideia do que acontecia. O que foi dito ao certo entre Gabriel e Elena nunca seria conhecido. Saíram juntos do casarão pouco depois, Elena lavada em lágrimas, Gabriel com um ar estoico e a mala de fim de semana pendurada no ombro. Quando chegou ao Aeroporto Regional de Adirondack, seu avião tinha o tanque cheio e recebera autorização para decolar. Levou-o diretamente para a Base Andrews da força aérea, onde um segundo avião, um Gulfstream G500, estava À espera para o transportar para casa. Mais tarde, a tripulação relataria que ele não tinha comido nem bebido nada durante o voo de dez horas, tal como não dissera uma única palavra. Limitou-se a ficar sentado no seu lugar como uma estátua, a olhar fixamente pela janela, em direção à escuridão.