Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Memórias de Idhún
Volume IV / Primeira Parte
O DESTINO
COMO O MAIS PROFUNDO DOS OCEANOS
- Sssenhor - disse o szish, inclinando-se ante Ashran. - O príncipe chegou.
- Fá-lo entrar - respondeu o Necromante após um momento de silêncio.
O homem-serpente assentiu e saiu da sala. Ashran voltou-se para Zeshak, que estivera a ouvir a conversa num recanto das sombras.
- Vais falar com ele? - perguntou em voz baixa.
- Não - disse Zeshak, semicerrando os olhos. - Sabes que não suporto a sua presença.
- Devias começar a ver o rapaz de outra maneira - censurou-o Ashran. - Pode ter uma parte humana, mas apesar disso conseguiu o que nenhum outro shek tinha conseguido antes: acabou com o último dos dragões. Graças a ele, todos os sheks são livres. E derrotámos a profecia dos Seis. Agora nada nos pode parar.
O rei das serpentes ficou a olhar para ele.
- Nada? - perguntou. - Os deuses já não podem fazer mais nada?
- Depois da extinção dos dragões? - Ashran abanou a cabeça. Duvido. Embora... nunca se sabe.
- Nunca se sabe - anuiu Zeshak, pensativo. - Não vou descansar enquanto não tiverem caído todos os rebeldes. O bosque de Awa, a Fortaleça de Nurgon... não gosto de deixar pontas soltas. Foi esse o nosso erro da última vez.
- Quando correr o boato de que o último dragão morreu, os rebeldes render-se-ão. Não podem fazer nada sem ele.
- Têm o unicórnio.
- Não, não têm. Já não.
- Pode ser que continuem a ter Kirtash. Pensaste nisso?
- Kirtash nunca foi fiel à Resistência. É certo que há algum tempo que também não me é leal. Mas traiu o unicórnio sem querer, portanto, já só lhe resta ser leal a si mesmo. E é um shek.
O rei das serpentes não disse nada. Limitou-se a emitir um suave cicio.
Christian entrou na sala momentos depois: frio, sereno e orgulhoso, com Haiass presa às costas. No entanto, nem Ashran nem Zeshak puderam deixar de notar o brilho que emanava dos seus olhos de gelo, um brilho de sofrimento que denunciava nele aquela humanidade que tanto os aborrecia. Parou diante deles e inclinou a cabeça num gesto de cumprimento. Mas não dobrou o joelho ante os seus senhores, como teria feito outrora. Zeshak ciciou baixinho, aborrecido. Ashran não ligou. Fizera o que esperava dele, tinha cumprido a sua missão. Podia bem perdoar-lhe algumas extravagâncias.
- com que então voltaste a casa - disse Ashran.
Christian pensou que não tinha nenhum outro lugar para onde ir, mas não o disse em voz alta. Era demasiado óbvio; de modo que permaneceu calado.
Sentia o olhar de Zeshak cravado nele e esforçou-se por se manter sereno. O rei das serpentes inquietava-o muito mais do que qualquer outro shek. A sua simples presença era desconcertante e, embora tivesse sempre pensado que era devido ao poder que emanava, tinha a sensação de que se tratava de algo mais. De qualquer forma, tinham estado poucas vezes juntos na mesma sala. Christian sabia que Zeshak não o suportava, que tolerava a sua existência, a de um híbrido de shek e humano, como um mal necessário. Considerava-o uma aberração e não fazia nada para esconder o muito que lhe desagradava.
Daquela vez não foi diferente. O senhor dos sheks já deslizava os seus anéis em direcção à janela aberta, com intenção de abandonar a sala. Christian intuiu que tinha ficado apenas para verificar se, após a morte do dragão, voltara a ser como era antes. Parecia evidente que o que vira nele o tinha decepcionado. Christian sentia que o shek que habitava dentro de si continuava lá, mais poderoso que nunca; mas a sua alma humana também pulsava nele com força; o seu amor por Victoria continuava a ser intenso, demasiado intenso, e nem todo o gelo do shek conseguiria toldar a lembrança do seu olhar luminoso.
Uma luz... que ele apagara para sempre ao matar Jack. Uma parte dele alegrava-se com a morte do dragão. A outra lamentava-a profundamente, pelo mal que isso tinha causado a Victoria.
Perdido nos seus pensamentos sombrios, mal se apercebeu da partida de Zeshak, que se afastou a voar sem se dignar a dirigir-lhe a palavra. Um movimento de Ashran fê-lo voltar à realidade. O Necromante aproximou-se dele para o observar de perto. Christian levantou a cabeça e olhou-o nos olhos.
- Conseguiste - disse Ashran. - Mataste o último dragão.
- Levaste a tua avante - respondeu Christian a meia-voz. - Sabias que eu o faria, não é? Foi por isso que me deixaste escapar da última vez, quando resgatei Victoria. Quando me juntei à Resistência não te estava a trair. Estava a servir os teus propósitos. Continuava a trabalhar para ti, embora não o soubesse, embora não o quisesse. Sabias que acabaria por matar o dragão, já que era esse o meu destino.
- Foi para isso que foste criado, Kirtash. - Ashran afastou-se dele e dirigiu-se à janela por onde Zeshak saíra. - Essa é a única razão da tua existência. A Porta para o outro mundo não permite a passagem dos sheks, e também não me servia um humano, nem um szish, porque eles não sentem pelos dragões o ódio que os sheks sentem, porque não detectariam o unicórnio como uma serpente alada o faria. A única opção que tinha era criar um híbrido... por isso criei-te a ti.
- Então, agora que já terminou a tarefa para que fui criado, qual é a razão da minha existência?
- Desfrutar do teu triunfo, filho - sorriu Ashran. - Ganhaste. Herdarás o meu império; nem sequer os sheks podem negar o muito que te devem. Até mesmo Zeshak acabará por o aceitar.
Christian desviou o olhar.
- Não me podes conceder a recompensa que desejo. Ashran voltou-se para o olhar fixamente.
- Não foste criado para amar, Kirtash.
- Não - admitiu o rapaz. - Criaste-me para odiar, para destruir, para matar. Nunca me rebelei contra isso. É parte de mim, sabes que o aceito. Mas, além de tudo isso, a verdade é que amo, pai. Esta humanidade que me permitiu chegar ao outro mundo, que me levou até à Resistência, tem em mim outros efeitos. Acabei com a vida do dragão, isso é certo. Acabei por fazer o que querias que fizesse. Mas jamais conseguirás que mate o unicórnio. Morrerei a defendê-la, se for preciso.
- Seria uma perda absurda. Não, Kirtash, disse-to uma vez e repito-o: não tenho nada contra essa jovem, já não. Agora que o dragão foi derrotado, a morte do unicórnio já não é necessária. Cumprirei a minha parte do trato: encarregar-me-ei de que ninguém lhe faça mal, se é isso que desejas. Também posso conseguir que volte para ti...
- Para me matar - alvitrou Christian em voz baixa. Ashran ergueu uma sobrancelha.
- Acreditas mesmo nisso? Se te matar, Kirtash, se acabar com a tua vida, estará a assassinar-se a si mesma. É o último unicórnio que resta no mundo. Também ela, como híbrido, foi criada para cumprir uma missão. Agora que a profecia não pode cumprir-se, a sua vida já não tem nenhum sentido. Precisa de ti, porque és o único que pode dar um novo significado à sua existência, o único que pode criar um futuro para ela.
- Nunca quis magoá-la - sussurrou Christian.
- Mas era necessário. És um shek, filho, sabes o quanto era importante para os sheks acabar com todos os dragões do mundo. Por muito que isso te doa.
- Eu sei. Mas se está na nossa natureza odiar os dragões... que sentido faz que eles já não existam?
Ashran dirigiu-lhe um olhar inquiridor.
- És um rapaz estranho, Kirtash.
- Sou único no mundo - sorriu ele, com suavidade.
- Apesar disso... não estás contente por estar novamente em casa? Christian demorou um pouco a responder.
- Sim - disse por fim. - Sim, é verdade. Fico contente por estar em casa.
Mas fechou os olhos por um momento e sentiu, de novo, a dor de Victoria. É que, apesar de terem passado vários dias desde a morte de Jack, ela usava ainda o Olho da Serpente, aquele anel que a unia a Christian. O jovem não conseguia deixar de se perguntar porquê.
- Devias descansar um pouco - disse Shail em voz baixa.
Zaisei não respondeu. Continuava sentada no alpendre, com as costas apoiadas numa coluna, contemplando as estrelas. Shail sentou-se junto dela, com um suspiro.
- Ela não vai melhorar, pois não? - murmurou.
Zaisei voltou-se para ele e olhou-o com um sorriso cansado.
- Perguntas-me a mim? Shail, tu conhece-la melhor do que eu.
- Mas não consigo captar o que sente da mesma forma que tu, Zaisei. Sei porque não és capaz de estar na mesma divisão que ela. A sua dor é tão intensa que te faz mal.
Zaisei desviou o olhar.
- É verdade, capto os seus sentimentos. Mas não os compreendo. Não sou capaz de os interpretar. Porque não chora, nem grita, porque não se mexe nem diz nada? Está acordada, mas é como se se encontrasse muito longe daqui.
Shail fechou os olhos, exausto.
Victoria estava há vários dias quase sem se mexer, sem comer, sem dormir, sem reagir a nenhum estímulo externo. Shail e Zaisei tinham-na levado para uma aldeia celeste do outro lado do rio. Lá, os celestes tinham-lhes proporcionado uma pequena casa para que cuidassem dela; nos primeiros dias, tinham-se mostrado interessados pelo estado da jovem, mas pouco a pouco tinham deixado de a ir ver. Shail sabia porquê. A capacidade empática dos celestes permitia-lhes intuir com bastante clareza o que ela sentia, e a maioria tinha saído da casa com o coração apertado, o rosto pálido ou os olhos cheios de lágrimas, ou as três coisas ao mesmo tempo.
O pior de tudo era a expressão de Victoria, tão ausente, tão serena, como se aquilo não tivesse nada a ver com ela. Tinham-na estendido numa cama e ela não se mexera dali durante todo aquele tempo, deitada de lado, com o olhar perdido e as mãos agarradas ao punho de Domivat.
Não tinham conseguido tirar-lhe a espada. Negava-se a separar-se dela, e a única coisa que Shail conseguira fora embainhá-la para que Victoria não se magoasse com o fio, que, embora se tivesse apagado, continuava a ser tão cortante como sempre.
O feiticeiro não podia deixar de se perguntar até que ponto Domivat conservava a essência de Jack, se Victoria era capaz de a sentir, e se era isso que a mantinha com vida.
Uma parte dela morrera com Jack, disso tinha a certeza. E Shail temia que ela desejasse morrer também, que não tivesse forças para continuar a lutar.
Olhou para Zaisei. A jovem sacerdotisa estivera sempre ao seu lado. Mas a influência do sofrimento de Victoria estava a deixar marcas no seu rosto, que parecia pálido e abatido. Shail via em Zaisei tudo o que não se reflectia na expressão ausente da rapariga, e suspeitava que o que a celeste captava não era nem um décimo da dor de Victoria. Aquilo fê-lo sentir-se angustiado.
- Não tens porque ficar aqui, Zaisei - disse-lhe com doçura. - Eu cuidarei de Victoria. Regressa ao Oráculo. Além disso, alguém tem de dizer...
Interrompeu-se e mordeu o lábio inferior, preocupado.
Alguém tinha de dizer à Resistência que Jack morrera, que a profecia não se cumpriria, que Ashran vencera e que a luta de todos aquelês anos tinha sido em vão. Era demasiado cruel.
Engolindo em seco, desviou o olhar para o bordão que lhe permitia caminhar. Também tinha perdido a perna para nada. Esse pensamento encheu-o de raiva.
Ao erguer a cabeça encontrou novamente o olhar de Zaisei.
- Ficarei contigo - disse ela com suavidade.
Shail não disse nada, mas olhou-a longamente.
Recordava o dia em que se tinham conhecido com tanta clareza que o magoava.
Kirtash tinha-o enviado para Idhún através da Porta, salvando-o de Elrion. Custou-lhe bastante entender o que acontecera. Tinha-se interposto entre Victoria e aquele feiticeiro louco para salvar a vida da rapariga, estivera a ponto de morrer por ela, simplesmente porque tinha ouvido tudo o que Kirtash lhe dissera e compreendera, naquele mesmo instante e claramente, que a sua pequena Victoria era Lunnaris, o unicórnio que procurava. Foi instintivo: tinha acabado de encontrar Lunnaris e não ia permitir que Elrion lha arrebatasse, de modo que saltara para interceptar o seu ataque mágico.
Devia ter morrido, mas encontrou-se de repente, sozinho e muito desconcertado, no bosque de Alis Lithban.
Quando compreendeu, ou julgou compreender, o que acontecera, fugiu para a Torre de Kazlunn, ocultando-se na noite evitando as serpentes, numa viagem tenebrosa e incerta.
Pelo caminho encontrara-se com Zaisei.
A jovem sacerdotisa dirigia-se a Kazlunn numa espécie de missão diplomática. Tinha feito já várias viagens como emissária entre o Oráculo e a torre dos feiticeiros; normalmente os sheks não reparavam nela, pois em geral ignoravam os celestes como se não existissem. Não constituíam uma ameaça para eles; como eram inofensivos, deixavam-nos viver em paz.
Zaisei tinha feito o seu pássaro dourado pousar para descansar um pouco, e Shail, esgotado e desesperado, estivera prestes a atacá-la para lhe roubar a montada. Tinha saltado sobre ela traiçoeiramente na escuridão, mas o seu olhar violáceo aplacara-o instantaneamente. Teria de ser muito canalha para fazer mal a um celeste.
Prosseguiram juntos a viagem até Kazlunn e estiveram quase a não chegar, pois, embora os sheks ignorassem Zaisei, um feiticeiro renegado era muito diferente, e a simples presença de Shail colocava em perigo a missão da sacerdotisa. Ambos sabiam disso, no entanto, continuaram juntos até ao fim. Porquê? Talvez pelo mesmo motivo pelo qual se mantinham juntos agora, disse Shail para si, e o coração acelerou por um instante. Ao chegarem à torre, e sobretudo mais tarde, quando ele regressou à Terra, tornara-se evidente que as diferenças entre ambos, um feiticeiro e uma sacerdotisa, erguiam um muro talvez intransponível. Mas a verdade é que continuavam juntos.
- Sou tão estúpido - murmurou.
- Porque dizes isso?
- Quis ser o mestre de Victoria, ensinar-lhe muitas coisas. No entanto, sou eu que devia ter aprendido com ela.
Zaisei riu suavemente. Mas era um riso nervoso. Talvez porque percebia a intensidade do olhar de Shail e intuía o que lhe ia por dentro.
- Victoria sentia algo muito profundo por Jack e por Kirtash - prosseguiu o feiticeiro. - Era uma loucura, não podia correr bem, e ela própria também não o entendia. Mas deixou-se guiar pelo coração. Agiu em conformidade, e pareceu-me bem. Durante um tempo funcionou, manteve a Resistência unida, atraiu Kirtash para o nosso lado. Ela sozinha, com a força do seu coração, dos seus sentimentos, deu os primeiros passos para o cumprimento da profecia, muito antes de qualquer um de nós saber sequer que um shek estava implicado nela. Defendeu o seu amor pelos dois contra tudo e todos. Foi muito corajosa. E eu devia ter aprendido isso com ela, devia ter aprendido que não importa o quão difícil uma relação possa parecer; o que realmente interessa é a sinceridade dos nossos sentimentos. E eu... nunca to disse, Zaisei, porque sempre pensei que éramos demasiado diferentes, que não podia funcionar. Pensei-o até mesmo depois de ter assistido a algo tão insólito como o amor entre um unicórnio e um dragão, entre um unicórnio e um shek. Que estúpido fui.
- Não continues, Shail - sussurrou Zaisei, mas o feiticeiro não se calou.
- Amo-te, Zaisei. Desde o primeiro instante em que te vi. E tu soubeste-o sempre, mas também lias o medo e a indecisão no meu olhar, por isso calavas-te. Mas já não consigo continuar a virar as costas a isto por mais tempo.
Os olhos da sacerdotisa encheram-se de lágrimas.
- Não tenho nada para te oferecer - concluiu Shail. - Sou apenas um feiticeiro mutilado, consagrei a minha vida a uma missão que já não tem nenhum sentido e penso continuar a cuidar de Victoria enquanto for necessário. Sei que a razão me diz que devo deixar-te partir, para que encontres um futuro melhor noutro lado, um companheiro digno de ti. Mas estou a ver como Victoria morre por dentro, e vi Jack morrer, um rapaz tão jovem, tão corajoso... - A voz quebrou-se-lhe, e teve de fazer um esforço para prosseguir. - Estou a ver como a Resistência se desintegra, como a magia morre no nosso mundo. Tanta tristeza, tanta destruição... e eu pretendia silenciar a única coisa bela que resta em mim. Podes aceitá-lo ou recusá-lo, Zaisei, mas queria que soubesses que não vou negar mais que sinto algo muito especial por ti.
Zaisei fechou os olhos. Duas lágrimas rolaram pelas suas faces. Quando voltou a olhar para Shail, viu que ele estava muito perto dela e sorriu-lhe com doçura. Foi o sinal de que o feiticeiro estava à espera. Beijou-a suavemente. Enquanto o fazia, perguntou-se, sentindo-se um pouco tolo, porque deixara passar dois anos desde a primeira vez que sonhara com aquele momento.
Quando entrou novamente na casa, um pouco depois, Victoria continuava sem se mexer. Jazia de lado sobre a cama, com os olhos abertos, o olhar perdido e o rosto tranquilo, sereno como o mar calmo. Todo o seu corpo estava mole, à excepção dos dedos que se crispavam em volta do punho de Domivat. A espada de fogo repousava sobre o leito junto dela.
Shail sentou-se ao seu lado e olhou-a, preocupado. Recordou tudo o que dissera a Zaisei momentos antes, como decidira deixar-se levar pelos seus sentimentos e iniciar algo novo com ela. Mas agora, contemplando Victoria, teve medo.
A jovem unicórnio tinha agido de acordo com os seus sentimentos. E estes tinham-na conduzido directamente ao desastre. Shail perguntou-se por um momento se as coisas teriam sido diferentes se tivesse rejeitado Kirtash. Se Victoria tivesse optado por amar Jack e somente ele...
Recordou o momento em que Jack tivera a oportunidade de matar Kirtash em Limbhad e não o fizera. Agora, Jack estava morto.
Shail cerrou os punhos. Obviamente, ignorava que, tempos antes, também Jack poderia ter morrido às mãos do shek e que este tinha optado por lhe poupar a vida. Também esqueceu que, sem Kirtash, jamais teriam podido regressar a Idhún. Só recordava o instante fatal em que a espada do filho do Necromante se tinha enterrado no corpo de Jack e lhe tirara a vida, bem como a de Victoria, para sempre.
"Não vai sobreviver", pensou Shail, com raiva. "E tudo por culpa dessa maldita serpente."
- Lamento, Vic - murmurou. - Kirtash salvou-me a vida, por isso acreditei que estavas a salvo com ele. Não me ocorreu pensar em Jack, que Kirtash tentaria matá-lo mais cedo ou mais tarde, nem que, se o conseguisse, te mataria a ti também. Perdoa-me.
O seu olhar deteve-se nos dedos de Victoria, fechados em torno do punho de Domivat. Descobriu que Shiskatchegg, o Olho da Serpente, ainda brilhava no seu dedo. Franziu o sobrolho e tentou tirar-lho...
Mas o anel reagiu e fê-lo retirar a mão com uma exclamação de dor.
- Maldito sejas, Kirtash - sussurrou o feiticeiro, furioso. - Se Victoria morrer, juro que te matarei com as minhas próprias mãos.
Então, Victoria mexeu-se.
Shail pestanejou, sem conseguir acreditar no que via.
Assistiu, como num sonho, ao despertar da rapariga, que, com movimentos suaves e calmos, se levantou e contemplou a espada com um semblante inexpressivo.
Depois, ergueu o olhar para Shail. O seu rosto continuava sereno. Os olhos eram dois poços sem fundo que fizeram estremecer cada fibra do seu ser.
- Jack foi-se, não foi?
Shail pestanejou de novo, desta vez para conter as lágrimas. Naqueles dias tinha chorado a morte de Jack, mas chegara a pensar que pouco a pouco o superaria. Agora descobria que não era assim. Simplesmente, não conseguia habituar-se à ideia. Engoliu em seco para desfazer o nó na sua garganta e por fim conseguiu dizer:
- Sim, Vic, foi-se.
Quis acrescentar algo mais, mas não foi capaz. Victoria assentiu, como se esperasse aquela resposta.
- Está bem - disse apenas.
Naquele momento, Zaisei entrou na casa, sorrindo. Mas viu Victoria e, quando ela se voltou para olhar para ela, a celeste sufocou um grito e retrocedeu até à parede, a tremer. Shail não pôde evitar perguntar-se, inquieto, que tipo de sentimentos se escondia atrás do semblante sereno de Victoria e porque Zaisei a olhava com aquela expressão de terror estampada nas suas feições.
Victoria não derramou uma só lágrima, nem naquela noite, nem nas seguintes. Recuperou as forças lentamente; voltou a comer, a caminhar e a dormir. Mas falava pouco e passava a maior parte do tempo sentada no alpendre, no mesmo lugar onde Shail e Zaisei se tinham beijado pela primeira vez, com o olhar perdido, imóvel como uma estátua, agarrada ao seu báculo, que lhe devolvia pouco a pouco as energias que tinha perdido.
Shail procurou falar com ela algumas vezes, mas não conseguiu saber nada em concreto. Da primeira vez que lhe mencionou Jack, ela ergueu a cabeça para o olhar nos olhos, sem perder aquela estranha calma, que parecia tão arrepiante ao feiticeiro.
- Mas ele foi-se - disse Victoria.
Shail percebeu então, sob o seu tom de voz aparentemente sereno, uma desolação tão grande como a do mais árido dos desertos e uma dor tão funda como o mais profundo dos oceanos. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, e teve de as secar com a manga da túnica.
- Porque não choras, Vic? - perguntou-lhe. - Não sentes a falta dele?
Ela demorou um pouco a responder. Quando o fez, Shail desejou nunca ter perguntado.
- Os mortos não podem chorar - disse Victoria com suavidade.
- Vic, tu não estás morta - replicou o feiticeiro, com um calafrio.
- Não - admitiu ela, parecendo algo desconcertada. - Mas também não estou completamente viva. Diz-me, Shail, por acaso pode viver-se com meio coração?
O jovem não soube o que responder àquela estranha pergunta. Não falaram mais naquela noite. Shail teve de deixar Victoria para ir ter com Zaisei, que encontrou a chorar no seu quarto.
- Não aguento mais - soluçou ela. - Dói... Oh, dói tanto... Nunca me tinha sentido tão infeliz.
Shail embalou-a nos seus braços e procurou consolá-la o melhor que pôde. Zaisei demorou bastante tempo a acalmar-se.
- O que sentes é a dor de Victoria? - perguntou-lhe Shail em voz baixa. - Porque é que tu podes expressá-la e ela não?
A jovem celeste demorou um pouco a responder.
- A luz dos sóis permite-nos ver o que há à nossa volta - explicou.
- Mas, se olharmos fixamente para os sóis, a sua luz cega-nos e não conseguimos ver mais nada.
" Capto os sentimentos de Victoria da mesma maneira que tu vês a luz dos sóis. Os seus sentimentos afectam-me apenas parcialmente. Por sua vez, ela está tão perto do coração da dor, está a sofrer tanto, que não encontra maneira de o expressar. Não há lágrimas suficientes, não existem palavras nem gestos que possam reflectir tudo o que ela sente.
- Não consigo imaginar como isso pode ser - murmurou Shail, abatido.
Uma noite, depois do terceiro entardecer, Victoria pôs-se de pé e dirigiu-se à porta, com o báculo às costas e Domivat presa no cinto, sustentada por uma estranha e sombria força interior.
Shail foi atrás dela, preocupado.
- Vic, estás bem? Onde vais?
- À procura de Christian - respondeu ela, com um tom de voz tão frio que Shail estremeceu.
- De Christian? Para quê?
Ela olhou-o de relance. A voz não lhe tremeu, nem denotou ódio, nem dor, nem nenhum tipo de sentimento quando disse como se fosse óbvio:
- Para o matar.
Shail ficou sem fôlego. Em todos aqueles dias amaldiçoara mil e uma vezes o nome do shek, imaginara que ele próprio o assassinava para vingar Jack, sonhara reparar o erro que cometera ao aceitá-lo na Resistência. Mas ouvir aquelas palavras da boca de Victoria era algo muito diferente. Abanou a cabeça.
- Não. Não, recuso-me. Não vou deixar que o enfrentes.
Ela lançou-lhe um olhar demorado. Um olhar que fez o feiticeiro recuar alguns passos.
- Não podes impedir-me - disse, e não havia desafio, nem rebeldia, nem raiva na sua voz. Apenas constatava um facto.
Shail engoliu em seco, sentindo-se de repente muito pequeno em comparação com ela, como uma erva aos pés de uma árvore enorme.
Tinha razão. Afinal de contas, Victoria era um unicórnio, e Shail não era mais do que um simples humano.
Quando compreendeu isto, sentiu-se subitamente vazio. A pequena Victoria, a quem amara e cuidara como a uma irmã mais nova, tinha deixado de o ser. Tinha assumido a sua verdadeira natureza, e esta colocava-a muito acima de qualquer humano, inclusivamente dos feiticeiros, os quais, afinal de contas, deviam os seus poderes aos unicórnios.
De qualquer forma, tentou.
- Mas... é muito perigoso, Victoria. - O semblante dela continuava inexpressivo e Shail compreendeu que não ia no bom caminho; mudou de estratégia. - Além disso, temos de regressar a Vanissar. Para contar a Alexander tudo o que aconteceu. Acho que ele deve sabê-lo por ti.
Victoria meditou nas suas palavras durante uns instantes. Depois, para alívio de Shail, assentiu lentamente.
O clã de Hor preparava-se para a guerra.
Os guerreiros, homens e mulheres, afiavam as armas, preparavam os cavalos e apanhavam o cabelo no penteado ritual, ao ritmo dos tambores que ressoavam por toda a pradaria.
Não tardariam muito a partir para a batalha.
Estavam impacientes porque, pela primeira vez desde há muito, lutariam longe de Shur-Ikail, das pradarias púrpuras que os tinham visto nascer. Iriam além das terras dos reis, até aos confins do bosque de Awa, enfrentar os sheks.
Contudo, não fora simples reunir os clãs para aquela campanha. Alguns guerreiros diziam que o grande Hor-Dulkar temia a bruxa da Torre de Kazlunn e que por essa razão rebaixava-se a aliar-se a um príncipe de Nandelt. Todos sabiam que os reis de Nandelt se escondiam atrás de grandes exércitos porque tinham medo de combater corpo a corpo; e que na sua academia ensinavam que na guerra o mais importante era a honra e o dever, conceitos que eram motivo de chacota entre os bárbaros de Shur-Ikail. De que serviam a honra e a nobreza numa batalha? Os bárbaros costumavam dizer que qualquer cavaleiro de Nurgon tremeria de medo perante a força, a ferocidade e a coragem de um shur-ikaili.
E agora Hor-Dulkar, o mais poderoso senhor da guerra, aquele que ganhara pela força o domínio dos Nove Clãs, aliava-se a um dos últimos cavaleiros de Nurgon.
Hor-Dulkar tivera de fazer frente não só ao descontentamento geral, mas também a um desafio aberto. Kar-Yuq, o líder do clã Kar, que lhe devia lealdade, desafiara-o para um duelo corpo a corpo. Quem ganhasse passaria a ser senhor da guerra de todos os shur-ikaili.
Mas Hor-Dulkar não era o chefe dos clãs por acaso.
Viu-se livre de Yuq sem grandes problemas. Depois disso, mais ninguém se atreveu a desafiá-lo.
As notícias que foram chegando de Nandelt elevaram o ânimo dos guerreiros.
O príncipe Alsan tinha atacado a ponte de Namre. Um shek tinha caído na batalha.
O príncipe Alsan tinha recuperado o que restava da Fortaleza, afugentando a própria Ziessel.
O príncipe Alsan tinha repelido o primeiro ataque do exército de Dingra.
Os sheks preparavam um ataque a Nurgon; se o levassem a cabo, o mais provável era que aquele fosse o início do fim da rebelião. Mas o príncipe Alsan, que tinha regressado, segundo se dizia, de outro mundo, estava a lutar com um arrojo e uma audácia que fazia empalidecer de vergonha os ferozes bárbaros de Shur-Ikail. Algumas mulheres começaram a dizer que o príncipe Alsan de Vanissar era mais ousado do que qualquer um dos guerreiros dos clãs, que toleravam a presença da bruxa a governar em Kazlunn e se dedicavam a combater entre eles sem se atreverem a enfrentar os sheks.
De modo que, quando Hor-Dulkar anunciou que aquele príncipe Alsan era digno de cavalgar junto dos clãs dos shur-ikaili, poucos guerreiros o contrariaram.
Assim, depois de muitos séculos a lutar entre si, os clãs voltavam a unir-se. Os mensageiros de Nurgon tinham proposto a Hor-Dulkar que guiasse os seus guerreiros através de Shia, para depois invadir Dingra por oeste. O exército de Kevanion, que agora cercava Nurgon, seria atacado pela retaguarda e teria de retroceder para defender as suas fronteiras. Provavelmente os sheks permaneceriam perto de Nurgon, rnas as tropas do rei de Dingra ver-se-iam obrigadas a retirar.
O senhor da guerra aceitara o plano de bom grado.
Agora estavam já quase preparados, acampados nas margens do rio, aguardando que o último dos clãs se reunisse a eles. O clã de Uk vivia nas estepes do noroeste, nos confins de Shur-Ikail, e era lógico que demorassem um pouco mais. Mas Hor-Dulkar, impaciente, subia todas as manhãs às colinas, para ver se via o grupo de Uk-Rhiz no horizonte. "Tinha de ser mulher", resmungava para si.
Naquele dia, foi acordado pelos guardas antes do nascer do primeiro dos sóis.
- Uma mulher deseja ver-te, grande Hor-Dulkar - disseram-lhe. O bárbaro praguejou baixinho.
- E porquê tantos melindres? Diz a Rhiz que entre. Temos confiança, não?
- Não se trata de Uk-Rhiz. - O bárbaro baixou os olhos, envergonhado. Hor-Dulkar notou que tremia como uma criança, que a sua pele listada empalidecera de medo... mas, curiosamente, as suas faces estavam tingidas por um estranho rubor. - É a bruxa - acrescentou em voz baixa. - A bruxa da Torre de Kazlunn. Diz que quer falar
contigo.
Dulkar franziu o sobrolho e lançou a capa de peles por cima dos ombros, sem uma só palavra.
- Não fales com ela! - exclamou de repente a sentinela, a tremer. Não a olhes nos olhos!
É uma feiticeira!
- Desde quando os encantamentos têm poder sobre um shur-ikaili?
- contrapôs Dulkar. - Vivemos durante séculos aos pés da Torre de Kazlunn! Que não se diga que o Senhor dos Nove Clãs tem medo de uma fada, por muito bruxa que seja...
A sentinela desviou o olhar, sem ousar contradizê-lo. Hor-Dulkar saiu da tenda. A luz das luas iluminou a sua imponente figura.
A feiticeira viera sozinha. Escoltavam-na dois bárbaros, que se mantinham a uma distância prudente. O Senhor dos Nove Clãs perguntou-se o que significaria isso. Era uma exibição de força? Tinha tanta certeza do seu poder que não precisava de acompanhamento? Vinha com intenção de dialogar e o facto de aparecer sozinha era uma prova da sua boa-fé? Ou talvez tivesse vindo em segredo, pelas costas de Ashran...
Dulkar não o sabia. Titubeou um instante, mas recompôs-se de imediato e dirigiu-se a ela.
- És a bruxa da Torre de Kazlunn? - perguntou-lhe, com voz segura e potente.
Ela avançou dois passos. A luz das luas banhou o seu rosto.
- Sou a Senhora da Torre de Kazlunn - disse com voz aveludada. Mas tu, poderoso Senhor dos Nove Clãs, podes chamar-me Gerde.
Algo se agitou no interior do enorme bárbaro. A brisa nocturna fez-lhe chegar a fragrância inebriante da feiticeira. Sentiu o desejo premente de a observar mais atentamente; o timbre da sua voz ainda ressoava nos seus ouvidos como um canto de sereia quando lhe estenderam uma tocha que ele ergueu para contemplar Gerde à sua luz cálida.
A fada sorriu com doçura e lançou-lhe um olhar provocador. Vestia, como era seu hábito, roupas leves, muito leves. Desta vez levava os ombros descobertos, e o seu cabelo cor de azeitona acariciava-os com suavidade e caía pelas suas costas até abaixo da sua cintura esbelta.
Hor-Dulkar sentiu a garganta seca. Esforçou-se por se controlar. Não era nenhum rapazinho; tinha conhecido muitas mulheres, e achava muito mais atractivas as shur-ikaili, de músculos fortes, curvas generosas e carácter indomável, do que aquela fada delgada e delicada como um junco, com aqueles estranhos olhos tão profundos que lhe provocavam arrepios. No entanto, havia algo nela que era irresistível.
Procurou tirar aqueles pensamentos da cabeça.
- O que pretendes?
- Desejo dialogar contigo, ó Senhor dos Nove Clãs - respondeu ela. - É meu desejo, e do meu senhor, Ashran, que forjemos uma aliança: Kazlunn, Drackwen e Shur-Ikail.
O feiticeiro mais poderoso que existe com o maior dos senhores da guerra.
- Não pactuamos com feiticeiros, bruxa - replicou o bárbaro com orgulho; mas Gerde detectou um ligeiro tremor na sua voz e sorriu.
- Talvez desejes que o discutamos com mais calma. - Fez uma pausa e dirigiu-lhe um dos seus sorrisos mais sugestivos. - A sós.
Dulkar inspirou fundo, mas com isso apenas conseguiu ficar ainda mais preso ao delicioso aroma de Gerde. Voltou a olhá-la. Era uma feérica; tinha a pele de um verde ténue, sem as listas pardas que eram características da raça dos shur-ikaili e que os distinguiam dos outros humanos de Nandelt. E parecia tão frágil... que dava a sensação de que podia partir-se a qualquer momento.
Engoliu em seco. Nunca tinha visto uma mulher como aquela.
Queria tê-la perto. O quanto antes.
- Nada me fará mudar de opinião, bruxa - advertiu-a; não conseguia deixar de olhar para ela. - Mas irei ouvir-te. Entra e falaremos.
Franqueou-lhe a entrada na tenda com um largo gesto. Gerde sorriu. Quando passou junto dele, os seus corpos roçaram-se apenas por um breve instante. O Senhor dos Nove Clãs apressou-se a fechar a entrada da tenda atrás deles.
O clã de Uk chegou ao acampamento pouco depois do terceiro amanhecer. Uk-Rhiz entrou a galope, seguida da sua gente, lançando o característico grito de guerra dos shur-ikaili.
Ficou um pouco surpreendida ao ver que Hor-Dulkar não vinha recebê-la. Avistou ao longe o chefe do clã de Raq.
- Que Irial seja a tua luz na batalha, irmão! - saudou, de bom humor. - Onde anda Hor-Dulkar? Pensava que já estavam prontos para partir, cambada de preguiçosos!
- O Senhor dos Nove Clãs mudou de ideias - respondeu o bárbaro com seriedade.
Rhiz ficou estarrecida.
- O quê? Endoideceu?
- Não questiones as decisões do senhor dos shur-ikaili, Uk-Rhiz advertiu-a o chefe dos Raq.
Rhiz não respondeu. Deu ordem à sua gente para que a aguardasse por um momento e, sem sequer desmontar, cavalgou até ao centro do acampamento, onde estava situada a tenda de Hor-Dulkar.
Quando chegou, o bárbaro estava a sair para a receber. Rhiz esperara encontrá-lo preparado para a batalha, com o cavalo selado e as armas a postos; mas a longa cabeleira de Dulkar continuava por pentear e caíalhe pelas costas nuas. Rhiz observou, muito séria, o homem que se erguia diante dela, seguro de si e orgulhoso, mas ainda por acabar de vestir. Nenhum shur-ikaili, e muito menos um Senhor dos Nove Clãs, estaria ainda assim depois do terceiro amanhecer. Sobretudo tendo em conta que se avizinhava uma batalha.
- Senhor dos shur-ikaili - murmurou a mulher, cautelosa. - Acabo de chegar com a minha gente para pôr as nossas armas ao teu serviço. Acudimos à tua chamada. Combateremos com os clãs a favor do príncipe Alsan de Vanissar, como nos ordenaste.
- Não, Rhiz - sorriu Dulkar. - Já não iremos combater com os homens de Nandelt. Desce do cavalo e põe-te à vontade. Ainda vamos demorar vários dias a partir.
Rhiz ergueu-se e franziu o sobrolho. Tentou dominar a sua cólera.
O clã de Uk tinha cavalgado durante muito tempo para chegar até ali Deviam lealdade a Hor-Dulkar, mas ela era também uma senhora da guerra e tinha o seu orgulho. Respirou fundo e procurou engoli-lo.
- Posso perguntar a razão?
Dulkar sorriu novamente. Desta vez foi um sorriso exultante, tanto que até fez aparecer no seu rosto uma expressão um tanto ou quanto imbecil. "Como um miserável que se apaixonou pela primeira vez", disse Rhiz para si, desconcertada.
- Temos novos aliados - respondeu o Senhor dos Nove Clãs. Foi então que Rhiz descobriu Gerde junto dele.
A fada tinha-se apoiado indolentemente na estaca da tenda, numa posição que marcava mais ainda a delicada curva da sua anca. Envergava ainda menos roupa do que quando se tinha apresentado ante Dulkar, momentos antes do primeiro amanhecer. O seu cabelo estava um pouco mais despenteado. E o poderoso senhor da guerra abraçava-a numa atitude possessiva.
Rhiz depressa compreendeu o que acontecera. "Bruxa", pensou, mas mordeu a língua. Gerde ergueu-se um pouco e apoiou a cabeça no peito largo do bárbaro. Ronronou como uma gatinha e sorriu docemente quando disse à mulher:
- Bem-vinda aos clãs, Uk-Rhiz. Eras a única que faltava.
Rhiz entendeu imediatamente a insinuação. Conhecia a fama de Gerde, sabia o poder que exercia sobre os homens.
Os senhores dos restantes oito clãs eram todos homens. Ela era a única mulher.
E a única que faltava. A única que o feitiço de Gerde não podia vergar. Mas, se se rebelasse contra a actual situação, os outros clãs iriam voltar-se contra ela.
Cerrou os punhos. Talvez pudesse reunir as outras mulheres dos clãs para expulsar a bruxa do acampamento, mas isso requeria tempo. Respirou fundo.
- Também eu me alegro por estar com os clãs - murmurou. - Que a luz de Irial nos guie até à vitória.
- Que Wina abençoe a terra que pisas - respondeu Gerde com um sorriso encantador.
O casal voltou a desaparecer no interior da tenda. Rhiz ficou ali, plantada, a tremer de raiva e de impotência, perguntando-se para onde tinha ido todo o poder e força dos clãs de Shur-Ikail, e como era possível que aquela mulher os tivesse derrotado antes mesmo de se apresentarem na batalha.
- Os relatórios dos nossos espiões contradizem as palavras dessa jovem, Alsan - disse Covan. - Nas últimas horas reuniu-se um bom número de sheks em Vanissar, convocados por Eissesh. E quase como se tivessem dado por terminada a busca no Sul.
Alexander assentiu, pensativo.
Tinha convocado as suas gentes no que fora outrora o átrio da Fortaleza, do qual não restavam agora mais do que três paredes e meia abóbada. Ali fora montada uma mesa de reuniões improvisada. À sua volta, pedreiros e diversos voluntários trabalhavam para voltar a erguer as muralhas de Nurgon.
- Os sheks estão a vir de sul - disse Tanawe em voz baixa. - Isso significa...
- Não significa nada - cortou Allegra, enérgica. - Absolutamente nada.
Mas estava a tremer.
Alexander continuava sem falar. Passeou os olhos pelos rostos dos membros do conselho. Allegra, o Arquifeiticeiro, Denyal, Tanawe, Rown, Kestra, Covan e Harel, o silfo porta-voz dos feéricos do bosque de Awa.
Num canto, apoiada contra o muro, erguia-se uma figura que ocultava o seu rosto atrás de um véu. Os seus inquietantes olhos avermelhados também estudavam os presentes. Alexander sabia que muitos deles não confiavam na rapariga. Apesar de ser mestiça, os seus traços yan eram demasiado estranhos para aqueles que nunca se tinham aventurado para além de Nandelt.
Alexander voltou-se para ela:
- Quando soubeste deles pela última vez, Kimara? - perguntou.
- Há quinze dias - respondeu ela; falava rápida e energicamente. Saíram de Kash-Tar e entraram em Celestia. Viram-nos perto de Vaisel.
- Já deveriam ter cá chegado - murmurou o Arquifeiticeiro. Kimara e Alexander trocaram um olhar rápido.
A chegada da semi-yan a Nurgon, apenas dois dias antes, seria supostamente um raio de esperança para os rebeldes. Após atravessar toda a região de Celestia, Kimara tinha recebido em Rhyrr notícias da reconquista de Nurgon. Os comerciantes que vinham de Nandelt contavam que os sheks, com a ajuda dos exércitos dos reis de Dingra, Vanissar e Raheld, haviam sitiado as ruínas de Nurgon. Que os poucos cavaleiros que restavam tinham pactuado com os feéricos para expandir o bosque para além do rio. Que a Fortaleza estava agora protegida por um impressionante manto vegetal, que era quase tão inexpugnável como o bosque de Awa.
E que a liderar os rebeldes estavam o príncipe Alsan de Vanissar e a feiticeira Aile Alhenai, antiga Senhora da Torre de Derbhad.
Seguindo as instruções de Jack, Kimara dirigia-se a Vanissar; mas aquelas novidades fizeram-na mudar de rumo.
E ali estava, em Nurgon, um mês depois de se ter separado de Jack e Victoria. Os feéricos tinham-na deixado entrar no bosque, como a todos aqueles que lhes pediam asilo. De início, Kimara sentira-se atemorizada pela imensidão de Awa, aquele lugar fresco, húmido e transbordante de vida e cor, tão diferente do deserto onde tinha sido criada. Mas hão havia esquecido a sua missão, e as fadas acompanharam-na até à Fortaleza para que pudesse entregar a sua mensagem.
As notícias que trazia eram excelentes: Jack assumira, por fim, a sua essência de dragão, e Victoria tinha começado a consagrar mais feiticeiros. A própria Kimara era prova disso. De facto, ao detectar nela o poder entregue pelo unicórnio, Qaydar pestanejara, emocionado, e os olhos de Allegra tinham-se enchido de lágrimas.
Mas, uma vez passada a euforia inicial, era inevitável que se começasse a fazer perguntas. Em privado, Kimara tinha contado a Allegra e Alexander coisas que não tinha revelado aos outros. Por exemplo, que Jack e Victoria iam ao encontro de Ashran. E que Kirtash os acompanhava.
- É uma loucura - dissera Alexander, abanando a cabeça.
- Eu confio neles - replicou simplesmente Kimara.
Contudo, agora tudo parecia indicar que Ashran decidira que os rebeldes de Nandelt eram mais importantes do que a busca no Sul. E nada deveria ser mais importante para ele do que a destruição dos heróis da profecia.
- Também não podemos esquecer - prosseguiu Covan - a razão pela qual estão a organizar um exército.
- Nós - disse Denyal em voz baixa. - Vão atacar-nos com tudo o que têm.
- O escudo resistirá? - perguntou Alexander.
Harel, o silfo, cravou neles os seus negros olhos amendoados e fez vibrar suavemente as suas asas.
- Resistirá - respondeu. - Mas não é tão forte em Nurgon como noutros lugares. As árvores não estão muito grandes. A abóbada vegetal não se fechou completamente. Nestas ruínas, a vegetação não cobre a terra, e é aqui que o escudo de Awa é mais vulnerável.
- Não vai ser preciso esperar muito. Só até que Jack e Victoria regressem.
Percebeu uma onda de dúvida nos rostos de todos. Não obstante, apenas Kestra se atreveu a expressá-la em voz alta:
- Esta rebelião estava condenada desde o início - disse, mal-humorada. - Como se pode confiar a uns miúdos o futuro de todo o Idhún?
- Não são uns miúdos - interveio Kimara; os seus olhos ardiam. São um dragão e um unicórnio. Seria bom que te lembrasses disso.
Alexander ergueu as mãos para impor ordem, mas naquele momento ouviram-se exclamações de surpresa provenientes das muralhas, onde os vigias perscrutavam o horizonte.
- Pássaros haai! - ouviu-se do alto a voz de Rawel, o filho de Rown e Tanawe. - Emissários celestes!
Kimara endireitou-se sobressaltada e levantou a cabeça. Os seus olhos de fogo cravaram-se no céu avermelhado do primeiro entardecer.
- Não é possível - murmurou.
Trepou pelas escadas que tinham levantado para aceder ao alto da muralha. Alexander imitou-a, e depressa todos os membros do conselho rebelde se juntavam aos vigias e esquadrinhavam o céu com eles.
O que viram deixou-os sem fôlego.
Dois pássaros haai aproximavam-se vindos de sul, e as suas plumas douradas cintilavam à luz do primeiro crepúsculo. Enquanto isso, os sheks que patrulhavam os céus sobre Nurgon, procurando sempre uma maneira de trespassar o escudo que protegia a Fortaleza, afastavam-se à sua passagem.
- Quem são? - perguntou Covan, tentando distinguir as figuras que os montavam. - Porque é que os sheks os deixam passar?
Só os celestes podiam chamar os pássaros haai. Normalmente os sheks não os incomodavam. Mas também não teriam permitido a passagem de um celeste qualquer.
- O Pai? - murmurou Tanawe.
- Não - disse Alexander, com a boca seca. - São eles. Allegra e Kimara entenderam imediatamente. A semi-yan deixou escapar uma exclamação sufocada.
- Não pode ser - disse o Arquifeiticeiro. - Tê-los-iam morto.
Mas não, ali estavam os sheks, suspensos no ar sob as suas poderosas asas, mantendo uma distância respeitosa entre eles e as aves dos recém-chegados. Uma suspeita oprimiu o coração de Alexander como uma garra de gelo.
Allegra reagiu.
- Temos de os deixar entrar!
- E se for uma armadilha? - contrapôs Denyal.
Alexander não respondeu. Os pássaros estavam cada vez mais perto. Os sheks olhavam-nos à distância, sem se interporem entre eles e o seu destino. Harel, o silfo, fez soar a sua voz numa espécie de cântico. Houve um breve movimento nas copas de algumas árvores. O ar ondulou apenas momentaneamente. Só os feiticeiros e os próprios feéricos podiam percebê-lo, mas as fadas tinham aberto uma brecha no escudo suficientemente larga para permitir a passagem dos pássaros haai.
Alexander continuava com os olhos cravados nas aves. Viu-as atravessar o escudo sem problemas; distinguiu então Shail e Zaisei montados num deles, e o seu coração encheu-se de alegria.
Mas o outro pássaro era montado por Victoria... e estava sozinha.
- Não... - murmurou.
As aves pousaram no pátio com elegância. Zaisei ajudou Shail a descer. Victoria fê-lo sozinha.
Alexander correu para ela. Ia abraçá-la, mas a sua expressão séria deteve-o a poucos passos da rapariga. Havia algo no seu rosto que o inquietou. Victoria estava calma e serena... mas os seus olhos transmitiam algo estranho, um olhar tão intenso que lhe provocou calafrios.
- Victoria, o que...? - começou, mas não conseguiu acabar. - Onde está Jack? - perguntou, olhando em volta.
Shail e Zaisei desviaram o olhar. Ficaram para trás enquanto Victoria se adiantava alguns passos. Fitando Alexander sem que a expressão do seu rosto se alterasse por um só instante, a jovem retirou a espada da bainha que levava presa ao cinto. E entregou-a a Alexander.
No início, o líder da Resistência não a reconheceu. Parecia apenas uma espada normal. Muito bela e bem trabalhada, era certo, mas sem brilho sobrenatural das espadas míticas.
Então viu o punho em forma de dragão, reparou melhor nos pormenores e compreendeu. Desconcertado, voltou a olhar para Victoria. O rosto dela continuava inexpressivo.
- Não - disse. - Diz-me que não é possível. Victoria inclinou a cabeça. Mas não disse nada.
Ainda sem acreditar no que estava a acontecer, Alexander tomou Domivat entre as suas mãos. Era a primeira vez na vida que o fazia. E sentiu-a fria e desanimadoramente morta.
- Não é possível - repetiu.
Ergueu a cabeça para olhar para os seus amigos. Shail e Zaisei tinham os olhos cheios de lágrimas. Mas Victoria continuava impassível.
Alexander sentiu como os seus próprios olhos se embaciavam quando compreendeu o que aquilo significava. Rangeu os dentes, furioso, e apertou com força o punho de Domivat até lhe doer. Na sua mente surgiu uma imensidão de imagens, imagens de Jack, do rapazinho que fora, do jovem que havia partido de junto dele semanas antes à procura de si mesmo. Reviveu o instante mágico em que recolhera aquele dragãozinho trémulo que mal acabava de sair do ovo. Agora, já não o veria voar.
Quando compreendeu isto, a ira sacudiu-o por dentro e explodiu com a violência de um vulcão. Alexander lançou a cabeça para trás e soltou um grito de raiva, um grito que finalizou com um uivo e que se espalhou sobre os restos da Fortaleza de Nurgon.
- Os sheks estão a retirar - informou Denyal. - Também as tropas de Kevanion decidiram interromper o cerco ou, pelo menos, é o que parece.
Alexander não respondeu. Continuava sentado nas ameias, com Domivat no regaço, olhando-a quase sem a ver. Shail estava ao seu lado. Sobre eles brilhavam duas das três luas de Idhún; Érea estava nova naquela noite.
- É por Victoria - disse o feiticeiro, com suavidade. - Sabem que está aqui. Não querem fazer-lhe mal.
- Por que razão?
- Porque... - Shail hesitou.
- Porque a profecia já não se vai cumprir - completou Alexander de imediato. - De modo que não faz sentido acabar com o último unicórnio do mundo. Irão protegê-la, se for preciso, para que a magia não morra.
Denyal pestanejou, perplexo.
- Podiam ter pensado nisso antes de acabar com o resto da sua raça - comentou.
Shail suspirou.
- Creio que há algo mais - disse, mas não deu pormenores.
Tinha visto a dor no rosto de Christian ao despedir-se de Victoria. Ainda sentia algo por ela e sem dúvida ter matado o último dragão merecia uma recompensa por parte de Ashran. A vida de Victoria em troca da vida de Jack. Mesmo à distância, Christian continuava a protegê-la.
Pensar no shek fez com que a raiva o inundasse de novo. O estupor fizera-o, matara Jack. Nem todo o amor que sentia por Victoria podia mudar essa circunstância.
- A profecia já não se vai cumprir - repetiu Alexander, perdido nos seus pensamentos. - Foi tudo inútil, uma perda de tempo; todo o nosso esforço não serviu para nada. Jamais derrotaremos Ashran.
Sobreveio um silêncio tenso, até que Denyal disse:
- Então devíamos render-nos. Alexander fitou-o.
- Obviamente seríamos todos executados - prosseguiu Denyal, desviando o olhar -, mas se... depusermos as armas agora, talvez salvemos todos aqueles que não iam lutar: os artesãos, os refugiados... as crianças como Rawel. Se nos rendermos agora, os sheks irão perdoar-lhes.
Alexander continuava a olhar para ele, sem dizer nada.
- Isso é verdade? - perguntou Shail com suavidade. - Sem a profecia, não nos resta nada?
Ninguém respondeu. Não era um bom sinal.
Allegra saiu então para as ameias para se juntar a eles.
Kimara seguia-a, como sempre. Embora ocultasse o seu rosto, como era costume entre os yan, os outros viram que os seus olhos estavam inchados de tanto chorar.
- Falei com ela - disse a fada, sem rodeios. - Está... diferente. Alexander olhou para Kimara e recordou a expressão impávida de Victoria.
- Não me parece que a perda a tenha afectado muito - comentou, com algum rancor.
- Afectou-a muito mais do que pensas - murmurou Shail. Allegra titubeou.
- Faz-me medo - disse apenas em voz baixa. Estas palavras fizeram reagir todos os presentes.
- Medo? - repetiu Alexander, como se não tivesse ouvido bem. Allegra hesitou antes de acrescentar:
- Criei esta rapariga, vi-a crescer. Os seus olhos estiveram sempre cheios de luz. Mas agora... a luz dos seus olhos apagou-se, como a espada de Jack. No entanto, continua sem ser o olhar de uma rapariga humana. Agora os seus olhos emanam uma escuridão tão profunda que não consigo penetrá-la, que não compreendo e que me arrepia.
- Escuridão - repetiu Shail, comovido.
- Vocês não entendem, porque não podem ver a luz do unicórnio prosseguiu Allegra. - Mas qualquer feérico perceberia. - Estremeceu.
- E também qualquer shek.
- Como podemos ajudá-la?
Allegra ia a responder, mas interrompeu-se quando a própria Victoria saiu e se aproximou deles. Parou diante de Alexander, mas antes dirigiu um longo olhar a Kimara. Ela correspondeu-lhe e, por um momento, todos puderam sentir o laço que as unia. No rosto de Victoria viu-se uma fugaz expressão de carinho, mas foi tão breve que Allegra achou que tinha imaginado.
Kimara, sim, viu. Sorriu-lhe, nervosa, por debaixo do véu que cobria parte do seu rosto. Também ela se sentia muito chegada ao unicórnio que lhe tinha entregado a magia; mas aquela jovem que se erguia diante de si era diferente da Victoria que conhecera. Por detrás da sua calma impassível, havia algo que lhe provocava arrepios. Kimara retrocedeu, a tremer.
Victoria voltou a centrar a sua atenção em Alexander.
- Quero falar contigo a sós - disse com suavidade.
Por alguma razão, ninguém se atreveu a contrariá-la. Apressaram-se a abandonar as ameias e voltaram a descer pelas escadas em direcção ao pátio. Shail e Allegra trocaram um olhar inquieto; mas acabaram por se ir embora também.
- Já estamos a sós - disse então Alexander. Victoria assentiu.
- Vou-me embora brevemente - anunciou.
Alexander sabia o que isso implicava: se Victoria abandonasse a Fortaleza, as tropas de Ashran voltariam a atacar. Não tinha a certeza de que a rapariga estivesse consciente disso, mas de qualquer forma não lho disse.
- Onde queres ir?
- À procura de Christian.
O rosto de Alexander contraiu-se num esgar de ódio.
- Não lhe chames isso - sussurrou. - Continua a ser Kirtash, uma maldita serpente assassina. A mesma serpente execrável que matou Jack. Para o caso de o teres esquecido.
Arrependeu-se logo após ter pronunciado aquelas palavras tão duras. Recordou que Victoria estivera profundamente apaixonada por Jack. Mas era difícil levá-lo em consideração; a expressão dela continuava impassível, e Alexander perguntou-se, inquieto, se a jovem teria decidido passar para o lado de Ashran... com Kirtash, a quem ainda chamava Christian.
"Escuridão", dissera Allegra. Estremeceu. No entanto, a sua pergunta surpreendeu-o:
- Vens comigo?
- Contigo? Contigo e com Kirtash? Victoria abanou a cabeça, lentamente.
- Comigo - explicou. - Para matar Christian.
Aquelas palavras tiveram em Alexander o mesmo impacto que haviam tido, dias antes, em Shail. Olhou-a novamente. "Sim, dói-lhe, a morte de Jack dói-lhe de verdade." Mas a ele, Alexander, também doía. E não podia evitar pensar que, em parte, era culpa de Victoria.
- Podias tê-lo morto há muito tempo - censurou-a. - Se o tivesses feito na altura, Jack continuaria vivo.
- Eu sei - respondeu Victoria com suavidade. Mas não disse mais nada. Ficou apenas a olhar para ele, à espera de que falasse.
- O quê? - perguntou Alexander, brusco.
- Vens comigo? - repetiu ela.
Alexander inspirou fundo. Aquilo era uma loucura. A rapariga que tinha diante de si parecia Victoria, mas comportava-se de uma forma muito estranha. E Allegra tinha razão: havia algo no seu olhar que provocava arrepios.
"Se calhar julguei-a mal" pensou. "É provável que a morte de Jack a tenha transtornado."
De qualquer maneira, a mensagem era clara. Victoria procurava vingança. Alexander surpreendeu-se a si mesmo a pensar: "Mas sentia algo tão intenso por Kirtash..."
Sacudiu a cabeça e voltou a fitá-la. E sentiu saudades da rapariguinha inocente que havia sido. Victoria crescera, amadurecera. Contudo, Alexander não tinha a certeza se a mudança lhe agradava.
"Mas a profecia já não se vai cumprir...", pensou, de imediato. Era esse o caminho? A vingança? Alexander deu consigo mesmo a cerrar os dentes, desejando com todas as suas forças voltar a deparar-se com Kirtash, ter a oportunidade de o matar com as suas próprias mãos.
Respirou fundo. Sabia que Victoria aguardava uma resposta.
Desviou o olhar na direcção da Fortaleza, que dormia debaixo da cúpula protectora, rodeada por aquele misterioso bosque que demorara tão pouco a crescer e que emanava uma estranha neblina que deixava os humanos nervosos.
Todavia, naquela noite, Alexander mal reparou no bosque. Também não se inquietou com os sons que dele provinham e que os seus sentidos, desenvolvidos de forma extraordinária, podiam captar com total clareza.
Enfrentava a decisão mais difícil da sua vida. E não tinha a certeza se estava preparado para a encarar.
"Então devíamos render-nos", dissera Denyal. Porque a profecia já não se cumpriria.
Alexander compreendeu que não podia abandoná-los à sua sorte para correr em busca de vingança, por muito que o desejasse. Os Novos Dragões, as gentes de Awa, os refugiados e todos os que haviam apoiado a sua causa confiavam nele.
"E eu conduzi-os directamente ao desastre."
Fechou os olhos, cansado. A profecia não se cumpriria, porque Jack estava morto. Mas a vingança também não lhe devolveria a vida.
Então tomou uma decisão.
- Não, Victoria - disse. - Não vou contigo. Ela demorou um pouco a responder.
- Está bem - assentiu.
Recolheu a espada de Jack do regaço de Alexander. Ele não a impediu. Viu-a partir com a espada na mão e perguntou-se, uma vez mais, em que é que se tinha enganado. Compreendeu que, independentemente do que acontecesse, não deveria perder também Victoria. Falaria com ela para que abandonasse aquela ideia da vingança. Mas naquele momento não se sentiu com ânimo. Talvez porque a ferida era demasiado recente e a ideia de matar o assassino de Jack continuava a ser demasiado tentadora.
Levantou-se e foi à procura de Denyal.
Encontrou-o no que fora a biblioteca, com Shail, Allegra e Kimara. Os três interromperam a sua conversa ao ouvi-lo entrar. Olhou-os, com determinação sombria.
- vou continuar - anunciou.
- O que queres dizer? - perguntou Shail.
- vou continuar - disse ele. - com a luta, com a Resistência. Continuarei a combater Ashran até ao fim. Acima de tudo. Sobreveio um silêncio de estupefacção.
- Mas a profecia... - começou Denyal.
- Não me importa a profecia! - cortou Alexander. - Seguimos o que dizia e é esta a consequência. Já não acredito na profecia. Lutaremos nós, humanos, feéricos, yan, celestes, varu, gigantes, todas as raças unidas. Se querem dragões, iremos dar-lhes dragões, embora tenhamos de os fabricar. Tudo menos abandonar a luta. Chegámos muito longe, não penso render-me agora. Morrerei a combater Ashran se é esse o meu destino. Por Jack e por tudo o que perdemos desde que esta loucura começou.
Mas vocês... podem ir-se embora se quiserem, não vos censurarei. Fez-se um breve silêncio.
- Estou contigo - afirmou Shail.
- Por Jack - assentiu Kimara.
- Que assim seja - disse Allegra, com um brilho de decisão nos seus enormes olhos negros.
- Mas a profecia diz que só um dragão e um unicórnio derrotarão Ashran - protestou Denyal. - E a profecia é a palavra dos deuses.
- Então, os deuses estão a mentir - replicou Alexander com um sorriso trocista.
Kimara não conseguia dormir.
Estivera todo o dia a chorar a morte de Jack, a morte do último dos dragões do mundo, e, apesar de as lágrimas terem secado há algum tempo, a sua mente negava-se a deixar as lembranças repousar.
com um suspiro, levantou-se da sua enxerga e colocou uma peça de roupa pelos ombros. Saiu do quarto para o pátio, provavelmente à espera de que o ar da noite a serenasse um pouco.
Viu então que Victoria estava ali.
Era já muito tarde, a Fortaleza dormia, mas a jovem unicórnio não parecia ter sono. Tinha-se aproximado da muralha. Lá no alto, enroscados, com a cabeça debaixo da asa, os pássaros haai dormitavam. Victoria erguera a cabeça para eles e olhava-os fixamente, sem uma palavra, sem um único som.
Kimara colou-se à parede, para não ser vista, e continuou a observar.
As aves acordaram de imediato, como que alertadas por uma chamada inaudível. Uma delas deixou escapar um leve arrulhar. Não demoraram a abrir as asas e a descer, planando suavemente até onde estava Victoria, estendendo os seus longos pescoços até ela, amistosamente.
A rapariga ergueu a mão para acariciar as suas penas. Mas, mal os seus dedos roçaram o primeiro haai, a ave encrespou-se e emitiu um som chilreante. Ambos retrocederam, receosos, afastando-se de Victoria. Levantaram voo e refugiaram-se novamente no alto da muralha, de onde dirigiram um último olhar à rapariga, a tremer.
Kimara contemplou a cena boquiaberta, procurando descortinar o seu significado.
Victoria não reagiu. Quedou-se imóvel, ao pé da muralha, durante mais uns instantes. Então, virou a cabeça, num movimento rápido e gracioso, para onde Kimara a espiava. Ela tentou retroceder, mas logo compreendeu que não era necessário, porque Victoria já a tinha visto.
Os olhos de ambas cruzaram-se, e a semi-yan sentiu que um arrepio profundo percorria a sua pele.
Não havia expressão no rosto de Victoria. Não parecia sentir zanga, dor, medo nem desconcerto. Não parecia sentir nada. Absolutamente nada, como se não fosse humana ou, pior ainda, como se nem estivesse viva.
De repente, Victoria virou as costas a Kimara para olhar para outra figura que se aproximava vinda do outro extremo do pátio. A semi-yan reconheceu-o mal a luz das luas iluminou o seu rosto. Era Qaydar, o Arquifeiticeiro.
Kimara conteve a respiração e colou-se ainda mais ao muro.
O Arquifeiticeiro não reparou nela.
A semi-yan viu-o aproximar-se de Victoria, com passos decididos.
- Por acaso estavas a pensar ir-te embora? - rosnou.
- Sim - respondeu ela, com voz neutra, privada de emoção. - vou-me embora.
Não, não vais - replicou Qaydar, severo. - Não vou permitir que saias deste castelo. És o último unicórnio do mundo, Lunnaris. Tens um dever. Percebeste?
Ela não respondeu. Inclinou a cabeça e ficou a olhar para ele.
Kirnara viu, surpreendida, que o poderoso Arquifeiticeiro parecia incomodado ante o olhar profundo do unicórnio, porque não foi capaz Je o suster.
- Sabes quantos feiticeiros restam na Ordem, Lunnaris? - perguntou ele, baixando a voz, de maneira que Kimara teve de apurar o ouvido. - Somos doze. Só doze. Sem contar com Gerde e vários outros que se uniram a Ashran, e também sem contar com aqueles que não se uniram a nenhum dos lados. Essa rapariga semi-yan que nos enviaste é a única aprendiza que temos agora. A única nova feiticeira em quinze anos. Sabes o que isso significa? No total, não seremos mais de quarenta feiticeiros em todo o Idhún. Antes éramos várias centenas, e de ano para ano cada vez mais.
Qaydar fez uma pausa. Victoria não disse nada.
- com o passar dos anos, Lunnaris, se sobrevivermos aos sheks, iremos morrendo. A idade e o tempo irão varrer-nos do mundo, um a um. Então a Ordem Mágica extinguir-se-á.
Victoria continuava sem falar, continuava sem se mexer.
- Uma só aprendiza não chega. Tens de começar a consagrar mais feiticeiros, Lunnaris, e tens de o fazer agora. Percebeste?
Ela inclinou delicadamente a cabeça.
- Percebi - disse com suavidade. - Mas não posso fazer o que me pedes.
Voltou-se, para prosseguir o seu caminho, mas Qaydar agarrou-lhe o braço com violência.
- Acho que não percebeste! Vais começar agora mesmo a criar novos feiticeiros, miúda. Se és realmente um unicórnio, comporta-te como tal!
Victoria não se mexeu, nem respondeu uma só palavra. Ficou apenas a olhar para ele... fixamente.
De repente, Qaydar soltou-a, horrorizado, e recuou uns passos, a tremer.
- Não podes impedir-me - sussurrou ela suavemente. - Não te Pertenço. Não posso pertencer a nenhum ser humano.
Deu meia-volta e afastou-se dele, impávida e serena. O Arquifeiticeiro deixou-se cair contra a muralha e baixou a cabeça. Os seus ombros sofreram uma breve convulsão silenciosa.
No seu esconderijo, a semi-yan engoliu em seco, perguntando-se o que Qaydar vira nos olhos de Victoria. Vieram-lhe à memória as palavras de Allegra: "Uma escuridão tão profunda que não consigo penetrá-la, que não compreendo e que me arrepia."
Recordou que também Jack falara da luz do unicórnio. E que só os sheks, os dragões e os feéricos podiam ver aquela luz. Pelo que sabia, Qaydar tinha algum sangue feérico. Mas, mesmo assim... como podia o olhar de um unicórnio chegar a ferir tanto aquele que, depois de Ashran, era o mais poderoso feiticeiro de Idhún?
Kimara não o sabia e decidiu que não queria sabê-lo. A tremer, abrigou-se novamente entre as paredes da Fortaleza, enquanto Qaydar continuava ali, de pé contra a muralha, abalado.
Victoria partiu antes do primeiro amanhecer.
Levou o báculo e Domivat, a espada de fogo. Não se despediu de ninguém.
Ninguém a viu partir. E, mesmo que a tivessem visto, ninguém teria conseguido detê-la.
UMADHUN
Estava frio.
Muito frio. Um frio que o congelava por dentro e abrandava os fracos batimentos do seu coração. No entanto... também tinha sentido calor, muito calor. Ainda lhe ardia a pele.
O seu instinto alertou-o sobre algo que se aproximava. Eram vários, mas pequenos. Mesmo assim, desejava matá-los.
Procurou mexer-se, mas o seu corpo não lhe obedecia; nem sequer conseguiu abrir os olhos. Estava demasiado fraco.
Aproximaram-se. Conseguiu ouvir os seus cicios na escuridão. Percebeu que estavam a comunicar telepaticamente, embora não tivesse captado os seus pensamentos. Ao fim e ao cabo, não estavam a falar com ele.
Sentiu-os muito perto. Uma presença fria roçou a sua pele. Quis tirá-los de cima de si, mas continuava sem se poder mexer.
Então ouviu-se um assobio ameaçador. As criaturas retiraram-se, intimidadas. Algo deslizou perto dele, e o seu instinto disparou. Conseguiu abrir os olhos e viu uma grande muralha escamosa que protegia o seu corpo. Quando esta se afastou um pouco, distinguiu entre as sombras os seres que haviam estado a observá-lo. Eram crias de shek, mas isso já sabia, intuitivamente.
Contudo, a serpente que as afugentara era adulta, uma fêmea. Soube-o quando ela voltou a sua cabeça triangular para ele. Soube-o apenas instantes antes de os seus olhos hipnóticos reluzirem brevemente e o fazerem cair, de novo, na escuridão.
Quando voltou a abrir os olhos já não tinha frio. Mas aquela inquietude continuava lá.
Não recordava o que tinha acontecido. Naquele momento, nem sequer se lembrava do seu nome nem da sua condição. No entanto, a mensagem era tão clara que não podia ignorá-la.
"Sheks. Tenho de os matar. A todos."
O ódio continuava a palpitar nas suas têmporas, acima da dor, da solidão ou da confusão. Pouco a pouco foi fluindo através de todo o seu corpo. Havia tantas serpentes à sua volta; sentia-as, detectava-as, cheirava-as. Não podia ficar parado.
Um grito de fúria e desespero, um esforço sobre-humano. Uma transformação.
com um rugido, precipitou-se sobre as serpentes. Mas algo o deteve com violência, deixando-o momentaneamente sem fôlego. Voltou a tentá-lo por três vezes, antes de se deixar cair, desanimado, mas ainda a ferver de raiva. Virou a cabeça para ver o que era aquilo que o prendia.
Então viu que uma corrente prateada rodeava os seus membros e o mantinha preso à rocha. Não era muito grossa, porém, não tinha conseguido rebentá-la.
O instinto sobrepôs-se de novo, desta vez com maior intensidade. Puxou com todas as suas forças. A corrente não se rompeu.
Uma sombra sinuosa avançou até ele da escuridão. Só de a ver, o sentimento de ódio disparou outra vez. Puxou e puxou a corrente, com fúria, com raiva, desesperado para se precipitar sobre a shek e fazê-la em pedaços. Naquela altura, aquele impulso era a única coisa que entendia.
Ela observou os seus esforços, impassível. Sabia que não conseguiria alcançá-la. E ele também pareceu compreendê-lo, porque finalmente deixou-se cair, rendido, e as correntes tilintaram em volta do seu corpo.
- Instinto - disse a serpente. - Ah, que coisa tão incómoda, não é? Que vontade tenho de te matar, dragão. Mas não me convém nada.
Dragão.
Fez-se luz na sua mente. Aquela palavra significava muito... demasiadas coisas.
- Dragão... - repetiu.
A serpente aproximou-se mais dele, e os olhos matizados cravaram-se nos seus.
- Quem és? - perguntou-lhe.
Dava a sensação de que ela conhecia perfeitamente a resposta. Mas foi a pergunta o que o fez parar para reflectir e trouxe de volta à sua mente todas as lembranças, que o inundaram como uma torrente imparável.
- Eu... sou Yandrak - murmurou.
- Sim, é o que eu pensava - assentiu a shek, observando, com certa curiosidade, como o seu prisioneiro voltava a transformar-se num simples rapaz humano.
- Sou... sou Jack - murmurou ele, antes de perder novamente a consciência.
Continuava acorrentado naquela caverna estreita e escura. Continuava sem entender o que acontecera, mas o ódio ia acalmando, lentamente, e também a dor física que a ferida no peito lhe provocava.
Agora atormentava-o outra coisa: a solidão.
Sentia a falta de alguém. Desesperadamente. Tanto que se sentia morto, vazio e tão frio como o coração da serpente que o tinha capturado. Tinha a horrível sensação de que a havia perdido para sempre, e só por isso queria morrer.
Mas não morria. Ou talvez já estivesse morto. Ergueu a cabeça e olhou para a shek.
- Onde estou?
- Demoraste a perguntar - observou ela. - Claro que os da. tua espécie nunca foram lá muito espertos.
- Onde estou? - repetiu ele.
- Não estás em nenhum lugar de Idhún.
- Então estou na Terra?
- Também não.
Sacudiu as correntes, irritado.
- Não te perguntei onde não estou!
- Ah, não percebeste. Nesta altura, para ti é muito mais importante saber onde não estás. Não reparaste?
O rapaz reflectiu um momento, carrancudo.
- Não estou em Idhún. Mas não... não é possível. Abandonei o mundo? Quando fiz isso?
Esforçou-se por recordar. Fechou os olhos por um instante e vieram-lhe à mente imagens de uma batalha. Um shek, um dragão... os dois tinham lutado, e então Kirtash enterrara a sua espada de gelo no peito do dragão e atirara-o para um abismo de lava.
Estremeceu. Não podia ter sobrevivido àquilo, era impossível.
- Estou morto.
- Para muitos, estás - concordou a serpente. - Mas tu devias saber que continuas vivo. O teu coração bate.
Jack teve de admitir que tinha razão.
- Como é possível?
Abriu a camisa para ver a ferida no peito. Ainda lá estava, um terrível golpe na sua carne; mas estava coberto por uma estranha capa de geada, que queimava, ardia e arrefecia ao mesmo tempo. Perguntou-se se seriam os efeitos de Haiass ou se se tratava da forma que os sheks tinham de curar as feridas. Descartou a ideia porque lhe pareceu demasiado absurda. Nunca nenhum shek curaria um dragão.
- Uma espada de gelo - disse a shek. - Se fosses um simples humano, sim, estarias morto; mas o fogo do teu interior protegeu-te temporariamente dos seus efeitos, o suficiente para que eu pudesse salvar-te a vida. Para não mencionar o facto de que quem quis matar-te não teve muito boa pontaria. Não tocou no teu coração.
- Não tem... - repetiu Jack, confuso. - Não, espera, estamos a falar de Kirtash. Sabe perfeitamente onde tem de cravar uma espada. - Abanou a cabeça. - Isso não faz sentido.
A serpente emitiu um cicio baixo. De repente pareceu incomodada, mas as suas palavras soaram calmas quando disse:
- Provavelmente, no fundo não queria matar-te. Ah, isso é o que acontece quando se tem de carregar uma alma humana. com da as coisas nunca se fazem tão bem.
- Conheces Kirtash? - perguntou Jack.
- Ah, todos os sheks ouviram falar dessa aberração - disse a shek com profundo desagrado. - Tu és como ele.
- E tu? Quem és tu?
- Chamo-me Sheziss. E, como podes ver, sou uma shek.
Jack observou-a mais pormenorizadamente. Já não era jovem; o brilho das suas escamas estava um pouco esbatido e tinha dois rasgões numa asa. Contudo, pareceu-lhe majestosa e, como todas as serpentes aladas, letal. Esforçou-se por controlar o ódio que voltava a fervilhar no seu interior. Então recordou algo que ela dissera e que fazia ainda menos sentido do que o que lhe tinha contado acerca de Kirtash.
- Disseste antes que me salvaste? Não posso acreditar. Porque farias algo assim?
- És o dragão da profecia - respondeu ela, como se fosse óbvio. Jack ficou a olhar para ela. Sheziss mostrou algo semelhante a um sorriso rasgado.
- A profecia diz que tu és o único que pode matar Ashran - acrescentou, e Jack percebeu, surpreendido, o ódio intenso que emanava dela. - E eu quero que mates Ashran. Não é difícil de entender.
- Queres... a morte de Ashran? - repetiu Jack, atónito. - Porquê? Ela estremeceu com uma gargalhada.
- Porque quero-o morto - respondeu peremptoriamente, e Jack soube e não lhe ia contar mais pormenores. - Mas não podia fazer nada quanto isso. Ah, como não iria
salvar-te quando te vi cair pelo Portal? Que grande oportunidade e que estúpida teria sido se a tivesse desperdiçado.
- O Portal... - repetiu Jack, juntando as coisas. - Referes-te ao abismo de fogo? Queres dizer que é como uma espécie de Porta interdimensional?
- Não - corrigiu ela, - Quero dizer que é uma Porta interdimensional - E para onde me trouxe?
- Para outro mundo, obviamente. - Sheziss ergueu-se sobre os seus anéis e estendeu as asas; pareceu muito maior e temível do que antes, e os seus olhos reluziram quando acrescentou: - Bem-vindo a Umadhun, o reino das serpentes aladas.
- Sinto saudades de alguém - disse Jack a meia-voz.
Sheziss dormitava perto dele, enroscada. Jack sabia que o tinha ouvido perfeitamente, no entanto, não se dignou sequer abrir os olhos.
O rapaz aninhou-se junto à rocha, retorcendo os pulsos, que estavam já em carne viva. A shek ainda não o tinha soltado. Estivera a alimentá-lo com pedaços de carne seca, peixe, diferentes tipos de cogumelos comestíveis e coisas semelhantes, e Jack, faminto, devorava tudo sem resmungar. Ignorava há quanto tempo estava em Umadhun, mas parecia-lhe demasiado.
- Quando controlares o teu ódio, solto-te - dissera ela.
No início, Jack revoltara-se contra a serpente, furioso. Tinha-se transformado várias vezes, envolto numa nuvem de fumo, expelira as suas mais violentas labaredas, arranhara o chão em volta com as garras, lançara mordeduras furiosas no ar. Tudo fora inútil; não conseguia chegar até ela nem soltar-se das suas correntes que, não importava a forma que adoptasse, pareciam ajustar-se sempre aos seus membros, quer fossem pulsos e tornozelos humanos ou garras de dragão.
- Ah, que tolo que és - dissera-lhe a serpente. - Desejas soltar-te para me fazeres em pedaços. Mas não entendes que sem mim não sobreviverás em Umadhun. Tens sorte por este mundo estar quase vazio. Noutros tempos não me teria sido tão simples esconder-te.
- Queres utilizar-me - retorquira-lhe o rapaz, rancoroso.
- Quero aliar-me a ti - respondera ela. - Mas antes tenho de me assegurar de que vais ser capaz de te controlar.
Naquele momento específico, Jack não tinha vontade de combater. Estava extenuado após outra explosão de ira e deixara-se cair sobre a rocha, exausto e desanimado. Então voltara a saudade.
Sentia-a de cada vez que o ódio não o cegava. Se fechasse os olhos, via nas suas lembranças um olhar cheio de luz, um sorriso que amava acima de tudo. Mas estava demasiado longe para que pudesse sequer sentir a sua existência. Podia estar viva em algum lugar do outro lado do abismo de fogo.
Mas também podia estar morta. E a simples ideia de a ter perdido deixava-o louco de angústia e pesar.
Jack não sabia o que era pior, se o ódio ou a saudade. Os dois sentimentos eram insuportáveis. E naqueles momentos já não tinha forças para se deixar levar pelo ódio.
Sentia falta dela. Muita falta. E não tinha ninguém com quem partilhar a sua solidão.
- Tenho saudades dela - repetiu a meia-voz; Sheziss não respondeu, mas Jack continuou a falar. - Daria o que fosse para voltar para junto dela. Seria até capaz de aceitar a sua relação com Kirtash, se apenas...
Interrompeu-se, recordando que, tempos antes, em Limbhad, quando Victoria estivera aprisionada na Torre de Drackwen, havia dito algo semelhante. Algo que depois não tinha sido capaz de cumprir. Perguntou-se, pela primeira vez, se ao atacar Kirtash junto dos Picos de Fogo tinha agido por ciúmes... ou por puro instinto.
- Agora já não importa - murmurou. - Suponho que, se não regressar, isso resolverá o problema: ela poderá estar com Kirtash e deixará de ter dúvidas.
Apercebeu-se então de que Sheziss erguera a cabeça, observando-o com um brilho de interesse nos olhos.
- Não me digas que o unicórnio sente algo por essa aberração, pelo filho de Ashran.
Jack voltou-se para ela, cauteloso, lamentando ter falado demais. Recuperara forças e o ódio voltava a manifestar-se no seu interior.
- O que é que isso importa? - perguntou. Não se surpreendeu por Sheziss ter adivinhado de quem estava a falar. O poder de dedução dos sheks era muito superior ao de qualquer outra criatura.
O corpo da serpente estremeceu com uma gargalhada abafada.
- Muito divertido - disse ela. - Dado que. Ashran criou uma aberração para matar o unicórnio e depois...
Sacudiu furiosamente a cauda, fazendo estremecer o chão e as correntes de Jack. O rapaz transformou-se em dragão quase sem dar por isso e colou-se ao chão, disposto a saltar sobre a shek. Ela olhou-o com desprezo. Parecia divertida e colérica ao mesmo tempo.
- Sim, muito divertido - ciciou. O ódio reluziu-lhe nos olhos. - A aberração traiu os seus. Oxalá esfok o pai e o entregue em pedaços aos sangues-quentes.
- Sangues-quentes? - repetiu Jack.
Ela encarou-o por um momento. O ódio palpitou brevemente nos seus olhos irisados, mas depois apagou-se.
- Humanos, feéricos, celestes, gigantes, varu, yan: as seis raças inferiores que se aliaram aos dragões na guerra - explicou com suavidade. Para lutar contra nós e contra os szish, a quem chamamos os sangues-frios, porque nesse aspecto são como nós. As outras seis raças apoiaram os dragões porque são quentes... como eles.
- E os unicórnios? - perguntou Jack - De que lado estavam?
- Os unicórnios não se metiam nessas coisas. Eles tratavam todos por igual: sheks, dragões... o que fosse. Sentiam até um certo carinho pelos inferiores. Ao contrário do que pensam os sangues-quentes, os unicórnios nunca tomaram partido na guerra. Não foram criados para isso. Ah, os unicórnios, que belas criaturas! O mundo não é o mesmo desde que eles deixaram de existir.
- Vocês assassinaram-nos a todos - acusou Jack.
- Foi isso que te disseram? - Sheziss olhou-o, inclinando a cabeça. Parecia que se ria por dentro, e Jack sentiu-se um idiota, sem saber porquê. - A conjunção astrai foi obra de Ashran, maldito seja sete milhões de vezes. Iria permitir-nos regressar a Idhún, segundo disse, e além disso destruiria os nossos inimigos, os dragões, se nos aliássemos a ele. Não mencionou nada sobre os unicórnios.
Havia amargura nas suas palavras. Jack quis dizer algo, mas apercebeu-se de que a serpente ainda não tinha acabado de falar.
- Nunca tivemos nada contra eles. Mas quando vimos o que tinha acontecido, ignorámo-lo. Ao fim e ao cabo, Ashran tinha cumprido a sua parte do acordo. Nós estávamos de volta. E os dragões estavam mortos. O ódio cegou-nos, como tantas outras vezes... Ah, como tantas outras vezes...
A voz de Sheziss apagou-se na sua mente. Jack sentiu um súbito torpor e, quase sem se aperceber, fechou os olhos e adormeceu.
- Deixa-me ir - pediu ele um dia. Sheziss olhou-o fixamente, sem dizer nada.
- Tenho de voltar para ela - insistiu. - Preciso de saber se está bem.
- Para essa criatura que, segundo me contaste, sente algo pelo filho de Ashran?
- Também me ama a mim - replicou Jack, ferido no seu orgulho. E sei que no futuro irá decidir ficar comigo, porque Kirtash não pode amá-la da mesma maneira que eu.
As suas próprias palavras soaram-lhe muito infantis, e lamentou imediatamente tê-las pronunciado. Sheziss aproximou-se dele, com movimentos ondulantes.
- Decidir? - perguntou. - Um unicórnio?
Olhou-o com aquela expressão que Jack já conhecia, como se se estivesse a rir de alguma piada que só ela entendia. Isso tirava-o do sério, porque o fazia sentir-se um imbecil.
- Onde está a piada? - empertigou-se.
- Os unicórnios entregam a magia a alguns afortunados. Se escolhessem uma só pessoa em toda a sua vida, a magia teria morrido há muito tempo. Os unicórnios foram feitos para dar, para entregar, não conhecem outra coisa. O amor é para eles muito parecido com a magia. Faz parte deles. Tal como os seres a quem decidem entregar os seus dons.
- Não... não estou a perceber.
Sheziss semicerrou os olhos e pôs-se diante dele, com um cicio furioso e o corpo a vibrar ameaçadoramente. Jack retrocedeu, intimidado, procurando controlar o ódio que fervilhava no seu interior.
- vou ajudar-te a entender - ofereceu-se com um sorriso irónico. Se tivesses de escolher entre os teus dois pulmões, com qual ficarias?
- Bem... - começou Jack, desconcertado, mas Sheziss interrompeu-o.
- Pensa bem - disse, e os seus olhos brilharam malevolamente na penumbra. - É que, mal te decidas por um dos dois, arranco-te o outro.
Jack recuou com o coração a palpitar com força. Mas Sheziss afastou-se, rindo no seu íntimo.
- Porque não consigo deixar de odiar? - perguntou ele noutra ocasião.
Estamos a progredir - disse Sheziss, com um brilho de aprovação no olhar. - Não consegues deixar de odiar, porque foi para isso que foste criado. Odiar os sheks é tão natural para ti como respirar. Se deixasses de o fazer, estarias morto.
- Então, não se pode deixar de odiar?
- Se conhecêssemos uma forma, nós, os sheks tê-la-íamos usado há que tempos. Os dragões nunca se importaram, entregaram-se ao instinto com entusiasmo selvagem. Também nós sentíamos prazer com a luta, não vale a pena negar. Mas, ao contrário de vocês, tínhamos consciência de que estávamos a fazer algo que não tínhamos escolhido. Nunca ninguém nos perguntou se queríamos odiar os dragões. Não nos deram opção.
- Mas tu não me odeias... ou odeias?
- Ah, sim, odeio-te com todo o meu ser, dragão. Desejo matar-te. Mas contraio esse sentimento.
- E como se faz isso?
- Assumindo-o. Há quem o reprima, procure negar que existe. Mas não se pode reprimir o ódio, porque entra em erupção como um vulcão no momento mais inesperado. Não obstante, pode controlar-se, deixando-o sair apenas nos momentos indicados. Ou encontrando uma razão para odiar. Tens razões para odiar?
- Os sheks mataram toda a minha raça - murmurou Jack.
- Ashran matou toda a tua raça, mas tens razão, nós também o teríamos feito se pudéssemos. De facto, muitos de nós lamentam que os dragões estejam mortos, porque já não os podemos matar. Contudo, a extinção dos dragões não é o motivo do teu ódio, mas sim uma consequência do ódio que ambas as raças sentem.
Jack franziu o sobrolho, confuso.
- Não temos nenhuma razão para nos odiarmos. Nenhuma razão lógica, quero dizer. Mas eu, por exemplo, tenho motivos para odiar Ashran. De maneira que, quando olho
para ti e sinto esse sentimento ancestral, esforço-me por me lembrar ao homem que detesto, canalizando assim o ódio para outra pessoa.
- Quem me dera poder fazer isso - disse Jack, impressionado; sentiu-se de repente muito vazio.
- Para ti será bem mais fácil do que para qualquer outro - disse ela. Também tens uma alma humana que pode ajudar-te a controlar os teus instintos de dragão. Embora ainda tenhas muito que aprender.
Jack reflectiu.
- Há pouco disseste que não nos deram opção - recordou. - Quem é que não nos deu opção?
- Os deuses, obviamente. Criaram-nos para nos odiarmos, para nos matarmos uns aos outros. Não é engraçado? Os poderosos sheks, os poderosos dragões. Adorados desde tempos remotos pelos seres inferiores. Afinal... não somos ninguém, não somos mais do que peões numa guerra de deuses, incapazes de escapar dela. Somos os seus soldados, lutamos por eles... morremos por eles. Quer queiramos, quer não.
Jack estremeceu.
- Não é engraçado - opinou. - É horrível.
- Ah, sim, horrível. Ou trágico, diria eu.
- Então, é verdade que os deuses existem? Pensava que não eram mais do que lendas.
Sheziss olhou-o por um instante.
- Quando aprenderes a controlar-te e te puder soltar, irei mostrar-te uma coisa. Talvez te ajude a teres uma ideia de quão reais podem ser os deuses.
- Podes soltar-me - disse Jack, cansado. - Não quero lutar mais. Acho que até comecei a simpatizar contigo.
A serpente fitou-o com o seu sorriso irónico.
- Ah, não, estás a reprimir o teu ódio, negando que existe. Mas tu odeias -me, dragão. Procura dentro de ti e encontra esse ódio. Diz-me, continua aí?
- Continua - reconheceu Jack após um silêncio tenso.
- Queres matar-me? Ou desejas matar-me?
- Qual é a diferença?
- O desejo vem do instinto, é irracional. Querer, por outro lado, implica uma vontade racional.
- Desejo matar-te - admitiu Jack, após uma breve reflexão. - Mas não quero matar-te.
"Christian também não queria matar-me", recordou o rapaz de repente. "Embora o desejasse. Por isso não cravou a espada no coração. No último momento, a sua vontade impôs-se ao seu instinto. E eu... teria sido capaz de fazer o mesmo?"
- Não quero matar-te - repetiu em voz alta. - Não quero lutar. Quero aprender a controlar o meu instinto.
Sheziss sorriu.
- Olha-me nos olhos, Jack.
O rapaz ergueu a cabeça surpreendido. Talvez noutras circunstâncias tivesse pensado bem antes de olhar um shek nos olhos, mas era a primeira vez que Sheziss o chamava pelo nome, e isso desconcertou-o.
Quando cravou o olhar nos hipnóticos olhos de Sheziss, era já demasiado tarde para reagir. Quis debater-se, mas não foi capaz; estava como que paralisado. Sentiu que algo se soltava na sua mente e procurou mexer-se, desesperado. E desta vez conseguiu-o.
Então afastou-se da parede de rocha. Muito mais do que antes.
Olhou para as mãos, surpreendido. As correntes tinham desaparecido e também as marcas dos seus pulsos. Roçou a pele intacta com o dedo, confuso.
- O que...? Como fizeste isso? O que fizeste às correntes?
- As correntes nunca existiram a não ser na tua mente, Jack. O rapaz pestanejou, perplexo, mas não disse nada.
- Nenhum shek se teria deixado enganar por algo assim - prosseguiu Sheziss. - Mas é óbvio que se trata de um truque demasiado subtil para a mente de um dragão.
De repente, Jack sentiu-se furioso e humilhado. O ódio fervilhou novamente dentro dele e a presença da shek enlouqueceu-o. com um rugido de raiva, transformou-se em dragão e precipitou-se sobre ela, com as garras de fora.
Foi num abrir e fechar de olhos. Encontrou-se subitamente preso entre os anéis de Sheziss, que se tinha enredado no seu corpo com tal habilidade que o impedia de mexer as garras e as asas. Também não podia fazer uso do seu fogo: Sheziss deitara-o com a boca para baixo e imobilizara igualmente o seu pescoço, de maneira a não poder virar a cabeça; se soltasse uma só baforada de fogo, este embateria contra a pedra e iria chamuscar-lhe o nariz. Emitiu um grunhido surdo.
- Ainda tens muito que aprender, rapaz - troçou a shek. - Diz-me, quem odeias?
- A ti - grunhiu o dragão.
- Porquê?
- Porque és um shek.
Os anéis estreitaram-se ainda mais. Jack arquejou.
- isso já eu sei. Diz-me algo novo, Jack. Porque me odeias?
- Porque me tens prisioneiro.
- Se não te mantivesse prisioneiro, atacavas-me. Não te parece que a minha atitude é razoável?
- Sim - reconheceu Jack a contragosto. - Agora solta-me. Os anéis apertaram-se um pouco mais.
- Porque me odeias? Não te salvei a vida, não te curei as feridas? Então, porque me odeias?
- Não... não tenho razões para te odiar - disse ele após um breve silêncio. - Embora não possa evitá-lo.
- Ah, estamos a progredir. Mas...
De repente, o seu corpo ficou tenso e ela ergueu a cabeça com um cicio.
Os seus olhos brilharam na penumbra.
- O que...? - começou Jack, mas uma furiosa ordem telepática fê-lo emudecer.
- Silêncio!
Jack ficou imóvel, com o coração a bater violentamente, e aguçou o ouvido. Mas foi o seu instinto que o avisou da proximidade de mais serpentes.
- Transforma-te outra vez - ordenou-lhe Sheziss. - Assim dás demasiado nas vistas.
Jack tentou. Mas estava demasiado perto das serpentes, demasiado perto de Sheziss, e o instinto levava-o a manter-se no seu corpo dragão para lutar contra elas, para as matar.
- Transforma-te - insistiu a shek. - Se te descobrem aqui, matam-nos aos dois. E, se te matarem, nunca poderás voltar para junto dela..
Estas palavras foram determinantes.
"Victoria", pensou Jack. Pensou nos seus olhos luminosos, no seu sorriso. Sentiu novamente saudades dela, com toda a sua alma. E, quando deu por isso, tinha voltado à sua forma humana.
- Assim está melhor - disse Sheziss. - Agora faz o que eu disser. Eles estão perto.
Jack esforçou-se por continuar a pensar em Victoria. Os seus sentimentos por ela e a lembrança do seu olhar mantinham o ódio e o instinto controlados. Mas custou-lhe muito dominar-se quando sentiu a cauda de Sheziss a rodear a sua cintura, quando a serpente o ergueu no ar para o depositar sobre o seu dorso, mesmo entre as asas. O simples contacto com ela quase o deixou louco de ódio.
- Controla-te, rapaz - disse-lhe Sheziss. - Para mim também és extremamente desagradável. Mas as nossas vidas dependem de isto correr bem.
Dobrou as asas sobre o seu corpo, ocultando Jack por completo.
O rapaz deixou escapar um queixume angustiado. Não suportava o contacto com a serpente.
Pensou de novo em Victoria. Quando Sheziss deslizou para fora da caverna, levando-o sobre o dorso, Jack agarrou-se às suas escamas, fechou os olhos e recordou, um a um, os momentos íntimos, felizes, especiais... que havia partilhado com Victoria. Evocou a luz do unicórnio para esquecer a frieza da serpente que, por alguma razão que ignorava, se tinha tornado sua aliada.
Mal percebeu que deslizavam por um túnel, tenuemente iluminado por um suave musgo fosforescente que cobria as paredes húmidas. Mas deu conta do encontro com outro shek.
Jack encolheu-se sobre o dorso de Sheziss, que o escondeu ainda mais sob as suas asas. Tinha parado no corredor e iniciara uma conversa telepática com a outra serpente, um macho mais novo. Jack não sabia o que estavam a dizer. Lutou para controlar o seu instinto, que o impelia a transformar-se em dragão e a precipitar-se sobre os sheks, os dois, e despedaçá-los.
"Isso não é prudente", recordou a si mesmo. Estava no mundo das serpentes. Se matasse Sheziss e o outro shek, nunca sairia dali vivo.
Por Victoria.
O outro shek pareceu não levantar problemas, dado que se afastou ligeiramente para os deixar passar. Jack sentiu que o seu olhar matizado procurava atravessar as asas membranosas de Sheziss, tentando adivinhar o que havia por baixo. Fechou os olhos. Voltou a pensar em Victoria. Viu-se a si mesmo como um simples rapaz humano, despreocupado, como era antes de encontrar a Resistência. Procurou reprimir a essência do dragão que pulsava no seu interior.
Sheziss continuou a avançar pelo corredor fora, com movimentos ondulantes, lentos e calculados, com a elegância e dignidade de uma rainha, sem olhar para trás.
Então ouviu-se um cicio nas suas costas. Sheziss voltou-se.
Parecia que o shek não estava muito convencido. Aproximou-se deles, talvez para esclarecer algo com Sheziss. Jack não conseguia ouvi-los, porque o vínculo telepático que os dois haviam estabelecido não o incluía a ele. Mas desejou que acabassem depressa, porque não podia suportar a presença das serpentes por muito mais tempo.
O shek mostrou as presas a Sheziss, com um sibilar ameaçador. Sheziss respondeu, ciciando furiosa, e lançou-se para trás. Ao fazê-lo, Jack resvalou ligeiramente sobre as escamas do dorso da shek e a sua perna direita ficou a descoberto.
Os olhos do shek cravaram-se nela, semicerrando-se perigosamente.
Jack não conseguiu aguentar mais. com um rugido, saltou do dorso de Sheziss e atirou-se ao shek num ataque suicida. Transformou-se a meio e caiu sobre o shek numa fúria de garras, cornos, dentes e labaredas.
A serpente era jovem, por isso nunca tinha visto um dragão. Por breves momentos ficou paralisada de terror, mas depressa o ódio instintivo que os sheks sentem pelos
dragões tomou conta das suas acções.
Jack tinha a vantagem do factor surpresa. Vomitou o seu fogo sobre a serpente, que silvou, aterrada, e cravou os dentes no seu pescoço enquanto ainda ardia.
Instantes depois, arquejava diante do cadáver do shek, exultante de alegria.
- És mesmo estúpido, dragão - disse-lhe Sheziss com uma cólera gelada. Jack voltou-se para ela; os seus olhos verdes brilhavam ainda com o fogo do dragão. Rugiu, disposto a lançar-se sobre ela, mas Sheziss esquivou-se habilmente e cravou nele o olhar irisado.
- Estúpido - repetiu. - Agora atraíste a atenção de todos os sheks da zona. Reza aos teus deuses para que consigamos sair vivos deste buraco...
O olhar hipnótico da serpente manipulou os fios da sua consciência. Jack sentiu que mergulhava num sono profundo...
Não saberia dizer quanto tempo durou a viagem. Deitado sobre o dorso de Sheziss, mal tinha consciência do que sucedia à sua volta. Apenas sabia que avançavam na penumbra, por intermináveis galerias de túneis, para cima e para baixo, para cima e para baixo, e estava cada vez mais frio. Mas Jack estava demasiado aturdido para perguntar para onde iam.
Tinha recuperado a sua forma humana e sentia-se fraco, muito fraco. O contacto com a serpente ainda o repugnava, mas não tinha forças para descer do dorso de Sheziss; nem sequer para protestar.
De modo que ali permanecia, deitado sobre o corpo ondulante da ;hek, deixando-se levar e sonhando, meio a dormir, meio acordado. A sonhar com Victoria, devorado pela saudade.
Pouco tempo depois, Sheziss deixou-o cair no chão, como se fosse um fardo. Poderiam ter sido horas ou dias; Jack não tinha muita certeza quanto a isso.
- O que... onde estamos? - gaguejou.
- A salvo, por agora - respondeu ela. - Longe da fronteira entre os dois mundos.
O coração de Jack apertou-se de angústia.
- Longe da Porta para Idhún? Muito?
- O suficiente para que não nos possam encontrar. Restam poucos sheks em Umadhun, e os poucos que há estão perto da fronteira. com a tua exibição desnecessária de estupidez, atraíste a atenção de todos eles. Por isso tivemos de fugir.
Jack mostrou-se envergonhado.
- Lamento... não consegui controlar-me. -Já reparei.
- Maldição! - explodiu Jack, frustrado. - Foi um ataque suicida, e sabia-o! Mas não consegui controlar-me! Porque é que o ódio e o instinto são mais fortes do que o meu bom senso?
Sheziss olhou-o, pensativa.
- Tens de encontrar alguém a quem odiar. Tens de ter motivos para odiar. Diz-me, odeias alguém?
Jack calou-se por um momento. Compreendeu de imediato que Sheziss queria continuar a conversa que começara, precisamente antes de os sheks os descobrirem.
- Kirtash - veio-lhe à cabeça.
- Porquê?
- Por ser um shek.
Sheziss sibilou, exasperada. Jack lembrou-se então de que aquela não era a resposta correcta.
- Porque é que o odeias?
- Porque... porque... por Victoria - disse por fim.
- Victoria odeia-o?
- Não, ela... ela ama-o.
- E ele corresponde-lhe? Então está a fazer bem a alguém importante para ti, não é?
Jack recordou que Christian salvara a vida de Victoria em várias ocasiões, tinha lutado por ela, arriscando a vida para a proteger.
- Sim - admitiu.
- E odeia-lo por isso? Custa-me a crer que sintas realmente algo por essa jovem. Pretendes mesmo afastar dela alguém que lhe pode fazer bem?
Jack fechou os olhos, cansado. De repente, os ciúmes pareciam-lhe um sentimento absurdo e infantil.
- Não - reconheceu. - Não o odeio por isso. Odeio-o porque é um assassino. Porque matou pessoas sem hesitar, sem remorsos.
Essa pareceu-lhe uma razão de bastante mais peso. Mas Sheziss estava aborrecida.
- É um shek - disse. - Não consegue sentir remorsos por matar um humano. Os dragões também não os sentem. Para eles não são nada, nem os sangues-quentes nem os sangues-frios.
Jack ficou estarrecido.
- Não é verdade - murmurou. - Não, isso não é verdade. Os dragões eram queridos e admirados em Idhún.
Sheziss emitiu um assobio que soou como uma espécie de riso.
- Sim, os sangues-quentes adoravam os dragões, é certo, como não iriam adorá-los? Sei que passaste toda a tua vida noutro mundo e não conheces grande coisa de Idhún. Os humanos do teu mundo têm animais de estimação?
- Sim, cães, gatos... - respondeu Jack sem compreender onde ela queria chegar. - Eu mesmo tive um cão.
- Cão - repetiu Sheziss. - Vejo imagens desses animais na tua mente. Os cães adoram os seus amos, não é? Obedecem-lhes, lutam por eles, defendem-nos?
- Os cães, sim.
- Apesar de serem escravos.
- Os cães não são escravos - protestou Jack.
- Ah sim? Queres dizer que podem ir onde entenderem, comer o que entenderem, acasalar com quem entenderem... Vocês nunca os prendem, não lhes batem, nem lhes dizem o que têm de fazer. É isso?
- Não - reconheceu Jack, um pouco envergonhado sem saber porquê.
- No entanto, o teu cão adorava-te e obedecia-te, não é? Porque lhe davas de comer. O cão sabia que eras superior a ele: eras o seu amo.
Jack abanou a cabeça.
- Não percebo o que queres dizer.
- Ah, sim, percebes. A eterna guerra entre sheks e dragões não se travou só entre nós. As espécies inferiores tomaram partido: os sangues-quentes o dos dragões; os sangues-frios, o dos sheks. Aos sangues-quentes pareceu-lhes tão lógico e natural odiar os sheks... não era à toa, eram os inimigos dos seus amos na guerra. E lutaram contra nós.
- Vocês matavam-nos se não lutassem.
- Eu não segui os meus companheiros até Idhún quando Ashran nos chamou, de modo que não sei como estão as coisas por lá. Mas, diz-me, por acaso os sheks mataram todos os sangues-quentes?
- Não - reconheceu Jack. - Mas governam-nos.
- Ah, sim, cai como faziam os dragões. Duvido muito que chegassem a ser tão benevolentes com os sangues-frios. Cuidavam dos sangues-quentes porque eram seus aliados, ou melhor dizendo, seus vassalos. Podiam chegar a sentir algum carinho por aqueles que lhes estavam mais próximos, tê-los-iam defendido, talvez; mas não os amavam. Se tivessem de sacrificar algum, porque os estorvava, lhes desobedecia ou simplesmente já não lhes era útil, faziam-no sem hesitar. Tal como nós fazemos com os nossos sangues-frios. Tal como os humanos fazem com os seus animais.
- Mas os humanos, os celestes, os feéricos... até mesmo os szish... não são animais - protestou Jack, aturdido. - São seres racionais.
- Têm um espírito mais complexo do que o dos animais, é certo. Mas mais simples do que o nosso. Sabes algo acerca da evolução, Jack? Entendes o que significa?
- Conheço o conceito. Aprendi-o na escola.
- No caminho da evolução, os animais estão um passo atrás dos sangues-quentes e dos sangues -frios. Nós, sheks, dragões e unicórnios, estamos um passo à frente deles.
Jack respirou fundo. Custava-lhe a entendê-lo.
- Pelo que parece, no mundo em que cresceste não há nenhuma espécie que esteja acima dos sangues-quentes.
É assim?
-É.
- Ah, agora compreendo porque te é tão difícil de aceitar. Porém, quando assumires o teu espírito de dragão, os seres inferiores não te parecerão tão importantes.
Poderás sacrificá-los sem remorsos, como faz Kirtash.
Jack estremeceu.
- Não, não quero ter de chegar a isso.
- No teu mundo há gente que sacrifica os cães?
- Sim - admitiu Jack a contragosto. - Temos canis onde recolhemos os cães abandonados, perdidos, perigosos... não sei. Creio que são abatidos ao fim de algum tempo se ninguém os reclamar.
- Odeias as pessoas que sacrificam cães? Parecem-te criminosos?
- Não. Mas não gosto do seu trabalho.
- Se houvesse cães que fossem uma ameaça para a tua espécie, sacrificava-los?
- Acho que sim - reconheceu Jack de mau grado. - Podemos deixar de falar de cães?
- Não estamos a falar de cães, Jack. Estamos a falar das razões pelas quais odeias Kirtash. Estamos a falar da função para a qual foi criado. Do ponto de vista de um shek, Kirtash não estava a fazer nada de mal Pelo contrário; se o consideram um traidor é porque se uniu aos sangues-quentes.
Se alguma raça de animais fosse uma ameaça para os sangues-quentes, eles exterminá-la-iam. Nós, os sheks, só eliminámos aqueles que não pudemos controlar. Os dragões
já o tinham feito. Expulsaram-nos para Umadhun porque não puderam exterminar-nos, embora tivessem estado perto de o fazer. As fêmeas dos sheks, tal como as dos dragões, só podem pôr ovos uma vez na vida. A nossa espécie esteve a ponto de não recuperar daquela batalha. Mas com os sangues-frios, os szish, foi pior. Os dragões massacraram-nos e por pouco não acabaram com toda a raça. Sim, é verdade, são muito semelhantes aos sangues-quentes, têm uma inteligência similar; a diferença é que os sangues-frios não os aceitaram como amos.
Por alguma razão, Jack pensou nos lobos. Eram da família dos cães, mas livres e selvagens. Na Terra estavam em perigo de extinção e os que os matavam eram considerados criminosos, mas cem anos antes era o inverso: os caçadores de lobos eram aplaudidos e respeitados.
"Porque os lobos não se submeteram aos humanos, como fizeram os cães", recordou Jack, com um calafrio.
- Sim, os humanos e os dragões têm muitas coisas em comum - disse Sheziss, adivinhando os seus pensamentos.
- Tanto Kirtash quanto eu somos em parte humanos - replicou Jack. - Não podemos tratar os humanos como seres inferiores.
- Sim, podem, e não tardarás a fazê-lo. Vocês respeitam e apreciam os inferiores mais do que se não tivessem essa alma humana, é verdade. Podem passar mais tempo entre eles. Provavelmente não matarão um humano sem um bom motivo. Mas, se o fizerem, não se arrependerão. Vocês não conseguem amá-los e muito menos odiá-los. São demasiado insignificantes.
- Como sabes tanto acerca de Kirtash, se não regressaste a Idhún com os outros? - perguntou Jack de repente.
Os olhos de Sheziss faiscaram por momentos, e a serpente bateu com a cauda, sibilando com fúria. Jack perguntou-se porque estaria tão zangada.
- Sei mais sobre ele do que gostaria - disse. - Para mim não é mais do que uma aberração que nos traiu. Tu também és uma aberração, mas preciso de ti para acabar com Ashran.
Jack ficou irritado.
- Porque é que odeias Ashran, se é apenas um humano?
- Porque, para um simples humano, fez-me muito mais mal do que qual quer shek. À excepção, claro está, de Zeshak, o rei das serpentes. Mas não quero que mates esse. Em relação a de, eu mesma trato ao assunto.
Jack olhou-a, entre inquieto e fascinado.
- E sentirás remorsos se o fizeres? - perguntou suavemente. A shek fitou-o brevemente, em silêncio.
- Talvez. - respondeu. - Talvez.
Jack sentou-se no chão de pedra, a reflectir.
- Não odeio Christian - percebeu de repente. - Não mais do que por ser um shek. Quer dizer, no fundo não encontro motivos para o odiar.
Sheziss olhou-o com interesse, mas não disse nada. Jack prosseguiu:
- Odeio Elrion, porque matou os meus pais... os meus pais humanos. Mas Elrion está morto.
Também não consigo odiar Gerde. É manipuladora e tentou prejudicar-nos, mas é... tão insignificante - compreendeu subitamente, perplexo. - Não é rival para mim.
Podia matá-la se quisesse. Era tão fácil...
- disse, e estremeceu. - Não consigo odiá-la. É desagradável, isso sim, mas mais nada.
Sheziss permanecia em silêncio, ainda com os seus olhos matizados fixos nele.
- Também não consigo odiar as pessoas que tentaram utilizar-me: nem Brajdu, nem a Mãe, nem o Arquifeiticeiro. Não têm poder sobre mim. Mas... - hesitou.
- Sim? - perguntou Sheziss.
- Odeio Ashran - reconheceu Jack surpreendido. - Porque enviou Kirtash e Elrion para me matar e matar outras pessoas. Porque provocou a extinção dos dragões e dos unicórnios. Porque me teria matado a mim, se pudesse. Porque torturou Christian quando ele decidiu ficar do nosso lado. Porque fez... porque fez muito mal a Victoria.
Ela não lhe falara da sua experiência na Torre de Drackwen, mas quando lha recordavam empalidecia, baixava a cabeça, encolhia-se sobre si mesma e afastava-se, inconscientemente, das pessoas que a cercavam. E Jack lera o medo e a angústia no seu olhar. Victoria também era uma criatura sobre-humana, no entanto, Ashran magoara-a, e muito.
- Como conseguiu? - perguntou-se Jack em voz alta, - Onde vai ele buscar o poder para fazer sofrer um shek, um unicórnio? Como pode prejudicar-nos?
- Não sei - disse Sheziss. - Mas acontece que não está sozinho. Ao seu lado está Zeshak, um shek. Ele, sim, tem poder sobre nós.
- E queres que desapareça? Apesar de ser o teu rei?
- OdeiOO - respondeu Sheziss simplesmente. - Odeio-os aos dois: Ashran e Zeshak. Tenho razões para isso. Mas não tenho motivos para odiar os dragões, apesar de não conseguir deixar de o fazer, porque nós, sheks, nascemos para odiar os dragões.
- Compreendo - assentiu Jack. - Também eu tenho motivos para odiar Ashran.
- bom - disse Sheziss. - Estarias disposto, então, a aliaste a mim? Jack fitou-a, pensativo.
- És uma shek renegada - murmurou. - Que te fariam os outros se soubessem que conspiras contra eles?
- Sabemno há que tempos, mas não dão importância. Acham que estou louca. E provavelmente estou. Consideram-me inofensiva. E se calhar até era... até que caíste pela falha. Ah, não posso negar o muito que te odeio por seres um dragão, o muito que me repugnas por seres um híbrido. Porém, o meu ódio por Ashran é mais intenso do que tudo o que possa sentir por ti. Porque tenho motivos para o odiar. E tu?
Jack olhou para ela. O ódio renasceu no seu íntimo, mas respirou fundo e pensou em Ashran.
- Também - assentiu.
- bom - repetiu ela. - Então, creio que chegou a hora de te mostrar algo. Está um pouco longe... mas vale a pena.
A viagem prosseguiu, monótona e entediante. Nada alterava a paisagem de Umadhun, os eternos túneis e o seu ténue fulgor, que Jack acabou por detestar com toda a sua alma. Todas as galerias lhe pareciam iguais. Todas aquelas esquinas, bifurcações, cavernas e pasagens aparentavam não levar a lado nenhum. No entanto, dava a ensação de que Sheziss sabia exactamente para onde se dirigia.
Durante todo aquele tempo, houve apenas um incidente que quebrou a monotonia da viagem. Deslizavam por uma vasta galeria quando Jack se ergueu, alerta.
- Há qualquer coisa aí à frente - disse.
- Sim, já reparei - respondeu ela sem muito interesse; mas Jack percebeu um indício de raiva nos seus pensamentos.
- O que é, Sheziss? Sinto como se fosse algo que conheço. Algo... algo de que tenho saudades.
Ela voltou-se para ele. Jack retrocedeu e franziu o sobrolho. O ódio voltava a pulsar dentro de si. Lutou para o controlar.
- É um rastreador, ou o que resta dele. Queres vê-lo?
Sim, Jack queria vê-lo. Sentia o desejo de se aproximar daquilo que lhe provocava aquela sensação de saudade. Mas não lhe agradava o modo como Sheziss falava dele.
Transmitia-lhe sentimentos negros e negativos: medo, ira, ódio, sede de vingança...
Precisava de o ver, saber o que era.
- Sim - afirmou, - O quanto antes.
Sheziss não disse nada, mas deslizou o seu corpo ondulante naquela direcção.
A galeria abriu-se até uma grande câmara sem saída. Ao fundo, junto à parede, havia um vulto enorme, maior do que Sheziss.
- Lembro-me deste - disse a shek, pensativa. - Foi há muito tempo; na altura eu era muito mais jovem e pertencia a um grupo de vigilância. Descobrimo-lo quando estava prestes a chegar a um dos ninhos. A mãe morreu a defender os ovos... Sim, lembro-me bem. Nós conseguimos fazê-lo fugir. Fomos atrás dele e, passado algum tempo, conseguimos localizá-lo nos túneis. Encurralámo-lo nesta sala. Foi difícil de vencer.
Jack ficara mudo de horror.
Era um dragão. Ou, como dissera Sheziss... o que restava dele.
Enorme e magnífico, tombara abatido pelas presas venenosas dos sheks, pelo asfixiante abraço dos seus corpos anelados ou, talvez, pelos seus ataques telepáticos letais. Ou até por tudo ao mesmo tempo.
O ódio voltou a apoderar-se de Jack. Quase conseguiu ouvir os últimos rugidos do dragão, os seus gritos de morte. O jovem transformou-se violentamente, disposto a lutar contra os sheks que tinham matado aquele dragão, e precipitou-se sobre Sheziss.
No entanto, ela estava preparada. Esquivou-se dele com uma facilidade insultuosa e voltou a aprisioná-lo entre os seus anéis. Quando o imobilizou sobre o chão frio da caverna, Jack ainda rugia, furioso. Mas a voz de Sheziss chegou a todos os recantos da sua mente:
- Não me provoques, rapaz - disse. - Lutei contra muitos rastreadores ao longo da minha vida. Sei como vos apanhar... e matar.
Jack debateu-se novamente. Mas Sheziss não tinha acabado de falar.
- Sabes o que é um rastreador? E assim que chamamos aos dragões assassinos. Ou pensavas que não havia assassinos entre os teus?
Jack deteve-se, de repente. A shek permaneceu em silêncio até que o dragão se acalmou, pouco a pouco, e recuperou por fim a sua forma humana.
- Assim está melhor.
- O que quiseste dizer com... dragões assassinos?
- Exactamente o que ouviste. Sabes que houve uma guerra, Jack, uma guerra entre dragões e serpentes aladas, e que há séculos que os sheks foram derrotados e desterrados para Umadhun? Os dragões selaram a entrada para que não pudéssemos voltar. Deviam ter-se dado por satisfeitos com isso, não?
- Não o fizeram? - perguntou Jack debilmente.
- A maioria sim, mas outros não. Especialmente os jovens machos. Aqueles que são incapazes de dominar o seu instinto. Precisavam de matar sheks e precisavam disso desesperadamente. Deforma que, de vez em quando, alguns deles embrenhavam-se pelos túneis de Umadhun... para nos caçar. Por alguma razão que não entendo, alguns sentiam prazer a destruir ninhos. Por isso, as crias de shek tinham tanto medo dos rastreadores que estes povoavam os seus piores pesadelos. Os dragões, Jack, são os bichos-papões da infância dos sheks; os dragões como este que tivemos de matar antes que assassinasse mais dos nossos, ou pior ainda... antes que alcançasse algum dos nossos ninhos. As crias que nasceram depois da conjunção astral já podem dormir sem pesadelos. A única ameaça que paira sobre o seu futuro, rapaz, és tu.
Jack engoliu em seco e fechou os olhos. Recordou a cria de shek que teria matado se Christian não a tivesse protegido. Perguntou-se se ele próprio teria sentido prazer ao destruir um ninho cheio de ovos de shek.
- Ensinaram-me que vocês eram monstros - murmurou. - Além disso, não consigo deixar de vos odiar.
- E nós percebemo-lo - respondeu ela. - Captamo-lo. Sobretudo agora, somos mais capazes que nunca de compreender os dragões. Porque ficámos sem eles, Jack, porque
o nosso ódio faz parte de nós mesmos e porque viver num mundo sem dragões é como ter sede num deserto sem fim. Necessitamos de matar dragões. Ansiamos por matar dragões.
O nosso instinto exige-o. Mas já não há dragões para matar.
Jack estremeceu. Afastou-se um pouco mais de Sheziss, por via das dúvidas.
Ela ignorou o gesto e continuou a falar:
- Os dragões tinham ficado sem sheks para matar, e alguns não conseguiram suportá-lo. Vieram à nossa procura. Pergunto-me se nós teríamos feito o mesmo. Se tivéssemos sido nós os vencedores daquela vez, será que haveria rastreadores entre nós, rastreadores que fossem à procura de dragões, que sentissem prazer ao destruir os ninhos?
Fez-se um longo e tenso silêncio.
- Era isto que querias mostrar-me? - perguntou então Jack em voz baixa.
Ela olhou-o.
- Não - disse por fim. - Não, embora não tenha calhado mal isto estar aqui. Não, Jack, o que quero mostrar-te é o verdadeiro rosto de Vmadhun. Aí vais perceber muito mais coisas acerca da nossa existência.
ESCURIDÃO
Naquele dia Alexander recebeu três más notícias.
A primeira foi-lhe transmitida por Tanawe, que foi vê-lo enquanto ele, Qaydar e Allegra supervisionavam a construção de catapultas no pátio. O Arquifeiticeiro lembrara-se de aplicar a ideia dos projécteis mágicos às catapultas, e estavam a fabricar um modelo que, teoricamente, lançaria no ar não só rochas, mas também esferas de energia mágica.
Era raro que Tanawe saísse das caves onde instalara a sua oficina. Desde a sua chegada a Nurgon, tinha-se aplicado com entusiasmo na construção de mais dragões, e a única coisa que era capaz de a distrair era o seu filho Rawel, a quem, apesar de tudo, mantinha sob estreita vigilância.
Alexander estava mal-humorado naquele dia e não era só porque à noite Ilea estaria cheia; na realidade, andava há vários dias de péssimo humor. Mais precisamente, desde a chegada e partida de Victoria.
Poucos conheciam a notícia da morte de Jack. Os líderes da rebelião tinham acordado mante-la em segredo. Se corresse o boato de que a profecia já não se podia cumprir, muitos iriam desistir, render-se. Precisavam de manter viva aquela esperança.
Contudo, Alexander não podia evitar sentir-se culpado. Às vezes pensava que devia dar às pessoas a possibilidade de se renderem se assim o desejassem, em vez de morrerem por uma causa perdida. Outras vezes dizia a si mesmo que, se ficassem obcecados com a profecia, então é que perderiam mesmo. Continuava sem ter a certeza de estar a agir correctamente. Embora estivesse certo de que ele, sim, ia lutar até à morte, com ou sem profecia.
Aqueles que sabiam a verdade acerca de Jack tinham-no apoiado sem reservas. Mesmo o facto de a visita de Victoria a Nurgon ter sido tão fugaz favorecia a continuidade da lenda e a fé na profecia. Poucos haviam visto a donzela-unicórnio, mas ela mostrara-se tão distante e misteriosa durante a sua estadia em Nurgon como seria de esperar de uma autêntica heroína. Allegra e Alexander tinham feito correr o boato de que Victoria partira novamente para se juntar ao dragão da profecia e que ambos regressariam para lutar na batalha decisiva.
Como acontecia sempre que pensava em Jack, Alexander sentiu o coração apertado. Cerrou os punhos de raiva e tornou a desejar ter acompanhado Victoria para matar Kirtash com as próprias mãos.
Esforçou-se por voltar ao presente quando Tanawe foi ao seu encontro. Apercebeu-se imediatamente da sua expressão preocupada.
- O que se passa?
- Há três dias que devia ter chegado o carregamento de troncos de olenko, príncipe Alsan. Não podemos esperar mais. Temos um Cuspidor de Fogo para acabar e ficámos sem reservas.
Alexander respirou fundo.
- Pois - murmurou. - Os sheks devem ter interceptado a barcaça que trazia a madeira e decerto não irão deixar passar mais nenhuma. Sabíamos que o fariam mais cedo ou mais tarde.
- Mas não tão cedo - gemeu Tanawe. - Eu contava pelo menos com mais um ou dois carregamentos. Tenho cinco carpinteiros de braços cruzados.
- vou ver o que se pode fazer - assegurou-lhe Alexander. - Entretanto, vai fabricando dragões dos outros.
- Também não temos madeira suficiente. - Tanawe dirigiu um olhar carrancudo às catapultas do pátio, cujos construtores tinham levado parte das suas reservas.
Alexander franziu o sobrolho.
- Fiquei com a ideia de que os feéricos vos proporcionavam madeira do bosque.
- Mas não a suficiente. Negam-se a cortar uma só árvore, e a madeira que recolhem do chão não chega para tudo o que queremos construir.
- Direi a Harel que fale com as fadas podadoras - interveio Allegra. Há muitas árvores que crescem descontroladamente em Awa, e sei que alguns feéricos se encarregam de lhes cortar os ramos de vez em quando para que cresçam mais fortes. Talvez possamos aproveitá-los.
- Agradeço-te - sorriu Tanawe, um pouco mais animada. - Mas isso não resolve o problema dos Cuspidores de Fogo.
Allegra voltou-se para o Arquifeiticeiro.
- Madeira imune às chamas?
Qaydar parou um momento para pensar.
- Hum - disse. - Há conjuros protectores contra o fogo, mas o seu efeito é limitado. Talvez... não sei - disse finalmente, abanando a cabeça. - Deixem-me pensar nisso.
Nos primeiros dias, Qaydar havia sido um estorvo, protestando por tudo e por nada e apressando toda a gente. Mas, quando Denyal e Alexander puseram em marcha a recuperação da Fortaleza e a organização das suas defesas, os feiticeiros rebeldes começaram a deparar-se com uma série de problemas para resolver.
E Qaydar, que dedicara grande parte da sua vida ao estudo da magia, achava muito estimulantes aqueles desafios que se iam apresentando; sentia-se no seu elemento idealizando novas formas de aplicar velhos conjuros ao ataque e à defesa, quase a ponto de se esquecer da sua obsessão pela Torre de Kazlunn. Não havia dúvida de que a actividade lhe fazia bem.
Tinha-se enfurecido dias antes, ao saber da partida de Victoria. AcusaraOs a todos de terem deixado ir embora o último unicórnio. Mas Allegra perguntara-lhe, muito séria: "Quem pode deter um unicórnio? Por acaso somos nós quem vai dizer ao último unicórnio o que deve fazer?"
Qaydar tinha desviado o olhai, incomodado. Não havia comentado com ninguém o encontro que tivera com Victoria na noite antes de ela abandonar Nurgon; mas as palavras de Allegra trouxeram-lho à memória, assim como o olhar inquietante da rapariga, que ainda o acossava em sonhos algumas noites.
A presença de Kimara tinha acalmado um pouco o Arquifeiticeiro. Ela recordava-lhe, pelo simples facto de ali estar, que Victoria, onde quer que estivesse, poderia continuar a consagrar feiticeiros e enviá-los a Nurgon para que se unissem à Resistência.
- Quantos dragões temos neste momento? - perguntou Alexander, enquanto Qaydar continuava com as suas conjecturas.
- Cinco Cuspidores de Fogo e oito dos outros. Também temos de pedir aos feéricos que deixem zonas de terreno desimpedidas. As árvores à volta da Fortaleza estão a crescer e a reproduzir-se tão depressa que mal nos deixam espaço para os dragões. Também não poderão levantar voo se os ramos se estenderem sobre eles.
- Já tinha notado - assentiu Alexander. - Pedi a Harel que mantivesse desimpedida a área em volta do castelo. Não me agrada ter as árvores tão coladas às muralhas exteriores.
- vou voltar a falar com ele a esse respeito - disse Allegra. Alexander ia responder quando Rawel chegou a correr.
- Está aqui um homem que quer falar contigo, príncipe Alsan arquejou. - Diz que vem de Shur-Ikail.
Alexander franziu o sobrolho. Há dias que esperavam que parte das tropas do rei Kevanion abandonasse o cerco para se dirigir à fronteira oeste do reino, por onde supostamente deviam ser invadidos pelos Nove Clãs de Shur-Ikail. Mas os soldados não se tinham movido. O acampamento continuava armado nos limites da cúpula invisível que protegia Nurgon. Estava a acontecer alguma coisa, e Alexander soube que não demoraria a inteirar-se do que se tratava exactamente; de modo que, acompanhado por Allegra, apressou-se a seguir o rapazinho até ao pórtico, onde Denyal estava já com o recém-chegado. Ambos trocaram um olhar casual. O mensageiro estava num estado lamentável: sujo, ferido, estafado e com a roupa feita em farrapos.
- Estava a dizer-me que os bárbaros mudaram de ideias - informou Denyal, sombrio. - Hor-Dulkar não nos apoiará na batalha.
- O quê? - explodiu Alexander.
- Aliaram-se a Ashran - explicou o mensageiro num fio de voz. Mataram todos os meus companheiros. Apenas eu escapei com vida, e só porque Hor-Dulkar queria que soubesses que não se vai aliar a um príncipe de Nandelt. Diz que cada shur-ikaili vale por dez cavaleiros de Nurgon.
- Já começa - resmungou Alexander.
Apercebeu-se então de que faltava a orelha esquerda ao mensageiro e cerrou os punhos com raiva. Jack estava morto, a sua gente ia arriscar a vida por uma causa perdida e aquele maldito bárbaro continuava a cortar orelhas.
- Vais pagar por isto, maldito animal - bradou.
- Os sheks deixaram-no passar - disse Denyal. - Querem que saibamos que os bárbaros nos viraram as costas.
- Mas porque terão mudado de ideias tão de repente? - perguntou Allegra.
- A bruxa está com eles - sussurrou o mensageiro. - A bruxa da Torre de Kazlunn.
Allegra semicerrou os olhos.
- Gerde - murmurou.
Olhou em volta à procura de Kimara. Sabia que a encontraria no pátio; a jovem semi-yan não se sentia bem em locais cobertos e muito menos no bosque que crescia em
redor da Fortaleza.
Não se enganou. Kimara estava sentada no alto da muralha; segurava um livro de feitiços no colo, mas o seu olhar estava perdido no céu idhunita. A morte de Jack mergulhara-a num estado de melancolia do qual ninguém até ao momento conseguira tirá-la.
- Vai buscá-la - disse a Rawel. - Diz-lhe que se encarregue de curar este homem.
Os feitiços de cura eram uma das primeiras coisas que a jovem tinha aprendido e, com todos os feiticeiros da Resistência a trabalhar em funções muito mais complexas, a tarefa de tratar dos feridos e doentes tinha ficado a seu cargo.
- Obrigado pela informação, amigo - dizia Denyal ao mensageiro.
- O teu sacrifício não será em vão.
O homem sorriu com esforço... e perdeu os sentidos.
- Não vou permitir que Gerde se cruze no nosso caminho outra vez - disse Allegra. - Já causou estragos que chegue.
- Em que estás a pensar? - perguntou Alexander, franzindo o sobrolho.
Allegra não teve ocasião de responder, porque naquele preciso instante chegou Zaisei. Também parecia preocupada.
- Shail vai-se embora - disse sem rodeios.
- Vai-se embora? - repetiram Allegra e Alexander ao mesmo tempo.
- Vai buscar Victoria. Alexander praguejou em voz baixa.
- Eu mato-o - rugiu, furioso.
Há vários dias que Shail e Alexander tinham discutido e continuavam sem se falar. O feiticeiro não aceitara nada bem a partida de Victoria; atirara à cara de Alexander que este a tinha deixado partir. O jovem, que ainda não assimilara completamente a morte de Jack, respondera de maus modos que, se Kirtash a matasse, era bem feito.
- Se ela não tivesse namoriscado com essa serpente, se não lhe tivesse aberto as portas da Resistência, Jack ainda estaria vivo!
- Quantas vezes te salvou a vida quando estavas ferido, seu ingrato? - vociferou Shail. - É o último unicórnio que resta no mundo! Mas, sobretudo, é Victoria, a nossa pequena Victoria! Como pudeste deixá-la ir?
- Da mesma forma que tu a deixaste ir no bosque de Awa!
Shail empalideceu.
- Esse foi um golpe baixo, Alexander.
Não se tinham falado desde então. Shail fechara-se no seu quarto, mal-humorado, e só tolerava a presença de Zaisei. Alexander sentia-se demasiado torturado pela
dor, pela culpa, pelas dúvidas e pela responsabilidade para dar o primeiro passo e tentar reconciliar-se com ele.
Talvez agora fosse o momento adequado, disse para si enquanto percorria as dependências da Fortaleza em grandes passadas. A ala este estava quase toda restaurada, e era ali que estavam instalados os líderes da Resistência. Alexander abriu a porta do quarto de Shail com mais violência do que queria.
O jovem feiticeiro estava a recolher as suas coisas com ar decidido.
- Pode saber-se o que estás a fazer?
Shail levantou a cabeça e dirigiu-lhe um olhar frio.
- vou buscar Victoria.
- Outra vez? Vais voltar a segui-la por meio continente? Shail estremeceu.
- Se for preciso, sim.
Alexander ia replicar de maus modos, mas olhou melhor para o amigo e reparou que os seus olhos estavam húmidos. Compreendeu de súbito que Shail se sentia tão perdido e assustado como ele próprio, como todos os que haviam acreditado na profecia durante anos e tinham de aceitar, de repente, que tudo fora por água abaixo. Não era fácil, por isso todos se agarravam a qualquer coisa que os impedisse de pensar: Kimara aos estudos de magia, o Arquifeiticeiro aos artefactos bélico-mágicos, Tanawe aos dragões de madeira... e Shail a Victoria. O último unicórnio que restava. A criatura à qual consagrara a sua vida e a sua magia.
Mas não havia só ela, pensou Alexander. Shail tinha algo mais. Agarrou-se a isso para o fazer voltar à razão:
- E em relação a Zaisei? Vais pedir-lhe que te acompanhe... até à Torre de Drackwen?
Shail sobressaltou-se.
- Zaisei... - repetiu.
- Vais deixá-la aqui? Vais deixá-la para seguir Victoria? O feiticeiro hesitou.
- Não podes fazer isso - prosseguiu Alexander. - Já sabes o que acontece àqueles que perseguem um unicórnio contra a sua vontade.
Shail inclinou a cabeça. As lendas diziam que todos os caçadores de unicórnios acabavam mal, de uma maneira ou de outra. Enlouqueciam, esqueciam-se de tudo menos da sua demanda... e nunca encontravam o unicórnio.
- Custa-me a crer que não quisesse que ninguém a acompanhasse - murmurou Shail.
- Queria que a acompanhássemos - disse Alexander. - Para matar Kirtash. - Hesitou. - Recusei e pensei que o fazia porque o meu lugar era aqui, em Nurgon, com toda esta gente que acredita em nós. Mas no fundo... Não achas que é algo que eles os dois devem resolver?
Shail deixou-se cair sobre a cama, abatido.
- É estranho que sejas tu a dizer isso.
- Eu sei. Mas sinto que é justo. Victoria começou o problema de Kirtash, Victoria tem de se desembaraçar dele. Foi ela quem se enganou, por isso deve ser ela a resolvê-lo.
- A morte de Kirtash não trará Jack de volta.
- Não, mas livrar-nos-emos por fim daquela serpente traiçoeira, e com um pouco de sorte Victoria recuperará a paz de espírito que perdeu.
Shail olhou para o amigo, indeciso.
- Achas? Está tão estranha. Não é a mesma desde a morte de Jack. Alexander soltou um suspiro de cansaço.
- Amava-o muito. Sabes disso. Não descansará até vingar a sua morte.
- Mas Kirtash... O que fará ele quando estiverem frente a frente?
- Não sei, Shail. Aquela serpente é tão imprevisível que não sei o que pensar. Parece que ainda a protege, mas... Não sei.
Shail engoliu em seco.
- Em que é que errámos, Alexander? - murmurou.
- Talvez fosse uma tarefa demasiado grande para nós - respondeu Alexander -, mas os deuses sabem que fizemos sempre tudo o que estava ao nosso alcance. E continuaremos a fazê-lo.
Shail não disse nada. Alexander sentou-se junto dele e pousou-lhe a mão no braço, procurando consolá-lo.
- Os deuses não permitirão que a magia morra no mundo - disse. Protegerão Victoria.
- Assim espero - suspirou Shail. - Sinto-me tão inútil... Não servi de grande coisa à Resistência desde que chegámos a Idhún.
- Nunca é tarde - sorriu Alexander. - Para o caso de não teres reparado, estamos a preparar uma grande batalha. E os feiticeiros são poucos hoje em dia. Qualquer ajuda é bem-vinda.
Shail também sorriu.
Não a deviam ter atacado. Deviam ter sabido quando ela os olhou nos olhos.
Acontecera quando Victoria atravessava o desolado reino de Shia. Arrasado pelos sheks, Shia não era um bom lugar para viver. As colheitas tinham secado há algum tempo sob uma capa de geada. As cidades, as aldeias... não eram nem uma sombra do que tinham sido.
Victoria avançava através dos caminhos, alheia a tudo o que a rodeava. O seu instinto de unicórnio conduzia-a até aos lugares onde ainda restava algo do bosque, raízes que pudessem servir-lhe de alimento, árvores cuja fruta ainda pendesse dos ramos mais altos. Comia pouco, mas não necessitava de muito para subsistir. Uma estranha força interior levava-a, passo a passo, em direcção à Torre de Drackwen.
Pelo caminho deparara-se com poucas pessoas, gente livre que procurava sobreviver como podia. Alguns ficavam a olhar para ela. Provavelmente não entendiam que alguém quisesse embrenhar-se em Shia por vontade própria. Todos sabiam que naquele reino não havia nada, pelo que todos os viajantes evitavam atravessá-lo.
Para Victoria, nada disso era importante. O caminho mais curto e directo para a Torre de Drackwen passava por Shia. Mais nada.
Também não parava para observar os rostos das pessoas com quem se cruzava, as carinhas sujas e cansadas das crianças, os seus pés descalços. Noutros tempos, tê-lo-ia feito. Noutros tempos, teria visto a desolação do reino e o seu coração teria sangrado por ele.
Mas esses tempos tinham ficado para trás. Agora, só a sua viagem era importante.
As pessoas eram apenas isso, pessoas, e viviam e morriam num tempo demasiado curto. E Victoria podia perceber, sob a terra ferida de Shia, a força da natureza que não tardaria a voltar a tomar posse do reino. Dentro de duas gerações humanas, a mão gentil de Wina, a deusa da terra, devolveria àquele lugar o viço e a fertilidade de outrora.
Duas gerações é muito tempo para um ser humano. Mas não para um unicórnio.
De modo que Victoria continuava simplesmente a caminhar em frente. Mais adiante de Shia erguia-se a enorme cordilheira que separava Nandelt de Drackwen. Em nenhum momento pensou como iria atravessá-la sozinha e a pé. Iria fazê-lo, e ponto final. Um instinto estranho guiava-a, sem margem de erro, até ao lugar onde se situava Alis Lithban, o bosque dos unicórnios... até à torre que albergava o seu coração... e até Christian.
Os bandidos encontraram-na uma noite a dormir aos pés de uma árvore ressequida, junto ao caminho, aninhada sobre o chão frio, já nas imediações da cordilheira. Tinham sido gente desesperada no passado, gente que tinha perdido tudo; agora eram apenas um grupo de bandidos sem o menor sentido de honra. Não se perguntaram o que fazia ela ali, naquelas paragens sombrias, cobertas de neblinas fantasmagóricas, alheia ao frio, ao assustador assobio do vento, ao medo e à desolação. Também não viram nela um unicórnio, mas sim uma mulher jovem a dormir, e sozinha.
Victoria acordou quando o primeiro deles a agarrou pelo braço e a levantou com brutalidade.
- Olha que coisa tão bonita - disse, com um sorriso desagradável.
- Perdeste-te, pequena? Procuras companhia?
Sacudiu-a, enquanto os outros riam grosseiramente. Houve um que não se riu, um jovem desgrenhado que a olhou seriamente.
- Tem uma espada - fez notar.
- Já reparei - cuspiu o que parecia ser o líder. Colocou uma faca debaixo do queixo da rapariga.
- Não te mexas, linda - advertiu-a.
Apalpou Victoria com a outra mão, uma mão grande e suja. Ela nem sequer pestanejou.
- Não sabes o que estás a fazer - disse suavemente.
Cravou os seus enormes olhos nele. O bandido hesitou, mas depois desatou às gargalhadas.
- A miúda acha-se muito valente porque tem uma espada - troçou. - Mas que pode fazer uma miúda sozinha contra nove homens?
Agarrou o punho de Domivat e puxou-a para lha tirar.
- Já te avisei - disse Victoria sem erguer a voz.
O báculo, que tinha estado preso às suas costas, desapareceu da sua bolsa e materializou-se nas suas mãos, obedecendo à sua chamada. Houve uma espécie de zumbido e um cheiro desagradável a carne queimada. O chefe dos bandidos deixou escapar um uivo de agonia antes de tombar no chão, morto, com um horrível ferimento fumegante no peito.
Victoria viu-o cair aos seus pés, impassível. Os outros homens contemplaram a cena macabra, o esgar de terror fixo no rosto morto do seu chefe. Depois olharam para Victoria como se fosse um fantasma.
Ela devolveu-lhes um olhar sereno. Os homens deram meia-volta e fugiram, rapidamente, para longe daquela estranha criatura que parecia uma rapariga humana, mas não era.
Todos excepto um.
O jovem que não se tinha rido com os outros permanecia de pé diante dela. Na sua expressão não havia medo, mas antes uma espécie de respeito reverencial.
- És tu - disse.
Victoria inclinou a cabeça, sem dizer nada.
- Ouvi falar de ti - prosseguiu ele. - Dizem que o último unicórnio vagueia pelo mundo sob a aparência de uma jovem humana que leva consigo um báculo lendário.
Victoria não viu necessidade de responder.
O jovem avançou para ela. A rapariga dirigiu-lhe um olhar de advertência, mas ele não se deteve. Deixou-se cair de joelhos diante da rapariga e baixou a cabeça em sinal de submissão.
- Por favor - implorou. - Sonho há muitos anos encontrar alguém como tu. Por favor, entrega-me o teu dom. Converte-me num feiticeiro completo.
Victoria observou-o, compreendendo. O bandido tremia aos seus pés.
- És um semifeiticeiro - afirmou ela com suavidade.
Ele ergueu a cabeça. Não teria vinte e cinco anos; tinha o cabelo, loiro-escuro, sujo e desgrenhado e o rosto moreno estava parcialmente oculto por uma barba de vários dias. Mas os seus olhos cinzentos estavam húmidos.
- Imploro-te, converte-me num feiticeiro. É o que mais desejo no mundo e, se tu não o fizeres, ninguém mais o fará.
Victoria abanou a cabeça.
- Não posso fazer o que me pedes.
Ele olhou-a por um instante com um semblante inexpressivo. Victoria recolheu as suas coisas e regressou ao caminho, disposta a continuar viagem.
Não se surpreendeu ao ver que o bandido a seguia.
- Por favor - insistiu ele.
Victoria não disse nada. O jovem estacou, mas ela seguiu o seu caminho. Ele hesitou e desatou a correr para a alcançar.
- Tu não entendes! - atirou-lhe. - Quando era criança vi um unicórnio no bosque. Sei que não estava à minha procura, porque desapareceu entre a vegetação assim que notou a minha presença. Mas eu já o tinha visto e, desde então... há um pouco de magia em mim.
Victoria não respondeu. O bandido caminhava ao seu lado, gesticulando bastante e falando muito depressa, como se temesse que também ela se fosse esfumar no ar a qualquer momento.
- Só um pouco de magia, compreendes? Pressinto algumas coisas antes de acontecerem. Os meus sentidos são mais desenvolvidos do que os de outras pessoas, consigo aliviar a dor dos doentes e dos feridos... mas não consigo fazer mais nada. Achei que ia enlouquecer de angústia quando morreram todos os unicórnios, e muitas noites sonho com aquele que vi, sonho voltar a vê-lo... embora saiba que está morto. Sinto saudades dele, mas ao mesmo tempo gostava de nunca o ter visto. É como se estivesse a vaguear por um deserto e me tivessem dado a provar uma só gota de água antes de me afastarem da fonte. Antes de ver o unicórnio, não sabia que tinha sede. Agora há dezasseis anos que estou sedento!
- Compreendo - disse Victoria. - Mas não posso fazer o que me pedes.
O jovem fitou-a, procurando digerir as suas palavras.
- Maldita seja toda a tua raça! - explodiu por fim, furioso. - Não fazes a menor ideia do que significa ser um semifeiticeiro! Não sou um humano normal, mas também não sou um feiticeiro! Não, miúda, não me compreendes!
Victoria parou de repente e dirigiu-lhe um olhar tão intenso que o bandido emudeceu, intimidado.
- Não és nem uma coisa nem outra - simplificou ela. - Mas és ambas as coisas. Dizes que não sei como te sentes? Enganas-te, semifeiticeiro. Sei exactamente como te sentes.
O jovem permaneceu calado. Victoria retomou a marcha. Ouviu a sua voz junto dela.
- Então, é verdade que és em parte humana?
- Sim - respondeu ela com naturalidade. Caminharam juntos durante algum tempo, em silêncio.
Uma rajada de ar gelado sacudiu as suas roupas, e o bandido estremeceu. Mas Victoria ficou impassível.
- Gostaria de te acompanhar - disse ele por fim. - Para onde quer que vás. Deixas-me?
- Não posso impedir-te - respondeu ela. - O caminho é de todos.
- Chamo-me Yaren.
- Eu sou Lunnaris - disse ela apenas.
Victoria só parou quando a cordilheira lhe barrou a passagem. Os três sóis já brilhavam alto e estavam a caminhar há horas, mas ela não tinha dado mostras de cansaço. Yaren viu-a contemplar as montanhas, pensativa.
- Queres atravessar para o outro lado? Ela não respondeu.
- Sim, claro, é evidente - disse Yaren. - Mas não é um bom lugar para atravessar. Do outro lado está Drackwen. Se seguirmos as montanhas para este chegaremos ao desfiladeiro que liga Nandelt a Celestia.
- É por aqui que quero atravessar. Yaren ficou a olhar para ela.
- Vais a Drackwen? Claro, a Alis Lithban, é lógico. Mas o bosque dos unicórnios já não é o que era. É lá que fica a Torre de Drackwen, onde vive Ashran, o Necronumte, que os deuses levem a sua alma.
- Eu sei.
Yaren abriu a boca para perguntar mais alguma coisa, mas abanou a cabeça e optou por se calar. Victoria retomou a marcha, disposta a trepar pelos penhascos.
- Espera! - chamou o bandido. - Se fores por aí, vais matar-te. Victoria estacou e olhou para ele.
- Quando os sheks invadiram Shia - explicou ele -, a minha família escondeu-se nas montanhas, tal como muitas outras. Cresci aqui. Conheço alguns caminhos... Bem, na realidade, muitas das passagens não merecem chamar-se caminhos, mas podem levar-nos ao outro lado. Se estiveres disposta a correr o risco, claro. Em alguns lugares, o trilho torna-se difícil e perigoso. Podemos despenhar-nos se não formos com cuidado. Victoria assentiu.
Christian respirou fundo e fechou os olhos. Enviou a sua consciência até Victoria, onde quer que ela estivesse. Sentiu-a. Pressentiu a sua dor, tão intensa, tão dilacerante.
"Ela ainda usa o anel", pensou.
Recostou-se contra a fria parede de pedra.
Tinha-se sentado nas ameias, no mesmo lugar de onde, semanas antes, tinha dirigido a defesa da Torre de Drackwen enquanto Victoria sofria às mãos do seu pai. Quando,
apenas um pouco mais tarde, escapara de lá, moribundo, estava convencido de que jamais voltaria àquela torre.
Parecia ter passado uma eternidade desde então.
Olhou para as mãos, pensativo. A morte de Jack pesava-lhe na consciência. Arrependia-se profundamente de o ter matado nos Picos de Fogo.
Aquela era uma sensação nova para ele. Nunca tinha sentido remorsos. Sempre fizera exactamente o que queria fazer. Sabia que ao longo da sua vida matara muitas pessoas, mas, no fim de contas, eram apenas gente. Mas Jack era outra coisa. Jack era... como ele. Seu igual. Por muito que o odiasse, Christian não podia negar que sempre o tinha respeitado.
Além disso, havia Victoria.
Sabia que tinha estado em Nandelt e que se tinha encontrado com Alexander. Sabia que tinha abandonado Nurgon... sozinha.
Sabia que os seus passos a dirigiam, lenta mas inexoravelmente, para a Torre de Drackwen. E sabia para quê.
"Fomos parte de uma profecia", pensou. "Nós os três. Mas agora só restamos dois. E estamos sozinhos."
Não conseguiu suportar mais. Levantou-se e cravou os olhos azuis no horizonte, onde Evanor, um dos sóis gémeos, começava a pôr-se.
"Voltarei para buscar aquilo que é meu", dissera a Victoria, apenas uns dias antes. "Enquanto estiver aí."
Tinha de o comprovar. Precisava de a olhar nos olhos outra vez e saber...
No alto da velha muralha, havia um lugar onde as ameias ainda continuavam de pé. Dali, a vista era magnífica. Via-se o bosque para lá do rio e as terras de Nurgon, que agora estavam cobertas por um manto de vegetação. E mais à frente... as tropas inimigas, posicionadas em volta da Fortaleza. Soldados humanos e szish, na sua maioria, tinham estendido o seu acampamento para o outro lado do escudo feérico que protegia os rebeldes. Vários sheks patrulhavam os céus sem descanso. E todos os dias chegavam mais.
Kimara gostava de subir à muralha para contemplar a paisagem. Sentia-se asfixiada no recinto fechado da Fortaleza e o imenso bosque atemorizava-a. Mas no alto da muralha o céu continuava aberto sobre ela. No alto da muralha podia erguer o rosto para os sóis e sonhar que Jack regressaria a voar, transformado num magnífico dragão.
Ou pelo menos assim fora, até que Victoria e os seus companheiros tinham desfeito esse sonho com as notícias que trouxeram dos Picos de Fogo.
Apesar de tudo, Kimara continuava a subir à muralha todos os dias. Mas agora, ao levantar os olhos para o céu, sonhava apenas regressar à sua terra, voltar a ver as eternas areias de Kash-Tar e afastar-se por fim daquele pesadelo.
Naquela manhã, quando subiu às ameias como costumava fazer, deparou-se com uma desagradável surpresa.
Estava lá alguém.
Kimara olhou-a com cara de poucos amigos.
- O que fazes aqui?
- O que te importa? - replicou Kestra de maus modos.
Kimara procurou dominar-se. "Bem", pensou, "a muralha é de todos." De modo que trepou até ao cimo e ocupou o lugar do costume, a uma distância prudente de Kestra.
A shiana não olhou para ela. Os seus olhos escuros esquadrinhavam o bosque, pensativos.
Kimara também a ignorou. Embora fossem as duas quase da mesma idade, tinham-se dado mal desde o início.
A semi-yan sentou-se entre duas das ameias, abriu o manual de feitiços e procurou concentrar-se. Mas não tardou a erguer os olhos para o céu, que nunca se cansava de contemplar... mesmo que estivesse cheio de sheks.
- Tu sabes que não vai voltar... - disse então Kestra, sobressaltando-a. - Porque o esperas?
- Mete-te na tua vida - replicou Kimara, surpreendida e aborrecida com o seu descaramento.
- Isto faz parte da minha vida - respondeu Kestra, furiosa. - Dá cabo de mim ver-te aqui todos os dias, a perder tempo enquanto nos esforçamos por levar a rebelião para a frente. Porque não deixas de olhar para o céu e fazes algo útil, para variar?
- Para quê? Jack está morto, a profecia não se vai cumprir. Vamos todos morrer.
- Ele não era o único dragão do mundo.
- Era sim. E não te atrevas a dizer-me que essa coisa de madeira que diriges é um dragão. Não fazes a mínima ideia do que significa montar no dorso de um dragão de verdade.
Kestra pôs-se de pé, colérica. Pareceu que ia lançar-se contra ela, mas conteve-se a tempo e limitou-se a replicar, com frieza:
- Não sei o que fazes aqui. É mais do que óbvio que não pertences à Resistência.
- Eu o quê? - soltou Kimara, boquiaberta. - Fiz muito mais pela Resistência do que tu!
- Não acreditas na profecia, semi-yan. Só acreditavas nesse teu dragão. Agora que ele está morto, já não te resta nada em que acreditar.
Kimara não soube o que responder. As palavras de Kestra tinham-na magoado, mas no seu íntimo sabia que era verdade.
- Eu acredito na profecia - prosseguiu a shiana. - Não me interessa que o último dragão tenha morrido. Nós somos os Novos Dragões. Iremos combater os sheks e vamos vencer onde os Velhos Dragões foram derrotados.
- Não era só um dragão, Kestra - replicou ela friamente. - Era uma pessoa. Agradecia-te que não falasses da sua morte com tanta frivolidade.
Fez-se um breve silêncio.
- Para que te torturas? - disse então Kestra. - Dizem por aí que o dragão andava com a rapariga-unicórnio. A versão oficial é que ela partiu para ir ter com ele... mas tu e eu sabemos que foi vingar a sua morte, matar o seu assassino. Como deve ser. É ela quem tem de o chorar, não tu. Ou será que eram algo mais do que amigos?
Kimara voltou-se para ela, com os olhos avermelhados a arder de fúria.
- A minha vida privada não te diz respeito, nortenha. Por acaso perguntei-te de onde vem toda essa raiva, quem queres vingar lutando na Resistência ou porque gostas
mais de um dragão de madeira do que de toda a gente que te rodeia?
Kestra ficou vermelha de fúria, mas não respondeu. Kimara voltou a sentar-se nas ameias e focou o olhar no livro de feitiços, carrancuda e mal-humorada.
Fez-se um longo silêncio.
- Quero vingar a minha irmã - disse então Kestra com suavidade. Kimara ergueu o olhar do livro para a fixar. Mas os olhos de Kestra
estavam cravados nalgum ponto do bosque que se erguia perante elas.
- Também eu tinha alguém em quem acreditar. Também eu tinha uma fé cega numa pessoa. E essa pessoa foi-se, já não existe. E não voltará.
- Morreu? - perguntou Kimara em voz baixa.
Kestra não respondeu à pergunta. Voltou-se para ela e Kimara viu que tinha os olhos marejados de lágrimas.
- Mas ao menos depositei a minha fé nos dragões de madeira, em Fagnor, na profecia. E tu em que é que acreditas? Porque lutas?
Kimara não soube o que responder.
Ouviram então alguém subir pelas escadas. Kimara voltou-se para ver quem era e descobriu que se tratava de Allegra; Kestra debruçou-se para o exterior, virando-lhe as costas.
A feiticeira chegou junto delas.
- Andava à tua procura, Kimara - disse com suavidade. - Olá, Kestra.
- Olá - respondeu ela, cortante. - Já me ia embora.
- Não é preciso... - começou Allegra, mas Kestra já se encontrava nas escadas.
Kimara suspirou e fechou o livro. Esperava que Allegra lhe perguntasse algo acerca dos seus estudos, por isso surpreendeu-se quando a ouvir dizer:
- Vou-me embora, Kimara. vou estar fora por pouco tempo, mas já pedi a Qaydar que seja o teu tutor, e ele aceitou.
A semi-yan ficou em silêncio, digerindo as suas palavras.
- Vais à procura de Victoria? - perguntou com suavidade.
- Não. Victoria já não é responsabilidade minha. Há outros assuntos que tenho de resolver longe daqui.
- Assuntos da Resistência?
- Sim.
Kimara assentiu. Allegra contemplou-a, pensativa.
- Estás preocupada com alguma coisa? "Muitas coisas", quis dizer. Mas conteve-se.
- Porque é que ninguém se quer responsabilizar por Victoria? Porque é que a deixaram ir? É quase uma criança. Se Jack e eu não tivéssemos cuidado dela, teria morrido no deserto. Várias vezes.
- Eu sei. E não penses que não me custa. Criei-a, vi-a crescer. Mas tu, melhor do que ninguém, devias saber porque deixei que se fosse embora. Pensa nisso.
Kimara reflectiu. Fechou os olhos momentaneamente e recordou o instante em que o último unicórnio a tinha roçado com o seu corno, o instante em que a magia a tinha enchido por dentro, fazendo-a sentir-se muito mais viva do que alguma vez sentira.
"Vamos todos morrer", dissera a Kestra momentos antes. Envergonhou-se das suas próprias palavras.
- É um unicórnio - murmurou. Allegra assentiu.
- Não podemos impedi-la. Desde que o seu espírito de unicórnio despertou, os seus motivos deixaram de ser os nossos, a sua forma de pensar e de actuar é diferente da de qualquer outra pessoa. Já não podemos compreendê-la. Já não podemos interferir nas suas decisões. E, sobretudo, já não podemos retê-la contra a sua vontade.
Nem devemos. Os unicórnios têm de ser livres, para que a magia seja livre. Percebeste?
Kimara assentiu.
- Mas há mais - prosseguiu Allegra. - Desde a morte de Jack, a luz dos seus olhos apagou-se. Victoria está ferida de morte, e nenhum de nós tem poder para a curar.
Tem de enfrentar Kirtash. O seu instinto assim o exige.
Não sei muito bem o que irá acontecer quando esse momento chegar. É possível que não seja capaz de o matar; talvez então o amor volte a inundar a sua alma, talvez volte a ser a Victoria que conhecemos. Ou pode ser que só se salve matando o assassino de Jack. Ou quiçá precise de o matar para poder morrer por fim. Também pode querer simplesmente tentar encontrar respostas nos olhos dele. Não sei, Kimara. Antigamente, Victoria era a minha menina; conhecia-a, compreendia-a. Agora é um unicórnio e, como bem sabes, ninguém pode entender as razões de um unicórnio. Kimara engoliu em seco.
- Espero que volte - sussurrou. - Oh, espero que volte. Allegra sorriu e passou um braço pelos ombros da semi-yan.
- Eu também, filha. Eu também.
Os dias seguintes foram longos e complicados. Escalaram a cordilheira com dificuldade, pouco a pouco, seguindo por veredas que os animais das montanhas tinham aberto tempos antes. Por vezes tinham de trepar penhascos que pareciam intransitáveis. Mas Yaren encontrava sempre um lugar onde pôr o pé, uma moita para se agarrarem. Victoria tinha o cuidado de andar só onde ele andava e de seguir os seus movimentos com total exactidão.
À medida que iam escalando as montanhas, ficava cada vez mais frio. Victoria usava a magia do báculo para aquecer o ambiente à sua volta, o que Yaren agradecia.
O bandido, por sua vez, encarregava-se de trazer comida. Sabia quais os animais que se podiam encontrar naquelas paragens e qual a maneira de os apanhar. Ainda assim, a caça não era muito abundante. Pelas paredes rochosas podiam ver-se esporadicamente colónias de washdans, uns animaizinhos de pelagem cinzenta que não tinham problemas em trepar pelos penhascos com grande rapidez, já que se agarravam à rocha com as patas dianteiras e traseiras; os seus dedos aderiam à pedra húmida, sendo difícil despegá-los.
Yaren tinha um talento especial para descobrir as colónias de washdans. Não conseguia trepar pelas paredes montanhosas da mesma forma que eles, mas sabia utilizar muito bem a funda e era capaz de abater um ou dois à pedrada.
Contudo, a carne de washdan não era nem muito saborosa nem muito nutritiva. Mesmo assada, era dura e parecia borracha, e era evidente que não se tratava de um bom alimento.
No início, Victoria negou-se a prová-la. Enquanto lhe foi possível, continuou a alimentar-se de frutos, cogumelos e bagas. O seu instinto indicava-lhe os que eram comestíveis e os que não eram, embora nunca tivesse visto as variedades que cresciam nas florestas idhunitas.
Porém, chegou uma altura em que deixou de encontrar alimento com facilidade e foi então que acedeu a provar a carne, quer fosse de washdan ou de qualquer outra coisa que Yaren encontrasse.
Após vários dias a escalar os penhascos da cordilheira, os trilhos começaram a descer. Lentamente, a temperatura foi subindo, a neve voltou a deixar correr os ribeiros da montanha e os penedos abriram-se para mostrar uma paisagem plana, enevoada e cinzenta.
- Nangal, a Terra Cinzenta - disse Yaren. - Não é muito povoada, mas encontraremos algumas aldeias pelo caminho. Em qualquer caso, será melhor do que as montanhas... ou seria, se não estivesse tão perto da Torre de Drackwen.
Victoria não respondeu. Yaren olhou-a de soslaio.
Não tinham falado muito durante a viagem através das montanhas. Às vezes, o jovem duvidava de que a sua companheira fosse realmente um unicórnio. Mas havia noites em que Victoria se agitava em sonhos, como que procurando escapar de um pesadelo angustiante. Yaren contemplava-a então, adormecida sob as três luas, e via com clareza um ponto de luz que brilhava na sua testa como uma estrela.
- Porque queres ir a Drackwen? - perguntou-lhe uma vez.
Os pesadelos da noite anterior tinham sido particularmente intensos, Yaren via-o nos círculos negros que emolduravam os olhos da rapariga. Contudo, ela nunca falava do assunto e agia como se nada a perturbasse, avançando com uma vontade de ferro.
Victoria permaneceu um momento em silêncio antes de responder:
- vou encontrar-me com alguém.
- Quem pode existir em Drackwen que seja suficientemente importante para interessar a um unicórnio? - perguntou Yaren, desconfiado. - Vais entregar a magia a esse alguém? - acrescentou de repente, invejoso.
- Não - respondeu ela, com uma suavidade e uma naturalidade que lhe provocaram calafrios. - vou matá-lo.
O jovem não perguntou mais nada.
Mas, enquanto desciam pelos penhascos da cordilheira em direcção a Nangal, recordou uma história que tinha ouvido contar desde criança, uma lenda à qual, com o tempo, as pessoas tinham deixado de dar crédito.
- Vais matar Ashran? - perguntoulhe subitamente. - Diz-se que uma profecia anuncia a queda de Ashran às mãos de um dragão e um unicórnio.
Nada tinha conseguido perturbar Victoria em toda a viagem, mas aquelas palavras pareceram abalá-la profundamente.
- Houve uma profecia - afirmou, devagar. - Mas não pode cumprir-se, porque já não há dragões.
Falou com calma; no entanto, Yaren percebeu algo na sua voz, um timbre que lhe transmitiu, de maneira misteriosa, um vislumbre da imensa solidão, tristeza e desespero que esmagavam a alma de Victoria.
Quis perguntar mais coisas, quis penetrar no mistério da enigmática jovem que escoltava, mas não se atreveu. Havia algo nela, uma dignidade régia, que o intimidava, atraía e desconcertava ao mesmo tempo.
"É um unicórnio", recordava constantemente a si mesmo. "É normal que a ache estranha."
Era melhor pensar assim do que admitir que, no fundo, havia algo em Victoria que lhe fazia medo. Muito medo.
Por fim, uma noite acamparam no sopé da cordilheira. Ao abrigo dos grandes blocos de pedra, contemplaram a região que se abria perante eles, a sul.
Drackwen.
- Devo estar louco - murmurou Yaren. - Estou a acompanhar-te até ao coração do império dos sheks... e tudo porque tenho a ténue esperança de que um dia tenhas pena de mim e me convertas num feiticeiro. Só nós, os humanos, somos capazes de dar tudo por um sonho, por mais estúpido que seja. Dizem que é a própria deusa Irial quem nos insufla os sonhos através da luz das estrelas, mas acho, simplesmente, que nós, humanos, somos um pouco mais idiotas do que qualquer uma das outras raças inteligentes. Os unicórnios têm sonhos? - perguntou de repente. - Não me refiro aos sonhos que temos quando estamos a dormir, mas sim ao tipo de sonho, de desejo... pelo qual lutas toda a tua vida. Esse sonho sem o qual a tua existência parece não ter sentido. Alguma vez tiveste esse tipo de sonho?
Pela mente de Victoria passaram, por um fugaz instante, duas imagens que se sobrepuseram e momentaneamente pareceram formar uma só.
Jack. Christian.
- Acho que sim - disse por fim, quando Yaren achava que ela já não ia responder.
- Tornou-se realidade? - perguntou o semifeiticeiro, com curiosidade.
- Não - respondeu ela após um instante de silêncio. - Desfez-se em pedaços.
Não falaram mais naquela noite.
Quando o sono fechou as pálpebras de Victoria, os pesadelos regressaram.
Neles tornava a ver Jack a cair no abismo de fogo, uma e outra vez; a espada de Christian a atravessar-lhe o peito; o dragão e o shek empenhados numa luta até à morte, tão inevitável como o nascer dos sóis todas as manhãs.
Naquela noite, contudo, houve algo diferente. Ele falou-lhe através do anel.
Victoria soube-o de imediato. Os sonhos desapareceram e a sua mente encheu-se com a imagem de Christian, os olhos azuis a fitá-la seriamente, tão misteriosos e sugestivos como da primeira vez que se vira neles.
- Victoria - disse ele. - Vens ter comigo... Porquê?
- Tu sabes - respondeu ela em sonhos. - Tenho de te matar.
- É preciso?
- Não há outra saída.
- Sim, há. Não posso apagar o que fiz, mas posso oferecer-te um futuro. Victoria, não te peço que me perdoes. Peço-te que não me obrigues a enfrentar-te. Peço-te que fiques comigo.
- Não posso dar-te o que me pedes. Sabes disso.
- Mas ainda tenho esperança de que exista outra maneira, Victoria. Vim buscar-te. Abre os olhos.
Victoria despertou do sonho, bruscamente. Sentiu uma presença fresca junto de si, uns braços que a rodeavam. A sua cabeça repousava sobre um ombro que ela conhecia muito bem.
Yaren acordou subitamente. Sentiu muito frio de repente. Voltou-se para Victoria e ficou paralisado.
A rapariga estava nos braços de um jovem desconhecido vestido de preto.
Yaren não fazia ideia de quem era aquele indivíduo, nem como tinha lá chegado, nem o que queria deles, mas sobressaltou-se sem saber porquê. E, embora quisesse correr para defender a companheira, não foi capaz de sair do sítio.
Nenhum dos dois parecia reparar na sua presença. Victoria tinha os olhos abertos, mas não se mexia. Se não fosse por parecer impossível, Yaren teria assegurado que ambos estavam a comunicar de alguma maneira, sem palavras.
E teve a sensação de que ele próprio estava ali a mais e que não devia interromper o que quer que estivesse a acontecer entre eles.
Ficou a olhar para eles, a tremer, sem se atrever a intervir.
Victoria procurou mexer-se, mas não conseguiu.
- Paralisaste-me - pensou. - Porquê?
A mão de Christian acariciou-lhe o cabelo. Victoria sentia-se sacudida por um oceano de sentimentos contraditórios. Por um lado, odiava o assassino de Jack, desejava enterrar Domivat no seu coração e vingar a morte do seu amigo. Mas uma parte dela queria voltar a abraçar Christian, deixar que a sua presença a inundasse por dentro, ir-se embora com ele, como lhe tinha pedido, e nunca mais se separar dele.
- Queria falar contigo.
- Não há nada para falar - respondeu ela baixinho; sentia-se indefesa nos braços de Christian; mas não teve medo.
- Se me matares - prosseguiu ele -, o que vais fazer depois?
- Não vai haver um depois - afirmou ela. - É por isso que tenho de te matar.
- Não quero lutar contra ti. Se soubesse que isso ia resolver as coisas, deixar-me-ia matar, sabes disso. Mas não vai. E o que irá acontecer a seguir? Victoria, o que está feito não se pode desfazer, mas, se me deixares, dedicarei o resto da minha vida a procurar aliviar a dor que te causei.
Victoria não respondeu. Sentiu que Christian lhe estendia a mão. Ouvi-o sussurrar no seu ouvido:
- Vem comigo...
Ela afastou-se dele, lentamente. Foi então que descobriu que, apesar de o poder mental de Christian continuar activo, já não a podia afectar. O shek deixara de ter poder sobre ela.
Olhou-o nos olhos, com gravidade. O jovem hesitou. Parecia subitamente intimidado, mas não retirou a mão.
- O que foi feito da luz dos teus olhos? - perguntou em voz baixa.
- Só vejo escuridão neles.
- Foi o que tu mesmo criaste - respondeu Victoria sem se alterar. Ergueu-se um pouco e agarrou o punho de Domivat, da qual nunca
se separava. Christian retirou a mão, retrocedeu ligeiramente e abanou a cabeça.
- Não vou lutar contra ti.
- Não importa aonde vás, seguir-te-ei até te encontrar. Não poderás evitar-me eternamente.
- Se for necessário, é o que farei.
Victoria levantou-se de rompante e desembainhou a espada. Christian dirigiu-lhe um longo olhar, abanou a cabeça, deu uns passos atrás... e desapareceu na escuridão.
Só então Yaren se atreveu a mexer-se.
- Quem... quem era aquele tipo? - perguntou; apercebeu-se de que tinha a garganta seca.
Esperava que ela respondesse com um nome. Mas Victoria disse somente:
- O homem que tenho de matar.
Yaren quis perguntar algo, mas o olhar de Victoria, uma vez mais, provocou-lhe arrepios, e permaneceu calado. No entanto, não pôde evitar pensar, inquieto, que ao vê-los abraçados, partilhando aquela estranha comunicação silenciosa, parecera-lhe ver neles mais ternura do que ódio ou rancor.
- Sabes usar essa espada? - perguntou Yaren no dia seguinte.
- Não - reconheceu Victoria. - Nunca me ensinaram a lutar com a espada.
- Era o que eu pensava - assentiu ele. - Não podes lutar com o báculo e a espada ao mesmo tempo. Quando nos enfrentaste, usaste o báculo; é evidente que essa espada não é tua.
- Agora é - respondeu ela com suavidade.
Yaren olhou para ela pensativo.
- Posso ensinar-te a manejá-la. Não sou um grande especialista, mas aprendi alguma coisa nos meus anos com os bandidos.
Victoria fitou-o.
- Em troca, seria simpático da tua parte converteres-me num feiticeiro completo - acrescentou ele como quem não quer a coisa.
Victoria continuou a olhar para ele. Yaren remexeu-se, incomodado.
- Está bem, não disse nada - rendeu-se. - Mas vou ensinar-te na mesma. Não sei quem é o tipo de preto, mas sei que é um assassino. Deve saber usar todo o tipo de armas. Se vais enfrentá-lo, mais vale que saibas o que fazes.
Victoria não perguntou como tinha descoberto. Sabia que entre os humanos de Nandelt só os assassinos tinham o costume de se vestir de preto.
A viagem através de Nangal foi lenta e incómoda. O nevoeiro cobria a terra durante grande parte da manhã e da tarde, e só na hora mais quente do dia é que os três sóis conseguiam limpar a bruma que cobria o caminho. Victoria teria continuado de qualquer maneira, com nevoeiro ou sem ele, mas Yaren conseguiu convencê-la a avançarem apenas com o tempo limpo. Assim aproveitavam a manhã e a tarde para praticar com a espada.
A arma de Yaren era uma espada velha e já algo ferrugenta, nada comparada à magnífica Domivat, mas não tinham nada melhor, de momento.
Victoria não era tão desastrada como ele pensara. Movimentava-se com agilidade e segurança e parecia saber muito bem como e quando desferir os golpes. Contudo, era inevitável que no início manejasse a espada como fazia com o báculo, e Yaren teve de lhe ensinar como segurá-la, corrigir-lhe posturas e movimentos.
A forma de lutar do bandido não era de todo tão nobre e elegante como a de um cavaleiro de Nurgon. Nada de fintas, movimentos complexos nem floreados. Forte e directo; e se pudesse fazer batota e aproveitar uma desvantagem do rival, melhor. Victoria não fez nenhum comentário quanto a isso. Limitou-se a tomar nota e a aprender tudo o que Yaren lhe ensinava.
Passaram por várias aldeias ao longo do caminho. Na primeira delas, havia uma pequena pousada, e Victoria dirigiu-se a ela sem hesitar.
- Não temos dinheiro - lembrou-lhe Yaren, incomodado, mas ela não o escutou.
A sala de refeições não estava muito concorrida. Havia um grupo de aldeães a beber junto à lareira, um velho a dormitar num canto e um rapaz que procurava atrair a atenção da empregada. Todos eles vestiam roupas de tons cinzentos, como era costume em Nangal.
Yaren reparou numa mesa semioculta entre as sombras, num canto. Três szish estavam aí sentados, a acabar o seu jantar.
Pegou no braço de Victoria.
- Temos de nos ir embora daqui - sussurrou; ela olhou-o de relance, e Yaren apressou-se a soltá-la.
Os szish voltaram-se para eles, os três ao mesmo tempo. Tinham-nos visto.
Yaren recuou dois passos, tenso. Victoria permaneceu imóvel e fitou-os calmamente.
Devagar, os três homens-serpentes levantaram-se e aproximaram-se. Yaren levou a mão ao punho da sua espada, com o coração a palpitar descompassadamente, pressentindo o perigo, mas sem saber se deviam fugir, lutar ou esperar. Victoria não se mexeu.
Os szish fizeram então algo surpreendente. Inclinaram a cabeça ante Victoria, em sinal de respeito, e o que parecia ser o líder sibilou:
- Sssejas bem-vinda a esssta casssa, dama Lunnaris.
Victoria não disse nada. Continuou a olhar para eles, serena. O estalajadeiro foi a correr ter com ela.
- Senhora? - perguntou, hesitante. O szish olhou-o com certo desprezo.
- O príncipe Kirtasssh ordenou que ssse honre esssta mulher como a futura imperatriz de Idhún - disse. - Fariasss bem ssse lhe oferecesssesss o teu melhor quarto e uma ceia digna dela.
O estalajadeiro inclinou a cabeça, a tremer.
Yaren olhou para Victoria perplexo, mas ela não se manifestou.
Inclinou a cabeça com gentileza e os três szish corresponderam à saudação. A jovem instalou-se numa mesa junto à lareira.
Após um breve instante de dúvida, Yaren seguiu-a.
Os homens-serpentes acabaram de jantar, pagaram e subiram para os seus quartos. Quando os perderam de vista, Yaren inclinou-se para a frente para perguntar em voz baixa:
- Futura imperatriz de Idhún? Que relação tens com Kirtash? Ela demorou um pouco a responder.
- O meu destino era outro bem diferente - disse. - Mas esse destino já não se vai cumprir. De modo que Kirtash agora quer que eu ocupe o lugar que, segundo ele, pertence ao último unicórnio do mundo.
- Senhora de todos nós - compreendeu Yaren, assombrado. - Que outra poderia estar à altura do filho do Necromante? - Cerrou os punhos, furioso. - Maldito seja. O
filho do homem que exterminou os unicórnios pretende tomar como companheira a última deles.
Victoria não viu necessidade de responder.
- Não te aborrece? - perguntou ele, um pouco surpreendido. Não tens medo de que te obrigue a cumprir a sua vontade?
- Não - replicou Victoria. - Noutros tempos, até o teria aceitado de bom grado - reconheceu, para surpresa de Yaren. - Mas isso acabou. De qualquer forma, não me importo de voltar a encontrar-me com ele. Afinal, Kirtash é a pessoa que tenho de matar.
Yaren lançou-se para atrás, estupefacto. Recordou o jovem de negro que fora falar com a rapariga algumas noites antes. Como todos os idhunitas, Yaren tinha ouvido falar de Kirtash, o filho do Necromante. Mas nunca o tinha visto.
A revelação de que aquele misterioso jovem era Kirtash em pessoa deixou-o sem fôlego. E recordou de novo a estranha cena que observara naquela noite.
- Não entendo - murmurou. - Ele sabe que queres matá-lo, não é? Porque ordenou a todos que te honrem e te respeitem?
Victoria fitou-o brevemente e esboçou um sorriso breve e amargo. Yaren estremeceu. Nunca a vira sorrir antes, mas aquele sorriso não era muito melhor do que o ar sério que ela mostrava habitualmente.
Juntou as pontas e compreendeu muitas coisas. Embora as peças daquele quebra-cabeças começassem a encaixar, o que revelavam parecia demasiado absurdo para ser real.
"Ele ama-a", pensou. "Por todos os deuses, aquele miserável apaixonou-se por ela."
Quis perguntar a Victoria acerca dos seus próprios sentimentos, mas algo na sua expressão lhe disse que era melhor manter a boca fechada.
Passaram por outras povoações no seu caminho para Alis Lithban.
Em todas elas foram recebidos de maneira semelhante. Correra o boato de que Lunnaris, a donzela-unicórnio, estava de passagem por aquelas terras. Provavelmente muitos duvidavam de que ela fosse realmente um unicórnio, mas havia ordens para que fosse bem tratada, de modo que em todo o lado encontravam alojamento e comida.
Numa das casas onde foram acolhidos, Victoria pôde por fim trocar as suas roupas gastas. As calças ainda estavam boas, mas a camisa, embora a costumasse lavar nos ribeiros e nascentes, estava desfiada e tinha as mangas rasgadas. A dona da casa arranjou-lhe outras botas e uma túnica curta cinzenta, que ela vestiu por cima das calças e ajustou à cintura.
Yaren também mudou de aspecto. La vou-se como deve ser, cortou o cabelo e barbeou-se, e conseguiu que lhe dessem alguma roupa. Dois dias antes, na aldeia anterior, tinham procurado separá-lo da dama Lunnaris e levá-lo perante a justiça. Custara-lhe muito convencê-los de que era o acompanhante da rapariga, e só quando Victoria interveio, serena mas firme, concordaram em soltá-lo. Yaren compreendera que, se queria ficar junto de Victoria, teria de parecer um pouco menos rufião do que era.
Para sua decepção, a rapariga não fez nenhum comentário quando o viu com o seu novo aspecto. De qualquer forma, Yaren tinha começado a acostumar-se ao seu olhar vazio, àqueles grandes olhos escuros que outrora, suspeitava, haviam estado cheios de calor e expressividade, mas que agora não eram mais do que dois poços sem fundo que olhavam quase sem ver.
Sim, o olhar de Victoria provocara-lhe arrepios desde o primeiro dia, desde que ela matara o chefe da quadrilha de bandidos sem sequer pestanejar. Yaren não entendia o que havia naquele olhar, mas estava a começar a pressentir que se tratava de uma estranha indiferença quase desumana. Victoria não parecia importar-se com nada do que acontecia à sua volta. Movia-se quase como num sonho, como se nada do que vivesse fosse real. Para ela só existiam duas coisas: a sua vontade de matar Kirtash e o que quer que lhe tinha acontecido por dentro. Yaren ignorava que diabo se passara com Victoria antes de ela o conhecer, mas sabia que havia algo no seu íntimo, uma dor profunda que não partilhava com ninguém e que era o que, de alguma maneira, tinha erguido uma muralha entre ela e o resto do mundo.
Demorou ainda algum tempo a descobrir algo sobre a natureza daquela dor.
Aconteceu quando já deixavam para trás a Terra Cinzenta e as brumas no horizonte começavam a abrir-se. A paisagem plana começava a salpicar-se de bosquezinhos com árvores estranhas e delicadas, cujos ramos, troncos e raízes formavam figuras curiosas, quase como se tivessem sido modelados por um artista de gosto refinado.
- Alis Lithban é perto - disse Yaren quando Victoria se deteve um momento a contemplar as árvores. - Diz-se que o bosque inteiro parece um capricho dos deuses. Que é como se cada árvore tivesse sido cinzelada por Wina em pessoa.
Apesar disso, não se surpreenderam quando encontraram a cabana de um lenhador. Aqueles bosques eram o único lugar onde as gentes do Sul de Nangal podiam obter madeira.
O lenhador era um homem rude e desagradável, mas acolheu-os em sua casa naquela noite. Enquanto comiam uma sopa e o lenhador se queixava do mau tempo que irrompera nos últimos dias, o seu filho, um rapazinho que não teria mais do que sete anos, ia e vinha entre a cozinha e a sala de jantar, levando pratos e trazendo mais coisas. Yaren reparou que caminhava com a cabeça baixa e não se atrevia a olhar para o pai.
Foi aí. O menino tropeçou em algo e deixou cair o prato com a comida de Victoria. O recipiente caiu no chão e partiu-se.
O pai praguejou.
- Seu desastrado! Não prestas para nada, estúpido!
Disparou a mão contra o rosto do pequeno com tanta força que o atirou para trás. O menino ofegou, aterrorizado, e procurou retroceder, de gatas, mas o lenhador bateu-lhe novamente.
Não houve uma terceira vez.
Victoria interpôs-se entre ambos. O homem ia afastá-la, furioso, mas o olhar dela não admitia réplica.
- Já chega - disse apenas.
Não levantou a voz. Não era uma ameaça, nem um pedido, nem sequer uma ordem. Mas o enorme lenhador sentiu-se acobardado ante ela e recuou, trémulo.
Victoria inclinou-se junto do menino. Tinha a face inchada e o lábio rebentado, mas esforçava-se por não chorar. A rapariga ergueu os dedos para lhe roçar o golpe e o rapazinho encolheu-se sobre si mesmo.
- Não tenhas medo - disse ela.
A tremer, o menino engoliu em seco e ficou onde estava.
Victoria pousou as pontas dos dedos sobre o rosto do pequeno e deixou que a sua magia fluísse para ele.
Tinha-o feito dezenas de vezes, com feridas muito mais graves. A energia passava através dela e regenerava os tecidos, cicatrizava as feridas, eliminava o veneno e curava as infecções.
Mas daquela vez a magia actuou de forma muito distinta.
Estava tudo a correr bem, aparentemente. Mas o menino mostrava-se cada vez mais nervoso; tremia e respirava ansiosamente, e chegou um momento em que não conseguiu suportar mais e retrocedeu, com um grito e lágrimas nos olhos.
- Não quero - suplicou. - Por favor, não continues. Não me faças isso outra vez.
Victoria olhou para ele, desconcertada. Os olhos do rapazinho estavam cheios de temor. Olhava-a como se fosse um monstro... um monstro ainda mais aterrador do que o seu próprio pai.
Ouviu-se uma exclamação sufocada e a mãe do menino correu para junto dele, estreitando-o nos braços. Yaren perguntou-se onde estivera ela durante todo aquele tempo e compreendeu que não se atrevia a enfrentar o marido. Mas, por alguma razão, parecia-lhe muito mais fácil enfrentar Victoria.
"É porque não a olhou nos olhos", pensou o semifeiticeiro.
A mãe voltou-se para eles, ainda a abraçar o filho.
- Por favor, vai-te embora - suplicou.
Yaren ia replicar, irado, mas Victoria aquiesceu, sem uma palavra, e foi buscar as suas coisas. O jovem não teve outro remédio a não ser segui-la.
Não se despediram.
Naquela noite tiveram de dormir ao relento, mas Victoria não pareceu importar-se. Quando já estavam há algum tempo em silêncio, contemplando as chamas da fogueira, Yaren arriscou-se a perguntar:
- O que fizeste ao menino?
- Estava a curá-lo - respondeu ela com voz neutra.
- A curá-lo? - repetiu Yaren. - Parecia que lhe estavas a fazer ainda mais mal do que a besta do pai dele. Que tipo de magia estavas a usar?
- Não é a magia - replicou ela. - Sou eu. Não disse mais nada, e Yaren não perguntou.
Mas Victoria não conseguiu dormir naquela noite. Pela primeira vez desde a morte de Jack, estava preocupada com algo que não tinha a ver com ele nem com Christian.
Sabia exactamente o que tinha acontecido naquela noite. A magia que Victoria retirava do ambiente era pura, mas tinha de passar através dela quando a transmitia a outras pessoas. E sem querer arrastava parte do que tinha dentro dela. Até há pouco, a magia de Victoria tinha estado impregnada de doçura, carinho, amor...
"Agora só há dor", pensou ela. "Vazio. E escuridão." Fora isso que transmitira ao filho do lenhador ao procurar curá-lo. Fora isso que o menino não tinha sido capaz de suportar.
"Se já não posso entregar a magia, se só consigo proporcionar sofrimento... o que me resta?", perguntou-se. "Que sentido tem a minha vida?"
Recordou o que Christian lhe dissera noites antes. "Se me matares, o que vais fazer depois?"
"Não vai haver um depois", respondera ela. "É por isso que tenho de te matar."
Adormeceu pouco antes do primeiro amanhecer com um sorriso sinistro nos lábios.
DEUSES E PROFECIAS
Um pouco mais adiante, o túnel acabava.
O coração de Jack acelerou. Há algum tempo que tinha saudades do ar livre, sentindo que asfixiava no labirinto subterrâneo de Umadhun, desejando respirar ar puro. Começou a correr para a saída, mas Sheziss impediu-o com a sua poderosa cauda.
- Não vás tão depressa, rapaz - disse. - Fica perto da entrada do túnel. Nunca saias para o ar livre sem antes dares uma boa olhadela.
Jack acalmou-se um pouco. Obrigou-se a caminhar atrás da shek.
Contudo, notou que mais à frente não havia tanta luz como pensara. Talvez fosse de noite. Intrigado, percorreu com passo ligeiro o trecho que o separava da saída.
- Cuidado - repetiu Sheziss antes de se afastar um pouco para o deixar passar.
Jack assomou à boca do túnel com precaução.
- Esta é a superfície de Umadhun - ouviu a voz de Sheziss na sua mente. - Ou o que resta dela.
As últimas palavras da serpente soaram tão fracas que lhe custou captá-las. De qualquer forma, estava tão perturbado que mal as ouviu.
Diante dele abria-se uma terra erma onde não crescia nada.
Um pesado manto de nuvens negras cobria o céu, projectando escuridão sobre a superfície rochosa de Umadhun. E aquelas nuvens, cheias de electricidade, descarregavam raios que feriam a terra com uma frequência arrepiante. Jack contemplou, assombrado, aquele tenebroso mundo de pedra, iluminado pelos relâmpagos que rompiam o céu.
- É sempre assim - disse Sheziss. - Nuvens, raios, relâmpagos. Mas nem um pingo de chuva. Nunca.
Jack ergueu o olhar para as nuvens.
- Também nunca há sol?
- Não sabemos sequer se há um sol ou vários - respondeu ela. - As nuvens cobrem o céu desde que nos lembramos. E a electricidade que acumulam impede que possamos atravessá-las para averiguar.
Jack estremeceu.
- É... horrível.
-É um mundo morto. Por isso nunca vamos à superfície. A única maneira de sobreviver é refugiando-nos nos túneis.
- Mas... - hesitou Jack. - Que lugar é este exactamente?
- O que achas que é?
Jack reflectiu. Sheziss gostava de responder às suas perguntas com outras perguntas, deixar que fosse ele a deduzir as respostas. No início, isso irritava e impacientava
Jack, mas estava a começar a acostumar-se e às vezes até gostava. Apercebia-se de que, na realidade, compreendia muitas das coisas que lhe pareciam um mistério se parasse para pensar nelas. O seu problema era que normalmente não parava para pensar. Sheziss estava a tentar corrigir esse defeito, para bem dos dois; segundo ela, enquanto continuasse a ser tão impulsivo teria muitas probabilidades de acabar por morrer jovem.
- Disseste-que Umadhun era o reino das serpentes aladas - recordou.
- Contaram-me há tempos que os dragões tinham condenado os sheks a vaguear pelos limites do mundo para toda a eternidade. - Ergueu o olhar para os olhos matizados da sua companheira. - Estamos nos limites de Idhún?
- Achas aue Idhún tem limites?
- Se for um planeta como a Terra, não deveria ter, já que teria forma esférica. Ou talvez os seus limites se encontrem na própria atmosfera.
- Isto parece-te os limites de Idhún? Jack olhou novamente em redor.
- Não - admitiu. - Parece-me outro mundo, um mundo novo, estranho e atroz.
- É um mundo diferente, estranho e atroz - concedeu Sheziss. - Mas não é um mundo novo. Sabes o que significa a palavra Umadhun?
Jack franziu o sobrolho. Em idhunaico, Umadhun tinha um significado. Queria dizer "primeiro mundo".
- Então a chave está no nome? Sheziss assentiu.
- Os sangues-quentes contam a sua história por eras. Falam da Primeira Era, quando Idhún era jovem e eles começaram a povoar as suas terras, quando as diferentes raças começaram a conhecer-se e a relacionar-se entre si.
" No final da Primeira Era, o dia da primeira conjunção astral, o primeiro unicórnio pisou Idhún e marcou o início de uma nova etapa, a Era da Magia, também chamada a Era Negra, porque terminou com a derrota do humano a quem chamaram imperador Talmannon. A Terceira Era, chamada Era da Contemplação, instaurou de novo o poder dos Seis sobre a Terra, e os feiticeiros foram perseguidos e expulsos do mundo, ao mesmo tempo que os sheks.
" Agora estamos a terminar a Quarta Era, Jack. A Era dos Arquifeiticeiros, feiticeiros poderosos a quem os próprios dragões tratavam como seus iguais. O que virá depois é o que se perguntam os sangues-quentes. Ah, todos eles acham que conhecem a história de Idhún. Mas ignoram que esta história não começa com a sua Primeira Era, não começa com a criação do mundo em que habitam.
" A sua história, a nossa história, começa aqui, em Umadhun.
O Primeiro Mundo.
Jack ficou sem fôlego. Recostou-se contra a parede de rocha.
- Queres dizer que Umadhun é anterior a Idhún? Sheziss assentiu.
- Todas as lendas dos sangues-quentes relatam como os seus seis deuses chegaram aqui e criaram Idhún. Essas lendas estão erradas. Antes da Primeira Era, antes de Idhún, os deuses criaram Umadhun. E depois destruíram-no.
- Destruíram-no? Porquê?
O corpo de Sheziss estremeceu com uma gargalhada rouca.
- As lendas mostram os Seis em harmonia, todos unidos na sua eterna luta contra o Sétimo. Mas as histórias mais antigas deixam entrever pequenas quezílias, discussões...
Jack recordou a lenda que Kimara contara a ele e a Victoria acerca de como a deusa Wina se zangara com o deus Aldun por este ter incendiado Kash-Tar.
- Em tempos remotos, Umadhun foi um mundo rico e transbordante de vida. Os deuses esmeraram-se com ele, era o primeiro mundo que criavam. Mas naqueles tempos, rapaz, os deuses lutavam frequentemente. E eram lutas renhidas.
Sheziss calou-se. Jack quis perguntar algo, mas acabou por se conter e aguardou que ela continuasse a falar.
- Quando os humanos lutam entre si, provavelmente estão a destruir sem saber muitas pequenas criaturas nas quais não reparam: plantas, insectos... que morrem debaixo dos seus pés. Quando os sheks e os dragões lutam, os sangues-quentes e os sangues -frios que têm a infelicidade de se atravessar no seu caminho são irremediavelmente esmagados.
" Mas quando os deuses lutam, rapaz, todo um mundo pode acabar por ser destruído. Percebeste?
Jack estremeceu. Contemplou de novo a superfície arrasada de Umadhun, iluminada pelos relâmpagos.
- Criaram um mundo para depois o destruírem? É difícil para mim entendê-lo - confessou.
- Os deuses são poderosos. E perigosos. Os sangues-quentes rezam-lhes nos seus templos, como se eles fossem realmente ouvi-los. Ah, os deuses são seres grandiosos, para os quais não somos mais do que meros insectos. Esmagam-nos quase sem darem por isso. Têm a vaga impressão de que existimos, mas no fundo não nos vêem. Somos demasiado pequenos, demasiado insignificantes.
Jack tremia. A ideia de que existiam de facto seis deuses, ou sete, era para ele chocante e perturbadora. Mas que esses deuses tivessem o poder de destruir um mundo quase sem se aperceberem... era ainda pior. Muito pior.
- Contudo, os deuses lamentaram a perda - prosseguiu Sheziss. E criaram Idhún, maior e mais complexo, mais perfeito, e povoaram-no de criaturas. No início tudo corria bem, mas depressa voltaram as lutas e apareceu um sétimo deus que os desafiou a todos. Aquilo poderia ter sido o fim de Idhún, se os deuses tivessem iniciado uma nova guerra.
- Mas não o fizeram.
- Oh, sim, fizeram-no. Iniciaram uma guerra eterna, os Seis contra o Sétimo, uma guerra que ainda dura. Mas decidiram que desta vez não iriam lutar. Então abandonaram Idhún, deixando em seu lugar aqueles que travariam essa guerra. Criaturas poderosas, muito mais do que os sangues -quentes e os sangues-frios, criaturas dignas de os representar na contenda, mas suficientemente pequenas, em comparação com eles, para não destruírem o campo de batalha no qual decorreria a guerra que os condenaram a travar.
Jack sentiu um calafrio quando entendeu o que Sheziss lhe estava a contar.
- Sheks e dragões - disse a meia-voz.
- Umadhun é a nossa origem, rapaz. Se os deuses não o tivessem destruído, não teriam decidido criar-nos a nós para que lutássemos por eles.
É por isso que nos odiamos, Jack. Porque nos criaram para nos odiarmos.
A nossa missão na vida é lutar na sua guerra; fizeram-nos assim para que não pudéssemos escapar do objectivo para que fomos criados.
Jack imaginou de repente o planeta Idhún como um imenso tabuleiro de xadrez, no qual dois opositores manobravam peças cuja função consistia em enfrentar as peças da outra cor. Eles, sheks e dragões, eram as peças. Quem quer que ganhasse não eram eles, mas sim os jogadores que os manobravam.
- Não acredito em ti - rebelou-se. - Não, não acredito. Os deuses não existem. Não conduzem o nosso destino.
- Então, porque não consegues deixar de odiar os sheks? - perguntou Sheziss, rindo.
Jack virou a cabeça com brusquidão. Tremia violentamente, enquanto procurava apagar da memória as palavras de Sheziss. Mas a voz dela continuava a soar na sua mente.
- Compreendes agora porque nos aliámos a Ashran, porque aceitámos em troca a extinção dos unicórnios? Ele prometeu a morte de todos os dragões e cumpriu-o acima das expectativas. Uma vez desaparecidos os nossos inimigos, seríamos livres e deixávamos de ter de lutar para sempre...
- Cala-te! - explodiu Jack, mas a sua voz foi abafada pelo ribombar de um trovão.
Mas a voz de Sheziss não soava nos seus ouvidos, mas sim na sua cabeça, pelo que nem todo o barulho do mundo poderia silenciá-la.
- Vocês, dragões, teriam feito o mesmo. Tentaram acabar connosco no final da Segunda Era, e muitos dos nossos foram exterminados. Mas nós, os sobreviventes, regressámos a Umadhun... e todos nós, dragões e sheks, sabíamos que a guerra não tinha acabado, que não acabaria até que o último inimigo fosse destruído. Por essa razão, Jack, os sheks decidiram que devias morrer; a profecia só interessa a Ashran, maldito seja sete milhões de vezes. A única coisa que nós desejamos é acabar com os dragões para sermos livres... E enquanto existir um sopro de vida em ti, dragão, continuarás a lutar contra os sheks numa guerra que não é a tua... condenado a morrer pelos deuses que te fizeram como és, deuses cujos rostos nunca verás, porque nos abandonaram há muito, muito tempo... enquanto nós continuamos aqui, matando e morrendo por sua causa, e assim será por toda a eternidade... ou até que uma das duas raças seja exterminada por completo.
- Chega! - gritou Jack; as palavras de Sheziss criavam imagens na sua mente, fragmentos de uma guerra tão antiga como irrevogável, gerações de sheks e dragões odiando-se sem saber porquê, matando-se uns aos outros. Presas letais a destilar veneno, focinhos a vomitar fogo, garras, asas, escamas... tudo se confundia na sua mente... gelo, fogo, sangue, ódio e morte...
Não conseguiu aguentar mais. com um grito que terminou num rugido, transformou-se violentamente em Yandrak, o dragão dourado; voltou-se para Sheziss, envolto em chamas. Percebeu por instantes o horror nos olhos da shek, pressentindo o quão intenso era o pânico que os sheks sentiam pelo fogo, um elemento que eles não podiam controlar.
Aterrado e confuso, Jack desdobrou as asas e, com um poderoso impulso, elevou-se no ar, desafiando os raios que as nuvens desferiam sem piedade sobre a superfície de Umadhun. Afastou-se dali, de Sheziss e das suas palavras, que o feriam como a luz do sol fere os olhos de quem permaneceu demasiado tempo na escuridão.
Voou durante algum tempo, errático, evitando os raios de maneira instintiva, procurando simplesmente fugir de Sheziss e da verdade que ela lhe tinha revelado...
Até que um raio que explodiu perto dele o obrigou a estacar bruscamente e uma corrente de ar o empurrou e fez perder o controlo.
Momentos depois, caía ruidosamente num barranco. Arquejou; abanou a cabeça, aturdido, e o instinto levou-o a arrastar-se até uma enorme rocha, debaixo da qual encontrou refúgio. Dobrou as asas sobre o corpo e aninhou-se ali, a tremer, sem forças nem vontade de se mexer. Fechou os olhos, ainda perturbado.
Durante muito tempo tinha sido um rapaz normal, acreditara conhecer a sua identidade. Depois, tudo aquilo se tinha despedaçado e começara a pressentir algo grande dentro de si. Ao conhecer a sua verdadeira natureza, a sua essência de dragão, ao saber que fazia parte da profecia que salvaria o mundo, sentira-se parte de algo importante. Mas agora, se as palavras de Sheziss estivessem certas, acabava de descobrir que no fundo não era nada, não era ninguém, apenas um insecto que podia morrer a qualquer momento, esmagado pelos pés de um titã. Matara vários sheks, e isso proporcionara-lhe um imenso prazer, uma satisfação que deveria ter-lhe parecido sinistra. Mas tinha-se deixado arrastar por ela. E agora que sabia qual era a origem daquela sensação, queria rebelar-se, mas não conseguia. Não era capaz.
E decerto milhares de sheks e dragões haviam experimentado aquele mesmo dilema ao longo dos séculos. E muitos deles teriam tido consciência de que não podiam escapar do ódio, daquela interminável guerra que estavam condenados a travar. Era... como dissera Sheziss?
"Trágico", pensou Jack.
Respirou fundo. Compreendeu então a essência do que Sheziss procurara ensinar-lhe. Não podiam escapar do ódio, que lhes corria pelas veias tal como o sangue... mas, com esforço e disciplina, podiam escolher contra quem dirigir esse ódio.
"Não é verdade", rebelou-se uma parte de si. "É uma serpente, é mentirosa e traiçoeira. Está apenas a tentar confundir-me. Nós, dragões, odiamos os sheks porque são maus. Travamos as guerras que queremos travar. Se quiséssemos, poderíamos deixar de lutar. O que ela diz não é verdade. Não pode ser verdade..."
Não saberia dizer quanto tempo permaneceu debaixo da rocha, num estado intermédio entre o sono e a vigília. Acordou quando se apercebeu de um movimento um pouco mais longe. Ergueu a cabeça. Descobriu que voltara a ser humano.
Colou-se à rocha e ficou imóvel, alerta.
Sim, havia ali algo, uma forma escura que se movia entre os rochedos. Franziu o sobrolho. Era demasiado pequeno para ser um shek. E não rastejava, caminhava.
com o coração a bater com força, Jack pôs-se em guarda e levou a mão às costas, procurando a sua espada. Recordou então que a tinha perdido ao cair no abismo de fogo. Sentiu-se imediatamente indefeso e hesitou. Podia transformar-se em dragão, mas não tinha a certeza se era uma boa ideia. Já tinha dado muito nas vistas.
O vulto mexeu-se novamente um pouco mais além. O coração de Jack acelerou.
Parecia um ser humano.
Tinha-o visto, não havia dúvida, de forma que não valia a pena procurar esconder-se até averiguar quem era e o que fazia ali. Decidiu pôr as cartas na mesa.
- Eh! - exclamou. - Olá, sou amigo. Quem és?
Olhou para as rochas. Um novo relâmpago iluminou a desolada paisagem de Umadhun e Jack pôde ver, consternado, que aquela pessoa, fosse quem fosse, tinha desaparecido.
Ergueu-se um pouco, com cautela, e esticou o pescoço, tentando ver melhor.
Então algo lhe caiu sobre as costas e o puxou para o chão.
Jack soltou uma exclamação sufocada. O atacante tinha-o surpreendido por trás, agarrando-se a ele. O rapaz procurou tirá-lo de cima de si e os dois rolaram pelo chão rochoso.
Jack conseguiu ficar por cima do seu agressor e segurá-lo contra o chão. Um novo relâmpago iluminou o seu rosto. O rapaz ficou sem fôlego ao vê-lo.
Era uma mulher. Ou, pelo menos, parecia uma mulher...
Mas era muito estranha. As feições eram rudes, a testa demasiado larga, o nariz pequeno e achatado, os olhos encovados e a mandíbula, enorme, projectava-se para a frente. O cabelo escuro, grosso e emaranhado, emoldurava um rosto sujo e semianimal.
- Quem...? - começou Jack, confuso, mas não foi capaz de terminar a pergunta, porque algo o atingiu por trás.
Antes de cair no chão, aturdido, conseguiu ver entre as sombras mais seres parecidos com aquela mulher. Vestiam roupas toscas e caminhavam inclinados para a frente, com os braços longos e peludos a balançar. Os seus rostos, mesmo estando cobertos de pêlos, eram semelhantes ao da mulher que atacara Jack: de traços grosseiros e primitivos e olhos encovados. Pertenciam a uma raça que Jack não conhecia.
Ouviu-os proferir sons desarticulados que pareciam algum tipo de linguagem. Sentiu-os aproximarem-se dele e cercá-lo. Lutou para não perder os sentidos.
Aqueles homens e mulheres estavam armados com pedras afiadas. Jack compreendeu que, apesar de aqueles objectos serem primitivos, mesmo ele não os conseguiria enfrentar se não se transformasse em dragão.
Procurou erguer-se.
- Esperem... - começou, mas a mulher que o atacara primeiro atirou-o novamente para o chão com um pontapé.
O instinto de sobrevivência foi mais forte. com um rugido, Jack converteu-se em dragão e fincou as poderosas garras na rocha negra. Os atacantes soltaram exclamações de surpresa e recuaram. Alguns atiraram-lhe pedras. Jack grunhiu. Antes tinha-os achado ameaçadores, mas agora, da sua arrogante perspectiva de dragão, eram insignificantes. Podia esmagá-los facilmente. Mas não queria fazê-lo.
Então algo deslizou entre as suas patas, com rapidez. Jack virou a cabeça e viu quatro crianças que corriam à sua volta levando as pontas de duas cordas. Quando entendeu o que se estava a passar, quis levantar voo, mas era demasiado tarde: as cordas tinham-lhe imobilizado as asas e patas. Furioso, lançou uma labareda.
Isto pareceu confundi-los, porque gritaram aterrados e alguns fugiram. Dois deles foram atingidos pelo fogo do dragão. Entre colérico e desconcertado, Jack viu-os
arder e ouviu os seus gritos de pânico.
Então chegou Sheziss.
Como um relâmpago prateado, o seu elegante corpo sinuoso desceu do céu a pique e caiu, com as mandíbulas abertas, sobre aqueles seres que pareciam humanos, mas que não o eram completamente. Consternado, Jack viu como a shek fincava as presas no corpo do atacante mais próximo, que se debateu brevemente entre as suas mandíbulas antes de sucumbir ao veneno mortal da serpente. Sheziss varreu outros três com um golpe da sua poderosa cauda, como se não passassem de insectos maçadores. Soltou o que tinha apanhado e a sua cabeça desceu outra vez, como um raio, procurando uma nova vítima.
Depressa os afugentou a todos. E os que não tinham fugido suficientemente depressa jaziam em volta dela, mortos.
com o coração a bater fortemente, Jack olhou para a serpente, aturdido.
- O que... quem eram? - arriscou perguntar.
- Sangues -quentes - respondeu ela sem muito interesse. - Vamos embora, daqui, rapaz, antes que um raio te parta. Temos de nos pôr a salvo.
- Não, espera, preciso de saber. Eram humanos?
- Qual é a diferença?
- Eram, Sheziss?
A serpente fez uma pausa. Depois, com movimentos lentos e calculados, deslizou até se colocar debaixo da enorme rocha, junto a Jack. O dragão reprimiu o ódio que a sua presença provocava nele.
Sheziss enrolou o seu longo corpo, enroscando-se. Apoiou a cabeça sobre os seus anéis e semicerrou os olhos.
- Podes chamar-lhes humanos, se quiseres - respondeu. - Mas, se eu fosse humana, consideraria insultuoso que me comparassem a eles.
- Porquê? O que são?
- O que resta de uma das raças que povoaram Umadhun em tempos remotos. Uma primeira versão dos humanos, se lhes quiseres chamar assim. Não há dúvida de que os deuses se esmeraram mais com os sangues-quentes que criaram para habitar Idhún. As coisas nem sempre saem bem à primeira, nem sequer no caso dos deuses.
Jack abanou a cabeça. De repente sentiu-se muito fraco, sem forças para suportar o seu corpo de dragão; de maneira que fechou os olhos e deixou que a sua essência humana voltasse a torna-lo um rapaz de quinze anos.
- Mas... - disse então, confuso. - São inteligentes?
O corpo anelado de Sheziss estremeceu com um riso escarninho.
- Inteligentes, aquilo? - perguntou com desprezo. Jack recordou que a inteligência dos sheks era muito superior à dos humanos.
- Tão inteligentes como os humanos, quero dizer.
- Não, são muito menos inteligentes do que os sangues-quentes. Mesmo assim, são ligeiramente mais espertos do que os animais. A linguagem que utilizam é tão tosca e primitiva que não merece chamar-se linguagem.
- Porque é que me atacaram?
- Andavam à caça. Jack ficou petrificado.
- À caça? Queres dizer que me teriam...?
- Comido, oh, sim. Ainda por cima, cru. Pelo menos os sangues-quentes sabem utilizar o fogo para cozinhar os seus alimentos. Estes ainda não chegaram a tanto.
- Mas... mas... - conseguiu Jack dizer, perplexo. - Estiveram prestes a capturar-me na minha forma de dragão. Ataram-me...
-Andam há séculos a tentar caçar sheks, e como podes ver desenvolveram certas tácticas. Muito toscas e pouco eficazes.
- Confundiram-me com um shek ao transformar-me?
- Não lhes deves ter parecido muito diferente de nós... até que os chamuscaste um pouco, claro. Já te disse que não são muito espertos.
Jack observou, pensativo, os corpos dos atacantes mortos.
- Este é um mundo bastante estranho - disse. - Perigoso. E muito pouco acolhedor. Faz sentido que os sheks quisessem regressar a Idhún.
Sheziss abriu a boca em algo parecido com um bocejo que deixou ver a sua longa língua bífida.
- Estranho, perigoso, pouco acolhedor - repetiu. - Essas coisas não nos preocupam. Podemos viver em mundos assim. Isso não é o pior de Umadhun, rapaz.
- Ah, não? Então, o que é pior?
Sheziss contemplou o eterno manto de nuvens que cobria o céu. Um relâmpago iluminou o seu rosto de serpente.
- É feio. Horrivelmente feio. E aborrecido. Horrivelmente aborrecido.
Regressaram aos túneis, apressadamente. Estiveram por mais de uma vez perto de serem atingidos por um raio, mas por fim conseguiram chegar às montanhas, sãos e salvos. Pararam por breves instantes à entrada do túnel, para descansar.
Jack contemplou durante muito tempo o céu rasgado pelos relâmpagos.
- Sou uma peça importante numa guerra de deuses - disse a meia-voz. - Uma peça muito importante, mas no fundo só uma peça. Que sentido faz lutar numa guerra que não é minha? A profecia anunciou que Victoria e eu mataríamos Ashran. Sempre pensámos que as palavras da profecia eram a voz dos deuses, um aviso do que ia acontecer. Mas agora sei que não é assim. Os Oráculos não nos dizem o que vai acontecer, mas sim o que devemos fazer. Não nos transmitem o conselho dos deuses, mas antes as suas ordens. E se eu me negasse a cumpri-las? E se desobedecesse à voz dos Oráculos?
-Fá-lo-ias?
Jack encolheu os ombros.
- Porque não? Por causa dessa profecia, dessa missão que os deuses nos encomendaram, morreram todos os dragões e unicórnios. Também morreram os meus pais e tanta outra gente... Participar neste jogo sem sentido paga-se com sangue, o que é um preço demasiado alto.
- Ashran entrou no jogo. Ouviu a voz dos Oráculos e soube que os dragões e os unicórnios tinham ordens para acabar com ele. Então, matou-os a todos.
Jack não respondeu. Continuava com o olhar perdido no horizonte escuro de Umadhun. E estava sério, extremamente sério. Naquele momento parecia mais velho do que era, não um rapaz, mas quase um homem.
- Talvez tenha chegado a hora de deixares de lutar pela profecia e pelos deuses - insinuou Sheziss. - Talvez tenha chegado o momento de começares a lutar por ti.
- Por mim? - repetiu Jack com voz neutra.
- Por tudo o que Ashran te tirou. Os sheks e os dragões lutam por instinto. E Ashran luta pelo quê?
- Por ambição, suponho. O que sei eu? Quando tudo começou, eu via as coisas muito claras. Sabia quem eram os bons e quem eram os maus. Sabia por que motivos lutava: para vingar a morte dos meus pais, para descobrir a minha verdadeira identidade, para apoiar a Resistência que me salvara a vida... para proteger Victoria... Tinha tantas razões...
-Já não tens razões para lutar?
- Não sei. Estou confuso. O meu desejo de vingança apagou-se há algum tempo e agora sei quem sou. E a profecia... Maldita seja! Não me agrada a ideia de os deuses disporem de mim a seu bel-prazer, não quero seguir o seu jogo. E no que respeita a Victoria...
Calou-se. O seu coração continuava a sangrar por ela, sentia a sua falta. Mas recordava as palavras de Christian: "Tens de morrer, é a única forma de salvar Victoria." Agora sabia o que quisera dizer. Se ele morresse, a .profecia não se cumpriria. Então, nem Ashran nem os sheks teriam motivos para matar Victoria.
- Provavelmente está melhor sem mim - disse de repente. - Todos pensam que estou morto. Victoria já não constitui uma ameaça para Ashran, irão deixá-la em paz. Christian cuidará dela. Se não voltar, Victoria não terá de lutar nunca mais. Também ela poderá escapar de um destino que não escolheu.
Sheziss observou-o com interesse.
- Achas mesmo que é esse o caminho? Esconderes-te aqui para sempre? É isso que queres?
- Não - reagiu Jack. - Detesto este lugar e...
Não terminou a frase. Não encontrava palavras para descrever as saudades que tinha de Victoria, o quanto se sentia sozinho e perdido sem a sua presença. Perguntou-se como seria passar o resto da sua vida sem ela. A simples ideia era aterradora.
- Mas, se não voltar a Idhún - prosseguiu, recompondo-se -, terei escapado do destino que os deuses me impuseram. Victoria estará a salvo. E os sheks não terão de continuar a lutar.
- Pensei que odiavas Ashran. Aquele que exterminou toda a tua raça. Pela mente de Jack passou, fugaz mas intensa, a lembrança do
macabro cemitério que era agora Awinor, a terra dos dragões. Os pequenos esqueletos dos seus irmãos, mortos ao nascer. Os ossos da sua mãe...
O corpo da sua mãe humana, morta às mãos de Elrion na sua casa na Dinamarca, na Terra. Sentiu-se ferver de raiva.
- Se não queres lutar numa guerra que não é tua - sugeriu Sheziss -, fá-la tua. Não lutes pelos deuses, nem pela profecia, nem para salvar Idhún que, ao fim e ao cabo, nunca foi o teu mundo e, dado que já não restam dragões, nunca mais o será. Luta por ti mesmo. Pelo ódio que sentes e que não podes evitar sentir. Se tens de sucumbir a esse ódio, é melhor que odeies alguém a quem tenhas realmente motivos para odiar e que actues em conformidade.
- Esta não é a minha guerra - repetiu Jack, pensativo. - Mas pode ser a minha guerra.
Voltou-se para Sheziss, desconfiado.
- Vais dizer-me seja o que for, desde que sirva os teus propósitos, não é?
Os olhos da shek brilharam, divertidos.
- Achas que estou a tentar manipular-te? Não, dragão, isso não me era conveniente. Não faz sentido enganar alguém para que se alie a mim. A qualquer momento, podia deixar de ser um aliado. Estou a tentar descobrir se tens motivos válidos para lutar contra Ashran. Se os tiveres, serás um aliado perfeito, apesar de me repugnares por seres um híbrido e de te odiar por seres um dragão. É que assim lutarás por ti, não por mim. Lutarás de coração. com todas as tuas forças.
- Podias sempre obrigar-me com o teu poder telepático, não?
- Sim, mas o vínculo podia romper-se a qualquer momento e eu ficaria sozinha. É melhor procurar quem tenha os mesmos objectivos que eu do que tentar convencer alguém para que faça o que eu quero.
Jack suspirou.
- Não sei o que fazer - confessou.
- Dorme - recomendou ela. - Quando estiveres mais descansado, verás as coisas com mais clareza-
Jack reparou então que estava muito cansado. Deixou-se cair sobre o chão de pedra e apoiou as costas na parede do túnel. Não queria dormir porque tinha muitas coisas em que pensar, mas sem dar por isso caiu num sono pesado e profundo.
Sonhou com Victoria. Sonhou com o seu olhar cheio de luz, com o seu doce sorriso; sentiu por um maravilhoso momento o calor do seu corpo entre os seus braços, a suavidade do seu cabelo, o seu cheiro. Depois, ela desapareceu como se nunca tivesse existido e Jack sentiu tanto a sua falta que pensou que ia enlouquecer. Então viu diante de si o rosto de Christian, os seus olhos frios e ligeiramente trocistas.
"Estou com ela", dizia o shek. "De que lado estás?"
"Estou com ela", respondia Jack.
"Não estás", disse Christian. "Deixaste-a sozinha. Não devias tê-la abandonado."
"Abandonado?", repetiu Jack, desorientado.
Christian baixou a cabeça. Jack viu então que segurava Victoria; a rapariga jazia entre os braços do shek, pálida e, aparentemente, sem vida. Jack chamou-a pelo nome, mas ela não reagiu.
"Está a morrer", disse Christian; os seus olhos azuis estavam húmidos. "Não consigo salvá-la sozinho. Jack, ela precisa de ti, precisa de ti, seu parvo, não lhe podes virar as costas agora."
Jack estendeu o braço para ela, procurando alcançá-la... mas a sua mão passou através do seu corpo, como se fosse um fantasma.
"Demasiado tarde...", murmurou Christian.
Os dois fundiram-se com a bruma.
Jack acordou com um arquejo sufocado e o coração a bater descompassadamente. Levou a mão à cara e descobriu que tinha as faces molhadas de lágrimas. A tremer, acocorou-se junto à parede de pedra.
- Sheziss - chamou.
Percebeu um movimento na escuridão do túnel.
- Sim? - perguntou ela.
- Quando é que vamos voltar a Idhún?
- Quando estiveres preparado.
- O que é que isso significa?
- Que ainda tens muito que aprender.
- O que é que tenho de aprender?
- Tens de aprender o que significa ser um dragão. E também o que significa ser um shek. Quando souberes controlar o teu ódio sem o reprimir, quando fores capaz de canalizar esse sentimento de maneira adequada... então estarás preparado para enfrentar Ashran.
- Como sabes que quero enfrentar Ashran?
- Porque queres voltar a Idhún. E, se voltares a Idhún, não terás outro remédio a não ser enfrentar Ashran. Claro que podes desafiar os deuses e ficar aqui. Tu é que sabes.
Jack respirou fundo e reconsiderou. Aquele estranho sonho tinha-o angustiado. Talvez não fosse mais que um sonho estúpido, mas a verdade é que já não podia negar o facto de que sentia saudades de Victoria. Tinha de voltar para ela. Se não o fizesse...
Sentiu um calafrio. Percebeu que teria sido capaz de viver o resto da vida em Umadhun, com Victoria ao seu lado para afastar com a sua luz as trevas daquele mundo. Mas sem ela...
Sem ela, nada tinha sentido. Fechou os olhos.
Talvez fosse apenas um sonho estúpido.
Ou talvez tivesse subestimado o poder de Ashran. Talvez ele tivesse planos para ela, talvez estivesse em perigo, talvez Christian não pudesse protegê-la. Ou, simplesmente, talvez Victoria sentisse tanto a sua falta como ele a dela. De qualquer forma, não podia abandoná-la. Tinha de voltar para junto dela e, se isso implicava lutar contra Ashran para fazer cumprir a profecia... que assim fosse.
- Se aprender a ser um dragão - disse a meia-voz -, serei mais forte e poderoso, não é?
- Sim.
- E se também aprender o que significa ser um shek - prosseguiu ele -, serei capaz de controlar o meu ódio. Poderei aliar-me a ti e, depois, também a Christian. E ele, Victoria e eu, os três, unidos, seremos mais fortes. Teremos mais possibilidades de derrotar Ashran.
- É essa a ideia.
Jack ergueu o olhar, sereno e resoluto.
- Então farei o que for preciso. Se esta tiver de ser a minha guerra, será.
Sheziss semicerrou os olhos e emitiu um suave sibilar.
- Muito bem - disse apenas.
Então deu meia-volta e embrenhou-se no túnel. Jack levantou-se e seguiu-a.
Avançaram durante algum tempo em silêncio, até que Jack disse:
- Se vamos ser aliados, há algo que quero saber.
A shek não respondeu, mas Jack percebeu na sua mente uma espécie de assentimento mudo.
- Estás a lutar contra Ashran - prosseguiu o rapaz. - Estavas à procura de um aliado, e já me disseste que querias assegurar-te de que esse aliado também teria os seus próprios motivos para lutar contra Ashran. Porque assim saberias que não te abandonaria no meio da batalha.
" Já conheces os meus motivos, a minha história. Sabes quem sou e porque quero enfrentá-lo. Mas eu não sei nada de ti. Não me parece justo. Também eu tenho o direito de saber que tens razões para o odiar. Que não vais desistir a meio.
-Ah, sim? - perguntou Sheziss, aparentemente desinteressada; mas Jack percebeu na sua mente um ligeiro tom ameaçador.
Não se retraiu.
- Porque odeias Ashran? O que é que esse humano te fez para merecer o ódio de um shek?
Sheziss não respondeu de imediato. Continuou a rastejar pelo túnel, sem sequer olhar para ele, e por um momento Jack pensou que não ia responder à sua pergunta.
Então captou a voz dela num recanto da sua mente, como um sussurro longínquo que, no entanto, ouviu com uma clareza arrepiante, e cada uma das suas palavras atingiu o seu pensamento com uma força brutal:
- Roubou todos os meus ovos... e usou-os numa repugnante experiência de necromancia.
ALIS LITHBAN
Clerde estava aborrecida.
Seduzir o bárbaro tinha sido uma brincadeira de crianças. No início tinha sido divertido; ter o grande Senhor dos Nove Clãs a comer na sua mão e ao mesmo tempo manter o encantamento sobre os outros homens do acampamento tinha requerido muita concentração e um delicado equilíbrio. Deviam estar suficientemente embasbacados para acatar até os seus mais ínfimos desejos, mas não tanto que combatessem uns com os outros por ciúmes. Custou-lhe um pouco chegar a esse ponto intermédio, mas, quando o atingiu, não houve muito mais a fazer. Excepto manter Uk-Rhiz vigiada, obviamente.
As restantes mulheres do acampamento, guerreiras ou não, não constituíram um grande problema. Era evidente que estavam descontentes e era óbvio que tinha havido disputas. Gerde tivera de se desembaraçar discretamente de uma delas, uma anciã cujas palavras sensatas gozavam de grande reputação em todos os clãs. Tinha sido fácil matá-la, misturando veneno na sua comida. Ninguém conhecia tão bem como Gerde as propriedades das plantas mais venenosas dos bosques idhunitas e como utilizá-las a seu favor. A mulher tinha morrido silenciosamente durante a noite, e todos o atribuíram à sua idade avançada. Nem sequer Rhiz suspeitou da fada.
Finalmente, todas as mulheres acabaram por acatar a vontade do seu senhor, como todos os shur-ikaili, homem, mulher ou criança, deviam fazer.
E a vontade de Hor-Dulkar era a vontade de Gerde.
E a vontade de Gerde era a vontade de Ashran.
Os homens aceitavam-na encantados. As mulheres, a contragosto. Mas Uk-Rhiz era diferente. Era a senhora da guerra do clã de Uk e, embora não tivesse a mesma importância que Hor-Dulkar, estava apenas um degrau abaixo dele, segundo as hierarquias dos bárbaros shur-ikaili.
De momento não dava problemas, mas Gerde suspeitava que tramava algo.
Suspirou. Estavam há já vários dias acampados junto ao rio. Tinha sido interessante, mas ela começava a detestar aquela tenda de peles e a cansar-se do bárbaro com quem partilhava a cama. Virou-se para se afastar um pouco mais dele. Hor-Dulkar dormia tranquilamente, mas Gerde estava há várias noites sem pregar olho, desejando que as coisas mudassem num sentido ou noutro, desejando que Ashran lhe desse autorização para regressar à Torre de Kazlunn ou que lhes ordenasse para se porem finalmente em marcha, em direcção a Nurgon... qualquer coisa, menos continuar ali parados, dia após dia após dia...
Tinha-se posto em contacto com o seu senhor para lhe pedir instruções. Ele repreendera-a pela sua impaciência. Por agora não lhe convinha que os bárbaros entrassem na batalha por nenhum dos lados. Por agora.
Não deu mais explicações, pelo que Gerde teve de se resignar. Sabia que as tropas dos sheks cercavam Nurgon há algum tempo; mas também sabia que era um cerco sem sentido. A base rebelde já fazia parte do bosque de Awa. Não morreriam de fome nem que os cercassem durante anos. Que sentido tinha esperar? Para quê? A única coisa que lhe ocorria pensar era que talvez Ashran estivesse a estudar a melhor maneira de romper o escudo feérico que rodeava o bosque. Se fosse esse o caso, talvez demorasse tempo. Sendo assim, não convinha ter os bárbaros perto da Fortaleza. Ali, nas pradarias, nos seus acampamentos, os shur-ikaili podiam mostrar-se impacientes para entrar na batalha, mas não perturbariam ninguém. Num cerco, trezentos bárbaros entediados seriam não só um incómodo, mas também um perigo para as disciplinadas tropas dos szish.
Tinha de ser isso, meditou Gerde. De qualquer forma, a rebelião de Nurgon não era mais do que um suicídio em massa. Sem o dragão, sem a profecia, a Resistência não podia fazer nada. Nem sequer com Kirtash entre as suas fileiras.
Estremeceu ao pensar nele. Procurou afastá-lo da sua mente, mas resistia a abandonar as lembranças, especialmente naqueles dias em que não tinha nada para fazer e muito em que pensar. Especialmente naquelas noites em que, na tenda de Hor-Dulkar, lhe era impossível esquecer os momentos íntimos que partilhara com Kirtash, tempos antes, na Torre de Drackwen.
"É pouco mais do que uma criança", disse a si mesma, irritada. "Mesmo sendo o filho de Ashran, mesmo sendo um shek... não é mais que um rapaz, e o pouco que herdou dos humanos foi os seus defeitos e fraquezas."
Mas, apesar de tudo, não conseguia deixar de pensar nele.
Virou-se, irritada, tentando dormir. Pensou em aplicar a si mesma um feitiço de sono, mas descartou a ideia; se o fizesse, dormiria tão profundamente que seria difícil acordá-la e queria manter-se alerta, para qualquer eventualidade.
Teve sorte ao tomar esta decisão, pois, quando Allegra chegou à sua procura, estava completamente acordada.
Foi Rhiz quem lhe deu a notícia. Entrou na tenda sem avisar, e Gerde levantou-se de rompante, alvoroçada.
- Como te atreves...?
- Peço desculpa por te despertar, Senhora de Kazlunn - disse Rhiz calmamente; mas à luz da tocha que levava, Gerde julgou ver os seus olhos a rir, trocistas. - Uma fada veio perguntar por ti. Diz que é urgente.
Gerde franziu o sobrolho. Poucos feéricos se davam com ela. Ao fim e ao cabo, ela era Gerde, a traidora, a renegada.
- Uma fada? Vem sozinha?
- Disse que não precisa de mais ninguém para ajustar contas contigo - afirmou Rhiz, sem conseguir, desta vez, dissimular um tom irónico na sua voz.
- Aile! - cuspiu Gerde, irritada.
Ergueu-se, aborrecida; pôs o cabelo para trás e tacteou à sua volta à procura da roupa.
- Quem se atreve a enfrentar-te? - comentou Hor-Dulkar. - Volta para a cama, linda; os meus guerreiros encarregar-se-ão dela.
- Aile não lutará contra nenhum deles, bárbaro - murmurou a fada. - Veio à minha procura.
Acabou de se vestir. Respirou fundo. De facto, podia deixar que os bárbaros se encarregassem de Aile. Se era verdade que viera sozinha, a sua magia não lhe serviria de nada contra trezentos guerreiros shur-ikaili. Mas tinha tido a ousadia de dizer, provavelmente à frente de todos, que ela sozinha bastava para vencer a Senhora de Kazlunn. Se Gerde enviasse os guerreiros de Dulkar para lutar contra Aile, comprovar-se-ia que precisava de todo um exército de bárbaros para acabar com a sua rival.
- É um desafio - explicou ao Senhor dos Nove Clãs. - Entre ela e eu.
O bárbaro entendeu. Assentiu. Entre os shur-ikaili, as coisas também se faziam assim. Chefe contra chefe, um contra um. Só assim se demonstrava quem era o mais forte.
Gerde sentiu que Rhiz a olhava agora com um certo respeito. As mulheres bárbaras eram guerreiras ferozes, mas poucas eram capazes de vencer todos os homens do seu clã, um a seguir ao outro, até que ninguém mais se atrevesse a desafiá-las. Rhiz fizera-o tempos antes, pelo que era a senhora do clã de Uk. Rhiz sabia o que era um desafio. Mas, até ao momento, tinha duvidado que Gerde, que enfeitiçava os homens em vez de lutar contra eles, tivesse coragem para aceitar um desafio e combater de igual para igual.
Desta vez tocou à fada dirigir-lhe um sorriso trocista. Rhiz franziu o sobrolho, mas seguiu-a até ao exterior.
Não esperaram por Hor-Dulkar. Em silêncio, as duas mulheres percorreram o acampamento. Sentiram sobre si os olhares dos guerreiros, que saíam das tendas para as ver passar. Já tinha corrido o boato de que a Senhora da Torre de Kazlunn tinha sido desafiada; a sua rival era outra feiticeira feérica, dizia-se, que também tinha sido senhora de uma torre de feitiçaria no passado. Uma feiticeira mais velha e mais experiente. Por fim, Gerde encontrara uma rival à sua altura.
Allegra esperava-a nos limites do acampamento. Os guerreiros do clã de Uk, que estavam aí acampados, mantinham-na sob vigilância, apesar de a feiticeira não se mexer. Simplesmente estava ali, imóvel, à espera.
Gerde deteve-se a uns passos dela. Não se surpreendeu por a fada ter chegado ali vinda da sitiada Nurgon; Allegra era uma feiticeira poderosa e era capaz disso e de muito mais.
- Aile - disse Gerde como cumprimento.
- Gerde - respondeu a feiticeira. - Vejo que a vida das pradarias te fica bem.
Ela franziu o sobrolho. Desde que vivia com os bárbaros, a sua roupa estava sempre engelhada, o cabelo despenteado e o rosto marcado por olheiras escuras. Detestava aquele lugar, e era óbvio que Allegra tinha reparado.
- O que queres?
- Tu sabes. Quero desafiar-te à maneira dos shur-ikaili. Combateremos com as nossas armas e a vencedora fica com tudo. A vencedora será a nova Senhora da Torre de Kazlunn.
- Não posso aceitar as tuas condições. A Torre de Kazlunn não me pertence a mim, mas sim ao meu senhor, Ashran. Não importa o quão estou segura da minha vitória, não importa que acabe contigo esta noite; o meu senhor não veria com bons olhos que arriscasse a torre num duelo.
- Vejo que o tempo te está a tornar mais prudente - afirmou Allegra, sorrindo. - Ou talvez seja Ashran quem te inculcou alguma sensatez. De qualquer forma, entendo a tua hesitação. Está bem, então: não lutaremos pela Torre de Kazlunn. Lutaremos pela liberdade dos shur-ikaili.
Ouviram-se vários vivas. Eram todos de vozes femininas.
- Nós já somos livres, bruxa - grunhiu Hor-Dulkar, que acabava de chegar. - Não te atrevas a insinuar o contrário.
As mulheres sussurraram. Gerde percebeu naquele preciso momento que se encontrava em desvantagem. Os homens estavam do seu lado, sim, mas as mulheres estavam com Allegra. Por vontade própria. Se o feitiço falhasse, perderia o apoio dos homens. Mas as mulheres continuariam a favor de Allegra.
Não, tinham de resolver aquilo apenas entre elas.
- Aceito o desafio - disse, com orgulho. - Tu e eu, Aile. Ninguém mais se deve interpor.
- Que assim seja - assentiu Allegra.
Afastaram-se ligeiramente do acampamento para não causar estragos. Muitos dos bárbaros seguiram-nas, intrigados, mas mantendo-se a uma distância prudente. As duas fadas colocaram-se frente a frente. Fitaram-se.
Gerde percebeu que algo mudava em torno de Allegra: a brisa começara a mover-se, a energia fluía e percorria-a por dentro, renovando-a. Era a sua forma de se preparar para o combate. Gerde imitou-a.
Permitiu que a magia fluísse do seu interior e se fosse acumulando à sua volta.
A magia que um unicórnio lhe entregara há tanto tempo.
Afastou aqueles pensamentos da sua mente. Franziu o sobrolho e concentrou-se no que estava a fazer.
Allegra sorria. Não considerou isso um bom sinal. Irritada, ergueu as mãos, disposta a riscar a feiticeira do mapa para sempre. Sussurrou as palavras de um feitiço, palavras que deslizaram pela sua garganta e pela sua língua, palavras pronunciadas em idhunaico arcano, o idioma da magia. Aquelas palavras soavam como um cântico misterioso e proibido, e deram forma à magia que havia no seu interior, transformando-a em algo novo, diferente. Gerde abriu as palmas das mãos e viu a energia a acumular-se nelas. Sabia o que tinha de fazer.
Fogo.
Levantou as mãos por cima da cabeça. Tinha-as envoltas em chamas; ouviu as exclamações de surpresa de alguns dos bárbaros, mas não lhes ligou.
Os feéricos odiavam e temiam o fogo quase tanto como os sheks. O fogo destruía as árvores, os bosques, a vida. Para as fadas, nem sequer o assassinato era um crime tão grave como queimar uma árvore. Não havia misericórdia para os incendiários que caíam nas mãos dos feéricos. Deixavam-nos no coração do bosque e transformavam-nos em árvores. Nada podia devolver-lhes a sua forma original. Nunca mais.
Os únicos feéricos que empregavam o fogo eram os feiticeiros.
Mas mesmo eles utilizavam-no com muita precaução e só quando o consideravam estritamente necessário.
Não obstante, Gerde, que tinha traído os seus, que se aliara a Ashran, que tentara matar um unicórnio, sentia que já não tinha limites. Se fizera tudo isso, estava mais perto de servir o Sétimo do que Wina, a deusa de todo o verde, a mãe dos feéricos. Se fizera tudo isso, também podia usar o fogo.
com um grito selvagem, arremessou aquele fogo contra Allegra, com toda a violência de que foi capaz. Por um momento viu o brilho das chamas reflectido nos olhos negros de Allegra, a sua expressão de terror...
Ou talvez o tivesse imaginado. É que as chamas desfizeram-se em volta da feiticeira, sem lhe causar o menor dano.
- Como és previsível, miúda - disse Allegra, sorrindo. - E como conheces pouco a tua oponente.
- Mas... - balbuciou Gerde. Calou-se imediatamente, sentindo-se ridícula.
- Protegi um dragão, Gerde. Vi-o incendiar as árvores de minha casa. Tive de o perdoar. Tive de interiorizar a ideia de que o fogo podia ser meu aliado. Mas agora diz-me... a magia está do teu lado... ainda?
Gerde captou o perigo uma fracção de segundo antes de Allegra erguer as mãos. Apressou-se a levantar uma protecção mágica em seu redor. O ataque de Allegra chocou contra a barreira e desfez-se.
Gerde contra-atacou. Desatou a correr em direcção a Allegra, rápida como um raio; os seus pés descalços mal tocavam no chão. Allegra ergueu as suas defesas mágicas em torno de si... mas, de repente, a imagem de Gerde desdobrou-se, uma, e outra, e outra vez. E Allegra viu oito Gerdes a correr na sua direcção, rodeando-a, oito pares de olhos negros a faiscar de ira, oito cabeleiras verde-azeitona a agitar-se no ar, dezasseis mãos carregadas de energia mágica disposta a procurar o corpo da sua inimiga.
Allegra fechou o escudo ao seu redor, mas Gerde, a verdadeira, atingiu-a por trás. Allegra sentiu que ficava sem respiração. A sua magia protegera-a de uma morte certa, mas o golpe tinha sido muito forte. Os joelhos dobraram-se-lhe e caiu no chão. As oito Gerdes riram, com oito gargalhadas trocistas e melodiosas. Allegra procurou levantar-se. Ergueu então a cabeça e viu uma espiral de nuvens negras a formar-se precisamente em cima de si. Gritou e rolou para o lado, evitando que o raio lhe caísse em cima. Levantou as mãos e usou a sua protecção antes que caísse a segunda faísca.
O raio embateu no escudo de Allegra e a sua magia espalhou-o em todas as direcções, como se fosse um leque. Allegra ouviu as oito Gerdes gritar. Viu-as a tentar proteger-se do raio reflectido pela sua magia. Viu desaparecer sete delas. Viu a oitava cair de joelhos, ofegante, ilesa mas esgotada.
Allegra também estava extenuada. As duas entreolharam-se, de joelhos, respirando com dificuldade.
- Rende-te, Gerde. Regressa à Torre de Kazlunn enquanto podes. A fada cerrou os dentes.
- Nunca.
Levantou-se com a agilidade de uma corça e atacou de novo.
Allegra ripostou...
Quando o primeiro raio de sol do primeiro dos sóis assomou no horizonte, ainda continuavam a lutar. Estavam exaustas e não parecia que nenhuma das duas fosse declaradamente superior à outra. Allegra era mais velha e os anos passados na Terra tinham feito diminuir o seu poder; mas Gerde tinha de manter activo o encantamento que fazia com que os homens shur-ikaili, em especial o Senhor dos Nove Clãs, a contemplassem embasbacados, como se nunca nas suas vidas tivessem visto uma criatura tão bela.
Foi então que a magia de Allegra começou a falhar. Apercebeu-se disso quando um dos seus conjuros actuou com menos força do que ela esperava. Hesitou ligeiramente. Sabia que aquilo aconteceria mais cedo ou mais tarde; a magia dos feiticeiros não era inesgotável, consumia muita energia, e elas estavam há bastante tempo a utilizar o seu poder ao máximo. Mas Gerde não dera sinais de esgotamento até aí e Allegra soube que teria de resistir um pouco mais. Desejou que Gerde não tivesse reparado no que lhe estava a acontecer.
A partir daquele momento, mostrou-se mais cautelosa. Limitou-se a defender-se e a esquivar-se dos ataques, reservando forças para quando se lhe apresentasse uma boa oportunidade de as utilizar.
Gerde notou-o.
- Estás acabada, Aile! - exclamou, triunfante. - Reconhece a tua derrota!
Ergueu as mãos e duas espirais de energia verde brotaram das suas palmas. Allegra lançou-se para o lado, procurando esquivar-se delas. A magia de Gerde atingiu o chão e fez germinar dele dois arbustos de plantas espinhosas, que se moveram em busca dos tornozelos de Allegra. A fada apressou-se a afastar-se; conhecia bem aqueles rebentos e sabia que eram venenosos. Pelo canto do olho viu que Gerde voltava à carga. Parecia disposta a semear toda a pradaria de arbustos venenosos.
- Podem tirar-se coisas melhores da terra, Gerde! - atirou-lhe, irritada. Voltou-se para ela para lançar o conjuro que estava há algum tempo a preparar, um conjuro que transformaria Gerde numa estátua de pedra. Pronunciou a fórmula... mas não aconteceu nada. Allegra olhou para as mãos, desconcertada.
- Ficaste seca, velha! - gritou Gerde. - Agora, sim, já não tens escapatória!
Allegra respirou fundo, sem se deixar levar pelo pânico. Concentrou-se. Sentiu que a sua inimiga se preparava para lançar um ataque final. Esperou com calma.
Gerde levou a cabo o seu último feitiço. Desta vez, e como piada final, voltou a empregar o fogo, num conjuro muito semelhante ao que tinha utilizado nos primeiros instantes do duelo. Lançou todo o seu poder contra Allegra, que continuava sem se mexer, sem reagir, com os olhos fechados.
Os bárbaros deixaram escapar gritos de assombro quando a magia de Gerde atravessou o espaço que as separava, como um raio de fogo, em direcção a Allegra...
Então ela abriu os olhos e ergueu as mãos, e o seu rosto apresentava uma terrível expressão de ira que deixou sem fôlego todos os que a contemplaram. Allegra gritou e pôs em jogo o seu próprio poder.
O poder de Aile Alhenai, outrora Senhora da Torre de Derbhad, emergiu do seu interior com a violência de um meteoro; deteve o ataque da sua rival a menos de um metro do seu corpo e lançou-o para trás com tanta força que empurrou também Gerde e a atirou de costas contra as árvores próximas, que irromperam em chamas.
Depois, silêncio.
Allegra deixou-se cair no chão, exausta. Gerde ergueu-se ligeiramente e gritou ao ver as árvores a arder. Tentou apagar as chamas, mas a magia não lhe respondeu. Também ela estava esgotada.
Afastou-se do fogo a tremer. Voltou-se para Allegra e para os bárbaros que contemplavam a cena e reparou que os homens abanavam a cabeça como se despertassem de um longo sono. Compreendeu, com horror, que o feitiço que mantinha sobre eles se tinha desfeito.
Allegra pôs-se de pé com dificuldade.
- Creio que perdeste, Gerde - disse calmamente. Ela não disse nada.
Um dos homens aproximava-se por detrás de Allegra, brandindo uma maça, disposto a acabar com a sua vida por não conseguir suportar que Gerde tivesse sido derrotada.
A fada nunca chegou a saber se Hor-Dulkar, o Senhor dos Nove Clãs, actuava ainda sob o efeito do feitiço ou por vontade própria, pois, antes de chegar a tocar num só cabelo de Allegra, alguém o atingiu por trás com uma contundente pancada.
O senhor da guerra voltou-se, aturdido, mas a sua atacante não lhe deu tempo para respirar e voltou a golpear.
Hor-Dulkar revirou os olhos e caiu no chão, aos pés de Uk-Rhiz.
Fez-se um breve silêncio.
- Todos viram - disse então Rhiz, com frieza. - Hor-Dulkar interveio num desafio. Não é uma conduta própria de um Senhor dos Nove Clãs.
Houve um burburinho entre a multidão. Os homens ainda não tinham entendido bem o que acontecera; as mulheres apoiavam Rhiz sem reservas.
Allegra respirou fundo e voltou-se para Gerde. Não se surpreendeu ao verificar que ela se tinha ido embora.
- Corre para a tua torre, fedelha - murmurou a fada. - Corre a contar a Ashran que os shur-ikaili são livres. Conta a Ashran que a Resistência continua a lutar, embora o seu filho tenha matado a nossa última esperança. Continuaremos a combater enquanto os nossos corações baterem, enquanto restar um unicórnio vivo no mundo.
Os bárbaros discutiam. As mulheres falavam todas ao mesmo tempo e os homens pediam explicações sem dar ouvidos ao que as mulheres lhes contavam.
Allegra não lhes prestou atenção. Dirigiu-se para as árvores e usou a sua magia para apagar as chamas; depois deixou-se cair de joelhos e chorou amargamente, pedindo perdão a Wina e àquelas árvores por lhes ter feito tanto mal.
Foi muito duro para Victoria atravessar o bosque de Alis Lithban.
Ali havia nascido Lunnaris, o unicórnio que habitava no seu interior, quinze anos antes.
No dia em que todos os unicórnios, excepto um, haviam sido varridos da face de Idhún.
O bosque tinha mudado muito desde então. Aquelas delicadas árvores, cujos ramos pareciam filigranas tecidas pelas fadas, tinham secado há muito. A erva tornara-se cinzenta e as flores tinham murchado, formando um manto cinzento sobre o chão. Até mesmo o ar parecia murcho.
Victoria não recordava o aspecto de Alis Lithban quinze anos antes. Mesmo assim, sentiu-se cativa de uma pesada melancolia. Tudo à sua volta lhe lembrava que já não havia unicórnios, que não os haveria nunca mais, que ela era a última e que a sua vida deixara de ter sentido.
Contudo, isso dava-lhe forças para continuar em frente.
A Torre de Drackwen estava cada vez mais perto. E Christian também.
Logo tudo acabaria, por fim.
Victoria olhou para Yaren, que a contemplava, distraído; voltou à realidade quando percebeu que ela o estava a observar.
- Desculpa - disse o semifeiticeiro -, estava convencido de que, quando regressasses a Alis Lithban, a erva iria tornar-se verde debaixo dos teus pés, as flores voltariam a crescer... - Abanou a cabeça. Mas, claro, era uma ideia absurda. Imagino que os unicórnios não são exactamente como contam nas lendas.
Victoria ficou um momento a olhar para ele, mas não disse nada. Depois deixou-se cair de joelhos sobre o chão, junto a uma enorme flor cujas pétalas se tinham enrolado sobre si mesmas ao secar. Contudo, adivinhava-se a beleza delicada que possuíra. A jovem tomou-a entre as suas mãos, delicadamente, e começou a transferir-lhe energia.
A flor reanimou-se de imediato. Endireitou-se e as suas pétalas começaram a avivar-se com um suave violeta.
Então, de repente, o processo inverteu-se: a flor tremeu e murchou ainda mais depressa do que antes. E quando Victoria deu por isso, entre os seus dedos só restavam uns tristes fios ressequidos.
Yaren, que estivera a observá-la, engoliu em seco. Não entendia muito bem o que estava a acontecer, mas não quis perguntar.
Victoria também não fez qualquer comentário. Levantou-se com uma expressão impenetrável e prosseguiu o seu caminho em direcção ao coração do bosque.
- Vou-me embora, pai - anunciou Christian.
Ashran voltou-se para ele. Tinha estado a ouvir os relatórios de um grupo de szish que acabara de regressar de Awinor, mas dispensou-os com um gesto para dar atenção ao filho.
- O unicórnio está perto - observou. - Veio à tua procura.
- Veio matar-me.
- É por isso que te vais embora? Tens medo de a enfrentar?
- Não quero enfrentá-la, é só isso.
- E eu não quero que desapareças novamente, Kirtash. A rebelião do Norte está a tornar-se um assunto demasiado incómodo.
- É precisamente para lá que eu vou - respondeu Christian suavemente. - Para a Torre de Kazlunn.
Ashran olhou-o com o interesse a brilhar nos seus olhos prateados.
- Ao encontro de Gerde?
Christian assentiu. O Necromante levantou-se do cadeirão que ocupava e dirigiu-se a ele.
- O que propões, Kirtash?
- Ocupar o lugar que me é devido no teu exército, meu senhor respondeu o rapaz com voz neutra.
Ashran olhou-o por um instante, em silêncio.
- Gerde voltou a falhar - disse por fim. - Sabias disso, não sabias?
- Sim, sabia.
- Já não quero saber dos bárbaros - prosseguiu Ashran. - Há outra forma de ganhar esta guerra de uma vez por todas, uma forma mais rápida e segura. Mas talvez não seja má ideia controlares o que Gerde faz na Torre de Kazlunn. Averigua o que se passou exactamente com Aile, Kirtash. Vigia-a de perto.
Christian assentiu. Deu meia-volta, mas, quando já estava na porta, o pai atraiu novamente a sua atenção.
- A rapariga chegará à torre amanhã, depois do segundo entardecer - disse apenas.
Christian ficou uns instantes em silêncio, pensativo. Depois ergueu a cabeça e cravou o seu olhar frio em Ashran.
- Estarei à sua espera na Torre de Kazlunn.
- Eu digo-lhe - disse o Necromante, sorrindo.
Virou-lhe as costas, dando a entender que a conversa tinha terminado, mas Christian não se mexeu.
- Não quero que ninguém lhe faça mal - insistiu.
- Eu sei - disse Ashran com suavidade. - Tens a minha palavra de que chegará a ti sã e salva.
O jovem assentiu de novo e, desta vez, abandonou a sala.
- Os unicórnios viveram aqui - disse Yaren naquela noite. - Dezenas, talvez centenas. E morreram todos... de repente. Porque não resta nada deles? Porque desapareceram sem deixar rasto?
Victoria demorou um pouco a responder. Quando o fez, a sua voz soou fria e sem emoção:
- A essência do unicórnio é feita de luz pura. Quando um unicórnio morre, não tarda a transformar-se num raio de luz, tornando-se parte da luz que ilumina o mundo. Não sobra nada dele. Nada que possa ser roubado ou profanado pelos mortais. Nem sequer o corno... se é nisso que estavas a pensar.
Yaren corou e desviou o olhar, incomodado. Hesitou brevemente e depois ergueu a cabeça para a olhar de novo, desafiador.
- Pedi-to imensas vezes desde que te conheço - disse. - Implorei-te, pus-me aos teus pés, supliquei-te de mil maneiras que fizesses de mim um feiticeiro. Compreendo que no início te negasses, afinal de contas era um desconhecido para ti... Mas, por todos os deuses, viajámos tanto tempo juntos, segui-te sem hesitar, ajudei-te, trouxe-te até aqui... já me conheces e, por outro lado... não mereço uma recompensa?
Victoria não respondeu.
- Agora estamos em Alis Lithban, no que foi a terra dos unicórnios - prosseguiu Yaren. - Já verificaste que não resta nenhum, só tu podes consagrar mais feiticeiros. A tua missão na vida é entregar a magia aos mortais. Maldição! Porque não podes entregar-ma a mim?
Victoria voltou-se para ele. Os seus olhos eram dois poços repletos da mais profunda escuridão. Yaren retrocedeu, sem saber porquê, com o coração a bater violentamente.
- Não sabes o que me estás a pedir - disse ela com suavidade. Yaren cerrou os punhos, com raiva, mas não respondeu.
No dia seguinte verificaram que a paisagem começava a mudar.
A erva estava um pouco mais verde, as árvores não pareciam tão ressequidas e alguns ramos mostravam rebentos tenros. Era como se uma tímida Primavera estivesse a chegar a Alis Lithban, uma Primavera jovem e inexperiente, que não tinha a certeza de estar a fazer o correcto.
Mas a vida reaparecia com mais força à medida que iam avançando.
- É um milagre - disse Yaren, maravilhado. - A deusa Wina está a ressuscitar Alis Lithban.
- Não é obra dos deuses - respondeu Victoria. - Estamos a aproximar-nos da Torre de Drackwen.
Yaren deixou escapar uma gargalhada céptica.
- Não pode ser a torre, Lunnaris - replicou. - Aquele lugar está repleto do poder maligno de Ashran. Nada de bom pode sair dali.
Victoria não o contrariou. Mas sentia a sua própria essência em cada rebento verde, em cada tufo de erva que assomava timidamente entre as folhas secas. Uma essência que outrora tinha sido pura, clara e brilhante como uma estrela. O seu próprio poder tinha revitalizado a Torre de Drackwen tempos atrás; e, embora lhe tivesse sido arrebatado pela força, continuava a ser seu.
Para ela era bem claro: ao canalizar a magia do mundo para a torre, a energia que esta acumulara tinha-se espalhado, ressuscitando o bosque. Os arredores da torre tinham reverdejado... graças a ela, graças ao que Ashran lhe fizera então.
Fechou os olhos por instantes. Naquela altura era luz, magia pura, o que ela transmitia ao mundo. Agora, só lhe podia entregar uma escuridão tão negra como o véu de dor que cobria o seu coração.
Quando o segundo dos sóis começava a declinar, o bosque abriu-se para lhes mostrar a imponente figura da Torre de Drackwen.
Os feiticeiros que a tinham erigido, séculos antes, tinham pretendido dar-lhe o aspecto de uma enorme árvore cujos ramos se erguiam em direcção ao firmamento. Assim, as fundações da torre enterravam-se profundamente na terra como se fossem raízes e bebiam da magia que nutria Alis Lithban.
No entanto, talvez devido à passagem do tempo, ou quiçá pelo que aquele lugar simbolizava agora, o certo é que a torre evocava, mais do que uma árvore, uma garra negra cujos dedos se crisparam numa tentativa de agarrar as luas.
Victoria deteve-se para a contemplar durante um momento. Trazia-lhe más recordações, péssimas recordações, mas nem por um instante considerou a possibilidade de voltar atrás.
Em volta da torre havia uma muralha e a porta principal estava guardada por quatro szish. Victoria avançou até eles sem temor. Yaren seguiu-a, receoso.
- Vim ver Kirtash - disse apenas.
Os homens-serpentes inclinaram-se diante dela. A porta abriu-se lentamente, revelando um caminho que serpenteava através de um jardim maltratado e selvagem. Os szish afastaram-se para a deixar passar, e um deles ofereceu-se para a guiar ao interior da torre.
Mas, quando Yaren se dispôs a segui-la, as lanças dos szish impediram-lhe a passagem.
- Tu não podesss entrar, humano - ciciou um deles.
- Lunnaris... - começou ele, mas ela colocou-lhe um dedo sobre os lábios, com suavidade.
- Espera aqui - pediu. - Já volto.
Yaren remexeu-se, inquieto. Pareceu recordar de repente que ela tinha ali ido para combater.
- Não, não, espera - protestou. - E se não voltares?
Ela dirigiu-lhe um sorriso amargo. Yaren engoliu em seco.
- Não lhe façam mal - disse Victoria aos szish.
- Como desssejardesss, minha sssenhora - responderam. Victoria virou as costas ao semifeiticeiro e atravessou o umbral sem hesitar.
Yaren ficou a ver, impotente, como a porta se fechava atrás dela.
Victoria atravessou o jardim, indiferente à sua beleza indomável. Também ali sentia o seu próprio poder. A magia que tinha ressuscitado a torre procedia do coração do mundo, mas tinha passado através dela.
As plantas sabiam-no e reconheceram-na imediatamente.
Victoria demorou-se a contemplar umas enormes flores em forma de campânula, cujos cálices, vermelhos salpicados de cor-de-laranja, se inclinavam delicadamente para ela. A jovem ergueu uma mão e as flores moveram-se um pouco, procurando alcançá-la. Uma delas roçou os dedos de Victoria... e retrocedeu imediatamente. As outras flores também se afastaram. Quase pareciam tremer de medo.
Victoria não disse nada. O seu rosto não deixou transparecer a menor emoção.
Os szish guiaram-na ao interior da torre. Victoria subiu degrau a degrau a grande escadaria em caracol que a levaria aos aposentos de Ashran, o Necromante.
Mal se apercebeu do trajecto através da torre. Não reparou nas salas que percorriam, outrora transbordantes de actividade, agora abandonadas na sua maioria. Só tinha em mente a sua vingança, apesar de, muito antes de pôr os pés no recinto, já saber que não encontraria Christian ali.
Ashran não a recebeu no salão onde costumava conceder audiências, mas sim nas ameias, de onde contemplava o terceiro entardecer. Voltou-se para a fitar. Ela susteve o seu olhar, indiferente.
Da última vez que se haviam encontrado, também fora naquela torre. Na altura, o Necromante torturara-a cruelmente, arrebatara-lhe a sua magia pela força, obrigara-a a ressuscitar a Torre de Drackwen. Victoria sofrera muito, tinha sido maltratada, devassada por aquele homem; estivera a ponto de morrer.
Mas agora olhava-o impassível, como se nada daquilo tivesse tido a menor importância.
Ashran sorriu friamente e cumprimentou Victoria com uma inclinação de cabeça cortês.
- Lunnaris - disse. - É assim que te chamam, não é?
- Vim à procura de Christian - disse ela.
- Foi-se embora. Disse que te esperaria na Torre de Kazlunn.
- Está bem - assentiu Victoria.
Ia dar meia-volta para se ir embora, mas ele deteve-a.
- Esperava que me permitisses oferecer-te a minha hospitalidade, ainda que seja só por esta noite - disse. - O último dos sóis já se está a pôr. Amanhã poderás retomar a tua viagem.
Victoria voltou-se e olhou para ele sem dizer nada.
- Sei que o nosso primeiro encontro não foi nada agradável para ti - prosseguiu Ashran. - Mas não vale a pena pensar no passado. Quero falar do teu futuro, Victoria. Posso chamar-te Victoria, não posso?
Ela não respondeu.
- És o último unicórnio que resta no mundo - continuou ele, sem aguardar resposta. - Perdeste o teu dragão. A missão para que foste criada já não pode ser cumprida. Mas o meu filho ama-te.
Victoria continuava sem falar. Ashran sorriu.
- Sei o que pretendes. Sei que desejas morrer, desejas abandonar este mundo, seguir o teu dragão, porque sentes que não vale a pena viver sem ele. Mas tentaste-o e não consegues. Porque há algo que ainda te prende à vida... e esse algo é Kirtash.
Ainda o amas, não é? E odeias-te a ti mesma por isso, por amar aquele que tirou a vida ao teu dragão, aquele que te deixou ferida de morte. E querias morrer, mas não podes, não enquanto ele continuar vivo para que tu possas amá-lo. Por isso queres enfrentá-lo, queres morrer às suas mãos ou matá-lo tu mesma para que não reste nada que te prenda a este mundo e possas morrer em paz.
" Kirtash acha que não te conheço. Mas conheço-te, oh, sim, e compreendo-te, muito melhor do que ambos pensam. Pobre criatura desamparada... Já não pertences a este mundo, Victoria. És a última da tua raça e o teu dragão deixou-te sozinha. O que será de ti?
Victoria virou-lhe as costas, sem uma palavra, e dispôs-se a entrar novamente na torre. Mas algo invisível a fez parar e a impediu de avançar. Voltou-se de novo para Ashran.
- Não acabei de falar - disse ele com suavidade. - Quero dar-te uma alternativa, Victoria. Um futuro. Se estiveres disposta a ouvir-me.
Assomou às ameias e ergueu as mãos diante de si. Algo estremeceu no ar, entre os seus dedos, e Victoria viu como se formava uma bolha que parecia uma grande gota de água. Quando Ashran baixou as mãos, a bolha ficou a flutuar no ar, a tremeluzir como uma gota de orvalho, à frente dele.
- Olha através dela - convidou-a. Victoria aproximou-se e olhou.
Descobriu que a bolha mágica era na realidade como uma espécie de lente que focava um sector do bosque.
E viu, entre as últimas luzes do entardecer e as primeiras brumas da noite, um grupo de fadas que percorria o bosque, roçando as árvores com as pontas dos dedos, cantando às flores e acariciando as folhas das plantas, curando as feridas de Alis Lithban com a sua magia feérica. Ali perto, entre os troncos das árvores, deslizava o corpo ondulante de um shek.
- Propuseram-se ressuscitar o bosque - disse Ashran com suavidade. - São poucas as fadas que decidiram deixar de lutar numa guerra que já perderam para se unirem a nós e fizeram-no unicamente porque lhes oferecemos a possibilidade de cuidar do que resta de Alis Lithban. Não trabalham para mim, trabalham para o bosque. Na realidade, a ideia foi de Zeshak. - Encolheu os ombros. - Quando lhe perguntei porque tinha tanto interesse em curar o bosque, disse-me, simplesmente: "Porque uma vez foi belo."
" Os sheks são assim, Victoria. Os humanos vêem-nos como monstros, mas eles apreciam a beleza mais do que qualquer outra criatura em Idhún. Ficam cativados por ela... onde quer que esta se encontre. Mesmo que seja no fundo do olhar de um unicórnio.
Cravou nela os seus olhos prateados. Victoria não fez qualquer gesto. Mas algo se agitou no seu coração.
- Não poderão fazê-lo sozinhos - acrescentou Ashran, indicando o bosque. - Mas talvez o consigam, se tu os ajudares.
Victoria não respondeu, mas desviou o olhar para a lente mágica que lhe mostrava aquela cena tão surpreendente.
- Os deuses escolheram para ti um destino cheio de dor, ódio e morte. Criaram-te para matar, para destruir. "Matarás Ashran, o Necramante", foram as palavras que sussurraram no teu ouvido quando te salvaram da conjunção dos seis astros.
" Eu ofereço-te um futuro muito diferente, Victoria. Um futuro cheio de paz, de vida... de amor, se quiseres. Já não vais ganhar esta guerra. E também não posso devolver-te o que perdeste. Mas, se te juntares a nós, poderás dedicar a tua vida a algo belo, a devolver a Alis Lithban a beleza e a vida que possuiu outrora.
" E também te ofereço amor. Ofereço-te Kirtash, o meu filho, que deu a sua vida por ti e voltaria a fazê-lo, uma e outra vez, enquanto tu existires. Não pode amar nenhuma outra mulher no mundo, porque não é shek nem humano. E como tu, um híbrido. E, agora que o dragão já não existe, ele é a única pessoa a quem podes amar.
" Junta-te a nós e herdarás o meu império; irás governá-lo junto de Kirtash.
Victoria fitou-o.
- Não sabes o que estás a dizer - murmurou.
- Sei exactamente o que estou a dizer - disse Ashran, sorrindo. Há tempos atrás quis matar-te, porque os Seis fizeram-te parte da profecia que me ia destruir. Mas essa profecia deixou de existir. Já não és uma ameaça. És uma criatura única e seria uma pena que desaparecesses do mundo.
" E tenho a certeza de que Kirtash o lamentaria mais do que ninguém.
- Já o lamenta - respondeu ela em voz baixa. - Foi ele quem, ao matar Jack, acabou também com a minha vida.
- E ele é o único que ta pode devolver. Victoria abanou a cabeça.
- É tarde demais.
- Nunca é tarde demais. O que vais fazer com essa espada, Victoria? Cravá-la no coração do meu filho? Enterrá-la no peito do homem que amas? Nem sequer tu serias capaz de fazer isso por vingança.
- No entanto, vou fazê-lo.
- Mas não por vingança. Irás fazê-lo porque, no momento em que matares Kirtash, estarás a matar-te a ti mesma. E sabes disso perfeitamente. O que pretendes fazer não é um assassinato, Victoria. É um suicídio.
Victoria desviou o olhar, mas Ashran pegou-lhe no queixo e fê-la levantar a cabeça para a olhar nos olhos.
- Estou a ver. A luz dos teus olhos apagou-se - murmurou. - Agora só irradiam trevas. Contudo, só aquele que apagou os teus olhos pode iluminá-los novamente. Kirtash é a luz de que estás à procura. Se a extinguires, tudo terá acabado, não só para vocês os dois, mas também para Idhún.
Victoria reagiu por fim. Afastou-se dele com um movimento brusco.
- Não é possível que consigas ver isso nos meus olhos - disse a tremer.
Os humanos não conseguiam ver a luz dos unicórnios. Nem sequer os feiticeiros poderosos como Ashran. Era um privilégio que só os dragões, os sheks e os feéricos possuíam.
Cravou o seu olhar nas íris prateadas de Ashran, procurando nelas a resposta para o seu estranho poder.
Então descobriu qual era o segredo dos seus olhos.
Aquelas íris prateadas não eram naturais. Eram uma espécie de lentes metálicas que ocultavam o seu verdadeiro olhar, uma barreira entre a alma de Ashran e o resto do mundo, talvez uma couraça ou um disfarce. Para além daquelas íris prateadas, para além dos surpreendentes olhos de Ashran, Victoria percebeu o poder daquele homem e estremeceu de terror até à mais ínfima fibra do seu ser. Afastou-se dele com brusquidão.
- Tu... quem és tu? - sussurrou.
Ashran sorriu. Recuou um passo. Os seus olhos brilharam momentaneamente. Depois a miragem cessou e Victoria viu-os de novo como sempre: uns estranhos olhos de prata.
- Vai ter com o meu filho - disse ele. - Olha-o nos olhos, como me olhaste a mim, e procura neles a luz que perdeste.
Victoria não disse mais nada. Deu meia-volta e entrou de novo na torre; desta vez Ashran deixou-a ir.
A jovem não ficou a dormir na Torre de Drackwen.
Reuniu-se ao semifeiticeiro, que a esperava na entrada, e ambos se perderam novamente nas sombras do bosque de Alis Lithban.
Ashran viu-os partir das ameias.
Permaneceu aí durante mais algum tempo. Quando já as três luas brilhavam no firmamento, uma forma sinuosa e ondulante recortou-se contra elas no seu voo de regresso à torre.
Ashran aguardou que Zeshak pousasse junto dele.
- O unicórnio esteve aqui - disse o shek.
- Sim, e foi-se embora. Vai ter com Kirtash à Torre de Kazlunn.
- Vão finalmente enfrentar-se.
- Sim. Kirtash já não vai evitá-la. Chegou a hora de saber se Victoria é capaz de levar a cabo a sua vingança... ou o seu sacrifício, consoante o ponto de vista.
- Confesso que não desejo nenhum mal àquela rapariga. Já não é uma ameaça para nós e, embora esteja tão contaminada de humanidade, é a única que resta da raça dos unicórnios.
- Eu sei, Zeshak. Ainda tenho esperança de que se una a Kirtash. Se o fizer, não só teremos salvado o que resta da magia, mas também teremos vencido definitivamente esta guerra. Os Seis não terão mais nenhum poder em Idhún. E os rebeldes irão render-se mal vejam a sua adorada donzela-unicórnio entre nós.
O shek semicerrou os olhos.
- O que irá acontecer se ela o matar?
- Morrerá com ele. - Ashran ergueu as pupilas prateadas para Zeshak. - E se for ele a acabar finalmente com ela, também não lhe sobreviverá. É assim que terá de ser. Kirtash só nos será útil se tiver Victoria ao seu lado. Sem ela... pode converter-se num problema e numa ameaça.
- É instável, imprevisível. Demasiado independente.
- Sim. Mas daria tudo por aquela rapariga, como já demonstrou mais de uma vez. Se a conquistarmos, conquistaremos os dois. Se a perdermos... perderemos os dois.
Zeshak sibilou com suavidade, mostrando o seu assentimento.
Três dias depois, Christian chegou à Torre de Kazlunn. A torre protegia-se sozinha e não necessitava de muita vigilância.
Gerde deixara um destacamento de soldados szish e um reduzido grupo de feiticeiros, suficientes para a manter enquanto estivera com os shur-ikaili.
Agora que estava de volta, Ashran anunciara-lhe que o seu filho se dirigia para lá, e a fada aguardava-o com impaciência. Depois da experiência com os bárbaros e da derrota às mãos de Allegra, a perspectiva de ver Kirtash novamente punha-a de bom humor.
Não se tinham visto desde aquela noite no bosque de Awa, aquela noite em que ele lhe dera um beijo em troca da sua espada. Muitas coisas tinham acontecido desde então.
Kirtash matara Jack, aquele irritante rapaz que Gerde enfrentara uma vez. E isso deixara Victoria louca de dor.
Kirtash tinha ficado sozinho. A sua dama procurava-o para o matar. Ela, que tanto dizia amá-lo, traíra-o.
Enquanto se preparava nos seus aposentos para a chegada de Kirtash, penteando o seu longo e suave cabelo cor de azeitona, Gerde perguntou-se quais seriam as intenções do filho do seu senhor.
Há uns tempos, ambos tinham passado uma noite juntos. Gerde tinha conhecido outros homens, antes e depois disso, mas não conseguira esquecer aquela noite. Na Torre de Drackwen, enquanto Victoria agonizava, prisioneira de Ashran, Kirtash procurara o seu calor.
Depois tinha fugido da torre, levando a rapariga consigo, traindo os seus. Mas por uma noite Kirtash fora seu.
Tinha sido muito claro a esse respeito. Para ele não significava nada, era mero prazer, advertira-a de antemão. E só por aquela noite. Não haveria mais nenhuma.
Gerde entendera de imediato o que queria dizer. Kirtash tinha desejos humanos e de vez em quando satisfazia-os. Mas não a amaria nunca, porque a sua parte shek impedia-o de sentir amor por alguém que não fosse como ele.
Ainda assim, ela aceitara as suas condições. A decisão tinha sido sua. Kirtash não a pressionara em nenhum momento, tinha-a deixado decidir, deixara bem claro o que podia esperar dele.
Fechou os olhos e estremeceu profundamente ao evocar, de novo, o que ambos haviam partilhado naquela noite. Mesmo sabendo que ele não sentia nada por ela e, portanto, não repetiria a experiência para que Gerde não se acostumasse à sua presença, a fada compreendeu que não se conformaria com isso.
Sabia o que Kirtash era, sabia que era um shek e que jamais poderia vê-la como sua igual. Perguntou-se, uma vez mais, de onde vinha a sua obsessão por ele. No início impressionara-a por ser o herdeiro de Ashran, um jovem interessante e atraente. Depois sentira-se cada vez mais e mais fascinada... enfurecera-se ao descobrir a sua relação com Victoria, que destruíra o seu desejo de ocupar o posto de rainha de Idhún junto de Kirtash... ou seria algo mais? Quanto mais crescia a sua atracção por Kirtash, mais ciumenta se sentia e mais odiava Victoria.
E naquela noite, quando ele a olhara nos olhos e lhe dissera, com toda a frieza, que partilharia a sua cama, se ela assim o desejasse, mas que não a amaria nunca, Gerde aceitara. Não precisava do seu amor, pensou então, só o queria a ele, e de qualquer forma, se era incapaz de amar, seria indiferente escolhê-la a ela como companheira ou a qualquer outra.
Mas, no fundo do seu coração, uma parte de si estremeceu de pesar.
Procurara reprimir aquele sentimento. No entanto, tempos depois, no bosque de Awa, ele tinha-se rendido ao seu feitiço. Gerde sabia-o, sabia que o tivera nas suas mãos, que podia ter havido uma segunda vez, uma terceira vez, que podia ter sido seu. Se Victoria não os tivesse interrompido...
Os dedos de Gerde crisparam-se sobre o pente. Gostava do Kirtash frio e impiedoso, Kirtash, o shek. Admirava-o por ser tão poderoso, tão indomável, por estar acima de quase todas as coisas. Mas só o ser a quem Victoria chamava Christian, com as suas fraquezas humanas, se tinha rendido a ela.
Meneou a cabeça, pensativa. Andava há semanas a pensar nisso. Estava ao corrente de que Kirtash recuperara Haiass, que despertara a sua parte shek em Nanhai e que esta se tinha reforçado ao matar o dragão.
Mas também tinha notícias de que Kirtash já não estava com Victoria, que ela não o tinha perdoado.
Ignorava que tipo de criatura se apresentaria naquela noite na sua torre. Ignorava se ainda poderia render-se a ela. Sim, agora que Victoria se tornara sua inimiga, Gerde poderia ocupar o seu lugar.
A fada sentiu um calafrio. Sabia quem era Victoria. Jamais teria sonhado poder comparar-se a um unicórnio. Ainda recordava o unicórnio que lhe tinha entregado a magia, há muito tempo. Nem sequer ela teria sido capaz de acabar com a vida de um deles.
Mas Victoria era tão humana... tão insuportavelmente humana... que Gerde não conseguia compreender porque é que Kirtash podia amá-la a ela e não a uma fada.
Decidiu que, acontecesse o que acontecesse, e apesar das ordens de Ashran em relação a Victoria, matá-la-ia logo que tivesse a oportunidade.
Acabou de se arranjar e assomou à janela.
Viu a elegante figura de um shek vinda de sul a voar em direcção à torre e soube que ele já tinha chegado.
Quando Christian entrou na torre, Gerde aguardava-o ao pé das escadas.
A fada estava lindíssima. Os seus olhos negros brilhavam por debaixo das suas longas e sedosas pestanas. O seu cabelo verde, tão suave e leve como um dente-de-leão, espalhava-se sobre os seus delicados ombros, que deixara a descoberto. As suas roupas, vaporosas como todas as peças que costumava usar, adaptavam-se à sua figura esbelta, cujas formas se adivinhavam sob o tecido.
Não trazia jóias; não gostava delas. Como a maioria das da sua raça, Gerde achava que as jóias eram uma invenção humana, um esforço inútil das mulheres humanas para procurar igualar, sem êxito, a beleza das fadas.
Gerde ergueu a cabeça. Nenhum adorno podia rivalizar com a pureza do seu rosto.
- Bem-vindo à Torre de Kazlunn, meu senhor - disse com voz aveludada. - É uma honra.
- A honra é minha, Senhora da Torre de Kazlunn - respondeu ele com um sorriso cortante.
Gerde correspondeu-lhe e avançou, graciosa como uma gata.
Christian não se mexeu. Percebeu, como tantas outras vezes, a magia sedutora que envolvia a fada.
Ela parou diante dele, ainda sorridente. Olhou-o nos olhos. Christian devolveu-lhe o olhar, mas não disse nada.
Gerde pôs-se em bicos dos pés e beijou-o.
Foi um beijo selvagem e inebriante, um beijo feérico, tão profundo como o coração de um bosque. Christian sorriu para si, mas não a repeliu.
Quando Gerde se afastou dele e voltou a olhá-lo nos olhos, com um sorriso doce, o shek também sorria. Mas o seu era um sorriso frio e nos seus olhos azuis brilhava o sopro da morte.
Um terror irracional invadiu Gerde.
"Não...", quis dizer, mas estava paralisada. Procurou dar meia-volta e fugir... mas o olhar gélido do shek tinha-se cravado na sua mente e não podia escapar dele.
Fechou os olhos, mergulhando numa mortífera escuridão de gelo e geada.
Quando caiu, Christian amparou-a, indiferente. Contemplou-a durante uns instantes.
- Eras bonita - disse ao seu corpo sem vida. - Mas não podia permitir que fizesses mal a Victoria. Nunca fui teu e não o teria sido nunca. É algo que nunca compreendeste.
Inclinou-se sobre ela e roçou a sua testa com a ponta dos dedos. Semicerrou os olhos por um momento... e o corpo da fada desapareceu dali, como se nunca tivesse existido.
Christian levantou-se, calmamente, e dedicou-se a explorar a torre. Quando os feiticeiros perguntaram por Gerde, ele disse simplesmente que se tinha ido embora. Redistribuiu os guardas à sua maneira e escolheu um aposento austero, mas estrategicamente situado, para si mesmo.
Percorria os corredores da torre quando, tal como esperava, o seu pai reclamou a sua atenção.
Deteve-se diante da imagem que Ashran, o Necrormnte, enviara da Torre de Drackwen para falar com ele.
- Exijo uma explicação - disse Ashran.
Christian ergueu a cabeça orgulhosamente. Não levantou a voz ao falar, mas as suas palavras soaram claras e firmes:
- Reclamo este lugar como recompensa por ter matado o último dragão e ter acabado com a ameaça da profecia. A partir de agora, eu serei o Senhor da Torre de Kazlunn.
O ULTIMO REDUTO DA MAGIA
Jack deslizou entre as rochas como uma sombra, buscando buracos e fendas onde se encostar de forma a ocultar a sua posição quando os relâmpagos iluminavam o céu.
O animal ergueu o focinho e farejou o ar, mas a brisa soprava a favor de Jack e não o detectou. O jovem escolhera cuidadosamente a sua posição. Os seus pés moviam-se
pelo terreno em silêncio e com uma subtileza que aprendera com Sheziss. Quando levantou a lança no ar, aguardou, imóvel como uma estátua, que a sua presa estivesse completamente desprevenida.
A paciência era outra das virtudes que Sheziss lhe ensinara.
O animal deixou escapar um ganido e depois virou-lhe as costas.
A lança voou da mão de Jack, forte, precisa, letal. Cravou-se, vibrante, no lombo do animal, que uivou de dor e se voltou para ele, com os seus olhos vermelhos a brilhar de fúria e dor.
com um grito selvagem, Jack saltou do seu esconderijo, ao mesmo tempo que puxava do punhal. Esquivou-se com facilidade da investida do animal e dos seus três cornos mortíferos. Inclinou o corpo e correu até ele, rolando pelo chão nos metros finais. As garras da criatura roçaram-lhe o corpo, mas o jovem não desencorajou. Enterrou o seu punhal no peito do bicho e empurrou-o para o lançar por terra. A fraqueza que se apoderou dele permitiu que Jack conseguisse o seu objectivo, já que o seu oponente era tão grande como um urso. Jack caiu sobre ele; as mãos enterraram-se na pelagem espessa, às riscas pretas e avermelhadas, à procura do punhal. Esquivou-se novamente da pata do animal, que, ferido de morte, lutava às cegas, com as suas últimas forças. Retirou o punhal e cravou-o outra vez no peito do bicho. Desta vez, atingiu-lhe o coração.
O animal deixou escapar um débil gemido, estremeceu e ficou imóvel.
Jack levantou-se, ofegante. Recuperou o punhal, limpou-o às calças e introduziu-o novamente no cinto. Depois, com um forte puxão, tirou a lança do lombo da sua presa.
Segurou-a entre os dentes enquanto ajustava de novo a tira de couro que lhe cingia a testa e que costumava usar para que a franja não lhe tapasse os olhos.
Detectou então um movimento pelo canto do olho. Rápido como uma flecha, agarrou novamente na lança, voltou-se e atirou-a com violência.
Ouviu-se um gemido e um relâmpago iluminou o corpo que caía pesadamente do alto de um rochedo. Era um daqueles seres humanóides. Jack não lamentou a sua morte. Conhecia-os já o suficiente para saber que, se tivesse demorado mais um segundo, uma pedra lançada com admirável pontaria tê-lo-ia atingido na cabeça; provavelmente teria ficado inconsciente ou, pelo menos, aturdido e, antes que desse por isso, estaria a fazer parte das peças de caça de alguma tribo de primitivos.
Primitivos... era assim que Jack lhes chamava, à falta de um nome melhor.
Aproximou-se do corpo para recuperar a sua lança. Deu uma olhadela rápida ao cadáver. Da primeira vez que matara um ser daqueles, sentira-se mal. Mas, quanto mais tempo passava em Umadhun, quanto mais se desenvolvia a sua essência de dragão, menos importantes lhe pareciam aquelas criaturas.
Os pêlos da nuca eriçaram-se-lhe e levantou-se, alerta. Era o aviso de que estava prestes a cair um raio perto dali; pressentia a tensão, a electricidade estática, que fazia com que ficasse com pele de galinha. Procurou abrigo numa rocha, mesmo antes de o raio cair a poucos metros dele. Fechou os olhos e enrolou-se sobre si mesmo, sentindo que tudo explodia.
Quando a descarga terminou, Jack ergueu a cabeça com precaução. Praguejou baixinho ao ver que o raio tinha caído sobre o corpo da sua presa. Por fim, encolheu os ombros. Sheziss costumava comer o seu jantar cru, mas ele gostava de assar a carne antes de a comer.
Não sabia quanto tempo tinha passado em Umadhun. Sob a tutela de Sheziss, estava a aprender a caçar, a combater, a aproveitar as potencialidades dos seus dois corpos, humano e de dragão. À falta de espada, estava a exercitar-se no uso daquela lança e daquele punhal, que tempos antes tinham pertencido a um szish, tal como a roupa que agora usava e que Sheziss lhe arranjara.
No início, aquela vestimenta parecera-lhe repugnante, pelo simples facto de ter pertencido a um szish. Embora os dragões não odiassem os szish por natureza, por extensão sentiam aversão a tudo o que tivesse a ver com serpentes; e os szish, humanóides com aspecto de ofídio, despertavam nele uma profunda antipatia.
No entanto, estava a aprender a controlar-se. Descarregava a sua raiva e vontade de lutar caçando os poucos animais que havia em Umadhun. Eram criaturas das cavernas que raramente se aventuravam a sair dos túneis; mas, quando o faziam, Jack seguia-as pelas rochas e pelos desfiladeiros, e o perigo dos raios tornava a caçada ainda mais excitante.
Não costumava caçar transformado em dragão. Não tinha nem metade do interesse.
Naquele momento, voltou a transformar-se para poder carregar com mais facilidade o corpo fumegante do animal que capturara; além disso, o calor que libertava não danificaria as suas escamas, mas a sua pele humana sim.
Achou que já tinha o suficiente para aquela vez, por isso empreendeu o regresso aos túneis.
Cada vez se sentia mais à vontade como dragão. Umadhun estava quase deserto e, por outro lado, na superfície exterior daquele mundo não havia sheks. Os poucos que haviam ficado em Umadhun rondavam a Porta interdimensional, que, pelo que Jack sabia, estava a vários dias de caminho do lugar onde eles se encontravam.
Quase pela primeira vez, Jack podia transformar-se sem perigo e estava a aproveitar a oportunidade. Durante aquele período, aprendeu a conhecer-se como dragão, a sentir cada parte do seu corpo, a controlar a sua chama e a voar com maior segurança. Aprendeu a combater com os seus
cornos e garras, a manter as escamas limpas, a comer, a dormir... como dragão.
Gostou da experiência.
Às vezes via-se incapaz de dominar o instinto; então precipitava-se sobre Sheziss e ambos lutavam ferozmente, mas ela ganhava sempre.
Contudo, nunca o magoara. Uma vez viu-se obrigada a mordê-lo e a injectar nele o seu veneno, o que enfraqueceu Jack quase instantaneamente e pôs fim ao combate. Mas ela própria sorveu novamente o veneno da ferida para o curar e depois lambeu-a com a sua língua bífida, deixando que a sua saliva penetrasse no sangue do dragão.
Para Jack foi extremamente desagradável; mas naquele dia aprendeu que na boca dos sheks havia não só o seu veneno mortal, mas também o antídoto para o neutralizar.
-Este é um grande segredo que os dragões não conheciam... até agora disse ela. - O nosso veneno é uma arma fundamental para nós na guerra e os dragões nunca souberam como neutralizá-lo.
Também Ibe contou que, depois de séculos de guerra contra os sheks, o corpo dos dragões tinha desenvolvido uma imunidade especial que os tornava mais resistentes do que outras criaturas ao veneno das serpentes.
- Continua a ser mortal para vocês... mas demora mais a fazer efeito disse-lhe.
- Como sabes tanto sobre dragões? - perguntou Jack com curiosidade.
- Todos os sheks conhecem bem os dragões. Qualquer pormenor que descobrimos acerca dos nossos inimigos, por muito insignificante que nos pareça, passa a fazer parte da sabedoria dos sheks, que se transmite de geração em geração. Também os dragões instruíam as suas crias de maneira semelhante acerca de nós. Se tivesses crescido em Awinor, com os outros dragões, não teria de ser um shek a ensinar-te estas coisas todas.
- Mas já não restam dragões - replicou ele, franzindo o sobrolho. À medida que ia desenvolvendo a sua essência, sentia cada vez
mais a falta dos dragões. Recordava o seu ninho, os seus irmãos mortos antes de ver a luz dos sóis, os ossos da sua mãe dragão sobre o chão empoeirado de Awinor. E o seu ódio alimentado por aquelas lembranças ardia com mais intensidade; então canalizava-o para Ashran, como Sheziss lhe ensinara. Nunca o tinha visto, mas ela transmitira-lhe uma imagem mental do feiticeiro, um homem imponente de pupilas prateadas, o homem que tinha provocado a conjunção astral, o canalha que fizera Victoria sofrer, que por pouco a tinha matado.
Aquilo deixava-o fora de si.
Isso, aliado ao facto de que a saudade continuava a ser intensa e dolorosa e de que sentia a falta de Victoria, com toda a sua alma, avivava o ódio que Jack sentia pelo Necromante.
O pai de Christian.
Era tão estranho... tudo fazia parte de uma história complexa e confusa na qual todos pareciam estar relacionados. Porém, tudo fazia tanto sentido que Jack se perguntava como não o tinha entendido antes; em contrapartida, sentia-se um estranho que se metia num assunto que não tinha nada a ver com ele.
"Roubou-me os meus ovos todos", dissera Sheziss.
Jack não perguntara mais nada. Mas recordava, com toda a clareza, a história de Christian, de Kirtash, que Victoria lhe contara.
Para criar o híbrido, Ashran contribuíra com o seu próprio filho. Os sheks tinham oferecido uma das suas crias, recém-saída do ovo.
Jack estava ao corrente de que Ashran se vira obrigado a arrancar o seu filho dos braços da mãe humana. Mas nunca se perguntara se todos os sheks estavam de acordo em entregar-lhe um dos seus, se a mãe daquela cria tinha cedido de bom grado o seu próprio filho.
Agora, Jack sabia que era óbvio que não.
Conhecia já os sheks o suficiente para entender que o que para Ashran fora um motivo de orgulho era para as serpentes aladas uma afronta. O filho de Ashran tornara-se mais poderoso após fundir a sua alma com a de um shek. Kirtash era, para Ashran, uma criatura sobre-humana, um homem com o poder de um shek, que estava destinado a governar abaixo dos sheks, mas acima de todos os mortais. Por sua vez, o filho de Sheziss tinha-se convertido, do seu ponto de vista, num monstro, numa aberração
contaminada com sangue humano.
Como Jack.
com a diferença de que Jack não era seu filho. Podia chegar a tolerá-lo, apesar do muito que a repugnava. Mas uma coisa era tolerar uma aberração e outra era aceitar que convertessem o seu próprio filho numa delas.
Jack pensara bastante acerca de Ashran, Sheziss e Christian. Ele próprio tinha conhecido os seus pais humanos, os pais que Elrion matara. A sua mãe nunca chegara a saber que, em algum momento da gravidez, o espírito de Yandrak se havia introduzido no corpo do seu bebé ainda por nascer, fundindo-se com a sua alma humana. Os seus pais nunca tiveram nada a ver com Idhún, nunca tinham suspeitado de que o seu filho albergava dentro de si o espírito de um dragão. Apesar disso, estavam mortos.
Os pais dragões de Jack também estavam mortos. O rapaz não podia deixar de se perguntar se o teriam aceitado, caso estivessem vivos... ou se o considerariam um monstro, pouco mais do que um homem, muito menos do que um dragão.
Jack percebera a cólera gelada de Sheziss de cada vez que mencionara Kirtash. Nunca a ouvira referir-se a ele como seu filho. Para ela, era demasiado monstruoso para ser seu.
Os sheks tinham permanecido muito tempo em Umadhun. Ashran oferecera-lhes as duas coisas que mais desejavam: regressar a Idhún e a morte de todos os dragões.
E tinha cumprido.
Para Jack era bem claro porque é que Ashran criara Kirtash.
Os espíritos de Yandrak e Lunnaris haviam sido enviados para a Terra; tinha de mandar alguém atrás deles, mas não era permitido a nenhum shek atravessar a Porta interdimensional. Por outro lado, se tivesse enviado apenas um espírito, este poderia ter-se encarnado em qualquer bebé humano e teria crescido, como Jack e Victoria, desconhecendo a sua identidade. Assim, fora necessário criar o híbrido, treiná-lo... e depois enviá-lo através da Porta.
Os sheks não podiam recusar-se. Deviam tudo a Ashran.
Além disso, a fuga do dragão e do unicórnio podia destruir tudo aquilo pelo qual haviam lutado. Se só existia uma maneira de chegar até eles, teriam de a concretizar... por muito que os aborrecesse.
Jack não sabia por que razão fora Sheziss a escolhida para dar a cria de shek de que necessitavam para o conjuro. Nem o que tinha acontecido aos outros ovos. Mas era óbvio que a dor da perda sofrida fora para ela tão intensa que a levara a trair a sua própria raça, a superar o seu ódio pelos dragões em prol de uma empresa que ela considerava mais importante: a sua vingança contra Ashran.
Quanto mais pensava nisso, mais estranho lhe parecia. Kirtash, o shek contra o qual lutara até à morte tantas vezes. Christian, o aliado a quem Victoria estava tão unida. Ambos os seres eram um só e Jack tinha sido resgatado pela sua mãe (uma delas) para matar o seu pai (um deles). E Jack suspeitava que, embora Christian soubesse bem quem era o seu pai humano, desconhecia a identidade da sua mãe shek.
"Estou com ela, Christian", pensava às vezes. "Está a ensinar-me a ser forte, como tu, como Victoria, para derrotar Ashran. Mas não gosta de ti. O que dirias se a visses à tua frente? Se soubesses que é a mãe do shek que habita dentro de ti?"
Eram pensamentos confusos e Jack sentia frequentemente que não chegaria a nenhuma conclusão que lhe fosse útil.
Por fim, chegou à caverna e lançou o corpo do animal lá para dentro. Ouviu um sibilar furioso.
- O que é isto? - perguntou Sheziss, irritada.
Jack retomou o seu corpo humano. Aprendera que sob a sua forma humana lhe era mais fácil tolerar a presença da shek.
- O jantar - respondeu. - Está um pouco chamuscado; mas, antes de protestares mais, digo-te já que a culpa não foi minha. Não foi uma labareda minha, foi...
- Um raio que lhe caiu em cima - completou Sheziss. - Sim, estou mesmo a ver.
Mas não parecia interessada. Jack percebeu logo que estava inquieta.
- Sheziss? O que se passa?
Ela saiu das sombras com os movimentos sinuosos que a caracterizavam.
- Estamos com problemas, rapaz - disse apenas. Jack ergueu-se, tenso.
- Problemas? Que tipo de problemas?
- Captei informações da rede telepática dos sheks. Dizem que vão encontrar-se brevemente.
- Quem?
Sheziss olhou para ele como se fosse completamente estúpido.
- Os outros dois híbridos, claro.
- Christian e Victoria? Mas... não estavam juntos?
Tinha presumido que Victoria ficara com Christian. Se ele a tinha deixado sozinha... Sentiu-se furioso e isso surpreendeu-o. Subitamente, aborrecia-o mais que Christian tivesse abandonado Victoria do que a possibilidade de continuar ao seu lado... como seu companheiro.
-Juntos? - Sheziss fitou-o, rindo-se interiormente. - O unicórnio já não pressente a tua presença no mundo, rapaz; acha que estás morto, que Kirtash te matou. Vai atrás dele à procura de vingança.
Jack ficou petrificado.
A memória trouxe-lhe as palavras pronunciadas por Victoria, em Limbhad, há muito: "Se se atrever, Jack, juro-te que o mato."
Deixou-se cair sobre uma rocha, abatido.
- Não achei que estivesse a falar a sério - murmurou. - Mas... não, Victoria será incapaz de o matar. Ela...
- Ama-o, eu sei. Mas também sente algo muito intenso por ti, não é?
- Às vezes é-me difícil acreditar nisso - disse Jack, sorrindo, ainda perplexo.
- Que estupidez - murmurou ela, zangada. - Vocês os três soo os únicos híbridos existentes no mundo. Se um de vocês cair, caem os três. Ainda não percebeste?
Jack abanou a cabeça.
- Sempre pensei que, se eu desaparecesse, Christian e Victoria permaneceriam juntos. Não sei porquê, a sua ligação pareceu-me tão firme, tão real...
- E, rapaz- Se tivesses matado Kirtash, ela também não te teria perdoado.
- Teria procurado matar-me?
- De certeza. Nunca brinques com os seres queridos de um unicórnio, Jack. Ah, não imaginas quão perigosas podem ser essas criaturas.
Jack fechou os olhos. Imaginou por um momento Christian e Victoria a lutar entre si até à morte.
- Ele nunca faria mal a Victoria - disse. - A não ser, claro... que a sua parte shek voltasse a dominá-lo. Embora... não, nem assim. Nem sequer como shek poderia magoá-la. Não outra vez.
- Então, ela vai matá-lo.
- Não será capaz. Não, não conseguirá. - Por alguma razão, a simples ideia parecia-lhe horrível.
- Por ti fálo-ia, Jack. Sabes disso. Jack cerrou os punhos.
- Tê-lo-ia matado eu mesmo - murmurou. - Ainda desejo matá-lo. Mas não quero que morra às mãos de Victoria. Não é...
Calou-se, à procura da palavra adequada.
- Natural? - ajudou-o Sheziss. - Tu odeia-lo, tal como me odeias a mim. O natural para ti é lutar contra os sheks, matá-los. Mas o unicórnio não odeia Kirtash. Ama-o. Por isso parece-te tão terrível que ela tenha intenção de acabar com a sua vida.
Jack enterrou o rosto entre as mãos.
- Não, maldição! Christian deixar-se-ia matar por ela antes de lhe fazer mal. Mas não posso permitir que Victoria consuma essa vingança. - Ergueu a cabeça, decidido. - E também não vou deixar que esse maldito shek morra, nem pensar.
Sheziss olhou-o com interesse.
- Porquê? - perguntou. Jack pôs-se de pé.
- Porque, por muito que o odeie, o meu amor por Victoria é mais forte. E se tenho de me deixar levar por um sentimento, prefiro que seja o amor em vez do ódio.
Os olhos matizados de Sheziss brilharam aprovadoramente.
- O amor também não é um sentimento que tenhas escolhido - disse, todavia. - É irracional, tal como o ódio que sentes pelos sheks. Não tens motivos para amar.
- Não - admitiu Jack. - Mas se me despojassem dos meus sentimentos, do amor e do ódio, e pudesse escolher qual dos dois recuperar... sei muito bem qual seria a minha escolha.
Sheziss esboçou um sorriso trocista.
- Bem - disse. - Ainda tens muito que aprender, mas já não há tempo. Temos de evitar que aqueles dois se defrontem. Ela é o último unicórnio, o último reduto da magia em Idhún. Há que preservá-la com vida a todo o custo.
Sem acrescentar mais nada, Sheziss deu meia-volta e embrenhou-se no túnel. Jack seguiu-a, um pouco ansioso. Parecia que regressavam ao coração da montanha, à Porta interdimensional. Deu uma olhadela ao cadáver do animal que deixavam para trás. Não era próprio de Sheziss agir de forma tão precipitada.
- Importas-te mesmo com Victoria? - perguntou-lhe. - Para além da sua implicação na profecia, quero dizer. Achava que a magia não significa grande coisa para os sheks e os dragões. O nosso próprio poder é superior ao de um feiticeiro consagrado por um unicórnio.
- Certo - respondeu ela. - O mundo sobreviverá à perda do último unicórnio, a energia continuará a fluir. Mas não como antes. Não da mesma maneira.
Jack não percebeu as suas palavras, mas a simples ideia de que Victoria pudesse morrer provocava-lhe tal angústia que mudou de assunto.
- E o que irá acontecer se for Victoria a vencer a luta? - perguntou-lhe suavemente. - Irás lamentar a morte do teu filho?
Notou como o corpo escamoso dela ficou tenso.
- Aquilo não é o meu filho - disse.
- Mas já foi.
Sheziss não respondeu.
- O que aconteceu aos outros ovos, Sheziss? O que é que Ashran fez com eles?
A shek deteve-se e voltou-se para Jack, com uma brusquidão que não lhe era própria. O jovem recuou um passo e o seu instinto disparou, alertando-o para um possível perigo. Sentiu o ódio a latejar nas suas fontes. Também o viu nos olhos de Sheziss.
Mas a serpente limitou-se a baixar uma asa até Jack, com suavidade.
- Sobe - ordenou-lhe. - Vais muito devagar. Jack hesitou.
- Queres ir ter com o teu unicórnio ou não?
"Por Victoria", pensou o rapaz, e trepou pela asa de Shezíss, acomodando-se no seu dorso frio. Ambos reprimiram um arrepio de aversão.
O corpo ondulante de Sheziss continuou a deslizar pelo corredor; quando Jack estava já quase a dormitar, embalado pelo vaivém do movimento da serpente, ela falou, com suavidade, num recanto da sua mente:
- Não foi por mim. Não se tratava dos meus filhos, dos meus ovos. Eram os filhos dele, portanto, ele devia sacrificá-los. Era justo.
- Ele? - repetiu Jack.
- O meu companheiro. Claro que eram os nossos ovos, aos dois. Mas ele não podia exigir um sacrifício desses de nenhum shek. Já que fora ele quem pactuara com Ashran, deviam ser os seus ovos a ser utilizados na experiência. Não teria sido justo tirar os de outro shek. Afinal de contas, Ashran tinha oferecido o seu próprio filho.
Sheziss calou-se momentaneamente. Depois, prosseguiu, pensativa.
- Disse-lhe que os ovos não eram só dele. Também eram meus. E eu não tinha pactuado com aquele humano. Além disso, eram os únicos ovos que poria em toda a minha vida, ao passo que ele podia ter outros filhos com outras sheks.
- Mas não te deu ouvidos, pois não? - perguntou Jack, suavemente.
- Assegurou-me de que só precisariam de um. Que me devolveriam os outros. "Então leva só um", disse-lhe. "Não leves os meus filhos todos."
Jack engoliu em seco. Sabia que Sheziss ficara sem todos os seus ovos e perguntou-se a si mesmo se não existiriam mais híbridos, como Christian, ocultos em algum lugar de Idhún.
- Veio com outros. Entraram no ninho e levaram todos os ovos. Todos eles. Não pude impedi-los.
De seguida, as palavras, os conceitos e as imagens inundaram a mente de Jack como uma torrente transbordante. O rapaz arquejou, procurando ordenar e absorver toda aquela informação. Enquanto isso, a mente de Sheziss continuava a transmitir-lhe a sua história de uma maneira tão caótica, tão imprópria dela, que Jack compreendeu, de repente, que aquela era a forma que os sheks tinham de chorar.
- Não foi justo. Não se tratava apenas de unir dois espíritos, mas sim de os unir num só corpo. E o corpo escolhido era o de uma criança humana, o filho de Ashran. A sua alma não teria de abandonar o frágil invólucro humano; seria o espírito do shek a deixar para trás o próprio corpo para entrar no dele. Assim, quando as minhas crias nasceram, Ashran retirou o espírito da primeira deias. Morreu imediatamente. E Ashran não conseguiu introduzir a sua essência no corpo do menino, porque os espíritos devem fundir-se quando a criatura ainda não nasceu, quando o seu corpo ainda não assimilou completamente a sua alma. Mas aquele menino tinha já alguns anos, a sua alma estava já entranhada no seu corpo, pelo que não tolerou aquela intrusão. O espírito da primeira cria perdeu-se, perdeu-se... e não conseguiram recuperá-lo. Tomaram então a segunda cria e repetiram a tentativa. Mas a alma do menino humano expulsou novamente o espírito do shek. Uma vez... e outra... e outra... No meu ninho, sentia os meus filhos a pedir um auxílio que não lhes podia proporcionar. Mal acabavam de sair do ovo, Ashran matava-os, um a seguir ao outro, arrebatando-lhes a alma. Só o último sobreviveu. O espírito do menino humano já não teve forças para rejeitar a essência do último dos meus filhos. Sim, a alma do meu filho sobreviveu... fundida com a de um humano. Era melhor que tivesse morrido.
Fez-se silêncio na mente de Jack.
De repente, o jovem sentiu-se muito fraco, tendo de se agarrar às asas de Sheziss para não cair.
- Nem sequer tive ocasião de lhes pôr nomes - acrescentou ela.
- É horrível - sussurrou Jack. Sheziss não respondeu.
- Custa-me a crer que o pai sacrificasse as suas crias voluntariamente - disse ele.
- Era o seu dever ou pelo menos era o que ele achava - replicou Sheziss.
- Porquê?
Sentiu de imediato que ela se ria novamente, com amargura, e soube que não ia responder à sua pergunta. Reflectiu, esforçando-se por relacionar as coisas, e então compreendeu tudo.
- É ele, não é? - perguntou. - Zeshak, o rei dos sheks, era o teu companheiro, foi o pai dos teus ovos. Por isso tinham de ser os seus filhos e não os de nenhum outro shek. Porque ele tinha pactuado com Ashran e porque Ashran, o seu aliado, tinha entregado o seu próprio filho. E por isso... por isso queres matá-lo. Por isso odeias Zeshak ainda mais do que Ashran ou os dragões.
- Estás a ver - disse ela com simplicidade. - Agora talvez entendas porque compreendo tão bem a tua
rapariga-unicórnio. Quando alguém que amas magoa alguém que amas... não o odeias, simplesmente. Ama-lo e odeia-lo ao mesmo tempo. Zeshak arrebatou-me os meus filhos para acabar com a profecia, para assegurar o futuro de todos os sheks. Tinha os seus motivos, e compreendo-os. Mas não consigo deixar de o odiar... nem de o amar. É o pai dos meus filhos. Por isso deve morrer... não só pelos meus filhos, mas também por mim.
- Não sabia que os sheks podiam amar tão intensamente - disse Jack, impressionado. - Parecem tão frios.
- Não expressamos os nossos sentimentos da mesma maneira que vocês
- disse ela. - Mas temo-los, ah, se temos.
Jack recordou então que Alexander lhe dissera que os sheks não podiam amar. Agora sabia que estava enganado. Não podiam amar os humanos, mas podiam amar-se entre si... e odiar-se.
- Então mais me ajudar... - disse Jack com suavidade. - Os teus filhos morreram para evitar o cumprimento da profecia. Se acabarmos por destruir Ashran... a tua perda não terá sido em vão?
- Não - respondeu ela. - Porque terei demonstrado a Zeshak que estava enganado... tão enganado...
A voz mental de Sheziss apagou-se. Jack não perguntou mais nada. Ambos continuaram a avançar pelo túnel, em direcção ao coração de Umadhun, mergulhados nos seus sombrios pensamentos.
A viagem parecia não ter fim.
Jack não sabia há quanto tempo andavam pelos túneis. Sheziss continuava a avançar, incansável, deslizando por galerias escuras e húmidas que ele achava sempre iguais. Tinha estado inconsciente durante quase toda a viagem de ida, por isso não chegara a aperceber-se do quão Umadhun era lúgubre e monótono.
Há muito que Jack perdera a noção do tempo. Naquele mundo não havia dias nem noites, nem sequer no exterior. Os céus, eternamente tempestuosos e rasgados pelos raios, não mostravam a passagem das horas. O jovem acostumara-se a comer quando tinha fome e dormir quando tinha sono.
Mas ali, nos túneis, parecia reinar uma noite perpétua.
Como se não bastasse, Sheziss permaneceu em silêncio durante a maior parte da viagem. Talvez considerasse que já falara demasiado, ou se arrependesse de ter confessado tantas coisas, ou, quem sabe, as recordações a tivessem mergulhado num estado melancólico do qual não tinha vontade de sair. Em qualquer dos casos, não era uma companhia muito animada.
Jack acabou por adormecer, dividido entre o sono e a vigília, deixando, simplesmente, que o tempo passasse.
Por fim, quando pararam para descansar junto a uma corrente subterrânea, Sheziss pronunciou-se.
- Vai ser difícil atravessar a Porta - disse. Jack sobressaltou-se.
- Porquê? Atravessei-a quando vim de Idhún, não?
- Na altura encontravas-te meio morto. O teu corpo estava praticamente gelado. A tua chama quase se apagara. Nesse momento, os sheks de Umadhun não sabiam quem eras. Tomaram-te por um humano moribundo, alguém insignificante. Só as crias sentiram curiosidade e se aproximaram de ti.
Jack recordou os pequenos sheks a rastejar à sua volta e como Sheziss os tinha espantado.
- De qualquer forma, em Umadhun só restam crias e sheks demasiado velhos ou cansados, sem vontade de regressar a Idhún.
- Então, onde está o problema?
- O problema é que já correu o boato da tua morte nos Picos de Fogo, rapaz. Os sheks sabem que caíste através da Porta. Pensaram que estavas morto e que, se não estivesses, as crias se encarregariam de acabar contigo. Mas reconhecer-te-iam mal te vissem.
Jack apoiou-se contra a parede de rocha, pensativo.
- Como fazemos para regressar? Sheziss fechou os olhos por um momento.
- Há túneis secundários - disse. - Pouco movimentados. Implica fazermos um desvio, é certo, mas teremos fortes probabilidades de chegar à fronteira antes que nos descubram.
- E não seria melhor utilizar o factor surpresa, lançarmo-nos para a Porta interdimensional o mais depressa que conseguirmos? Não estão à espera disso, não sabem sequer que estou vivo.
Sheziss olhou-o, quase a rir-se.
- Estás com pressa, ha? Jack desviou o olhar.
- Creio que passei aqui demasiado tempo.
- Mas estamos bastante perto, rapaz- Apostarias tudo numa acção tão arrojada? Depois de tudo o que aprendeste, arriscar-te-ias a que te matassem junto à Porta de regresso a Idhún?
Jack suspirou.
- Está bem, vamos fazê-lo à tua maneira.
Não tardou a arrepender-se de ter cedido tão depressa. Sheziss abandonou os túneis largos para escolher galerias pequenas, estreitas e incómodas. Por vezes, Jack tinha de se apertar contra o dorso escamoso da shek para não roçar no tecto do túnel. Isso provocava-lhe uma angústia inexprimível. Tinha a sensação de que, se se transformasse em dragão, sufocaria ali dentro. Os seus cornos, asas e garras ficariam presos no túnel, impedindo-o de avançar. E a simples ideia de não se poder transformar fazia-o sentir-se asfixiado e indefeso.
- Tenho de sair daqui - disse-lhe quando não aguentou mais. Estou a sufocar. É demasiado estreito para mim.
Sheziss olhou para ele. O rapaz conseguia andar facilmente pelo túnel pelo seu pé. Mas o seu rosto empalidecera e notava-se que estava deveras angustiado, como se estivesse preso num espaço muito mais pequeno. A shek não precisou de mais explicações.
- Essa tua essência de dragão... - ciciou, aborrecida. O seu próprio corpo, esbelto e flexível, não encontrava dificuldades ao deslizar pelas galerias. Mas um dragão era outra coisa. - Está bem - disse ela finalmente. - Vamos sair para um túnel maior. Já não estamos longe do nosso destino.
O coração de Jack acelerou. Victoria. Só a ideia de que voltaria a vê-la muito em breve encheu-o de alegria. Sheziss apercebeu-se disso.
- Mantém a cabeça fria, Jack. Lembra-te de tudo o que te ensinei.
O jovem assentiu. Fitou a serpente que se enroscara sobre si mesma e o observava calmamente, com os olhos semicerrados. E acima do ódio, que ainda latejava no seu íntimo, um novo sentimento encheu-o por dentro.
- Obrigado por tudo, Sheziss - disse-lhe com sinceridade. Pareceu-lhe que a serpente sorria. Achou que era bela.
- Não há tempo para disparates - disse, contudo. - Não podemos ficar aqui muito tempo.
Puseram-se novamente a caminho. Jack esforçou-se por controlar a angústia, até que saíram para um túnel um pouco mais largo. Respirou fundo. A sua alma de dragão também agradeceu. Sabia que agora tinha espaço suficiente para se transformar, se assim o desejasse.
Sheziss indicou-lhe que subisse para o seu dorso. Jack obedeceu e controlou o seu instinto quando as asas da shek se dobraram sobre as suas costas, cobrindo-o como uma capa membranosa.
Avançaram assim durante um longo trecho. Jack começou a pressentir a presença de outros sheks nas proximidades. O coração palpitou com mais força, mas esforçou-se por se dominar. "São só sheks", disse a si mesmo. "O ódio que sinto por eles não é importante nem tem uma razão de ser. Estou acima de tudo isso."
Repetiu a si mesmo várias vezes estas palavras.
Dobraram uma esquina. Uma débil luz avermelhada iluminou o túnel.
Jack conteve a respiração.
- Esta luz vem da Porta - disse Sheziss.
"Era o que pensava", pensou Jack simplesmente; não se atreveu a falar em voz alta, mas deixou que ela captasse os seus pensamentos.
Sheziss agachou-se contra a parede do túnel. Jack atreveu-se a dar uma olhadela por entre as asas da serpente.
A brecha interdimensional estava ali.
Tinha o aspecto de um enorme ecrã avermelhado que cobria a parede rochosa mais adiante, tão extensa que não se via o seu fim. A sua textura era estranha. Parecia como se do outro lado estivesse algo a ferver e a borbulhar. Algo tão quente como o interior de uma caldeira.
E a luz avermelhada que irradiava, tórrida e sangrenta, banhava a enorme caverna na qual desembocava o túnel. A caverna estava cheia de sheks.
Alguns dormitavam nos cantos, enroscados sobre si mesmos. Outros vigiavam as crias para que não se aproximassem demasiado da Porta. Um deles voava entre as enormes estalactites, ondulando o seu longo corpo para não chocar com elas.
Jack apercebeu-se de que todas aquelas serpentes, talvez à excepção das crias, estavam deveras enfadadas. Entendeu então porque é que Umadhun era tão horrível para
os sheks. A sua inteligência aguda necessitava de novos desafios, coisas para aprender e observar, e aquele mundo frio de pedra deixara de ser interessante para eles há muito tempo.
"Porque é que não se vão embora", perguntou-se.
- Muitos deles são velhos - respondeu Sheziss. - Outros não conheceram nada além de Umadhun e não se atrevem a partir. Outras são fêmeas que voltaram aqui para pôr os seus ovos; acham que este lugar é mais seguro do que Idhún, pelo menos até que as crias cresçam.
Jack percebeu a sua amargura quando mencionou as mães com as crias. Não fez comentários.
- Seja como for, todos, à excepção dos mais velhos, acabarão por regressar a Idhún - prosseguiu ela. - Entretanto esperam junto à Porta. De vez em quando, um shek regressa de Idhún, trazendo notícias e outras coisas. Cada vez que volta contando coisas sobre o mundo dos três sóis, vários sheks de Umadhun decidem acompanhá-lo quando regressa.
Jack observou a Porta com mais atenção. Recordou então que do outro lado havia um abismo de lava.
- Como...? - começou, mas calou-se de imediato.
"Como vamos atravessar o abismo sem nos queimarmos?", perguntou mentalmente. "E como é que a atravessei?"
- Os dragões selaram a Porta com fogo e lava para que não pudéssemos voltar - disse Sheziss. - Mas, com o passar dos séculos, o frio de Umadhun e os sheks foram enfraquecendo a chama. Quando os dragões morreram, a chama apagou-se quase por completo. Pode atravessar-se a porta, que a lava não aquece tanto como parece. O seu fogo é apenas aparente. Mas o calor continua a ser desagradável para os sheks; há quem não se atreva a aventurar-se pela Porta de fogo, e os que o fizeram uma vez não costumam voltar muitas outras.
- E tu? - perguntou Jack. - Alguma vez estiveste em Idhún? Ela demorou um pouco a responder.
- Voltei uma vez - disse. - Uma só vez, há quinze anos. Fui ver... fui ver o meu filho.
Como um relâmpago, na mente de Jack surgiu a imagem de um rapazinho de uns dois ou três anos, a tremer e encharcado em suor, aninhado no canto de um quarto. Jack soube que o estava observar da janela, soube que o estava observar através do olhar da memória de Sheziss.
O menino tinha espasmos estranhos e a sua pele mudava a cada instante, mostrando uma textura escamosa. Jack ouviu-o gemer e soluçar baixinho. Sentiu a angústia e a dor de Sheziss ao contemplar aquela criatura.
Então, o pequeno voltou-se para ela num movimento brusco, quase feroz. Jack reconheceu o cabelo castanho-claro, os olhos azuis, as feições de Kirtash, ou Christian.
Subitamente, a criança lançou a cabeça para a frente com um silvo, mostrando no seu rosto humano umas presas afiadas, uma língua bífida e uns olhos irisados, redondos, de serpente, uns olhos que momentos antes haviam sido azuis como cristais de gelo.
Jack arquejou e abanou a cabeça para fazer desaparecer aquela visão.
- Não durou muito - disse então Sheziss para o tranquilizar ou para se consolar a si mesma. - Numa questão de dias, voltou a ter um aspecto completamente humano.
O espírito do meu filho e a alma daquele menino tinham-se fundido no interior do seu corpo. E o meu filho... já não era meu filho. Já não era mais do que um monstro.
- Como eu - disse Jack em voz baixa.
Sheziss olhou para ele. Jack julgou ter detectado um vestígio de emoção nos seus olhos matizados.
O rapaz respirou fundo e voltou a cabeça na direcção da caverna... e da Porta.
"Está tão perto", pensou.
- Calma, Jack - deteve-o Sheziss. - Calma. Mas não houve tempo para se acalmar.
De repente, ergueu-se uma sombra na entrada do túnel. Sheziss sibilou e lançou-se para trás. Jack distinguiu a figura de um shek, um macho idoso, e todos os alarmes do seu instinto dispararam ao mesmo tempo. Esforçou-se por se controlar e ficar de cabeça fria. Decerto que ele e Sheziss podiam confrontar o velho shek, mas isso não era o pior.
O shek tinha-o visto. E reconhecera-o.
Isso queria dizer que todos os sheks de Umadhun sabiam que estavam ali.
Após um breve instante de pânico, Jack gritou:
- Voa, Sheziss, VOA!
O shek precipitou-se sobre eles. Sheziss evitou-o agilmente, abriu as asas e voou célere em direcção à caverna.
Jack ficou momentaneamente sem respiração. Nunca tinha voado no dorso de um shek e era uma experiência estranha. Mas não teve tempo de a desfrutar, porque de repente todos os sheks lhes caíram em cima.
Sentiu vontade de se metamorfosear em dragão; contudo, dominou o seu instinto, porque sabia que, se se transformasse, ficaria ali, a lutar. E, naquele momento, o mais importante era escapar daquele lugar.
Sheziss bateu as asas, desesperadamente, em direcção à Porta de fogo. Jack voltou-se sobre o seu dorso para ver se o fogo intimidava os sheks, mas sofreu uma decepção: o ódio alimentava os olhos das serpentes aladas e o instinto impelia-as a perseguir Jack, para o matar, através da Porta e mais adiante.
- Agarra-te bem, rapaz - disse Sheziss.
Então impulsionou-se para a frente. Jack agarrou-se às suas escamas, cravou os calcanhares no corpo ondulante da serpente e inclinou-se sobre o seu dorso tanto quanto pôde. A Porta parecia estar tão perto...
Os sibilos furiosos dos sheks também se ouviam muito perto.
- Sheziss...
- Calma, dragão, vamos sair desta.
Desviou-se e elevou-se no ar. Os sheks mais velhos previram a manobra, mas os jovens ficaram para trás. Sheziss desceu então a pique... em direcção à Porta e à liberdade.
Um dos sheks conseguiu abocanhar a cauda de Sheziss, que emitiu um silvo de dor. Jack ergueu-se e atirou a sua lança, mas a arma bateu contra as escamas do shek sem o magoar. O rapaz praguejou entre dentes.
Sheziss bateu as asas, desesperada. Os outros sheks caíram-lhe em cima.
Jack não tinha outra opção.
Transformou-se. com raiva, com violência. Inspirou e logo de seguida vomitou uma labareda contra as serpentes que os perseguiam.
Factor surpresa. Os sheks assobiaram e ciciaram, aterrorizados.
Os que estavam mais perto irromperam em chamas. A serpente que prendia a cauda de Sheziss soltou-a. Jack esticou as garras e conseguiu segurá-la mesmo antes de cair.
- Mais um esforço, Sheziss - implorou.
Ela debateu-se e Jack deixou-a ir. Os dois, suspensos no ar, olharam-se nos olhos. O ódio ferveu dentro deles.
- Victoria - disse ela então.
- Victoria - repetiu Jack e voltou a cabeça para a Porta, tão próxima, tão real. - Victoria está do outro lado.
Bateu as asas com força. Sheziss seguiu-o.
Quando atravessaram a Porta, foi como se tivessem sido banhados por milhões de raios de sol, como se tivessem mergulhado de cabeça numa nascente de água quente, borbulhante. Jack sentiu-se muito fraco de repente. Arquejou, aterrorizado, quando viu que se transformava novamente em humano, perdia as suas asas e começava a cair.
Sheziss agarrou-o.
Por um momento, tudo deu voltas e, subitamente, emergiram de um enorme abismo de lava, mergulhando num céu cheio de luz, a luz de três sóis que envolveu os seus corpos.
Jack respirou fundo e fechou os olhos, deixando que a luz de Idhún banhasse o seu rosto. Depois, ergueu a cabeça para os três sóis e contemplou-os, fixamente, como vira Kimara fazer antes, no deserto de Kash-Tar.
- Kalinor, Evanor, Imenor - recitou Jack. Sheziss ciciou; o som parecia uma gargalhada.
- Kalinor, Evanor, Imenor - repetiu como quem recita uma ladainha. - Kalinor, Evanor, Imenor!
Pôs-se de pé sobre o dorso de Sheziss e lançou um selvático grito de triunfo. Então deixou que a essência do dragão se apoderasse do seu corpo e, quando bateu as asas para se elevar no céu idhunita, não quis saber se era visto por todos os sheks, todos os szish ou todos os necromantes do mundo. Estava em casa, por fim estava em casa, naquele mundo que nunca tinha considerado o seu lar, mas que agora, de alguma maneira, o era.
E sentia a presença de Victoria na sua alma. Percebia que ela existia nalgum canto daquele mundo, que o vínculo continuava ali, e sentiu-se tão aliviado que rugiu, anunciando a todo o Idhún que o último dragão tinha regressado e que ia à procura da mulher que amava.
NADA PARA SALVAR
Ainda estás a tempo de voltar para trás - disse Yaren.
Victoria não respondeu. Também não se virou para olhar para ele. Continuava a fitar a sombra da Torre de Kazlunn, provavelmente recordando a última vez em que se detivera diante daquelas portas.
À luz do dia, a torre parecia ainda mais majestosa. Enroscava-se sobre si mesma, formando uma espiral que acabava em bico, o que lhe dava o aspecto de um gigantesco como de unicórnio elevando-se orgulhosamente no céu idhunita, procurando talvez alcançar a curva das três luas nas noites mais limpas.
Até àquele momento, Victoria não tinha reparado nisso, não se apercebera de que os feiticeiros tinham construído a Torre de Kazlunn a imitar os cornos de unicórnio que lhes outorgavam o seu poder. Mas agora, ao aproximar-se pelo caminho da escarpa, constatava-o com toda a clareza. A torre, toda a Ordem Mágica, prestava culto aos unicórnios; após o seu desaparecimento, a comunidade de feiticeiros ficara ferida de morte. Se Victoria morresse, a magia morreria com ela.
"Mas já morri", pensou.
Percorreu com o dedo as figuras de unicórnios forjadas no metal. Na altura também não reparara na delicada filigrana que adornava as portas da torre. Na realidade, não tivera tempo de as observar. Os sheks tinham encurralado a Resistência ali mesmo, de modo que esta se vira obrigada a lutar pela vida, porque aquelas enormes portas haviam permanecido fechadas. Agora iriam abrir-se para ela. Christian, o novo Senhor da Torre de Kazlunn, iria abri-las para ela.
Semicerrou os olhos. Pareciam ter passado séculos desde então. As ondas continuavam a bater no molhe, a torre erguia-se igualmente impressionante. Mas Jack estava morto. Christian tinha-o matado. Para trás ficavam os tempos em que a Resistência lutara unida. Naquela noite, Jack brandira Domivat, que agora pendia, morta, da anca da rapariga. Christian enfrentara os seus congéneres, transformado em serpente alada; ela havia cavalgado sobre o seu dorso, e Shail... Shail tinha duas pernas.
Sentiu saudades de Limbhad. Apesar de saber há muito que nunca mais voltaria.
- Não vou voltar para trás - disse, quando Yaren achava já que ela não o tinha ouvido.
Sentiu que o semifeiticeiro avançava até ficar junto dela. Sentiu que colocava uma mão sobre o seu ombro.
- Então converte-me num feiticeiro - sussurrou. - Deves-mo. Ela voltou para ele os seus olhos repletos de escuridão.
- Não te devo nada - disse apenas.
O rosto de Yaren crispou-se num esgar de raiva.
- Não posso acreditar - murmurou. - Vais deixar-me assim? Victoria continuava a olhar para ele com aqueles olhos que o
punham tão nervoso.
- Tu viste - lembrou ela. - Viste o que acontece com a minha magia. Sabes o que é.
Yaren sentiu um calafrio. Sim, fazia tempo que se dera conta de que algo não ia bem. Desde o incidente com o filho do lenhador tinham acontecido muitas coisas que não se ajustavam propriamente ao que ele esperava da magia de um unicórnio. As plantas que murchavam entre os dedos de Victoria, o rosto aterrorizado daquele eremita celeste que os acolhera no monte Lunn...
Reflectiu. O que sucedera no monte Lunn tinha sido estranho. Ficava a meio caminho entre Kazlunn e Alis Lithban, mas não era necessário subir ao cume para chegar até à torre. No entanto, pela primeira vez na sua viagem, Victoria fizera um desvio, apenas para trepar até lá. Yaren vira-a ajoelhar-se no cimo da montanha na qual, segundo a lenda, o primeiro unicórnio recebera a magia para entregar aos mortais, muitos séculos antes. Victoria erguera para o céu os seus olhos vazios, sem vida, e rogara aos deuses que lhe devolvessem a luz.
Os deuses tinham permanecido mudos.
Yaren contemplara silenciosamente a oração de Victoria.
Tinha-a visto levantar-se em silêncio, o rosto tão impassível como sempre, os seus olhos mais intimidantes do que nunca. Yaren tinha-a ouvido sussurrar para si mesma: "Vai ter com o meu filho. Olha-o nos olhos como me olhaste a mim e procura neles a luz que perdeste."
- O que foi que perdeste? - perguntara-lhe naquela noite, quando acamparam na caverna do eremita no sopé da montanha.
Mas Victoria fechara os olhos e, num gesto inconsciente, levara a mão ao punho da espada.
Aquilo confirmara as suspeitas de Yaren.
Victoria tinha perdido o dono daquela espada. Alguém muito querido para ela, talvez um familiar, talvez um amigo ou algo mais. E Yaren tinha quase a certeza de que aquele que empunhara a espada de Victoria tinha morrido às mãos de Kirtash.
E isso tinha transtornado o unicórnio a ponto de o fazer perder o seu poder.
Yaren ouvira falar desde criança da magia que o unicórnio entregava, uma torrente de energia luminosa e cristalina, nada parecida com o que aquela rapariga era capaz de transmitir.
- Queres realmente que te entregue a magia? - perguntou então Victoria. - A minha magia?
Yaren hesitou. Engoliu em seco. O olhar de Victoria dava-lhe arrepios.
Mas pensoli no seu sonho. Então olhou para a jovem e obrigou-se a si mesmo a recordar que ela era o último unicórnio.
- Sim - disse por fim. - Prefiro ter a tua magia a não ter nenhuma. E, se não receber a tua magia, não receberei nenhuma.
Victoria ergueu o olhar para o alto da torre, com o gracioso movimento de cabeça que caracterizava o unicórnio que habitava nela.
- Espera - sussurrou.
Afastou-se da porta e voltou novamente ao caminho à beira da escarpa. Yaren seguiu-a, inquieto, enquanto ela descia. Nenhum dos dois pronunciou uma só palavra até que alcançaram o bosque mais próximo. Quando a vegetação os ocultou de olhares indiscretos, Victoria voltou-se para ele. Como acontecia de cada vez que o olhava, o semifeiticeiro recuou um passo, instintivamente.
- Ainda estás a tempo de voltar atrás - disse ela, com um sorriso amargo.
Yaren engoliu em seco, mas ergueu o olhar, decidido.
- Vamos prosseguir.
- Não sabes o que fazes... - sussurrou Victoria. - Não sabes. Virou-lhe as costas. Yaren viu-a lançar a cabeça para trás, viu como o seu corpo estremecia e começava a transformar-se...
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas quando Lunnaris, o último unicórnio, se mostrou diante dele tão bela e indómita como a tinha imaginado, como ele recordava que aquelas criaturas eram: leve como uma pena, de crinas suaves e prateadas, tão ténues como os raios da lua maior, pele cor de pérola, pequenos cascos fendidos e longa cauda de leão. O seu corno, portador de magia, canalizador de parte daquela energia que movia o mundo, erguia-se sobre os seus olhos, tão puro que parecia feito de diamante, tão brilhante como a cauda de um cometa.
Todavia, quando ela se voltou para ele, Yaren sentiu de novo um terror irracional.
Os belos olhos de Victoria continuavam a irradiar trevas, e aquelas trevas escureciam de alguma forma a luz que emanava do corno; Yaren soube, interiormente, que não devia aceitar aquela magia que cintilava de forma tão sinistra.
Mas era o seu sonho. E queria segui-lo, custasse o que custasse.
Caiu de joelhos no chão. Victoria aproximou-se dele, inclinando a cabeça com suavidade. Yaren fechou os olhos quando sentiu o focinho dela a acariciar-lhe a face.
E depois... algo frio e ao mesmo tempo quente, uma torrente de energia que o inundava por dentro. Deixou escapar uma breve exclamação de surpresa e alegria. Era tão, tão belo... nunca sentira nada igual.
Então, de repente, algo começou a mudar. A magia deixara de ser pura, deixara de ser agradável. Yaren sentiu uma angústia inexplicável, depois veio a dor e, a seguir, o horror. É que, embora o corno do unicórnio já não o tocasse, a energia que lhe transmitira continuava no seu interior, percorrendo todas as suas veias, e era uma energia turva, negra e cheia de um sofrimento tão intenso que o jovem lançou um uivo de dor.
O unicórnio observou, impassível, como aquele novo feiticeiro rolava pelo chão, gritando de dor, enquanto a magia o revolvia por dentro e poluía a sua alma. Ficou ali, a olhar para ele, até que Yaren se deitou aos seus pés, ofegante, sem forças. A dor tinha abrandado; porém, quando ele ergueu a cabeça para a fitar, Lunnaris viu nos seus olhos um reflexo da escuridão que se tinha apoderado dela.
- Ti... tira-ma... - sussurrou Yaren, embora soubesse que a culpa era sua, embora soubesse que não havia mais nada que pudesse ser feito.
O unicórnio sacudiu a cabeça.
- Isto é tudo o que posso entregar ao mundo - disse para si mesma. De seguida, deu meia-volta e afastou-se da clareira. Enquanto caminhava, transformou-se novamente na rapariga a quem chamavam Victoria. Yaren viu-a ir-se embora, ainda encolhido sobre si mesmo, ainda a sentir a dor e as trevas no fundo do seu coração. Viu-a ir, com a espada presa de lado e o báculo às costas, em direcção à Torre de Kazlunn, e recordou subitamente quem a esperava lá.
Conseguiu levantar-se, muito a custo, para a seguir. Não lhe passou pela cabeça tentar detê-la. Sabia que era inevitável que morresse naquela torre, naquele mesmo dia. A escuridão tinha-se apoderado dos seus pensamentos e já não era capaz de albergar a mais ínfima esperança.
Mesmo assim seguiu-a. Alcançou-a às portas da torre, onde estacara perante um grupo de soldados que a aguardava.
- Vim ver o Senhor da Torre de Kazlunn - disse ela.
Eram quatro: três szish e um humano. Os szish olharam para ela e compreenderam de imediato, mas o humano não foi tão perspicaz.
- Temos ordens de escoltar a dama Lunnaris até ao nosso senhor Kirtash - disse. - És a dama Lunnaris?
- Sou - respondeu ela. - Mas ninguém me vai acompanhar. Eu mesma encontrarei o caminho.
Os szish anuíram, inclinaram a cabeça e retrocederam para a deixar passar. O humano, pelo contrário, avançou para ela.
- Não podes entrar sem nos levares como escolta. As nossas ordens são para...
Não chegou a repetir quais eram as suas ordens. Como um relâmpago, o Báculo de Ayshel desceu a pique sobre ele e parou a escassos centímetros do seu rosto. A sua luz, impregnada de trevas, palpitou brevemente ante os seus olhos, ameaçadora.
- Ninguém me vai acompanhar - repetiu Victoria com suavidade e uma calma desumana. - Eu mesma encontrarei o caminho.
- Como desssejardesss, sssenhora - ciciou um dos szish.
O soldado escrupuloso engoliu em seco e assentiu, tremendo de medo, sem conseguir tirar os olhos do báculo. Recuou para a deixar passar.
As grandes portas da Torre de Kazlunn abriram-se diante dela.
Yaren viu-a atravessar o umbral. Quando as portas se fecharam, o feiticeiro caiu de joelhos, enterrou o rosto entre as mãos e desatou a chorar como uma criança, mesmo sabendo que, por muitas lágrimas que derramasse, nada poderia acalmar a dor e a angústia que se tinham instalado no seu coração.
- Vim matar-te - disse ela.
A sua voz não denotava ódio, nem ameaça, nem zanga. Apenas constatava um facto. Aquela frieza e aquela aparente indiferença feriram Christian mais do que se ela tivesse descarregado sobre ele toda a sua ira, o seu rancor, a sua dor.
- Ainda não é tarde para reflectires, Victoria - disse o jovem. -Já reflecti... demasiado tempo.
Mas não avançou. Ambos ficaram de pé por instantes, cada um numa ponta da sala, estudando-se mutuamente. Victoria desembainhou Domivat e, embora a espada de fogo se tivesse apagado há algum tempo, parecia ainda uma arma temível.
- Não quero lutar contra ti, Victoria.
- Então não lutes. Irei matar-te na mesma.
Uma parte de Christian compreendia perfeitamente a sua atitude. Mas, ainda assim, sentia-se sensibilizado. Aquela era a mulher que amava, por quem havia dado tudo. Tinha beijado os seus lábios, tinha-a estreitado nos seus braços.
E, de alguma forma, tinha-a matado ao enterrar Haiass no peito de Jack, por isso o seu espectro ia agora ter com ele à procura de vingança.
- Sabes que morreria por ti. Mas isso não vai fazer-te sentir melhor, não vai acalmar a tua dor. Se morrer agora, o que será de ti depois? Achas que não sei o que pretendes?
Victoria avançou para ele, serena e fria como uma deusa de alabastro. Christian leu a morte no seu olhar e, pela primeira vez na sua vida, teve medo.
Mas não de morrer e sim da própria Victoria.
Apesar disso, ficou imóvel à espera dela. Desembainhou Haiass.
- Se me obrigares a combater, combato - advertiu-a. - Não para salvar a minha vida, mas sim a tua.
Quando apenas os separavam uns passos, Victoria voltou a olhá-lo nos olhos. O seu semblante continuava frio, inexpressivo. Mas os seus olhos continham tanto ódio, dor e sofrimento que Christian estremeceu.
- Já não há nada para salvar - disse ela com suavidade.
Ergueu Domivat. Era demasiado pesada para ela, mas levantou-a facilmente. A determinação de ferro que guiava as suas acções e a sua sede de vingança não conheciam obstáculos.
Então, descarregou a espada sobre Christian. O rapaz esquivou-se e interpôs Haiass entre ambos. As duas lâminas chocaram.
Naquelas circunstâncias, Haiass devia ser muito mais poderosa do que Domivat. Tinha provado o sangue do dragão e recuperado a sua antiga força, ao passo que a chama de Domivat se tinha apagado. Mas a espada de fogo não se quebrou e na realidade Christian sentiu que Haiass estremecia ao contacto com a sua rival.
Retrocederam, mas Victoria não descansou. Voltou a investir contra Christian. Uma e outra vez.
O jovem limitou-se a defender-se e a retroceder, mas depressa percebeu, com assombro, que as estocadas dela tinham cada vez mais força, que uma misteriosa intuição guiava os seus movimentos a ponto de chegar a antecipar-se aos rapidíssimos passos de Christian. "Não pode ser", pensou. "Odeia-me assim tanto? Tem assim tanta vontade de me matar?"
Decidiu pôr fim àquilo. Brandiu Haiass, esquivou-se e desferiu um golpe destinado a desarmá-la. Contudo, e para sua surpresa, a espada fendeu o ar. Victoria já não se encontrava ali.
Christian voltou-se mesmo a tempo de interpor Haiass entre si e a espada rival. Empurrou-a para a fazer retroceder, enquanto procurava ordenar os pensamentos.
Não era possível. Não podia ser verdade.
Mas era. A estrela da testa de Victoria ainda brilhava, e Christian soube então que era verdade o que se contava dos unicórnios: podiam aparecer e desaparecer à vontade, mover-se com a luz, percorrer espaços curtos à velocidade de um relâmpago ou simplesmente teletransportar-se uns metros adiante. Pelo menos era o que se dizia, mas nem os feiticeiros mais poderosos tinham podido confirmá-lo. Christian acabava de o comprovar com os seus próprios olhos.
Victoria nunca manifestara antes aquele poder, nem sequer dera mostras de saber que o possuía. Como todos os movimentos que executava naquela luta, dava a sensação de o fazer instintivamente.
Christian estremeceu.
- Chega! - exclamou. - Victoria, isto é uma loucura. Não quero magoar-te.
- É um pouco tarde para isso - observou ela com voz neutra. Christian retrocedeu.
- Reconsidera, por favor. Não posso mudar o passado, mas posso tentar oferecer-te um futuro. Não te peço que me perdoes. Luta apenas por continuar a viver.
Ela mal o ouvia. Continuava a lutar, maquinalmente. A sua técnica deixava muito a desejar, mas a sua cólera fria tornava os golpes tão certeiros quanto mortíferos. E continuava a desaparecer e a reaparecer como um relâmpago, pelo que só os excelentes reflexos de Christian o salvaram por diversas vezes de uma morte certa. O jovem arriscou-se a voltar a olhá-la nos olhos quando uma investida dela os deixou perigosamente perto.
- Amo-te, Victoria - disse.
Ela devolveu-lhe um olhar profundo como um abismo sem fim.
- Também é tarde para isso, Christian - respondeu. - Demasiado tarde.
Christian esquivou-se por um triz de uma nova estocada e recuou, perturbado, procurando digerir as suas palavras.
Tinha-lhe chamado Christian.
"Chamo-te Kirtash quando te odeio. Chamo-te Christian quando te amo", dissera Victoria no passado.
"Não é possível", disse para si. "Ainda...?"
Apenas umas semanas antes, Christian conhecia e compreendia Victoria até ao âmago do seu ser. Sabia o que pensava e o que sentia; sabia interpretar correctamente os seus gestos mais ínfimos.
Todavia, desde a morte de Jack, a jovem tinha-se tornado uma completa desconhecida para ele. Podia senti-la, talvez entendê-la. Mas o seu olhar já não era claro e
transparente como outrora. O caos turbulento que lia nos seus olhos impedia-o de chegar à sua alma.
Tinha presumido que todo o amor que ela pudesse ter sentido por ele se tinha perdido no abismo com Jack.
Teve de dar um salto para trás, porque Victoria voltava à carga.
- Espera! Ainda sentes algo por mim, não é?
- Isso não é importante.
com um movimento ágil, Christian esquivou-se novamente e colocou-se atrás dela, muito perto, sem se importar com o perigo.
- É - replicou, falando-lhe quase ao ouvido. - Ainda podes ficar comigo.
Ela voltou-se com violência e desferiu Domivat contra ele. Christian aparou o golpe.
- És o assassino de Jack - recordou-lhe Victoria, calmamente. Como te atreves a propor-me isso?
Os seus olhos relampejavam com uma ira fria e letal. Christian concluiu então que era ela, a sua força de vontade férrea, o seu ódio gelado, o que animava uma espada que devia estar morta, uma espada que devia ter-se quebrado sob o poder de Haiass.
- Sabias que era um assassino - disse ele. - Sabes disso há muito tempo. Sabias também que o meu ódio por Jack me levaria a enfrentá-lo. E tiveste a oportunidade de acabar com a minha vida muito antes, em Seattle. Porque não o fizeste?
Esperava que ela reconhecesse aquele sentimento que os tinha unido, que o acusasse de a ter enganado... mas não as palavras que pronunciou a seguir.
- Porque na altura não estava preparada para te matar. Agora
estou.
Christian soube que dizia a verdade.
Fitou-a e subitamente viu-a como ela era na realidade: um ser desamparado, perdido num mundo que já não era o seu, mergulhado numa dor demasiado profunda para se exprimir e que só a morte poderia curar; um ser que tinha perdido uma parte de si e que ficara incompleto e horrivelmente só.
Christian sabia que, se ele morresse, nada mais prenderia Victoria à vida. Se ele morresse, morreriam os dois.
Mas a jovem desejava-o com todas as suas forças. De repente, o shek pensou que o melhor que podia fazer talvez fosse deixá-la morrer em paz. E percebeu que, sem ela, a sua própria vida deixaria de ter sentido.
Que irónico, pensou. Após a morte de Jack, tudo se tinha desmoronado. Nem Christian nem Victoria lhe iriam sobreviver. Quando se apercebeu disso, o jovem teve consciência de que o destino dos três era um só.
Talvez tivesse sido um segundo de distracção, talvez uma fracção de segundo. Christian baixou a guarda apenas por um instante. Victoria apareceu à sua frente como que vinda do nada; Domivat golpeou Haiass com força e tirou-lha das mãos. Christian viu, impotente, como a sua poderosa espada de gelo voava para a outra ponta da sala e aterrava no chão com um som parecido ao de uma adaga a cair sobre uma capa de geada.
A ponta de Domivat roçou o seu pescoço.
- Espera - deteve-a ele. - Se me vais matar, quero pedir-te uma última coisa. Quero beijar-te pela última vez.
Não viu qualquer alteração no semblante ou no olhar dela. Não obstante, o fio de Domivat permaneceu onde estava e o shek sentiu uma leve palpitação na espada, que desejava provar o seu sangue. Não estava tão morta como parecia. Isso surpreendeu-o.
Victoria aproximou-se mais dele, deslizando, quase com doçura, a face plana da espada pela pele de Christian. Olhou-o nos olhos, mas não falou.
- Fazes ideia do que seria capaz de dar por um beijo teu? - murmurou ele, procurando talvez reavivar lembranças de momentos passados, momentos partilhados, momentos íntimos dos dois.
Victoria continuava sem falar. Os dois buracos negros em que os seus olhos se tinham convertido continuavam a fixar os olhos azuis de Christian.
- Morreria por um beijo teu - prosseguiu ele. - Morrerei por um beijo teu.
Houve um breve momento de tensão. Então, Victoria baixou a espada, pôs-se em bicos dos pés e beijou-o nos lábios.
Intensamente. Apaixonadamente.
Christian fechou os olhos e entregou-se àquele beijo.
Nunca o tinha feito. Era sempre ele quem beijava, quem controlava a situação, enquanto ela se deixava levar. Interessara-se sempre mais pelas reacções da outra pessoa do que pelas suas, porque fazer os outros sentir coisas implicava ter um certo poder sobre eles. E o shek sentia-se confortável nessa posição de poder e controlo. Mas naquele momento não quis pensar, não quis controlar; limitou-se a desfrutar das sensações que aquele beijo despertava no seu interior, a deixar-se arrastar por elas. Sabia que baixara a guarda e que estava vulnerável, mas não se importou.
Victoria também pusera toda a sua alma naquele beijo. Christian descobriu que o amor que ela sentia continuava ali, ferido e a sangrar, mas real, muito real, e mais intenso do que alguma vez sonhara.
Ficou surpreendido. Decididamente, estava ainda muito longe de conhecer Victoria.
Rodeou-a com os braços, feliz de a ter junto a si de novo.
Por um breve momento de glória, chegou a pensar que tinha vencido, que o amor tinha superado a dor, o rancor.
Então algo se enterrou nas suas entranhas, algo frio e cortante que, subitamente, se incendiou ao penetrar a sua carne.
Christian arquejou, surpreendido, e arregalou os olhos. Olhou para baixo quando Victoria se afastou dele.
Tinha-lhe cravado Domivat no ventre, e a espada tinha-se incendiado em contacto com o sangue do shek, recuperando o seu antigo poder.
Christian gritou de dor e arrancou-a. Queimou as palmas das mãos, mas não se importou. com um esforço sobre-humano, atirou a espada para longe de si.
Sem acreditar no que estava a acontecer, levou as mãos à ferida do ventre, uma ferida mortal. Olhou para Victoria, desolado.
Ela desembainhara o báculo, que palpitava nas suas mãos, disposta a consumar a sua vingança.
Mas Christian leu a verdade nos seus olhos.
Amor, dor... e a certeza de que, de alguma maneira, ao matar Christian, estava a matar-se a si mesma.
Ela sabia-o.
Victoria não sobreviveria àquela noite.
- Victoria... - murmurou o shek, caindo de joelhos em frente dela. Ergueu o olhar para a rapariga, que avançava, implacável, com a extremidade do báculo iluminada com uma luz mortífera.
Christian fechou os olhos, aguardando a morte e lamentando acima de tudo que o seu amor não tivesse bastado para salvar Victoria, que o seu amor, como tudo o que havia nele, estivesse envenenado e os tivesse destruído aos três.
Então, uma sombra interpôs-se entre ambos. E Domivat, a espada de fogo, chocou contra o Báculo de Ayshel, de tendo-o antes que alcancasse Christian. Victoria ergueu a cabeça para ver quem ousava atravessar-se no seu caminho e deparou com uns olhos verdes que a fitavam gravemente.
- Deixa-o, Victoria - ordenou ele. Ela não o escutou.
Sonhara tantas vezes que Jack regressava que estava convencida de que aquilo não era mais do que uma sombra, um fantasma que aparecia para a atormentar mais uma vez. com um grito de raiva, desferiu o báculo contra aquela quimera para a fazer desaparecer, mas a espada contra a qual chocou outra vez era verdadeira. Não era uma alucinação.
Voltou a olhar para ele, aturdida.
- Victoria... - disse ele.
O báculo resvalou das suas mãos e caiu no chão. A sua luz apagou-se de repente.
Christian viu como os dois se abraçavam e pareciam fundirse num só ser. A vida escapava-se-lhe rapidamente e por um instante pensou, antes de perder os sentidos, que estavam os três mortos e que decerto se haviam reunido num outro lugar, além da vida.
Victoria sentiu que o fogo de Jack voltava a percorrer todo o seu ser, expulsando as trevas do seu coração, procurando a luz que se aninhava na sua alma, harmonizando-a e acalmando, com a sua presença, a dor que a oprimia.
Apoiou a cabeça no seu ombro e, pela primeira vez em muito tempo, chorou.
As lágrimas limparam a escuridão dos seus olhos.
Jack estreitou-a nos braços com força. Cobriu-a de beijos, enterrou o rosto no seu cabelo castanho e fechou os olhos, porque sentiu que estes se enchiam de lágrimas. Engoliu em seco. Abraçá-la novamente depois de tanto tempo era como mergulhar num ribeiro de águas cristalinas depois de passar um longo período perdido num desolado deserto.
- Victoria, Victoria, Victoria... - sussurrou-lhe ao ouvido. - Estou aqui, voltei. E não voltarei a deixar-te nunca mais, minha pequena. Prometo-te.
Teve de a segurar, porque caía. No início pensou que tinha desmaiado, mas depressa notou que as pernas da rapariga lhe tremiam e ela precisava de se sentar. Mas não queria soltá-la nem por nada, pelo que se deixou cair no chão, junto dela. Abraçou-a por trás e apoiou a sua face na dela. Sentia-se tão feliz que não encontrava palavras para o expressar.
Ficaram assim durante um momento, abraçados. Victoria era ainda incapaz de dizer fosse o que fosse. Então, Jack notou que ela procurava mover-se. Afrouxou um pouco o abraço, mas não a soltou.
Mesmo assim, isso foi o suficiente para ela estender os braços para o corpo inerte de Christian, que jazia junto deles, e puxá-lo para o aproximar de si. Jack viu-a segurar a cabeça de Christian e apoiá-la no seu regaço, acariciando-lhe o cabelo com ternura.
Tinha deixado de chorar. Mas ainda se sentia atónita e confusa. Fechou os olhos por instantes para sentir Jack e Christian, os dois, junto dela. Estavam os três vivos. Parecia-lhe um sonho demasiado belo para ser real. Voltou-se para olhar Jack nos olhos.
- Voltaste - murmurou. - A sério.
Ele sorriu e embalou-a nos seus braços com doçura.
- Sim, Victoria.
Ela baixou então os olhos para contemplar o rosto pálido de Christian.
- Está... - sussurrou, mas não foi capaz de dizer mais nada.
- Tens de o curar - disse Jack com suavidade. - Ainda podemos salvá-lo.
Ela abanou a cabeça.
- Não posso. Oh, Jack, não posso. Passou-se alguma coisa com a minha magia, eu... - gemeu. - Se tentar curá-lo, mato-o.
Jack engoliu em seco. Então, não tinha sido imaginação sua. Momentos antes, quando enfrentara Victoria, parecera-lhe ver algo anormal nos seu olhar.
- Olha para mim.
Victoria obedeceu. Jack viu nos seus olhos vestígios daquela estranha escuridão que os velara durante tanto tempo, mas descobriu também uma débil luz no fundo das suas pupilas.
- Estiveste doente - compreendeu. - Mas a tua luz não se apagou completamente e creio que nós os dois poderemos reavivá-la. Talvez precises de um pouco mais de tempo...
- Não temos tempo - cortou ela; parecia que voltava a pensar com clareza. - Christian está a morrer e eu... Maldição, quase o matei...
Jack soltou Victoria e inclinou-se junto ao corpo de Christian para o examinar. Também ele tentara matá-lo da última vez que se tinham encontrado, nos Picos de Fogo. Mas agora tinha acabado de lhe salvar a vida, interpondo Domivat entre ele e Victoria.
Ao olhar para o shek moribundo, sentiu que o ódio voltava a latejar no seu interior.
"Preciso dele para derrotar Ashran", recordou a si mesmo. "Preciso dele para que Victoria seja feliz."
Voltou-se para ela.
- Vais tentar?
Victoria abanou a cabeça.
- Não quero fazer-lhe mais mal. Jack, tu não sabes o que a minha magia provoca agora.
Jack sentia que a vida de Christian se escapava gota a gota.
O jovem tinha o ventre quase carbonizado e a sua respiração era débil. Tentou não se deixar levar pelo pânico. Olhou em volta em busca de inspiração.
Então, viu o Báculo de Ayshel.
Não pensou duas vezes. Estendeu a mão e pegou nele.
- Jack, não!- gritou Victoria.
Mas, para sua surpresa, o artefacto não reagiu contra o rapaz e deixou-se segurar docilmente. Jack olhou para ela com um sorriso de orelha a orelha.
- Só pode ser usado por unicórnios e semifeiticeiros, lembras-te? disse-lhe. - E semifeiticeiros são aqueles que viram um unicórnio, mas que não foram tocados por ele.
Victoria recordou de imediato que se tinha mostrado como Lunnaris diante dele, em Limbhad. Mas não permitira que a tocasse. Nunca lhe passara pela cabeça que poderia ter tornado Jack num semifeiticeiro. Compreendeu logo quais eram as intenções do seu amigo quando este se inclinou sobre Christian, pensativo, ainda com o báculo na mão.
- Será que podes usar o poder semimágico? - perguntou, duvidosa.
- Não deixaste de ser um dragão. O teu poder de dragão não irá interferir?
Recordava o caso de Christian. Um unicórnio entregara-lhe a sua magia quando era criança, no dia da conjunção astral; Christian era, portanto, um feiticeiro, mas aquele poder era abafado pelo poder superior do shek.
- Temos de tentar - murmurou Jack. - Espero que o báculo ajude. Diz-me apenas o que tenho de fazer.
Victoria ergueu-se, decidida. Virou Christian um pouco mais, com delicadeza, para o colocar de barriga para cima, e segurou-o com suavidade mas com firmeza. Sentiu-o tão frágil entre os seus braços que ficou com o coração apertado. "Deuses, como pude fazer-lhe isto?", perguntou-se, horrorizada. Ainda não entendia muito bem como e porque Jack regressara, pois tinha a certeza de que Christian o tinha matado. Mas agora, com Jack ao seu lado, era incapaz de sentir rancor. Tinha a sensação de ter despertado de um sombrio pesadelo, como se nada do que vivera desde a queda de Jack nos Picos de Fogo tivesse acontecido na realidade. Mas lembrava-se, lembrava-se de tudo, tal como se o tivesse visto através dos olhos de outra pessoa.
Agora, a presença de Jack iluminava de novo a sua existência, como um belo e brilhante sol. Como se ele a tivesse conduzido pelo caminho de volta à vida, regressando das trevas de um estranho estado entre a morte e a vigília.
"Estou viva", pensou. "E Jack também está. E tenho de salvar Christian, porque..."
Porque a sua morte, compreendeu de imediato, iria mergulhá-la novamente na mais profunda escuridão, uma escuridão da qual, desta vez, nem mesmo Jack a poderia resgatar. Respirou fundo.
- Coloca uma mão sobre a ferida - indicou -, mas sem chegar a tocá-la. Segura o báculo com a outra mão. Sentes a energia que te transmite?
- Não - disse Jack, um pouco desconcertado. Victoria respirou fundo, procurando acalmar-se.
- Não está quente?
- Não mais do que eu.
Victoria fechou os olhos e tentou ordenar os pensamentos.
- Bem, tu és mais quente do que o resto das pessoas. Provável mente não o notas por causa disso. Tenta outra vez, concentra-te. Tens de sentir que o báculo irradia energia e calor e que to transmite através da mão.
Jack franziu o sobrolho e fechou os olhos. Sim, ali estava. Uma pequena corrente quente que lhe percorria os dedos e se espalhava pelas veias, braço acima. Mas aquele calor era amortecido pelo fogo do dragão.
- Por favor... - sussurrou Victoria.
Jack abriu ainda mais os dedos da mão que mantinha sobre o ventre de Christian. "Cura-te, maldito shek, não me faças isto agora..."
Subitamente, a ferida de Christian começou a sarar. com rapidez.
com demasiada rapidez. Victoria lançou uma exclamação de alegria, mas percebeu de imediato que alguma coisa estava mal: no centro da queimadura apareceu um ponto vermelho brilhante. Christian gemeu debilmente.
- Pára! - exclamou Victoria, alarmada.
Jack fechou a mão. O ponto vermelho desapareceu.
- Por pouco... por pouco queimava-lo outra vez - murmurou ela, a tremer, estreitando Christian nos braços. - O báculo não só canalizou a energia do ambiente, mas também o teu próprio poder de fogo!
Jack deixou-se cair no chão, extenuado.
- Vais ter de tentar tu.
Victoria engoliu em seco. Contemplou por instantes o rosto de Christian e acariciou-o, com ternura.
- Não posso deixar que morra - sussurrou. - Não posso. Mesmo que te tivesse matado mil vezes... não posso vê-lo morrer e continuar viva depois disso. Se acontecer alguma coisa, eu...
Não conseguiu continuar. Jack colocou uma mão no seu ombro, para a reconfortar.
- Eu sei. Vamos, vou ajudar-te a levantá-lo.
Os dois juntos ergueram Christian e levaram-no até ao quarto mais próximo. Deitaram-no na cama. Victoria continuava a olhar para ele, insegura.
- Não é uma ferida superficial - disse. - Mesmo que cicatrize a pele, os órgãos ficaram danificados, queimados pelo fogo de Domivat. Terei de lhe transmitir muita energia... durante muito tempo. Não sei se... - hesitou.
Jack fê-la levantar a cabeça para a olhar nos olhos.
- A tua luz está a voltar - disse. - É um pouco diferente... mas... creio que poderás fazê-lo, Victoria. É a sua única hipótese.
Ela anuiu. Deitou-se na cama, junto de Christian. Rodeou-lhe a cintura com o braço, com cuidado para não lhe tocar na ferida. Apoiou a cabeça no seu ombro. Mas antes de fechar os olhos, voltou a cabeça para Jack.
- Vais estar aqui quando acordar?
Ele sorriu. Sentou-se no peitoril da janela e cruzou os braços à frente do peito.
- O tempo que for preciso - respondeu em voz baixa.
Victoria sorriu por sua vez. Os seus olhos pareceram iluminar-se um pouco mais.
Então, foi deslizando lentamente para o seio de um sono profundo, reparador, enquanto a magia da Torre de Kazlunn a percorria por dentro e passava, através dela, para Christian, como uma torrente quente e renovadora que, desta vez, não arrastava consigo nada que não amor.
Jack ficou a observá-los, o shek ferido de morte, com o ventre queimado pela chama de Domivat, nos braços do unicórnio que estivera prestes a matá-lo e que agora procurava desesperadamente salvar-lhe a vida.
"Victoria, Victoria, como o amas", pensou, comovido. "E quase o mataste. Por mim."
Sentiu-se atordoado. Ele sabia até onde chegava o seu próprio amor pela rapariga. Lutara por ela, estivera quase a morrer por ela, sentira-se horrivelmente vazio em Umadhun sem ela. Estava disposto a dar tudo por Victoria. Perguntou-se, então, o que aconteceria se sentisse isso não apenas por uma mas por duas mulheres. Se, por exemplo, também tivesse amado Kimara da mesma forma que amava Victoria. "Teria enlouquecido", disse para si mesmo.
E compreendeu Victoria um pouco melhor. "É melhor que te safes, shek", pensou.
- O dragão voltou - disse Zeshak. As palavras arrastaram-se num tom tão gélido e letal que qualquer homem teria estremecido de horror. Ashran limitou-se a semicerrar os olhos.
- Eu sei - disse. - Confesso que não esperava que continuasse vivo. Mas isso explica muitas coisas. Explica, por exemplo, porque é que tudo se manteve tão calmo; porque é que os Seis pareceram não reagir à perda do seu herói.
- É pela profecia, não é? Os deuses protegem-no.
- Também protegem a criatura que esteve prestes a matá-lo - replicou Ashran, com um sorriso enigmático. - Embora te custe a crer nisso.
- Depois do que aconteceu hoje, poucas coisas me poderão surpreender. Não imaginaria nunca que um dos nossos protegeria um dragão.
Falou com profundo desagrado; mas Ashran continuava a sorrir.
- Vocês, os sheks, são criaturas surpreendentes. Tal como os dragões o foram. Ou os unicórnios.
Zeshak fechou as asas, aborrecido.
- Achas piada? Não terás vontade de rir quando se cumprir a profecia. O sorriso de Ashran tornou-se mais rasgado.
- Detecto em ti um certo respeito pela profecia. Isso, sim, é uma novidade.
Zeshak não respondeu. Apoiou a cabeça sobre os seus anéis e fechou os olhos, profundamente irritado.
- Ah, Zeshak, Zeshak, estás a começar a ficar nervoso. Já não consegues controlar a situação. Não sabes o que mais hás-de fazer. Kirtash acabou com a vida de Gerde
e eu aceitei que ficasse com a Torre de Kazlunn. Também permiti que o unicórnio continuasse com vida, porque Kirtash mo pediu. E agora perdemos uma torre, um unicórnio,
uma feiticeira e um híbrido de shek. E continuamos a ter o dragão.
- Foi onde nos levou a tua afeição por esse monstro.
- Sim, tenho uma certa afeição por ele, confesso. É único na sua espécie, por isso gosto de estudar a sua evolução, as suas reacções...
- É um monstro. Tão traiçoeiro como a mãe dele.
- Como uma das suas mães. Zeshak, devias ter acabado com a vida de Sheziss quando tiveste a oportunidade. Disse-te que as mães seriam um incómodo.
- Não tardarei a corrigir esse erro. Mas de que servirá? A tríada reuniu-se novamente. A profecia irá cumprir-se...
- Sim - cortou Ashran, pensativo; tinha cravado o seu olhar de prata no céu nocturno que se via da janela e onde as três luas brilhavam misteriosamente. - A profecia irá cumprir-se dentro de exactamente sete dias. Bonito número, não achas?
Zeshak ergueu-se, como que movido por uma mola.
- Sete dias? Tens a certeza?
- Sete dias. Dentro de sete dias, o dragão e o unicórnio virão aqui apresentar-se para a batalha. E a última oportunidade que temos de inverter a palavra dos Seis.
Zeshak semicerrou os olhos e sibilou baixinho.
- Em que estás a pensar? O Necromante suspirou.
- Não me agrada arriscar tudo numa só jogada, Zeshak, mas não me resta outro remédio. Sabes o que vai acontecer dentro de sete dias, não sabes Nessa noite... venceremos
a Resistência e os heróis da profecia, e obteremos o poder absoluto sobre Idhún... ou seremos derrotados nesta batalha.
- Batalha? - repetiu Zeshak.
Ashran voltou-se para ele e dirigiu-lhe um olhar frio.
- Mais uma batalha de uma guerra eterna, meu amigo. Mas não uma batalha qualquer. Temos tanto a ganhar... tanto a ganhar...
Fez-se um breve silêncio.
- Então, vais enfrentar o dragão e o unicórnio?
- E o meu filho, se sobreviver às feridas que o unicórnio lhe infligiu. Sim, virão os três... e, se as coisas correrem como espero, um deles morrerá.
- Só um?
- Basta-me um. Basta-me um para anular a profecia e acredita que já sei qual é o seu ponto fraco; sei como vencê-los.
- O ódio não acabou com eles. Ashran riu suavemente.
- Não, é certo. E não será o ódio que fará com que caiam aos meus pés. Eles não o sabem, mas desde que pisaram este mundo estive a observá-los, estive a submetê-los a provas cada vez mais duras. Tinha a esperança de que um deles morresse antes de chegarem até aqui, porém, até eu sei que a profecia acabará por se cumprir e que é inevitável que nos enfrentemos.
- Essas provas só os tornaram mais fortes.
- E, em certo sentido, mais vulneráveis. E que agora conheço-os. E sei como os derrotar. Mas eles continuam sem me conhecerem a mim.
- Tivemos tantas oportunidades. Tiveste o unicórnio nas tuas mãos por duas vezes.
Deixaste-o ir das duas vezes.
Ashran sorriu.
- Vejo que te preocupa muito a questão da rapariga. Para tua tranquilidade, dir-te-ei que ela faz parte do meu plano. Agora preciso dela viva.
Zeshak não disse nada, mas observou-o com um certo cepticismo. Ashran voltou a assomar à janela e contemplou as luas em silêncio.
- Victoria... - murmurou. - Meu unicórnio ferido. Depressa voltaremos a ver-nos, sim, e, embora ainda não o saibas, serás a chave para o meu triunfo absoluto sobre Idhún e a profecia.
Algo o percorria por dentro, algo puro e muito doce, inundando-o, reparando as suas feridas e expulsando a angústia e a dor.
Era a magia de Victoria. E ela...
Ela dormia profundamente nos seus braços.
Christian fitou-a, ainda confuso. Os dois encontravam-se deitados numa cama, num dos quartos da Torre de Kazlunn. O ambiente era-lhe familiar e muito real. "Estamos vivos", pensou.
Não percebia o que estava a acontecer. Mas Victoria estava ali, abraçada a ele, e estava a usar a sua magia para curar a ferida que ela mesma lhe causara. Além disso, o seu rosto reflectia paz e felicidade, numa expressão doce que Christian chegara a acreditar que não voltaria a ver.
- Victoria - sussurrou, mas ela não acordou.
- Está em transe - disse de repente uma voz junto à janela. Christian virou-se, alerta. A luz da tarde recortava uma silhueta que conhecia bem.
- Jack - murmurou. - Estás vivo. Então, não foi um sonho.
Ele sorriu. Christian reparou que tinha mudado. Parecia mais velho e mais moreno. O cabelo que prendia com uma fita atada à testa crescia-lhe em madeixas desordenadas, dando-lhe um aspecto feroz e rebelde. Mas o seu porte transmitia serenidade e autoconfiança, a par de uma ponderação que, por alguma razão, fez lembrar a Christian a atitude de alguns sheks, incluindo dele próprio.
- Pensei que te tinha matado. Jack inclinou a cabeça.
- É preciso mais do que um híbrido de shek para acabar comigo fez notar; mas não havia desafio nas suas palavras e sim uma espécie de brincadeira amistosa.
- Onde estiveste durante todo este tempo?
- No inferno - disse Jack após um momento de silêncio. Christian olhou para ele. Os olhos azuis do shek cruzaram-se com os olhos verdes do dragão. E ambos entenderam muitas coisas.
Naquele momento, Victoria agitou-se nos braços de Christian, ainda em sonhos.
- Vai acordar - disse Jack com suavidade.
- O que é que ela tem?
- Nada, só que teve de mergulhar num sono profundo para que a magia fluísse melhor.
- Então, ao recuperar-te a ti recuperou a sua magia.
- Ao recuperar-nos aos dois - precisou Jack. - Por momentos, pensámos que te íamos perder, mas tu também és um osso duro de roer.
- Há quanto tempo...?
- Estão há três dias inconscientes; tu, moribundo, e ela no seu transe curativo, aí, deitada ao teu lado. Não se separou de ti nem um único instante.
- Mas...
- Mas não penses que isso vai durar para sempre - cortou Jack, sorrindo. - Assim que estiveres melhor, espero que me cedas a sua companhia durante bastante tempo. Senti muito a falta dela, sabes?
Christian abanou a cabeça e esboçou um sorriso cansado.
- Aprendeste muito no inferno - comentou. - Já era altura.
- Aprendemos os três, cada um no seu inferno particular. Espero que isso nos ajude a seguir em frente. - A expressão do seu rosto tornou-se repentinamente séria. - Ashran sabe que estamos aqui.
Christian ficou tenso, mas Jack deteve-o com um gesto.
- Para já estamos a salvo. vou explicar-te a situação ao pormenor quando estiveres um pouco melhor, mas agora tens de te recuperar completamente ou não nos serás de grande ajuda. Além disso - acrescentou, sorrindo -, calculo que Victoria não tardará a acordar. Por isso, é melhor deixar-vos a sós para que façam as pazes. Christian sorriu novamente.
- Jack - chamou-o, quando ele estava já à porta. - Obrigado. Jack fez um gesto de despedida e saiu do quarto.
Victoria acordou logo de seguida. Ergueu os olhos, um pouco aturdida, e deparou com os olhos de Christian. Sorriu.
- Olá - sussurrou.
O shek retribuiu o sorriso. Os olhos de Victoria tinham tornado a ser luminosos, como outrora, e transbordavam amor. Christian afastou-lhe o cabelo da cara com a ponta dos dedos, para poder vê-la melhor.
- Olá - disse apenas.
Victoria emitiu um som parecido com um suspiro. Pestanejou várias vezes para acordar.
- Como estás? - perguntou-lhe então.
- Bem - respondeu ele -, tendo em conta como estava da última vez que te vi.
Ela sorriu. Ergueu-se um pouco, afastando os lençóis, e levantou a camisa de Christian para poder examinar a sua ferida. O jovem estremeceu quando os dedos de Victoria roçaram a sua pele com infinita ternura.
- A espada queimou-te por dentro - disse ela com suavidade. Demorei muito a conseguir regenerar tudo o que o fogo destruiu. Se não fosses tão frio por natureza, terias ardido instantaneamente.
Os olhos de ambos encontraram-se.
- Não queria matar-te - disse Victoria. - Não queria magoar-te. Mas sentia que não tinha opção, entendes?
Christian acenou com a cabeça.
- Cravaste-me uma espada no ventre - disse. - Eu cravei-te uma espada no coração. Tendo isso em conta, acho que não saí muito prejudicado.
- Morreria antes de te matar - sussurrou ela. - Mas já estava morta, de alguma maneira.
- Eu sei - disse Christian em voz baixa. - Anda cá.
Ela aproximou-se mais e Christian viu que o fazia sem hesitar, sem dúvidas, sem temor. Olhou-a nos olhos e viu-a mais madura, mais sábia. Os dois sorriram, quase em simultâneo. Ambos se sentiam profundamente aliviados por o pesadelo ter enfim terminado; tanto que não fizeram recriminações pela dor que tinham causado um ao outro. Queriam recuperar o tempo perdido, reconstruir o sentimento que os tinha unido, superar a profunda brecha que se abrira entre eles nos últimos tempos... em suma, fazer as pazes, como Jack dissera.
Quando chegou a essa conclusão, Christian entendeu também que não queria perder tempo com palavras.
E não conseguiu evitá-lo. Beijou-a.
Num dos pisos superiores da torre havia um miradouro. Todos os edifícios mais emblemáticos de Idhún tinham um, um vasto terraço com sacada que na realidade servia para que os dragões pudessem pousar em algum lado quando chegavam de visita. Também na casa de Limbhad existia um, muito semelhante ao da Torre de Kazlunn. Jack reprimiu um suspiro de nostalgia e esforçou-se por se centrar no presente.
Avançou com passos decididos até Sheziss, que se havia enroscado sobre si mesma junto à balaustrada. Aquele miradouro era um dos poucos espaços do edifício onde não se sentia apertada.
- Vai escapar desta - informou Jack, sentando-se ao seu lado, sobre o balaústre.
Sheziss não fez qualquer comentário. Nem sequer se mexeu.
Continuava com os olhos fechados, como se tudo aquilo não lhe interessasse minimamente. Mas Jack conhecia-a o suficiente para saber que estava a escutar com atenção.
- Logo que se sentir um pouco melhor - prosseguiu Jack - notará a tua presença. Vais apresentar-te a ele?
Após um momento de silêncio, Sheziss respondeu:
- Para quê?
- Então, vais dar-te ao trabalho de te esconderes?
Sheziss ergueu a cabeça e fitou-o, semicerrando os olhos. Jack sorriu. Tinha-a apanhado. Se respondesse que sim, mostraria que se importava com Christian, por pouco que fosse. Se respondesse que não, mais cedo ou mais tarde teria de o enfrentar. E Christian faria perguntas.
A serpente esboçou um breve sorriso.
- Porque não? - respondeu. - Ando escondida há muito tempo. Jack abriu a boca, mas as palavras não saíram.
- Queres mesmo que me veja? Ou, pior ainda... queres que eu o veja a ele? Podia sentir-me tentada a fazer com ele o que devia ter feito há quinze anos e não fiz.
- O quê?
- Matá-lo, para acabar por fim com a sua penosa existência. Jack sentiu que se lhe secava a boca.
- Não podes estar a falar a sério.
Sheziss voltou a deitar-se e a fechar os olhos.
- Olha para mim, Sheziss - protestou Jack. - Olha bem. Maldição! Depois de tudo o que passámos juntos... ainda me consideras um monstro? Se a resposta é não, então também não tens porque continuar a ver nele um monstro.
Sheziss não se mexeu. Jack apoiou as costas contra a parede, suspirando exasperado.
- Importa-te assim tanto? - perguntou ela então. Jack reflectiu.
- Suponho que sim - disse por fim. - Toda a gente quer matá-lo, humanos, sheks... apenas por ser o que é, e no fim de contas ele não é mais do que aquilo que fizeram dele. Em muitos sentidos é como eu. Somos muito diferentes, sim, mas tão parecidos... que até partilhamos os mesmos sentimentos pela mesma rapariga. Além disso, depois de tudo o que me ensinaste, já não consigo vê-lo como um inimigo. Afinal, as coisas podiam ter sido ao contrário. Os dragões poderiam ter exterminado os sheks. Ele poderia ter sido o último shek. E talvez me tivessem criado e treinado para o matar, a ele e a qualquer um que o escondesse ou protegesse. Qual é a diferença? - Ergueu-se, resoluto. Maldição, ainda o odeio. Mas não consigo evitar pensar que poderia ter sido eu. Que os nossos destinos não são muito diferentes.
Sheziss observou-o, mas não disse nada.
Jack assomou ao miradouro. Diante dele abria-se um mar infinito e, aos seus pés, um precipício de uma altura assustadora. A maré estava baixa e a água que batia nas rochas parecia encontrar-se muito longe.
Mas Jack não sentiu vertigens. Afinal de contas, era um dragão.
- Quanto tempo nos resta? - perguntou a Sheziss, mudando de assunto.
Ela ergueu-se calmamente e deslizou para junto dele.
- Não muito - respondeu. - Esta torre é de facto nossa, e tanto os feiticeiros como os szish que aqui se encontram são também nossos. Não são muitos; contei-os. Quatro feiticeiros e duas dúzias de soldados szish. Os feiticeiros lutarão a favor de Kirtash porque vai proteger o último unicórnio. Os szish irão obedecer a mim e também a Kirtash, porque somos os sheks mais próximos e foram ensinados a comportar-se dessa forma. Mas não são suficientes. Ah, Jack, se Ashran está a demorar tanto a atacar é porque o teu regresso o apanhou de surpresa. Entregou a Tone de Kazlunn ao seu filho, perdoou a vida ao último unicórnio. Estava certo da sua vitória. Tem toda a sua gente concentrada na guerra de Nandelt. Enquanto retira as suas tropas para Kazlunn, podemos ir a Drackwen atacá-lo para que a profecia se cumpra. É por isso que não veio ainda à nossa procura.
- Porque vai preferir chamar os sheks para que defendam Drackwen em vez de nos atacar?
Sheziss assentiu.
- Nesta torre somos fortes, Jack. Ele é forte na sua torre. De modo que prefere ficar lá e redistribuir a sua gente, estudando a situação agora que regressaste, em vez de se lançar num ataque às cegas. Por outro lado, não lhe convém que corra o boato de que voltaste. Isso animaria os rebeldes de Nandelt e, se as tropas se retirassem em direcção a Kazlunn, eles suspeitariam de alguma coisa. Podiam inclusivamente persegui-los e atacá-los pela retaguarda. Desta forma Ziessel, Eissesh e os seus iriam encontrar-se numa situação delicada, entre os rebeldes de Nurgon e os renegados da Torre de Kazlunn - acrescentou com um largo sorriso.
- Já percebi.
- Mas já se passaram três dias. Embora Ashran não aueira precipitar-se, por esta altura já deve ter agido nalgum sentido. Ou, pelo menos, tem um plano.
Jack reflectiu.
- Tenho de me pôr em contacto com Alexander - disse. - Tenho de lhe dizer que estou bem. Que estamos os três bem. Se a Resistência...
Interrompeu-se, porque Sheziss se ergueu, alerta, e semicerrou os olhos. Jack compreendeu o que estava a acontecer e não fez nenhum comentário quando ela deslizou por cima da balaustrada, abriu as asas e voou dali para fora.
Tinha acabado de desaparecer em direcção ao outro extremo da torre quando Christian e Victoria chegaram ao miradouro. Ambos estavam com um óptimo aspecto, embora o shek continuasse pálido e se apoiasse em Victoria para caminhar.
- com quem estavas a falar? - perguntou-lhe a rapariga, sorridente.
- Comigo mesmo - respondeu Jack, devolvendo-lhe o sorriso.
Sentiu o olhar inquiridor de Christian. Susteve-o, sereno. Percebeu a ligeira surpresa do shek quando se deparou com a sua barreira mental. Sheziss ensinara-o a deixar a mente em branco para resistir às explorações telepáticas dos sheks; obviamente, qualquer shek poderia desfazer aquelas defesas, obrigá-lo a revelar tudo, se se dispusesse a isso, mas Jack duvidava que Christian chegasse a tanto. Sentiu-o retirar-se da sua mente.
Nenhum dos dois fez qualquer comentário. Jack continuava a sorrir afavelmente; Christian olhou-o com um novo respeito e dirigiu-lhe o seu habitual sorriso.
Victoria estendeu a mão que tinha livre e Jack pegou nela, de bom grado. Aproximou-se mais dela e passou-lhe um braço pela cintura. Os três contemplaram juntos o primeiro dos sóis, que descia lentamente sobre o mar.
- Jack - disse então Victoria. - Como chegaste até aqui? Onde estiveste este tempo todo?
Parecia que ainda não acreditava. Também Christian ergueu a cabeça, intrigado.
Jack demorou um pouco a responder.
- A espada não me matou - disse por fim. - Não tocou no meu coração.
Cruzou um olhar com Christian; mas os olhos de gelo do shek continuaram impenetráveis.
- Mas caíste... - Victoria estremeceu e desviou o olhar; a simples lembrança de Jack a cair no fosso de lava arrepiava-a e enchia o seu coração de angústia.
Jack voltou-se para Christian.
- Não sabes que lugar é aquele? O shek abanou a cabeça.
- Nunca imaginei que fosse mais do que uma fenda de fogo líquido respondeu com calma. - É evidente que não ou não terias regressado para contar. E, ainda para mais, inteiro. Estou impressionado.
Victoria dirigiu-lhe um olhar de reprovação. Mas não havia troça nas palavras do jovem. Jack sorriu.
- Essa fenda de fogo líquido oculta uma Porta interdimensional, Christian. Estive... - Hesitou antes de acrescentar: - Estive noutro mundo.
Victoria sufocou uma exclamação de surpresa.
- Foi por isso... Foi por isso que senti que a tua vida se apagava! Que tive a sensação de que já não existias no nosso mundo. Foste para muito longe... tão longe
que eu não conseguia sentir-te.
- Para a Terra? - quis saber Christian.
Jack negou com a cabeça. O olhar do shek estudou-o atentamente. Reparou na sua indumentária, na postura e até pareceu detectar nele algo invisível aos olhos dos outros. Franziu levemente o sobrolho.
- Estou a ver - disse com suavidade. - Então é ainda mais surpreendente que tenhas regressado vivo, Jack.
- Não estive sozinho - respondeu ele em voz baixa. Mas não acrescentou mais nada.
Tanto Christian como Victoria perceberam que não daria mais pormenores. Victoria pôs-se em bicos dos pés para o beijar na face, com carinho.
- O importante é que estás de volta - disse em voz baixa.
- Vieste de lá transformado em dragão? - perguntou então Christian.
- Foste visto por muita gente? O meu pai não tardará a vir à nossa procura.
Jack olhou para ele.
- Estás com ele ou connosco? Christian abanou a cabeça, sorrindo.
- Já devias saber a resposta. Jack assentiu.
- Estás com ela - compreendeu, indicando Victoria. - E, agora que voltei, ela está outra vez em perigo. De modo que vais virar-te contra Ashran e os sheks, pelo que podemos considerar-te de novo um membro da Resistência. A não ser, claro... que decidas protegê-la acabando com a minha vida.
Os olhos de Christian faiscaram ligeiramente.
- Sabes o que estás a dizer? - ciciou. - A tua morte quase a matou. Achas que voltaria a passar por isso?
Victoria respirou fundo e apoiou a cabeça no ombro de Christian.
- Estás com ela - assentiu Jack, sorrindo. - Se estás com ela, estás comigo. Os três juntos. Se cair um, caímos os três.
"A tríada", pensou, recordando as palavras de Ha-Din.
Victoria abanou a cabeça e afastou-se deles para os olhar fixamente. Ali, junto à balaustrada, com o mar e os sóis poentes, pareceu aos dois mais bela do que nunca.
- Estou convosco - anunciou ela. - Aconteça o que acontecer, acima de tudo. E, se tivermos de lutar, lutarei convosco, por vocês. Pelos dois. Sabem disso, não sabem?
Jack esboçou um sorriso cansado.
- Sabemos, Victoria. E oxalá não tivesses de lutar. Mas nascemos para esta batalha. Criaram-nos para esta batalha. Quer queiramos quer não, temos de a travar.
- E mais vale que ganhemos desta vez - acrescentou Christian, sombrio.
A ULTIMA BATALHA
- Este cerco não faz sentido - explodiu o rei Kevanion. - Podemos passar anos a cercar a Fortaleza de Nurgon; enquanto aquele escudo estiver ali e enquanto tiverem o bosque de Awa por trás, não conseguiremos conquistá-la.
Ziessel não respondeu. Não o estava a ouvir. Apesar de o rei de Dingra pensar que a shek o via como um igual, o certo era que ela mal prestava atenção aos seus balbucies. Os humanos eram uma raça estúpida em geral, mas alguns excediam-se e aquele Kevanion era um deles.
Continuava aborrecida por ter perdido Nurgon, porque aqueles rebeldes a tinham derrotado no rio. Mas dias antes tinha recebido uma informação através da rede telepática dos sheks, uma informação que tinha melhorado bastante o seu humor.
- As minhas tropas estão há quase três meses acampadas em torno de Nurgon - continuava o rei a lamentar-se. - E durante este tempo todo, os rebeldes têm-se dedicado a reerguer a Fortaleza, a fazer o bosque crescer em volta deles e a construir mais daquelas máquinas voadoras. As aldeias da região já não podem continuar a alimentar os meus. Estão a ficar nervosos, começam a queixar-se...
- Então prescinde dos soldados humanos - replicou Ziessel, aborrecida. - Os sziih não causam problemas.
- A questão não é essa. Embora os generais consigam manter a disciplina, já não tenho com que alimentar tanta gente! Recebi um mensageiro do rei Amrin. Depressa se apresentará aqui também com os seus. Mais lhes valia ficar em Vaníssar.
- Não, é aqui, em Dingra, onde têm de estar - replicou Ziessel, que sabia, como todos os sheks, que a decisão de Amrin de finalmente abandonar Vanissar lhe fora ditada por Eissesh, que por sua vez tinha recebido instruções do próprio Zeshak. Ergueu os olhos para o céu nocturno. - Dentro de exactamente quatro dias, rei Kevanion - prosseguiu, com suavidade -, deixarás de te preocupar com o abastecimento das tropas, se causam problemas, se se aborrecem... Dentro de quatro dias, rei Kevanion, terás
apenas de te ocupar em conduzir o teu exército à vitória.
- Ou até ao escudo de Awa, não? - replicou Kevanion, acidamente.
- Humanos... sempre tão obtusos - suspirou Ziessel. - Achas mesmo que te aconselharia a enviar as tuas tropas a estatelar-se contra o escudo? Não, Kevanion. Confia em Ashran, o teu senhor. Acredita nele e nas minhas palavras. Dentro de quatro dias, quando as três luas se erguerem no firmamento, já não haverá escudo que proteja o bosque de Awa nem a Fortaleza de Nurgon. Porque, nessa altura, Ashran tê-lo-á destruído.
Victoria acordou a meio da noite sobressaltada e com o coração a bater descompassadamente. Tinha sonhado, de novo, que Jack caía no abismo devfbgo, com a ferida produzida por Haiass a adornar o seu peito como uma flor de geada. Procurou acalmar-se. Jack dormia profundamente ao seu lado, estava bem, estava a salvo. Suspirou. Sabia que aquela imagem continuaria a povoar os seus pesadelos durante muito, muito tempo, e que a lembrança daqueles dias negros nunca abandonaria por completo o seu coração.
Deitou-se novamente, aninhando-se junto a ele tanto quanto pôde, e fechou os olhos. Era incrível que pudesse finalmente descansar numa cama em condições, num quarto em condições. Sorriu para si. Embora na Torre de Kazlunn houvesse quartos de sobra, a simples ideia de dormir longe de Jack naquela noite parecera-lhe insuportável. Abriu os olhos para observar o jovem à luz das três luas. Adormecera de barriga para cima e no seu peito nu via-se claramente a cicatriz da ferida feita por Haiass. Victoria percorreu-a com a ponta dos dedos, estremecendo ao notá-la tão fria sob a sua pele. Sabia que, embora a espada não tivesse tocado no seu coração, aquela era uma ferida mortal da qual Jack não teria conseguido recuperar sozinho. Alguém o curara, alguém o ajudara a regressar, mas o rapaz não quisera revelar a sua identidade. E, embora Victoria tivesse a certeza de que esse alguém era uma mulher, não lhe perguntara nada a esse respeito. Se o rapaz não queria contar, ela não ia forçá-lo a revelá-lo.
Olhou-o intensamente. Jack tinha mudado. Agora era mais velho, mais maduro e tinha segredos para ela, quando antes lhe teria confiado tudo sem reservas. Mas Victoria sabia que o seu amor continuava ali, intacto, mais sólido do que nunca. E estava novamente junto dela. Parecia-lhe demasiado bom para ser verdade.
Acariciou-lhe o cabelo e o rosto. Não ia acordar, pois tinha o sono muito profundo. Olhou para ele a dormir e, subitamente, sentiu uma necessidade urgente de o beijar, de o abraçar com todas as suas forças e de lhe dizer o quanto o amava. Mas sabia que, por muito adormecido que estivesse, aquilo, sim, iria acordá-lo. E suspeitava que Jack não dormia tão bem há muito. Precisava de descansar. Na realidade, precisavam os três de descansar.
Sorriu ao recordar os momentos que tinham passado juntos naquela noite. Jack tinha respeitado o seu desejo de avançar devagar, de não passar ainda dos beijos e das carícias; mas os seus beijos tinham sido mais apaixonados do que nunca e as suas carícias muito mais audazes. Corou só de pensar nisso.
Suspirou e levantou-se em silêncio. De repente sentia-se cansada, muito cansada. Tinha acumulado bastante tensão nos últimos tempos e agora sentia que lhe doía o corpo todo. Teria dado tudo por um bom banho quente.
Lembrou-se então de Jack lhe contar que havia umas termas na cave da torre, uma piscina talhada na rocha que se enchia de água do mar quando a maré subia. A magia conservava a rocha aquecida e a água ficava agradavelmente quente. Victoria sorriu ao recordar que Jack comentara isto sem grande interesse; ele preferia tomar banho em água fria, mas a praia de grandes penhascos que rodeava a torre não era o lugar mais apropriado para tal. De forma que não o incomodara muito ter de utilizar as termas da torre.
Victoria levantou-se em silêncio e pôs nos ombros uma capa macia que tinha encontrado no armário de um dos quartos da torre. Descobrira outro cheio de roupa feminina, mas não lhe tocara, nessa não. Aquelas peças subtis e delicadas, que insinuavam mais do que o que pretendiam ocultar, evocaram-lhe alguém que já não existia. Por respeito, Victoria deixara tudo como estava naquele quarto.
Saiu da divisão pé ante pé; tencionava estar de volta antes que Jack acordasse. Desceu rapidamente as escadas. Encontrou-se numa esquina com um szish, que a cumprimentou com uma inclinação de cabeça. Victoria retribuiu o cumprimento.
Havia menos gente na torre do que quatro dias antes, quando ela aí chegara para matar Christian. Nem ele nem Jack tinham comentado nada a esse respeito, mas Victoria sabia que tinham feito uma selecção entre os szish e os feiticeiros que guardavam a torre. Primeiro tinha sido Jack, enquanto
Christian e ela dormiam o seu sono curativo; encarregara-se de se desfazer de todos aqueles que continuavam a ser fiéis a Ashran. Victoria sentiu um calafrio. Não só porque Jack tinha aprendido a matar a sangue-frio, mas também porque pressentia que um poder misterioso o protegia. Caso contrário, não teria conseguido controlar sozinho toda a torre.
Depois, Christian fizera uma segunda selecção. Também não tivera piedade para com aqueles nos quais antevira um indício de rebelião.
Victoria compreendia que estavam em guerra e que na guerra não havia lugar para a compaixão. Além disso, eles apenas procuravam protegê-la. Estava convencida de que ela mesma teria sido capaz de matar qualquer um que ameaçasse as suas vidas. Mesmo assim, preferia não pensar nisso. Talvez fosse essa a razão por que Jack e Christian não tinham falado do assunto.
Não obstante, Victoria notara perfeitamente que havia menos gente. E calculava o que lhes tinha acontecido.
Lembrou-se então de Yaren, o semifeiticeiro a quem dias antes entregara uma magia suja e negra, impregnada de dor e angústia. Tinham-no procurado nos arredores da torre, mas não o encontraram. Victoria sentia pena dele, mas apesar de tudo não conseguia sentir-se culpada. Fizera o que tinha de fazer, e ponto. Contudo, não podia deixar de se perguntar onde estaria Yaren, nem o que faria com aquele dom que, ao ter sido entregue na altura errada, se tornara uma maldição para ele.
Por fim chegou à cave e entrou nas termas. O ambiente estava carregado de vapor, que flutuava sobre a piscina de água do mar. Victoria ficou aliviada ao ver que não se encontrava ali ninguém, e que a piscina estava quase cheia. Sabia que se esvaziava quando a maré descia.
Despiu-se rapidamente e desceu pela escada. "vou só molhar-me um pouco e sair", pensou. A água, quente e curiosamente aromática, relaxou-lhe os músculos e suavizou-lhe a pele. Victoria desfrutou do banho; quando saiu, pouco depois, sentia-se muito melhor. Envolveu-se na capa e sentou-se na borda da piscina. Aproximou-se da água para ver o seu reflexo.
Também ela tinha mudado. As feições tinham-se definido mais e perdera os últimos traços infantis; os olhos estavam maiores e mais belos do que nunca, e o cabelo crescera, caindo-lhe pelas costas em ondas indomáveis.
Mas Victoria não reparou em nada disso. Passou os dedos pelo pescoço, onde se encontrava ainda uma marca rosácea, fruto de um dos beijos ardentes de Jack. Pestanejou, perplexa, e meneou a cabeça, sorrindo, um pouco envergonhada. Não havia dúvida de que o jovem dragão sentira muitas saudades suas.
"Também eu senti muito a tua falta, Jack", pensou. "Tanto que enlouqueci. Tanto que estive a ponto de matar o teu assassino. Se ele tivesse morrido, teria morrido com ele; mas na altura isso não me importava."
Abanou a cabeça, procurando afastar aqueles pensamentos da sua mente. Levantou-se em busca da roupa, mas estacou, alerta.
A temperatura ambiente tinha baixado um pouco. Victoria suspirou e envolveu-se um pouco mais na capa.
- Christian - chamou-o com suavidade.
O jovem deixou-se ver entre a nuvem de vapor de água, apenas uma sombra recortada na parede em que estava apoiado.
- É falta de educação espiar uma senhora quando toma banho disse ela, sorrindo.
- Também é muito interessante - replicou ele calmamente. Victoria voltou a sentar-se na borda da piscina e esperou que ele se aproximasse. Como sempre, sentiu um calafrio quando o sentiu perto de si.
Estava quase recuperado da ferida que Victoria lhe infligira, mas ainda se sentia fraco, pelo que os três continuavam ali, na torre. Se tinham de enfrentar Ashran, decidira Jack, era melhor que estivessem todos em perfeitas condições.
- Estás com melhor aspecto - disse ela. - Embora estejas um pouco pálido.
- E perdi reflexos. Noto que estou desajeitado e lento. - Victoria fitou-o um pouco surpreendida; parecera-lhe que ele continuava a mover-se com a agilidade e leveza que o caracterizavam. - Mas espero estar em forma brevemente.
Ela suspirou. O seu rosto ensombrou-se ao relembrar os últimos tempos.
- Não quero ter de voltar a passar por isto - murmurou. Christian soube exactamente a que se referia. Não se manifestou.
- Voltei a ter a oportunidade de te matar - prosseguiu Victoria. Tive a tua vida nas minhas mãos. Todavia, adiei a tua execução para te dar o beijo que me tinhas pedido.
Christian sorriu.
- Mesmo assim, cravaste-me a espada.
- Podia tê-la cravado no coração - observou ela, estremecendo. Podias estar morto.
- Por acaso não é o que mereço? - perguntou ele com suavidade; Victoria olhou para ele, muito séria. - Há tanta gente que me quer morto - prosseguiu ele - que muitas vezes tenho a sensação de que não tardarão a conseguir o que querem.
- Só por cima do meu cadáver - replicou ela em voz baixa; disse-o com um tom tão frio e ameaçador que fez com que o próprio Christian sentisse um arrepio. - Sei tudo o que fizeste, todo o mal que causaste; sei que muitos dos que te odeiam têm motivos para tal. - Olhou-o fixamente. - Apesar disso, não consigo deixar de te amar e agirei em conformidade. Não permitirei que nada nem ninguém te magoe.
Christian não respondeu. Também não se mexeu nem fez qualquer gesto. Sustinha o seu olhar com gravidade, e os seus olhos de gelo não denunciavam os seus sentimentos.
- No entanto - acrescentou Victoria -, se voltares a magoar Jack, passarei a ser uma dessas pessoas que te querem ver morto.
Disse-o tranquilamente, mas os seus olhos escureceram por momentos e a voz tornou-se um tanto fria e desumana; Christian percebeu que a criatura negra, sedenta de vingança, ainda se aninhava num recanto da alma de Victoria e que a cólera do unicórnio ferido, uma cólera que podia chegar a ser tão terrível como a de um deus, voltaria a aflorar contra qualquer um que lhe arrebatasse um ser amado.
- Se voltares a magoar Jack - repetiu ela, com suavidade -, eu mesma me encarregarei de acabar com a tua vida. E desta vez não haverá beijo de despedida nem espada cravada no ventre. Se voltares a tocar em Jack, mato-te.
Christian sabia que ela estava a falar a sério. Recordou uma noite em Seattle, fazia algum tempo, em que ele próprio pusera um punhal na mão de Victoria, lhe sugerira que acabasse com a sua vida e ameaçara matar Jack. Apesar de tudo, na altura ela não fora capaz de utilizar aquele punhal. Christian contara com isso. Não precisava de a submeter àquele teste para conhecer os sentimentos que ela albergava dentro de si; sabia que eram suficientemente intensos para deter a mão que o tentasse matar.
Nessa época ele já o sabia, mas Victoria ainda não. A prova do punhal destinara-se apenas a ela mesma. A demonstrar-lhe o quão apaixonada estava, antes mesmo que a jovem tivesse consciência disso.
Mas naquele momento, nas termas da Torre de Kazlunn, muito tempo depois, Christian compreendeu que, embora o amor de Victoria por ele fosse mais sólido e intenso do que nunca, o seu ódio podia atingir as mesmas proporções.
"Se voltares a tocar em Jack, mato-te", dissera ela. Parecia uma ameaça, mas nem sequer o era. Tratava-se, simplesmente, de um facto óbvio, inevitável, inquestionável.
- E depois morrerás comigo - acrescentou Christian.
- E depois morrerei contigo - assentiu Victoria com suavidade. Sobreveio um breve silêncio.
- Não posso permiti-lo - disse ele então. - Não voltarei a fazer mal a Jack.
Ela sorriu-lhe com doçura. A escuridão foi lentamente desaparecendo dos seus olhos.
- Não temo a morte - prosseguiu Christian. - Mas não quero voltar a fazer-te sofrer dessa maneira. Tu sabes que és muito importante para mim.
- Sei - sussurrou ela. - E sabes que sinto o mesmo.
Houve um breve instante de incerteza. Então, como que atraídos por um íman invisível, aproximaram-se um do outro... um pouco mais. Ficaram em silêncio, muito juntos mas sem chegarem a tocar-se.
-Não obstante - reflectiu Christian -, se alguém tem de me matar, prefiro que sejas tu ou até mesmo Jack. Mais ninguém.
- Também não vou permitir que Jack te magoe - disse Victoria em voz baixa, e Christian surpreendeu-se ao detectar a mesma ameaça fria nas suas palavras.
- Se ele me matasse... o que farias? - sondou. Ela não respondeu de imediato.
- És o outro homem da minha vida - limitou-se a dizer, citando as palavras que o shek lhe dirigira tempos antes, no bosque de Awa. Perder-te seria para mim o mesmo que perder Jack. Agiria da mesma maneira. Devias sabê-lo.
Christian sorriu, pensando que agora era ela quem lhe dava lições, quem deixava as coisas claras e estabelecia as bases da sua relação. Até aí tinha sido ao contrário.
- Pelos vistos, o melhor para os três será que ninguém perca ninguém - observou.
Victoria respondeu com uma gargalhada tão cristalina como os ribeiros das montanhas. Olhou-o carinhosamente, e Christian voltou a ver nos seus olhos a luz de sempre.
Sentiu-se tão reconfortado que lhe dirigiu um sorriso rasgado. Victoria apoiou a cabeça no seu ombro, com um suspiro, e fechou os olhos por um instante, deixando que a presença do rapaz enchesse a sua alma. Christian não se mexeu.
Olharam demoradamente para a água, em silêncio. Então, Victoria afirmou, já com a voz desprovida daquele timbre desumano:
- Quero perguntar-te algo. O que aconteceu a Gerde?
Ouvira rumores de que Ashran lhe entregara a chefia da torre antes da chegada de Christian.
- Matei-a - respondeu ele com naturalidade. Victoria já o previa. Respirou fundo.
- Estava apaixonada por ti. Christian encolheu os ombros.
- Nunca lhe correspondi, e ela sabia disso.
- Mas estiveste com ela, não estiveste? Na noite em que... na noite em que Ashran me utilizou - concluiu em voz baixa.
Christian olhou para ela.
- Já calculava - sorriu Victoria perante a sua resposta muda. - Não sou tão ingénua quanto pensas. Diz-me, não significou nada para ti?
- Sabes que não, Victoria. Porque é que perguntas?
- Amas uma mulher e depois mata-la. Assim... com tanta facilidade. -Nunca a amei. De qualquer forma, ela ter-te-ia matado se pudesse.
- Eu sei, mas... não sou capaz de a odiar.
- Eu também não a odiava. Simplesmente era-me indiferente. E deixei-o sempre bem claro.
- Eu sei. - Levantou-se para se ir embora. Ao passar atrás dele, colocou uma mão sobre o seu ombro e sussurrou-lhe ao ouvido: - Se te custa tanto amar, se para ti não é mais do que prazer, não devias voltar a passar a noite com uma mulher que esteja apaixonada por ti. Vais partir-lhe o coração.
Christian agarrou-a pelo pulso e reteve-a ao seu lado. Olhou-a nos olhos.
- Também tu estás apaixonada por mim - observou.
- Pois estou - sorriu Victoria. - Mas não te convidei para passares a noite comigo.
- Ainda não. Continuo à espera.
- Partias-me o coração depois?
- Sabes que não me és indiferente. Deixei isso bem claro desde o início.
Victoria quis retirar-se, mas ele não a deixou. Puxou-a para si e beijou-a suavemente. Victoria tomou então consciência, incomodada, de que não tinha nada por debaixo da capa. Afastou-se dele, aturdida, com o coração a palpitar com força. Os braços de Christian rodearam-na para a manter junto a si.
- Estive agora mesmo com Jack - advertiu ela; estremeceu e deixou escapar um breve gemido quando os lábios dele lhe beijaram o pescoço com delicadeza, passando também pela marca que Jack lhe deixara. - Suponho que, como tu próprio dizes... tresando a dragão.
- Eu sei - sussurrou-lhe ele ao ouvido. - Faz parte do teu encanto. Victoria sorriu por sua vez. Soltou uma exclamação, alarmada, quando sentiu as mãos dele a explorar o seu corpo lenta e suavemente.
- O que estás a fazer?
Christian deteve-se por um momento para cravar nela os seus olhos azuis.
- A aproveitar os meus momentos a sós contigo. Enterraste-me Domivat no ventre; creio que mereço uma compensação.
- O quê? - exclamou Victoria, sem acreditar no que ouvia. - Não mataste Jack por pouco! Já para não falar do facto de me teres entregado ao teu pai para que me torturasse!
- Então compensemo-nos mutuamente - replicou Christian, insistindo. - Acredita que não te vais arrepender.
Beijou-a outra vez. Ofegante, Victoria afastou-o de si com suavidade.
- Pára, por favor. Não estás a perceber...
- Estou sim - respondeu ele, olhando-a nos olhos. - Sei que queres que Jack seja o primeiro a amar-te, quando chegar o momento.
Victoria ficou petrificada.
- Não... ainda não tinha decidido.
- Tinhas, sim.
Victoria respirou fundo e apoiou as costas na parede. Christian afastou-se dela, dando-lhe a distância que pedira.
- Tens razão - sussurrou. - Na verdade, não tinha decidido, mas... no fundo, é o que quero. Não é que te ame menos do que a ele. É só que...
- Que para essa primeira vez preferes alguém que possa dar-te o carinho, a compreensão e a confiança de que necessitas para te sentires segura. E ele não deixou de ser o teu melhor amigo. Vais sentir-te mais à vontade com ele.
Victoria não se surpreendeu por ele a entender tão bem. Já estava acostumada.
- Também quero estar contigo. E desejo-o tanto que às vezes me dá medo, porque não te conheço tanto como gostaria. Sinto que ainda tenho um longo caminho a percorrer contigo.
- Eu sei - sorriu Christian. - vou esperar tranquilamente pela minha vez; já te disse que não tenho pressa. Além disso - acrescentou -, não me sinto em segundo lugar. Por exemplo, sei que fui o primeiro a beijar-te. Nisso adiantei-me a Jack. E a qualquer outro.
Victoria ficou estarrecida.
- Como...? - começou, boquiaberta. - Como sabes?
- Que fui o primeiro a provar o sabor dos teus lábios? - Ele olhou-a intensamente. - Sei. Ou estou enganado?
Victoria desviou o olhar com um sorriso tímido.
- Sim, foste o primeiro - disse em voz baixa, e o seu coração acelerou novamente ao recordar aquela noite, num parque de Seattle, quando fora ao encontro do seu inimigo; quando tinha sido incapaz de o matar e em troca ele lhe roubara um beijo. O seu primeiro beijo.
- De qualquer forma - disse Christian, reaproximando-se dela -, continuo a achar que nada me impede de desfrutar um pouco da tua companhia. Respeitando os limites que quiseres impor, claro.
Ela sorriu. Corou ligeiramente e baixou a cabeça quando disse:
- Há mais - sussurrou e engoliu em seco. - A tua presença... o teu contacto... deixam-me louca - confessou. - Se voltares a acariciar-me como fizeste agora, não vou aguentar - acrescentou, corando ainda mais.
- Eu sei - respondeu ele, sorrindo enigmaticamente. - Conto com isso. Mas eu, sim, consigo manter o controlo e já te disse que respeitarei os teus limites. vou só até onde quiseres. Confias em mim?
Ela olhou-o demoradamente.
- Posso confiar em ti?
- Não devias - replicou ele, muito sério. - Mas podes.
Victoria ficou perdida no seu olhar. Deixou que Christian se aproximasse, a beijasse, a abraçasse de novo e começasse a acariciá-la. Estremeceu nos seus braços. Fechou os olhos e deixou-se levar. Uma parte dela ainda temia Christian, o assassino impiedoso que a tinha entregado a Ashran, o shek cheio de ódio que estivera prestes a matar Jack. Mas o seu coração gritava-lhe que o amava, que precisava de estar junto dele, tê-lo perto...
Surpreendeu-se por as suas carícias, tão suaves e subtis, despertarem nela tantas sensações novas. Christian não era quente, apaixonado e franco como Jack; mostrava-se até um pouco frio e distante, e só o brilho no fundo dos seus olhos de gelo denunciava o intenso sentimento que pulsava nele. Contudo, os seus gestos, calmos e estudados, e o seu toque, leve e delicado, convidavam-na a desfrutar de cada carícia, de cada instante, como se fosse único.
- Pára... - arquejou ela. - Não continues. Eu...
- Calma, eu sei - sussurrou-lhe ele ao ouvido. - Calma.
Apertou-a nos seus braços. Victoria sentia a pele a arder e o coração a bater tão depressa que parecia que lhe ia sair do peito. Apoiou a cabeça no ombro de Christian, engoliu em seco e procurou acalmar-se. Mal reparou que ele voltava a cobri-la suavemente com a capa.
- Estou um pouco assustada - confessou. - Mas uma parte de mim está calma. Não sei bem o que se está a passar comigo.
Pareceulhe que ele sorria, embora, como não estava a olhar para a cara dele, não pudesse ter a certeza. Aguardou a resposta, mas Christian não disse nada. Brincava com uma madeixa do seu cabelo e, quando o ouviu respirar profundamente, entendeu que também ele precisava de um momento para se acalmar. Sentiu-se surpreendida, perturbada e contente ao mesmo tempo. Chegara a pensar que ele não tinha sentido nada.
- Quero estar contigo - sussurrou. - Mas...
- Quando chegar o momento, Victoria - respondeu Christian. Ainda não estás preparada. Mas não tenhas pressa. As coisas acontecem quando tiverem de acontecer.
Permaneceram assim, abraçados em silêncio.
- Também para mim é algo novo e estranho - disse então Christian. Victoria sorriu um pouco perplexa.
- Estás a gozar comigo.
- De todo! - Afastou-se um pouco dela, tomou-lhe o rosto com as mãos e olhou-a nos olhos, muito sério. - Refiro-me ao que me está a acontecer por dentro. Nunca tinha sentido isto por ninguém.
Victoria engoliu em seco. Deixou que ele a beijasse novamente. Desfrutou daquele beijo como se fosse o primeiro... ou o último.
Acabou tão bruscamente que Victoria ficou sem fôlego. De repente, Christian afastou-se dela e, antes que desse por isso, tinha-lhe virado as costas e esquadrinhava as sombras, alerta como um felino.
- O que...?
- Shhhhh.
Victoria calou-se de imediato, compreendendo que Christian tinha detectado perigo. As suas duas primeiras reacções pareceram a Victoria um pouco despropositadas segundos depois, mas não pôde evitá-las. A primeira coisa que fez foi cobrir-se ainda mais com a capa e apertar o cinto para a segurar. A seguinte foi perguntar-se, magoada, como era possível que Christian tivesse ouvido alguma coisa no meio daquele silêncio e naquela situação, ou seja, até que ponto estava a prestar mais atenção ao que acontecia à sua volta do que ao beijo que lhe estava a dar.
Sacudiu a cabeça para afastar aqueles pensamentos da sua mente e avançou, decidida, até se encontrar junto de Christian. Olhou em volta, inquieta, e pareceu-lhe ouvir um ligeiro sibilar. Franziu o sobrolho. Desejou ter o báculo nas mãos, mas este tinha ficado demasiado longe, no quarto, e Victoria duvidava que a sua força de vontade, que chamava o báculo quando precisava dele, pudesse movê-lo a tal distância. Adoptou uma posição de combate. Sabia lutar corpo a corpo e fá-lo-ia se fosse necessário.
Christian retirara um punhal não sabia bem de onde, e Victoria teve outro pensamento absurdo: "Anda armado até mesmo quando está a partilhar um momento íntimo comigo?"
Então, Christian falou em voz alta. Proferiu algo no idioma dos szish, aquela estranha linguagem de cicios e assobios. Victoria olhou para ele, inquieta.
Alguém lhe respondeu das sombras no mesmo idioma. Então, lentamente, os homens-serpentes saíram dos seus esconderijos, emergindo como sombras por entre as nuvens de vapor de água, rodeando-os.
Victoria contou-os. Eram doze. Os últimos szish que tinham ficado na torre. Estavam armados e tinham-nos cercado.
Os homens-serpentes estreitaram o círculo. Christian inclinou-se um pouco para a frente, tenso. Victoria também se preparou para lutar, colocando-se de costas para ele.
Por breves momentos todos ficaram imóveis, como se o tempo tivesse parado.
Então os szish atacaram, todos ao mesmo tempo. Christian avançou, rápido e letal, com o punhal a brilhar na sua mão. Victoria moveu-se para um lado e depois para o outro, desferindo dois pontapés que acertaram no primeiro szish, no estômago e depois no queixo. Teve de saltar para o lado para que o sabre da criatura não a atravessasse de um lado ao outro e deixou escapar um grito quando a lâmina da arma raspou a pele da sua perna, golpeando-a. Ao cair, deu um novo pontapé, desta vez na cara do homem-serpente. Caíram os dois no chão; ao vê-lo atordoado, Victoria arrancou-lhe o sabre e enterrou-lho no peito, sem hesitar. Ofegando, levantou-se com a arma na mão e olhou em volta. Fez um esgar de dor ao apoiar a perna; o golpe sangrava muito, mas ela não lhe prestou atenção.
Christian desfizera-se de dois dos homens-serpentes e lutava contra o terceiro. Victoria ergueu o sabre. Pelo menos agora tinha uma arma, mas mesmo assim sabia que estavam em nítida desvantagem. Perguntou-se porque é que Christian ainda não se tinha transformado em shek.
Viu subitamente uma sombra emergir da neblina para atacar Christian pelas costas. Victoria reagiu por puro instinto para salvar a vida do shek; atirou-se sobre o homem-serpente e interpôs a sua arma entre ele e o corpo de Christian. As duas lâminas chocaram violentamente. Victoria aproveitou a breve hesitação do szish para acabar com a sua vida, fria e decidida. Christian voltou rapidamente a cabeça e dirigiu-lhe um leve sorriso de agradecimento.
Foi então que um vulto desceu pelas escadas com um grito selvagem, brandindo uma arma que parecia envolta em chamas. Victoria reprimiu um sorriso quando o viu colocar-se junto de Christian, mas não deixou de combater.
Enquanto Jack e Christian lutavam juntos, Victoria sentia que as estocadas do szish a empurravam cada vez mais para a parede. A sua técnica com a espada era muito básica; de modo que só lhe restava defender-se conforme podia e depressa chegou à conclusão de que sem o báculo estava perdida. Demorou uma fracção de segundo a levantar o sabre, mas era demasiado tarde: a lâmina da arma do szish estava sobre ela. Victoria fechou os olhos instintivamente...
Quando os abriu, já não se encontrava ali, mas precisamente atrás do szish, que acabava de desferir a sua espada no vazio. Victoria pestanejou, desconcertada, mas não perdeu tempo: enterrou a lâmina do sabre nas costas do homem-serpente.
Voltou-se e viu que tinha outros três szish a rodeá-la. Brandiu o sabre, mas no fundo sabia que era inútil.
Nesse momento, uma enorme sombra emergiu da água com a rapidez de um relâmpago e, repentinamente, todos os szish levaram as mãos à cabeça, gritando e sibilando de dor. Victoria olhou para eles, confusa, sem entender o que estava a acontecer. A agonia dos homens-serpentes durou apenas dois segundos. Um após outro caíram no chão, mortos. Um deles precipitou-se de cabeça na água da piscina, com um sonoro baque.
Victoria voltou-se rapidamente; mas a sombra já lá não estava. A coxear, avançou até à água e chegou a tempo de entrever, sob uma última ondulação na superfície, o que lhe pareceu ser o dorso escamoso de uma enorme serpente...
Mas desapareceu, e a rapariga julgou que fora imaginação sua.
Nada se mexeu. Victoria, exausta, deixou-se cair.
- Boa, Christian - ouviu a voz de Jack.
"Claro, foi Christian", pensou ela, aturdida. "Usou o seu poder telepático."
Tentou levantar-se para se juntar aos dois rapazes, mas não foi capaz. Esperou então que eles emergissem da nuvem de vapor de água e se aproximassem dela.
- Estás bem, Victoria? - perguntou Jack, preocupado. Ela assentiu. Deixou-se abraçar por ele.
Reparou que Christian se detivera à beira da piscina e esquadrinhava as sombras, apreensivo.
- O que foi, Christian? - perguntou Victoria, inquieta.
- Não fui eu - respondeu ele calmamente. - Não consigo chegar às mentes dos szish sob a forma humana sem os olhar nos olhos, e não pude transformar-me em shek porque ainda estou fraco. Este ataque telepático deve ter sido feito por outro, provavelmente um shek.
- Isso é um absurdo - replicou Jack. - Se houvesse aqui outro shek, ter-nos-ia matado; não se teria dado ao trabalho de nos salvar a vida.
Christian inclinou a cabeça e dirigiu-lhe um olhar indagador, mas não disse nada.
- Às vezes fazemos coisas que não sabíamos que podíamos fazer acrescentou Jack. - Eu, por exemplo, juraria ter visto há pouco Victoria a aparecer e desaparecer como um relâmpago.
Os olhos deles cravaram-se nela. Victoria engoliu em seco.
- Foi impressão tua...
- Não, Victoria, tu consegues fazê-lo - interveio Christian. - Eu também vi. Não agora, mas há uns dias, quando lutaste contra mim.
Tens o poder de te moveres com a luz. Foi assim que me venceste no outro dia.
Victoria ficou perplexa. Por alguma razão, já não lhe parecia tão descabido.
- Foi assim que te venci? Não parece muito nobre da minha parte.
- Lançar um ataque telepático a criaturas que não possuem o mesmo poder também não é, no entanto, é assim que nós, os sheks, lutamos. - Virou-se de novo para as sombras da piscina, intrigado.
- Todos nós lutamos como podemos - disse então Jack. - Por isso há que estar prevenido e não baixar a guarda. E vocês dois - acrescentou, apontando para eles acusadoramente - vão explicar-me agora mesmo o que estavam aqui a fazer.
Christian cravou nele um olhar de gelo. Victoria corou. Jack notou que o tinham interpretado mal.
- Quero dizer - corrigiu-se, um pouco embaraçado -, calculo perfeitamente o que estavam a fazer. Estava a referir-me a fazerem-no noutro lado... ou seja... É que baixaram a guarda e, como eu tenho o sono muito pesado, se não fosse por... - interrompeu-se de repente bom... talvez não tivesse acordado ou chegasse demasiado tarde para vos ajudar e... enfim... Para a próxima vez tenham mais cuidado, está bem? Quando ficarem sozinhos, pelo menos tenham as armas à mão.
Voltou-se bruscamente. Christian e Victoria entreolharam-se. Victoria correu para Jack, a coxear. Alcançou-o junto à escada, fê-lo voltar-se e abraçou-o com força. Jack sorriu e correspondeu ao seu abraço.
- Anda, vamos curar-te essa perna - disse, pegando-lhe na mão. Estás a sangrar muito.
- Não é nada... É menos grave do que parece.
- De qualquer forma, vamos embora daqui. Este sítio põe-me nervoso.
Voltaram-se para Christian, para ver se os seguia. Mas o shek tinha-se acocorado junto a um dos corpos dos szish.
- Este continua vivo - anunciou calmamente.
- Vais...? - começou Victoria, mas ele abanou a cabeça.
- Pode facultar-nos uma informação muito valiosa. Quero saber quem está por trás disto... e se continuamos a estar em segurança nesta torre.
Kimara acordou, sobressaltada. Alguém a sacudia energicamente.
- O que...?
Não conseguiu dizer mais nada, porque a pessoa que estava junto dela lhe tapou a boca e sussurrou ao ouvido:
- Sssshhhh, não faças barulho. Sou eu, Kestra. Kimara ergueu-se, surpreendida.
- Pode saber-se o que se passa contigo? - sussurrou por sua vez, irritada.
- Quero mostra-te algo. Vais gostar. Vens?
Ela fitou-a um pouco desconfiada no início. Mas à claridade dos luares pôde ver que a expressão de Kestra era sincera. Levantou-se então em silêncio e seguiu a jovem shiana através da grande sala onde se tinha montado um dos dormitórios para mulheres. As duas moveram-se cautelosamente para não acordar ninguém.
Kestra guiou Kimara até ao pátio. A luminosidade das luas era tanta naquela noite que quase parecia dia, de modo que ambas tiveram o cuidado de andar coladas às paredes. Até que Kestra se deixou cair sobre a relva, junto a uma janela aberta rente ao chão, da qual saía luz.
- O que...? - começou Kimara, mas Kestra puxou-a para que se agachasse e olhasse através da abertura.
Kimara espreitou, intrigada. Via que a janela dava para a cave, ou seja, para a oficina de Rown e Tanawe. Ou tê-lo-ia visto, não fora algo ter prendido o seu olhar, impedindo-a de afastar os olhos.
No centro da divisão encontrava-se um magnífico dragão dourado, um dragão dourado que abria as asas e esticava o pescoço como se quisesse ser ainda mais alto do que era. As escamas brilhavam com uma luz própria, a crista encrespava-se sobre o dorso esbelto e das suas mandíbulas saía um fino fio de fumo. Quando o dragão se ergueu sobre as patas traseiras, Kimara viu que os seus olhos eram verdes como esmeraldas. Sentiu um baque no coração.
- Jack! - gritou.
O grito retumbou pelas paredes e ouviu-se por toda a cave. Alarmada, Kestra puxou-a para a afastar da janela. Kimara resistiu.
- Enlouqueceste? - ciciou Kestra. - Não nos podem ver! Ainda é segredo!
Subitamente, Kimara compreendeu o que estava a acontecer e sentiu o coração voltar a partir-se em mil pedaços, como quando Victoria trouxera a notícia da morte de Jack.
- É um dos teus dragões de madeira - compreendeu. - Não é real. Parecia tão decepcionada que Kestra olhou para ela, sem entender.
- Pensei que ias gostar - disse. - É parecido, não é?
- Sim, é - admitiu Kimara. - Muito. Mas é cruel, especialmente para os que o conheceram. Que dirão Shail, Aile e Alexander quando o virem?
Kestra sorriu.
- Pelo que sei, a ideia foi deles. Foi Shail quem deu a descrição de Yandrak. Se assim não fosse, Tanawe não teria conseguido reconstruir a sua imagem com tanta exactidão.
Kimara abanou a cabeça.
- Custa-me muito a crer que tenham sido capazes de algo assim. Kestra olhou para ela, muito séria.
- Ainda não percebeste, pois não?
- O quê?
- Para que serve este dragão. O que achas que vai acontecer quando chegar a última batalha, quando sairmos de Nurgon para combater todas essas serpentes que nos esperam lá fora? O que pensas que se vai passar quando formos combater e o último dragão não vier em nosso auxílio?
Kimara deixou-se cair, desconcertada.
- Não tinha pensado nisso. Então... supostamente este vai ser Yandrak? Vamos dizer a todos que é Jack, que veio ajudar-nos?
Kestra suspirou.
- Pode parecer-te injusto, mas não temos outra saída. Já to disse uma vez: os dragões estão extintos; agora só nós é que podemos combater no seu lugar. E as gentes precisam de acreditar em algo, nem que seja apenas uma ilusão.
- Mas não é real, Kestra.
- Até que ponto queres que seja real? Voa, tal como um dragão. Lança fogo, tal como um dragão. Parece um dragão e consegue combater como um dragão de verdade o faria.
O que é mais real: o espectáculo que viste naquela cave ou a lembrança de um dragão que não vai regressar ao mundo dos vivos?
Aquilo ali simboliza a nossa esperança, o nosso desejo de lutar pelo nosso mundo, pelo que consideramos mais justo. Centenas de rebeldes irão combater com fé quando o virem sulcar os céus. Será o nosso símbolo, o nosso guia na batalha. Atreves-te a dizer-me que não é real?
Fez-se um silêncio incómodo.
- Suponho que tens razão - admitiu Kimara de má vontade. Voltou a espreitar, com precaução. Viu então Rown e Tanawe
junto ao dragão, que descansava agora enroscado no chão, com os olhos fechados. Os dois comentavam algo em voz baixa. Tanawe acariciou suavemente o dorso do dragão e o feitiço desfez-se. Então, Kimara viu-o como era deveras: um artefacto de madeira coberto com uma pele que imitava a dos verdadeiros dragões.
Uma esperança.
Percebeu que, quando aquele dragão se elevasse sobre os céus de Nurgon, seria como se o espírito de Jack voltasse à vida.
Kestra puxou-a com insistência.
- Já o viste. Temos de voltar.
Kimara não se mexeu. Não conseguia afastar os olhos do dragão.
- Ensina-me a pilotá-lo - disse de repente. Kestra ficou estarrecida.
- O que é que disseste?
- Que quero aprender a pilotá-lo! - Voltou-se para ela, e a shiana viu que os olhos de fogo de Kimara ardiam com mais intensidade do que nunca. - Quero ser eu a fazê-lo voar.
Jack certificou-se de que Victoria já tinha adormecido. Levantou-se da cama em silêncio e foi até ao miradouro. Esperava encontrar Sheziss; queria agradecer-lhe por os ter ajudado nas termas. Mas era Christian quem lá estava.
Aproximou-se com cautela. Tinha passado muito tempo perto de Sheziss, tinha aprendido a controlar o seu ódio. Teoricamente, Christian, por ter também uma parte humana, devia causar-lhe menos repulsa do que a própria Sheziss. Mas preferia não arriscar. Recordava muito bem o que sucedera da última vez em que se tinham enfrentado e como estiveram perto de deitar tudo a perder.
O shek tinha-se sentado sobre a balaustrada, com os pés pendentes sobre o imponente vazio, e contemplava as luas, ensimesmado, com uma expressão mais sombria do que o habitual. Jack cumprimentou-o e ele retribuiu a saudação. Fez-se um silêncio incómodo.
- Já não estamos em segurança na torre - disse então Christian.
- Eu calculava - assentiu Jack; mas sentiu o coração apertado. Embora soubesse, depois do ataque daquela noite, que os dias de paz tinham acabado, as palavras de Christian confirmaram-no. Suspirou. Tinha sido tão bonito partilhar aqueles momentos com Victoria que lhe doía a alma ao pensar que depressa teriam de estar outra vez a fugir, a esconder-se... ou a sair para lutar e provavelmente para morrer.
- Então já sabes que temos de ir embora.
- Sim. Suponho que demoraremos vários dias a chegar a Nurgon, mesmo que fôssemos a voar. Por isso, quanto mais cedo partirmos, melhor.
Christian fitou-o de maneira estranha.
- Não, Jack, não podemos ir para Nurgon. Por enquanto não.
- Porque não? Victoria disse-me que Nurgon está protegido pelo escudo de Awa.
- Sim, mas depressa deixará de estar. Jack ficou estarrecido.
- O quê?
- Sondei a mente do szish que sobreviveu ao ataque - explicou Christian a meia-voz. - Estava muito lesada, mas consegui descobrir porque nos atacaram. Todos os szish foram mobilizados através da rede telepática dos sheks. As serpentes vão reunir-se para a batalha, que não se vai travar aqui. Por isso, eles queriam ir-se embora da torre. Tencionavam responder à chamada e unir-se ao exército de Ashran, mas algo os retinha aqui. - Lançou um olhar inquiridor a Jack, mas o jovem ficou impassível. - A sua única opção era lutar.
- E a batalha a que te referes é um ataque contra Nurgon?
- O ataque definitivo. Dentro de três dias, ou melhor, de três noites, para sermos exactos, Ashran fará cair o escudo de Awa e Nurgon estará perdida.
Jack sentiu-se gelar por dentro.
- Não pode ser. Temos de os ajudar!
Christian agarrou-o pelo braço quando o jovem fez tenção de voltar a entrar na torre.
- Espera, Jack. Não chegaríamos a tempo e, além disso, não poderíamos fazer nada para ajudar.
- Estás a querer dizer que tenho de ficar de braços cruzados enquanto massacram os meus amigos?
- É claro que não. Creio... - Hesitou um segundo, mas finalmente prosseguiu: - Creio que a nossa única opção é ir a Drackwen enfrentar Ashran nessa mesma noite.
com todos os sheks a atacar Nurgon e o meu pai ocupado a fazer cair o escudo, teremos mais oportunidades do que em qualquer outro momento. E se nessa altura o derrotarmos e evitarmos que destrua a cúpula feérica... salvaremos Nurgon também.
Jack ponderou a proposta.
- Mas, para chegar a Drackwen a tempo - contrapôs -, teríamos de partir já. E não sei se tu estás em condições, e Victoria...
Calou-se angustiado. Christian olhou-o de relance.
- Se partíssemos agora, todos nos veriam. Mas há uma forma bem mais rápida e discreta de chegar à Torre de Drackwen.
Jack olhou para ele intrigado.
- A sério? Christian assentiu.
- Estou a tratar disso. Espero poder mostrar-to amanhã, o mais tardar.
Jack compreendeu que não ia explicar-lhe mais nada, por isso não insistiu.
- Porque é que o teu pai se centra em Nurgon e se esquece de nós agora? Não é suposto sermos os únicos a poder derrotá-lo?
- Tentou acabar connosco desde que chegámos. Não o conseguiu. Em contrapartida, agora tem a oportunidade de esmagar toda a Resistência de uma só vez. Pensa bem, Jack. Se Nurgon cair, se caírem todos os rebeldes... ficaremos sozinhos. O que nos iria restar então? Não teríamos nenhum sítio para onde ir, nenhum lugar onde nos refugiarmos. Seria uma questão de tempo até que os sheks nos encontrassem.
Também pode ser uma armadilha. É provável que, se formos à Torre de Drackwen nessa noite, estejamos a fazer exactamente o que o meu pai quer. E não seria a primeira
vez. Mas, diz-me, que outra opção temos?
Jack reflectiu e concordou a custo.
- Três dias... - murmurou. - É pouco tempo. O shek encolheu os ombros.
- Há quase cinco meses que chegámos a Idhún - observou. - Na realidade... passou demasiado tempo.
- Sim, mas... tudo isso de enfrentarmos Ashran e fazer cumprir a profecia... era um pouco vago. Antes não tínhamos uma data concreta. Agora temos. - Fez uma pausa. - Não gostaria que Victoria ficasse já a saber - acrescentou. - Eu sei que três dias é pouquíssimo tempo, mas... acabou de nos recuperar aos dois e eu gostava que gozasse pelo menos de outro dia de paz, antes de saber o que vamos a fazer. Não quero preocupá-la tão cedo.
- Parece-me bem - assentiu Christian, e Jack estranhou a resposta. Até ele sabia que, se iam enfrentar Ashran, tinham de estar preparados, por isso, quanto mais cedo Victoria o soubesse, melhor. Percebeu então que naquele momento Christian tinha falado com o coração e não com a cabeça. Como ele próprio costumava fazer. Sorriu.
- Gostas mesmo dela, não gostas?
- O que é que tu achas? - replicou o shek tranquilamente.
- Eu sei que é uma pergunta estúpida - respondeu Jack, conciliador. - Mas é que, se parares para pensar... tudo isto é uma grande loucura. Nada parece fazer sentido, no entanto... todas as peças se encaixam.
Christian abanou a cabeça.
- Tudo deixou de fazer sentido para mim quando olhei Victoria nos olhos pela primeira vez - disse em voz baixa. - Ainda não sei se as peças encaixam. Estou a tentar descobrir.
Jack voltou a sorrir. Despediu-se de Christian com um gesto e deu meia-volta para entrar na torre. Mas o shek deteve-o novamente.
- Espera, Jack. - O jovem voltou-se para ele, inquiridor; o olhar de gelo de Christian era vou-se nele, sério. - Espero que saibas o que estás a fazer.
- O que queres dizer com isso?
- Sabes perfeitamente. Há outro shek na torre. Jack ficou impassível.
- Sei o que estou a fazer - respondeu, calmamente. - E não me faças mais perguntas a esse respeito. Não convém que saibas mais, pelo menos para já. Acredita em mim.
Christian não se pronunciou, mas continuou a olhá-lo fixamente.
- Não posso contar-te mais, Christian. Confias em mim? O shek arqueou uma sobrancelha.
- Pedes-me para confiar num dragão?
- Tal como eu confiei num shek - respondeu Jack com suavidade. Era uma frase com duplo sentido, e não tinha a certeza se Christian o percebera. Mas o jovem assentiu lentamente, compreendendo.
- Confio em ti - disse. - Espero que saibas discernir em quem deves confiar ou não.
- Não te preocupes.
Deu meia-volta para se ir embora, mas logo a seguir girou sobre os calcanhares.
- Christian? Porque é que Ashran vai fazer cair o escudo dentro de três dias? Porquê três, e não quatro, nem dois, nem dez?
Christian não respondeu, mas indicou o céu com uma expressão sombria. Jack ergueu o olhar e viu apenas as três luas: a grande Érea, a lua prateada; Ilea, a lua verde; e a pequena e avermelhada Ayea, a lua das lágrimas. Pareceram-lhe mais belas e redondas do que nunca, mas não detectou nada estranho nelas. No início.
Por fim entendeu e, então, praguejou em voz baixa.
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