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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DISCÍPULO / Michael Hjort e Hans Rosenfeldt
O DISCÍPULO / Michael Hjort e Hans Rosenfeldt

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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QUANDO O TÁXI virou para a Tolléns väg, pouco antes das sete e meia da noite, Richard Granlund achava que o seu dia não podia ?car muito pior. Quatro dias em Munique e nos arredores. Uma viagem de vendas. Durante o mês de Julho os alemães trabalhavam mais ou menos como de costume. Reuniões com os clientes de manhã à noite. Fábricas, salas de reuniões e inúmeras chávenas de café. Ficara cansado, mas satisfeito. Os sistemas de tapetes rolantes podiam não ser a coisa mais fascinante do mundo – o trabalho dele raramente despertava curiosidade e nunca era o tema de conversa mais óbvio à mesa de jantar ou entre amigos –, mas vendiam-se bem. Os tapetes rolantes. Vendiam-se realmente bem.
O avião que partia de Munique devia ter descolado às nove e cinco. Ele chegaria a Estocolmo pelas onze e vinte. Telefonaria para o escritório a contar como tudo correra. Estaria em casa por volta da uma. Almoçaria com Katharina e depois passariam o resto da tarde no jardim. O plano era esse.
Até que ele descobriu que o voo para Arlanda[1] havia sido cancelado. Esperara na ala para o serviço de atendimento ao cliente da Lufthansa e conseguira uma reserva para o voo da uma e cinco. Mais quatro horas no Aeroporto Internacional de Munique. Não ?cara propriamente entusiasmado com a perspectiva. Com um suspiro de resignação, pegara no telefone e enviara uma mensagem de texto a Katharina. Ela teria de almoçar sem ele mas, se tudo corresse bem, ainda poderiam passar algumas horas a trabalhar no jardim. Como estava o clima? Talvez um cocktail no pátio nessa noite? Ele podia comprar alguma coisa no aeroporto, agora que dispunha de bastante tempo.

 

 

 


 

 

 


Katharina respondeu-lhe de imediato. Que pena o atraso. Tinha saudades dele. O clima em Estocolmo estava fantástico, por isso os cocktails ao ?m do dia pareciam uma bela ideia. Faz-me uma surpresa. Amo-te.

Richard fora a uma das lojas que ainda anunciavam isenção de impostos, embora estivesse convencido de que isso já não era relevante para a grande maioria dos viajantes. Localizou a prateleira dos cocktails pré-misturados e pegou numa garrafa que reconheceu dos anúncios televisivos – Mojito Clássico.

A caminho do quiosque dos jornais veri?cou o seu voo no painel das partidas. Porta 26. Calculou que demoraria cerca de dez minutos a chegar lá.

Richard sentou-se com uma chávena de café e uma sanduíche enquanto folheava o seu exemplar recentemente adquirido da Garden Illustrated. Os minutos foram passando. Viu algumas montras, comprou outra revista, desta vez sobre novas engenhocas, depois foi a outro café e bebeu uma garrafa de água mineral. Após uma visita à casa de banho, estava ?nalmente na hora de ir para a porta. Quando lá chegou, confrontou-se com a surpresa seguinte. O voo da uma e cinco estava atrasado. Novo horário de embarque: uma e quarenta. Hora prevista para a partida: duas horas. Richard pegou novamente no seu telemóvel. Informou Katharina do último atraso e exprimiu a sua frustração com as viagens aéreas em geral e com a Lufthansa em particular. Encontrou um lugar vazio e sentou-se. Não obteve resposta à sua mensagem de texto.

Ligou -lhe.

Ninguém atendeu.

Talvez ela tivesse encontrado alguém com quem ir almoçar à cidade. Guardou o telemóvel e fechou os olhos. Não valia a pena enervar-se por causa da situação; em todo o caso, não havia nada que ele pudesse fazer.

À uma e quarenta e cinco a jovem que estava ao balcão deu-lhes as boas-vindas a bordo e pediu desculpas pelo atraso. Quando já estavam instalados no avião e a tripulação de cabine tinha demonstrado os procedimentos de segurança de rotina, que ninguém se dera ao trabalho de ouvir, o capitão falou-lhes. Uma das luzes do painel de instrumentos assinalava uma avaria. Provavelmente havia algo de errado com a própria luz, mas não podiam correr riscos. Vinha a caminho um técnico para proceder à veri?cação. O capitão apresentou-lhes desculpas e pediu a colaboração de todos. O interior do avião não tardou a ?car quente. Richard sentiu desvanecer-se a vontade de cooperar e o seu ainda relativamente bom humor, ao mesmo ritmo que a camisa ia ?cando cada vez mais molhada nas costas e por baixo dos braços. O capitão falou de novo. Boas notícias: o erro havia sido recti?cado. Notícia menos boa: tinham perdido o horário de descolagem e havia nove aviões para levantarem voo primeiro, mas logo que a vez deles chegasse dariam início ao seu voo para Estocolmo. Pediu-lhes desculpa.

Aterraram em Arlanda às cinco e vinte. Com duas horas e dez minutos de atraso. Ou seis horas. Dependendo do ponto de vista.

A caminho da zona de recolha das bagagens, Richard telefonou de novo para casa. Ninguém atendeu. Ligou para o telemóvel de Katharina. Ao ?m de cinco toques ouviu o atendedor de chamadas. Provavelmente estava lá fora, no jardim, e não conseguia ouvir o telemóvel. Richard chegou à enorme sala onde se situavam os tapetes rolantes da bagagem. De acordo com o monitor por cima do número 3, as malas do voo LH2416 seriam entregues daí a oito minutos.

Demoraram doze.

E foram precisos outros quinze minutos até Richard perceber que a sua mala não estava lá.

Mais uma espera noutra ?la para participar a mala em falta no balcão de atendimento da Lufthansa. Após entregar o recibo da bagagem, dar o endereço e fazer a melhor descrição possível da mala, Richard dirigiu-se para a zona das chegadas e foi procurar um táxi. O calor atingiu-o com um impacto físico quando saiu pelas portas giratórias. Era, de facto, Verão. Passariam um serão belíssimo. Sentiu o seu bom humor regressar lentamente quando pensou em tomar Mojitos no pátio ao entardecer. Juntou-se à ?la para os táxis da Stockholm, da Kurir ou da 020. Quando começaram a afastar-se, o motorista informou-o de que, em matéria de trânsito, Estocolmo estava infernal. Um verdadeiro inferno. Nesse momento tinha abrandado para menos de cinquenta quilómetros por hora porque estavam a juntar-se à ?la aparentemente interminável de carros que rumavam a sul pela E4.

Por isso, quando o táxi ?nalmente virou para a Tolléns väg Richard Granlund achou que o seu dia não poderia ?car muito pior.

Pagou com cartão de crédito e caminhou até casa através do jardim perfumado e muito bem tratado. Pousou a pasta e o saco de plástico do lado de dentro da porta.

– Olá!

Ninguém respondeu. Richard descalçou os sapatos e entrou na cozinha. Espreitou para fora da janela, para ver se Katharina estava no jardim, mas não avistou qualquer sinal dela. A cozinha também estava vazia. Nenhum bilhete no sítio onde deveria estar caso ela lhe tivesse deixado algum. Richard pegou no seu telemóvel e veri?cou-o. Não havia chamadas não atendidas nem mensagens de texto. A casa estava quente e abafada; o sol embatia directamente nas janelas, e Katharina não tinha baixado os estores. Richard destrancou a porta do pátio e abriu-a para trás. A seguir subiu as escadas. Ia tomar um duche e mudar de roupa. Sentia-se sujo e transpirado, até às cuecas. Tirou a gravata e começou a desabotoar a camisa enquanto subia as escadas, mas quando chegou ao quarto parou a meio do movimento. Katharina estava deitada na cama. Foi a primeira coisa em que reparou. Depois, apercebeu-se de três coisas numa sucessão rápida.

Estava deitada de bruços.

Estava amarrada.

Estava morta.


A CARRUAGEM do metropolitano estremeceu quando travou. A mãe que estava à frente de Sebastian Bergman com o carrinho de bebé agarrou-se ao poste de aço com um pouco mais de força e olhou em redor, nervosa. Tinha um ar a?ito desde que entrara em St. Eriksplan e, embora o seu menino lamuriento tivesse adormecido ao ?m de apenas duas paragens, parecia não conseguir descontrair-se. Era evidente que não gostava de estar perto de tantos estranhos. Sebastian apercebeu-se de vários sinais. Mexia constantemente os pés a ?m de evitar o contacto físico com alguém. O lábio superior um pouco húmido. A expressão alerta, os olhos sempre a moverem-se. Sebastian tentara mostrar-lhe um sorriso tranquilizador, mas ela desviou rapidamente o olhar e continuou a vigiar tudo o que a rodeava.

Sebastian olhou em redor da carruagem apinhada de pessoas, que uma vez mais parou com uma chiadeira de metal no túnel logo a seguir a Hötorget. Após um momento de imobilidade na escuridão, o metro recomeçou a andar devagar e arrastou-se até à T-Centralen, a estação principal no centro de Estocolmo. Ele não costumava viajar de metropolitano, e nunca o usava à hora de ponta ou na época turística. Era demasiado desconfortável, demasiado caótico. Não conseguia simplesmente acostumar-se àquela humanidade em massa, com todos os seus ruídos e odores. Preferia andar a pé ou apanhar um táxi. Manter-se longe das pessoas. Ficar do lado de fora. A sua prática normal era essa. Mas já nada era normal.

Nada.

Sebastian encostou-se contra a porta ao fundo da carruagem e espreitou para a porta ao lado. Avistou-a através da pequena janela de vidro. O cabelo louro, a cabeça vergada, a ler um jornal. Enquanto olhava para ela, percebeu que sorria para si próprio.

Como sempre, ela mudou de comboio na T-Centralen, descendo rapidamente a escadaria de pedra para a linha vermelha. Era-lhe fácil segui-la. Desde que se mantivesse à distância, era ocultado pelo ?uxo de viajantes e pelos turistas que examinavam os seus mapas.

Quando o metro chegou à estação de Gärdet, doze minutos depois, Sebastian esperou uns instantes antes de sair da carruagem. Neste local precisava de ter mais cuidado. Havia menos pessoas a deslocarem-se na plataforma; a maioria dos passageiros havia desembarcado na estação anterior. Sebastian escolhera a carruagem a seguir à dela para que ela lhe virasse as costas ao sair. Deslocava-se com rapidez, e já ia a meio do caminho para as escadas rolantes quando a avistou. Gärdet também era manifestamente o destino da mulher do carrinho, e por precaução Sebastian optou por se manter atrás dela, caso a pessoa que estava a seguir se virasse para trás por qualquer motivo. A mulher empurrava o carrinho com um passo regular atrás das pessoas que se apressavam a chegar às escadas rolantes, presumivelmente na esperança de evitarem o aperto mais adiante.

Enquanto caminhava atrás dela, Sebastian percebeu quão parecidos eram: duas pessoas que consideravam ser sempre necessário manter a distância.


UMA MULHER.

Morta.

Na sua própria casa.

Em circunstâncias normais, não haveria necessidade de chamar a brigada de homicídios do Departamento Nacional de Investigação Criminal, conhecida como Riksmord, e a equipa de Torkel Höglund.

Na maioria dos casos aquele era o trágico resultado de uma desavença familiar, de uma disputa da custódia parental, de um acesso de ciúmes, de uma noite de embriaguez com aquela que, a?nal, se revelara a companhia errada.

Qualquer pessoa que trabalhasse no serviço policial sabia que, quando uma mulher era assassinada na sua própria casa, normalmente o perpetrador encontrava-se entre os que lhe eram mais próximos, por isso não era de admirar que, quando atendeu a chamada de emergência, pouco depois das sete e meia, Stina Kaupin tivesse brincado com a ideia de que estava a falar com o assassino.

– Serviço de Emergência, como posso ajudar?

– A minha esposa está morta.


Foi-lhe difícil perceber o que o homem disse a seguir. A voz dele denotava a?ição e desgosto. Durante longos períodos o silêncio era tão intenso que Stina pensou que ele tinha desligado. Depois ouviu-o tentar controlar a respiração. Foi uma luta para obter dele um endereço; o homem limitava-se a repetir que a sua esposa estava morta e que havia imenso sangue. Sangue por toda a parte. Eles podiam lá ir? Por favor? Stina conseguiu imaginar um homem de meia-idade com as mãos cobertas de sangue, apercebendo-se lenta mas seguramente do que havia feito. Por ?m, conseguiu obter um endereço em Tumba. Pediu ao homem – provavelmente o assassino – que permanecesse onde estava e não tocasse em nada dentro de casa. Ela ia enviar a polícia e uma ambulância para o local do crime. Desligou e transmitiu a mensagem à polícia de Södertörn, em Huddinge, que por sua vez enviou um carro-patrulha para o local.

 

Erik Lindman e Fabian Holst estavam precisamente a terminar um jantar bastante tardio de fast-food quando receberam a chamada para se dirigirem ao número 19 da Tolléns väg.

Dez minutos depois chegaram ao local. Saíram do carro-patrulha e olharam para a casa. Nenhum dos agentes se interessava particularmente por jardinagem, mas ambos perceberam que alguém despendera uma quantidade considerável de tempo e de dinheiro para criar o esplendor idílico que rodeava aquela casa amarela de madeira.

Quando estavam a meio do caminho de acesso, a porta da frente abriu-se. Os dois homens levaram instintivamente a mão ao coldre pendurado na sua anca direita. À porta estava parado um homem, com a camisa aberta, que ?tava os agentes de uniforme com uma expressão quase vazia no olhar.

– Não é preciso uma ambulância.

Lindman e Holst trocaram um olhar rápido entre si. Era evidente que o homem à porta se encontrava em estado de choque. As pessoas em estado de choque agiam de acordo com as suas próprias regras. Eram imprevisíveis. Irracionais. Lindman continuou a subir o caminho, enquanto Holst abrandava com a mão perto da arma.

– Richard Granlund? – perguntou Lindman enquanto dava os últimos passos em direcção ao homem, cujo olhar se ?xara num ponto qualquer atrás de si.

– Não é preciso uma ambulância – repetiu o homem. – A mulher com quem falei disse-me que ia enviar uma ambulância. Não é preciso. Esqueci-me de lhe dizer...

Lindman estava junto do homem. Pegou-lhe suavemente no braço. O contacto físico fez o homem à porta sobressaltar-se e virar-se de frente para ele. Fitou Lindman com surpresa, como se estivesse a ver o agente da polícia pela primeira vez e não percebesse como ele conseguiria aproximar-se tanto.

Não tinha sangue nas mãos nem na roupa, reparou Lindman.

– Richard Granlund?

O homem acenou com a cabeça.

– Cheguei a casa e ela estava ali deitada...

– E veio de onde?

– O quê?

– Chegou a casa e veio de onde? Onde esteve? – Talvez aquele não fosse o melhor momento para interrogar um homem que estava obviamente em estado de choque, mas as informações obtidas durante o contacto inicial podiam ser comparadas com aquilo que fosse dito durante um interrogatório numa fase posterior.

– Na Alemanha. Em viagem de negócios. O meu avião atrasou-se. Ou melhor, primeiro foi cancelado, a seguir adiado, e depois atrasei-me ainda mais porque a minha bagagem...

O homem calou-se. Pareceu ter sido assaltado por um pensamento ou percepção. Olhou para Lindman com uma clareza no olhar que não se lhe vira antes.

– Será que poderia tê-la salvo? Se tivesse chegado a horas ainda estaria viva?

Todos aqueles «será-que» eram naturais quando alguém morria; Lindman já os tinha ouvido muitas vezes. Em vários casos em que estivera envolvido, as pessoas haviam morrido porque estavam no lugar errado à hora errada. Iam a atravessar a estrada no exacto momento em que um motorista bêbado passava a acelerar. Estavam a dormir na rulote precisamente na noite em que a botija de gás começou a vazar. Iam a andar entre os carris da ferrovia quando passou um comboio. Queda de cabos de alta tensão, homens violentos que se exaltaram com uma coisa ou outra, carros na faixa errada da estrada. Acasos, coincidências. Esquecer-se das chaves podia atrasar uma pessoa precisamente aqueles poucos segundos que implicavam que ele ou ela já não conseguisse atravessar a passagem de nível desprotegida. Um voo cancelado podia deixar a esposa de um homem sozinha o tempo su?ciente para que um assassino tivesse oportunidade para atacar. Todos aqueles «será-que».

Perfeitamente normal quando alguém morria.

Impossível responder.

– Onde está a sua esposa, Richard? – perguntou Lindman em vez disso, mantendo uma voz calma e ?rme.

O homem à porta pareceu ponderar a questão. Foi obrigado a passar das experiências da sua viagem de regresso a casa e da possível culpa, de que subitamente tomara consciência, para o momento presente. Para aquela coisa terrível que acontecera.

Aquilo que fora incapaz de evitar.

Por ?m, conseguiu falar.

– No andar de cima. – Richard fez um gesto em direcção ao interior da casa e começou a chorar. Lindman acenou ao colega para que fosse lá cima, enquanto acompanhava o homem choroso para o interior. Nunca se podia ter a certeza, nunca se podia fazer semelhante juízo, mas Lindman, com o braço em volta dos ombros de Granlund, teve a nítida sensação de que não estava a escoltar um assassino até à cozinha.

No fundo das escadas Holst sacou da sua arma de serviço e encostou-a contra a perna. Se o assassino não fosse aquele homem completamente arrasado de quem o seu colega estava a tratar, então ainda havia a possibilidade de ele ou ela estarem no interior da casa. No cimo das escadas chegou a uma pequena área equipada com um sofá de dois lugares, um televisor e um leitor de Blu-ray. Janela de água-furtada. Prateleiras ao longo das paredes, com livros e ?lmes. Quatro portas. Duas abertas, duas fechadas. Do cimo das escadas Holst conseguiu ver as pernas da mulher morta dentro do quarto. Em cima da cama. Isso signi?cava que teriam de informar a Riksmord, pensou, enquanto entrava rapidamente no segundo quarto que tinha a porta aberta: um escritório. Vazio. As duas portas fechadas davam para uma casa de banho e um quarto de vestir. Ambos vazios. Holst guardou a arma e aproximou-se do quarto de dormir. Parou junto à porta.

Cerca de uma semana antes andara a circular uma directiva da Riksmord. Tinham de ser informados dos casos de morte que obedecessem a determinados critérios.

Se a vítima fosse encontrada no quarto.

Se a vítima estivesse amarrada.

Se a garganta da vítima tivesse sido cortada.


O SOM do telemóvel de Torkel interrompeu o último verso do Parabéns a Você e ele atendeu enquanto se retirava para a cozinha, deixando atrás de si o som dos aplausos.

Era a festa de aniversário de Vilma.

Treze anos.

Uma adolescente.

Na verdade, ?zera anos na sexta-feira anterior, mas preferira ir jantar fora com as amigas e ver um ?lme. Os progenitores, mais velhos e aborrecidos, como o seu pai, poderiam ir lá a casa à noite noutro dia da semana. Torkel e Yvonne ofereceram à ?lha um telemóvel como presente de aniversário. Novo – não aquele que já fora usado pela irmã mais velha, nem um dos que ele ou Yvonne colocavam de lado sempre que lhes davam um novo no emprego. Agora ela tinha o último modelo – com Android, dissera Billy quando Torkel lhe pedira ajuda para escolher. Pelo que dizia Yvonne, Vilma praticamente dormia com ele desde a última sexta-feira.

Nessa noite a mesa da cozinha estava coberta de presentes. A irmã mais velha de Vilma oferecera-lhe rímel, sombra, base e batom para os lábios. Vilma recebera os presentes na sexta-feira, mas colocou tudo novamente em exposição para exibir o seu pecúlio. Torkel pegou no rímel, que prometia pestanas até dez vezes mais compridas, enquanto escutava a informação que lhe ia entrando pelo ouvido.

Um assassinato. Em Tumba. Uma mulher cuja garganta fora cortada e que estava amarrada no quarto.

Torkel achava que Vilma era demasiado nova para usar maquilhagem, mas já o tinham feito ver que era a única do seu grupo etário que não a usava e que a ideia de no próximo ano aparecer na escola sem maquilhagem estava fora de questão. Torkel não oferecera grande resistência. Os tempos estavam a mudar, e sabia que devia sentir-se agradecido por não se ter envolvido nessa discussão com Vilma dois anos antes. Alguns pais das amigas dela haviam-se encontrado na mesma situação e tinham claramente perdido a batalha.

Todas as indicações apontavam para o facto de esta ser a terceira vítima.

Torkel terminou a chamada, pousou o rímel e regressou à sala de estar.

Vilma estava a conversar com os avós maternos. O pai chamou-a, e ela não se mostrou muito infeliz por ter de interromper a conversa com os velhotes. Veio ao encontro de Torkel com uma expressão de expectativa no rosto, como se pensasse que ele estivera na cozinha a preparar-lhe alguma surpresa.

– Tenho de ir, querida.

– É por causa do Kristo?er?

Torkel demorou alguns segundos até conseguir entender sequer a pergunta. Kristo?er era o novo parceiro de Yvonne. Estavam juntos há uns meses, mas Torkel só o viu pela primeira vez nessa noite. Era professor do liceu. Com cerca de cinquenta anos. Divorciado, com ?lhos. Parecia um fulano simpático. Jamais ocorrera a Torkel que o encontro entre ambos pudesse ser considerado difícil, desconfortável ou de algum modo um problema. Era óbvio que Vilma interpretava a demora da sua resposta como uma con?rmação de que tinha razão.

– Eu disse-lhe que não o convidasse – prosseguiu ela, com uma expressão carrancuda no rosto.

Torkel sentiu uma grande ternura pela filha. Ela queria protegê-lo. Treze anos e queria poupá-lo a um desgosto. No mundo dela, a situação era obviamente embaraçosa. Sem dúvida que não gostaria de ver o seu ex-namorado com outra pessoa. Caso já tivesse algum namorado. Torkel não sabia ao certo. Afagou-lhe suavemente a face.

– Tenho de ir trabalhar. Isto não tem nada que ver com o Kristo?er.

– Prometes?

– Absolutamente. Teria de me ir embora mesmo que só estivéssemos os dois aqui. Tu já sabes como é.

Vilma assentiu. Vivera com ele durante o tempo su?ciente.

– Morreu alguém?

– Sim.

Torkel não tencionava dizer-lhe mais do que isso. Já decidira há muito tempo que não tentaria conquistar a atenção das ?lhas comunicando-lhes pormenores emocionantes e grotescos do seu trabalho. Vilma sabia-o. Por isso não lhe fez mais perguntas, limitou-se a aquiescer. Torkel olhou para ela com uma expressão séria.

– Acho realmente bom que a mãe tenha encontrado alguém.

– Porquê?

– Porque não? Só porque ela já não está comigo, isso não signi?ca que tenha de ?car sozinha.

– E tu, já encontraste alguém?

Torkel hesitou por um segundo. Encontrara? Durante muito tempo estivera envolvido numa espécie de relação com Ursula, a sua colega casada, mas na verdade nunca haviam de?nido o tipo de relação que tinham. Dormiam um com o outro quando andavam a trabalhar fora. Nunca em Estocolmo. Nunca jantavam juntos, nunca tinham aquelas conversas banais acerca das suas vidas privadas. Era sexo e falar acerca do trabalho. Nada além disso. E de momento nem sequer isso. Alguns meses antes Torkel recrutara o seu antigo colega Sebastian Bergman para uma investigação, e desde então a sua relação com Ursula limitava-se, em exclusivo, ao trabalho. Isso incomodava Torkel, mais do que estava disposto a admitir. Não era o facto de tudo ser tão obviamente conduzido segundo as condições da própria Ursula – ele conseguia viver com esse facto –, mas sentia a falta dela. Mais do que conseguiria imaginar. Isso incomodava-o. E, ainda por cima, parecia que ultimamente se reaproximara do marido, Mikael. Até tinham ido passar o ?m-de-semana a Paris há pouco tempo.

Portanto, ele teria encontrado alguém?

Provavelmente não, e decerto não explicaria as complexidades do seu relacionamento com Ursula a Vilma, que acabara de se tornar adolescente.

– Não – respondeu –, não encontrei ninguém. E agora tenho mesmo de me ir embora.

Abraçou-a. Um grande abraço.

– Feliz aniversário – sussurrou-lhe. – Adoro-te.

– Eu também te adoro – respondeu ela. – E ao meu telemóvel. – Encostou os lábios recentemente retocados ao seu rosto.

Torkel ainda tinha um sorriso no rosto quando entrou no carro e partiu em direcção a Tumba. Telefonou a Ursula. Ela já ia a caminho.

 

Enquanto conduzia, Torkel dera por si a ansiar que se tratasse de outra coisa qualquer. Outra pessoa. Que não houvesse qualquer ligação às outras mulheres mortas. Mas assim que olhou para dentro do quarto percebeu que as suas esperanças haviam sido vãs.

As meias de nylon. A camisa de dormir. A disposição das coisas.

Aquela era a terceira vítima.

«De orelha a orelha» não era uma descrição adequada da ferida escancarada no pescoço. Ia antes de um lado ao outro da coluna vertebral. Como quando se abre uma lata e apenas se deixa um pedacinho para se poder dobrar a tampa para trás. A cabeça da mulher quase fora separada do corpo. Deve ter sido necessária uma força considerável para in?igir tal ferimento. Havia sangue em toda a parte, pelas paredes acima e no chão.

Ursula já andava atarefada a tirar fotogra?as. Movia-se com cuidado dentro do quarto, para se certi?car de que não pisava o sangue. Sempre que possível, era a primeira a chegar ao local. Olhou para cima, saudou-o com um aceno de cabeça e continuou a tirar fotogra?as. Torkel fez a pergunta, embora já soubesse a resposta.

– O mesmo?

– De certeza.

– Falei de novo com Lövhaga enquanto vinha para cá. Ele ainda está lá, exactamente onde é suposto estar.

– Mas nós já sabíamos isso, não é?

Torkel assentiu.

Não gostava daquele caso, pensou enquanto permanecia junto à porta do quarto a olhar para a mulher morta. Já estivera junto a outras portas a olhar para outros quartos, já vira outras mulheres em camisa de noite, as mãos e os pés amarrados com meias de nylon, violadas e com as gargantas cortadas. Encontraram a primeira em 1995. A seguir houve mais três, até que conseguiram capturar o assassino no ?nal da Primavera de 1996.

Hinde foi condenado a prisão perpétua em Lövhaga.

Nem sequer interpôs recurso.

E ainda estava lá.

No entanto, as novas vítimas eram cópias idênticas das de Hinde. As mãos e os pés atados da mesma maneira. Uso de violência excessiva para cortar a garganta. Até a coloração azulada das camisas de noite brancas era a mesma. Isso signi?cava que a pessoa que eles procuravam não era apenas um assassino em série, mas também um imitador. Alguém que, por qualquer motivo, andava a imitar homicídios praticados quinze anos antes. Torkel baixou os olhos para o seu bloco de notas e virou-se de novo para Ursula. Ela estivera envolvida no processo original na década de 1990. Ursula, Sebastian e Trolle Hermansson, que desde então se aposentara relutantemente.

– O marido disse que recebeu resposta a uma mensagem de texto cerca das nove horas da manhã, mas que não teve resposta à mensagem que enviou à uma da tarde.

– Ela está morta há mais de cinco horas e há menos de quinze.

Torkel sabia que Ursula tinha razão. Caso lho tivesse perguntado, ela teria salientado que o rigor mortis ainda não atingira as pernas, que não havia qualquer indicação de autólise, que tinham começado a surgir os primeiros sinais de máscara equimótica e outros termos técnicos relacionados com a ciência forense que ele ainda não se dera ao trabalho de aprender, apesar de todos os anos que passara ao serviço da polícia. Quando se perguntava, havia sempre alguém que os explicava numa linguagem simples.

Ursula limpou o suor da testa com as costas da mão. A temperatura estava bastante mais quente do que no piso inferior. O sol de Julho brilhara durante todo o dia. Havia moscas a zumbir no quarto, atraídas pelo sangue e pelo processo de decomposição, ainda invisível ao olho humano.

– A camisa de dormir? – perguntou Torkel após inspeccionar a cama uma última vez.

– O que tem? – Ursula baixou a câmara e olhou para a peça de roupa antiquada.

– Foi puxada para baixo.

– Pode ter sido o marido. Quis tapá-la.

– Vou perguntar-lhe se lhe tocou.

Torkel abandonou o seu lugar ao lado da porta e regressou para junto do marido inconsolável que se encontrava na cozinha. Na realidade, não estava a gostar nada daquele caso.


O HOMEM ALTO dormira algumas horas. Chegara a casa e fora directamente para a cama. Era o que fazia sempre. Rituais. A adrenalina percorrera-lhe o corpo. Na verdade, nunca se lembrava do que acontecera, mas a seguir sentia-se sempre como se tivesse usado as reservas de energia de uma semana durante aquele curto período de actividade. Porém, naquele momento estava acordado. O despertador já tocara. Estava na hora de começar a trabalhar. Outra vez. Saiu da cama. Tanta coisa ainda por fazer. E era vital que tudo fosse feito da maneira certa. No momento certo. Na ordem certa.

Rituais.

Sem estes não haveria mais do que caos e medo. Os rituais permitiam manter o controlo. Os rituais tornavam menos más as coisas más. Tornavam a dor menos dolorosa. Os rituais afastavam a escuridão.

O homem ligou a sua câmara Nikon ao computador e descarregou rapidamente as trinta e seis imagens.

A primeira mostrava a mulher a chorar, com os braços cruzados para proteger os seios enquanto permanecia de pé, à espera que ele lhe desse a camisa de noite para vestir. Escorria-lhe sangue de uma narina, até ao lábio inferior. Duas gotas salpicaram-lhe o seio direito quando caíram para o chão, deixando marcas vermelhas que pareciam chuva no vidro de uma janela. De início ela havia-se recusado a tirar a roupa. Pensara que, de alguma maneira, a roupa poderia protegê-la. Salvá-la.

Na trigésima sexta e última fotogra?a olhava directamente para a câmara. Ele acocorara-se junto à cama e debruçara-se para ?car mais perto, tão perto que sentira o calor do sangue que brotava da ferida aberta na garganta dela. Por essa altura quase todo o sangue já se esvaíra do corpo, e a maior parte fora absorvida pela roupa da cama e pelo colchão.

Veri?cou rapidamente as imagens intermédias. A camisa de noite vestida. As meias de nylon. Os nós. As cuecas despidas. Antes do acto. Depois do acto. A faca e o seu trabalho.

O medo.

A compreensão.

O resultado.

Tudo parecia bem. Ele poderia usar as trinta e seis. Aquele era o melhor resultado. Apesar da capacidade quase ilimitada da câmara digital, queria ater-se às limitações de um rolo de película à moda antiga. Trinta e seis imagens. Nem mais. Nem menos.

O ritual.


BILLY ESTAVA AJOELHADO junto à porta da frente, a examinar a fechadura, quando Torkel desceu as escadas. Virou-se para o chefe.

– Pelo que consigo ver, não há sinais de entrada forçada. Tudo indica que o deixaram entrar.

– A porta do pátio estava aberta quando cá chegámos – informou -o Torkel.

– O marido abriu-a quando chegou a casa – disse Billy. – Segundo ele diz, estava trancada.

– Ele tem a certeza disso? Parecia estar muito desnorteado com o choque...

– Disse que tinha a certeza.

– Vou perguntar-lhe de novo. Onde está a Vanja?

– Lá fora. Chegou agora mesmo.

– Há um computador no escritório do piso de cima. Leva-o contigo e vê se consegues encontrar algo. De preferência, qualquer coisa que a ligue às outras.

– Então ela é a terceira?

– Parece que sim.

– Vamos chamar alguém, ou...

Billy deixou a pergunta a pairar no ar. Torkel sabia que o que ele realmente queria dizer era: vamos chamar o Sebastian Bergman? Ocorrera o mesmo pensamento a Torkel, mas afastara-o de imediato. As desvantagens eram óbvias e excediam em muito as vantagens – mas isso fora antes dessa noite.

Antes da terceira vítima.

– Logo veremos.

– Quero dizer, tendo em conta quem ele anda a imitar...

– Como eu disse, logo veremos.

Pelo seu tom de voz, Billy compreendeu que estava na altura de parar de fazer perguntas. Aquiesceu e pôs-se em pé. Billy compreendia a frustração de Torkel. Não tinham provas – ou, para ser mais preciso, tinham-nas em abundância. Pegadas, impressões digitais, sémen e pêlos, mas, apesar de tudo, não estavam mais perto de proceder a uma detenção do que vinte e nove dias antes, quando encontraram a primeira mulher amarrada e assassinada da mesma maneira. O modo quase despreocupado como o perpetrador deixava vestígios forenses indicava que a pessoa em causa sabia que não constava em qualquer registo policial. Era demasiado organizado para que tudo aquilo fosse mero descuido. Por conseguinte, não tinha quaisquer condenações anteriores, pelo menos por um crime grave. No entanto, estava disposto a correr riscos. Ou era obrigado a fazê-lo. Ambas as possibilidades eram alarmantes; muito provavelmente, iria atacar de novo.

– Leva a Vanja contigo e revejam tudo de novo.

Se pelo menos conseguissem encontrar alguma ligação entre as vítimas, isso seria uma grande ajuda. Poderiam ?car a saber algo acerca do perpetrador e começarem a aproximar-se dele. O pior cenário era o de que o assassino escolhesse as mulheres ao acaso, que a visse na cidade, a seguisse, observasse onde morava, ?zesse os seus planos e esperasse pela oportunidade certa. Se era deste modo que andava a seleccionar as vítimas, só o conseguiriam apanhar quando cometesse algum erro. E até ao momento ele não dera um passo em falso.

Billy galgou as escadas com passadas rápidas, deu uma olhadela ao quarto onde Ursula continuava a trabalhar e entrou no escritório. Muito pequeno, talvez uns seis metros quadrados. Uma secretária a um canto, com uma cadeira de escritório. Uma placa de acrílico por baixo da cadeira, para as rodas não dani?carem o chão de madeira. Uma bancada mais baixa com uma impressora, o modem, o router, papéis, pastas de arquivo e outro material de escritório. Na parede por cima da secretária havia uma moldura comprida com espaço para oito fotogra?as. A vítima – Katharina – estava sozinha numa das imagens, a sorrir para a câmara por baixo de uma macieira; cabelo escuro, chapéu de palha, vestido branco estival. Parecia um anúncio ao Verão sueco. Talvez fosse em Österlen.[2] O marido – Richard – também aparecia sozinho noutra fotogra?a, na proa de um veleiro. Óculos de sol, bronzeado, concentrado. Todos os outros retratos mostravam ambos. Muito próximos, abraçados um ao outro, sorridentes. Pelo que parecia, viajavam muito. Ao fundo via-se uma praia de areia branca com palmeiras, e Billy conseguiu identi?car Nova Iorque e Kuala Lumpur. Não tinham ?lhos, evidentemente.

Portanto, pelo menos desta vez ninguém tinha perdido a mãe.

Deixou-se ?car ali algum tempo, a olhar para as imagens. A contemplar os sorrisos afectuosos do casal. Estavam abraçados um ao outro em todas as fotogra?as. Talvez posassem sempre para a câmara daquela maneira. Talvez fosse apenas ?ngimento, para mostrarem ao mundo quão felizes eram. Mas não o davam a entender; pareciam genuinamente apaixonados, ali em pé, abraçados um ao outro. Por algum motivo, Billy não conseguia distanciar-se daquelas imagens do homem e da mulher. Havia algo na sua felicidade que o afectava intensamente. Pareciam demasiado alegres. Muito apaixonados. Muito vivos. As coisas não costumavam afectar Billy daquela maneira. Não tinha qualquer di?culdade em manter uma distância pro?ssional entre si e as vítimas. Obviamente que, até certo ponto, era sempre afectado; sofria com os familiares, mas em geral a tristeza não o atingia tão profundamente. Sabia muito bem porque era diferente desta vez. Acabara de conhecer alguém cuja expressão de felicidade e sorriso convidativo lhe faziam lembrar a mulher das fotogra?as. Isso tornara a tragédia real. Pensou em Maya, puxando os cobertores para cima e abraçando-se sonolentamente a ele nessa manhã. Tentara fazer com que ele ?casse só mais um bocadinho e mais um bocadinho e mais um bocadinho, até que a manhã tivesse passado. A imagem de uma Maya sorridente combinava na perfeição com as fotogra?as românticas que tinha à sua frente, mas não com a mulher grotescamente contorcida, amarrada e violada no quarto ao lado. E, no entanto, por um instante ele vira Maya ali deitada de borco, numa enorme poça de sangue. Virou a cabeça para o lado e fechou os olhos. Nunca tinha sentido aquele medo. Nunca.

E não devia deixar que isso lhe acontecesse de novo. Sabia disso. Nunca devia permitir que a violência e o terror se apoderassem dele e o envenenassem. Isso destruiria o amor. Torná-lo-ia medroso e constantemente ansioso. Para ele não havia dúvidas acerca da importância de manter a vida privada e o trabalho completamente separados; sem essa distância podia perder tudo. Podia abraçar Maya, estreitá-la nos seus braços, mas jamais poderia partilhar esse sentimento. Era demasiado sombrio e insondável para ser incluído no relacionamento deles. Quando chegasse a casa iria abraçá-la durante muito tempo. Ela iria perguntar-lhe porquê. Ele iria mentir. Não queria revelar-lhe a verdade. Billy deu meia-volta, pegou no computador portátil que estava em cima da secretária e desceu as escadas para ir procurar Vanja.


O HOMEM ALTO deu ordem ao computador para imprimir todas as fotogra?as, e a impressora respondeu de imediato com um e?ciente zumbido de actividade. Quando as imagens surgiram no papel brilhante, criou uma nova pasta para as fotogra?as que estavam no ecrã, copiou-a, entrou na página da Internet protegida por palavra-passe, identi?cou-se como administrador e carregou a pasta para lá. A página da Internet tinha o estranho endereço fygorh.se, que era, na verdade, uma combinação aleatória de letras que não iriam aparecer no topo de qualquer lista que se procurasse através de um motor de busca. Se, de alguma maneira, um navegador ocasional acabasse por ir ter àquela página, apenas veria um texto mal arrumado e pouco legível sobre aquele fundo colorido em movimento. O texto, que esporadicamente mudava de cor e de fonte, consistia em excertos de livros, investigações do governo, dissertações, outros websites e passagens completamente insigni?cantes, sem qualquer separação ou espaços entre si. Aqui e acolá o texto era entrecortado por estranhas imagens e desenhos, desprovidos de qualquer objectivo discernível. Parecia uma versão digital dos disparates que por vezes se vêem nos abrigos das paragens de autocarro ou nas caixas de electricidade, criados por alguém que fora incapaz de escolher entre todas as possibilidades à disposição e, em vez disso, decidira tentar pôr tudo no mesmo sítio. Ninguém conseguia concentrar-se naquilo durante muito tempo. Ele requisitara as estatísticas de visitantes. Das setenta e três pessoas que inexplicavelmente haviam encontrado maneira de lá chegar, a única que permanecera mais tempo só conseguira fazê-lo durante um minuto e vinte e seis segundos. Que era exactamente o que ele queria. Ninguém se dera ao trabalho de clicar até à quinta página nem reparara no pequeno botão vermelho situado do lado direito, no meio de um texto sobre os edifícios inventariados em Katrineholm. Quando se clicava no botão abria-se uma nova página, que pedia o nome de utilizador e a palavra-passe. Após essa veri?cação de segurança encontrava-se a pasta com as fotogra?as que ele acabara de carregar. A pasta tinha o título, nada informativo, «3».

A impressora terminara o seu trabalho. Pegou nas fotogra?as, folheou-as e contou-as. Estavam ali as trinta e seis. Pegou numa grande mola para papel e prendeu-a no topo das imagens. Caminhou até ao outro lado da sala, onde havia uma placa de contraplacado pregada à parede, e pendurou a mola num prego situado no canto superior direito. Por cima do prego estava o número três, contornado com tinta preta. Deu uma olhadela às imagens mais acima, por baixo dos números «1» e «2». Mulheres. Nos seus quartos. Seminuas. A chorar. Aterrorizadas. A mola do canto esquerdo tinha apenas trinta e quatro imagens. Ele falhara duas. Antes do acto. Estava muito ansioso. Não obedecera ao ritual. Isso nunca mais voltaria a acontecer. O segundo molho estava completo. Pegou novamente na câmara e tirou uma fotogra?a ao painel com a sua macabra exposição. A primeira fase estava completa. Pousou a câmara em cima da mesa e pegou no saco de desporto preto que estava no chão, ao lado da porta.

Foi para a cozinha.

O homem colocou o saco em cima da mesa da cozinha, abriu-o e pegou na embalagem das meias de nylon que havia usado. Philippe Matignon Noblesse 50 Cammello.

Como de costume.

Como sempre.

Abriu o armário por baixo do lava-louças e deitou fora a embalagem. Voltou para trás, pegou na faca que estava dentro do respectivo saco de plástico, tirou-a e colocou-a no lava-louças. A seguir, abriu de novo o armário por baixo do lava-louças e deitou fora o saco de plástico sujo de sangue. Fechou a porta do armário e abriu a torneira. A água quente caiu em cascata por cima da lâmina larga. O sangue coagulado começou a soltar-se do metal e desapareceu pelo ralo abaixo misturado com a água, rodopiando suavemente no sentido dos ponteiros do relógio. Pegou na faca pelo cabo e virou-a ao contrário. Usou detergente líquido e uma escova para lavar os restos de sangue que estavam mais agarrados. Depois, enxugou a arma com todo o cuidado e guardou-a de novo no saco. Abriu a terceira gaveta a contar de cima do armário ao lado do forno e tirou um rolo de sacos de congelação com capacidade para três litros. Arrancou um dos sacos, guardou o rolo, fechou a gaveta e colocou-o ao lado da faca. A seguir, saiu da cozinha.


BILLY ENCONTROU VANJA no relvado. Estava em pé, de costas para o pátio e para as grandes janelas. À sua frente estendia-se um relvado muito bem aparado, rematado por dois canteiros com ?ores muito coloridas. Billy não sabia os nomes das plantas e calculou que Vanja também não estivesse fascinada pelas lindas ?ores.

– Como está a correr?

Vanja sobressaltou-se. Não o ouvira aproximar-se.

– Ele não deixou um cartão-de-visita, se é isso que queres dizer.

– Está bem... – Billy deu um passo para trás.

Vanja compreendeu que fora um pouco ríspida. A pergunta de Billy até podia nem sequer estar relacionada com o trabalho. Ele conhecia-a. Conhecia-a bem. Sabia quanto ela odiava aquele tipo de crime. Não era por causa do sangue e da violência sexual. Já vira muito pior. Mas tratava-se de uma mulher.

Morta.

Na sua própria casa.

As mulheres não deviam acabar violadas e assassinadas nas suas próprias casas. Em todo o caso, onde quer que fossem, estavam constantemente vulneráveis. Na verdade, deviam mudar de roupa antes de regressarem a casa a pé vindas de algum clube ou bar. Tinham de evitar as passagens subterrâneas, os parques e as ruas ermas. Não deviam ouvir o seu iPod. A sua liberdade de movimentos era restrita e as oportunidades limitadas. Pelo menos deviam poder sentir-se em paz quando estavam na sua própria casa.

Descontraídas.

Seguras.

– Encontrei isto – disse Vanja quando se virou para trás e caminhou de volta para o pátio. Billy seguiu-a. Subiram para o alpendre e passaram pelas quatro cadeiras de vime e pela mesa que tinha ao centro um pára-sol verde fechado, que recordavam a Billy a esplanada de um restaurante e não uma vulgar mobília de jardim. Aproximaram-se de dois cadeirões brancos de madeira, onde podiam facilmente imaginar os Granlund a desfrutarem do sol ao ?m do dia com uma bebida.

– Ali. – Vanja apontou para uma janela do lado esquerdo. Billy olhou para o local. No interior conseguia ver a maior parte do piso térreo; Torkel estava sentado a conversar com Richard Granlund enquanto a equipa que investigava o local do crime percorria o resto da casa, mas não devia ser isso que Vanja pretendia mostrar -lhe.

– O quê? – perguntou.

– Ali – disse ela de novo, apontando. Daquela vez foi mais precisa, e viu aquilo a que ela se referia. Estava praticamente à sua frente: uma marca no vidro da janela. Era quase rectangular e media alguns centímetros quadrados, com um ponto mais pequeno por baixo e ladeada por outras duas em forma de meia-lua. A da esquerda curvava-se ligeiramente para a direita, a da direita ligeiramente para a esquerda, como dois parêntesis que encerrassem as restantes marcas. Billy percebeu de imediato o que era aquilo. Alguém – provavelmente o assassino – espreitara através da janela, com a testa e o nariz apoiados no vidro entre as mãos fechadas, para cobrir a luz, e deixara secreções das suas glândulas sebáceas na vidraça.

– Ele é alto – disse Billy, inclinando-se para a frente. – Mais alto do que eu.

– Se foi ele quem fez isto – disse Vanja acenando a cabeça na direcção das marcas –, então isso signi?ca que podia ser visto a partir daquelas casas. – Apontou para as casas da vizinhança, do outro lado dos canteiros. – Alguém pode tê-lo avistado.

Billy duvidou. A meio de um dia da semana em Julho. As casas mais próximas tinham o aspecto de que os seus moradores podiam ter ido de férias. Quando a polícia apareceu, muito poucas almas curiosas se juntaram na rua ou descobriram que tinham coisas importantes para fazer no quintal. Aquele era o tipo de zona residencial que ?cava praticamente deserto no Verão. Os moradores dispunham de tempo e de dinheiro para irem para as suas moradias estivais, para irem velejar ou mesmo para viajarem para o estrangeiro. O perpetrador saberia disso? Contara com isso?

Provavelmente.

Iriam bater às portas, claro. A muitas portas. Se tinham aberto a porta ao assassino, como Billy acreditava, era provável que se tivesse aproximado da casa pela frente. Ir bater à porta das traseiras era esquisito e assustador, e as hipóteses de conseguir entrar seriam consideravelmente reduzidas. Por isso, deve ter subido pelo caminho do jardim. Aí também teria ?cado completamente visível. Mas o mesmo se aplicara nos dois casos anteriores, e isso não os ajudara. Nenhuma pessoa vira nada nem ninguém. Nenhum carro, ninguém a comportar-se de um modo estranho na zona, ninguém que andasse a perguntar o caminho, a esconder-se por ali, que passasse de bicicleta, que aparecesse por lá com uma mensagem.

Nada nem ninguém.

Tudo estivera perfeitamente normal no bairro, com a pequena excepção de uma mulher ter sido brutalmente assassinada.

– O Torkel quer que voltemos para a sede – disse Billy. – Se tivermos sorte, desta vez haveremos de encontrar um denominador comum.

– Parece-me que precisamos de alguma sorte. Ele está a acelerar o ritmo.

Billy anuiu. Tinham decorrido três semanas entre o primeiro e o segundo homicídios, mas apenas oito dias entre o segundo e o terceiro. Começaram a atravessar o relvado, que quase se assemelhava a um campo de golfe; apesar de uma longa temporada de tempo quente e seco, não se avistava uma única mancha amarelada. Vanja olhou para o colega enquanto este caminhava ao seu lado com o hoodie azul -escuro, segurando o computador portátil numa das mãos.

– Desculpa se há pouco fui um bocado irritante.

– Tudo bem, calculei que estivesses irritada.

Vanja sorriu para si mesma. Era muito agradável trabalhar com Billy.


O QUARTO de dormir.

Com o saco na mão, o homem alto foi directamente até à cómoda situada ao lado da janela. Pousou o saco na peça de mobiliário e abriu a gaveta de cima. Do lado direito tirou uma camisa de dormir muito bem dobrada e guardou-a no saco. Do lado esquerdo tirou uma embalagem de meias de nylon Philippe Matignon Noblesse 50 Cammello, tom castanho-claro, e guardou-a dentro do saco de desporto preto. Fechou o saco e colocou-o dentro da gaveta, entre a restante roupa. Coube na perfeição.

Claro.

Fechou a gaveta.

Voltou para a cozinha.

Tirou do armário de limpezas um saco de papel cuidadosamente dobrado e abriu-o enquanto caminhava para o frigorí?co. Na prateleira da porta do frigorí?co estava um refrigerante numa garrafa de vidro e um pacote de bolachas Maria. Na gaveta inferior havia bananas. Pegou em duas e colocou-as dentro do saco de papel, juntamente com a bebida gasei?cada, as bolachas e uma barra de chocolate que tirou da prateleira de cima. Abriu pela terceira vez a porta do armário por baixo do lava-louças e retirou uma garrafa de plástico que outrora contivera cloro. Quando en?ou a garrafa dentro do saco de papel apercebeu-se do leve cheiro a desinfectante, depois levou-o para o vestíbulo e pousou-o no chão, à direita da porta da frente.

Virou-se para trás e contemplou de novo o apartamento. Tudo sereno. Pela primeira vez em várias horas. O ritual havia sido cumprido. Ele terminara. Mas também estava pronto.

Para a próxima.

Para a número quatro.

Agora, tudo o que precisava de fazer era esperar.


PASSAVAM ALGUNS MINUTOS da meia-noite quando Vanja entrou na sala que nunca era referida de outra maneira a não ser como «a Sala». Seis cadeiras dispostas em redor de uma mesa de reunião oval por cima de um tapete verde-claro. Um painel de controlo para as discussões em grupo, videoconferência e o projector no tecto por cima da mesa, na qual apenas se viam quatro copos e várias garrafas de água mineral. Não havia paredes de vidro viradas para o resto do departamento, o que signi?cava que ninguém podia ver para dentro da Sala. Numa parede comprida estava pendurado o quadro branco, onde Billy garantia que eram a?xadas todas as informações relativas ao caso em que andavam a trabalhar de momento. Estava justamente a colocar um retrato de Katharina Granlund quando Vanja entrou, sentou-se e pousou três pastas à sua frente, em cima da mesa.

– O que estavas a fazer hoje à noite?

Billy ?cou um pouco surpreendido com a pergunta; esperava que ela o questionasse acerca do caso. Que lhe perguntasse se tinha encontrado alguma ligação entre as três mulheres mortas. Se já havia algum progresso. Não que Vanja não se interessasse pelos colegas, mas era a agente policial mais concentrada que Billy conhecia e, quando estava em serviço, raramente se prestava a conversa ?ada ou a falar de assuntos pessoais.

– Estava no teatro ao ar livre – respondeu Billy, sentando-se. – Tive de me vir embora logo a seguir ao intervalo.

Vanja olhou para ele com um misto de surpresa e de incredulidade.

– Mas tu não vais ao teatro!

Era verdade. Por várias vezes em que não estavam a falar de trabalho, Billy referira-se ao teatro como uma «forma de arte morta» e exprimira a opinião de que, tal como havíamos abandonado o cavalo e a carroça quando o carro a motor apareceu, devia ter sido concedida uma morte serena e digna ao teatro quando o cinema nasceu.

– Conheci uma rapariga – ela quis ir.

Vanja sorriu; claro que foi uma rapariga.

– E o que disse ela quando tiveste de sair à pressa?

– Não tenho a certeza se acreditou em mim. Já tinha sido obrigada a acordar-me durante o primeiro acto... E tu, o que andavas a fazer?

– Nada, a bem dizer; estava em casa a ler coisas acerca do Hinde.

E isso levou-os ao motivo pelo qual estavam sentados naquele edifício praticamente vazio em Kungsholmen[3] quando o novo dia ainda só tinha alguns minutos de vida.

 

Três quartos de hora depois foram obrigados a reconhecer que ainda não haviam feito qualquer progresso. Não havia um denominador comum entre as três vítimas. Tinham idades diferentes, duas eram casadas, uma divorciada, uma tinha ?lhos; não cresceram no mesmo local, não frequentaram a mesma escola, não trabalharam na mesma área; não eram ?liadas nos mesmos clubes ou organizações nem tinham passatempos em comum; os seus maridos e ex-marido não tinham quaisquer ligações óbvias; não pareciam ser amigas no Facebook ou noutras redes sociais.

Não se conheciam umas às outras.

Não tinham nada em comum.

Pelo menos nada que Billy e Vanja conseguissem averiguar. Billy fechou o seu computador e recostou-se na cadeira, cansado. Vanja levantou-se e foi até ao quadro branco. Olhou para as fotogra?as das três mulheres. Uma fotogra?a de cada uma delas ainda viva, várias quando mortas. Na extremidade direita havia sido disposta, na vertical, uma série de fotogra?as. Fotogra?as da década de 1990. Assustadoramente parecidas com as novas imagens.

– Ele anda a imitá-los exactamente.

– Sim, também já pensei nisso. Como consegue fazê-lo? – Billy levantou-se e foi ter com ela. – Achas que se conhecem?

– Não necessariamente; as fotogra?as antigas foram publicadas.

– Onde? – perguntou Billy surpreendido. Era-lhe difícil imaginar que algum jornal imprimisse aquelas fotogra?as horrendas, e em 1996 a Internet estava longe de ser o inesgotável poço de informação que é hoje em dia.

– Em dois livros do Sebastian, entre outros sítios. – Vanja virou-se de frente para ele. – Já os leste?

– Não.

– Devias ler. São realmente muito bons.

Billy limitou-se a abanar a cabeça sem proferir uma palavra. Dada a opinião que Vanja tinha acerca de Sebastian, aquele devia ser o único comentário positivo que faria a respeito dele. Billy hesitou; era muito tarde e Vanja já tinha mostrado alguns sinais de irritação, mas deu por si a perguntar-lhe:

– Achas que o iremos chamar?

– Ao Sebastian?

– Sim.

– Espero bem que não.

Vanja voltou para a mesa, recolheu as suas pastas e dirigiu-se para a porta.

– No entanto, temos de ir visitar o Hinde a Lövhaga. Pensei que podíamos ir os dois. – Abriu a porta. – Até amanhã. Podes telefonar ao Torkel e contar-lhe o pouco que averiguámos?

Sem esperar por uma resposta virou-lhe as costas, deixando Billy sozinho. Portanto, a tarefa dele era telefonar a Torkel para lhe transmitir as más notícias. Como de costume. Olhou para o relógio. Era quase uma hora. Com um suspiro, pegou no telemóvel.


SEBASTIAN ACORDOU com alguém a tocar-lhe no rosto. Abriu os olhos, orientou-se rapidamente no quarto desconhecido e virou a cabeça para a esquerda enquanto recapitulava a noite que o conduzira àquele local. Seguira Vanja até casa. Vira-a entrar no prédio. Estava prestes a mudar-se para o seu habitual posto de observação quando, de repente, ela voltou a sair. Segundos depois um carro-patrulha parou e ela entrou no veículo. Tinha acontecido algo.

Precisavam de Vanja no local de um crime.

Não precisavam dele em lugar nenhum.

Regressara cansado ao seu apartamento, que era demasiado grande, mas quase ao mesmo tempo sentira-se de novo em desassossego. Só havia uma maneira de se livrar daquela sensação de desconforto e insatisfação. Passara os olhos pelo jornal da manhã e reparara numa palestra que iria decorrer no ABF -huset:[4] «Uma Noite com Jussi Björling.»[5] O assunto não lhe interessava minimamente mas, como era habitual nos eventos culturais, o público era, na sua maioria, composto por mulheres, e após uma breve avaliação das possibilidades sentara-se ao lado de uma mulher com os seus quarenta anos que estava na terceira ?la. Não tinha aliança de casada. Durante o intervalo metera conversa com ela. A seguir, tomaram juntos uma bebida sem álcool. Decidiram ir comer algo. Caminharam até ao apartamento dela em Vasastan, que ?cava perto. Fizeram sexo. E agora ela acordara-o. Ellinor Bergkvist. Assistente de loja nos grandes armazéns Åhléns. Produtos para o lar. Que horas seriam? Lá fora havia luz, mas isso não queria dizer nada. A?nal, estava-se em pleno Verão. Ellinor estava deitada de lado, virada para ele, com o cotovelo na almofada e a cabeça apoiada na mão enquanto lhe delineava os contornos do rosto com o dedo indicador da outra mão. Uma pose que deve ter visto nalguma comédia romântica. Encantadora num ?lme, incrivelmente irritante na realidade. Uma mecha de cabelo cor de morango alourado havia-lhe descaído para cima de um olho, e exibiu um sorriso que Sebastian assumiu ser «malicioso» quando deteve o dedo na ponta do seu nariz e lhe deu um pequeno empurrão.

– Bom dia, seu dorminhoco.

Sebastian suspirou. Não conseguia decidir o que era pior: falarem com ele como se fosse um bebé, ou aquela aura de intimidade romântica que emanava dela. Provavelmente era esta última. Durante a curta caminhada até ao apartamento dela, na noite anterior, ele já pressentira que as coisas poderiam ser assim.

Ela pegara-lhe na mão.

Dera-lhe a mão.

Durante todo o caminho. Como numa imagem estereotipada de um casal apaixonado, a passear por Estocolmo numa noite de Verão. Cinco horas após se terem conhecido. Era aterrador. Sebastian pensara em pôr ?m a tudo aquilo ali mesmo, apresentar-lhe as suas desculpas e ir-se embora, mas já investira demasiado tempo e energia para desistir antes de obter aquilo que procurava. Aquilo de que precisava.

O sexo fora monótono e indiferente por parte dele, mas pelo menos isso permitira-lhe dormir algumas horas, o que já era qualquer coisa.

Sebastian pigarreou.

– Que horas são?

– Seis e meia. Quase. O que queres fazer hoje?

Sebastian suspirou de novo.

– Eu tenho de ir trabalhar, infelizmente.

Uma mentira. Ele não trabalhava. Há muitos anos que não trabalhava, com excepção da breve temporada na Riksmord em Västerås, alguns meses antes. Agora não fazia nada, e tencionava continuar a não o fazer. A bem dizer não havia nada que lhe apetecesse fazer, muito menos com Ellinor Bergkvist.

– Quanto tempo achas que terias dormido se não te tivesse acordado?

Mas que merda de pergunta era aquela? Como haveria ele de saber? Provavelmente o sonho tê-lo-ia acordado – eram muito poucas as noites em que conseguia escapar-lhe –, mas era impossível saber quando. Não que tivesse alguma intenção de falar com ela acerca disso. Ia-se embora dali. Sair do apartamento e de Vasastan o mais depressa possível.

– Não faço ideia – até às nove, talvez. Porquê?

– Duas horas e meia. – O dedo indicador estava de volta, a deslocar-se pela sua testa, nariz e lábios. Um gesto que, de certa forma, era muito mais íntimo do que algo que tivessem feito poucas horas antes. – Então, se não queres voltar a dormir – prosseguiu Ellinor – isso signi?ca que temos duas horas para fazer qualquer coisa sem interferir no teu trabalho importante. – O dedo continuou a descer pelo queixo, pelo pescoço, pelo peito e por baixo do edredão.

Sebastian ?tou-a. Os olhos verdes dela. Reparou que na íris do olho esquerdo havia uma mancha castanha. A mão prosseguiu o seu caminho descendente.

E veio a descobrir-se que, a?nal, havia algo que Sebastian podia considerar fazer com Ellinor.

 

Pequeno -almoço.

Como conseguira ela convencê-lo a concordar com aquilo?

Uma promessa irre?ectida, casual, após o coito?

A janela da cozinha tinha vista para o quintal e estava aberta, mas o apartamento continuava quente. Lá fora ouviu-se o som atroador de uma moto a passar, mas além disso havia sossego. A quietude de uma manhã de Verão. Sebastian pôs-se a pensar que dia era enquanto os seus olhos se ?xaram na mesa do pequeno-almoço. Iogurte, dois tipos de cereais, muesli, sumo acabado de espremer, queijo, ?ambre, salsicha alemã, pepinos, tomate, pimentos, fatias de melancia. Quarta-feira, seria isso? Quinta-feira? O aroma do pão fresco encheu a cozinha quando Ellinor retirou o tabuleiro do forno e colocou as minibaguetes em cima de uma toalha de chá. Colocou a toalha de chá dentro de um cesto de vime para o pão e pousou-o na mesa, com um sorriso, antes de voltar para a ilha no centro da cozinha espaçosa. Sebastian não estava com fome. O jarro eléctrico desligou-se; Ellinor pegou nele e despejou a água a ferver na caneca que estava à frente dele. Sebastian baixou os olhos para a caneca, vendo a água tornar-se castanho-escura assim que entrou em contacto com os grânulos lio?lizados que estavam no fundo. Um olhar que Ellinor interpretou claramente como uma crítica.

– Desculpa, só tenho café instantâneo; eu bebo sempre chá.

– Não faz mal...

Ela verteu água na sua própria caneca e levou o jarro eléctrico para a ilha. Parou a meio do caminho de regresso para a mesa.

– Bebes leite?

– Não.

– Posso aquecê-lo se quiseres. Para juntares ao café.

– Não, está bem assim.

– De certeza?

– Sim.

– Está bem.

Ela sorriu, sentou-se à frente dele, pegou numa saqueta de chá – de limão e gengibre –, colocou-a dentro da sua caneca e mergulhou-a, puxando-a para cima e para baixo algumas vezes. Viu Sebastian a olhar de novo para ela e sorriu-lhe. Em troca, ele conseguiu esboçar algo que, com uma certa dose de boa vontade, podia ser interpretado como um sorriso, e a seguir desviou o olhar. Não queria estar ali. Normalmente evitava situações como aquela. Agora lembrava-se porquê. Não conseguia suportar a falsa sensação de companheirismo, a ideia de que ambos tinham algo em comum, malgrado o facto de que nunca mais se veriam – pelo que a si lhe dizia respeito. Fixou o olhar num dos armários da cozinha e deixou o seu espírito devanear enquanto Ellinor misturava uma colher de mel no chá. Ela tirou uma minibaguete do cesto, partiu-a ao meio, barrou-a com manteiga e a seguir juntou queijo, presunto e duas rodelas de pimento amarelo. Deu uma dentada, ?tando Sebastian enquanto mastigava. Sebastian, que continuava a olhar para os armários atrás dela.

– Sebastian?

Ele sobressaltou-se e dirigiu-lhe um olhar interrogador.

– Em que estás a pensar?

Ele realmente tinha desaparecido. Outra vez. Para o lugar onde acabava sempre. Para aquilo que hoje em dia parecia ocupar-lhe todas as horas de vigília. Era uma sensação praticamente desconhecida para Sebastian. A da obsessão. Mesmo durante a fase de maior sucesso da sua carreira, quando se dedicara por completo ao serviço, nunca tivera qualquer di?culdade em repelir pensamentos indesejáveis. Se algum caso ameaçasse dominar a sua vida de um modo que ele não gostava, deixava simplesmente de pensar no assunto durante alguns dias. Fazia outra coisa. Recuperava a iniciativa.

Sebastian Bergman era um homem que não perdia o controlo. Por nada, nem por ninguém. Pelo menos, era assim que as coisas costumavam ser.

Agora tudo tinha mudado.

A vida dera-lhe um safanão. Dani?cara-o.

Não apenas uma vez. Duas vezes.

Após o desastre na Tailândia no Natal de 2004, quando foi para Västerås, três meses antes, nem sequer estava perto de encontrar o seu caminho de regresso. O objectivo da viagem era a venda da casa dos seus pais, e quando andava a limpar o local encontrara algumas cartas. Cartas enviadas à sua mãe em 1979. Por uma mulher que dizia estar grávida dele. Cartas que ele não recebera na altura. Há três meses ?zera tudo o que podia para localizar a remetente. Os antigos colegas de Sebastian na Riksmord tinham ido a Västerås investigar o brutal homicídio de um rapaz e ele arranjara maneira de se intrometer no caso a ?m de poder utilizar todos os recursos disponíveis na polícia para conseguir atribuir um rosto à remetente daquelas cartas. Para encontrar um endereço. Informação.

Descobrira tudo. No número 12 da Storskärsgatan uma mulher abrira-lhe a porta. Um rosto. O rosto de Anna Eriksson. Dera-lhe algumas informações. Sim, ele tinha uma ?lha, mas ela nunca saberia que Sebastian era o seu pai. Ela já tinha um pai. Valdemar Lithner. Valdemar, que sabia que Vanja não era sua.

Portanto, Sebastian e a ?lha nunca se conheceriam. Isso iria destruir muita coisa. Destruiria tudo. Para todos. Sebastian prometera que nunca mais a iria procurar.

O problema era que eles já se conheciam.

Mais do que isso.

Trabalharam juntos.

Em Västerås. Ele e Vanja Lithner, investigadora da Riksmord. Esperta, motivada, e?ciente, forte.

A sua ?lha.

Ele tinha uma ?lha.

Novamente.

Desde então andara mais ou menos a persegui-la. Na verdade não sabia explicar porquê, nem sequer a si próprio. Conseguia vê-la, mas isso era tudo. Nunca lhe dava a saber que estava ali. O que lhe diria? O que poderia dizer-lhe?

Olhou para Ellinor, que lhe perguntara com gentileza em que estava a pensar, e respondeu com a palavra que provavelmente teria o mínimo de consequências:

– Nada.

Ellinor acenou com a cabeça, aparentemente satisfeita com a resposta ou, pelo menos, com o facto de ter conseguido despertar-lhe de novo a atenção. Sebastian pegou numa fatia de melancia. De certeza que seria capaz de engolir aquilo.

– Em que andas a trabalhar?

– Porquê?

Uma resposta desagradável, nitidamente indelicada, mas que servia muito bem para travar de imediato aquele tipo de conversa. Na verdade, Sebastian não queria que aquela experiência de pequeno-almoço, já por si desagradável, se transformasse numa oportunidade de ?carem a conhecer-se. Já se conheciam o su?ciente. Ele sabia mais acerca dela do que ela acerca dele. Sabia que se chamava Sebastian Bergman e era psicólogo. Ele conseguira iludir todas as outras perguntas pessoais ?ngindo-se interessado nela.

– Tu disseste que tinhas de ir trabalhar – continuou Ellinor. – Estamos a meio de Julho e, como a maioria das pessoas está de férias, pus-me a pensar no que andas a fazer.

– Ando a trabalhar numa espécie de... relatório.

– Sobre o quê?

– É um... acompanhamento que ando a fazer. Para a academia de polícia.

– Pensei que me tinhas dito que és psicólogo?

– Pois sou, mas às vezes trabalho com a polícia.

Ela fez um gesto de assentimento. Bebeu um gole de chá e pegou na baguete.

– Quando tem de estar concluído?

Mas que merda de pergunta.

– Daqui a cerca de duas semanas.

Aqueles olhos verdes. Ela sabia que ele estava a mentir. Isso realmente não importava. Não lhe interessava o que ela pensasse a seu respeito, mas não se sentia confortável com aquela situação de pequeno-almoço quotidiano quando ambos sabiam que não passava de uma farsa. Uma quimera. Estava farto. Empurrou a cadeira para trás.

– Tenho de ir.

– Eu telefono-te.

– Claro...

A porta fechou-se atrás de Sebastian. Ellinor ?cou a ouvir os seus passos enquanto descia as escadas. Sorriu para si mesma. Quando deixou de o ouvir, levantou-se e foi para o quarto. Para a janela. Se ele atravessasse a rua e virasse à esquerda, conseguiria vê-lo. Não foi isso que aconteceu.

Ellinor deixou-se cair na cama de casal desfeita. Deitou-se do lado dele. Tapou-se com o lençol dele, enterrou o nariz na almofada dele e inalou profundamente. Conteve a respiração, como se tentasse manter o cheiro dele dentro de si.

Apegar-se a ele.


VANJA MORAVA num apartamento na colina sobranceira ao Porto Livre.[6] Sebastian tinha quase a certeza de que era um apartamento com três divisões. Tanta certeza quanta poderia ter a partir do seu posto de observação, em cima de um pequeno outeiro a cem metros de distância. Era um prédio moderno, pintado de amarelo-claro. Sete andares. Vanja morava no quarto piso. Pelo que conseguia ver, não havia movimentação dentro do apartamento. Talvez ela ainda estivesse a dormir. Ou a trabalhar. Na verdade, de momento não importava que não a visse. Tinha ido até ali sobretudo porque não sabia para onde ir.

Algumas semanas antes fora diferente.

Ele metera na cabeça que tinha de a ver. Precisava de a ver. De ver o que ela andava a fazer. Decidira que tinha de obter uma visão melhor do aquela que o outeiro lhe proporcionava, e para o conseguir tentara trepar a uma das grandes e frondosas árvores que cresciam na cavidade que havia por baixo. O primeiro metro correra muito melhor do que esperara. Conseguira agarrar-se bem a alguns ramos mais acima e continuara a subir. Depois avistara um bom ramo ainda mais acima e, após tactear durante algum tempo, conseguira içar-se mais alguns metros. O Sol brilhava por entre as folhas, que tinham um cheiro maravilhosamente fresco. De repente sentira-se como um rapazinho em plena aventura. Quanto tempo havia passado desde que subira a uma árvore? Muitos, muitos anos. Mas já fora bom naquilo.

Ágil.

Lesto.

O seu pai não o encorajava; sempre fora da opinião de que Sebastian devia dedicar o seu tempo aos desa?os intelectuais, desenvolvendo a sua veia musical e os talentos artísticos e criativos. A mãe preocupava-se mais com o estado da sua roupa. Como nenhum deles gostava que ele subisse às árvores, fazia-o com frequência. Com a maior frequência possível. E agora estava de novo a desfrutar da sensação de fazer algo perigoso, algo proibido.

Depois olhou para o chão e percebeu que, mesmo daquela altura, iria ter muita di?culdade em descer, pelo menos sem se magoar. A agilidade e a rapidez já não eram as principais qualidades que se podiam atribuir a Sebastian. No momento em que tomou consciência desse facto terrível e assustador, o seu casaco ?cou preso num ramo aguçado e protuberante que estava atrás dele e perdeu o equilíbrio. De repente, o rapazinho que se preparava para uma aventura foi substituído por um homem inapto de meia-idade, pendurado vários metros acima do solo enquanto o ácido láctico se começava a acumular nos seus braços. Sebastian foi forçado a sacri?car tanto a ilusão de ousadia juvenil como o seu casaco; arrastou-se laboriosamente para o tronco e a seguir deslizou, ou melhor escorregou sem cerimónias, até aos ramos mais baixos, onde travou a sua rápida descida de um modo bastante doloroso. Com esforço, conseguiu chegar ao chão; as suas pernas tremiam, o casaco estava rasgado e tinha umas compridas e dolorosas escoriações no interior das coxas.

Depois, contentou-se em ?car de pé no já familiar outeiro a observar o apartamento de Vanja.

Aquilo era su?ciente.

Era, decerto, loucura su?ciente.

Nem sequer se atreveu a pensar no que aconteceria se Vanja olhasse para o exterior e o visse pendurado numa árvore do lado de fora do seu apartamento.

O local onde ela morava parecia muito bonito. Cortinas modernas. Flores vermelhas e brancas nas janelas. Pequenas lâmpadas de intensidade variável nos parapeitos. Uma varanda voltada a nordeste, onde nos dias agradáveis tomava o seu café entre as sete e vinte e as sete e quarenta e cinco da manhã. Isso signi?cava que Sebastian tinha de se agachar atrás de alguns arbustos de zimbro; jamais imaginara que viriam a ser-lhe tão familiares. Ela, a sua ?lha, era obviamente uma mulher que se apegava às rotinas. Levantava-se às sete durante a semana, e por volta das nove aos ?ns-de-semana. Às terças e quintas-feiras ia correr antes do trabalho. Seis quilómetros. Aos domingos percorria o dobro da distância. Trabalhava com frequência até tarde, e raramente chegava a casa antes das oito. Não saía muito; talvez fosse tomar uma bebida uma ou duas vezes por mês. Com as raparigas. Nenhum namorado, pelo que Sebastian percebera. Às quintas-feiras jantava com os pais em Storskärsgatan. Ia sozinha, mas no regresso a casa normalmente Valdemar Lithner acompanhava-a a pé.

O pai dela.

Eles eram próximos, isso era perfeitamente óbvio quando caminhavam juntos. Muito próximos. Riam-se com frequência, despediam-se sempre com um abraço terno e carinhoso e Valmemar beijava Vanja na testa antes de se ir embora. Sempre. Era a assinatura do relacionamento deles. Seria uma bela imagem se não fosse um pequeno pormenor. O verdadeiro pai dela estava por perto, a observá-los. Esses momentos eram os mais dolorosos para Sebastian. Era uma dor estranha.

Pior do que a inveja.

Maior do que o ciúme.

Mais difícil do que qualquer outra coisa.

Era a dor que ele sentia por uma vida que nunca fora vivida.

Duas semanas antes, quando Sebastian vira Vanja e Valdemar a almoçarem juntos num restaurante italiano, perto da sede da polícia, ocorrera-lhe uma ideia. Não era a ideia mais simpática que alguma vez tivera. Antes pelo contrário, na verdade. Mas soube-lhe bem. Pelo menos naquele momento.

Com o passar das semanas, a inveja que sentia por Valdemar havia-se transformado lentamente em raiva, e a seguir em algo que só podia ser descrito como ódio. Ódio por aquele homem alto, esbelto e elegante que podia andar a passear ao lado da ?lha de Sebastian. Da sua ?lha! Quem devia receber aqueles abraços, aquela ternura, era ele. Era ele quem devia estar a receber aquele amor.

Sebastian!

E mais ninguém!

Por diversas vezes pensara em contar-lhe tudo, mas no último instante mudava sempre de ideias. Acalentava a esperança de se aproximar de Vanja de alguma maneira, e depois, quando já tivessem desenvolvido uma relação, contar-lhe a verdade. Pelo menos isso deveria permitir-lhe passar algum tempo com ela. Ficar a conhecê-la. Talvez ela pensasse que a tinha enganado, mas isso não impedia Sebastian. O grande problema era que, independentemente de quando ou em que circunstâncias contasse a verdade a Vanja, iria destruir o seu relacionamento com Valdemar. Passaria a detestar Sebastian por isso. E já o detestava intensamente.

Nada era simples quando se tratava de Vanja.

A menos, claro, que ela começasse a ter as suas próprias dúvidas acerca daquele falso pai. Podia ser esse o caminho a seguir se Sebastian conseguisse que a própria Vanja apeasse Valdemar do pedestal em que se atrevera a colocar-se. Não devia ser impossível. E se ela começasse a descobrir algumas coisas acerca de Valdemar, verdades um pouco sórdidas, segredos que lhe manchassem o nome e lhe ?zessem descair a aura? Não havia nada melhor para levar alguém a mudar de opinião do que a experiência e as descobertas pessoais. Sebastian sabia-o. Muitas vezes só a experiência pessoal de uma situação é que nos levava a enxergar a realidade de tudo. Por conseguinte, a acção valia sempre mais do que as palavras, e a acção pessoal era a mais valiosa de todas.

Se Vanja o descobrisse por si mesma, então isso poderia levá-la a pôr em causa o carácter de Valdemar. A pensar que podia não ser o pai perfeito. Que podia ser outra coisa. Algo muito pior.

Se Sebastian conseguisse ajudar Vanja a chegar a essa conclusão, isso levá-la-ia ao desespero e à confusão. Iria sentir-se sozinha e desiludida e estaria aberta a outras in?uências, aberta à verdade; no fundo, talvez até viesse a acolhê-lo. A acolher aquela ?gura paterna que a esperava, que se mantivera por perto em segredo. Nesse preciso instante até poderia envolvê-lo nos seus braços, precisar dele. Quando se sentisse magoada e lhe faltasse o apoio. Estaria pronta para ele.

Realmente parecia ser um bom plano. Complicado, difícil de executar, mas se fosse bem-sucedido transformaria a sua vida.

A pesquisa era fundamental. Ninguém é perfeito. Todas as pessoas têm algo a esconder. Tratava-se apenas de descobrir o quê. E, de seguida, expô-lo da melhor maneira possível.

O plano era tão malicioso que até Sebastian hesitou um pouco.

Se alguma vez viesse a saber-se que tivera algo a ver com a difamação do nome de Valdemar, todas as hipóteses de um relacionamento com Vanja desapareceriam para sempre. Mas se o seu plano resultasse, esse seria o ponto de viragem de que andava à procura. Acoitado na porta em frente ao restaurante italiano, decidira que ela valia a pena. Que valia a pena lutar por ela.

De qualquer modo, ele não tinha uma vida.

Colocou as dúvidas de lado e foi logo para casa a ?m de procurar um número de telefone. Um número que não usava há muito tempo. O número do antigo inspector-chefe, que era completamente diferente de Torkel Höglund.

Impulsivo, desprovido de escrúpulos, perfeitamente disposto a caminhar por cima de cadáveres se fosse necessário.

Fora expulso da Riksmord quando se descobriu que andara a fazer vigilância privada à sua ex-esposa e havia plantado provas para tentar que o novo marido dela fosse condenado por delitos relacionados com drogas, e tudo isso para poder ?car com a custódia exclusiva dos ?lhos. Era exactamente o tipo de pessoa de que Sebastian precisava naquele momento.

Trolle Hermansson.

Ele atendeu após o telefone ter tocado nove vezes. De início queria falar sobre os velhos tempos, mas Sebastian esclareceu que não estava interessado e descreveu-lhe sucintamente o que pretendia. Concluiu a sua explicação com a promessa do pagamento de vários milhares de coroas, mas Trolle recusou a oferta. Parecia genuinamente satisfeito com a ideia de ter algo para fazer. Só precisava de alguns dias.

Isso tinha sido há duas semanas.

Desde então Trolle telefonara-lhe várias vezes, mas Sebastian ignorara-o sempre. Sentava-se imóvel no apartamento, a ouvir o telefone enquanto este tocava, tocava e tocava. Só Trolle deixaria o telefone tocar tantas vezes antes de desistir. Sebastian já não tinha a certeza de que queria saber. Se levasse aquilo avante, ainda lhe restariam alguns limites para transpor?

Mas agora sentia a exaustão a dominá-lo. As horas passadas no outeiro junto ao apartamento de Vanja. O sexo. Na última noite fora Ellinor, na noite anterior e na do dia seguinte outra pessoa qualquer. O apartamento vazio. A vida vazia. Ele tinha de fazer algo. Qualquer coisa. Modi?car a situação. Pegou no seu telemóvel e marcou o número.

Trolle atendeu quase de imediato.

– Estava a pensar quando me irias telefonar – disse com uma voz rouca e sonolenta.

– Tive coisas para fazer – respondeu Sebastian enquanto começava a afastar-se do prédio de Vanja com o telemóvel encostado ao ouvido. – Andei por fora.

– Não me mintas. Tens andado a segui-la. À ?lha.

Sebastian ?cou hirto por um instante, até compreender que Trolle se referia à ?lha de Valdemar. Evidentemente.

– Como sabes disso?

– Porque sou melhor do que tu. – Sebastian conseguiu ouvir o seu antigo colega a sorrir de satisfação.

– Eu não te pedi que a investigasses – disse Sebastian, irritado.

– Bem sei, mas eu sou minucioso. Um polícia à moda antiga.

– Descobriste alguma coisa?

– Uma ou outra. Mas nada de comprometedor. O velhote parece ser um modelo de virtude. – Trolle calou-se, e Sebastian ouvi-o remexer uns papéis que muito provavelmente estavam empilhados à sua frente.

– Ele chama-se Ernst Valdemar Lithner. Nasceu em Gotemburgo, em 1953. Começou na Chalmers,[7] depois mudou para Economia. Casou-se com Anna Eriksson em 1981; já agora, ela não adoptou o apelido dele. Não tem ex-mulheres nem mais ?lhos. Não tem cadastro na polícia. Trabalhou como contabilista durante alguns anos, depois em 1997 mudou de vida e fez várias coisas diferentes – tudo, desde contabilidade a consultadoria ?scal. Deve ter ganho bom dinheiro, porque pagou a entrada do apartamento de Vanja e no ano seguinte comprou uma grande casa de Verão em Vaxholm. Que eu saiba não tem amantes, nem do sexo feminino nem do sexo masculino, mas arranjei uma pessoa que conseguiu entrar no computador dele, portanto logo se verá. No ano passado ?cou doente.

– O que queres dizer com ?cou doente?

– Uma mutação qualquer nas células dos pulmões. Cancro, aquela coisa que acaba por nos apanhar a todos. De que morreu a tua mãe?

Sebastian nem sequer respondeu à insinuação de que, além de Lithner, durante as últimas semanas Trolle havia claramente despendido algum tempo a investigá-lo. Apesar do calor, sentiu um arrepio. Valdemar tinha cancro? Isso não podia estar correcto. O homem que lhe roubara a ?lha parecia cheio de vida. Talvez se limitasse a disfarçar quando estava com Vanja e só ?zesse esse esforço por causa dela.

– Tem estado em remissão desde a Primavera – prosseguiu Trolle. – O que quer que isso signi?que. O meu contacto não conseguiu inteirar-se dos pormenores mas, como ele só tem marcações para consultas de acompanhamento, deve estar livre de perigo.

Sebastian resmungou, desapontado.

– Está bem... mais alguma coisa?

– A bem dizer, não. Mas só agora comecei. Posso cavar muito mais fundo, se quiseres.

Sebastian re?ectiu no assunto. Aquilo era pior do que imaginara. Não apenas Valdemar era amado pela sua ?lha, como acabara de sobreviver a um cancro. Um santo que regressara da sala de espera da morte para o seio da sua família.

Sebastian não tinha qualquer hipótese. Aquilo chegara ao ?m.

– Não, não é preciso. Em todo o caso, obrigado.

Desligou o telemóvel.

Lá se fora aquele plano tão bom.


ERA O SEU terceiro dia no emprego. Finalmente conseguira apoderar-se de uma daquelas máquinas que permitiam imprimir etiquetas e ?tas autocolantes, e agora estava parado no corredor em frente à placa de metal que indicava que aquela sala era domínio do director. Removeu a ?ta de protecção na parte detrás da etiqueta impressa e colou-a na porta. Ficou um pouco torta, mas isso não importava. Era perfeitamente legível. Director Thomas Haraldsson.

Deu um passo atrás e olhou para o letreiro com um pequeno sorriso de contentamento.

Um novo emprego.

Uma nova vida.

Havia-se candidatado ao cargo vários meses antes, mas realmente não esperava obtê-lo. Não que não estivesse bem quali?cado, mas fora um período da sua vida em que nada lhe corria de feição. As coisas andavam ruins no emprego; não se dava bem com a nova chefe, Kerstin Hanser, e, para ser franco, o sucesso pro?ssional andava a fugir-lhe. Isso devia-se em grande parte ao facto de Hanser se recusar a reconhecer o seu valor e trabalhar activamente contra ele, mas não só. Aquilo começara a deixá-lo deprimido. Em casa a situação também era bastante tensa. Não devido a falta de amor, ou ao facto de terem caído num impasse, simplesmente as coisas andavam muito... concentradas num único tema. A sua esposa Jenny começara a fazer uma série de testes de fertilidade e a vida deles centrava-se nas tentativas que fazia para engravidar. Quando estava acordada todos os seus pensamentos ?xavam-se na concepção, ao passo que ele andava obcecado com Hanser, com o emprego e com um sentimento cada vez maior de amargura. Nada parecia correr-lhe bem, e Haraldsson nem se atrevera a ter esperanças de conseguir obter o emprego ao qual se candidatara já perto do ?m do Inverno apenas por desenfado. Como o anúncio referia que o cargo só seria ocupado no Verão, continuara a trabalhar com a polícia de Västerås e quase se esquecera da sua candidatura. Depois aquele rapaz fora assassinado, chamaram a Riksmord e Haraldsson teve de ser operado na sequência de um ferimento de bala. No peito, caso estivesse a descrever o incidente. Na parte inferior do ombro de acordo com os relatórios clínicos. Em todo o caso, ainda não estava completamente recuperado. Aquilo ainda o tolhia um pouco; sentiu-o enquanto alisava mais uma vez a nova etiqueta com o seu nome.

De certa maneira aquele ferimento de bala fora um ponto de viragem. Quando voltou a si após a operação, Jenny estava lá. Ansiosa, mas também agradecida por ele ter sobrevivido. Por ele ainda ali estar. Informaram-nos de que ele tivera sorte. A bala perfurara a pleura parietal, a membrana que reveste a cavidade torácica que abriga os pulmões. Isso causara um sangramento na cavidade pleural e, em consequência, no lóbulo superior do pulmão direito. Haraldsson só sabia que ser-se alvejado era extremamente doloroso. Ficara três semanas sem ir trabalhar. Enquanto estava em casa, teve tempo para pensar como seriam as coisas quando regressasse à sede. Sem dúvida que o superintendente-chefe faria algum tipo de discurso de boas-vindas, enaltecendo o seu heróico contributo; talvez até houvesse uma medalha de segunda ordem para semelhante ocasião: ferido no cumprimento do dever. Haveria café e bolo, claro, palmadinhas amáveis nas costas para não causar desconforto ao seu peito ferido, e por parte dos colegas um desejo de saberem como se sentia e o que pensava.

Não foi exactamente assim.

Nem superintendente-chefe, nem discurso, nem medalha, mas as raparigas da recepção arranjaram um bolo. Também não houve muita curiosidade nem palmadinhas nas costas, mas apesar disso sentiu que algo havia mudado. Havia qualquer coisa no modo como os seus colegas o recebiam, na maneira como o tratavam. Ele queria acreditar que se tratava de um certo respeito. Respeito e, inconscientemente, talvez um sentimento de alívio. Não havia muitos polícias que fossem baleados no cumprimento do dever e, de um ponto de vista puramente estatístico, era pouco provável que isso voltasse a acontecer em Västerås num futuro próximo. Ele fora baleado por toda a equipa, por assim dizer. Pela primeira vez desde há muito tempo, sentia-se contente quando ia para o emprego. Apesar de Hanser.

Em casa também acontecera algo. Andavam mais descontraídos, mais próximos um do outro, como se a vida que tinham em conjunto fosse agora mais importante do que a que andavam a tentar gerar. Continuavam a fazer sexo – muito sexo –, mas havia mais ternura quando faziam amor; era mais caloroso, menos mecânico. Talvez fosse por isso que dera resultado.

De repente, tudo parecia estar a funcionar.

Cinco semanas após o dia em que fora baleado, chamaram-no para uma primeira entrevista. No mesmo dia, o teste de gravidez de Jenny deu um resultado positivo.

Foi esse o ponto de viragem.

Ele conseguiu o emprego. Hanser recomendara-o efusivamente, disseram-lhe. Talvez ele a tivesse avaliado mal. É verdade que tiveram as suas desavenças durante o período em que fora sua chefe, mas quando realmente importara, quando ela fora forçada a avaliar objectivamente o seu trabalho, a aferir as possibilidades de ele vir a fazer um bom serviço em Lövhaga, tinha sido su?cientemente pro?ssional para pôr de lado os seus pontos de vista pessoais e dissera a verdade acerca das excelentes qualidades de liderança que possuía e como era bom administrador.

Ouvira na sede umas conversas maldosas, pessoas a dizerem que ela só queria livrar-se dele, que até avisara os de Lövhaga a seu respeito, mas não passava de inveja. Dele.

De Thomas Haraldsson, director de Lövhaga.

Entrou no seu gabinete; podia não ser muito grande, mas pertencia-lhe. Acabara-se o trabalho num escritório em espaço aberto. Haraldsson sentou-se na cadeira confortável atrás da secretária, que ainda estava relativamente arrumada. Ligou o computador. O seu terceiro dia; na verdade, ainda não lançara as mãos ao trabalho. O que era perfeitamente natural. A única coisa que ?zera fora requisitar todo o material disponível acerca de um dos residentes da ala de segurança, uma vez que a Riksmord mostrara interesse nele. Como era evidente, haviam-lhe telefonado de novo na noite anterior. Haraldsson pousou a mão na pasta que estava em cima da sua secretária, mas pensou se em vez disso não devia telefonar a Jenny. Não porque quisesse algo; só para veri?car como ela estava. Já não se viam com tanta frequência. Lövhaga ?cava a uns bons sessenta quilómetros de Västerås. Era quase uma hora de carro para cada lado. A sua jornada de trabalho provavelmente iria ser bastante longa. Até ao momento isso não tinha sido um problema. Jenny estava nitidamente radiante de felicidade. Naquela altura, o mundo dela apenas estava repleto de oportunidades. A mera lembrança dela fez Haraldsson sorrir, e acabara de decidir telefonar-lhe quando bateram à porta.

– Entre. – Haraldsson pousou o auscultador. A porta abriu-se e entrou uma mulher com cerca de quarenta e cinco anos: era Annika Norling, a sua assistente pessoal.

– Tem visitas.

– O quê? – Haraldsson olhou rapidamente para a agenda aberta em cima da secretária. A sua primeira reunião estava marcada para a uma da tarde. Ter-lhe-ia escapado algo? Ou, para ser mais preciso, teria escapado algo a Annika?

– É a Riksmord – respondeu Annika. – Não têm marcação – continuou ela, como se conseguisse adivinhar os pensamentos de Haraldsson.

Haraldsson praguejou silenciosamente entredentes. Esperara que o interesse da Riksmord por Lövhaga se limitasse às chamadas telefónicas. Não o trataram bem durante a sua estadia em Västerås. Nada bem. Antes pelo contrário. Fizeram tudo o que podiam para o excluírem da investigação, apesar de lhes ter provado repetidamente o seu valor.

– Quem está aí?

Annika baixou os olhos para a nota no post-it que trazia na mão.

– Vanja Lithner e Billy Rosén.

Pelo menos não era Torkel Höglund. Quando se conheceram pela primeira vez Torkel dissera a Haraldsson que iria ser uma parte importante da investigação, mas um ou dois dias mais tarde livrara-se dele sem qualquer tipo de explicação. Não era pessoa em quem se devesse con?ar. É certo que Haraldsson também não tinha qualquer vontade de ver Vanja ou Billy, mas o que podia fazer? Olhou para a porta, onde a sua assistente pessoal continuava à espera. Podia pedir a Annika para lhes dizer que estava ocupado, que voltassem noutra ocasião. Mais tarde. Talvez daí a uns dias, quando ele já estivesse um pouco mais familiarizado com o trabalho. Quando estivesse mais bem preparado. Podia pedir-se a uma assistente pessoal que mentisse? Haraldsson nunca tivera uma assistente pessoal mas presumia que, de certa forma, isso fazia parte da sua função. A?nal, estava ali para lhe facilitar as coisas. Adiar a visita da Riksmord decerto tornaria o seu dia mais fácil de suportar.

– Diga-lhes que estou ocupado.

– Com o quê?

Haraldsson olhou para ela com uma expressão zombeteira. De certeza que não havia muitas coisas com que uma pessoa pudesse estar ocupada no seu próprio gabinete.

– Com o trabalho, claro. Peça-lhes que voltem noutra altura.

Annika lançou-lhe um olhar que só podia ser interpretado como de reprovação e fechou a porta. Haraldsson introduziu a sua palavra-passe no computador, a seguir rodou a cadeira e olhou para fora da janela enquanto esperava que as suas con?gurações pessoais fossem carregadas. Ia estar mais um bonito dia de Verão.

Bateram de novo à porta. Desta vez ele nem sequer conseguiu dizer «Entre» antes de a porta se abrir e Vanja entrar com um passo decidido. Quando avistou Haraldsson, parou tão abruptamente que Billy quase esbarrou nela.

– O que está você a fazer aqui?

– Agora trabalho aqui. – Haraldsson endireitou-se um pouco na confortável cadeira de escritório. – Sou o director. Já estou no cargo há alguns dias.

– Isso é algo temporário? – Vanja sentia di?culdade em entender o que se passava.

– Não, é o meu novo emprego. É um cargo permanente.

– Claro...

Billy aproveitou para expor rapidamente o motivo da visita deles.

– Estamos aqui por causa de Edward Hinde.

– Estou ao corrente disso.

– E mesmo assim não estava disposto a receber-nos? – perguntou Vanja. Sentou-se numa das poltronas reservadas aos visitantes, com um olhar desa?ador no rosto.

– Há muito para fazer quando se é novo num cargo. – Haraldsson acenou com as mãos por cima da secretária e apercebeu-se rapidamente de que estava demasiado vazia para causar grande impacto em relação à sua carga de trabalho. – Mas posso dispensar-vos alguns minutos – prosseguiu. – O que querem saber?

– Aconteceu alguma coisa com o Hinde durante o último mês?

– Como o quê?

– Não sei... Comportamento invulgar, alguns desvios à rotina normal, alterações de humor. Tudo o que saia da norma.

– Que eu saiba, não. Não há nada no processo dele. Não o conheci pessoalmente. Ainda.

Vanja assentiu, aparentemente satisfeita com a resposta. Billy interveio.

– Que oportunidades tem ele para comunicar com o mundo exterior?

Haraldsson puxou para si a pasta que estava em cima da secretária e abriu-a, agradecendo às suas estrelas da sorte por a ter trazido de casa nessa manhã. Ter à mão todas as informações disponíveis sobre Hinde um dia após a Riksmord ter feito perguntas acerca dele era um sinal de iniciativa.

– Diz aqui que ele tem acesso a jornais, revistas e livros na biblioteca, bem como acesso limitado à Internet.

– Quão limitado? – perguntou Billy rapidamente.

Haraldsson não sabia. No entanto, sabia a quem devia telefonar: a Victor Bäckman, chefe de segurança de Lövhaga. Victor atendeu de imediato e disse que não demorava. Ficaram os três à espera, em silêncio, no gabinete impessoal e despojado.

– Como está o ombro? – perguntou Billy ao ?m de cerca de um minuto.

– Peito – corrigiu Haraldsson, sem pensar. – Está bom. Não estou completamente recuperado, mas está... bom.

– Óptimo.

– Pois.

Silêncio de novo. Haraldsson estava precisamente a pensar se devia oferecer-lhes café quando Victor chegou. Era um homem alto, vestido com uma camisa axadrezada e calças largas, olhos castanhos, corte de cabelo militar e um grande bigode que fez Billy pensar nos Village People quando trocaram um aperto de mão.

– Nada de pornogra?a, claro – respondeu Victor quando Billy repetiu a pergunta acerca do acesso de Hinde à Internet. – Muito, muito restrito no que diz respeito a violência. É a forma mais rigorosa de bloqueio para adultos que vocês possam imaginar. Somos nós que a programamos.

– Redes sociais?

– Nada. Completamente interdito para ele. Não tem maneira de comunicar com o mundo exterior através do computador.

– Consegue veri?car o seu histórico de navegação? – perguntou Vanja.

Victor assentiu.

– Guardamos todo o tráfego da Internet durante três meses. Querem uma cópia?

– Sim, por favor.

– Ele também tem um computador na cela, não é? – interveio Haraldsson, pois não queria sentir-se totalmente excluído da conversa.

Victor assentiu de novo.

– Mas não tem ligação à Internet, claro.

– Então para que o usa? – Billy virou-se para Haraldsson, que se virou para Victor.

– Palavras cruzadas, Sudoku, esse tipo de coisas. Também escreve. Mantém o cérebro activo, por assim dizer.

– E quanto a telefonemas, cartas e coisas do género? – perguntou Vanja.

– Não tem autorização para telefonar e hoje em dia raramente recebe cartas. Mas as que chegam são todas iguais. – Victor lançou um olhar sugestivo a Billy e a Vanja. – Vêm de mulheres que podem «curá-lo» com o seu amor.

Vanja assentiu. Mais um dos pequenos mistérios da vida: a maneira como certas mulheres se sentiam atraídas pelos homens mais perturbados e brutais do país.

– Você ainda as tem?

– Cópias. O Hinde ?ca com os originais. Posso entregá-las a vocês.

Agradeceram-lhe a ajuda e Victor saiu para ir recolher o material que eles iriam levar. Haraldsson inclinou-se sobre a secretária quando a porta se fechou atrás do chefe de segurança.

– Posso perguntar porque estão tão interessados no Hinde?

Vanja ignorou a pergunta. Até aí tinham conseguido manter longe da imprensa o facto de andarem à caça de um assassino imitador. Ninguém ligara sequer os últimos três homicídios ao mesmo perpetrador. Provavelmente havia tarefeiros temporários a trabalhar nos jornais durante o Verão. A Riksmord preferia que o interesse da imprensa pela investigação continuasse a ser mínimo, e quanto menos pessoas soubessem com quem eles andavam realmente a lidar mais hipóteses teriam de manter a situação.

– Vamos precisar de falar com ele – disse-lhe, em vez de responder e pondo-se em pé.

– Com o Hinde?

– Sim.

– Isso não é possível.

Pela segunda vez desde que ali chegara, Vanja ?cou imóvel. Virou-se de frente para Haraldsson.

– Porque não?

– Ele é um dos três prisioneiros da ala de segurança que não podem receber visitas a menos que sejam agendadas e aprovadas com antecedência. Infelizmente. – Haraldsson abriu os braços num gesto destinado a enfatizar ainda mais como lamentava não conseguir ajudá -los.

– Mas você sabe quem nós somos.

– As regras são estas. Não há nada que eu possa fazer, mas a Annika pode dar-vos um formulário para solicitarem uma autorização de visita. Ela é a minha assistente pessoal...

Vanja não conseguiu evitar o sentimento de que Haraldsson estava a desfrutar da sua posição de poder. Talvez isso não fosse muito estranho – a última vez que se encontraram ele estava muito abaixo na hierarquia – mas, apesar de compreensível e porventura humano, continuava a ser extremamente frustrante.

– Quanto tempo demora um desses pedidos a ser processado? – perguntou, esforçando-se por disfarçar a irritação na sua voz.

– Três a cinco dias úteis, mas tenho a certeza de que para vocês poderemos acelerar as coisas; a?nal, vocês são da Riksmord. Verei o que posso fazer.

– Obrigada.

– Não tem de quê.

Vanja saiu sem se despedir. Billy acenou com a cabeça antes de sair do gabinete.

Haraldsson olhou para a porta fechada. Aquilo tinha corrido bem. Agora ia tomar uma chávena de café e telefonar a Jenny.

Aquele iria ser um bom dia.

O seu terceiro dia.


– ENTÃO CONTINUAS a andar atrás dela? – Stefan olhava para Sebastian com uma expressão que ele reconheceu. Era a expressão que dizia: «Eu sei mais acerca de ti do que tu próprio, por isso não me mintas.»

A expressão que Sebastian detestava.

– Não é assim que eu vejo o assunto.

– Pões-te todos os dias à porta do prédio dela. Andas a segui-la pela cidade, vais atrás dela até ao emprego e à casa dos pais. O que lhe chamarias?

– Estou interessado nela. Só isso.

Stefan suspirou e recostou-se contra o tecido macio e desbotado da sua poltrona.

– Ela é minha ?lha – adiantou Sebastian em jeito de desculpa. – Tenho de o fazer. Não posso desistir dela. – Sabia que aquilo parecia muito pouco convincente. Estava contente por não ter feito qualquer menção a respeito de Trolle.

Stefan abanou a cabeça e olhou para fora da janela por uns momentos. Acabavam sempre naquele ponto. Vanja. A ?lha que Sebastian descobrira de repente. A ?lha que não sabia de nada e que nunca se poderia permitir que viesse a saber. Ou poderia? Haveria alguma maneira? Era essa a esperança. Era essa a pergunta a que Sebastian regressava sempre, mais cedo ou mais tarde. O ponto que não conseguia ultrapassar. A questão com que se debatia constantemente.

Decerto que Stefan conseguia entender o problema. Era como o encontro de dois pólos opostos. O desejo, a ânsia e a necessidade de um dos lados se catapultar para a realidade, aparentemente inconciliável, do outro. Era aqui que surgiam as perguntas mais difíceis. Stefan estava sempre a deparar com estas no seu trabalho. Era quando os seus pacientes vinham ter consigo – quando, de repente, se achavam incapazes de encontrar respostas. Isso era humano. Não tinha nada de estranho. O mais estranho naquela situação era que a pessoa sentada à sua frente fosse Sebastian Bergman. Um homem que sempre tivera todas as respostas. Um homem que Stefan nunca esperara que viesse procurar a sua ajuda.

Sebastian fora tutor de Stefan na universidade. No grupo todos sentiam uma certa relutância em frequentar as suas palestras. As palestras eram sempre memoráveis, mas logo no primeiro dia Sebastian deixara claro a todos que a estrela era ele e que não tencionava partilhar a ribalta. Qualquer aluno que pusesse em causa os argumentos de Sebastian ou tentasse encetar uma discussão crítica das suas teses e teorias era humilhado e ridicularizado. Não apenas durante o resto dessa palestra em particular, mas durante o resto do ano lectivo, durante toda a sua carreira universitária. Era por isso que quando Sebastian dizia «Há alguma pergunta?» se seguia sempre um silêncio total.

A excepção era Stefan Larson. Ele viera bem equipado para o encontro com Sebastian. Sendo o ?lho mais novo de uma família de académicos os jantares na casa em Lund[8] haviam preparado Stefan para os confrontos verbais, e muitas vezes tentava discutir com aquele homem arguto e impossível que era temido por muitos. Sebastian também lembrava a Stefan o seu irmão mais velho, Ernst, que tinha a mesma necessidade imperiosa de a?rmar o seu ponto de vista e ia sempre um pouco longe de mais no debate para provar as suas razões. Tanto para Ernst como para Sebastian, essa era a coisa mais importante: provar que se tinha razão. Isso transformava-os em formidáveis adversários intelectuais, o que se adequava perfeitamente a Stefan. Ele fornecia-lhes a oposição de que precisavam mas nunca lhes dava a vitória ?nal. Surgia com a próxima pergunta, a próxima e a próxima. Eles procuravam o derradeiro golpe fatal, mas em vez disso eram confrontados com uma longa guerra de atrito. Era a única maneira de os enfrentar.

De os desgastar.

Certa manhã, há quase dois anos, Sebastian esperara Stefan à porta do seu consultório. Pela expressão exausta e as roupas amarrotadas que trazia, parecia que Sebastian o esperara durante toda a noite. Já nessa altura era uma sombra da sua antiga personalidade. Perdera a esposa e a ?lha no tsunami em 2004, e desde então envolvera-se numa espiral descendente cada vez mais assustadora. Desapareceram as palestras e as digressões dos livros, que foram substituídas por pensamentos atormentados, pela apatia e por um problema cada vez maior com o sexo. Não havia mais ninguém a quem pudesse recorrer, dissera-lhe ele. Ninguém. Começaram a encontrar-se, sempre de acordo com as condições de Sebastian. Por vezes decorriam meses entre esses encontros, outras apenas alguns dias. Mas nunca perdiam o contacto.

– Como pensas que Vanja se sentiria se viesse a saber disto? – continuou Stefan.

– Diria que sou louco. Denunciava-me à polícia e passaria a odiar-me. – Sebastian fez uma pequena pausa antes de continuar. – Eu sei disso, mas... ela é a única coisa em que penso o tempo todo, sempre a dar voltas e voltas... – O ?nal da frase quase não passou de um sussurro. – Isto para mim é completamente novo. Estou habituado a manter o controlo.

– A sério? Queres então dizer que antes de descobrires que é tua ?lha mantinhas o controlo? O teu brilhante plano era foderes a tua vida a cem por cento? Nesse caso, parabéns; de certeza que conseguiste. – Stefan inclinou-se para a frente. Aquilo era o que havia de melhor em ter Sebastian como paciente. Podia deitar a toalha ao chão. Atingi-lo com força. – Tu não queres que te alimente os vícios. Durante toda a tua vida as pessoas sempre te deixaram fazer o que queres. Eu não vou fazer isso. Perdeste a tua família no tsunami, e agora autocontrolo. Completamente.

– É por isso que preciso dela.

– Mas a Vanja precisa de ti?

– Não.

– Ela já tem um pai, não tem?

– Sim.

– Então, dada a situação actual, quem achas que ?caria a ganhar se lhe contasses a verdade?

Sebastian ?cou ali sentado, em silêncio. Sabia a resposta. Só não queria dizê-la em voz alta. Mas Stefan continuou inclinado para a frente, à espera. Foi ele quem falou.

– Ninguém. Nem tu, nem Vanja, nem ninguém.

Stefan recostou-se para trás. A sua expressão tornou-se mais amável. Mais calorosa.

– Não lhe contes, Sebastian. – A voz dele também era mais calorosa. Mais íntima. – Tens de ter uma vida própria antes de poderes fazer parte da vida de outra pessoa. Deixa de a seguir e passa algum tempo a recompor-te. Quando o tiveres feito poderemos falar sobre o próximo passo.

Sebastian assentiu. Stefan tinha razão. Claro.

Arranjar uma vida antes de poder partilhar uma vida.

O sensato e aborrecido Stefan, na sua amena e aborrecida sala, tinha razão. Isso irritou Sebastian. Pensar que Trolle era a solução podia ser errado, mas era fácil. Mais fácil do que arranjar uma vida. Em todo o caso, era uma ideia mais divertida.

– Eu dirijo um grupo de aconselhamento – prosseguiu Stefan. – Reunimo-nos duas vezes por semana, hoje à noite e amanhã. Acho que devias aparecer por lá.

Pela primeira vez Sebastian olhou para Stefan com surpresa.

– Eu? Num grupo?

– São pessoas que, por uma razão ou outra, são incapazes de seguir em frente. Isso parece-te familiar?

No fundo, Sebastian sentiu-se contente por Stefan se ter lembrado de algo tão banal como a terapia de grupo. Isso distanciou-o um pouco dos pensamentos obscuros e encheu-o com uma franca e libertadora irritação.

– Parece incrivelmente familiar e incrivelmente entediante.

– Eu gostava que viesses.

– Não.

Sebastian pôs-se em pé, tornando claro que a sessão chegara ao ?m e que não tencionava discutir mais o assunto.

– Insisto em que venhas.

– Insiste tudo o que quiseres, mas a resposta continua a ser não.

Sebastian dirigiu-se para a porta. Aquele sentimento de irritação era óptimo. Fornecia-lhe combustível. Stefan realmente pensava que iria ver Sebastian Bergman num qualquer choramingante e soluçante grupo de auto-ajuda?

Nem pensar.

Sebastian fechou a porta atrás de si. Aquela energia dera-lhe ímpeto, animara-o. A?nal, talvez conseguisse fazer alguma coisa durante o dia.

 

Sebastian conseguiu percorrer todo o caminho até aos edifícios da universidade em Frescati antes que aquela irritação energética se dissipasse. Queria mostrar a Stefan que era capaz de arranjar uma vida para si mesmo, mas o cansaço começava a dominá -lo.

Tudo começara em casa, no seu apartamento da Grev Magnigatan, no início da semana, quando encontrara o velho manuscrito de uma palestra de três horas intitulada «Uma Introdução ao Per?l dos Delinquentes». Estava por baixo de uma pilha de jornais e de outros documentos no seu escritório, uma divisão que nunca usava; num momento de tédio decidira, de repente, fazer uma boa limpeza. Não conseguia lembrar-se de quando escrevera o texto mas era óbvio que fora antes do desastre, pois em grande parte estava isento daquele cinismo sufocante que agora persistia em todos os seus pensamentos. Sebastian lera tudo de uma ponta à outra por duas vezes e ?cara realmente muito impressionado consigo mesmo. De facto, em tempos fora capaz de escrever.

A prelecção era perspicaz, bem informada e prendia a atenção.

Sebastian ?cara sentado à secretária por uns momentos, com o documento na mão. A descoberta de uma versão melhor de si próprio fora uma sensação estranha, quase surreal. Ao ?m de algum tempo olhara em redor da sala, e de súbito encontrara em toda a parte sinais desse Sebastian melhor. Os diplomas nas paredes, os livros, os recortes de imprensa, os apontamentos que em tempos ?zera, as palavras que outrora escrevera. O seu escritório estava repleto dos destroços e deslastros de uma outra vida. Para escapar às memórias, fora até à janela e olhara para a rua lá em baixo, mas os restos da sua antiga vida estavam em toda a parte e lembrou-se de como costumava estacionar o carro ali mesmo, frente à loja de antiguidades. Na época em que tinha carro e sítios aonde ir.

Após a conversa com Stefan sentira-se melhor, quase inspirado. Fora directamente para casa e para o seu escritório, onde começara a rebuscar as pilhas de papéis à caça do contrato, à procura de um nome. Alguém deve ter-lhe encomendado uma palestra de três horas. Ao ?m de algum tempo encontrara duas cópias da minuta de um contrato do Departamento de Criminologia da universidade. Datadas de 7 de Março de 2001 e relativas a um total de três palestras que fornecessem uma introdução ao per?l dos delinquentes. Tentou lembrar-se do motivo por que nunca chegara efectivamente a entregar o texto. Em 2001 ele estava no auge. Sabine tinha nascido e ele vivia com Lily em Colónia, por isso provavelmente apenas pensou que tinha coisas melhores para fazer. Os contratos não estavam assinados, mas a outra parte era uma professora universitária chamada Veronika Fors. Não reconheceu o nome. Directora da faculdade. Telefonara para o departamento. Haviam passado muitos anos desde que ela lhe enviara o contrato, mas continuava por lá. A telefonista transferira-lhe a chamada, mas ele perdera a coragem e desligara antes que ela tivesse tempo de atender. Sentara-se de novo com o manuscrito na mão. Pelo menos ela ainda lá estava.

 

Parou a poucas centenas de metros do edifício que albergava o Departamento de Criminologia; algum visionário chamou-lhe Bloco C, supostamente por ser o terceiro edifício da ?la. Sebastian olhou para os prédios altos que tinham um tom azul-pálido: parecia que mais faziam parte de um programa de construção da década de 1960 do que do principal templo de conhecimento da capital, e de repente foi assolado pelas dúvidas. Será que realmente pensava que aquilo iria fazer alguma diferença? Amaldiçoou a sua hesitação. Tentou combatê-la. Iria entrar e falar com Veronika Fors. Começar por aí.

A sua ideia era simples. De início, algumas palestras rápidas a título de convidado. Um pouco de estímulo, uma distracção da vida quotidiana que o colocasse numa outra direcção, o afastasse das mulheres durante a noite e, acima de tudo, de Vanja durante o dia. O livrasse da sensação de ser um estranho. O afastasse do estado de espírito que o levara a telefonar a Trolle.

Mas as primeiras dúvidas instalaram-se assim que o táxi virou para o parque de estacionamento oriental. Foi esmagado pela sensação de que nada mudara. O local era o mesmo. Só ele estava diferente. Poderia aquilo resultar? Tentou afastar esse pensamento dirigindo-se o mais decididamente possível para o Bloco C, como se conseguisse superar a hesitação com a pura força muscular.

Um grupo de raparigas vinha na sua direcção; a julgar pela idade e pelos livros que traziam consigo, eram estudantes. Uma fê-lo lembrar-se de Vanja, com o seu cabelo louro; provavelmente seria um pouco mais nova, mas não muito. Contemplou a rapariga. Era por causa de Vanja que ele estava ali, à porta do Bloco C. Stefan tinha razão. Precisava de ter uma vida própria se quisesse ser capaz de a enfrentar como devia ser para lhe revelar quem era. E, porventura, ser aceite. Provavelmente não amado. Mas talvez aceite.

Precisava de uma vida. Era por isso que estava ali.

Sentiu a energia regressar.

Entrou no Bloco C.

Num mundo que já não visitava há muitos, muitos anos.

Estava com sorte. Veronika Fors estava livre e podia receber Sebastian de imediato. A mulher da recepção conduziu-o por um longo corredor até um pequeno e bem ordenado gabinete que tinha uma secretária e duas cadeiras.

A mulher atrás da secretária mostrou-se surpreendida quando ele entrou. Sorriu-lhe e apertou-lhe a mão, antes de se sentar sem ser convidado na cadeira que estava diante dela.

– Olá, chamo-me Sebastian Bergman.

– Sei isso muito bem. – Ela não lhe retribuiu o sorriso. Fechou a pasta na qual estivera a trabalhar e ?tou-o. Ele não conseguiu descobrir se estava apenas surpreendida por o ver ou também irritada. Havia certamente qualquer coisa.

– Você é Veronika Fors?

– Sim. – Outra resposta lapidar.

– Bom, é por causa de uma palestra que planeámos há algum tempo. – Sebastian tirou o contrato do bolso interior e pousou-o à frente dela. – Uma introdução pormenorizada ao per?l dos delinquentes.

Veronika pegou no contrato e olhou para ele.

– Mas isso deve ter sido há uns dez anos.

– Ou perto disso – respondeu Sebastian. – Imaginei que ainda pudesse estar interessada. O material continua a ser relevante. – Sorriu de novo, tão docemente quanto conseguiu.

– Você está a brincar? – Veronika Fors tirou os óculos de leitura e olhou para ele.

– Não, quando brinco sou muito mais engraçado. Consigo ser positivamente espirituoso. – Sorriu-lhe de novo. Ela não sorriu. Havia algo no seu olhar. Algo que ele reconheceu.

– Dê-me uma boa razão para eu ter esta conversa consigo. Continua envolvido na investigação académica? Você desapareceu simplesmente da superfície da terra, e agora aparece aqui e quer que honremos um contrato que tem dez anos.

Sebastian decidiu de imediato parar de sorrir. Essa táctica revelara-se completamente ine?caz com a mulher que agora lhe lançava um olhar furioso. Começava a ?car irritado com ela. A?nal, fora ela que em tempos solicitara os seus serviços. Desejara as suas qualidades de especialista e os seus conhecimentos profundos. Que ainda possuía. Um pouco de respeito não seria despropositado.

– Eu continuo a ser o melhor especialista da Suécia em per?s criminais. Posso prometer-lhe que não ?cará desapontada, embora ultimamente talvez não tenha andado muito activo no mundo académico.

– E onde tem estado activo? Você chegou realmente a publicar algo desde os anos noventa? Está a trabalhar? A fazer alguma coisa?

– Ouça, se tem dúvidas acerca das minhas capacidades posso oferecer-lhe uma palestra como convidado. Para ver do que sou capaz. Sem compromisso, por assim dizer.

– Ah, sim, você está habituado a esse tipo de coisas, não é? Sem compromisso.

O tom da sua voz sobressaltou Sebastian. Aquilo parecia pessoal. Estava furiosa. Provavelmente, ofendida. Olhou para ela mas, mesmo assim, não a reconheceu. Nem sequer os olhos, que um segundo antes lhe pareceram familiares, lhe forneceram quaisquer pistas. Teria aumentado de peso? Ou emagrecido? Cortara o cabelo? Ele não fazia ideia. O seu cérebro estava a trabalhar à velocidade máxima. Havia algo nela. Naquele tom de voz irritado, ligeiramente elevado. De repente, veio-lhe ao espírito uma vaga lembrança. Pouco nítida para a compreeender por inteiro, mas ?cou convencido de que, embora não se lembrasse verdadeiramente dela, já a tinha visto nua. Num vão de escada em Bandhagen. A ténue imagem imobilizada de um momento há muito tempo. Uma mulher nua a gritar furiosamente com ele num vão de escada. De certeza que não a mandara para o inferno? Ou teria sido ela a fazê-lo?

A situação podia ser realmente tão má?

Veronika Fors rasgou o contrato à frente dele e fez-lhe um gesto com o dedo médio.

Provavelmente a situação era mesmo má.

Infelizmente.


– ADIVINHEM QUEM é o novo director de Lövhaga.

Vanja instalou-se confortavelmente na cadeira e percorreu com o olhar os três colegas sentados à mesa na Sala. Billy sorriu para si mesmo. Na verdade, ela não conseguia deixar de pensar naquilo. No carro, durante o regresso a Estocolmo, ?zera várias referências ao facto de se terem cruzado de novo com Thomas Haraldsson. No cargo de director da prisão. Como era isso possível? Em que andariam eles a pensar? Subornos, paralisação total do cérebro ou alguém que estivesse decidido a acabar com Lövhaga eram as únicas explicações que conseguia encontrar para aquela nomeação.

Billy ouvira-a em silêncio. Haraldsson não o incomodava particularmente, e ?cara muito satisfeito por o encontrar de novo. Talvez ele não fosse muito inteligente, mas havia algo de atraente e de ligeiramente deplorável naquele homem de Västerås que tanto se esforçava. Não havia nada de errado na sua ambição, e com o devido apoio podia fazer um bom trabalho no seu novo cargo. Billy esperava que sim. Em silêncio, para si próprio. Tinha quase a certeza de que era a única pessoa na sala que pensava isso. Olhou para Ursula e Torkel, que abanavam a cabeça em resposta à pergunta de Vanja.

– Eu nem sequer sabia que tinham alguém novo – disse Torkel, bebendo um gole da sua quarta chávena de café de máquina.

– Thomas Haraldsson. – Vanja olhou com expectativa para os colegas enquanto aguardava a reacção deles. Esta chegou.

– O Thomas Haraldsson de Västerås? – A expressão de Ursula foi de estranheza, como se tivesse compreendido mal. Vanja con?rmou com um aceno de cabeça. – Mas como diabo acabou ele por ir parar lá? – prosseguiu Ursula.

– Não faço ideia – é um mistério.

– Como está ele? – perguntou Torkel serenamente. Não se mostrou surpreendido nem aborrecido, notou Vanja. A bem dizer, estava mais preocupado.

– Parecia muito à vontade.

– Estava a referir-me ao ombro.

– Disse que ainda o sentia um pouco, mas fora isso tudo parecia bem – respondeu Billy.

– Óptimo. – Afinal, Thomas Haraldsson fora baleado enquanto estava às ordens de Torkel, e Torkel sentia-se um pouco culpado por não ter entrado em contacto com Kerstin Hanser e a polícia de Västerås para saber dele. Lembrara-se disso por diversas vezes, mas nunca chegara a fazê-lo.

– Então, o que disse ele a respeito do Hinde? – prosseguiu Torkel, recordando à equipa o verdadeiro motivo daquela reunião.

– Está onde é suposto estar e, a acreditar no pessoal de Lövhaga, comporta-se como sempre.

– Vocês viram-no?

– Entregámos um pedido para uma autorização de visita. Aparentemente, ninguém pode vê-lo sem autorização prévia.

– E quanto tempo demora isso?

– Três a cinco dias.

– Vou ver se consigo acelerar as coisas.

Vanja agradeceu com um aceno. Alguém andava a imitar Edward Hinde, e isso signi?cava que ele passara a fazer parte daquela investigação. Queria ir falar com ele, nem que fosse para o poder eliminar. Até lá ele era uma ponta solta, e Vanja odiava pontas soltas. Rejeitar algo por lhe parecer improvável qualquer ligação – simplesmente ela não o conseguia fazer. Fá-la-ia sentir que não estava a realizar o seu trabalho, que não dava o seu melhor. E isso era algo que tinha aprendido em casa, desde criança. Algo que o seu pai lhe dissera quando estava preocupada sobre como devia lidar com o seu primeiro dia de escola. Tu não tens que ser a melhor, mas deves dar sempre o teu melhor. Não se podia fazer mais do que isso, mas seria uma tolice fazer menos. Vinte e cinco anos depois, continuava a viver de acordo com essas palavras.

– Mais alguma coisa de Lövhaga? – quis saber Torkel. Vanja virou-se para Billy, que tirou da pasta que tinha à sua frente quatro conjuntos agrafados de folhas A4 e os distribuiu.

– Tenho andado a veri?car os sites da Internet que o Hinde visitou durante os últimos três meses. Nada que valha a pena referir. Muitos jornais, tanto suecos como estrangeiros, e também segue uma quantidade de blogues; podem ver a lista aí. E inscreve-se com frequência em vários fóruns, sobretudo os que debatem ?loso?a, psicologia e outros temas de humanidades.

Ursula levantou os olhos do seu exemplar.

– Ele pode participar nas discussões?

– Não, só está autorizado a lê-las. A única comunicação que tem com o mundo exterior é através de cartas. Nos últimos seis meses recebeu três. Duas eram de mulheres que queriam conhecê-lo, a perguntar como podiam visitá-lo e a convidá-lo a ir ter com elas quando, ou se, saísse dali.

– Que doentio – interrompeu Vanja. Torkel e Ursula concordaram com acenos de cabeça.

– A terceira carta pode, eventualmente, ter algum interesse. – Billy virou uma nova página do documento que distribuíra e os outros ?zeram o mesmo. – É de um tal Carl Wahlström, daqui de Estocolmo. Escreve que tem seguido as actividades de Hinde com muito interesse e que gostava muito de o conhecer pessoalmente a ?m de, e cito, «ter uma visão mais aprofundada do processo de decisão que levou a que quatro mulheres perdessem as suas vidas». Está a escrever uma dissertação sobre ?loso?a prática mas, na minha opinião, parece muito impressionado com o Hinde.

– Eles já se conheceram? – perguntou Ursula.

– Não. Pelo que nos disseram em Lövhaga, o Hinde nem sequer respondeu à carta.

– Em todo o caso, veri?quem isso depois da reunião – disse Torkel. – Pelo menos já é alguma coisa. – Pousou os papéis e colocou os óculos na testa. – Os inquéritos porta-a-porta em Tumba não deram qualquer resultado. Os amigos e os parentes dos Granlund não sabiam se o casal pensava que andava a ser observado ou se recebia ameaças. O marido está completamente fora de questão. Encontrava-se na Alemanha ou no avião a caminho de casa.

Um silêncio pesado invadiu o grupo. Com algumas pequenas variantes, era a terceira vez que ouviam Torkel reportar que ninguém vira nada no local do crime e que nenhum íntimo da vítima conseguira apresentar o mais pequeno indício de algum motivo.

– Resta-nos, portanto, a investigação forense. – Torkel virou-se para Ursula.

– Esperma e pêlos púbicos. De novo. Enviei as amostras para Linköping a ?m de serem analisadas, mas creio que podemos assumir que se trata do mesmo perpetrador. O relatório preliminar da autópsia indica que a artéria carótida e a traqueia foram cortadas, o que signi?ca que ela sufocou antes de sangrar até a morte. De novo. – Ursula calou-se e abriu as mãos. Não havia mais nada.

Torkel retomou a palavra.

– Como vocês sabem não conseguimos encontrar qualquer ligação entre as três mulheres, por isso não fazemos ideia de quem será a próxima vítima.

A observação ?nal de Torkel foi recebida com um doloroso silêncio. Ninguém podia contestar o que ele dissera. Parecia muito improvável que o perpetrador não atacasse de novo. Outra mulher iria perder a vida e não havia nada que eles pudessem fazer para o impedir. Vanja empurrou a sua cadeira para trás e levantou -se.

– Vamos falar com o Wahlström.

 

Vanja e Billy foram procurar Carl Wahlström no Departamento de Filoso?a, mas informaram-nos de que ele não se encontrava lá. Naquela altura do ano a universidade estava praticamente deserta. Tentaram telefonar-lhe? Não, não o haviam feito, nem tinham qualquer intenção de o fazer. Foram ao apartamento dele? O Carl estava a trabalhar na sua dissertação durante o Verão. Deram-lhes um endereço de que eles já dispunham. Em Forskarbacken. Segundo andar. Alojamentos para estudantes.

Ouviram música dentro do apartamento. Vanja sacou da sua identi?cação quando tocou à campainha, pressionando o botão durante bastante tempo. Não conseguia perceber se a sua audição era particularmente sensível ou se a música estava realmente alta.

Carl Wahlström abriu a porta com uma chávena de chá na mão e ?xou um olhar interrogador nos seus visitantes. A música estava realmente alta, observou Vanja enquanto ela e Billy mostravam a identi?cação da polícia.

– Polícia – Vanja Lithner e Billy Rosén. Podemos falar consigo, por favor?

– De que se trata?

– Podemos entrar?

Carl afastou-se para o lado e deixou-os entrar. O apartamento estava quente e cheirava a pão acabado de fazer.

– Podem descalçar os sapatos, por favor? Acabei de aspirar o pó à casa. – Carl passou por eles no estreito corredor e foi até ao quarto de dormir; abeirou-se do computador, que estava em cima da secretária ao lado de uma impressora, e desligou a música.

Vanja e Billy descalçaram-se e entraram no apartamento. Havia uma pequena cozinha a um canto da sala de estar, que estava equipada com um sofá, uma televisão montada na parede e, no outro canto, uma mesa com uma pilha bem ordenada de livros e uma cadeira de escritório. Um apartamento de estudantes perfeitamente banal se não fossem os grandes quadros, quase como vitrinas, pendurados numa parede por cima do sofá. Por detrás do vidro, cada um deles tinha uma série de borboletas e traças; seis ou oito se se tratasse de grandes espécimes, talvez umas quinze ou vinte se fossem mais pequenas, com as suas asas coloridas abertas num batimento que se imobilizara para toda a eternidade. Vanja reconheceu um punhado delas e sabia o nome de duas: pavão e amarelo-de-enxofre. Nem sequer sabia se as restantes eram nativas da Suécia.

– O que desejavam?

Carl saiu do quarto e fechou a porta atrás de si. Cruzou os braços e olhou para os dois agentes da polícia. Vanja olhou para Billy e reparou que também ele estava fascinado com a exposição de insectos.

– Estamos aqui por causa de uma carta que enviou a Edward Hinde há algumas semanas – explicou Vanja, sentando-se no sofá. Billy encostou-se à parede da cozinha.

– Oh? – Carl girou a cadeira de escritório e sentou-se, com uma expressão intrigada no rosto.

– Porque lhe escreveu? – prosseguiu Vanja.

– Queria falar com ele.

– Porquê?

– Pensei que podia estar disposto a ajudar-me nos meus estudos.

– Em ?loso?a prática?

– Sim. Porque é que isso tem algum interesse para a polícia?

Vanja não respondeu. Quanto menos Carl soubesse acerca do motivo da visita, menos probabilidades teria de adaptar as respostas em conformidade com a situação. Billy estava a pensar o mesmo e mudou completamente de assunto.

– O que faz um ?lósofo prático? Quero dizer, que tipo de emprego virá a ter?

Carl rodou um quarto de volta e ?tou Billy com o esboço de um sorriso no canto da boca.

– Porquê? Você está farto de ser polícia?

– A ?loso?a não é puramente teórica? – prosseguiu Billy como se não tivesse ouvido a pergunta. – O que faz um ?lósofo prático? Vai para a rua pregar? Dá aulas à noite?

– Lá porque você não entende isso, não há necessidade de me vir incomodar.

– Desculpe, estava apenas curioso.

O olhar de desagrado no rosto de Carl tornou claro que o pedido de desculpas não fora aceite. Vanja interveio para não deixar a conversa descarrilar até Carl decidir que não estava de todo disposto a falar com eles.

– Nós lemos a carta que enviou ao Hinde.

Carl manteve o olhar ?xo em Billy por mais um ou dois segundos e, a seguir, virou-se para Vanja.

– Compreendo.

– Parece que é uma referência para si.

– Não, não diria isso. Ele fascina-me.

– Ele assassinou quatro mulheres. Isso fascina-o?

Carl inclinou-se para a frente na sua cadeira, mostrando-se muito mais interessado na conversa.

– Não propriamente as suas acções, mas o percurso dele até este ponto é extremamente interessante para mim. As decisões que tomou, as deliberações que fez. Ando a tentar entendê-lo.

– Porquê?

Carl ?cou em silêncio por uns momentos, obviamente a ponderar a resposta como se estivesse a explicar-se ao seu professor e não a falar com a polícia.

– Os homicídios que cometeu foram actos deliberados. Planeados e matutados. Ele tinha o desejo de matar e conseguiu satisfazê-lo. Quero saber de onde veio o desejo.

– Eu posso dizer-lhe – veio do seu cérebro doentio.

Carl sorriu quase altivamente para Vanja.

– Isso não é su?ciente para uma dissertação. Além disso, a sua asserção exige que se aceite que certos desejos podem ser classi?cados como «doentios», enquanto outros desejos socialmente mais aceitáveis, como o de querer um cachorrinho, são «saudáveis».

– Você está a dizer que é saudável matar quatro mulheres?

– O acto em si não é aceite na nossa sociedade por bons motivos, mas acho muito difícil falar acerca do desejo de o realizar recorrendo a termos como saudável ou doentio. Nós estabelecemos regras sobre o modo como nos devemos comportar, e é evidente que não aceitamos a morte de um outro ser humano. Mas podemos realmente não aceitar o desejo de o fazer?

Vanja suspirou para si própria. Seria necessário analisar tudo, virar tudo do avesso, para entender e explicar? Para ela era perfeitamente simples. Se alguém queria matar outra pessoa, era doente. Se alguém o fazia, era ainda mais doente. Ou mau.

– Recebeu alguma resposta dele? – interveio Billy, em parte porque já não conseguia suportar ouvir durante mais tempo aquela palestra ?losó?ca – caso se tratasse de ?loso?a – e, em parte, porque percebeu que Vanja estava a perder a paciência.

– Infelizmente, não.

– Você participa nalgum destes fóruns?

Billy entregou-lhe uma cópia impressa dos sites que Hinde visitara durante os últimos três meses. Carl pegou no papel e estudou-o cuidadosamente. Soou uma campainha na bancada da cozinha; Carl pousou o papel e levantou-se.

– O meu pão está pronto.

Foi à cozinha, desligou o forno e abriu a porta. Agarrou em duas pegas e tirou o tabuleiro de dentro do forno quente. Quando Vanja viu os dois pães castanhos-dourados dentro das formas rectangulares, percebeu que estava com fome. Esperaram enquanto Carl picou os pães para veri?car se estavam prontos, e a seguir desenformou um deles e colocou-o virado ao contrário em cima de uma grade no escorredor de louça para arrefecer. Enquanto repetia o procedimento com o segundo pão, virou-se rapidamente para Vanja.

– De que departamento são vocês?

– Da Riksmord.

Carl desviou a atenção da fornada.

– Ele fugiu?

– Não.

– Mas morreu alguém e vocês estão interessados no Hinde?

Vanja olhou para Billy. Ou Carl Wahlström era muito esperto e tinha organizado as poucas informações de que dispunha com uma rapidez invulgar, ou sabia que alguém andava a imitar os homicídios de Hinde. Sem lhe revelar o que estava a pensar, Vanja continuou:

– Onde esteve ontem entre as dez da manhã e as três da tarde?

– Estive aqui. Fiquei a estudar.

Carl tapou os pães com uma toalha de chá limpa, fechou a porta do forno e regressou à pequena sala de estar.

– Esteve sozinho?

– Sim.

– Portanto, ninguém o viu durante todo o dia?

– Não.

Silêncio. Vanja não precisava de mais nada; já tinha decidido investigar Carl Wahlström ao pormenor. Pôs-se em pé.

– Está disposto a fornecer voluntariamente uma amostra do seu ADN?

Carl Wahlström nem sequer se deu ao trabalho de responder. Inclinou a cabeça para trás e abriu muito a boca. Vanja tirou do seu saco um cotonete esterilizado e passou-o rapidamente pela língua e o interior das bochechas dele.

– E quanto a essa lista que lhe dei? – perguntou Billy enquanto Vanja guardava o cotonete dentro de um pequeno recipiente de plástico e fechava a tampa.

Carl virou-se para trás, pegou na lista e devolveu-a a Billy.

– Participo num. Esse aí. – Indicou-lho e Billy olhou para o nome. Não ajudava muito. Na verdade, não ajudava nada. Mesmo que Hinde soubesse que Carl andava a participar num determinado fórum, não podia comunicar com ele. Mas pelo menos era um ponto de contacto, o que já era algo. E alguma coisa era melhor do que nada, que era o que eles tinham até ao momento.

Quando saiu para o corredor, Vanja virou-se para trás.

– Os seus insectos?

– Que têm eles?

– De onde vem o desejo de espetar al?netes em borboletas e traças?

Carl sorriu de novo para ela, como se quisesse mostrar que estava disposto a satisfazer-lhe a curiosidade. Como se ela fosse uma menina que não sabia nada. Era um sorriso que, ao ?m de apenas dez minutos na companhia de Wahlström, Vanja já detestava. Recordava-lhe excessivamente aquele sorriso de superioridade de Sebastian Bergman.

– Não é um desejo, é um interesse. Sou lepidopterologista.

– Presumo que isso signi?ca que é um coleccionador de borboletas.

– Especialista. Um especialista em borboletas.

– Como funciona isso? Elas ainda estão vivas quando lhes espeta os al?netes?

– Não, primeiro mato-as com acetato de etilo.

– Então interessa-se por matar coisas?

Carl inclinou a cabeça para um lado, como se Vanja tivesse acabado de lhe dizer algo encantador e meigo.

– Não me vai perguntar se também fazia xixi na cama e se gostava de incendiar coisas?

Vanja não respondeu. Baixou-se ao lado de Billy para calçar os sapatos, evitando aquele olhar arrogante.

Carl continuou:

– Sabe que é uma simpli?cação grosseira acreditar que, quando são jovens, os assassinos em série molham a cama, provocam incêndios e matam animais?

Billy endireitou -se.

– Você parece saber muito sobre os assassinos em série.

– Estou a escrever uma dissertação sobre eles. Entre outras coisas.

– E do que trata? Essa dissertação?

– De quando os desejos do indivíduo colidem com as regras de uma sociedade civilizada.

Billy enfrentou o olhar de Carl e, de repente, teve a sensação de que o tema se baseava na experiência pessoal. Apesar do calor que fazia no apartamento, ?cou arrepiado.

 

– Ele era assustador.

Vanja e Billy saíram para a Forskarbacken, e iam a caminhar pelo passeio em direcção ao carro quando Billy traduziu por palavras aquilo em que ambos estavam a pensar. Vanja acenou com a cabeça, colocou os óculos de sol e desabotoou o blusão ?no.

– Assustador, e mais alto do que tu.

– Sim, também reparei nisso – disse Billy, destrancando o carro apesar de ainda estarem a vinte metros de distância. – Vamos colocá-lo sob vigilância?

– Ele parecia um pouco descontraído de mais. Se for ele, sabe que temos provas forenses.

– Talvez queira ser apanhado?

– Porque haveria de o querer?

– Os meios de comunicação ainda não relacionaram os homicídios. Ele não tem publicidade nem atenção. Se o estímulo que obtém com as mortes começar a ?car cada vez mais fraco, poderá precisar de algo mais. Uma detenção e um julgamento não só mostrariam o que ele fez, como lhe proporcionariam reconhecimento. Transformá-lo-iam em alguém.

Vanja parou e olhou para Billy, surpreendida. Não apenas porque provavelmente foi a primeira vez que o ouviu falar durante mais tempo sem interrupção, mas sobretudo porque não se lembrava de o ouvir exprimir-se com tanta autoridade e perspicácia. Claro que ele era um especialista em matéria de tecnologia e de novos aparelhos... mas quanto a assassinos em série? Quando Billy se apercebeu de que Vanja tinha parado, virou-se para trás; embora não conseguisse ver-lhe os olhos por trás dos óculos escuros, percebeu que ela estava surpreendida.

– O que foi? – perguntou ele.

– Tens andado a ler acerca do assunto.

– Sim, e depois?

– Nada. – Algo na voz de Billy dizia a Vanja que não devia ir mais longe e que, certamente, não devia brincar com o assunto. Pelo menos, não naquele momento.

– Vamos ?car de olho nele até recebermos os resultados da amostra de ADN – prosseguiu ela.

Entraram no carro e fecharam as portas. Vanja apertou o cinto de segurança enquanto Billy ligou o motor.

– Então, quem é a garota, a propósito?

– Que garota?

– A garota com quem foste ao teatro.

– Ninguém.

Aquilo signi?cava que de certeza era alguém. Vanja sorriu para si mesma. Iria extrair-lhe os pormenores durante a curta viagem até casa.


POLHEMSGATAN. DE NOVO. Sebastian estava sentado no café onde já se podia considerar um cliente habitual. Na sua mesa preferida, aquela que tinha a melhor vista para o seu antigo local de trabalho. A Riksmord. Que era agora o local de trabalho dela. Já ia na sua terceira chávena de café, e olhou mais uma vez para o relógio de plástico branco pendurado na parede. Amaldiçoou-se a si mesmo. Amaldiçoou Stefan, que o fez ir até Frescati falar com uma mulher que o odiava, como se veio a veri?car. Em vez disso devia ter ?cado no café. À espera dela. Ter -lhe -ia custado menos.

Precisava de a ver.

Ali, naquele café da Polhemsgatan, sentia-se quase confortável. Quanto mais perto se encontrava do seu antigo local de trabalho, mais seguro se sentia. Ali não tinha necessidade de se esconder com tanto cuidado. Havia vários motivos para justi?car a sua presença naquele local. Se Vanja ou alguma outra pessoa o visse, sempre podia dizer que estava de passagem. Que estava à espera de um antigo colega. Que viera a uma reunião que fora cancelada. Se não acreditassem, sempre podia mudar de táctica e a?rmar que se encontrava ali porque queria que o aceitassem de volta. Eles iriam acreditar nisso.

Não que Torkel alguma vez o ?zesse. Não depois de Västerås.

Mas seria lógico. Eles iriam entender porque estava ali sentado com a sua chávena de café, a olhar para o edifício de betão cinzento. A sua presença seria consideravelmente mais difícil de explicar se Vanja o avistasse no outeiro junto ao seu apartamento.

O ponteiro grande do relógio de plástico já dera meia-volta e marcava cinco e vinte e cinco. Não havia mais clientes no café; o jovem casal que parecia ter problemas de relacionamento desaparecera sem que Sebastian reparasse, e a senhora idosa que ele suspeitava ser a proprietária tinha retirado do balcão frigorí?co as sanduíches já preparadas. Sebastian olhou novamente para fora da janela. Para a fachada de betão cinzento. Não conseguiu encontrar o que procurava. Suspeitava que talvez fosse altura de fazer algo. A questão era: o que fazer? Não queria voltar para o seu apartamento e para os escombros da sua outra vida, e não sabia se teria coragem para regressar ao local habitual, do lado de fora do prédio dela. Era demasiado perigoso. De um ponto de vista estatístico, o perigo de ser descoberto aumentava sempre que lá ia. Mas tinha de fazer algo. Algo que lhe aliviasse a impaciência e a irritação. Não tinha qualquer intenção de se avistar de novo com aquela mulher do dia anterior, caso contrário ela teria sido a alternativa mais simples. A tal Ellinor Bergkvist. Havia algo no modo como tentara empatá-lo durante a manhã, querendo constantemente saber mais e mais, que o deixara irritado. Isso e o facto de ela lhe segurar a mão. A intimidade também tinha os seus limites.

Sebastian descarregou a sua frustração na mulher que estava na caixa.

– O café é uma porcaria – disse-lhe, olhando para ela.

– Posso fazer café fresco – sugeriu ela.

– Vá para o inferno – respondeu, e saiu de rompante.

Aquele foi, provavelmente, o ?m da sua temporada como cliente habitual, pensou quando saiu para o quente ?m de tarde estival. Mas sempre poderia encontrar outro local.

Se havia coisa que não faltava em Estocolmo, eram cafés.

E mulheres.

 

Após algumas breves mas malogradas tentativas em bares de hotéis, a tentar encontrar alguém com quem terminar um dia mau, Sebastian estava prestes a desistir. Àquela hora até a Real Biblioteca estava fechada. O faustoso edifício do Humlegården[9] era um dos seus locais favoritos quando andava à pesca de companhia feminina. A sua técnica era simples. Encontrar um lugar no meio da grande sala de leitura. Requisitar alguns livros; era importante levar consigo alguns exemplares das suas obras e certi?car-se de que ?cavam bem visíveis. A seguir, sentava-se e começava a debater-se com um novo texto, a esforçar-se para encontrar as palavras certas, e no momento oportuno virava-se para uma mulher que estivesse a passar: «Desculpe-me, mas estou a trabalhar num novo livro e queria saber se pode dar uma olhadela a esta frase.» Se jogasse bem os seus trunfos, não tardariam a partilhar um copo de vinho no Hotel Anglais situado mesmo ao lado.

Sebastian começava a ?car irritado consigo mesmo enquanto caminhava sem rumo através do calor da cidade; actualmente, nada do que ?zesse parecia dar resultado. A cada passo que dava ia ?cando mais zangado. Nitidamente furioso.

Por que raio tudo tinha de ser assim?

Por que raio nunca nada funcionava da maneira que ele queria?

Tinha de ripostar contra tudo e contra todos. Telefonar a Trolle e pedir-lhe que investigasse tanto quanto pudesse. Que rebuscasse as vidas daquelas pessoas perfeitas até ?nalmente alcançar a merda. Anna Eriksson e Valdemar Lithner eram os culpados de tudo aquilo. Ele também devia investigar Anna. Talvez fosse o elo mais fraco, a ?ssura que podia fazer com que aquela perfeita fachada de classe média se rachasse e abrisse. Decerto conseguiria encontrar alguma vileza nela. Não era propriamente alheia aos segredos e às mentiras. Vanja nem sequer sabia a verdade acerca do seu próprio pai. Sem dúvida que Anna justi?cava isso para si própria alegando que era no melhor interesse de Vanja. Mas quem lhe dera o direito de decidir? Quem lhe dissera que podia fazer-se passar por Deus? Ele queria estar perto da sua ?lha, mas naquele momento isso parecia signi?car uma distância de pelo menos algumas centenas de metros. Como se estivesse sujeito a uma espécie de ordem de restrição. Parou. Iria pedir a Trolle que alargasse a investigação. Que desse uma olhadela em Anna Eriksson. Sebastian pegou no telemóvel e, em seguida, voltou a guardá-lo. Porquê telefonar? Voltou para trás e dirigiu-se à praça de táxis mais próxima. A?nal, não tinha nada melhor para fazer. Trolle morava em Skärholmen.[10]

Trolle era uma pessoa em quem se podia con?ar.

Ele iria compreender.

Ele perdera a sua própria família.


BILLY ESTAVA SENTADO no sofá com o seu iPad, a navegar na Internet. Maya estava no chuveiro. Billy esperava que pudessem sair e ir jantar fora quando ela terminasse.

Estavam juntos desde o solstício de Verão. Um antigo colega de escola de Billy tinha uma casa em Djurö, no meio do arquipélago, e pelo terceiro ano Billy fora convidado a ir festejar com eles. Nesse ano esteve lá um outro amigo, juntamente com a sua irmã. Maya Reding-Hedberg. Acabaram sentados ao lado um do outro durante o tradicional almoço de arenque em conserva, e passaram lá toda a tarde e parte da noite. Continuavam juntos desde então e viam-se quase todos os dias.

Apesar disso ele não dissera nada acerca de Maya durante a viagem para casa desde Forskarbacken, quando Vanja tentara saber mais pormenores. Normalmente contava tudo a Vanja. Ou a maioria das coisas. Às vezes sentia que eram mais como irmão e irmã do que colegas, mas dessa vez retraíra-se pela simples razão de que tinha praticamente a certeza de que Vanja não iria gostar de Maya.

Ela ganhava a vida como conselheira vocacional.

Vanja tinha muitos pontos positivos, mas os seus padrões eram tão exigentes que lhe era difícil lidar com pessoas que não tirassem o melhor proveito das suas vidas. Por si mesmas. Uma coisa era melhorar a educação, frequentar cursos, assistir a palestras, de?nir objectivos, mas ela considerava um sinal de fraqueza inata e cobardia se alguém precisasse de ajuda para encontrar motivação e alcançar resultados. Se uma pessoa não sabia o que queria, era porque não o queria o su?ciente – era este o seu mantra. Quem tinha problemas a sério ia falar com um psicólogo quali?cado, e não com uma inexperiente personagem New Age com um diploma que fornecia motivação a mil coroas por hora.

Não, Vanja não iria gostar de Maya.

Não que ele precisasse da aprovação de Vanja, mas era mais simples se ela não soubesse de nada. Isso signi?cava que podia evitar as zombarias, os pequenos comentários irónicos. O que de momento era muito importante, pois começara realmente a fazer uma séria tentativa para alterar a sua situação no seio da equipa.

Tudo começara com Maya a perguntar-lhe se era feliz no trabalho. Uma pergunta simples, uma resposta simples. Sim, era. Não podia imaginar um local melhor para trabalhar, nem melhores colegas. À medida que o tempo foi passando, conversaram mais. Ela interessava-se pelo que ele fazia, pelo papel que desempenhava. Muitas pessoas só queriam ouvir falar dos pormenores escabrosos de uma emocionante investigação de homicídio, mas Maya não era bem assim. Não, ela estava interessada no trabalho propriamente dito. Nele. O facto de conseguir fazê-lo falar era algo que apreciava nela. Portanto, começara a falar-lhe acerca do seu trabalho. Sobre o que fazia todos os dias. Referiu os aspectos práticos e concretos. A seguir, ela ?tou-o com uma ligeira ruga na testa.

– Parece-me que és mais um especialista em tecnologias da informação do que um detective.

Isso atingira-o profundamente. Ganhara mais consciência das tarefas que lhe estavam atribuídas. Veri?car cadastros policiais. Descarregar material da Internet. Fazer pesquisas.

Quanto mais ciente ?cava disso, mais se apercebia de que o seu papel no seio das investigações era o de uma espécie de secretário avançado em vez de um agente de investigação policial. Conversou com Maya acerca do assunto, e ela sugeriu-lhe que tirasse um tempo para pensar no rumo que estava a tomar. E que tivesse coragem para ouvir a resposta. A resposta era que ele não sabia. Nunca pensara sequer no assunto.

Ia trabalhar.

Gostava daquilo.

Ia para casa.

Conseguia fazer uso da sua capacidade para criar estruturas através da construção de cronologias e para recolher e cotejar informações de todas as fontes imagináveis, mas estaria a usar todo o seu potencial? Não, não podia dizer que sim. Era-lhe difícil a?rmar-se no seio da equipa. Torkel Höglund era um dos agentes policiais mais quali?cados da Suécia, e tanto Vanja como Ursula estavam entre os três primeiros – caso não fossem os melhores – nas respectivas áreas. Mas ele não tinha necessidade de chegar a esse nível. Não o referira a Maya, mas se quisesse ser perfeitamente honesto achava que na verdade não tinha o que era preciso; no entanto, de certeza que podia tornar-se um membro igual aos outros da equipa. Já começara a trabalhar nisso.

Maya saiu da casa de banho vestida com o roupão dele e uma toalha enrolada no cabelo. Sentou-se no sofá ao seu lado.

– Já decidiste o que vamos fazer? – perguntou-lhe, beijando-o e aninhando-se no seu ombro.

– Estou com fome.

– Eu também. E hoje à noite há um concerto no Parque Vitaberg. Às oito horas.

Parque Vitaberg. Concerto. Noite de Verão. Um trovador folclórico, se não estivesse muito enganado. Muito bom para quem tivesse mais de setenta e cinco anos. Billy decidiu ?ngir que não ouviu o que ela disse.

– Podíamos ir ver um ?lme – sugeriu-lhe em alternativa.

– É Verão.

– Isso não é resposta.

– É mais agradável estar ao ar livre.

– Está mais fresco dentro de casa.

Por instantes, pareceu que Maya estava a comparar o mais fresco com o mais agradável; por ?m, abanou a cabeça.

– Está bem, mas nesse caso quero escolher o ?lme.

– Tu escolhes ?lmes muito aborrecidos.

– Eu escolho bons ?lmes.

– Escolhes ?lmes que têm boas críticas. Não é a mesma coisa.

Ela levantou a cabeça e ?tou-o. Ele havia cedido na semana anterior, quando a Cinematek iniciou a temporada estival de ?lmes franceses da Nouvelle Vague. Por isso, desta vez era melhor que tivesse naves espaciais, robôs ou outra coisa qualquer que ele quisesse ver.

Encolheu os ombros.

– Está bem, podes escolher o ?lme mas, nesse caso, eu escolho o restaurante.

– Combinado.

– Então pronto, reserva lá os bilhetes com o teu novo brinquedinho. – Bateu com o iPad no joelho dele.

– Não é novo, e não é um brinquedo.

– Se tu o dizes...

Ela levantou-se, inclinou-se e beijou-o na boca antes de ir para o quarto dele vestir-se. Billy ?cou a vê-la afastar-se com um sorriso no rosto.

Ela era boa para ele.


PARA ESSE DIA BASTAVA.

Thomas Haraldsson desligou o computador. Há algum tempo, uma das empresas de electricidade havia lançado uma campanha publicitária na qual alegava que se todas as pessoas desligassem os aparelhos eléctricos em vez de os deixarem simplesmente em modo de espera, com a energia economizada seria possível aquecer as três maiores cidades da Suécia. Ou talvez isso tivesse a ver com o fornecimento de electricidade. E podiam ter sido três casas. Três casas nas três maiores cidades, talvez fosse isso. Não, parecia um pouco complicado. Para dizer a verdade não conseguia realmente lembrar-se mas, de qualquer maneira, aquilo pouparia electricidade, pouparia recursos. O que era importante; os recursos da Terra não eram inesgotáveis. Ele tinha um ?lho a caminho. Precisava de algo que lhe pudesse deixar. Ou a ela. Por isso, desligou o computador.

Levantou-se, empurrou a cadeira para a frente, e estava a preparar-se para sair quando reparou no ?cheiro acerca de Edward Hinde, que continuava em cima da sua secretária. Parou. Os da Riksmord estavam interessados e haveriam de voltar. Não faria mal ler coisas sobre Hinde, mas provavelmente naquela noite não teria tempo para o fazer. Olhou para o relógio. Jenny tinha o jantar pronto às oito. Rigatoni com carne de borrego picada. Um qualquer chefe de cozinha célebre cozinhou aquilo na televisão, e desde então tornou-se uma refeição habitual lá em casa. A primeira vez que Jenny a fez Haraldsson disse-lhe que gostava, e agora não tinha coragem para lhe contar a verdade. Jenny comprou o que era necessário quando saiu do emprego, mas assim que chegou a casa sentiu uma avidez por gelado de alcaçuz e pediu a Haraldsson que lho fosse buscar à Statoil quando regressasse. Talvez ele até alugasse um DVD; teriam tempo para assistir a um ?lme antes que fosse muito tarde. Mas nesse caso não iria ter tempo para ler acerca de Hinde.

Decisões, decisões.

Olhou de novo para o relógio. Quarenta e cinco minutos para chegar a casa. Cinquenta e cinco se parasse para ir buscar o gelado e um ?lme. Restava-lhe meia hora até ter de se pôr a caminho. De certeza que não faria mal se soubesse um pouco mais a respeito de Hinde da próxima vez que a Riksmord aparecesse por lá. Os relatórios e as avaliações psicológicas eram óptimos mas ele sabia bastante acerca dos criminosos e podia dar um contributo válido. Talvez durante uma conversa privada, con?dencial, conseguisse fazer com que Hinde lhe revelasse algo que não estivesse disposto a declarar durante uma entrevista formal com a Riksmord. A?nal, Haraldsson não iria como agente policial mas mais como um ser humano. Após lançar mais uma olhadela ao relógio, decidiu fazer uma visita rápida e não programada à ala de segurança.


EDWARD HINDE FICARA surpreendido quando os guardas o foram buscar à sua cela pouco antes das seis e meia. A regra geral era de que nada acontecia depois das seis, hora a que se servia o jantar. Tinha vinte minutos para comer, a seguir recolhiam o tabuleiro e depois ?cava sozinho até ao toque de alvorada, pelas seis e meia da manhã seguinte. Doze horas com os seus livros e os seus pensamentos. Todos os dias. Dias de semana e ?ns-de-semana. Horas de sossego que ao longo dos anos se haviam transformado em metade da sua vida.

Para ser franco, durante a outra metade do dia também não acontecia muita coisa. Depois do pequeno-almoço estava autorizado a vinte minutos no lavabo e, a seguir, a uma hora no pátio para fazer exercícios. Sozinho. Regressava à cela para o almoço, ao qual se seguia uma hora na biblioteca e outra no pátio. Essa segunda hora era opcional e, se preferisse, podia ?car na biblioteca. Normalmente optava por ?car. Ia de novo ao lavabo e depois regressava à sua cela para aguardar o jantar.

A cada duas semanas tinha uma consulta com um psicólogo. Uma hora de cada vez. Ao longo dos anos Edward conhecera muitos, e a única coisa que todos eles tinham em comum era aborrecerem-no. No início da sua estadia em Lövhaga dissera-lhes o que queriam ouvir, mas agora nem sequer se dava ao trabalho de o fazer. Em todo o caso, nenhum deles se mostrava verdadeiramente interessado. Catorze anos sem qualquer progresso discernível faziam diminuir o entusiasmo da alma mais persistente. A encarnação mais recente nem sequer parecia ter lido os apontamentos do seu antecessor. E, no entanto, as visitas continuavam. Ele não tinha de ser apenas punido. Tinha de ser reabilitado.

Tornar-se uma pessoa melhor.

Rotinas e actividades inúteis. Era nisso que ocupava os seus dias. A sua vida. Com poucos desvios. Mas naquela noite aconteceu algo. Dois guardas tiraram-no da cela e levaram-no para uma das salas de visita. Há muito tempo que não ia até lá. Há quantos anos? Três? Quatro? Mais? Não conseguia lembrar-se. Em todo o caso, a sala tinha exactamente o mesmo aspecto de outrora. Paredes nuas. Uma grade de malha ?na a cobrir as janelas feitas de vidro inquebrável. Duas cadeiras de cada lado de uma mesa que estava ?xada ao chão. Dois aros de metal aparafusados ao tampo da mesa. Os guardas sentaram-no numa das cadeiras desconfortáveis e depois prenderam-lhe as mãos aos aros de metal com algemas. Em seguida saíram da sala, deixando Edward ali sentado. Em breve iria descobrir quem queria falar com ele, por isso não valia a pena começar a especular. Em vez disso, tentou pensar com quem se encontrara na última vez em que estivera acorrentado àquela mesa.

Ainda não tinha encontrado a resposta quando ouviu a porta abrir-se e alguém entrar. Edward resistiu ao impulso de se virar para trás. Manteve-se ali sentado, imóvel, sempre a olhar em frente. Não havia qualquer motivo para dar ao visitante a impressão de que era ansiosamente aguardado. Deixou de ouvir passos atrás de si. A pessoa que havia entrado parara, e presumivelmente estava a olhar para ele. Edward sabia o que o visitante podia ver. Um homem magricela, que não tinha mais de cento e setenta centímetros de altura. Cabelo ?no que caía um pouco abaixo do colarinho, demasiado ?no para estar tão comprido, pelo menos se sentisse algum interesse em manter um bom aspecto. Usava a mesma roupa que todos os reclusos da ala de segurança: calças de algodão macio e uma camisola de algodão com mangas compridas. Quando o visitante se deslocasse em torno da mesa veria uns olhos azuis aquosos por trás de umas lentes sem armação. Umas faces pálidas, ligeiramente encovadas, com barba de alguns dias. Um homem que parecia mais velho do que os seus cinquenta e cinco anos.

O homem que entrara estava de novo a mover-se. Edward tinha a certeza de que era um homem. Os passos e a ausência de qualquer tipo de perfume eram fortes indícios. Comprovou que tinha razão quando um homem pequeno, assaz banal, se sentou à sua frente.

– Boa noite. O meu nome é Thomas Haraldsson e sou o novo director daqui.

O olhar de Edward viajou lentamente desde a janela até ao homem que estava à sua frente, e ?tou-o nos olhos pela primeira vez.

– Edward Hinde. Prazer em conhecê-lo. Você é o meu terceiro.

– Desculpe?

– Director. Você é o meu terceiro.

– Claro...

A sala nua ?cou em silêncio. O único som era o ténue zumbido do sistema de ar condicionado. Nada que viesse do corredor, nada que viesse de fora. Edward manteve os olhos ?xos no novo director, convencido de que não teria de ser ele a quebrar o silêncio.

– Lembrei-me de passar por aqui para o cumprimentar – disse Haraldsson com um sorriso nervoso.

Hinde retribuiu com um sorriso bem-educado.

– Isso foi muito simpático da sua parte.

Silêncio de novo. Haraldsson remexeu-se na cadeira. Edward ?cou imóvel e observou o visitante. Nunca aparecia ninguém apenas para o cumprimentar. O homem que estava à sua frente queria algo. Hinde ainda não sabia o que era mas, se continuasse sentado e sem falar, em breve iria descobrir.

– Você é feliz aqui? – perguntou Haraldsson, num tom de voz que seria mais apropriado se Hinde tivesse acabado de sair de casa e de se mudar para o seu primeiro apartamento. Edward teve de reprimir uma risada. Olhou para o homem manifestamente inseguro que tinha à sua frente. O primeiro director era um sacana de trato difícil, que estava a dois anos da reforma quando Hinde chegou. Desde o início deixara perfeitamente claro a Edward que não tinha a mínima intenção de lhe aturar quaisquer disparates. Por disparates entendia tudo o que não fosse Hinde ir exactamente onde lhe dissessem para ir, falar quando lhe dessem autorização e abdicar de qualquer tentativa de pensar por si próprio. Hinde passara muito tempo na solitária. Mal vislumbrara o segundo director, que ali permanecera por doze anos. Tanto quanto se lembrava, nunca falaram. Mas este, este Thomas Haraldsson, talvez valesse bem a pena conhecê-lo melhor. Soltou um sorriso desarmante.

– Sim, obrigado. E você, como se está a dar?

– Bem, é só o meu terceiro dia, mas até agora...

Silêncio de novo. No entanto, como o homem nervoso que estava à sua frente parecia gostar de conversa ?ada, Edward desviou-se da sua estratégia de permitir que a outra pessoa conduzisse a conversa e sorriu mais uma vez para Haraldsson.

– Como se chama a sua esposa?

– O quê?

Edward acenou com a cabeça para a mão esquerda de Haraldsson, que estava cruzada sobre a direita em cima da mesa.

– A aliança. Reparei que é casado. Mas talvez seja um daqueles homens modernos que têm um parceiro do sexo masculino?

– Não, não, de todo que não. – Haraldsson acenou com as mãos num gesto defensivo. – Eu não sou... – Calou-se. O que levara Hinde a pensar naquilo? De onde viera aquilo? Haraldsson nunca ouvira alguém dizer que parecia gay. Nunca.

– Jenny, a minha esposa chama-se Jenny. Jenny Haraldsson.

Edward sorriu para si mesmo. Não havia melhor maneira de descobrir coisas acerca da esposa de alguém do que sugerir que a pessoa em questão podia não ser heterossexual.

– Filhos?

– O primeiro vem a caminho.

– Que bonito. Menino ou menina?

– Não sabemos.

– Portanto, vai ser uma surpresa.

– Sim.

– Nunca matei uma mulher grávida.

De repente, Haraldsson sentiu-se um pouco inseguro. Até àquele momento as coisas tinham corrido bem. Um contacto inicial, uma conversa sobre um ou outro assunto, fazer Hinde baixar a guarda antes de, a pouco e pouco, orientar a conversa para a Riksmord. Porém, o último comentário de Hinde deixara Haraldsson confuso e assustara-o um pouco. Hinde estava a dizer-lhe que não conseguia imaginar que fosse possível matar uma mulher grávida, que até para ele esse seria um passo demasiado extremo, ou que nunca tivera essa oportunidade? Haraldsson sentiu-se estremecer. Na verdade, não queria saber. Estava na altura de manobrar a situação na direcção que pretendia.

– A Riksmord quer falar consigo – disse-lhe, mantendo um tom de voz tão normal e descomprometido quanto possível.

Ei -lo.

O verdadeiro motivo daquela visita.

Pela primeira vez, Edward mostrou-se genuinamente interessado. Endireitou-se na cadeira com um olhar atento. Penetrante.

– Eles estão aqui?

– Não, mas virão dentro de um dia ou dois.

– O que querem eles?

– Não disseram. Tem alguma ideia?

Hinde ignorou a pergunta.

– Querem falar comigo.

– Sim. Porque acha que será?

– Quem vem?

– Chamam-se Vanja Lithner e Billy Rosén.

– E eles estão contentes por eu o saber?

Haraldsson foi apanhado de surpresa; hesitou, pensou no assunto. Talvez não... O seu plano era dizer que a Riksmord vinha a caminho na esperança de que Hinde lhe revelasse porque estavam interessados nele. Caso soubesse. Para que Haraldsson pudesse prestar algum auxílio à Riksmord. Uma vez polícia, era-se sempre polícia. Mas naquele momento ?cou com a sensação de que as coisas não estavam a correr de acordo com o plano. Ainda assim, não havia necessidade de a Riksmord ?car a saber disso.

– Na verdade, não sei ao certo – respondeu, mostrando-se sério. – Julguei que você tinha o direito de saber, mas talvez não precise de lhes referir esse facto quando aparecerem por cá. Quero dizer, não é necessário dizer-lhes que já sabia que viriam. Que eu lho disse. A?nal, você sabe bem do que os polícias são capazes. – Terminou com um grande sorriso, um sorriso de nós-contra-eles, como se ambos enfrentassem um inimigo comum.

Edward retribuiu-lhe o sorriso. Nos últimos minutos sorrira mais do que nos últimos catorze anos.

– Sim, eu sei muito bem aquilo de que os polícias são capazes. Não se preocupe, não lhes direi nada.

– Obrigado.

– Mas você deve-me um favor.

Haraldsson não conseguiu perceber se o homem algemado estava ou não a brincar. Continuava a sorrir, mas algo no seu olhar sugeria que falava muito a sério. Haraldsson estremeceu de novo, desta vez sem o conseguir disfarçar, e pôs-se em pé.

– Tenho de ir... Prazer em conhecê-lo.

– Igualmente.

Haraldsson caminhou até a porta e bateu. Olhou de novo para Hinde, que mais uma vez estava a olhar para a janela. Após alguns segundos alguém abriu a porta pelo lado de fora, e Haraldsson saiu daquela sala de visitas impessoal com a sensação de que Hinde ganhara mais do que ele com a conversa. Talvez não fosse bom. Contudo, também não era um desastre, tentou persuadir-se. A Riksmord nunca ?caria a saber que eles falaram.

Ia sair dali, comprar um gelado e alugar um DVD.

Hinde não seria um problema.


PRIMEIRO TROLLE RECUSOU-SE a abrir a porta. Sebastian conseguiu ouvi-lo a andar no interior do apartamento, mas teve de tocar à campainha durante mais de cinco minutos até que, ?nalmente, o seu antigo colega entreabriu uma nesga da porta. Um olho raiado de sangue espreitou pela estreita fresta. Por detrás do rosto o apartamento estava às escuras e era difícil divisar quaisquer pormenores. Trolle sentiu um cheiro abafado, a pó, misturado com o do lixo acumulado, que se propagou pelas escadas do prédio.

– O que queres?

– Estavas a dormir?

– Não. O que queres?

– Quero falar contigo.

– Estou ocupado.

Trolle deu a entender que pretendia fechar a porta, mas Sebastian conseguiu inserir a biqueira do sapato na brecha mesmo a tempo. Ocorreu-lhe que nunca ?zera tal coisa, tentar impedir que uma porta se fechasse usando o pé. Vira isso nos ?lmes centenas de vezes mas nunca o ?zera. Bem, havia sempre uma primeira vez para tudo.

– Tu vais gostar do que tenho para dizer. – Sebastian calou-se por instantes e depois decidiu adoçar um pouco mais o engodo. – Tenho dinheiro.

A fresta abriu-se um pouco mais e a luz das escadas iluminou o rosto de Trolle. Na realidade, ele tinha envelhecido. Devia ter pouco menos de sessenta anos mas parecia dez anos mais velho. O cabelo estava despenteado e salpicado de grisalho, tinha a barba por fazer, estava magro e exalava um cheiro acre a tabaco e álcool. Trolle sempre bebera, mesmo quando estava a trabalhar, e quinze anos depois, sem emprego nem família, o álcool parecia ser a sua única companhia. Vestia uma camisola branca amarfanhada e uns boxers. Estava descalço e tinha as unhas dos pés amarelas, retorcidas e muito compridas. Não havia simplesmente envelhecido. Caíra em declínio.

– Eu não quero saber do dinheiro.

– Talvez não, mas também não faz mal ter algum.

– Então, quanto é que tens?

Sebastian sacou da carteira e mostrou a Trolle todo o dinheiro que tinha: algumas notas de cem coroas e uma de vinte.

– Eu não faço isto pelo dinheiro – declarou Trolle assim que agarrou nas notas.

– Eu sei. – Sebastian acenou.

A menos que Trolle se tivesse transformado completamente durante os últimos anos, isso era verdade. Ele não fazia nada pelo dinheiro. É certo que nunca recusara dinheiro extra recebido por baixo da mesa, nem sequer quando estava na polícia, mas a remuneração nunca o motivara.

Era o prazer de interferir na vida das pessoas.

De lhes arruinar as coisas.

De planear, aguardar, recolher informações, dirigir o curso da acção e depois, ?nalmente, transformar as suas vidas num inferno.

Era esta a verdadeira motivação de Trolle. O dinheiro não passava de um bónus.

– Posso entrar? – perguntou Sebastian, guardando a carteira.

– Então mudaste de ideias? – gargalhou Trolle. O seu riso ecoou nas escadas, mas mesmo assim não abriu a porta. Pelo contrário, encostou o rosto à fresta de modo a ocupar todo o espaço. – A?nal tu precisas do velho Trolle...

Sebastian anuiu e inclinou-se para a frente de maneira a que pudessem conversar com um pouco mais de discrição.

– Sim, mas não quero falar disso aqui.

– Não costumavas ser tímido. Podes ?car exactamente onde estás. – Trolle lançou-lhe um sorriso grande e lupino, quase desa?ador.

Sebastian contemplou-o com um ar cansado. Trolle sempre fora difícil, mas os anos e o álcool pareciam tê-lo tornado ainda pior. Por um breve e aterrorizante segundo, Sebastian viu-se a si mesmo ali em pé, à entrada da porta. Se tivesse continuado a beber. Se tivesse optado pelas drogas que lhe entorpeciam o espírito, aquelas que experimentara no ano a seguir ao tsunami. Se não tivesse Stefan. Se não tivesse encontrado Vanja. De repente, tudo se tornou muito mais importante. Estava apenas a uma distância de quatro «ses» de ser como Trolle Hermansson. Um homem que já não tinha nada a perder.

– Quero que vás até ao ?m. Que descubras tudo o que puderes. Acerca de toda a família, incluindo a mãe. Ela chama-se Anna Eriksson...

– Eu sei o nome dela – interrompeu Trolle. Respirou fundo de um modo algo ruidoso e passou a mão pela barba do queixo enquanto parecia re?ectir acerca da proposta de Sebastian. – Está bem. Mas nesse caso tens de me dizer porquê.

– Porquê o quê? – Sebastian suspeitou que sabia a resposta, mas esperava estar enganado.

– O que tem esta família de tão especial? Porque andas a seguir a ?lha? Ela é nova de mais, não é – mesmo para ti?

– Tu não irias acreditar em mim.

– Experimenta.

– Não!

Trolle enfrentou o olhar determinado de Sebastian e percebeu que o assunto não era negociável. Ora, com um pouco de sorte viria a descobrir tudo ao longo da investigação.

– Eu costumava gostar de ti, Sebastian. Provavelmente era o único. Quando me telefonaste disse-te que sim porque costumava gostar de ti. – Trolle ?xou os olhos raiados de sangue em Sebastian, com um olhar que podia ser interpretado como de dor, implorante. – Os amigos contam coisas uns aos outros.

– Tu não me disseste que sim por ser eu. Disseste-me que sim porque achaste que talvez pudesses foder a vida a alguém. Porque te dá gozo fazê-lo. Eu conheço-te, Trolle, por isso nem sequer tentes. Vais fazer isto ou não?

Trolle riu alto, desta vez com mais naturalidade.

– Tu não gostas de mim. Estás aqui porque não tens mais ninguém.

– O mesmo se aplica a ti.

Os dois homens entreolharam-se em silêncio. Depois Trolle estendeu a mão a Sebastian, que lha apertou após um momento de hesitação. Estava húmida. Fria. Mas o aperto foi ?rme. Forte.

– Apesar de não o fazer pelo dinheiro, não trabalho de graça.

– Quanto queres?

– Mil. Posso fazer-te um desconto porque és um falhado.

Dito isto, Trolle fechou a porta com estrondo. A sua voz veio do interior do apartamento:

– Telefona-me daqui a uns dias.

Sebastian virou-se para trás e desceu vagarosamente os dois lanços de escadas.


ANNETTE WILLÉN ADORAVA aqueles serões. Começava a preparar-se mentalmente logo a partir das três horas. Era sempre a mesma rotina. Primeiro um duche quente demorado; lavava o cabelo e esfregava o corpo com aquele sabonete exfoliante com aroma de alperce que tinha comprado na The Body Shop. A seguir deixava-se secar naturalmente durante algum tempo no calor da casa de banho e depois aplicava a loção corporal na pele um pouco húmida. Lera algures que deste modo a humidade ?cava retida e se obtinha um efeito amaciador mais profundo. Depois vestia o roupão e passeava descalça pela divisão que lhe servia de sala de estar e de quarto de dormir. Podia ter-se mudado para o único quarto de dormir que existia no apartamento, mas era do seu ?lho e, embora ele já tivesse saído de casa, não queria ocupá-lo. Aquele quarto era a sua última esperança de que um dia ele voltaria.

Que precisasse novamente do quarto.

Que precisasse novamente dela.

Retirar as coisas dele do quarto tornaria a sua partida demasiado de?nitiva e real.

Annette abriu o guarda-fatos e começou a retirar com cuidado blusas, saias, vestidos e calças. Certa vez até tirara o fato que comprara para aquela entrevista a que não comparecera. Mas esse dava nas vistas como um conviva excessivamente vistoso e muito pouco con?ante, e após uma breve aparição, há já muito tempo, ?cava sempre ali pendurado. Dispunha as várias peças de roupa em cima da cama e, quando já não havia mais espaço, usava o sofá de três lugares ou a mesa de café. A seguir posicionava-se no meio da sala e absorvia as diferentes cores, estilos e tecidos espalhados em seu redor. Assumia o controlo. Podia ser insigni?cante lá fora, para lá dos limites do apartamento, mas naquele local e naquele momento era ela quem mandava. O que expunha diante de si era a sua vida, a vida que não tardaria a saborear com avidez, a experimentar.

Quando se sentia pronta ia até ao corredor, pegava no espelho, levava-o para a sala de estar e encostava-o contra a parede. Dava alguns passos para trás e contemplava-se enquanto ?cava ali, saída do banho, vestida com aquele roupão cor-de-rosa, um pouco curto de mais, que o ?lho lhe oferecera aquando do seu quadragésimo aniversário. Sempre que o fazia ?cava impressionada ao veri?car como havia envelhecido. Não era só o seu cabelo que se tornara mais ?no e baço, era toda ela. Há muito tempo que desistira de se colocar nua à frente do espelho. Era demasiado deprimente observar em primeira mão como as depredações do tempo se haviam tornado tão óbvias. Ela não sentia vergonha do seu corpo. Sempre fora curvilínea e nunca tivera qualquer problema com o peso. Não, continuava a manter um ar delicado; tinha boas pernas e os seus seios ainda estavam ?rmes e arredondados, mas havia algo na maneira como a sua pele ia ?cando mais pálida e menos elástica a cada ano que passava. Como se estivesse a encolher lentamente, qual pêssego deixado ao sol durante muito tempo, não obstante a quantidade de produtos exfoliantes, antienvelhecimento e anti-rugas que usasse. Isso assustava-a, em particular por saber que o tempo ainda mal começara a sua jornada com ela. Ainda lhe restava muito para fazer, e um dia postar-se-ia ali sem conseguir reconhecer-se. Precisamente quando estava prestes a começar a viver.

Como devia ser. A sério.

Começou a experimentar a roupa para afastar os pensamentos. Quem queria ser nesse dia?

Podia ser a garota despreocupada com jeans e uma blusa demasiado grande, ou a ?gura artística com aquele curto vestido preto que tinha uma renda um pouco atrevida. Annette adorava ser essa garota, em particular quando sentia coragem para usar o batom mais escuro. Achou que a mulher de preto seria fantástica se tivesse coragem para pintar o cabelo de preto, mas não podia fazê-lo. E aquela roupa exigia isso. Portanto foi posta de parte, como era costume, para ser substituída pela blusa branca, mais serena, e a saia escura, como uma mulher de negócios. Essa também era uma mulher com quem Annette se sentia confortável. Intemporal de uma maneira que ela desejava alcançar. Mas também lhe exigia demasiado. Demasiado cabelo. Uma ?gura melhor. Melhor postura. Melhor tudo. Talvez dali a uns tempos. Em breve. Despia a roupa e continuava. Annette adorava encontrar-se com as diferentes identidades que a aguardavam dentro dos recessos sombrios do guarda-fatos. Mulheres que davam um passo em frente no espelho. Novas mulheres, melhores mulheres, mulheres entusiasmantes. Nunca Annette. Sempre outra pessoa. O problema era esse. Por mais que adorasse encontrar-se com aquelas mulheres que surgiam à sua frente, nunca se atrevia a permitir que elas saíssem para fora do espelho. A certeza e o jogo eram gradualmente substituídos pelo medo e pelas dúvidas. As suas escolhas iam-se tornando mais limitadas, mais receosas. Aquela rotina ocupava-lhe metade do dia e, como de costume, ia passando dos trajes vistosos e coloridos à minimização de si própria e da sua roupa.

Por ?m, acabava por se deparar com as três opções que lhe restavam sempre.

A blusa preta. A blusa branca. Ou a camisola com gola.

Sempre com jeans.


STEFAN SABIA EXACTAMENTE onde devia procurar Sebastian. Uma vez que o exterior da sede da polícia ou do apartamento de Vanja eram os dois locais constantemente recorrentes nas suas discussões, decidiu começar por aí. Já passava das oito horas, pelo que a sede da polícia lhe pareceu menos provável. Um rápido telefonema para o serviço de assinantes informou-o que Vanja Lithner morava no número 44 da Sandhamnsgatan, e Stefan guiou-se pelo GPS do seu automóvel para chegar até lá. Estava a correr contra o tempo. A sessão de grupo devia começar às nove, e naquele momento estava realmente a agir contra os seus próprios princípios. Supostamente, tudo aquilo baseava-se no livre-arbítrio. A pessoa em causa devia optar por participar. Isso era importante. Porém, Sebastian era diferente. Para ele era como se o conhecimento fosse um entrave. Como se deliberadamente tomasse as decisões erradas. Stefan já deparara com este tipo de pacientes. Em geral fora obrigado a desistir. A abandoná-los. Contudo, de certa forma Sebastian era seu amigo. Por mais complexo que o seu relacionamento pudesse ser. E se Stefan o abandonasse, quem mais tentaria apanhar Sebastian quando ele estava em queda livre?

Stefan estacionou o carro perto do número 44 e prosseguiu a pé. Contemplou aquela zona residencial agradável. Os edifícios estavam dispostos em ?leiras, não muito próximos uns dos outros, mas com a devida deferência à paisagem que tinham à porta. Diante da entrada do número 44 um gradeamento alojava várias bicicletas, de adultos e crianças. Stefan parou e olhou em redor, tentando descobrir qual o melhor local para se posicionar se quisesse espiar um apartamento situado alguns pisos mais acima sem que ninguém o visse. O mais longe da estrada e o mais bem escondido possível, decidiu. Atrás do prédio avistou um outeiro coberto de árvores caducas. Os arbustos folhosos forneciam uma boa cobertura, e a con?rmação de que ?zera a opção certa tornou-se evidente quando Sebastian Bergman espreitou de súbito por trás da maior árvore com uma expressão horrorizada no rosto.

– Foda-se, mas o que estás a fazer aqui? – vociferou.

Stefan quase desatou a rir quando viu o homem a olhar para ele por entre as árvores, com um ar verdadeiramente furioso. Parecia um adolescente que acabou de ser apanhado a fumar um cigarro às escondidas.

– Queria ver-te no ambiente do teu novo lar.

– Muito engraçado. Desaparece daqui antes que alguém te veja.

Stefan abanou a cabeça e ?cou ainda mais visível quando se foi plantar a curta distância de Sebastian, no meio do relvado.

– Só se vieres comigo. A tua terapia de grupo começa daqui a meia hora.

Sebastian ?tou-o com uma expressão lívida.

– Tu não devias obedecer a certas regras e regulamentos? O que aconteceu ao facto de as pessoas fazerem as coisas voluntariamente?

– Isso não se aplica aos homens de meia-idade que andam a espreitar por trás das árvores para espiarem as mulheres novas que dizem ser suas ?lhas. Vens?

Sebastian abanou a cabeça. Por dentro, estava gelado. O seu mundo começava a parecer-lhe cada vez mais frágil. Sentia-se despido e envergonhado, e nada lhe teria agradado mais do que passar à ofensiva. Ao mesmo tempo, havia algo naquele homem postado diante de si que, de repente, permitira que Sebastian se visse através dos olhos de outrem e, por mais que manipulasse a verdade, a resposta era sempre a mesma.

Tinha ido falar com Trolle.

Tinha vindo até àquele local.

Estava perdido.

– Por favor, Stefan. Vai-te embora. Deixa-me em paz.

Stefan penetrou no pequeno mundo cheio de folhas em que Sebastian se escondera e pegou-lhe na mão.

– Eu não estou aqui para te enervar. Não estou aqui para que te sintas mal. Estou aqui para o teu bem. Se realmente quiseres que vá, eu vou. Mas no fundo sabes que tenho razão. Tens de parar com isto.

Sebastian olhou para o seu terapeuta e retirou calmamente a mão.

– Não me vou juntar a um grupo. Ainda me resta algum orgulho.

– A sério? – Stefan olhou para ele com um ar sério. – Olha à tua volta, Sebastian. Vê onde estamos.

Sebastian não respondeu.

Nem mesmo ele era capaz de encontrar uma maneira de se livrar daquela situação.


– QUERO DIZER, na semana passada disse que ia tentar arrumar a garagem para poder meter o carro lá dentro. Que ia deitar fora um monte de coisas. Vocês acham que o ?z? – O homem sentado em frente de Sebastian, a quem os outros chamavam Stig, estava a falar há mais de dez minutos. No entanto, parecia longe de terminar. Falava sem parar, como se o seu corpo enorme contivesse uma quantidade in?nita de palavras.

– Não tenho energia. Não consigo fazer nada. Lavar a louça depois da refeição ou despejar o lixo já é uma grande façanha. E quando uma pessoa ?ca neste estado vocês sabem como é. Não se chega a lado nenhum. A lado nenhum...

Sebastian assentiu. Não porque concordasse – havia rejeitado aquele homem como desinteressante e deixara de o ouvir ao ?m de trinta segundos – mas porque, algures no fundo do seu espírito, pensou que se ?zesse um gesto de assentimento com a cabeça talvez aquele monte de banha percebesse que já explicara as suas razões e não precisava de apresentar mais exemplos para provar àquele grupo a sua total falta de iniciativa. Àquele conjunto heterogéneo de indivíduos problemáticos que, segundo Stefan, podia conseguir salvá-lo. Quatro mulheres e dois homens, sem contar com Stefan e ele próprio. Stig respirou fundo, e estava prestes a continuar a sua enfadonha diatribe quando Stefan interveio. Sebastian sentiu uma enorme gratidão, embora continuasse irritado com ele.

– Mas tu foste diagnosticado com depressão ligeira, Stig. Já foste ao médico tratar da tua medicação?

Stig abanou a cabeça e, por instantes, pareceu que ia deixar o assunto por ali. Mas depois respirou fundo de novo, daquela maneira que Sebastian já aprendera a detestar ao ?m de uns meros quinze minutos.

A respiração transformava-se num som.

O som transformava-se em palavras.

Demasiadas palavras.

– O que se passa é que não quero tomar uma carrada de comprimidos. Uma vez experimentei e tive uma destas reacções...

Sebastian calou a tagarelice de Stig com um bocejo. Como podiam as outras pessoas, sentadas em silêncio ao seu redor, suportar aquilo? Será que partilhavam a frustração de Sebastian ou estavam apenas à espera da sua oportunidade para respirarem fundo e, em seguida, falarem durante demasiado tempo acerca das suas vidas desinteressantes? De certeza que não podiam preocupar-se a sério com os problemas banais de cada um. Sebastian tentou lançar a Stefan um olhar irritado, implorante, mas Stefan parecia compenetrado a ouvir Stig. O que o salvou foi a mulher magra, quase invisível, que estava à sua frente, vestida com uma blusa branca e uns jeans. Inclinou-se para a frente e, quase com um sussurro, interrompeu o monótono zumbido de Stig.

– Mas se te ajuda a começares a fazer coisas, então talvez devas experimentar a medicação. Obter ajuda desta forma não é vergonha nenhuma.

O resto do grupo anuiu e fez ruídos de concordância; Sebastian não conseguiu perceber se foi porque estavam satisfeitos por outra pessoa ter surgido na ribalta, ou se realmente concordaram com o que ela disse. Sebastian olhou para ela. Tinha provavelmente quarenta anos, era magra, cabelo escuro e ?no e maquilhagem discreta. Vestida de um modo simples, remexia constantemente, com nervosismo, num colar que lhe ?cava demasiado grande. Ela olhou para os outros antes de continuar. Sebastian teve a sensação de que queria ser vista mas não era su?cientemente corajosa para dar um passo em frente. Oprimida demasiadas vezes? Habituada a ser silenciada? Brindou-a com um sorriso encorajador, tentando captar-lhe a atenção, mas de repente ela olhava para todo o lado menos para ele.

– Eu reconheço-me na tua situação – disse ela. – Sentes que tudo se vai acumulando e que não consegues fazer nada.

Sebastian continuou a sorrir para ela, percebendo de súbito que nessa noite podia conseguir mais do que pensara.

– Exactamente, Annette – concordou Stefan. – Quando se está num impasse é preciso arranjar coragem para tentar algo novo. Foi de certeza isso que ?zeste.

Annette assentiu e continuou a falar. Sebastian reparou que o elogio a fez sentir-se con?ante e a atrever-se a ocupar mais espaço, a partilhar as suas experiências. Ela e Stefan conheciam-se bem, pensou Sebastian enquanto a ouvia. Era persistente. Uma paciente que andara em terapia durante tanto tempo que já começava a parecer o terapeuta. Os acenos encorajadores de Stefan con?rmaram a sua teoria. A pequena e invisível Annette consultava Stefan há muito tempo. Sebastian sorriu para si mesmo. Stefan preocupava-se com os seus pacientes. Também ele experimentara a fraqueza de Stefan algumas horas antes, quando o fora procurar debaixo de uma árvore perto do número 44 da Sandhamnsgatan.

Mas ele preocupava-se um pouco de mais para ser um verdadeiro pro?ssional.

Um pouco de mais para ser realmente e?caz.

A invisível Annette era decerto uma das pacientes com quem ele se preocupava. Sebastian via-o pela interacção entre ambos. Sorriu de novo para a mulher de cabelos escuros. Perfeito. Sabia exactamente como devia mostrar a Stefan que não era possível colocar Sebastian Bergman numa terapia de grupo e ?car impune.

 

O grupo estava sentado em círculo há setenta e cinco minutos quando, por ?m, chegou o momento do café obrigatório antes de se irem embora. Stefan resumira o serão com alguns chavões bem escolhidos acerca de como deviam estar disponíveis uns para os outros e dos efeitos bené?cos da interacção social, tentando transmitir a Sebastian, com um olhar sugestivo, que não contribuíra de modo algum. Sebastian respondera-lhe com um bocejo. Quando se levantaram, dirigiu-se rapidamente para junto da mesa do café e da mulher. Stefan ?cou enredado numa discussão com Stig e um homem mais novo, que insistia em referir-se ao álcool como «pinga» e à sua esposa como «a patroa» ou «aquela a quem se tem de obedecer». Uma companhia perfeita para Stefan, pensou Sebastian enquanto olhava para Annette; ela passara ao lado da mesa do café sem se servir e parecia prestes a ir-se embora. Sebastian correu atrás dela.

Annette encaminhava-se para a saída, sem saber se devia ou não ?car a tomar café. Normalmente fazia-o; costumava pensar que era o ?nal perfeito para o serão. Ela era quem frequentava as reuniões há mais tempo. Ela era importante. Certa vez Stefan chamara-lhe uma verdadeira pro?ssional em matéria de terapia de grupo e, embora essas palavras tivessem sido ditas em tom de brincadeira, não as esqueceu durante várias semanas.

Uma verdadeira pro?ssional. A Annette.

Nunca ninguém lhe dissera nada semelhante. Aquele era o seu lugar, sabia disso. Quando estava sentada naquele círculo tinha coragem su?ciente para avançar, mostrar-se, desempenhar o seu papel, e durante o café que se seguia adorava escutar os comentários dos outros participantes e fazer uma apreciação positiva a respeito dos seus contributos na sessão. Mas nessa noite fora diferente. Por causa do homem novo, aquele que ?cara sentado à sua frente. O modo como a olhava. Era como se visse através dela; não conseguia descrever aquilo de outra maneira. Quando começava a falar ele ouvia-a, olhava realmente para ela. Não com um ar condescendente; era mais como uma experiência erótica, como se estivesse a despi-la, embora a um nível intelectual e não sexual. Não conseguia explicar aquela sensação por palavras. Nunca havia experimentado nada semelhante.

Ele conseguia vê-la. Correctamente.

Isso era ao mesmo tempo emocionante e assustador, e quando Stefan dera a sessão por encerrada Annette decidira ir logo para casa. Mas sabia que não se dirigia para a saída com a rapidez necessária. Na sua visão periférica, conseguiu perceber que o homem vinha na sua direcção. Con?ante. Decidido. Percebeu que a queria conhecer. Tinha de estar preparada. Iria arrepender-se se, pelo menos, não tentasse dizer algumas palavras. Ele não falara durante toda a noite. Mas agora estava a falar.

– Não vai ?car para o café?

Ela gostou da sua voz.

– Não sei. Eu... – Annette pensou rapidamente. Não queria parecer desdenhosa, mas também não pretendia mostrar-se fraca e indecisa. Na realidade queria ?car ali a tomar um café, mas como poderia dizer-lho? Já estava praticamente do lado de fora da porta quando ele a fez parar.

– Vá lá, com certeza tem tempo para uma chávena de café e um destes bolos lindamente embrulhados em plástico?

Ele salvou-a. Apercebeu-se de que ela se ia embora. Convenceu-a a ?car. Seria quase má educação dizer-lhe que não. Sorriu-lhe, agradecida.

– Bom, sim, acho que sim.

Caminharam para junto da mesa do café.

– Sebastian Bergman – disse-lhe o homem que ia ao seu lado, estendendo-lhe a mão.

Apertou-lha, de um modo desajeitado, pensou, mas a mão dele estava quente e, como se fosse possível, o sorriso ainda mais quente.

– Annette Willén. Prazer em conhecê-lo. – Teve a sensação de que toda a sua falta de jeito desapareceu quando ele lhe segurou a mão durante algum tempo. Fitou-a e ela sentiu algo além de ser simplesmente contemplada por outra pessoa. Muito mais. Via-a como a mulher que realmente queria ser.

– Você não falou muito esta noite – disse, enquanto ele lhe servia um café.

– Cheguei a dizer alguma coisa? – respondeu ele, sempre a sorrir.

Annette abanou a cabeça.

– Creio que não.

– Sou melhor a ouvir.

– Isso é raro. Vir aqui para ouvir, quero dizer. A maioria das pessoas quer falar acerca de si – disse Annette afastando-se da mesa do café. Não queria ser incomodada pelos outros.

Sebastian acompanhou -a.

– Há quanto tempo faz parte do grupo?

Annette pensou se devia dizer-lhe a verdade: que já nem sequer se lembrava. Não, isso iria parecer patético. Fraco. Ele ?caria com uma ideia errada a seu respeito. Formularia rapidamente o seu juízo. Decidiu mentir-lhe.

– Há cerca de seis meses. Divorciei-me, perdi o emprego e depois o meu ?lho apaixonou-se e foi viver para o Canadá. Acabei por cair numa espécie de... vácuo.

Demasiadas coisas cedo de mais. Ele não lhe perguntara porque estava ali, apenas há quanto tempo frequentava as sessões. Annette encolheu os ombros como se quisesse minimizar os seus problemas.

– Eu precisava de falar. Mas estou em vias de reduzir a minha comparência – disse ela rapidamente. – Uma pessoa tem de seguir em frente, não é? – Sorriu para ele.

Por instantes Sebastian olhou para Stefan, que continuava embrenhado na conversa com os dois homens. De repente, Annette teve a sensação de que Sebastian já estava farto dela, de que procurava um motivo para lhe pedir desculpa e se ir embora, que o encontro deles iria acabar em breve. Começou a respirar com mais di?culdade. Uma ligeira sensação de pânico, o pânico que provinha do seu receio mais profundo: o de que, independentemente do que ?zesse, por mais que se esforçasse, estava condenada a ?car sozinha para sempre. No entanto, ele virou-se de novo para ela exibindo um sorriso encantador.

– Então e você, porque está aqui? – prosseguiu ela, num tom de voz que lhe pareceu muito natural e nada forçado.

– O Stefan achou que eu podia tirar algum proveito disto.

– O que o levou a pensar isso? O que lhe aconteceu?

Sebastian olhou em redor antes de responder.

– Acho que ainda não chegámos a esse ponto. No nosso relacionamento.

– Não?

– Não. Mas talvez possamos lá chegar.

A franqueza da resposta dele surpreendeu-a.

– Você quer dizer aqui, no grupo?

– Não, quero dizer noutro lugar, só os dois.

A autocon?ança dele fascinava-a. Não conseguiu suprimir um sorriso quando o ?tou nos olhos com valentia.

– Você está a atirar-se a mim?

– Talvez um pouco. Isso incomoda-a?

– A maioria das pessoas não vem aqui para conhecer alguém.

– Ainda bem, isso signi?ca que há menos concorrência – respondeu ele, dando um pequeno mas decisivo passo na sua direcção. Ela sentiu-lhe o cheiro da loção de barbear. Ele baixou a voz. – Mas posso ir-me embora se acha que estou a ultrapassar os limites da respeitabilidade.

Annette assumiu o risco. Tocou-lhe no ombro e apercebeu-se de que não tocava noutra pessoa há muito tempo.

– Não é preciso. Só para que saiba, eu também sou boa ouvinte.

– Não duvido. Mas não estou interessado em falar.

Desta vez ela não desviou o olhar. O atrevimento dele dava-lhe coragem.

Sebastian acenou para Stefan quando saiu com Annette.

Fora demasiado fácil.

Mas ele iria levar a melhor.

 

Começaram a beijar-se ao ?m de apenas alguns minutos dentro do táxi. Os beijos de Annette eram hesitantes. Recusava-se a jogos de língua. Sabia que não era boa a beijar. E não conseguia decidir-se a acreditar que aquele homem que lhe afagava a nuca a queria de verdade. Talvez ele parasse de súbito e a olhasse, não com calor e desejo, mas com frieza e desprezo. Sorriria de novo para ela, mas desta vez de uma maneira desagradável. Perguntar-lhe-ia o que ela pensava que lhe poderia dar e a sua resposta seria óbvia: nada. Se não se entusiasmasse, podia convencer-se de que para ela aquilo também não tinha qualquer importância. Não lhe custaria tanto quando ele a deixasse. Isso já havia resultado.

Sebastian sentiu Annette ?car hirta quando lhe percorreu o corpo com a mão. Mas ela não o repeliu. Uma neurótica sexual, pensou com enfado, ponderando se devia pedir-lhe desculpa e sair do táxi. Mas havia algo de tentador em Annette. A sua vulnerabilidade excitava-o; fazia-o esquecer-se da sua própria fraqueza e alimentava-lhe o ego. Na verdade, não se importava que ela fosse incapaz de se descontrair e de se divertir. Não estava ali por causa dela. Era uma distracção.

Um ?nal aceitável para um dia de merda.

Parte de uma estratégia de vingança.

Beijou-a de novo.

 

O apartamento de Annette ?cava em Liljeholmen, a cinco minutos do centro comercial recentemente construído que tinha vista para a Essingeleden.[11] Quando lá chegaram ela parecia mais descontraída. A sala estava completamente desarrumada, com roupa espalhada por toda a parte. Annette pediu-lhe desculpa; arrumou a cama à pressa e saiu da sala a correr, com os braços cheios de roupa.

– Não é preciso fazeres arrumações por minha causa – disse Sebastian, sentando-se na cama e descalçando os sapatos.

– Não estava à espera de companhia – ouviu-a dizer.

Olhou em redor. Uma sala de estar perfeitamente vulgar mas com pormenores que lhe diziam algo acerca da moradora. Antes de mais, uma cama de solteiro razoavelmente grande encostada à parede por baixo da janela. Quando entrara no apartamento, Sebastian reparara que havia outro quarto. Porque não dormia lá? Dissera-lhe que morava sozinha e só havia um nome na caixa do correio.

Além disso, havia uma colecção de bichos de pelúcia nas prateleiras. Animais de todos os tamanhos e cores. Ursinhos, tigres, gol?nhos, gatos. Bichos e um excesso de almofadas, cobertores fofos e xailes. A sala denotava uma ânsia de segurança, o desejo de um casulo aconchegante, amável e protector que impedisse a fria e dura realidade de ali entrar. Sebastian olhou-se no espelho que estava encostado à parede. Ela convidara a tal fria e dura realidade a entrar na sua vida. Contudo, ainda não o sabia.

Sebastian pensou no que teria acontecido na vida dela para lhe provocar tão pouca auto-estima e aquela exagerada ânsia de segurança. Um trauma, um mau relacionamento, uma opção de vida errada ou haveria algo pior, um ataque ou um relacionamento abusivo com um dos pais? Não sabia nem tinha energia para averiguar. Queria sexo e dormir durante algumas horas.

– Não te importas que mude o espelho? – perguntou-lhe, pegando nele. A ideia de se ver a si próprio a fazer sexo com ela naquela sala quase o assustara. Preferia que se en?assem debaixo dos cobertores e apagassem a luz antes de fazerem algo.

– Põe-no no corredor – disse ela a partir daquilo que suspeitou ser a casa de banho. – Costumo levá-lo para a sala quando estou a experimentar roupa.

Sebastian levou-o dali para fora e não tardou a encontrar o gancho em que normalmente ?cava pendurado.

– Gostas de roupa?

Sebastian virou-se quando ouviu a sua voz. Estava diferente. Envergava um sedutor vestido de renda preta e pusera um batom escuro. Parecia uma mulher diferente. Uma mulher que dava nas vistas.

– Eu adoro roupa – prosseguiu ela.

Sebastian fez um aceno de concordância.

– Esse vestido ?ca-te bem. Muito bem. – Estava a ser sincero.

– Achas? É o meu preferido. – Deu um passo em frente e beijou-o. Com a língua. Sebastian retribuiu o beijo, mas agora era ela quem estava a seduzi-lo. Deixou-se levar. Ela despiu-o de tudo o que quis. Tentou despir-lhe o vestido para poder sentir o seu corpo contra o dele, mas ela quis mantê-lo. Ficou com a sensação de que para ela era importante fazer amor com aquele vestido.


URSULA CHEGARA às últimas páginas da sua terceira leitura do relatório preliminar da autópsia a Katharina Granlund quando bateram à porta e Robert Abrahamsson en?ou a cabeça bem penteada pela abertura. Era o líder da equipa de vigilância para quem ela tinha menos vagar.

– Já é tempo de serem vocês a resolver as vossas merdas, seus cabrões.

Ursula ergueu os olhos com uma expressão interrogadora.

– Os jornais começaram a telefonar-me – prosseguiu Abrahamsson. – Dizem que vocês nem sequer lhes atendem o telefone aqui em cima.

Ursula olhou de lado para Abrahamsson: tinha um bronzeado um pouco perfeito de mais e o casaco um pouco justo de mais. Odiava ser interrompida, sobretudo por um pavão presunçoso como Abrahamsson. Mesmo que houvesse uma justi?cação. Respondeu-lhe o mais secamente que conseguiu.

– Fala com o Torkel. É ele quem lida com a imprensa. Já sabes isso.

– Então onde é que ele está?

– Não faço ideia.

Ursula regressou ao relatório mas Abrahamsson, em vez de sair, avançou decididamente na sua direcção.

– Tenho a certeza de que tens muito para fazer, Ursula, mas quando eles começam a telefonar para mim devido aos vossos casos, isso signi?ca uma de duas coisas: ou vocês não comunicam o su?ciente com eles, ou eles encontraram algum aspecto que pretendem explorar. Neste caso, suspeito que sejam as duas coisas.

Ursula soltou um suspiro de enfado. Ela era o elemento da equipa que ignorava sempre aquilo que os jornais escreviam; queria reduzir ao mínimo toda a informação que pudesse in?uenciar a sua capacidade de interpretar racionalmente as provas. E, no entanto, compreendia que isso não era bom. A Riksmord estava muito interessada em evitar que os homicídios das três mulheres fossem relacionados e conduzissem aos inevitáveis títulos Assassino -em -Série -à -Solta -em -Estocolmo. Minimizar as possibilidades de especulação jornalística era um dos pilares estratégicos de Torkel. Quando a imprensa começava a procurar desesperadamente histórias sensacionais, tudo podia acontecer. Em particular dentro do próprio serviço policial. De repente tudo era político, e a política podia ser catastró?ca para uma investigação. Era então que se tornava necessária uma acção «decisiva» a ?m de «apresentar resultados», o que poderia levar a que os agentes pensassem menos na quantidade de provas e mais na maneira de agradarem aos seus superiores.

– Quem foi? – perguntou ela. – Se me deres os números deles garanto que o Torkel lhes telefona.

– Foi apenas um. Até agora. O Axel Weber, do Expressen.

Ursula apontou o nome e recostou-se para trás na cadeira com um sorriso demasiado feliz no rosto.

– O Weber! Então, provavelmente há uma terceira razão para que ele tenha escolhido telefonar-te, não achas?

Robert ?cou vermelho. Apontou ameaçadoramente o dedo indicador para Ursula, um gesto que o fazia parecer-se com um mestre-escola de um ?lme da década de 1950.

– Aquilo foi um mal-entendido, como muito bem sabes. O comissário aceitou a minha explicação.

– Nesse caso, foi o único. – Ursula inclinou-se de novo para a frente, subitamente séria. – Tu transmitiste informações con?denciais ao Weber. Numa investigação de homicídio.

Robert olhou para ela com um ar desa?ador.

– Pensa o que quiseres. Estamos no século XXI e temos de aprender a trabalhar com a imprensa. Em particular quando os casos são complexos.

– Especialmente se a tua fotografia aparecer na página sete com um artigo que te faz parecer uma espécie de herói em recompensa pelos teus serviços. – Ursula calou-se; percebeu que estava quase a ser mesquinha e ordinária, mas não conseguia evitá-lo. – Reconheço o mesmo casaco, mas naquela altura devias estar mais magro. Hoje em dia tens de pensar no que en?as na tua boca. Já sabes que a câmara acrescenta cinco quilos.

Robert desabotoou o casaco, mas ela viu que os seus olhos se ensombravam com raiva. Parecia que estava a preparar-se para um contra-ataque, mas conseguiu reprimir a indignação e encaminhou-se para a porta.

– Achei apenas que vocês deviam saber.

Ursula ainda não terminara.

– Isso foi muito amável da tua parte, Robert. E se o Weber escrever algo invulgarmente intuitivo acerca deste caso, saberemos de onde veio.

– Eu não sei nada acerca do vosso caso.

– Tu estás aqui. Já olhaste para o quadro.

Robert virou-lhe as costas e foi-se embora. Ursula conseguiu ouvi-lo a caminhar, furioso, pelo corredor e atravessar a porta de vidro mais ao fundo. Levantou-se, foi até à porta, espreitou para o exterior para se certi?car de que ele realmente partira e depois saiu da Sala e passeou pelo espaço aberto do escritório praticamente vazio. Aquilo podia não ser nada, mas ela queria dar a Torkel a oportunidade de agir rapidamente. O gabinete dele estava vazio. O seu casaco não estava lá e o computador fora desligado. Que horas eram, a?nal? Olhou para o telemóvel: onze e vinte e cinco. Devia telefonar-lhe mas não conseguiu decidir-se a fazê-lo. O que era idiota, patético e ridículo.

Mesmo assim, não conseguiu decidir-se a fazê-lo.

Vê-lo na sede todos os dias era uma coisa; trabalharem lado a lado não tinha qualquer problema. Contudo, telefonar-lhe ao ?m da noite... Quando lhe telefonava à noite quase nunca tinha a ver com o trabalho, a menos que envolvesse um homicídio ou alguma novidade técnica numa investigação em curso. Aquilo não se comparava. Ela podia falar com Torkel acerca de Weber no dia seguinte. Quando lhe telefonava à noite era porque o queria. Queria que fosse ter com ela ao seu quarto de hotel ou que a deixasse ir ao dele. Telefonava-lhe quando precisava dele. Era por isso que naquele momento estava hesitante. Será que precisava dele? Recentemente começara a fazer essa pergunta a si própria. Afastar-se daquele relacionamento clandestino tinha sido mais fácil do que pensara. E ao início a sensação fora realmente de grande libertação. De simplicidade. Concentrara-se em Mikael e eliminara a outra parte da sua vida. Torkel era um pro?ssional, por isso não ?zera diferença alguma no que respeitava ao emprego; continuavam a trabalhar bem em conjunto. Ao princípio conseguia sentir o olhar de Torkel, mas quando deixou de lhe corresponder isso passou a acontecer com menos frequência, o que con?rmou a sua crença de que tomara a decisão certa.

Mas continuava a pensar nele.

Mais e mais.

 

Ursula regressou à Sala, pegou no relatório da autópsia e nas suas coisas e apanhou o elevador para descer até ao parque de estacionamento. Nessa noite perdera o desejo de continuar a trabalhar. Precisava de resolver aquele assunto do Weber, de o transmitir a Torkel para que a dor de cabeça passasse a ser dele e não sua. Eles tinham uma estratégia de comunicação clara. Uma pessoa falava à imprensa. Era sempre Torkel. Os outros departamentos tinham nomeado assessores de imprensa, mas Torkel declinara a oferta. Queria o controlo total.

As luzes ?uorescentes do parque de estacionamento subterrâneo acenderam-se automaticamente quando abriu a pesada porta de metal e se encaminhou para o carro, que praticamente era o único estacionado àquela hora.

A meio da noite, a meio do Verão.

Abriu a porta do carro, entrou, inseriu a chave na ignição e rodou-a. O motor pegou de imediato.

Não queria telefonar a Torkel. Não naquela noite. Isso lembrava-lhe excessivamente o passado. Os hotéis noutras cidades. Ele iria interpretar mal. Pensaria que estava a telefonar-lhe por outro motivo. Desligou o motor. Era mesmo importante o que ele pudesse pensar? Que pensasse o que quisesse. Aquilo era trabalho, ela precisava de o informar acerca de Weber. Nada mais. Em vez disso, decidiu enviar-lhe uma mensagem de texto. Pegou no telemóvel e digitou rapidamente: O Weber do Expressen anda a tentar contactar-nos. Como é evidente, já telefonou várias vezes ao R. Abrahamsson. Premiu o botão de envio e pousou o telemóvel em cima do banco do passageiro. Pensou no que Mikael lhe dissera uns dias antes.

É sempre como tu queres, Ursula. Sempre.

Isso era verdade e, ao mesmo tempo, não o era. Na realidade, ela tentara mudar. Até acabara tudo com o seu amante.

É certo que no início não fora por causa de Mikael, mas porque estava zangada e se sentia desiludida. Mas depois passara a ser por causa dele. Porque ele merecia. Seria mesmo verdade? Recostou-se para trás no banco e contemplou vagamente aquele parque de estacionamento inclassi?cável. Ao ?m de algum tempo as luzes apagaram-se; só se acendiam com sensores de movimento, para poupar energia. Ursula ?cou ali sentada, no escuro; a única luz provinha dos letreiros verdes das saídas de emergência e do ecrã do telemóvel ao seu lado, que iluminava tenuemente o interior do carro com o seu pálido brilho azul. Após alguns instantes, também este se apagou e ?cou às escuras. As palavras de Mikael continuavam a fazer-lhe companhia.

Como tu queres.

Sempre como tu queres.

Contudo, na realidade ela tentara encontrar uma espécie de harmonia com o seu marido. Um ponto em que ambos ditassem as condições. Fins-de-semana fora. Jantares. Banhos de espuma. A verdade, porém, era que essas coisas, embora super?cialmente fossem agradáveis, românticas e relaxantes, eram demasiado frívolas para ela. Isso fora particularmente evidente durante a última viagem a Paris. Passearam de mãos dadas, a conversar. Fizeram longas caminhadas pelas avenidas românticas, demoraram-se entre as encantadoras atracções turísticas e andaram à procura de bistros românticos com um desactualizado guia de restaurantes na mão. Tudo o que se devia fazer em Paris. Tudo o que um casal devia fazer. Mas ela não se identi?cava com aquilo.

Ela era uma criatura angulosa num mundo brando. Uma forma que realmente não se encaixava naquilo a que se chamava uma relação. Precisava de distância. Precisava de controlo. Por vezes, precisava de intimidade. Mas apenas às vezes. Quando lhe convinha. Mas nessa altura precisava. Precisava deveras. E foi exactamente isso que Mikael lhe quis dizer. Ele conhecia-a muito bem.

As luzes acenderam-se e arrancaram-na do seu devaneio. Robert Abrahamsson entrou no parque de estacionamento carregando a sua maleta. Até a maneira como ele andava a incomodava; movia-se com uma elasticidade propositada, como se estivesse a servir de modelo à mais recente colecção de Verão e não a encaminhar-se para o seu carro, pouco antes da meia-noite, num sujo parque de estacionamento subterrâneo. Entrou num Saab preto estacionado por perto e abalou. Ursula esperou até que ele desaparecesse, e a seguir pôs o seu carro em andamento e foi para casa.


DURANTE ALGUM TEMPO Torkel ?cou a pensar no que devia fazer com a mensagem de texto que Ursula lhe enviara. Axel Weber era um bom jornalista e, se estava envolvido, era apenas uma questão de tempo até fazer a ligação entre os homicídios. Talvez já o tivesse feito. Torkel sentou-se em frente ao computador e procurou veri?car se havia alguma coisa na primeira página do Expressen, mas a notícia em destaque continuava a ser a vaga de calor. Teve de chegar ao quarto artigo para encontrar uma reportagem acerca do mais recente crime.

Portanto, até ao momento nada. Mas Weber tentara contactá-lo. Torkel pegou no telemóvel. Teria sido mais normal telefonar a Weber durante o dia, mas era melhor descobrir o que ele sabia antes que fosse impresso. Tinha o número do jornalista na sua lista de contactos e este atendeu de imediato.

– Weber.

– Olá, fala Torkel Höglund da Riksmord. Creio que tem tentado contactar -me.

– É verdade – ainda bem que me ligou. Acabei de regressar de umas pequenas férias e... pelo que percebo, três mulheres foram assassinadas.

Nada de conversa ?ada. Directo ao assunto. Torkel não disse nada. Umas pequenas férias. Isso explicava porque Weber ainda não ?zera a ligação.

– No espaço de um mês – continuou Weber quando Torkel não respondeu.

– Sim...

– Na zona de Estocolmo, quero dizer. Andei a fazer umas perguntas e parece que é o mesmo perpetrador e, como a Riksmord está envolvida, pensei se teria algum comentário a fazer.

Torkel pensou depressa. Tinha duas opções: con?rmar as suspeitas de Weber ou recusar-se a comentar. Torkel evitava mentir à imprensa, a menos que o caso o exigisse. Daquela vez não era assim. O facto era que ele já havia ponderado a ideia de uma conferência de imprensa, onde desse uma quantidade limitada de informações na esperança de recolher novas pistas. No entanto, queria estar mais bem preparado, pensar melhor nos pormenores que deviam ser efectivamente divulgados. Na verdade não queria falar de mais, por isso respondeu:

– Nesta fase não posso comentar.

– Você não quer con?rmar que anda a lidar com um assassino em série?

– Não.

– Deseja negá-lo?

– Nesta fase não quero comentar.

Torkel sabia, e Weber também, que a sua recusa em negar ou comentar equivalia a uma con?rmação, mas nunca ninguém poderia dizer que Torkel divulgara informações à imprensa. Nem ele precisava disso. Havia muitos outros agentes policiais que ?cariam contentes por o fazerem. Não na sua equipa, mas no resto da sede. Eram tantos que isso se tornara um problema no que respeitava às entrevistas e ao tratamento das testemunhas. Havia demasiadas pessoas a saberem demasiadas coisas cedo de mais.

– Amanhã de manhã vou convocar uma conferência de imprensa.

– Porquê?

– Bom, se você aparecer por lá logo irá descobrir.

– Lá estarei. E irei usar a informação que já tenho.

– Eu sei.

– Obrigado pelo telefonema.

Torkel desligou. Uma conferência de imprensa. No dia seguinte. Seria conveniente. Com Weber a morder-lhes os calcanhares, precisavam de trazer aquilo a público a ?m de manterem algum controlo sobre o ?uxo de informações. Era sempre um acto de equilibrismo. Se esperassem demasiado tempo para partilharem o que sabiam, podia haver uma reacção hostil que conduzisse a um debate difícil acerca da segurança pública e do motivo pelo qual a polícia mantivera o silêncio quanto ao facto de um assassino em série andar à solta. E sim, precisavam de informações. Ele teria preferido ter na sua posse mais algumas pistas em que pudesse trabalhar antes que o caso se tornasse do domínio público, porventura destacando até alguns suspeitos para que as atenções levassem a investigação a avançar em vez de simplesmente a rami?carem. Mas não era esse o caso. Não tinham nada. Não haviam chegado a lugar algum. Com um pouco de sorte a atenção poderia conduzir a algo de positivo. Porque de uma coisa Torkel tinha a certeza: no dia em que começassem a surgir as manchetes uma pessoa iria ler todos os artigos, reparar em todos os comentários, acompanhar todos os debates – o próprio assassino em série. O imitador que eles procuravam. Isso poderia instigá-lo. Torná-lo excessivamente con?ante. E então poderia cometer algum erro.

Belas ilusões.

Torkel fechou o navegador de Internet e espreguiçou-se. Fora um dia árduo.

Muitas perguntas, poucas respostas.

O seu espírito deambulou. Rumo às suas ?lhas, à moradia de Verão e ao que deveria fazer-lhe, agora que as meninas estavam a chegar a uma idade em que não tardariam a deixar de querer ir para lá. Era sobretudo Elin quem protestava por ter de passar as últimas semanas das férias de Verão na moradia, mas sem dúvida que Vilma não tardaria a a?nar pela mesma partitura. Já era adolescente. Torkel receara aquele momento. O momento em que elas começassem a crescer. A sério. Quando quisessem estar com os amigos e viverem as suas próprias vidas, longe do seu velho pai naquela moradia de Verão demasiado pequena em Östergötland. Era perfeitamente natural. A?nal, era esse o objectivo quando se criavam ?lhos: transformá-los em indivíduos independentes. Sabia que tinha conseguido. Mas isso não tornava a situação mais fácil.

No entanto, não era tudo. Não havia ninguém que quisesse ir com ele para a moradia. Ou para qualquer outro lugar, já agora. Yvonne tinha Kristo?er. Não que pensasse convidá-la a passar duas semanas junto ao lago Boren, mas isso ?zera-o compreender ainda com mais clareza que estava sozinho. Completamente sozinho.

Torkel levantou-se com di?culdade da secretária e caminhou pelo seu apartamento. Não gostou do que viu. Estava mais desarrumado do que o habitual e, apesar da hora tardia, decidiu fazer algumas arrumações. Por regra era uma pessoa muito organizada, mas aqueles homicídios brutais haviam-lhe ocupado o tempo todo. Normalmente era o que acontecia. Sempre que aterrava na secretária dele um caso muito complicado, a sua casa entrava em rápido declínio. Houve uma certa melhoria quando se juntou à Riksmord por uma razão muito simples: a equipa trabalhava onde fosse necessário, em toda a Suécia. O que importava era que o Departamento de Investigação Criminal sueco dispusesse de uma unidade especial para ajudar nas investigações de homicídio mais complexas, para as quais a polícia local não dispunha de recursos. Isso signi?cava que Torkel estava muitas vezes longe de Estocolmo e se hospedava num hotel durante os períodos mais intensos, pelo que o seu apartamento conseguia sobreviver sem ?car um caos. Mas desta vez não. Agora Estocolmo estava no centro da tempestade, e da pior maneira possível. A arrumação do apartamento nem sequer estivera na ordem do dia, mas naquele momento podia optar: fazer limpezas ou tentar dormir.

Decidiu começar pela cozinha. Os restos do jantar que partilhara com as ?lhas na semana anterior ainda estavam no escorredor e dentro do lava-louças, e havia jornais e cartas espalhadas em cima da mesa. Rapidamente ganhou ritmo, e ao ?m de meia hora sentiu-se satisfeito com a cozinha. Foi para a sala de estar, limpou o lixo da mesa de café e das poltronas, e estava prestes a passar em revista o correio que recolhera quando a campainha tocou. Ohou para o relógio. Como já era tarde, espreitou através do pequeno postigo antes de abrir a porta.

Era ela.

Ficou surpreendido mas conseguiu cumprimentá-la quando lhe abriu a porta. Ela entrou para o vestíbulo e a primeira coisa que lhe ocorreu foi que se sentia contente por se ter livrado da maior parte da desarrumação. Provavelmente ela nem se iria importar, mas mesmo assim. Aquilo fazia-o sentir-se melhor. Ela olhou para ele e continuou a andar até à sala.

– Recebeste a minha mensagem de texto?

– Recebi.

– O Weber tem tentado falar contigo.

– Eu sei. Já falei com ele.

– Óptimo.

Torkel ?cou à entrada da sala de estar a olhar para ela. Estaria realmente interessada nas suas negociações com Weber?

– Amanhã vou convocar uma conferência de imprensa. O Weber já estabeleceu a relação.

– Com o Hinde?

– Não, entre os três homicídios.

– Compreendo... – assentiu e caminhou de volta para o corredor. – Só queria con?rmar se recebeste a minha mensagem. Agora vou para casa.

Ela era tão bonita.

– Podias ter telefonado.

– Fiquei sem bateria.

Uma mentira. Ela percebeu que ele sabia disso.

– Tenho de ir.

Ele pensou no que dizer para a fazer ?car.

Ela pensou no que dizer que lhe permitisse ?car.

Foi ele quem quebrou o silêncio tentando pôr tudo em palavras da melhor maneira que conseguia mas, como de costume, a sua primeira pergunta foi muito mais banal do que teria desejado.

– Então, como estás tu realmente, Ursula?

Ela olhou para ele. Sentou-se na cadeira branca ao lado da porta, aquela que já quase ninguém utilizava. Foi mais directa.

– O que vamos fazer?

– O que queres dizer?

– Acerca de ti e de mim.

– Não sei. – Ele amaldiçoou o facto de não conseguir dizer-lhe o que sentia. Decidiu que a sua próxima resposta seria mais honesta. Completamente honesta. Ela olhava para ele mas não conseguia interpretar a sua expressão.

– Talvez eu devesse mudar para outro departamento?

Ele sentiu uma vaga de ansiedade.

– Espera aí, do que estás a falar? Porquê?

Aquilo não estava a correr da maneira que ele esperava. Pegou na mão dela. Podia não ser capaz de dizer o que queria mas talvez as suas mãos lho pudessem mostrar.

– Estive em Paris há algumas semanas.

– Com o Micke, eu sei.

– Foi muito estranho. Fizemos tudo o que é suposto fazer-se durante um ?m-de-semana romântico no estrangeiro. Mas quanto mais tentávamos, mais eu queria estar em casa.

– Mas isso não tem a ver contigo. Tu não és esse tipo de pessoa.

– Então, que tipo de pessoa sou?

A sua perplexidade pareceu genuína. Torkel sorriu. Acariciou-lhe a mão, que aqueceu na sua.

– Tu és mais... complicada. Nunca inteiramente satisfeita, nunca inteiramente em paz. Tu és a Ursula.

– Será que tudo acontece como eu quero?

Já agora, ele podia continuar a ser honesto.

– Sim. Sempre foi assim.

– Mas tu não tens problemas com isso?

– Não. Não creio que consiga modi?car-te. Nem sequer acho que o quero.

Ela olhou para ele e pôs-se em pé.

Contudo, não tencionava ir-se embora.

 

Quando chegou a casa, por volta das três horas, arrastou-se até ao quarto de Bella. Por vezes Bella dormia aí quando regressava de Uppsala e precisava de um sítio aonde ficar. Ursula acalentou a esperança de que a ?lha tivesse decidido surpreendê-los com uma visita inesperada, mas o quarto estava vazio. Bella não ia a casa há várias semanas. Ela e o namorado, Andreas, dormiram ali durante alguns dias no início de Junho, e depois foram para a Noruega passar o Verão a trabalhar num restaurante e a juntar algum dinheiro antes do início do novo ano lectivo. Ursula afastou a pilha de roupa de Bella para um lado e sentou-se na cadeira da secretária. Olhou para a cama muito bem feita. A peça de roupa preferida de Bella continuava na prateleira do armário ao lado da cama – uma T-shirt preta dos Green Day, que trouxera de um concerto a que assistira quando tinha quinze anos. Ursula levara-a de carro até lá. Tiveram uma longa discussão dentro do carro acerca da compra da T-shirt, pois Ursula considerava que era demasiado cara e Bella argumentava que lhe era absolutamente necessária, na verdade essencial, que precisava de a ter.

A sua ?lha era muito boa, muito conscienciosa. Na universidade, no trabalho, quando jogava voleibol, em toda a parte. Fazia Ursula lembrar-se de si própria. Muito boas notas na escola, sempre com um livro na mão, como se o conhecimento fosse a única coisa necessária para entender a vida. Ursula achava que devia realmente tentar aproximar-se de Bella; eram as duas muito parecidas, tinham os mesmos pontos fortes, os mesmos defeitos. Podia ensinar muito à ?lha. O facto de haver coisas que se podiam aprender através da leitura, da discussão ou do raciocínio lógico. Uma delas era a proximidade com as outras pessoas. Essa era a mais difícil. Sem esta escolhia-se a distância, uma posição que ?cava um pouco afastada do centro da vida; aquela que Ursula conhecia bem. Mas talvez já fosse tarde de mais para se aproximar de Bella; a sua ?lha exigia a mesma distância de que Ursula precisava. Isso tornou-se claro para Ursula durante os últimos anos que Bella passou em casa. Ursula pegou na T-shirt cuidadosamente dobrada e enterrou o nariz nela. Fora lavada há pouco, mas pensou que ainda conseguiria sentir o cheiro da ?lha. No seu espírito pairavam as palavras que devia dizer sempre que tivesse oportunidade mas que nunca proferia: «Amo-te. Não sou muito boa a demonstrá-lo, mas amo-te.» Cheirou a T-shirt uma última vez, depois colocou-a na prateleira e foi à casa de banho.

Lavou-se novamente. Embora já tivesse tomado um duche em casa de Torkel, pareceu-lhe a coisa mais natural a fazer. A seguir, escovou os dentes e enfiou-se silenciosamente na cama ao lado de Mikael. Deitou-se de lado e olhou para a parte detrás da cabeça e para os cabelos encaracolados dele, que estava deitado de costas para ela. Parecia imerso num sono profundo. Relaxou; não se sentia completa, mas satisfeita. Sabia que passava todo o seu tempo a sacar pequenas coisas das pessoas que a rodeavam. Pequenas coisas, nunca a totalidade.

E devolvia-lhes muito pouco. Não era capaz de mais. Tal como aquele instante com a T-shirt no quarto de Bella.

Amava a sua ?lha mas dissera as tais palavras à T-shirt dela.


SABINE VEIO TER com ele no sonho. Ele segurava-lhe a mão. Como sempre.

A água em turbilhão. A energia. O ruído. Largou-a e ela foi arrastada pela onda.

Como sempre.

Perdeu -a.

Para sempre.

Sebastian acordou com um sobressalto, como de costume sem saber ao certo onde se encontrava. Depois viu Annette. Ainda com o vestido preto. O batom escuro estava esborratado e deixara marcas na almofada. Ela era bonita. Na noite anterior nem sequer reparara nisso. Era como uma flor que apenas se abre durante a noite, quando ninguém pode ver. Imagine-se se pudesse ser apenas metade dessa pessoa quando saía porta fora e enfrentava o mundo. Repeliu esse pensamento. Não lhe competia compreendê-la ou ajudá-la. Já tinha bastante com que lidar – ele próprio. Arrastou-se para fora da cama e sentiu-se hirto; o colchão era demasiado mole e a cama muito estreita. Além disso, o sonho deixava-o sempre tenso e doía-lhe a mão direita. No chão, ao lado da sua roupa, estava um urso de peluche castanho com uma roseta e que ostentava na barriga a seguinte frase: «Para a melhor mãe do mundo.» Pensou se o teria comprado para si própria. Tinha di?culdade em imaginar que aquela mulher adormecida pudesse ser a melhor no que quer que fosse. Pegou no urso e colocou-o ao lado dela, em jeito de saudação. Olhou para ela uma última vez e a seguir, rápida e silenciosamente, vestiu-se e saiu do apartamento.

 

O tempo estava quente. Muito quente. O calor envolveu-o assim que saiu para a rua, embora ainda não fossem cinco horas da manhã. Ouvira algures que Estocolmo estava a ser atravessada por uma vaga de calor tropical. Não sabia o que era necessário para que o calor fosse quali?cado como tropical; achava apenas que fazia um calor danado. O tempo todo. De noite e de dia. Ainda não se tinha afastado uma centena de metros da porta de Annette e já sentia o suor a escorrer-lhe pelas costas abaixo. Na verdade não sabia onde se encontrava nem como chegar ao centro de Liljeholmen, e foi caminhando ao acaso até as ruas começarem a parecer-lhe familiares.

Havia um café e um quiosque de jornais ao lado da estação do metropolitano. Empurrou a porta, foi direito à máquina de café e encheu uma caneca grande com cappuccino.

– Por mais seis coroas também pode levar um pastel dinamarquês – disse-lhe o jovem que estava atrás do balcão quando Sebastian pousou a caneca à frente dele.

– Não quero um pastel dinamarquês.

O rapaz lançou um olhar inquiridor a Sebastian e, a seguir, aventurou um sorriso compreensivo.

– Noite difícil?

– Meta-se mas é na sua vida.

Sebastian bebeu o café e saiu. Virou à direita. Uma distância razoável para percorrer. Atravessar a ponte Liljeholm, Hornsgatan, Slussen, Skeppsbron, Strömbron, Stallgatan e depois Strandvägen até à sua casa. Quando lá chegasse estaria encharcado em suor. Contudo, não queria entrar no metro. Se o calor fosse demasiado sempre poderia apanhar um táxi.

Em Hornsgatan o atacador do seu sapato desapertou-se. Sebastian pousou o café em cima de uma caixa de electricidade, baixou-se e refez o nó. Quando se endireitou avistou o seu re?exo na montra colorida de uma loja que vendia camisas. Percebeu que se justi?cava a questão de saber se tivera uma noite difícil. Nessa manhã parecia mais velho do que os seus cinquenta anos. Mais desgastado. O cabelo, um pouco comprido, estava colado à testa devido ao suor. Barba por fazer, exausto, os olhos encovados. Sozinho com uma caneca de papel cheia de café morno às cinco horas da manhã. Regressava de mais uma noite com uma mulher. A caminho de...? Na verdade, ia a caminho de onde? De casa. Mas para quê? Para o quarto de hóspedes do apartamento em Grev Magnigatan; era a única divisão que usava no elegante apartamento, além da cozinha e da casa de banho. Havia quatro divisões não utilizadas, intactas e silenciosas, sempre na penumbra por trás das cortinas fechadas. Para onde ia realmente? Para onde ia desde o Natal de 2004? A resposta era simples: para lugar nenhum. Convencera-se a si próprio de que era perfeitamente normal. De que era assim que queria que tudo fosse, de que tomara a opção consciente de permitir que a vida o ultrapassasse.

Sabia porquê. Receava ter de abdicar de Sabine para poder voltar. E de Lily. Que o preço de conseguir viver de novo fosse esquecer-se da ?lha e da esposa. Não queria isso. Sabia que muitas pessoas, a maioria, encontravam maneira de regressar às suas vidas após terem perdido alguém que lhes era próximo. A vida continuava, apenas com um fragmento a menos. Não ?cava completamente destroçada como a dele. Sabia disso. Mas não conseguira refazê-la. Nem sequer tentara.

Porém, Vanja deixara mais uma vez um rasto de luz, de sentido, na sua existência, e ele encontrara coragem para dar os primeiros passos em direcção à mudança. Se Trolle ?zesse o que era suposto, Sebastian conseguiria arranjar maneira de afastar Valdemar da sua ?lha. A única questão era como devia proceder depois. Se conseguisse virar o mundo de Vanja ao contrário não devia estar lá para a amparar quando ela caísse? Seria ainda melhor se ?zesse parte do seu quotidiano antes de o desastre ocorrer. Uma pessoa impopular, porventura, mas ainda assim alguém que estava su?cientemente perto para se poder aproximar dela de um modo natural assim que fosse preciso.

Na verdade, essa estratégia em particular tinha duas vantagens.

Tornar-se parte do quotidiano dela. O seu quotidiano era a Riksmord. A Riksmord era o antigo local de trabalho de Sebastian. O lugar onde experimentara um sentimento de pertença, onde pudera colocar os seus conhecimentos em prática. Onde dera o seu contributo. Trabalhara. Tivera uma vida.

Arranjar uma vida antes de poder fazer parte de outra.

Tomou uma decisão.

Estaria perto de Vanja e, uma vez mais, conquistaria uma vida para si.

Lançou um último olhar à escura montra da loja e, a seguir, virou-se para trás e regressou pelo caminho por onde viera.


TORKEL ESTACIONOU no lugar que lhe estava reservado no parque de estacionamento por baixo da sede da polícia, desligou o motor e saiu do carro. O sistema de ar condicionado do Audi mantivera a temperatura nuns agradáveis dezassete graus e, embora só tivesse dormido algumas horas, sentia-se descansado e refrescado quando trancou o carro e caminhou em direcção ao elevador. Tentava não pensar muito na noite anterior. Para não criar falsas esperanças. Deitado na sua cama após o acto, percebera o quanto sentira a falta dela. Por momentos pensara em aninhar-se mais perto dela e simplesmente abraçá-la, mas não se atrevera. Sabia que não era isso que ela queria. Contudo, na noite anterior sentira-a mais próxima dele do que nunca. Estiveram no apartamento dele. Ela voltara. Escolhera-o. Não completamente, mas ainda assim.

Se calhar Ursula era incapaz de escolher alguém completamente.

E ele era maduro o su?ciente para conseguir viver com esse facto.

Quando acordara de manhã ela já se tinha ido embora. Não a ouvira partir. Ela não o acordara para se despedir. Mas o que esperava ele? A?nal, era Ursula.

 

Torkel entrou na recepção, acenou com a cabeça ao agente de uniforme que lhe entregou os jornais da manhã e sacou do seu cartão-passe para a porta interna. No entanto, antes de ter tempo para o usar ouviu alguém dizer-lhe:

– Bom dia.

A primeira impressão que teve quando se virou para trás foi a de que tinha sido interpelado por um sem-abrigo, mas uma fracção de segundo depois reconheceu o seu visitante. Sebastian levantou-se de um dos dois sofás que estavam na outra extremidade da zona de recepção e atravessou o chão de pedra em direcção a Torkel.

– Sebastian. O que estás a fazer aqui? – Torkel reprimiu um impulso para abraçar o homem e estendeu-lhe a mão. Sebastian apertou -a momentaneamente.

– Vim falar contigo. Não marquei reunião mas talvez possas dispensar-me cinco minutos?

Aquilo era mesmo típico de Sebastian, pensou Torkel. Simplesmente aparecer. Quando era conveniente para ele, tinha de ser conveniente para todos. Após terem resolvido aquele caso em Västerås, no passado mês de Abril, Sebastian limitara-se a desaparecer de novo. Não demonstrara qualquer desejo de retomar a amizade que ?cara em pousio durante muitos anos. Deus sabia que Torkel lhe dera essa oportunidade, mas Sebastian era perito em fugir a todas as tentativas de um contacto mais íntimo.

Durante alguns segundos Torkel chegou mesmo a pensar em mandá-lo embora. A experiência dizia-lhe que o súbito aparecimento de Sebastian não podia ser uma boa notícia. E, no entanto, deu por si a dizer-lhe que sim, a inserir o cartão-passe e a deixar Sebastian entrar na Riksmord.

– Pareces cansado – disse-lhe Torkel enquanto estavam no elevador.

– Isso é porque estou cansado.

– Estiveste muito tempo à espera?

– Cerca de uma hora.

Torkel olhou para o relógio. Eram dez para as sete.

– Acordaste cedo.

– Na verdade, nem sequer me deitei.

– Será que quero saber onde estiveste?

– Nem eu próprio quero realmente saber onde estive.

Calaram-se. Uma voz feminina, anónima, informou-os de que estavam no quarto piso e as portas abriram-se. Sebastian saiu primeiro e caminharam pelo corredor.

– Então, o que tens andado a fazer? – perguntou-lhe Torkel num tom de voz neutro enquanto se encaminhavam para o seu gabinete. Sebastian estava impressionado; apesar de tudo, uma recepção bem -educada.

– Oh, tu sabes como é – o costume.

– Ou seja, nada.

Sebastian não lhe respondeu. Torkel acenou a Sebastian para que entrasse no gabinete. Deixou a porta aberta, despiu o casaco e pendurou-o. Sebastian afundou-se num sofá de dois lugares.

– Café? – perguntou Torkel enquanto se sentava atrás da secretária e dava um empurrãozinho ao rato para fazer o computador sair do modo de poupança de energia.

– Não, quero um emprego. Na verdade, preciso de um emprego. É por isso que estou aqui.

A bem dizer, Torkel não sabia o que esperar. Percebera que o aparecimento de Sebastian àquela hora da manhã só podia signi?car uma coisa: ele queria algo. Para si próprio. Mas aquilo? Teria ouvido bem o que Sebastian lhe disse?

– Queres um emprego. Pronto. Assim de repente.

– Sim.

– Não.

– Porque não?

– Eu não posso simplesmente contratar pessoas.

– Podes, se disseres que precisas delas.

– Exactamente...

Pela primeira vez Torkel sentiu di?culdade em ?tar Sebastian. Talvez precisassem mesmo de Sebastian naquele momento. Então, porque é que Torkel não pegou no telefone? Foi a sua relutância pessoal em recrutar de novo Sebastian que decidiu o assunto? Sentira-se desapontado com o seu antigo amigo; isso terá nublado o seu juízo pro?ssional? Convencera-se de que, mesmo com uma terceira vítima, a presença de Sebastian faria mais mal do que bem.

Sebastian interpretou o silêncio de Torkel como uma indicação de que estava realmente a considerar a sugestão. Inclinou-se para a frente.

– Vá lá, Torkel, sabes o que eu posso fazer, sabes como posso contribuir. Não tivemos já esta discussão em Västerås?

– Não, não tivemos. Pelo que me lembro, juntaste-te a nós em Västerås, trataste-me e ao resto da minha equipa como merda e a seguir desapareceste.

Sebastian anuiu; provavelmente era mais ou menos isso que tinha acontecido.

– Mas resultou.

– Para ti, talvez.

Bateram à porta e Vanja entrou. Olhou para o convidado, sentado no sofá, e não deixou margem para dúvidas quanto à sua opinião a respeito do visitante.

– Mas o que está ele a fazer aqui, foda-se?

Sebastian levantou-se rapidamente. Sem saber porquê. Apenas lhe pareceu ser a atitude certa a tomar. Como se fosse um pretendente de um romance de Jane Austen. O facto de a ter visto há menos de vinte e quatro horas era irrelevante; parecia-lhe demasiado tempo.

– Olá, Vanja.

Ela nem sequer olhou para ele. Pelo contrário, manteve o olhar ?xo em Torkel com uma expressão desa?adora.

– Ele passou por cá. Estava nas redondezas...

– Como tens passado? – tentou de novo Sebastian.

Vanja continuou a comportar-se como se ele nem sequer estivesse na sala.

– Já chegaram todos. Estamos à tua espera.

– Está bem – disse Torkel. – Eu vou lá ter assim que puder. Hoje de manhã também temos uma conferência de imprensa.

– Uma conferência de imprensa?

– Sim. Vamos discutir isso na reunião. Dois minutos.

Vanja assentiu com um gesto de cabeça e saiu da sala. Sem olhar sequer na direcção de Sebastian. Torkel reparou que Sebastian a seguia com os olhos enquanto ela se afastava. Fora invulgarmente ríspida. Na verdade, francamente mal-educada. Talvez devesse ter-lhe feito um reparo mas, ao mesmo tempo, aquilo con?rmava o seu sentimento de que tomara a decisão certa ao recusar que Sebastian se juntasse de novo à equipa. Torkel levantou-se e Sebastian desviou a atenção para o antigo colega.

– Uma conferência de imprensa... Em que andas a trabalhar?

Torkel sabia bem que não devia dar o mínimo indício a Sebastian. Foi até junto dele e pousou-lhe uma mão no braço.

– Julgo que um emprego seria muito, muito bom para ti.

– É exactamente isso que estou a dizer-te.

– E realmente gostava de poder ajudar-te.

– E podes.

– Não, não posso.

Silêncio. Torkel pensou ter visto o brilho apagar-se nos olhos de Sebastian.

– Vá lá, não me faças implorar...

– Tenho de ir. Telefona-me quando te quiseres encontrar comigo. Fora do trabalho. – Torkel apertou por uns instantes o braço de Sebastian e, a seguir, virou-lhe as costas e saiu do gabinete.

Sebastian ?cou ali, em pé. O resultado da sua visita foi mais ou menos o que esperava, mas mesmo assim sentia-se decepcionado. Vazio. Permaneceu no mesmo local durante mais um pouco, a pôr os pensamentos em ordem, e depois saiu do gabinete de Torkel e foi para casa.

Arranjar uma vida antes de poder fazer parte de outra.

Como diabo o iria fazer quando ninguém estava disposto a dar-lhe uma oportunidade?


REALMENTE PRECISAVA de as limpar, pensou Sebastian enquanto olhava para fora das janelas sujas que davam para a Karlavägen. Uma carrinha branca alugada à Statoil[12] estava estacionada em segunda fila à porta do prédio. Dois homens com cerca de trinta anos tentavam erguer um piano demasiado grande para eles. Sebastian observou-os com interesse; decidira em poucos segundos que aquela tarefa era impossível. O piano era demasiado pesado. Os homens, demasiado magros e em número insu?ciente. Pura matemática.

Stefan fora à loja de conveniência comprar leite para o café que insistia sempre em oferecer-lhe, deixando Sebastian sozinho. Sebastian afastou a cortina do lado esquerdo para ver melhor, a seguir instalou-se confortavelmente na grande poltrona e durante algum tempo observou os esforços dos dois homens com o piano. Depois recostou-se para trás e fechou os olhos.

Sentia-se quase expectante, provavelmente por causa do que iria acontecer dentro de pouco tempo.

O regresso.

O momento em que Sebastian assumia de novo o controlo e contra-atacava. Era difícil. Abriu os olhos e lançou uma rápida olhadela ao ?asco do piano lá fora. Houve uma pausa nos procedimentos; os homens pareciam estar a discutir a melhor forma de levar a tarefa avante. Sebastian perdeu o interesse e pegou no jornal diário que estava em cima da mesa à sua frente.

Acontecera algo no estrangeiro.

Acontecera outra coisa qualquer na Suécia.

Na verdade, não se importava; só precisava de se manter ocupado.

Reparou no vaso de ?ores em cima da mesa. De certa forma, tudo aquilo resumia Stefan na perfeição. A edição mais recente do DN e as ?ores frescas. O café acabado de fazer, com leite. Stefan vivia para o momento. Como se cada dia tivesse algum signi?cado.

Após mais alguns minutos, Sebastian ouviu a porta da rua a abrir e, um segundo depois, Stefan apareceu, trazendo na mão uma embalagem de leite meio-gordo. Sebastian pousou o jornal, que praticamente ainda não lera, e saudou o regresso de Stefan com um aceno de cabeça.

– Bebes um café, não bebes? – perguntou Stefan enquanto avançava para a máquina de café.

– Como foste à rua de propósito para comprar leite, acho que na realidade não posso recusar.

– Tu nunca tens qualquer problema em dizer que não. – Stefan sorriu.

Sebastian retribuiu-lhe o sorriso.

– Nesse caso, não.

Stefan assentiu e serviu-se de uma chávena; abriu o pacote de leite e despejou algum no café.

– Ainda não há muito tempo estiveste aqui pela última vez – disse-lhe, equilibrando com cuidado a chávena quase a transbordar enquanto se dirigia para a outra poltrona.

– Eu sei.

– Pareces contente. Aconteceu alguma coisa?

– Não, porque perguntas? – Sebastian brindou-o com o seu sorriso mais desarmante. Queria prolongar o prazer tanto quanto possível.

– Não sei, é só um pressentimento. – Stefan pousou a chávena em cima da mesa, ao lado das ?ores, e sentou-se. Fez-se silêncio durante alguns segundos. Sebastian decidiu que estava na hora de começar.

– Hoje estive com a Vanja.

Stefan parecia mais fatigado do que surpreendido.

– Pensei que tínhamos combinado que não irias contactá-la. O que disse ela?

– Disse: «O que está ele a fazer aqui, foda-se?»

– Tu prometeste – disse Stefan abanando a cabeça.

– Não foi assim. Eu estava a tentar arranjar um emprego.

– Onde?

– Na Riksmord.

– Entre todos os lugares possíveis...

– Vá lá, disseste que devia arranjar algo e eu quero voltar a trabalhar. Preciso de... estrutura. Tens razão a respeito disso. Mas tem de ser algo interessante. Um desa?o.

– Não como aquilo que tiveste de aturar ontem à noite?

Sebastian não respondeu. Olhou de novo para fora da janela. Os homens estavam sentados a fumar. O piano permanecia exactamente no mesmo sítio.

– A terapia de grupo funciona muito melhor quando todos participam – continuou Stefan. – Quando dão o seu contributo.

– Aquilo não é para mim, já to disse. Pelo amor de Deus, eles nunca paravam de falar acerca dos seus problemas banais. Como consegues suportar aquilo?

– Uma pessoa habitua-se. Tenho pacientes que são consideravelmente mais difíceis – disse Stefan de um modo insinuante.

Sebastian aceitou a ironia; ainda tinha a artilharia pesada como reserva.

– Em todo o caso, esta noite não vou lá.

– Acho que devias dar-lhes outra oportunidade.

– Não creio. Aquilo é... – Uma pausa deliberada. Sabia, graças à sua experiência em dar palestras, que as mudanças bruscas de tópico são, em geral, mais e?cazes após uma pausa introdutória. Agora iria causar o efeito máximo. Estava na hora de largar a bomba: – Dormi com a Annette depois da reunião de ontem à noite.

– Por que raio ?zeste isso? – perguntou Stefan, lívido.

Sebastian abriu os braços como que a pedir desculpa.

– Foi um erro. Não tinha a intenção de o fazer.

– Não tinhas a intenção de o fazer? Mas que merda é essa que me estás a dizer, não tinhas a intenção de o fazer?

Stefan tentou acalmar-se recostando-se para trás na poltrona. Aquilo não parecia estar a correr muito bem, observou Sebastian com satisfação.

– Foi... qualquer coisa para fazer. Uma distracção. Já me conheces. Eu sou assim. – Olhou para Stefan com um interesse ?ngido. – Conheces bem a Annette?

– Há muito tempo que é minha paciente. Sente-se completamente abandonada por todos. Pelo ?lho, pelo ex-marido, por toda a gente. Tem problemas de con?ança e muito pouca auto-estima.

– Sim, isso era evidente. Absorveu a intimidade como uma esponja. Mas na cama parecia uma locomotiva.

Stefan deu um salto na poltrona, salpicando a mesa de café.

– Tens noção do que ?zeste? Imaginas como se deve ter sentido quando acordou sozinha? Presumo que não ?caste para o pequeno -almoço.

– Não, já tive más experiências no que diz respeito a esse assunto.

– E agora tencionas evitá-la?

– O plano é esse. Normalmente dá resultado. – Sebastian optou por mais uma pausa deliberada, olhando para Stefan com uma simpatia obviamente ?ngida. – Lamento muito, Stefan, mas eu disse-te que não pertenço à terapia de grupo.

– A questão é saber se realmente pertences a algum sítio. Vai-te embora. – Stefan apontou para a porta. – Já nem consigo olhar mais para ti, foda-se.

Sebastian aquiesceu e pôs-se em pé, deixando Stefan entregue à edição recente do jornal diário e às suas ?ores cortadas.

Stefan tinha razão.

Todos os dias tinham signi?cado.


QUANDO CHEGOU a casa, o homem alto estava tão excitado quanto era possível. Vira os cartazes e as manchetes dos jornais da tarde. A polícia realizara uma conferência de imprensa. Acerca dele. O que mais queria era começar a ler, mas limitar-se a entrar em casa a correr e abrir os jornais que comprara estava fora de questão.

O ritual.

Tinha de seguir o ritual.

Atendo-se à rotina, acendeu rapidamente a luz do corredor e trancou a porta atrás de si. Descalçou os sapatos, colocou-os na sapateira, calçou os chinelos, despiu o blusão ?no e pendurou-o no único cabide da prateleira para chapéus que, com excepção de uma grande lanterna, estava vazia. Depois de ter despido tudo o que pretendia – durante o Inverno o cachecol, o chapéu e as luvas também seriam colocados na prateleira, sempre por essa ordem –, abriu a porta da casa de banho e acendeu a luz. Como de costume, sentiu uma ligeira aversão no instante em que olhou para o denso negrume daquela divisão sem janelas, antes de a lâmpada ?uorescente ganhar vida. Entrou, veri?cou se a lanterna que estava ao seu alcance na pequena prateleira funcionava, a seguir abriu a braguilha e urinou. Levou a lanterna para o lavatório, lavou as mãos, guardou-a no respectivo lugar e deixou a porta da casa de banho aberta quando penetrou no apartamento. Acendeu a luz principal da sala de estar quando virou à esquerda para a cozinha e, a seguir, as luzes por cima do fogão e do tecto. Duas lanternas para veri?car na cozinha. Ambas funcionavam. Só restava o quarto. Luz do tecto, luz de cabeceira, veri?car a lanterna por cima da mesa-de-cabeceira.

Todas as luzes estavam acesas. Não que isso fosse necessário. A luz do Sol entrava por todas as janelas do apartamento. Não havia nada que a impedisse ou atenuasse o seu efeito. Nenhumas persianas do lado de fora nem cortinas por dentro. A primeira coisa que o homem alto ?zera quando se mudara para ali fora remover todos os estores. Já não precisava da luz eléctrica. No entanto, fazia parte do ritual. Se o ?zesse mesmo quando não era necessário, não precisava de se preocupar por se esquecer quando fosse importante.

Uma vez, há muitos anos, houve um corte de energia na zona onde morava. Ficou tudo às escuras, não apenas no seu apartamento mas em toda a parte. Escuro como breu. Encontrou rapidamente uma lanterna, mas ou as pilhas estavam sem carga ou a lâmpada fundida. Há muito tempo que não a veri?cava. Isso foi antes do ritual. O pânico, o medo paralisante que o dominara, fê-lo vomitar e depois a ?car imóvel no chão durante várias horas até que a electricidade foi restabelecida.

Adorava o Verão. Não necessariamente o calor, mas a luz. A melhor altura era por volta do solstício de Verão, mas o que ele amava era a luz, não os festejos. Não gostava de festividades. Sobretudo as do solstício de Verão.

Foi na véspera de um solstício de Verão que percebeu, pela primeira vez, que havia algo de errado.

Que ela não era como as outras pessoas.

Teria três, talvez quatro anos. Entraram todos no carro e foram até ao grande prado à beira do lago. Quando lá chegaram o poste já havia sido erguido. Havia muitas pessoas e acabaram por ?car bastante longe do centro das celebrações, com as suas mantas e o cesto de piquenique. De vez em quando a brisa transportava excertos de música popular enquanto estavam ali sentados com as suas sanduíches, uma tarte de morango e vinho branco para a mamã e o papá. O baile começou às três horas. Havia muitas pessoas e acabaram por formar quatro ou cinco rodas. Ele adorava dançar; algumas danças tradicionais eram muito divertidas. Talvez aquilo tivesse começado mais cedo, provavelmente começou, mas não se lembrava. A primeira vez foi ali. No solstício de Verão. Ao sol, no círculo mais afastado. Quando estavam a dançar. Com a sua pequena mão na dela. Lembrava-se de se sentir feliz e de erguer os olhos para ela. Ela olhava em frente, para longe, enquanto dançava. Não estava realmente ali. Não cantava. Não sorria. O seu corpo descrevia os movimentos da dança como se estivesse a dormir. Completamente desprovida de emoção. Indiferente. Lembrava-se de se sentir um pouco receoso, de lhe puxar a mão. Ela olhava para ele e sorria, mas nunca com o olhar. Era um comportamento mecânico, aprendido, para lhe garantir que tudo era como devia ser. Mas não era. Não naquela época, e de?nitivamente não a partir daí.

– De momento a mamã não se está a sentir muito bem. – Era o que lhe dizia quando não o autorizava a subir-lhe para o joelho ou quando se deitava a meio do dia com as cortinas do quarto fechadas. Quando ?cava sentada no chão com os joelhos encostados ao queixo e se limitava a chorar, e o pai tinha de o ir buscar à creche porque ela simplesmente não aparecera. Era o que lhe dizia quando não suportava ter de lhe preparar algo para comer nos dias em que ?cava em casa com ela ou antes de fechar a porta atrás de si, deixando-o sozinho durante várias horas.

– De momento a mamã não se está a sentir muito bem. – Era o que o pai lhe dizia quando tentava explicar-lhe, a sussurrar, porque tinha de usar chinelos macios dentro de casa, porque não devia dar a entender que estava aborrecido, preocupado ou zangado. Quando tentava explicar-lhe porque tinha de ?car quieto, quase invisível, durante várias horas nos dias em que ela realmente conseguia sair da cama. Quando tentava explicar-lhe porque nunca faziam coisas juntos, porque tinha de ser um bom menino e cuidar da mamã enquanto o papá saía para ir ganhar dinheiro.

Era isso que ele próprio dizia mais tarde, quando já era mais velho e os colegas lhe perguntavam porque faltava tantas vezes à escola, porque nunca podiam ir visitá-lo a casa, porque nunca aderia a qualquer actividade depois das aulas, porque nunca ia a festas nem praticava qualquer tipo de desporto.

– De momento a mamã não se está a sentir muito bem. – Às vezes, quando se sentia um pouco melhor, dizia-lhe que era uma pena ter de crescer com uma mamã tão má.

Mas dizia-lhe com mais frequência que era por culpa dele que estava doente. Se ele não tivesse aparecido, tudo teria sido óptimo. Ele tinha-a destruído.

Quando tinha dez anos, tornou-se impossível para ela ?car em casa. Desapareceu. Não sabia para onde foi. Curiosamente, depois disso o pai passava mais tempo em casa, o que era irónico pois nessa altura ele era perfeitamente capaz de cuidar de si próprio porque já era mais velho e também porque já não tinha de cuidar da mãe. Foi só muito mais tarde que percebeu que, durante todos aqueles anos, o pai usara o trabalho como um escape. Mantivera-se à distância. O pai não conseguia lidar com a doença dela e, por isso, passou a responsabilidade para o ?lho. Admitiu que podia ter odiado o pai por esse facto mas, quando ganhou consciência disso, havia muitas outras coisas e muitas outras pessoas que odiava mais intensamente.

A mãe morreu seis meses após os ter deixado. No funeral as pessoas falavam em voz baixa de suicídio, porém nunca o soube ao certo.

Ao ?m de outros seis meses, uma mulher que ele não conhecia apareceu no dia do seu aniversário. So?a, assim se chamava. Ele não festejava. Quem lá iria? Após vários anos sem praticamente qualquer contacto social e com uma quantidade signi?cativa de ausências na escola, não tinha amigos. So?a trouxe-lhe um presente. Uma Super Nintendo. Ele queria uma desde que fora lançada no ano anterior, mas sempre lhe disseram que era muito cara, que não a podiam pagar. No entanto, So?a não a considerava um presente particularmente extravagante. Ofereceu-lhe quatro jogos, além da consola! Percebeu de imeditato que ela devia ter mais dinheiro do que eles. Mais dinheiro do que eles jamais haviam tido.

Ela passou lá a noite.

Dormiu no quarto com o seu pai.

Conheceram-se na leiloeira onde o pai trabalhava, contou-lhe ele mais tarde. So?a era, ao mesmo tempo, bem informada e interessada. Levara para a leiloeira uma série de objectos para vender mas também licitara muitas peças bonitas. Peças dispendiosas. Ele gostava de So?a. Há muito tempo que o seu pai não era tão feliz..

Continuou a ver So?a durante os meses seguintes. Muitas vezes. Houve um ?m-de-semana em que o seu pai e So?a foram para fora e, quando voltaram, estavam noivos. O pai sentou-se junto dele para terem uma conversa séria. Ele e So?a iam casar-se e depois iriam ambos morar com So?a, que tinha uma bela casa no centro da cidade. Na verdade ele nunca duvidou de que o pai gostava muito de So?a, mas compreendeu que o dinheiro era importante.

Seria um novo começo.

Uma nova vida.

Uma vida melhor.

Depois de tudo o que acontecera, ele merecia-a. Daquela vez tudo iria correr bem. Nada nem ninguém o iria destruir.

Poucas semanas após o noivado ele fora apresentado pela primeira vez à família de So?a. Ao pai e à mãe dela, Lennart e Svea, que andavam pelos seus sessenta anos, e ao irmão Carl. Jantar na Villa Källhagen. Muito agradável. Entornara a sua bebida e afastara-se sorrateiramente, com medo das consequências, mas ninguém se mostrara zangado. Quanto mais tempo a refeição durava, mais ele conseguia de relaxar. A família de So?a parecia simpática, ali não havia idiotas. Quando já estavam para sair, o pai de So?a chamara-o de parte.

– Eu chamo-me Lennart, como já sabes, mas, agora que vamos ser parentes, se quiseres podes chamar-me avô.

Ele ficou contente por o poder fazer. Gostava daquele homem com cabelo grisalho e uns afáveis olhos castanhos que pareciam estar sempre a sorrir.

Naquela época. Quando acabaram de se conhecer.

Antes dos passeios.

Antes das brincadeiras.

Nesse tempo ele não tinha medo do escuro.

 

Com o ritual concluído, o homem alto sentou-se na cozinha e abriu os jornais com os dedos trémulos. Finalmente, perceberam. Demorara tempo, mas agora haviam relacionado o primeiro com o segundo e com o terceiro. Escreviam acerca dele. Estava a espalhar o medo, dizia o primeiro jornal. Fotogra?as das casas que visitara. Um vizinho ansioso a agarrar-se à ?lha. Passou ao segundo jornal. Praticamente o mesmo. Não havia nada a respeito do modelo que o inspirara, mal-grado o facto de os homicídios serem cópias exactas. Ou os jornalistas não sabiam os pormenores, ou simplesmente desconheciam a grandeza do Mestre. Os comentários da polícia eram breves. Só pretendiam declarar que era provável que estivessem a lidar com um assassino em série. Queriam avisar o público, em particular, as mulheres que viviam sozinhas, de que não deviam deixar entrar homens estranhos em casa. Diziam que tinham várias pistas, mas era tudo. Não queriam comentar quaisquer possíveis semelhanças entre as três vítimas. Não davam quaisquer pormenores. Estavam a tentar diminuí-lo, a transformá-lo em alguém invisível, alguém cujas acções não tinham importância. De novo. Não iriam triunfar. Aquilo ainda não acabara. Seriam obrigados a reconhecer que ele era um adversário à altura. Tão grandioso e capaz de incutir medo como o Mestre.

O homem alto levantou-se, abriu a segunda gaveta e pegou numa tesoura. Sentou-se e recortou meticulosamente os artigos que falavam acerca dele. Quando terminou, dobrou os jornais e colocou-os numa pilha em cima da mesa. Depois ?cou sentado, imóvel. A situação era nova. Precisava de arranjar um ritual. Tinha a certeza de que haveria mais artigos. Aquilo era apenas o princípio. Todo o seu corpo formigava, como se de repente tivesse passado à fase seguinte. Àquela em que o mundo iria começar a revolver à procura dele, do desconhecido. À fase em que ele existia.

Levantou-se e foi até ao armário das limpezas. Ao lado do aspirador estava um saco de papel para a reciclagem. Pegou nos jornais que deixou em cima da mesa e colocou-os dentro do saco. Em seguida, fechou a porta do armário, pegou nos recortes e caminhou até à sua secretária no outro quarto. Abriu a gaveta de cima. Dentro da gaveta guardava envelopes. Com três tamanhos diferentes. Tirou um dos maiores e guardou os recortes. Os do Expressen por cima dos do Aftonbladet. Decidiu que se outros jornais escrevessem acerca dele podiam ?car atrás do Aftonbladet. Se imprimisse algo da Internet, guardaria num envelope à parte. Foi até à cómoda, abriu a gaveta de cima e colocou o envelope que continha os recortes por baixo do saco de desporto preto. Era o que iria fazer. Recortar, reunir, reciclar, dentro do envelope, dentro da cómoda. Um ritual. Sentiu-se imediatamente mais calmo.

O homem alto sentou-se à frente do computador, abriu o programa de navegação e acedeu à fygorh.se. Relatara as suas últimas observações e a informação fora extremamente bem recebida. Na página sete, clicou no pequeno botão azul situado a meio de um longo excerto de escrita rúnica. Abriu-se uma nova página e introduziu a sua palavra-passe. Arquejou quando viu a alteração na página.

Fora-lhe atribuída uma nova tarefa.

Ele estava pronto para a próxima.

A número quatro.


O ELEVADOR ESTIVERA avariado durante toda a semana. Sebastian subiu os três lanços de escadas até ao seu apartamento. Era-lhe indiferente; não podia transpirar muito mais. O Sol atormentara-o durante todo o caminho até casa. Naquele Verão, o local para onde se ia ou a hora do dia não pareciam fazer qualquer diferença. Desde que o Sol se erguia e até cerca das quatro da manhã, parecia estar sempre no zénite. Não havia sombra. A zona de altas pressões permanecera sobre o país durante tanto tempo que os tablóides foram obrigados a inventar novas frases. «Temperaturas Recorde» e «Que Caloraça!» já não eram su?cientes. «Sol Crepitante Volta a Atacar» e «O Verão Infernal» eram dois exemplos da colheita da semana anterior, ambos associados a artigos que descreviam em pormenor como várias pessoas foram parar ao hospital com sintomas de desidratação e histórias de cães que morreram dentro de carros estacionados.

Havia ?ores penduradas na sua porta. Um ramalhete embrulhado em papel pardo e um bilhete. Sebastian rasgou o envelope enquanto abria a porta e entrava. Leu o bilhete ao mesmo tempo que despia a camisa sem a desabotoar, mas a mensagem só lhe dizia o que ele já sabia ou que concluíra por si próprio: alguém lhe enviara ?ores mas ele não estava em casa para as receber e, por isso, tinham-nas deixado à porta. Sebastian foi à cozinha e rasgou o embrulho. Eram rosas. Uma dúzia, talvez. Vermelhas. Certamente caras. Um cartão preso aos caules. Não havia dúvida de que o felicitavam por algo. Era o que estava escrito no cartão. «Parabéns», numa caligra?a elegante. E um nome: Ellinor.

Aquela que lhe dera a mão.

Ele sabia que o pequeno-almoço fora um erro. Percebera isso logo no momento, e agora tinha a con?rmação. Atirou as ?ores para o lava-louças e tirou um copo do armário. Encheu-o com água, bebeu avidamente e encheu-o de novo. Em seguida, saiu da cozinha. Por uns momentos pensou porque estava a ser felicitado, mas decidiu não se preocupar com o assunto.

O apartamento estava ligeiramente mais fresco do que o exterior. Cheirava a mofo. A pó. Lembrou-se de abrir a janela, mas percebeu que não faria qualquer diferença. Despiu-se e atirou a roupa para cima da cama desfeita no quarto de hóspedes. Precisava de fazer várias máquinas roupa, mas decidiu também não se incomodar com isso.

Pareceu-lhe que o edifício estava invulgarmente sossegado. Não havia canos a zunir, autoclismos a descarregar, crianças a gritarem no apartamento de cima nem passos nas escadas. Aquele local parecia vazio. E, provavelmente, estava quase vazio; a maioria dos seus vizinhos tinha ido de férias. Não que lhes sentisse a falta – mal sabia os nomes de alguns. Evitava deliberadamente as reuniões de condóminos, os dias de limpeza comum e as festas do bairro. As crianças do prédio até deixaram de lhe tocar à campainha para tentarem vender revistas de Natal, ?ores de Maio e outras porcarias. Mas havia sossego. Demasiado sossego.

O encontro com Stefan não surtira o efeito desejado. Fora lá como vencedor. Triunfara. Queria demonstrar a Stefan, de uma vez por todas, quem estabelecia a agenda para os contactos entre eles. Deixar claro a Stefan que, se tencionava tomar a iniciativa e forçá-lo a fazer coisas como aquela maldita sessão de terapia de grupo, então teria de arcar com as consequências. Sebastian fora completamente preparado para um confronto revigorante. Em vez disso, Stefan mostrara-se quase resignado. Era extremamente insatisfatório.

Sebastian entrou no quarto de hóspedes e ligou a televisão, montada na parede aos pés da cama. Estava prestes a deitar-se na cama desfeita quando o telefone tocou. Sobressaltou-se assim que ouviu aquele som estranho. Era o telefone ?xo. Devia ser Trolle. Por instantes pensou deixá-lo tocar, mas a curiosidade levou a melhor sobre si. Talvez Trolle tivesse descoberto algo. Algo suculento. Foi à cozinha. Aquilo podia ser divertido.

– Sim?

– Recebeste as ?ores?

Sebastian fechou os olhos. Não era Trolle. De?nitivamente, não era Trolle. Era uma voz de mulher. Não tinha graça.

– Quem fala?

– Ellinor Bergkvist.

– Quem? – Conseguiu parecer devidamente intrigado. Não tinha a menor intenção de a incentivar.

– Ellinor Bergkvist. Conhecemo-nos na palestra sobre Jussi Björling e vieste a minha casa.

– Ah, sim – disse Sebastian, como se ?nalmente tivesse conseguido associar um rosto ao nome.

– Sabias quem eu sou quando te disse o meu nome, não sabias?

– O que queres? – interrompeu Sebastian, sem sequer tentar disfarçar a irritação.

– Só queria felicitar-te no dia do teu nome. Jacob.

Sebastian não respondeu. Provavelmente o seu nome completo estava nalguma página da Wikipédia. Conseguia imaginá-la a navegar na Internet à procura de uma ligação, de um motivo para lhe telefonar. Para falar com ele. Flores para a sua morada e uma chamada para o telefone ?xo. Mas o seu número não deixara de constar da lista telefónica? Antigamente estava lá, sabia-o, mas e agora?

– Tu chamas-te Jacob Sebastian Bergman, não é. – Nenhum vestígio de hesitação na sua voz. Uma afirmação. Sebastian amaldiçoou-se a si próprio. No instante em que ela lhe dera a mão, devia tê-la repelido. Agora teria de o fazer.

– Se me dás licença, acabei de foder com uma mulher e preciso de um duche.

Desligou o telefone. Ficou parado por um momento, quase à espera que este tocasse de novo, mas o aparelho permaneceu em silêncio. Saiu da cozinha. Em todo o caso, tinha dito uma meia-verdade. Não ?zera sexo mas precisava mesmo de um duche. Ia a caminho da casa de banho quando uma voz vinda do televisor lhe despertou a atenção.

«... mas segundo a polícia há indícios de que o mesmo perpetrador está envolvido...»

Sebastian entrou no quarto. Um noticiário qualquer. Um jovem frente a uma casa, com um jardim lindíssimo ao fundo.

«... o que faz desta a terceira mulher que foi assassinada na sua própria casa. A polícia está a pedir às pessoas que tenham cuidado, sobretudo...»

Sebastian ?cou pasmado a olhar para o televisor.


QUANDO TORKEL PREMIU o botão e abriu a porta que dava para o átrio da entrada, já sabia o que o esperava. O telefonema fora feito um minuto antes, quando estava sentado na Sala com a equipa. Era da recepção. Tinha um visitante. Sebastian Bergman.

Torkel explicara que estava ocupado e que o seu visitante teria de esperar. A recepcionista respondera que Sebastian já lhe dissera qual seria a resposta de Torkel e que, se não descesse imediatamente, Sebastian iria começar a contar no átrio da entrada, a quem estivesse interessado, tudo o que sabia acerca de Torkel. Tudo. Com todos os pormenores. Começaria por uma noite húmida no Stadshotell de Umeå com umas gémeas, disse ele. Torkel respondeu que ia a caminho.

A situação não era inesperada. Logo que a notícia foi divulgada e a imprensa começou a emitir a história, Torkel percebeu que iria ter notícias de Sebastian.

Mal tinha conseguido abrir a porta quando Sebastian se aproximou dele.

– É verdade? Vocês têm um assassino em série?

– Sebastian...

– Têm? Ele já matou três vezes? Isto é extremamente invulgar. Tenho de estar envolvido.

Torkel olhou à sua volta. Na realidade, não queria ter uma conversa como aquela na zona da recepção mas também não queria que Sebastian entrasse no edifício.

– Sebastian... – tentou de novo, como se a repetição do nome do seu antigo colega o pudesse acalmar e, com alguma sorte, o ?zesse esquecer o motivo da visita.

– Eu não preciso de fazer parte da equipa se isso te causa problemas. Contrata-me como consultor. Como da última vez.

Torkel viu abrir-se uma pequena nesga que lhe permitia escapar. Um pequeno buraco por onde talvez conseguisse rastejar.

– Não posso fazê-lo – disse com ?rmeza. – Sabes quanto nos iria custar? Não me vão atribuir recursos adicionais para te contratar.

Sebastian ?cou sem saber o que dizer. Limitou-se a olhar para Torkel durante alguns segundos, tentando averiguar se o ouvira correctamente.

– A sério que não estás a tentar usar a tua organização inútil e as tuas miseráveis ?nanças como um motivo para me manteres afastado? Pelo amor de Deus, Torkel, de certeza que consegues fazer melhor do que isso.

Sim, conseguia, percebeu Torkel. Ou devia ter sido capaz de o fazer. Mas optara por aquele caminho e tencionava segui-lo um pouco mais, embora tivesse a certeza de que era um beco sem saída.

– Podes pensar o que quiseres, mas é verdade. – Desta vez a sua voz não era tão ?rme. – Não tenho dinheiro para te pagar.

O olhar que Sebastian lhe lançou foi quase de desapontamento.

– Claro que tens. Eu trabalho de graça. Como da última vez. A sério, Torkel, se não me queres tens de arranjar algo melhor do que essa ideia de que te iria prejudicar as ?nanças.

– Sebastian...

– Ao menos deixa-me dar uma olhadela ao caso. Com certeza que isso não irá fazer mal. É o que eu faço, foda-se!

Torkel ?cou ali de pé, em silêncio. Não importava o que ele dissesse. Sebastian não tencionava ouvi-lo.

– Está bem, da última vez a equipa ?cou um pouco enervada com a minha presença, mas se andas a lidar com um assassino em série seria uma falta de pro?ssionalismo não me contratares.

Torkel deu meia-volta, pegou no seu cartão-passe e inseriu-o. A porta abriu-se com um estalido. Torkel empurrou-a para trás. Sebastian interpretou o gesto como um sinal evidente de que a conversa terminara e mudou de táctica.

– Ando a tentar ter mão na minha vida, Torkel. Ando mesmo a tentar, mas preciso de um emprego.

Torkel pensou durante um segundo. Não ficou impressionado com a declaração de Sebastian de que andava a tentar controlar a sua vida; ele também já tentara a mesma frase em Västerås. Pelo que Torkel podia ver, naquela ocasião juntar-se à equipa não tinha feito qualquer diferença para ele. No entanto, a outra observação... Talvez fosse um sério erro de avaliação pro?ssional não recorrer aos conhecimentos de Sebastian. Sobretudo tendo em consideração quem o assassino andava a imitar. Tinham morrido três mulheres. Toda a equipa estava convencida de que seriam mais. Não estavam mais perto de efectuar uma prisão do que há um mês. Não era sua obrigação fazer tudo o que podia para acabar com aqueles homicídios? Virou-se de novo para Sebastian.

– Vou deixar-te entrar. Por esta porta. Não para a investigação.

– E o que é suposto fazer quando passar pela porta?

– Primeiro tenho de falar com a equipa.

– Sobre mim?

– Sim.

– O que vão fazer? Uma votação?

– Sim.

Sebastian enfrentou o olhar sério de Torkel e percebeu que o outro homem não estava a brincar. Abanou a cabeça num gesto de concordância. Um passo de cada vez. Se já tinha chegado até ali, seria preciso muito mais para se livrarem dele.

 

Torkel entrou de novo na Sala. Os outros estavam sentados no mesmo sítio em que os havia deixado. As canecas de café tinham sido cheias até ao cimo. Incluindo a sua.

– Também trouxe café para ti; não tinha a certeza se o querias cheio – disse Ursula quando ele puxou a sua cadeira e se sentou; foi como se ela lhe tivesse lido os pensamentos.

– Obrigado. – Sorriu para ela. Ela retribuiu o sorriso. Um sorriso que Torkel optou por interpretar como mais do que uma mera simpatia entre colegas. E que o levou a pensar, uma vez mais, se a sua relutância em recrutar Sebastian se baseava verdadeiramente em puro egoísmo.

– Eu estava a dizer que recebemos um resultado preliminar da amostra de ADN do Wahlström – prosseguiu Ursula. – Não é ele.

Torkel abanou a cabeça. Nunca tivera grandes esperanças em Carl Wahlström. Talvez parecesse estranho, mas sempre lhe parecera demasiado fácil. Quando apanhassem o homicida que procuravam, não seria por ele ter enviado uma carta onde se denunciava. Torkel deixou os seus pensamentos deambularem de novo para longe do caso. Se algo se passasse entre ele e Ursula, não tencionava estragar tudo cometendo o mesmo erro que da última vez. Havia regras no que dizia respeito ao seu relacionamento e fora Ursula quem estabelecera setenta e cinco por cento dessas regras.

Apenas no trabalho.

Nunca em terreno caseiro.

Sem planos para o futuro.

E Torkel acrescentara mais uma regra da sua própria lavra: tinha de lhe demonstrar uma lealdade inabalável.

As duas primeiras regras eram na verdade a mesma, mas agora ela própria é que tomara a iniciativa de as quebrar. Fora ao seu apartamento. Ideia dela. Não dele. Talvez ela até pudesse considerar alterar também a terceira regra...

– Quem estava ao telefone? – quis saber Vanja.

Torkel virou-se para ela. Se queria ter um futuro com Ursula, tinha a certeza de que jamais devia quebrar a quarta regra, a tal que ele havia acrescentado depois de Västerås. Permanecer sempre leal. Por isso, pigarreou e inclinou-se para a frente quando disse:

– Era o Sebastian. Ando a pensar se hei-de trazê-lo para a investigação.

A reacção foi mais ou menos a esperada. Vanja e Ursula trocaram de imediato um olhar que deixou muito claro o que ambas pensavam acerca da sugestão, acerca de Sebastian. Billy recostou-se na cadeira, com um leve sorriso nos lábios.

– Estou bem ciente dos pontos de vista de Ursula e de Vanja nesta matéria – prosseguiu Torkel –, mas não vos sugeriria isto se não achasse que o Sebastian pode ajudar-nos.

Vanja respirou fundo e parecia prestes a falar, mas Torkel impediu-a com um gesto.

– Também sei que tudo o que pudermos ganhar por tê-lo aqui iremos perder no que toca a irritação, a uma ocasional perda de concentração e à possibilidade de uma redução na e?ciência. Por isso, desta vez quero que todos concordemos em trazê-lo para cá.

– E se não concordarmos? – perguntou Vanja.

– Nesse caso, não o trazemos.

A sala ?cou em silêncio. Uma vez mais Vanja e Ursula trocaram olhares, como para determinar qual das duas impediria Sebastian de entrar pela porta. Uma delas teria esse prazer ou deviam partilhá-lo entre ambas?

– Não tenho qualquer problema com a ideia – disse Billy repentinamente. – Penso que poderia ser útil.

Vanja olhou para ele com irritação. Mas que brincadeira era a dele?

Billy enfrentou o olhar de Vanja.

– A?nal, ele é um especialista em assassinos em série e nós andamos à procura de um assassino em série.

Vanja não falou; arrastou abruptamente a cadeira para trás e dirigiu-se ao quadro branco. Examinou as fotogra?as, embora já estivesse familiarizada com todos os pormenores. Torkel viu que ela estava a morder o lábio inferior e assumiu que não era o único a sentir-se dividido entre a opinião pessoal e uma decisão pro?ssional. Vanja virou-se de frente para ele.

– Acreditas realmente que temos mais hipóteses de apanhar a pessoa que anda a fazer isto se o Sebastian estiver connosco?

Fez um gesto em direcção às fotogra?as das mulheres assassinadas que estavam atrás de si. Era uma pergunta razoável. Se Torkel pusesse de lado os seus próprios sentimentos e considerasse o assunto com objectividade, só podia haver uma resposta.

– Sim.

Vanja abanou a cabeça e regressou à sua cadeira.

– Então, temos de concordar em discordar. Desculpa.

Torkel olhou para Ursula, que estava recostada no seu assento, com os braços cruzados no peito e o olhar ?xo no tampo da mesa.

– Com o Wahlström fora de cena não temos nada. Se tivéssemos algo, por mais pequeno que fosse, diria que não, nem num milhão de anos. – Ursula levantou a cabeça e ?tou Torkel. – Mas não temos nada.

– Portanto, no que te diz respeito ele é bem-vindo?

– Não, mas se me estás a perguntar se acho que pode dar um contributo válido para a investigação, então a resposta é sim.

A sala ?cou em silêncio.

Vanja pôs-se novamente em pé.

– Ele é um desastre ambulante.

– Se não funcionar, corremos com ele – disse Billy, olhando para Vanja e para Ursula. – Não se portou mal de todo em Västerås, pois não? E tu própria disseste que achas os seus livros bons.

Vanja lançou um olhar penetrante a Billy. De certeza que algo lhe tinha acontecido. Ao ?m de alguns segundos, ela cedeu.

– Se vocês os três acham que ele pode realmente melhorar as nossas hipóteses, então não há nada para discutir, pois não? Tragam -no.

– É o que tu queres?

Ela abanou tristemente a cabeça.

– Não, mas estou preparada para o aceitar. Não vou ser eu a provocar divisões nesta equipa. O Sebastian é perfeitamente capaz de o fazer sem a minha ajuda.

– Se não der resultado, fazemos como diz o Billy e corremos com ele – prometeu Torkel, dirigindo o comentário a Vanja.

Ursula soltou uma risada breve e seca, a qual deixou muito claro que não acreditava nele nem por um momento.

Torkel optou por não reagir e dirigiu-se para a porta.

– Vou buscá-lo.

Foi mais fácil do que ele pensou. Muito mais fácil.

O que, infelizmente, era um indício do pânico que todos sentiam.

 

Sebastian entrou na Sala e foi direito ao quadro branco sem se dar ao trabalho de os cumprimentar. Parecia excitado, pensou Torkel. Como uma criança na véspera do Natal.

Sebastian parou frente às fotogra?as e examinou-as rapidamente. Não faziam qualquer sentido. Estavam a gozar com ele?

– Estas são novas?

– Sim.

Virou-se para o quadro e examinou de novo as fotogra?as, desta vez com mais atenção. Pelo que podia ver os homicídios eram uma imitação até ao mais ín?mo pormenor, mas naquele momento também conseguia perceber as diferenças.

Quartos diferentes.

Mulheres diferentes.

Um imitador.

Olhou para Torkel, desta vez mais furioso do que desnorteado.

– Por que raio não me chamaram quando encontraram a primeira?

– Não é o Hinde – disse Vanja.

– Eu sei que não é o Hinde, mas é alguém que está a tentar imitar os crimes dele o mais ?elmente possível. São praticamente idênticos! Vocês deviam ter-me chamado logo.

– Porquê? – interrompeu Vanja num tom de desa?o.

Ela ?cara incomodada assim que Sebastian entrara pela porta. Nem uma palavra acerca de como ?cara satisfeito ou agradecido por estar de volta. Nenhuma observação bem-educada, nenhuma pergunta para saber como estavam. Nada do que uma pessoa normal teria feito na sua situação. Limitara-se a entrar por ali dentro como se tivesse todo o direito a ser um membro da equipa. Isso deixara-a furiosa. E também aquele sorrisinho travesso que exibia, como se ela fosse um pouco estúpida. O mesmo sorriso que Carl Wahlström lhe havia mostrado.

– Porque pensas que será? – respondeu Sebastian. – Eu sei mais acerca do Hinde do que qualquer outra pessoa.

– E o que tem isso a ver com o assunto? – Vanja decidiu teimar. Há quanto tempo estava Sebastian ali? Dois minutos? E já assumira o controlo da reunião, da sala, de toda a investigação. Estava na altura de o reclamar. – Trata-se de alguém que tem um motivo completamente diferente. Tudo o que possas saber a respeito do Hinde não nos ajuda neste caso.

– O que eu sei sempre é alguma ajuda. Caso contrário, não me teriam trazido. Não estou aqui porque acham que sou uma pessoa encantadora. Portanto, alguém pode dizer-me o que já têm?

Billy levantou -se.

– Eu posso pô-lo ao corrente da situação.

Sem esperar por qualquer resposta, Billy foi até ao quadro. Torkel olhou para Vanja, que encolheu os ombros.

Sebastian puxou uma cadeira e sentou-se ao lado de Ursula.

– É bom ver-te – sussurrou-lhe. Ursula lançou-lhe um olhar que sugeria que esse prazer estava longe de ser mútuo. – Sentiste a minha falta? – Ela abanou a cabeça e virou a sua atenção para Billy, que apontava para um retrato de uma das mulheres com cerca de quarenta anos, olhos castanhos por baixo de uma franja farta, que sorria directamente para a câmara.

– Vinte e quatro de Junho. Maria Lie em Bromma. Solteira. Uma amiga ?cou preocupada por ela não lhe ter falado nem ter ido trabalhar após o ?m-de-semana do solstício de Verão. – Billy deslocou o dedo do retrato para uma fotogra?a da cena do crime. – Amarrada com meias de nylon, deitada de barriga para baixo na cama. Violada e morta com uma terrível facada que lhe cortou a traqueia e a artéria carótida.

Sebastian abanou a cabeça. Todos os pormenores eram familiares. Parecia que tinha recuado no tempo. Mentalmente começou a recapitular o que na realidade sabia acerca dos homicidas imitadores. Houve alguns, mas poucos que imitassem assassinos em série. Era mais vulgar nos casos de massacres em escolas ou em instalações universitárias, ou quando alguém imitava assassinatos individuais e violentos que vira em ?lmes ou jogos. Não havia dúvida de que o imitador sentia um fascínio doentio pelo original, mas o que mais? Tratava-se de um distúrbio psicológico, obviamente, mas de um tipo diferente. Enquanto o homicida em série conseguia com frequência manter uma aparência de normalidade, de «vulgaridade», o imitador era no geral uma personagem mais invulgar. Mais retraída. Com uma má imagem de si próprio. Baixa auto-estima. Um produto da educação que recebera.

Como sempre.

Uma pessoa que, tal como o homicida que andava a imitar, conseguia ultrapassar os limites e recorrer à violência extrema mas não era su?cientemente forte para tomar a iniciativa nem su?cientemente imaginativo para de?nir um método e escolher as vítimas por conta própria. Precisava de um modelo. Isso era evidente em tudo o que fazia. O homem que procuravam tinha um per?l muito discreto.

– Nenhuns sinais de entrada forçada – continuou Billy. – Parece que ela, tal como as outras, deixou o assassino entrar. No entanto, há sinais de luta no interior do apartamento. No local foi encontrado esperma, pêlos púbicos e impressões digitais.

Colocou o dedo em cima de outra fotogra?a. Uma mulher loura, entre os quarenta e cinco a cinquenta anos. Olhos azuis. Uma pequena cicatriz no lábio superior, provavelmente devido a uma operação para corrigir o lábio leporino quando era criança. Nenhumas semelhanças óbvias com a primeira vítima. Uma ideia começou a germinar na cabeça de Sebastian quando olhou para ela, mas foi demasiado pequena e fugaz para a conseguir apreender.

– Quinze de Julho. Jeanette Jansson Nyberg, em Nynäshamn. O marido e os ?lhos chegaram a casa após uma viagem para jogarem futebol e encontraram-na. Escrevera no seu blogue que iria ?car sozinha durante todo o ?m-de-semana, «para relaxar». Talvez o assassino soubesse quando devia atacar.

– As outras escreviam algum blogue? A Maria Lie? – perguntou Sebastian.

Billy abanou a cabeça.

– Não, mas tinha conta no Facebook, claro, e apresentava-se como solteira.

Sebastian assentiu. Estava pasmado com a quantidade de informações que as pessoas se dispunham a partilhar com estranhos. Hoje em dia os assaltantes não precisavam de se dar ao trabalho de descobrir quando é que uma propriedade estava vazia; o proprietário disponibilizava alegremente essa informação através do seu blogue, ao escrever sobre como iriam ser maravilhosas as próximas férias ou a próxima viagem. O mesmo se aplicava no que dizia respeito às informações pessoais. Solteira equivalia a sozinha, o que signi?cava vulnerável.

– Encontrámos uma pegada no canteiro de ?ores ao fundo dos degraus – interveio Vanja. – Não correspondia à do marido nem dos ?lhos. O esperma era da mesma pessoa que esteve com a Maria Lie.

– Então ele deixa provas deliberadamente?

– Parece que assim é – respondeu Torkel. – Ou então é invulgarmente incompetente. Mas se fosse assim tão inútil já devia ter lidado connosco, o que não aconteceu.

– De certeza que já teve algum contacto com a polícia. – Sebastian abanou a cabeça, parecendo incomodado. – Em geral os imitadores têm algum tipo de cadastro criminal. É extremamente raro começarem logo a matar.

– O facto de deixar provas forenses signi?ca alguma coisa? – perguntou Billy.

Sebastian olhou para ele. Será que havia algo de diferente nele? Da última vez Billy sentira-se contente por assumir a responsabilidade dos aspectos da investigação relacionados com a tecnologia – câmaras de vigilância, telemóveis, registos de chamadas – e era a ele que todos recorriam quando achavam que a resposta a determinada pergunta se encontrava num qualquer computador. Mas daquela vez parecia mais empenhado em questões acerca das quais antes nem sequer teria qualquer opinião. De um modo geral, parecia muito mais desperto do que da última vez em que trabalharam juntos.

– É uma demonstração de poder: vocês não me conseguem encontrar apesar de deixar algumas pistas... Isso faz com que se sinta mais esperto do que a polícia. Também é uma maneira segura de ter a certeza de que todos os crimes que cometer estão ligados a ele. No futuro, nenhum advogado inteligente conseguirá roubar-lhe o seu triunfo.

– Então ele quer ser apanhado? – perguntou Vanja, mostrando -se extremamente duvidosa.

– Não, mas se for mesmo apanhado quer ter a certeza de que o assunto não ?ca por ali.

– Seja como for... – Billy prosseguiu o seu sumário interrompido. – Mesmo modus operandi. Mesma camisa de dormir. – Deslocou o dedo para a terceira mulher no quadro. De novo cabelo escuro. – Anteontem. Katharina Granlund. Mesmos vestígios, mesmo modus operandi, tudo igual. E é o que temos. – Billy sentou -se.

Sebastian inclinou-se para a frente.

– Ele está a acelerar o ritmo.

– Isso é importante?

– O Hinde tinha um período de arrefecimento bastante consistente. Tornou-se apenas ligeiramente mais curto.

– O que é um período de arrefecimento? – perguntou Billy.

– O tempo entre os homicídios. – Sebastian levantou-se e começou a andar pela sala. Vanja observava-o com uma aversão indisfarçável. Ele apercebeu-se de que quase nem pensara nela desde que entrara na sala. O caso arrebatara-o de imediato, pondo tudo o resto de lado. Havia ligações ao Hinde. Havia ligações ao Sebastian de antigamente.

Ao Sebastian melhor.

O melhor.

– Os homicidas em série ?cam quietos após um homicídio. Em parte porque têm realmente medo de ser apanhados, e por vezes sentem culpa e remorsos por terem vivido as suas fantasias, mas acima de tudo trata-se apenas de um período de acalmia. Até o desejo, a compulsão, regressarem. O ciclo torna-se mais curto, mas não tanto quanto este. – Parou e gesticulou em direcção às fotogra?as que estavam no quadro. – O homem que fez isto não re?ecte posteriormente. Não está a passar pelas várias fases.

– E o que signi?ca isso? – Billy de novo. Não havia dúvida de que estava mais desperto.

– Signi?ca que para ele o acto de cometer homicídio não é uma compulsão. Considera-o uma tarefa. Algo que tem de ser feito.

– Como podemos pará-lo?

Sebastian encolheu os ombros.

– Não sei. – Virou-se para Torkel. – Preciso de visitar os locais dos crimes. Pelo menos o mais recente, o de anteontem.

– Nós já revistámos aquilo, como imaginas – interveio Ursula antes de Torkel ter tempo para falar. – Se quiseres saber algo só precisas de perguntar.

– Escapou-vos qualquer coisa. Caso se trate de um verdadeiro imitador.

Ursula sentiu a irritação fervilhar dentro de si. Não lhe escapara nada. Desde que trabalhava, primeiro no laboratório forense nacional em Linköping e depois com a Riksmord, nunca lhe escapara nada. Como era evidente, Sebastian sabia-o.

– O que é que nos escapou? – Ela quase conseguiu impedir que a raiva crescente se manifestasse na sua voz.

Sebastian não respondeu; limitou-se a virar-se para Torkel.

– Posso visitar o local ou não?

Torkel suspirou. Naquele momento já conhecia Ursula muito bem. Pôr em causa a sua competência pro?ssional não era algo que ?casse impune. Podia ter alguns defeitos e fraquezas mas era a melhor no que fazia, e que Deus tivesse piedade de quem pretendesse o contrário. Torkel teve a sensação de que ela já se arrependera do facto de não se ter oposto à ideia de recrutar Sebastian.

– Vanja, leva o Sebastian a Tumba.

Vanja ?cou hirta. A sua expressão, todo o seu corpo, revelavam o que achava da ideia de passar algum tempo a sós com Sebastian Bergman dentro de um carro.

– Tenho de ir?

– Sim, tens.

– Pronto, então vamos lá – disse Sebastian com um grande sorriso enquanto empurrava a porta para sair. Deu por si a experimentar uma sensação que não conhecia desde há muitos, muitos anos, enquanto Vanja se levantava com relutância da sua cadeira.

Excitação.

Estava de novo a trabalhar e, logo no primeiro dia, ia passar algum tempo a sós com a sua ?lha dentro de um carro.

Arranjar uma vida antes de poder fazer parte de outra.

Tinha a sensação de que aquele caso podia realmente ser o caminho onde iria dar os primeiros passos do seu regresso.


SENTARAM-SE EM SILÊNCIO dentro do Volvo azul-escuro. Vanja saiu do parque de estacionamento subterrâneo pela Fridhemsplan, parou por instantes na barreira de segurança para mostrar a identi?cação e depois virou para a Drottningholmsvägen. Sebastian olhou atentamente para ela. O seu mau humor não deixava margem para dúvidas. Tudo o que fazia era dominado pela irritação – as mudanças de velocidade, as agressivas mudanças de faixa de rodagem, o olhar que lhe lançou quando abriu a janela e deixou que o Verão quente e húmido entrasse no carro.

– O ar condicionado não funciona se a janela estiver aberta.

– Oh, não faz mal, não se pode ter tudo.

Ele pendurou o braço para fora da janela aberta. Gostava da sua franqueza. Isso tornava-a real. Viva. Forte.

Observara-a à distância durante tanto tempo que estar tão perto dela quase o entontecia. Não conseguia lembrar-se da última vez em que se sentira tão satisfeito, tão calmo. Por mais furiosa que estivesse, desejava que aqueles momentos a sós com ela no carro pudessem durar para sempre. Até o trânsito de Estocolmo pareceu harmonioso durante algum tempo. Seguiram para sul, ao longo da E4, sem trocar uma palavra. Quando chegaram às ilhas Essingen[13] não conseguiu manter-se calada por mais tempo.

– Tu és masoquista?

Sebastian foi arrancado ao seu devaneio. Virou-se para ela, sem realmente compreender a pergunta.

– O quê...? Não.

– Então porque voltaste? – Os seus olhos brilhavam de raiva. – Porque insistes numa situação sabendo que ninguém gosta de ti?

– O Billy gosta de mim.

– O Billy não desgosta abertamente de ti.

– É a mesma merda com outro nome. – Sebastian permitiu-se um pequeno sorriso. Ela acreditava mesmo que as acções dele eram ditadas pelo que as pessoas pensavam a seu respeito?

– Estás tão habituado a ser odiado que te sentes contente com as pessoas que te toleram?

– Provavelmente.

– Se não fosses tão sacana quase podia sentir pena de ti.

– Obrigado. – Brindou-a com um olhar de gratidão. Reparou que isso a deixou ainda mais irritada. Era uma sensação estranha, a de estar tão perto dela e, no entanto, ser o único a dispor de uma imagem completa e exacta da situação.

Havia muita coisa que queria saber a respeito dela. Quais eram os seus sonhos? Em que pensava quando se sentava à mesa do pequeno-almoço pela manhã? O que a fazia rir quando estava com o homem que pensava ser seu pai? Conseguiria ele alguma vez conhecê-la daquela maneira?

– Pára com isso – disse-lhe com uma fúria repentina enquanto ele continuava a perscrutá-la.

– Paro com o quê?

– Pára de olhar para mim dessa maneira!

– Como?

– Dessa maneira. Como estás a fazer agora. Nem sequer quero saber em que estás a pensar.

– Nunca irias adivinhar...

Vanja lançou-lhe um olhar furioso; parecia quase enojada.

Sebastian virou-se para a frente. Sem se aperceber ela chegara perto da verdade, abeirara-se desta sem saber, sem pensar. De certo modo, apeteceu-lhe continuar a tactear o impossível. A ideia era difícil, as palavras ainda mais.

– Se nos tivéssemos conhecido numa outra... – Calou-se. Recomeçou. – Num outro momento das nossas vidas. O que quero dizer é que existe uma razão para tudo, e...

Ela interrompeu -o.

– Sebastian?

– Sim?

– Cala essa boca.

Ele calou -se.

Ela pisou o acelerador.

Não falaram durante o resto da viagem.

 

O número 19 de Tolléns väg era uma das muitas casas encantadoras e bem cuidadas de uma das muitas zonas residenciais nos arredores de Estocolmo. Tinham sido investidas muitas horas de dedicação e afecto naquele jardim, reparou Sebastian, mas além disso não havia nada de invulgar no local. Apenas o vistoso sinal amarelo na porta da frente denunciava o facto de que ocorrera ali uma tragédia: LOCAL DE CRIME. ENTRADA PROIBIDA. Vanja foi a primeira a subir os degraus e abriu a porta. Sebastian estava com menos pressa e deixou-se ?car no carreiro muito bem varrido a olhar para a casa. Dois pisos. Telhado vermelho. Amarela com caixilhos brancos nas janelas. Asseada e arrumada, com cortinas nas janelas e plantas em vasos brancos. Até há poucos dias morara ali um casal com sonhos e aspirações. Podiam não querer dar nas vistas. Mas queriam viver.

Vanja abriu a porta e olhou para ele.

– Vens?

– Claro. – Sebastian aproximou-se dela e entraram. Estava um calor opressivo e sentia-se um cheiro a mofo, quase doce e metálico. Ela deve ter sangrado muito, pensou Sebastian, como se o cheiro ainda pairasse no ar.

– Onde é o quarto?

– Foi assassinada no piso de cima. O que procuramos?

– Quero ver o quarto primeiro.

Vanja fez um gesto de irritação com a cabeça e indicou-lhe o caminho.

– Subimos por aqui.

Começaram a subir as escadas sem fazer barulho. Era sempre assim. A morte tinha o poder de atenuar as vozes, de abrandar o movimento das coisas. Chegaram ao quarto e detiveram-se junto à porta. A divisão estava decorada com um bonito papel de parede amarelo e texturizado com um padrão agradável. As cortinas estavam fechadas; a roupa da cama fora removida, mas a grande mancha escura que se espalhara pelo colchão de casal dizia tudo. Sebastian entrou vagarosamente no quarto e olhou em redor.

– Então o que nos escapou? – Vanja mostrou-se impaciente.

– Um quarto pequeno, um cubículo ou um armário – respondeu Sebastian, agachando-se ao lado da cama.

Vanja olhou para ele com um ar de enfado e apontou para a porta branca de correr situada no outro lado do quarto.

– Há ali uns roupeiros.

Sebastian abanou a cabeça, sem sequer olhar para o local.

– Têm de poder ser fechados à chave pelo lado de fora. – Deixou-se ficar onde estava e olhou em redor do quarto. Na mesa-de-cabeceira havia alguns livros de bolso à frente de uma fotogra?a a preto e branco, que mostrava um casal sorridente, numa moldura de prata. Salpicos de sangue no vidro. Richard e Katharina Granlund. Reconheceu-a do retrato na reunião da sede. Pegou na fotogra?a.

– Muito bem, então o que é suposto haver neste armário? – ouviu perguntar junto à porta.

Sebastian não respondeu, mas continuou a olhar para a fotogra?a que tinha na mão. Eles estavam em pé numa praia qualquer e pareciam felizes e apaixonados. A mulher estava abraçada ao homem, que olhava directamente para a câmara. Parecia ser em Gotland ou talvez em Öland. Uma praia de seixos algures. Um Verão não há muito tempo. Ou há uma vida no caso do marido enlutado. Pousou a moldura com cuidado. Um pensamento.

Ténue.

Fugaz.

Sebastian estendeu de novo a mão para a fotogra?a.

– Eu perguntei o que é suposto haver neste armário.

Vanja começava a sentir-se incomodada. Sebastian decidiu esquecer a fotogra?a; endireitou a cabeça e olhou para ela.

– Comida.

Vanja regressou ao piso de baixo enquanto Sebastian veri?cava metodicamente o andar superior. Havia mais três divisões; uma parecia ser o escritório partilhado pelo casal, onde havia uma impressora e uma fotocopiadora. Presumiu que Billy já tivesse levado o computador. Ao longo de uma das paredes uma estante continha de tudo, desde romances de Tom Clancy a livros de culinária, todos muito bem arrumados. Sebastian não encontrou o que procurava e regressou à pequena sala de estar.

De passagem olhou para a casa de banho, que parecia ter sido renovada há pouco tempo. Branca, limpa, azulejos do chão ao tecto, com chuveiro e banheira de hidromassagem. Com uma dimensão decente, ao jeito das casas de banho muito apreciadas pelos casais modernos. Mas não tinha o que ele procurava. O quarto de vestir seria mais adequado para aquele efeito mas não podia ser fechado pelo lado de fora.

Desceu. A cozinha ?cava na parte detrás da casa e dava acesso a um grande pátio, atrás do qual se estendia o jardim muito bem tratado. A cozinha tinha um aspecto tão leve e fresco como a casa de banho: ampla e agradável, com portas brancas nos armários e bancadas de granito preto. Uma ilha ao centro, com dois bancos de bar dos lados. Havia alguns pratos no escorredor da louça, mas fora isso estava surpreendentemente limpa e arrumada. Ele preparava-se para se dirigir à sala de jantar quando Vanja o chamou.

– Sebastian! – Parecia estar a alguma distância. Gritou de novo. – Sebastian!

– O que é?

– A cave!

As escadas da cave estavam junto à porta da frente e demorou algum tempo a encontrá-las. Uns degraus escuros e estreitos davam acesso à penumbra. Embora os Granlund tivessem aí colocado alguns cartazes de arte moderna, era evidente que aquela parte da casa não fora uma prioridade. Já não havia cores brilhantes nem acabamento perfeito. Sentia-se uma ténue fragrância de adega, mas isso era quase preferível àquele cheiro adocicado que invadia o resto da moradia. Ao fundo das escadas situava-se o que outrora fora uma sala de lazer mas recentemente parecia ser utilizada sobretudo como arrecadação. O tecto era baixo, e Sebastian teve de se agachar para passar por baixo dos canos para a água quente. Uma janela no topo de uma parede propiciava uma pequena quantidade de luz e havia um modesto candeeiro de pé a um canto do aposento. Vanja estava de pé frente a uma porta de armário já muito gasta e exibia um olhar provocador. A luz amarelada do candeeiro por trás dela fazia os seus cabelos parecerem ?os de ouro. Apontou para a porta. Na fechadura estava uma vulgar chave de interiores.

– Que tal isto? Pode ser o que procuramos?

– Já abriste?

– Não, pensei que quisesses ser tu a fazê-lo. – Afastou-se para um lado a ?m de o deixar passar. – E espero que não demores muito tempo a explicar-me o que estamos a fazer aqui.

Sebastian olhou para a porta, e depois para Vanja.

– Na verdade, espero estar enganado.

– Não esperas nada.

Ele não teve coragem para lhe responder; estendeu a mão e tentou rodar o puxador. A porta estava trancada. Com a outra mão, rodou a chave. Empurrou de novo o puxador para baixo e a porta abriu-se. O interior estava escuro; a luz do candeeiro situado atrás deles não tinha muito alcance. No entanto, foi su?ciente para distinguir a forma dos objectos no chão. Sebastian sentiu todo o corpo a ?car hirto. Os seus dedos tactearam o interruptor da luz, que sabia estar algures na parede do lado de dentro da porta. Encontrou-o, e a luz branca da lâmpada nua transformou a sua crescente ansiedade em realidade.

Perfeitamente arrumado.

Um refrigerante.

Um pacote de bolachas Maria.

Duas bananas.

Uma barra de chocolate.

Uma garrafa de cloro vazia.

Era ele. Era ele.

O Hinde.


ESTAVAM DE NOVO na Sala. Vanja afixava as fotografias que tiraram em casa dos Granlund. Sebastian andava em círculos. Inquieto. Enervadíssimo. De todas as coisas que poderiam voltar a assombrá-lo, jamais pensara que Hinde fosse uma delas.

– O nosso homem possui informações acerca do modus operandi do Hinde e só pode ter adquirido essa informação de uma maneira – disse Sebastian quando todos os outros já estavam sentados.

– Pelos teus livros? – perguntou Ursula. Também fora esse o primeiro pensamento de Vanja quando discutiram a sua teoria dentro do carro, durante o regresso de Tumba.

Sem parar de andar, Sebastian deu a Ursula a mesma resposta que já havia dado a Vanja.

– Os meus livros só diziam que ele tinha uma provisão de víveres. Não especi?cavam quais. Nem como. – Sebastian parou junto ao quadro e bateu com os nós dos dedos na fotogra?a da comida e da bebida, muito bem arrumadas na cave dos Granlund. – O conteúdo e a forma como os objectos estão colocados são exactamente idênticos aos dos víveres de Edward Hinde – prosseguiu. – Isso não está escrito em sítio nenhum. O nosso homem teve contacto com ele.

– Mas como?

Também fora essa a resposta de Vanja à asserção de Sebastian. Sebastian suspirou; não sabia mais naquele momento do que vinte minutos antes, dentro do carro. Não sabia como. Apenas que tinha razão.

– Isso não sei, mas ele só pode ter obtido essa informação pelo Edward.

– Ou por um agente policial que na época tivesse participado na investigação.

A actividade na sala foi interrompida quando todos se viraram e olharam para Billy.

– Como o Hinde não pode comunicar com o mundo exterior, estou só a tentar encontrar outra explicação.

– Quem constituía a equipa de investigação naquela época era o Sebastian, a Ursula, o Trolle Hermansson e eu – disse Torkel com naturalidade. – Três de nós estamos aqui nesta sala, e creio ser altamente improvável que o Trolle tenha decidido reviver os seus dias de glória envolvendo-se no homicídio de mulheres. Mas haveremos de ter uma conversa com ele.

Sebastian ?cou hirto. Poderia Trolle ter algo a ver com aquilo? Ele havia decaído muito, mas a tal ponto? Eventualmente pode ter falado de mais com a pessoa errada enquanto estava bêbado. Na equipa ninguém levava a sério a ideia de que ele estivesse envolvido, mas o que aconteceria se Vanja fosse procurá-lo e começasse a fazer-lhe perguntas? Sebastian sentiu uma tontura. Conseguia imaginar Vanja a falar com Trolle. Trolle a contar-lhe o que Sebastian lhe pedira para fazer. Caramba, Vanja nem sequer precisaria de insistir muito; Trolle era perfeitamente capaz de deixar Sebastian atolado na merda só para se divertir. Sebastian engoliu em seco e tentou concentrar-se na discussão que decorria na sala.

– Eu não disse que era um de vós. Deve ter havido muitos agentes fardados e pessoal forense nos locais dos crimes – persistiu Billy. – Se encontraram a comida, com certeza que algum deles pode tê-la visto.

– Fui eu que encontrei a comida mais tarde. O Hinde falou-me disso. Se a tivéssemos encontrado – Sebastian fez um gesto na direcção dos seus colegas –, então o Torkel e a Ursula também se teriam lembrado, não era? – Sebastian olhou ?xamente para Billy. – Pensa, pelo amor de Deus.

– Estou a pensar. Só estava a tentar imaginar outras possibilidades, nada mais. Pronto, enganei-me.

Vanja olhou para o colega, incapaz de disfarçar a sua surpresa. Era a voz de Billy mas as palavras de outra pessoa. Desde quando é que Billy imaginava outras possibilidades? Ou talvez o ?zesse, mas desde quando lhes chamava isso?

– Podem discutir o assunto com o Hinde amanhã de manhã – interrompeu Torkel. – A vossa autorização para a visita já chegou.

– Qual é o interesse da comida? – perguntou Ursula. – Porque é que a esconde?

– Isso vem nos meus livros – respondeu Sebastian secamente.

– Eu não li os teus livros.

Sebastian virou-se para ela. Ela enfrentou o seu olhar com um sorriso de satisfação. Seria possível? Não lera deliberadamente os melhores livros jamais escritos em sueco acerca dos homicidas em série por uma questão de puro despeito?

– Eu também não – interveio Billy.

Sebastian suspirou. Dar-se-ia realmente o caso de metade da principal equipa de investigação de homicídios do país não ter lido os seus livros? Sabia que Vanja os lera, mas quanto a Torkel? Fitou o seu antigo colega, mas a expressão de Torkel permaneceu impassível. Deve tê-los lido, com certeza. Sebastian suspirou novamente. Falara acerca de Edward Hinde em várias palestras. Conhecia a história de Hinde de uma ponta à outra. Aparentemente, agora iria ter de recapitular tudo de novo. Em todo o caso, numa versão abreviada.

– O Edward cresceu sozinho com a mãe. Ela estava acamada. Doente. Em vários sentidos, infelizmente. Contou-me que se lembrava da primeira vez. Foi numa quarta-feira. Lembrava-se bem do que aconteceu. Regressou a casa depois da escola e...

 

... está de pé na cozinha a preparar uma refeição. As barrinhas de peixe crepitam na frigideira. As batatas estão a cozer dentro de uma panela tapada, tal como ela lhe ensinou. Anseia pelo jantar. Gosta de barrinhas de peixe, e para a sobremesa podem partilhar o que restou do bolo do seu aniversário. Está a cantarolar entredentes. O «A Hard Day’s Night» dos Beatles. A canção que está no topo das tabelas. Mal começara a cortar o tomate quando ela o chamou aos gritos. Pousa a faca e, por precaução, apaga o fogão antes de subir as escadas. Às vezes ela quer que lhe leia qualquer coisa e isso pode demorar. Ele não lê muito bem. Só há pouco tempo é que aprendeu a ler. Vai progredindo lentamente nos livros infantis mais simples, mas ela diz que gosta de lhe ouvir a voz. E é um bom treino. A sua mãe está quase sempre na cama. Só se levanta durante algumas horas por dia. Nos dias bons um pouco mais, nos dias maus muito menos. Esse dia parece ser muito bom. Ela resplandece na sua camisa de dormir enquanto dá um palmadinha convidativa no espaço da cama ao seu lado. Ele aproxima-se e senta-se. É um menino obediente. Obediente e bem-comportado. A escola anda a correr bem. Os professores gostam dele. Ele gosta de aprender coisas novas e acha que é fácil. Tanto a mãe como a professora dizem que é inteligente. Fala-se em pô-lo a fazer os trabalhos de matemática do próximo ano já a partir da Primavera. A mãe diz que ele se transformou num menino muito crescido. Que é um menino muito bom. Acaricia-lhe o braço e pega-lhe na mão. Ele é o seu menino crescido, o seu menino bom. Há outra coisa que ela gostaria que ele lhe ?zesse. Aperta-lhe a mão com mais força e puxa-lha para debaixo dos cobertores. Para o calor. Pousa-lha na sua coxa. Edward dirige-lhe um olhar interrogador. Porque quer a mão dele ali? Por vezes aqueceu as suas mãos en?ando-as entre as coxas quando sentia muito frio, mas naquele momento não tem frio.

 

– Da primeira vez ele tinha acabado de fazer oito anos. Nem sequer compreendia o que estava a acontecer. Como é evidente. Tinha trinta e oito anos quando tudo parou. Por essa altura aquilo já o tinha destruído.

– Durou trinta anos? – Vanja mostrou-se céptica.

– Sim.

– Porque é que ele não a abandonou simplesmente? Nem parou?

Já tinham perguntado o mesmo a Sebastian muitas vezes. A mãe de Edward estava doente, não podia de maneira alguma impedi-lo de partir, e ele tornara-se adulto. Porque ?cara?

– De início ele era muito pequeno. Mais tarde teve muito medo. E a seguir... já tinha ido longe de mais. – Sebastian abanou a cabeça. – Não consigo explicar isto com maior clareza sem entrar em mais pormenores acerca daquilo que faz de nós as pessoas em que nos tornamos, e neste caso isso não iria ajudar. Você não têm imaginação para compreenderem a relação deles.

Vanja limitou-se a aquiescer. Aquela rejeição de Sebastian podia ter um intuito insultuoso mas estava disposta a aceitar o facto. Sentia-se contente por não conseguir imaginar tudo o que aquele solitário rapaz de oito anos havia suportado.

– Ninguém descobriu? Ninguém suspeitou de nada? – Billy inclinou-se para a frente, interessado. – Quero dizer, entre outras coisas isso deve ter afectado o seu rendimento escolar.

— A mãe ameaçou matar-se se ele contasse a alguém. Era essencial que se comportasse de uma maneira perfeitamente normal para que ninguém suspeitasse de nada. Se ?zesse algo minimamente diferente, talvez as pessoas começassem a suspeitar, talvez descobrissem. O curioso é que ele se foi tornando cada vez mais «normal» à medida que aquilo prosseguia. Tornou-se um mestre a lidar com qualquer situação que pudesse surgir. Tinha de ser. Se não ?zesse o que devia, ela morria.

 

A mãe dele está deitada de bruços na cama e puxa a camisa de dormir para cima. Ele nunca lhe vê o rosto. Fica enterrado na almofada. No início explicou-lhe como se devia deitar em cima dela, o que fazer, como se devia mexer. Agora deixou de o fazer. Fica calada. Pelo menos ao princípio. Ele sabe exactamente o que irá acontecer. Não há desvios. Ela grita por ele, pede-lhe que se sente ao seu lado, diz-lhe que é um menino crescido, um menino muito bom, que está muito contente por o ter consigo, que a faz muito feliz. Em seguida, pega-lhe na mão e en?a-lha debaixo dos cobertores. De todas as vezes, tudo acontece exactamente da mesma maneira.

Ao ?m de algum tempo começam os ruídos. Vindos do fundo da almofada. Ele detesta os ruídos. Gostava que desaparecessem. Os ruídos signi?cam que aquilo está prestes a acabar. Não gosta do que fazem. Por essa altura já percebeu que as outras mães não se comportam do mesmo modo. Ele não gosta daquilo. Mas gosta ainda menos do que acontece a seguir. Depois dos ruídos...

 

– Sempre que o obrigava a fazer sexo com ela, a seguir castigava-o. Estava imundo. Sujo. Fizera algo feio e repugnante e a mãe nem conseguia olhar para ele.

 

Tem a cabeça virada para o outro lado quando lhe abre a porta do armário sem janelas situado por baixo das escadas. Ele entra e senta-se no chão frio. Não vale a pena chorar nem pedir que o deixem sair dali. Isso só irá piorar a situação. Ficará aí dentro durante mais tempo ainda. Envolve os joelhos com os braços. Ela fecha a porta sem proferir uma palavra. Não falou desde que fez aqueles ruídos na almofada. E ele nem sequer sabe ao certo se aquilo eram palavras. Está escuro. Ele nunca sabe quanto tempo aí ?ca. Não sabe ver as horas. Ninguém lhe ensinou. Começaram ainda há pouco a aprender isso na escola. Conhece a hora, a meia hora, a hora menos um quarto e a hora e um quarto. Mas isso não interessa porque, de qualquer maneira, não tem um relógio. Às vezes acha que é bom. Se tivesse um relógio, saberia durante quanto tempo ?cava trancado e poderia entrar em pânico. Podia pensar que se tinha esquecido dele. Ou que se fora embora. O abandonara. Assim, o tempo e a escuridão tornam-se uma única coisa. Certa vez a professora disse-lhe que os cães não têm a noção do tempo. Não sabem se ?caram sozinhos durante uma hora ou um dia inteiro. Na escuridão ele é um cão. Perde a noção do tempo. Serão cinco horas ou dois dias? Na verdade, nunca sabe. Limita-se a ?car contente quando a porta se abre. Como um cão.

Ele não compreende. Nunca irá compreender. Faz tudo o que ela lhe diz e, mesmo assim, acaba por ir parar ali. À escuridão e ao frio. Nunca sugeriu que ?zessem aquilo. Nunca foi ideia dele. Ela é que o chama aos gritos. Ela é que lhe puxa a mão para dentro da cama. E, apesar disso, a seguir não consegue olhar para ele. Acha que está sujo. Que é feio. Ele sente fome, mas esta desaparece. A sede é pior. Faz xixi no chão. Preferia não o fazer. Sabe que, a seguir, vai ter de limpar tido. Quando ela abrir a porta. Quando o castigo chegar ao ?m. Às vezes também defeca. Quando ?ca lá muito tempo. Não o consegue evitar. Quando ela não abre a porta durante muito tempo...

 

– Por ?m, deixava-o sair. Estava perdoado mas aquilo ainda não tinha acabado. Precisava de lembrar-se dos seus pecados e, para não os repetir, prendia-lhe no prepúcio uma daquelas grandes molas para papel que só podia retirar quando ela lhe desse autorização.

Todos na sala ?zeram uma careta, Billy e Torkel porventura com um pouco mais de sentimento.

– Eu não acredito. – Era Billy novamente. – Como é possível que alguém se sujeite a tudo isso sem que ninguém perceba? Ele deve ter passado muito tempo sem ir à escola.

– Ela telefonava para lá e dizia que ele estava doente. Asma e enxaqueca. Tirando isso, era bem-sucedido na escola. Apesar de tudo concluiu o ensino preparatório, o liceu e a universidade. Sempre com as melhores notas. A seguir arranjou um emprego de baixo nível, só para ganhar o su?ciente para viver. Como é evidente, possuía quali?cações a mais mas mentia no seu currículo. Mantinha contactos super?ciais. Colegas. O seu quociente de inteligência andava perto dos cento e trinta, por isso de certeza que era inteligente o su?ciente para se fazer passar por «normal» mas completamente incapaz de estabelecer relacionamentos mais profundos que exigissem empatia ou algum tipo de emoção genuína. Se isso acontecesse, ele poderia vir a ser descoberto.

Sebastian fez uma pausa e bebeu um copo de água.

– A mãe dele morreu em 1994. Cerca de um ano depois, Edward começou a procurar outras mulheres. A sua primeira vítima foi uma colega do Instituto Nacional de Saúde e Previdência, que andava nitidamente interessada nele e por vezes tentava meter conversa.

 

Ele está à espera. Numa mão segura o saco que contém a camisa de dormir e as meias. Sabe que ela o quer. Ela tenciona assumir o comando. Quer continuar o que a mãe dele costumava fazer. Quer fazer aquela porcaria. Aquela coisa má. Quer obrigá-lo a fazer coisas que conduzam ao castigo. À dor. À escuridão e à humilhação. Todas elas o querem. Mas ele não tenciona permiti-lo. Não daquela vez.

Toca à campainha. Ela sorri. Ele sabe porquê. Sabe o que ela quer, mas irá ter uma surpresa. Dessa vez será ele a assumir o controlo. Mal acabou de o convidar a entrar quando ele lhe bate. Com força. Duas vezes. Obriga-a a mostrar-lhe o quarto. Despe-lhe a roupa. Veste-lhe a camisa de dormir. Deita-a de barriga para baixo. Amarra-a com as meias. Quando ela já não se consegue mexer, sai do quarto. Pega no saco que contém os seus víveres e a garrafa vazia onde pretende urinar. Procura o local. O local onde ela irá trancá-lo. Encontra-o na cave. Uma fechadura do lado de fora. Escuridão no interior. Arruma no chão as coisas que trouxe consigo. Agora já é capaz de suportar o castigo. Que virá a seguir.

 

– Mas a seguir não há nada. Ele corta-lhes a garganta só para escapar ao castigo.

O telemóvel de Torkel tocou. Todos deram um salto quando o som quebrou o silêncio profundo. Torkel virou-se para o outro lado e atendeu a chamada.

– Mas de certeza que ele sabia que elas não iam sobreviver. – Vanja retomou mais uma vez o ?o à meada. – Porque é que colocava a comida lá?

– Era uma medida de segurança. Para o caso de ela sobreviver contra todas as expectativas e ele ser castigado. Não queria passar fome. Mas, como sabemos, nunca precisava de recorrer aos seus víveres.

Torkel concluiu a breve conversa e voltou para junto da equipa. Pela expressão do seu rosto perceberam que a notícia não era boa.

– Temos uma quarta vítima.


O CARRO de Vanja foi o primeiro a chegar ao local. A patrulha de agentes uniformizados que encontrara o corpo já havia isolado a área no exterior do prédio de apartamentos cinzento, seguindo os procedimentos à letra. Vanja saltou do carro e apressou-se a chegar junto do agente que estava atrás da ?ta azul e branca. Sebastian permaneceu junto ao veículo, a olhar para o prédio. Irritara-a de novo ao tomar como certo que o seu lugar era ao lado dela, no banco da frente, mas Vanja decidira que seria impróprio discutir com ele quando tinham saído em trabalho. Ele podia ser infantil. Ela não iria sê-lo. Estava a trabalhar. Mas quando a situação acalmasse um pouco, iria deixar bem claro a Torkel que daí em diante Sebastian Bergman podia viajar com outra pessoa. Uma alternativa adequada seria o próprio Torkel. A?nal, fora ele quem insistira em ir buscar Sebastian de novo. O agente que estava à porta acenou-lhe quando a reconheceu. Ela também o reconheceu; era Erik qualquer-coisa. Lembrava-se dele como um bom agente, muito organizado e sempre calmo. Depois de a ter colocado ao corrente apenas com algumas frases, não viu qualquer motivo para mudar de opinião. Seguindo as instruções, ele e o colega alertaram imediatamente a Riksmord assim que entraram no apartamento do terceiro andar e encontraram a mulher amarrada e assassinada. Evitaram mexer em alguma coisa e saíram logo do local para isolarem o apartamento e a entrada principal do edifício, de maneira a impedirem qualquer contaminação do local do crime. Vanja agradeceu a Erik e foi ter com Ursula, Billy e Torkel, que haviam acabado de chegar.

– O local está isolado. Terceiro piso. Billy, podes recolher uma declaração pormenorizada do Erik? Ele foi o primeiro a chegar. – Indicou-lhe o agente uniformizado junto ao cordão de isolamento.

– Tu não o podes fazer?

Vanja olhou para ele, espantada.

– Porquê, o que vais fazer?

– Posso subir ao apartamento.

– Fala primeiro com o Erik e depois sobe – interveio Torkel.

Billy engoliu rapidamente um protesto. Uma coisa era lembrar a Vanja de que eram iguais no seio da equipa, algo de que ela por vezes se esquecia, mas outra inteiramente diferente era pôr em causa as ordens do chefe.

– Está bem. – Encaminhou-se para Erik enquanto os outros três entravam.

Sebastian permaneceu em pé junto ao carro. Viu Billy a acenar-lhe, mas não conseguiu decidir o que fazer: ?car ali, preocupado, ou descobrir se os seus tumultuosos pensamentos estavam correctos. Não parecia ser possível. Aquele edifício era grande. Seria absoluta, total e completamente impossível. Havia muitos outros edifícios que tinham exactamente o mesmo aspecto. E mesmo assim não conseguia livrar-se daquela sensação, não conseguia mexer as pernas. Billy acenou-lhe de novo. Irritado.

– Vem cá!

Sebastian não podia adiar aquilo por mais tempo. Embora uma parte de si não quisesse fazê-lo, precisava de ter a certeza. Conseguiu começar a andar e foi para junto de Billy. Iria deixá-lo assumir a liderança. Acompanhar a energia dele.

Entraram no prédio de apartamentos e subiram os degraus de pedra. Billy deslocava-se com rapidez. Sebastian andava cada vez mais devagar. Eram umas escadas cinzentas banais. Havia milhares, dezenas de milhar como aquelas. Anónimas, idênticas, todas se assemelhavam. Porque teriam aquelas em particular algo de especial? Febrilmente, procurou pormenores que pudessem afastar a sensação de pânico que se apoderava dele.

Ouviu Billy chegar ao terceiro andar. Ouvi-o a conversar com alguém lá em cima. Era um agente de uniforme, percebeu quando dobrou a curva das escadas. Estavam em pé diante de uma porta aberta. Avistou Torkel dentro do apartamento, no corredor. Deu mais alguns passos e, a seguir, caiu de joelhos, arquejando com di?culdade.

Recompôs-se o su?ciente para olhar de novo para o interior do apartamento, com uma derradeira e desesperada esperança de estar enganado.

Não estava.

Viu-o deitado no chão da sala de estar.

Um ursinho castanho de pelúcia que ostentava uma roseta vermelha na qual havia uns dizeres. «Para a melhor mãe do mundo.»

 

Torkel colocara umas protecções nos sapatos mas evitara entrar na sala de estar onde se situava a cama. Não havia qualquer dúvida de que estavam a lidar com o mesmo homicida. A camisa de dormir, os braços e as pernas amarradas, a ferida aberta na garganta – tudo apontava para uma só conclusão. Sentia ao mesmo tempo impotência e raiva. Mais uma vítima que não tinham conseguido proteger. Ursula estava em pé no meio da sala, a fotografar metodicamente o local. Sem dúvida que iriam decorrer várias horas até dar por terminada a sua investigação preliminar. Ele e os outros podiam começar a falar com os vizinhos. Tencionava começar pela mulher que chamara a polícia algumas horas antes. De repente, ouviu a voz de Sebastian atrás de si.

– Torkel.

Pareceu-lhe mais fraca do que o habitual. Virou-se para trás e viu um Sebastian empalidecido postado do lado de fora da porta, encostado à parede de betão das escadas. A parede parecia ser a única coisa que o sustinha em pé.

– O que é?

– Preciso de falar contigo. – Sebastian estava praticamente a sussurrar.

Torkel foi ter com ele, e Sebastian fê-lo descer um pouco mais as escadas. Torkel ?cou incomodado; a última coisa de que precisava naquele momento era de um jogo de segredinhos.

– O que queres, Sebastian?

A expressão nos olhos de Sebastian era quase implorante.

– Eu acho que a conheço. Annette Willén, é esse o nome dela?

– Pensamos que sim. Em todo o caso, é essa a pessoa que mora aqui.

Sebastian pareceu perder o equilíbrio por instantes; apoiou de novo o corpo contra a parede.

– Como é que a conheces? – perguntou-lhe Torkel, já menos irritado. Era evidente que Sebastian estava perturbado.

– Frequentámos o mesmo grupo de terapia. Uma vez. Eu só lá fui uma vez... Fizemos sexo.

Claro. Sebastian alguma vez conheceu uma mulher com quem não ?zesse sexo? Torkel duvidava. Normalmente isso não tinha qualquer signi?cado para Sebastian mas naquele momento estava claramente perturbado, o que fez com que Torkel tivesse um mau pressentimento.

– Há quanto tempo aconteceu isso?

– Eu saí daqui pouco antes das cinco.

– O quê? Hoje de manhã?

– Sim.

Todos os sons se esbateram.

– Ora foda-se, Sebastian!

– Lamento muito, eu nem sei... – Sebastian procurava as palavras certas. Não conseguiu encontrá-las. – Quero dizer... que raio devo fazer?

Torkel olhou à sua volta. Viu o agente de uniforme junto de Billy e de Vanja, que discutiam os inquéritos porta-a-porta. Viu Ursula ir buscar um saco preto e trocar de lente para fazer os planos aproximados. A seguir, olhou de novo para o rosto lívido de Sebastian. O homem que ele deixara entrar na investigação – a qual, no que dizia respeito à polícia, acabara de se transformar num pesadelo.

– Vais voltar para a sede. E ?cas lá até eu regressar.

Sebastian assentiu quase imperceptivelmente, mas não fez qualquer tentativa para se mover.

Torkel abanou a cabeça num gesto de frustração e virou-se para o agente de uniforme.

– Preciso que alguém leve este homem para a sede – pode ocupar-se disso, por favor?

A seguir, entrou de novo no apartamento para ir ter com Ursula. Regressou ao terrível crime que antes lhe pareceu bastante complexo mas naquele momento aparentava ser o mais simples dos dois problemas.


SEBASTIAN NÃO SE recordava de muito acerca da viagem de regresso até à Riksmord. Lembrava-se de ter decidido sentar-se na parte detrás do carro. Lembrava-se de que quem conduzia era uma agente do sexo feminino. De certa forma, estava absorto a tentar compreender aquele dia. A sensação de pânico paralisante começou a diminuir quando chegaram a meio do caminho para a sede. O seu processo de raciocínio lógico regressou. Sentiu-se grato por isso. Precisava de conseguir raciocinar. Precisava do seu intelecto. A situação era crítica. Annette Willén estava morta. Assassinada. A grande pergunta que Sebastian quase nem se atrevia a fazer era se tinha desempenhado algum papel no curso dos acontecimentos. Dormira com Annette Willén. Ela fora assassinada pouco tempo depois.

Ele queria acreditar no acaso.

Na coincidência.

Numa reviravolta do destino.

Todo o seu ser desejava que tudo não passasse de um erro. Mas qual seria a probabilidade de o assassino ter escolhido Annette Willén por acaso? Praticamente nenhuma.

Até ao momento não conseguira encontrar qualquer tipo de padrão geográ?co na escolha das vítimas por parte do assassino. Uma em Tumba, outra em Bromma e outra em Nynäshamn. E desta vez em Liljeholmen. As outras mulheres haviam sido assassinadas nas suas próprias casas – duas em moradias de quatro frentes, uma numa casa com terraço. Agora ele atacara num grande prédio de apartamentos, o que envolvia um maior risco de ser descoberto e sugeria com grande probabilidade que aquele ataque não fora aleatório. Infelizmente. Por mais que Sebastian revolvesse as coisas no seu espírito, chegava sempre à mesma conclusão.

Havia alguma espécie de ligação.

Ele e Annette.

Annette e o assassino.

 

Sebastian subiu para a Riksmord. Na verdade, não tinha qualquer plano. Iria esperar por Torkel. Nem sequer sabia se o deixariam ?car naquele local durante muito mais tempo.

Encontrou o caminho para a Sala. Ao menos podia fechar a porta e ?car a sós com os seus pensamentos febris. Entrou e ?cou de pé à frente do quadro onde estavam as fotogra?as e os apontamentos. Contemplou a linha cronológica de Billy e os retratos das vítimas anteriores. Annette Willén não tardaria a juntar-se a elas. Nenhuma era propriamente nova. Todas tinham mais de quarenta anos. Talvez isso tivesse algum signi?cado. Todas elas tinham histórias. Outros padrões possíveis no seu passado. Sabia que Billy já veri?cara tudo, mas em todo o caso tinha de esperar por Torkel e ele poderia demorar horas a regressar. Mais valia que entretanto fosse fazendo alguma coisa. Com um pouco de sorte, o trabalho afastaria os outros pensamentos.

Em cima da mesa estavam os três ?cheiros sobre as vítimas, deixados para trás pela equipa quando saíra à pressa para ir a Liljeholmen. Sebastian sentou-se e puxou as pastas para si. Continham toda a informação disponível acerca de cada uma das mulheres, desde os documentos ?scais o?ciais e os pormenores constantes do registo eleitoral até às provas forenses e a todas as entrevistas, dos entes queridos e pessoas mais próximas aos colegas de trabalho e vizinhos das vítimas. Conseguiria ele encontrar algo em que mais ninguém tivesse reparado? As hipóteses eram ín?mas. Aquela equipa era a melhor da Suécia. Contudo, tencionava tentar.

Precisava de o fazer.

Precisava de tentar compreender.

Começou a ler. A primeira vítima. Maria Lie. Separara-se do marido, Karl, há relativamente pouco tempo, mas o divórcio ainda não fora o?cializado. Havia uma extensa entrevista com o futuro ex-marido; ocupava dez páginas A4. Maria e Karl estavam casados há muito tempo mas a relação não produzira ?lhos e afastaram-se. Maria Lie trabalhava como directora ?nanceira de uma empresa de recrutamento da cidade. Ele trabalhava para a Tele 2, e no ano anterior conhecera uma mulher mais nova com quem iniciara uma relação. Depois veio a descoberta, as discussões e o rompimento, tudo em rápida sucessão. Maria Lie comprara a sua parte da casa a Karl; ele precisava do dinheiro porque a nova parceira estava grávida. Recentemente Maria Lie quisera retomar o seu nome de solteira, Kaufmann, e eles tinham...

Sebastian parou. Leu de novo o nome. Não podia ser.

KAUFMANN.


URSULA ACABARA de tirar fotografias e queria esperar pela chegada da equipa de investigação do local do crime antes de o corpo ser deslocado e examinado. O carro que vinha recolher o corpo ?cara retido no caminho devido a um grave acidente rodoviário, e Ursula caminhou até às janelas da sala de estar para repousar a vista em algo diferente daquele corpo pálido e empardecido e o sangue coagulado em cima da cama.

Lá fora continuava a estar um dia de Verão perfeito, com um límpido céu azul. O Sol escaldante deslocara-se para ocidente e já não refulgia com toda a força em cheio sobre o apartamento, mas no interior daquele quarto abafado o calor continuava a ser sufocante. Ursula abriu cuidadosamente a porta da varanda e saiu para o exterior. Ao menos ali fora estava um pouco mais fresco. A varanda era pequena mas fora tratada com carinho; uma bela roseira trepadeira amarela plantada num vaso de terracota ornamentado cobria a parede de betão. Junto da mesa de bistrô em estilo francês, metálica e pintada de branco, havia duas cadeiras desdobráveis. A única coisa que estava em cima da mesa era um açucareiro azul-claro, com ?ores brancas esguias na superfície de esmalte. Sem dúvida que não tardaria muito até que alguém pegasse nele e se pusesse a pensar no que fazer com aquilo e com o resto das coisas que havia no apartamento. Os objectos que deixamos para trás. Ursula abeirou-se do parapeito e espreitou para o cruzamento de Essinge e a ?oresta verde mais adiante. Observou os carros que aceleravam na auto-estrada com várias faixas. Dentro do apartamento uma vida chegara ao ?m, enquanto lá fora a vida prosseguia a sua correria. Era assim que funcionava. A vida era um rio; por mais que quiséssemos, não a conseguíamos parar. Por mais difícil que isso parecesse à pessoa que fora afectada, a vida prosseguia ali perto.

Respirou fundo, deixando que o oxigénio lhe enchesse os pulmões. Fechou os olhos e pensou. Não havia a mínima dúvida de que se tratava do mesmo assassino. Tudo se encaixava, desde a camisa de dormir, as meias de nylon e a ferida aberta na garganta até à violação por trás. A ?m de ter a certeza absoluta, ela procurara a arrecadação que pudesse ser trancada por fora. Dentro do próprio apartamento não havia nenhuma, mas Ursula assumiu que não devia ter havido grandes alterações desde que ela própria morara num apartamento, embora isso tivesse sido há muitos anos. Tinha de haver uma arrecadação. E havia. Na cave.

Atrás de uma porta de aço encontrou um corredor comprido com o chão de cimento. Lâmpadas nuas colocadas a cada cinco metros iluminavam pequenas áreas de arrumação atrás da rede de arame presa com ripas de madeira. Uma rústica porta de madeira com um ferrolho do lado de fora dava acesso a cada uma das arrecadações. Havia um leve, mas inconfundível, cheiro a mofo.

Ursula passara por todas aquelas gaiolas idênticas até chegar à 19, o número do apartamento de Annette. O cadeado estava partido. Abrira a porta devagar e com cuidado, usando luvas, e espreitara para o interior. Aquele local devia ser considerado como fazendo parte do local do crime. Em comparação com as outras, na arrecadação de Annette havia poucos objectos. A maioria das arrecadações por onde Ursula passara ao longo do corredor estava mais ou menos repleta. A de Annette só continha algumas caixas de papelão, um candeeiro de pé, uma mesa desdobrável e quatro cadeiras de madeira empilhadas umas por cima das outras. Os víveres estavam dispostos ordenadamente no meio do chão: o refrigerante, as bolachas, as bananas, a barra de chocolate, a garrafa vazia para a urina. Estavam perfeitamente alinhados, cada artigo a uma distância precisa do seguinte. Tal como nos outros locais do crime. Ursula, a técnica experiente de locais do crime, estremeceu de súbito; jamais o admitiria aos outros, mas achava aterradora a precisão com que o perpetrador recriava o mesmo arranjo em todos os casos. Agachou-se, pegou numa pequena régua de metal e mediu a distância entre os objectos. Tal como suspeitava: quatro centímetros e meio. Ele devia medi-la em todas as ocasiões, pensou. Isso demorava tempo. Mas ele permitia-se todo o tempo. Era frio a esse ponto. Impassível. Para ele, o importante era fazê-lo bem.

Completar o ritual.

Fazer exactamente o mesmo que Hinde.

Estremeceu de novo.

Os seus pensamentos foram interrompidos quando ouviu Torkel entrar no apartamento. Parecia andar à sua procura; não reparou que estava na varanda e avançou para a pequena cozinha.

– Torkel! – gritou ela, batendo na vidraça.

Ele levantou os olhos e acenou-lhe. Ostentava uma expressão séria. Saiu para a varanda e começou pelas questões simples. Aquilo que conseguia entender.

– Andámos a bater às portas, mas até agora nada. A Annette era uma pessoa pacata, respeitável. Não atraía muitas atenções. Aparentemente, o ex-marido era um sacana, mas ninguém o vê há meses.

Ursula virou-se para a paisagem.

– E quanto à amiga que a encontrou?

– Lena Högberg; mora perto. Tinham combinado almoçar hoje mas a Annette não apareceu. Lena tentou telefonar-lhe durante toda a tarde mas ninguém atendeu.

Ursula acenou com a cabeça em jeito de con?rmação.

– Ela está morta há menos de doze horas.

– É evidente que durante os últimos anos as coisas têm sido muito difíceis para a Annette – prosseguiu Torkel –, por isso a Lena ?cou preocupada e decidiu passar por cá depois do trabalho. Através da abertura da caixa de correio viu umas manchas de sangue no chão...

– Como é que as coisas têm sido difíceis?

– O divórcio, o ?lho foi viver para o estrangeiro, ela perdeu o emprego. Ao que parece, andava muito em baixo. – Torkel observou o trânsito antes de prosseguir. – A Vanja está a investigar o ex -marido.

– Provavelmente é uma boa ideia, mas o assassino é o mesmo. Mais ninguém.

Torkel suspirou fundo. Ursula olhou para ele. Estava com uma expressão particularmente carrancuda, pensou.

– Temos de garantir que fazemos tudo de acordo com as regras – disse ele, talvez mais para si próprio do que para ela. – Nada nos pode escapar.

Ficaram calados por momentos, a olhar para a auto-estrada. Torkel pegou-lhe na mão e ?tou-a. Ela ?cou surpreendida mas não se afastou.

– Temos um problema. Um grande problema.

– O quê?

– Tens a certeza de que ela está morta há menos de doze horas?

– É difícil dizer por causa do calor, mas algures entre seis e doze horas. Porquê?

Torkel apertou-lhe a mão ainda com mais força.

– O Sebastian teve sexo com ela ontem à noite.

– Desculpa?

– O Sebastian Bergman fez sexo com ela e saiu deste apartamento há cerca de doze horas.


SEBASTIAN SENTIU QUE tudo ?uía para fora do seu corpo. Tudo. O ar. O poder de agir. A capacidade física para se orientar. Quase caiu ao chão, e só o conseguiu evitar porque se agarrou à mesa. Apegou-se àquela superfície laminada como se fosse a única coisa que o impedia de cair no abismo que acabara de abrir-se à sua frente.

Era impossível.

Completa e absolutamente impossível.

E, no entanto, era verdade.

Fora isso que compreendera enquanto rebuscava febrilmente as fotogra?as, as transcrições das entrevistas, os depoimentos das testemunhas, os dados pessoais. Em toda a parte descobrira ligações e memórias que não vira antes. A verdade erguia-se diante de si como uma ?gura pálida que obliterava a dúvida, a esperança e a turva incerteza. Apoderava-se da sua alma como uma força alienígena. Ele tremia, mal conseguia respirar. A brutal descoberta ?zera-o lembrar-se daquela vez numa praia em Khao Lak, onde o seu ser interior se confrontara com aquela ?gura implacável, branca como a morte. Nessa ocasião, enquanto ele se sentava seminu, ferido e ensanguentado entre os destroços e as folhas de palmeira, o movimento fora tingido pelo negrume do sofrimento, paralisando-o. Desta vez, num gabinete da sede da polícia, o discernimento cristalizou-o em puro terror. Medo destrutivo. Tentou concentrar-se, repelir os pensamentos para conseguir lidar de alguma maneira com o pânico que ameaçava dominá-lo. Bateu na mesa com o punho cerrado. Forçou-se a emitir um rugido sufocado. Qualquer coisa para encontrar algum nexo e orientação. Ao ?m de uns minutos, conseguiu pôr-se em pé com um esforço enorme. Oscilou mas recuperou o equilíbrio e cambaleou até à janela, desesperado para ver algo diferente das fotogra?as das mulheres mortas espalhadas em cima da mesa e a?xadas na parede. Lá fora, o Sol continuava a brilhar. Deu por si a pensar que naquele dia o Sol também brilhara sobre a praia, e de repente tacteou a mão de Sabine no seu espírito. Queria agarrá-la. Não a soltar desta vez. Esconder-se dentro daquela mão de menina, desaparecer na sua pele aquecida pelo Sol, nos seus dedos suaves. Durante um breve instante conseguiu vê-la ali, à sua frente, com aquelas bochechas arredondadas, os olhos azuis cheios de vida, o cabelo encaracolado na parte detrás do pescoço. Agarrou-a com força. Queria protegê-la, bem como procurar protecção para si mesmo. Protecção contra a verdade que estava ali, naquela ligação impossível. Desaparecer para sempre com a sua ?lha.

Mas, de repente, ela desapareceu. Fora-lhe arrancada das mãos. De novo. Ele estava ali sozinho. Numa sala de reuniões cheia de fotogra?as de outras pessoas mortas. Tendo a verdade devastadora como única companhia.

Espreguiçou -se.

Tal como ?zera na praia naquele dia, endireitou-se.

E, lentamente, afastou-se daquele local.


DE INÍCIO a reacção de Ursula surpreendera Torkel. Ele preparara-se para a fúria, mas a resposta dela assemelhara-se mais a um pálido silêncio. Seguiu-se uma catadupa de perguntas. Como era aquilo possível? Podia realmente ser verdade? Não era invulgar que Sebastian Bergman estragasse tudo, mas fazê-lo àquela escala e daquela maneira era inacreditável. Sebastian dormira naquele quarto com a mulher. A mulher que fora posteriormente assassinada. Tudo acontecera no decurso de meio dia, mais hora ou menos hora. Alguém andava a imitar Edward Hinde. Até ao mais ín?mo pormenor. Sebastian era o responsável pela detenção de Hinde, a pessoa que encaixara as derradeiras peças do quebra-cabeças. Fora o melhor momento de Sebastian como psicólogo criminal e transformara-o no homem que era. Por mais que Ursula revolvesse a situação no seu espírito, chegava sempre à mesma conclusão impossível.

Existia uma ligação.

Mas isso simplesmente não podia ser verdade.

Decidiram rapidamente que o resto da equipa tinha de ser informada. Enquanto corriam pelas escadas abaixo, Torkel sentia-se um pouco aliviado por ter tido a sagacidade de envolver todos na decisão de recrutar Sebastian. Caso contrário, aquele problema seria exclusivamente seu. Detestava pensar daquela maneira; parecia-lhe um pouco mesquinho quando havia uma mulher assassinada estendida num apartamento do piso de cima. Mas o pensamento estava presente.

Billy afastara-se dos carros da polícia e dos espectadores curiosos que começaram a juntar-se. Estava ao telemóvel e, enquanto falava, caminhava para cima e para baixo. Vanja veio ao encontro deles e acenou com a cabeça na direcção de Billy.

– Ele está a tentar encontrar o ex-marido para podermos enviar um carro. Localizámos o ?lho de Annette no Canadá e a polícia local vai falar com ele. Se não entrar em contacto connosco, telefonar-lhe-emos mais tarde.

Torkel acenou a cabeça com impaciência. Estava tudo muito bem, mas naquele momento informar os parentes mais próximos não encabeçava a sua lista de prioridades.

– Se ainda não falaste com ele, diz-lhes que telefonas mais tarde – disse bruscamente a Billy.

– Foram agora procurá-lo.

– Vais ter de telefonar mais tarde. Precisamos de conversar. Já.

Billy terminou a chamada. Só muito raramente Torkel usava um tom tão peremptório. Era óbvio que o que tinha para dizer não podia esperar.

As pessoas que se haviam juntado atrás da ?ta da polícia olharam para eles com curiosidade quando se fecharam num círculo.

– Temos um problema – começou Torkel. – O Sebastian dormiu com a vítima há cerca de doze horas.

Billy e Vanja ?taram-no em silêncio. O telemóvel de Billy tocou. Provavelmente, o ex-marido fora localizado. Billy não atendeu a chamada.

 

Torkel e Billy regressaram à sede no carro de Vanja, a grande velocidade. Decidiram que Ursula iria para o laboratório a ?m de tentar convencê-los a estabelecerem o mais rapidamente possível a hora especí?ca da morte de Annette.

Vanja estava realmente furibunda com Sebastian, mas Torkel pedira-lhe que se acalmasse de uma vez. Pelo menos durante algum tempo. Precisavam de saber o que acontecera, de coligir factos e informações para depois agirem. Não se podiam esquecer de que tinham morrido quatro mulheres e esse era o seu objectivo principal. Nada mais. Teriam de lidar com Sebastian a um nível pro?ssional. Não podiam permitir que os sentimentos levassem a melhor naquela fase, por mais poderosos que fossem. Vanja rangeu os dentes e calou-se, mas Billy percebeu que estava a fervilhar.

Pararam o carro no parque de estacionamento subterrâneo e apanharam o elevador até ao departamento, sempre em silêncio. Começaram por procurar Sebastian na Sala. Encontraram-na vazia, mas a mesa estava um caos: os processos relativos às primeiras vítimas abertos e fotogra?as, transcrições e páginas A4 espalhadas por todo o lado. Uma cadeira estava caída no chão. Alguém estivera ali. Sebastian, muito provavelmente.

– Fica aqui e vê se consegues pôr isto tudo em ordem. – Torkel fez um gesto largo do outro lado da mesa quando se virou para Billy.

– Está bem. – Por instantes, Billy pensou perguntar-lhe se não podia ser Vanja a fazê-lo. Mas aquele não era o momento.

– Veri?ca se não falta nada. Se faltar, quero saber – disse Torkel, dirigindo-se para a porta.

Billy deteve -o.

– Tu não acreditas mesmo que o Sebastian esteja envolvido em tudo isto, pois não?

Quando se virou de frente para Billy, com a mão no puxador da porta, a expressão de Torkel era séria.

– Tanto quanto sabemos, foi a última pessoa a ver Annette Willén viva. Portanto sim, está envolvido.

Torkel e Vanja apressaram-se a percorrer o corredor até à sala do pessoal, onde um grupo de agentes fardados se servia de café na máquina. Um deles vira Sebastian há pouco tempo e até o cumprimentara, mas Sebastian não lhe respondera. A porta do gabinete de Torkel encontrava-se aberta. Sebastian estava prostrado no sofá castanho, com a cabeça inclinada. Quando Torkel entrou, Sebastian olhou vagarosamente para cima. A sua expressão era resignada mas, de certa forma, vigorosa. Como se tivesse chegado ao ?m da estrada, não encontrasse para onde fugir mas tencionasse lutar de qualquer maneira. Pôs-se em pé. Vanja surgiu à porta e ?tou Sebastian nos olhos, com um olhar repleto de raiva contida.

– Deixa-nos a sós, por favor. – Torkel sentiu instintivamente que seria melhor falar a sós com o seu velho amigo. Ele precisava de conversar, não de confronto imediato. Olhou para Vanja. – Fecha a porta.

Sem proferir uma palavra, ela obedeceu. Talvez tenha fechado a porta com demasiada força.

Torkel encarou Sebastian.

– Temos algumas coisas para resolver, tu e eu.

– Mais do que pensas. – A voz de Sebastian foi clara, e pelo menos tão enérgica quanto a de Torkel. Essa inesperada demonstração de força irritou Torkel; Sebastian só devia falar a sussurrar, pensou antes de retomar a palavra.

– No que te diz respeito, tudo termina aqui. Não terás mais nada a ver com esta investigação.

– Terei, sim.

– Sebastian, ouve o que te digo! – Torkel não conseguiu evitar que a sua ira transparecesse. Sebastian realmente não via o problema? – Tu tiveste sexo com uma das vítimas.

– Tive sexo com as quatro.

O rosto de Torkel ?cou lívido enquanto contemplava de um modo inexpressivo o olhar ardente de Sebastian.

– Este não é um imitador qualquer, Torkel. Isto é pessoal. E quer atingir-me.


REUNIR TODA a equipa demorou algum tempo. Ursula foi chamada para regressar da patologia, embora a autópsia ainda estivesse longe de terminar. Quando Sebastian e Torkel chegaram à Sala, Billy já reordenara os ?cheiros e arrumara tudo; tanto quanto conseguia ver, não faltava nada. Embora achasse aquilo frustrante, Vanja acedera de bom grado a encarregar-se da tarefa de tentar localizar o ex-marido de Annette. Após o que acontecera, precisava de sentir que continuavam a ser e?cazes como agentes policiais e sabiam agir correctamente. Conseguira localizar o homem e enviara um carro-patrulha para o informar do sucedido. Se ele já o soubesse, mesmo assim iriam fazer-lhe um pequeno interrogatório só para veri?carem se possuía algum álibi para o período de tempo em causa. Vanja foi a última a chegar à Sala e fez questão de se colocar junto à porta com os braços cruzados. O mais longe possível de Sebastian.

– Estamos a enfrentar uma situação crítica – começou ele.

Vanja abanou a cabeça.

– Tu estás a enfrentar uma situação crítica. Nós não. Não nos arrastes para isso, se não te importas.

Torkel silenciou-a com um olhar.

– Deixa-o terminar.

Sebastian fez um gesto de gratidão a Torkel e olhou para Vanja como quem pede desculpa. Naquele momento não queria discutir com ela. Tudo menos isso. Há muito tempo que não se sentia tão sozinho.

Virou-se para trás e apontou para um retrato da primeira vítima.

– De início não reconheci a Maria Lie, mas o seu apelido era Kaufmann quando andava na universidade. De acordo com a documentação, fomos lá alunos na mesma altura e lembro-me de ter namorado uma Maria Kaufmann durante algum tempo. – Engoliu em seco e passou ao retrato de Katharina Granlund.

– Eu devia ter reconhecido a Katharina. Ela veio a uma sessão de autógrafos do meu livro em 1997. Na Feira do Livro. Na época já era casada. Encontrámo-nos algumas vezes. Só percebi que era ela quando li que tinha uma pequena tatuagem de um lagarto verde num... num sítio íntimo...

– Estás a falar a sério? – perguntou Vanja. – Não te lembras do nome nem do aspecto das mulheres com quem fornicaste mas recordas-te das tatuagens que tinham lá em baixo?

– Uma tatuagem é mais fácil de recordar do que um rosto – disse Billy.

Vanja virou-se para Billy com uma rapidez fulgurante.

– Estás a pôr-te do lado dele?

– Estou só a dizer que...

– Parem com isso. Os dois! – Torkel interrompeu a discussão como se estivesse a separar duas crianças con?ituosas. – Sebastian, por favor continua.

Sebastian não conseguiu encarar Vanja quando passou à última fotogra?a. A mulher loira em Nynäshamn. A vítima número dois.

– Jeanette Jansson... Não a reconheci, não me lembrava dela de todo, mas li numa das entrevistas que era conhecida como «JoJo» e ?quei... Fui para a cama com uma JoJo alguns anos após ter acabado a universidade. Em Växjö... Era loura e tinha uma cicatriz aqui. – Sebastian apontou para o lábio superior. – Jeanette Jansson é de Växjö e quando era criança fez uma operação para corrigir o lábio leporino.

As suas palavras foram recebidas com um silêncio total. Vanja fitava-o com uma pura aversão estampada no rosto. De repente, Sebastian pareceu muito velho e cansado.

– Portanto, é por minha culpa que estas mulheres em particular estão mortas. A ligação que vocês procuram sou eu. Eu e o Hinde.

– Mas o Edward Hinde está trancado em Lövhaga – salientou Billy. – Podemos realmente ter a certeza de que ele tem algo a ver com isto?

– É mais do que improvável que alguém andasse a imitar os homicídios de Edward até ao mais ín?mo pormenor com todas as vítimas relacionadas comigo sem que o Edward tivesse algo a ver com isso. Quatro homicídios, quatro mulheres com quem dormi – tem de haver uma ligação!

A sala ?cou novamente em silêncio. Sabiam que Sebastian tinha razão. Por mais que quisessem, era-lhes impossível ignorar aquele padrão.

Ursula levantou-se e foi até ao quadro branco.

– Porquê agora? Porque está isto a acontecer agora? O Hinde cometeu os homicídios há mais de quinze anos.

– É isso que temos de descobrir – respondeu Torkel, percebendo de súbito que, fosse como fosse que olhassem para a questão, Sebastian era a chave para a solução. – Sebastian, tiveste algum contacto com o Hinde desde que o entrevistaste nos anos noventa?

– Não. Nenhum.

Torkel olhou para a sua equipa. Há muito tempo que não observava semelhante mistura de surpresa, espanto e raiva. Num momento de clareza percebeu o que tinha de fazer. Era provável que mais ninguém compreendesse. Mas ele tinha a certeza absoluta. Torkel não conhecia Edward Hinde tão bem quanto Sebastian, mas conhecia-o o su?ciente para ter a noção de que o adversário deles era um psicopata calculista e muito inteligente. Na década de noventa mantivera-se sempre um passo à sua frente até Sebastian Bergman se ter juntado à investigação.

A maioria da equipa mostrara-se céptica quanto ao envolvimento do psicólogo egocêntrico, mas Torkel, pelo menos, mudara de opinião muito rapidamente. Só depois de terem Sebastian a bordo é que começaram a detectar os padrões que acabaram por conduzir à detenção de Hinde. A verdade era essa. Ele precisava de Sebastian. Tentou ?xar os olhares de Vanja e de Ursula e pigarreou.

– Vocês não vão gostar disto mas têm de con?ar em mim. Eu quero que o Sebastian esteja presente quando o Hinde for interrogado.

– O que queres dizer? – Vanja parecia ter-se acalmado um pouco mas acabara de encontrar um novo surto de energia. As suas faces adquiriram um ténue rubor avermelhado. Um rubor de cólera.

– Se o Hinde vê Sebastian como seu adversário, se chegou a este ponto para o deixar claro... – Torkel calou-se e olhou para Sebastian, que se mostrava estranhamente indiferente. – Então terá Sebastian como seu adversário. A sério.

– Porquê? – Vanja de novo. Claro.

– Porque enquanto não lhe mostrarmos que compreendemos o perigo irá continuar.

– Então, se o Sebastian aparecer ele irá parar?

– Talvez. Não sei.

Mais ninguém falou. Nem sequer sabiam por onde começar. Torkel virou-se de novo para Vanja.

– Tu vais acompanhar o Sebastian a Lövhaga amanhã.

– Nem pensar! Há mais pessoas nesta equipa.

– Mas é a ti que estou a pedir para ?cares de olho em Sebastian. Alguém tem de o desancar se não se portar bem. Tu farás isso melhor do que qualquer outra pessoa.

Vanja olhou para Sebastian, depois novamente para Torkel. Sebastian e Hinde pareciam estar relacionados de um modo que ela não compreendia, e Torkel propunha que se desse a Hinde precisamente o que ele desejava. Isso não era fazer as coisas segundo as regras. Pelo contrário, poderia acabar muito mal. Deu alguns passos na direcção dele.

– Tu percebes o que estás a fazer?

– Sim.

Vanja olhou em redor para procurar o apoio dos colegas mas ninguém se manifestou.

Billy inclinou-se para a frente.

– Eu estava só a pensar: devíamos fazer algum tipo de aviso?

Os outros olharam-no sem entenderem.

Billy mostrou-se um pouco envergonhado.

– Quero dizer, deve haver muitas mulheres que... que estão em risco, não sei se me entendem.

Vanja abanou a cabeça.

– E o que havemos nós de fazer? Divulgar um retrato – «Você dormiu com este homem?» Quantas serão? Cem? Duzentas? Quinhentas?

Sebastian olhou para ela, depois para as fotos das mulheres mortas.

– Não faço ideia, para dizer a verdade.

Ursula pôs-se em pé.

– Vou telefonar para o laboratório; preciso de ter uma conversa com alguém que esteja são.

Torkel tentou captar-lhe a atenção, mas não conseguiu.

Antes de ela ter tempo de chegar à porta, Billy também se pôs em pé. Parecia ter-se lembrado de algo e estava cheio de energia.

– Esperem aí, há mais uma coisa. Como é que ele as selecciona?

Avançou rapidamente até ao quadro e apontou para as fotogra?as.

– Reparem. Digamos que é possível rastrear os teus antigos relacionamentos se alguém se puser por aí à caça e planear durante muito tempo, mas quanto à Annette Willén? Como é que ele soube dela? Tu só a conheceste ontem, não foi?

Os outros ?caram a pensar no que Billy acabara de dizer. Foi como se, de súbito, o monstro que andavam a perseguir estivesse a respirar-lhes para cima do pescoço. Billy olhou para Sebastian com uma expressão séria.

– Tiveste a sensação de que alguém andava a seguir-te?

A pergunta apanhou Sebastian de surpresa. Porque não pensara ele próprio nessa possibilidade? Porque não percebera que o intervalo de tempo entre ele e as mulheres mortas diminuíra de repente? De décadas para menos de vinte e quatro horas. Deve ter sido a tensão de ser forçado a aceitar o impossível que o impedira de o ver.

– Não pensei no assunto.

Mas agora estava a pensar.

Seriamente.


NA MANHÃ SEGUINTE estavam os dois no elevador. Vanja mantinha o olhar ?xo nos números da contagem decrescente por cima da porta. Estavam a dirigir-se para P, o parque de estacionamento.

Sebastian reprimiu um bocejo e esfregou os olhos, fatigado. Não dormira muito. Tivera di?culdade em travar o turbilhão dos seus pensamentos. Hinde, as quatro mulheres mortas, a ligação. Tudo rodopiava no seu espírito. Adormecera por volta das quatro, só para ser acordado pelo sonho cerca de uma hora depois. Por essa altura já não havia qualquer possibilidade de voltar a adormecer. Levantara-se, tomara um café, um duche e fora de carro até à sede da polícia para esperar por Vanja. Para irem visitar Hinde.

– Se isto for verdade, morreram quatro mulheres por causa de ti – disse-lhe ela, sem o encarar.

Sebastian não respondeu. O que poderia dizer-lhe? A única coisa que as quatro vítimas tinham em comum era terem feito sexo com ele. Sexo com Sebastian Bergman. Uma sentença de morte.

– Devias andar com um sinal de aviso pendurado ao pescoço. És pior que o HIV.

– Talvez penses que eu mereço isto – disse Sebastian em voz baixa –, mas podes fazer a ?neza de te manteres calada por um bocado?

Vanja virou-se para ele com uma expressão intransigente.

– Lamento muito, isto está a ser difícil para ti? Bom, deixa-me dizer-te uma coisa: a vítima aqui não és tu.

Sebastian rangeu os dentes e absteve-se de lhe responder. Não valia a pena.

Talvez ele não fosse a vítima no verdadeiro sentido da palavra, mas também não tinha culpa. Não podia ter adivinhado que alguém iria começar a seguir as suas aventuras nocturnas décadas mais tarde e as assassinasse brutalmente a ?m de demonstrar, de uma forma perversa, o seu poder sobre Sebastian. Tal como não podia ter previsto nem impedido o tsunami. Manteve a boca fechada. Ela jamais entenderia. Para ele, aquilo era doloroso. Mais doloroso do que Vanja conseguiria imaginar.

 

– Tiveste a sensação de que alguém andava a seguir-te?

Sebastian não conseguia tirar da sua cabeça as palavras de Billy. Como é que se podia saber se alguém nos andava a seguir? Não fazia ideia. Nessa manhã, no táxi a caminho de Kungsholmen, espreitara de vez em quando pela janela traseira, mas era impossível dizer se algum dos carros que vinham atrás poderia ou não estar a segui-lo. Talvez esse fosse um instinto que os agentes da polícia desenvolviam, e ele não era um deles. Mas não, isso também não podia ser verdade. Andara a seguir Vanja durante vários meses e ela não se apercebera. Tinha a certeza disso. Se se tivesse apercebido, não estaria sentado com ela dentro daquele Volvo azul -escuro.

Vanja manobrou com destreza durante o caminho até à saída do parque de estacionamento e dirigiu-se para a barreira de segurança. Quando iam a sair, ligou o pisca do lado direito.

– Espera.

Como sempre, a sua expressão era de irritação quando olhou para ele. Ele pensou se reservava só para si aquele olhar especial, mas não deu largas àquele pensamento.

– Vira antes à esquerda. Passa pela entrada principal.

– Para quê?

– É uma aposta. Se andar alguém a seguir-me, poderá estar aí à espera. Eu entro sempre por esse lado e, quando não venho a pé, é aí que o táxi me deixa.

Vanja ligou o pisca da esquerda e embrenhou-se no meio do trânsito. Após outra curva à esquerda, dobraram a esquina para a Polhemsgatan.

– Pára.

Vanja fez o que ele pediu. Sebastian esquadrinhou a rua em frente. Não havia muitos peões a passar por ali, mas o parque Kronoberg situava-se frente à Riksmord. Era impossível ter uma visão geral do parque, pelo menos a partir do carro. Em todo o caso, não daquela maneira.

Sebastian virou-se para Vanja.

– Tens uns binóculos no carro?

– Não.

Mais uma vez, o olhar de Sebastian varreu a rua. Sabia muito sobre como seguir alguém. Manter-se fora de vista, mas a uma distância razoável para poder acompanhar rapidamente a pessoa caso esta se deslocasse. Todas as pessoas que ele conseguia avistar pareciam ir a caminho de algum sítio. Ninguém estava apenas a rondar por ali nem a vaguear sem rumo. Portanto, restava o parque. E, lembrou-se, o café da esquina. Claro. Uma visão perfeita sem despertar a mínima suspeita. Fora por isso que ele próprio escolhera aquele local.

– Avança até ao café da próxima esquina. – Sebastian apontou e Vanja ligou o motor. Enquanto avançavam lentamente e passavam pela entrada principal da Riksmord, Sebastian olhou pela janela lateral para os carros estacionados do lado direito. Tentou recordar se havia mais clientes habituais no estabelecimento. Alguém que fosse lá com tanta frequência quanto ele. Não conseguiu lembrar-se de ninguém, mas na verdade nunca se interessara realmente pela clientela. O seu foco estava alhures.

Como não havia um lugar para estacionar, Vanja colocou metade do carro em cima do passeio, demasiado perto da passagem para os peões. Saíram e atravessaram a rua. Vanja galgou de uma vez os dois pequenos degraus à entrada do café e empurrou a porta. Sebastian ouviu o familiar tinido da pequena sineta no interior. Estava prestes a seguir Vanja pelos degraus quando se contraiu.

Uma lembrança.

Pouco antes de terem passado pela entrada da sede da polícia. Estacionado do lado direito. Um Ford Focus azul. Azul-claro. Um azul de pijama de rapaz. No lugar do condutor, um homem que usava óculos de sol.

Os seus pensamentos deambularam de volta até ao dia em que decidira arrumar o seu escritório. Olhara para fora da janela. Vira o seu antigo espaço de estacionamento à porta da loja de antiguidades. Nesse momento estava aí parado um outro carro. Um carro azul-claro.

–Vens? – Vanja ainda estava à espera, segurando a porta aberta para ele entrar. Sebastian mal a ouviu. O seu espírito rodopiava. A visita a Stefan. Quando ele saíra para ir buscar leite. Aqueles homens que não conseguiam descarregar o piano. Por trás da carrinha. Um carro azul-claro. Provavelmente, um Ford Focus.

– Sebastian?

Sem dizer uma palavra, Sebastian virou-se para trás, atravessou a rua e partiu na direcção de onde tinham vindo. Rumo ao carro estacionado.

– Onde vais? – gritou Vanja mais atrás, mas ele não lhe respondeu. Caminhou mais depressa. Muito atrás de si, ouviu a sineta tilintar de novo quando Vanja largou a porta e o seguiu. Começou a correr. A suspeita transformou-se em certeza quando viu a pessoa que estava no lugar do condutor do Focus azul -claro começar a mexer-se.

O condutor inclinou-se para frente.

Ligou o motor.

Sebastian alongou a passada.

– Sebastian!

O carro azul arrancou. Sebastian correu entre dois carros estacionados e saiu para o meio da rua. Pretendia bloquear a estrada com o que tivesse à mão. O seu corpo. Por instantes, pareceu que o condutor do Ford tencionava fazer inversão de marcha, mas Sebastian percebeu que nunca iria conseguir dar meia-volta; a rua era demasiado estreita. De certeza que o homem se apercebeu do mesmo; endireitou o carro e, em vez disso, pisou o acelerador. Na direcção de Sebastian.

– Sebastian! – disse Vanja novamente. Demasiado longe. Desta vez havia mais urgência na sua voz. Percebera o que estava prestes a acontecer.

O carro estava apenas a uma dúzia de metros de distância da Sebastian e não davas mostras de abrandar. Antes pelo contrário. O som do motor em aceleração tornou-se cada vez mais alto. O carro ganhou velocidade. Percebendo que o condutor não tencionava parar, Sebastian atirou-se para o lado, entre dois carros estacionados. Pode ter sido a sua imaginação, mas pensou ter sentido o Ford roçar-lhe o tacão do sapato quando passou velozmente.

Continuou em alta velocidade. Vanja sacou da sua arma, mas sabia que não podia disparar contra um carro que desaparecia rapidamente no centro de Estocolmo e en?ou-a de novo no coldre. Correu para o local onde Sebastian estava caído. Do sítio onde se encontrava era difícil perceber se o carro lhe acertara ou não. Agachou-se ao lado dele.

– Estás bem?

Sebastian virou-se para ela. Esbaforido. Abalado. Sangrava de um pequeno corte na têmpora e tinha as palmas das mãos arranhadas.

– A matrícula. Aponta a matrícula do carro.

– Já o ?z. Tu estás bem?

Sebastian matutou na pergunta. Levou a mão à cabeça e ?cou a olhar para o sangue. Provavelmente bateu num dos carros estacionados quando caiu. Usou as mãos para amparar a queda. Podia ter sido muito pior. Soltou um longo suspiro.

– Sim. Estou bem. – Levantou-se com a ajuda de Vanja e sacudiu-se para se limpar o melhor que podia, e depois partiram em direcção ao seu veículo ilegalmente estacionado.

– Conseguiste ver o aspecto dele? – quis saber Vanja.

Sebastian encolheu os ombros. Isso doeu-lhe um pouco. Deve ter caído com mais força do que pensou.

– Óculos escuros e um boné.

Percorreram em silêncio a distância que faltava até chegarem ao carro. Antes de entrar, Sebastian virou-se para Vanja.

– O Billy tinha razão. Alguém anda a seguir-me. – Percebeu que estava a a?rmar o óbvio, mas precisava de o dizer. De o exprimir em palavras. Alguém andara a segui-lo. Por toda a parte. Ele não reparara em nada. Era uma sensação quase surreal. Surreal e desagradável. Estivera sob vigilância.

– Sim. – Vanja retribuiu-lhe o olhar por cima do tejadilho do carro e desta vez não parecia irritada. Mesmo a interpretação menos positiva da sua expressão poderia revelar uma certa simpatia. Sebastian decidiu nesse instante que, independentemente do que viesse a acontecer, iria deixar de a seguir. Nunca mais voltaria a colocar-se junto ao seu prédio. Nunca mais viajaria na carruagem seguinte do metropolitano. Iria telefonar a Trolle e dizer-lhe para acabar com tudo. Já bastava.

 

Cerca de uma hora mais tarde estacionaram e saíram do carro. Iria estar mais um glorioso dia de Verão, e o calor atingiu-os assim que abriram a porta. Mal falaram durante a viagem, o que agradou muito a Sebastian. Precisava que o deixassem em paz com os seus pensamentos.

O telemóvel de Vanja tocou. Ela atendeu a chamada enquanto trancava o carro e afastou-se um pouco. Sebastian permaneceu no mesmo local, a olhar para o edifício incaracterístico de betão por trás do muro alto. Era o seu passado a acolhê-lo de novo. Outro local que acabara por ?car relativamente inalterado. O plano não era de todo aquele. Devia estar a retomar a sua vida de novo. Um novo ponto de partida. Um recomeço. Fora essa a ideia quando tentara voltar para a Riksmord.

Arranjar uma vida antes de poder fazer parte de outra.

No entanto, o passado viera ao seu encontro. Hinde. As mulheres mortas. Tudo naquele caso o arrastava para trás. Passaram muitos anos desde que ali estivera. Concluíra as suas entrevistas com Edward Hinde no Verão de 1999 e saíra de Lövhaga pela que considerava ser a última vez. E agora estava ali de novo. Atrás daquelas janelas com grades, daquela vedação alta encimada por arame farpado e daquelas portas reforçadas encontrava-se o criminoso mais perigoso e transtornado da Suécia. Sebastian percebeu que se sentia um pouco nervoso com o próximo encontro. Edward Hinde era extremamente inteligente. Manipulador. Calculista. Tinha a capacidade de se aperceber da maioria das coisas. Era preciso estar-se em excelente forma para um encontro com Hinde, caso contrário ele não tardava a levar a melhor. Após tudo o que acontecera, Sebastian não sabia ao certo se conseguiria manter as suas defesas.

Vanja aproximou-se dele.

– Já estamos à procura do Focus. Foi dado como roubado em Södertälje. Desde Fevereiro.

Sebastian olhou para ela com um ar interrogador, como se a con?rmar se a ouvira correctamente. Ela anuiu com um aceno de cabeça. Aquilo não implicava necessariamente que alguém tivesse andado a segui-lo durante seis meses, mas era uma possibilidade. Sebastian respirou fundo. Um assunto de cada vez. Precisava de se concentrar na entrevista com Hinde. Juntos, ele e Vanja encaminharam-se para o portão e para o guarda que estivera a observá-los em silêncio desde que saíram do carro.

– Então, como é o Hinde? – perguntou Vanja com curiosidade, com o tom de voz isento de crítica que geralmente usava quando falava com ele. Era como se pressentisse que estavam a entrar no covil do leão.

Sebastian encolheu os ombros. Tinha a certeza de que Vanja nunca conhecera alguém como Edward Hinde. Poucas pessoas tinham essa experiência. Hinde não era um perpetrador normal: o marido ciumento ou o jovem bandido sem instrução oriundo de um lar desfeito. Hinde era algo completamente diferente, o que signi?cava que ela não tinha pontos de referência. Não conseguia imaginar as profundezas do mal que existiam dentro de Hinde. Compará-lo com qualquer outro dos perpetradores que Vanja encontrara ao longo dos anos seria como comparar um miúdo de onze anos num laboratório de física com um laureado do Prémio Nobel.

– Tens de ler os meus livros.

– Eu li os teus livros.

Vanja caminhou até ao guarda de plantão.

– Vanja Lithner e Sebastian Bergman, da Riksmord. – Mostraram as identi?cações e a autorização de visita. O guarda pegou nos documentos e entrou numa pequena cabina ao lado do portão; parecia que estava a fazer um telefonema.

Vanja tentou novamente com Sebastian.

– Diz lá, tu já estiveste com ele.

– E daqui a pouco tu também já terás estado com ele.

– Há alguma coisa em particular que deva ter em atenção?

A porta zumbiu e Sebastian empurrou-a; deixou passar Vanja, depois entrou atrás dela. O guarda devolveu-lhes os documentos.

– Tem cuidado – advertiu Sebastian.


EDWARD HINDE ESTAVA de novo sentado na sala de visitas. Tinham-no trazido há dez minutos. Dois guardas. Algemado de pés e mãos.

Para dentro da sala.

Para cima da cadeira.

Acorrentado à mesa.

Tudo estava na mesma excepto o facto de, desta vez, haver duas cadeiras do outro lado da mesa. A Riksmord vinha a caminho. Vanja Lithner e Billy Rosén, era assim que Thomas Haraldsson lhe dissera que se chamavam, os tais agentes que queriam conversar com ele. Pôs-se a pensar acerca do que pretendiam falar. Até onde já teriam chegado.

A porta abriu-se atrás dele e mais uma vez resistiu ao impulso de se virar para trás. Esperar. Deixar que se aproximassem. Uma vantagem imediata, embora menor. Começaram a aproximar-se da mesa. Pelo canto do olho, viu-os passarem pelo mesmo lado. Pela sua direita. Continuou a olhar para fora da janela, mesmo quando os dois já estavam em pé, à sua frente. Só permitiu que os seus olhos se movessem quando a mulher se sentou à sua frente. Loura, atraente, cerca de trinta anos, olhos azuis e em forma, a julgar pela parte superior dos braços por baixo da blusa de manga curta. Ela pousou uma incaracterística pasta preta à sua frente, em cima da mesa, e susteve o seu olhar penetrante sem pestanejar. Edward não disse uma palavra e limitou-se a desviar a atenção para o seu colega, que continuava em pé junto à parede, ao lado da mesa.

Não era Billy Rosén mas alguém que lhe era muito, muito familiar. Edward teve de se controlar ao máximo para não revelar até que ponto ?cou surpreendido.

Sebastian Bergman.

Eles tinham chegado longe.

Muito mais longe do que se atrevera a pensar.

Edward manteve o olhar ?xo em Sebastian até ter a certeza absoluta de que a voz não lhe faltaria. Depois o seu rosto abriu-se num sorriso de satisfação, quase acolhedor.

– Sebastian Bergman. Mas que surpresa.

Sebastian não lhe retribuiu o cumprimento. Edward não tirava os olhos dele. Sebastian lembrava-se daquele olhar. Inquiridor. Observador. Penetrante. Por vezes dava a sensação de que Edward não se limitava a olhar as pessoas nos olhos mas conseguia ver à transparência o seu cérebro, onde escolhia a informação que pretendia, a informação a que não teria acesso de outro modo.

– E esta é...? – continuou Edward, mostrando-se descontraído quando se virou para Vanja.

– Vanja – respondeu ela antes de Sebastian ter oportunidade de a apresentar.

– Vanja. – Edward parecia saborear a palavra. – Vanja... Vanja quê?

– Vanja chega muito bem – interrompeu Sebastian. Não havia qualquer razão para dar a Hinde mais informação do que a necessária.

Edward virou-se de novo para Sebastian, continuando a exibir um sorriso desarmante.

– E a que devo a honra de uma visita ao ?m de todos estes anos? Os direitos de autor estão a acabar? Está a pensar escrever uma trilogia? – Mais uma vez Edward dirigiu a sua atenção para Vanja. – Ele escreveu livros sobre mim. Dois livros.

– Estou ao corrente disso.

– Fui eu que o levei à fama... É a frase correcta, creio?

Vanja permaneceu sentada e imóvel, com os braços cruzados sobre o peito, aparentemente desinteressada dos comentários de Edward.

– Em todo o caso – continuou Edward –, primeiro ajudou a prender-me e, a seguir, revelou... os mecanismos por detrás do monstro. – Sorriu de novo. Desta vez não para Vanja mas mais para si próprio, como se recordasse uma memória agradável, uma época melhor. Ou como se estivesse apenas extremamente contente com a maneira como se expressara.

– Estivemos no topo das listas dos mais vendidos. Sessões de autógrafos. Palestras em toda a Europa. Se calhar até nos Estados Unidos – como correu isso, Sebastian?

Sebastian também não lhe respondeu. Encostou-se indolentemente contra a parede e cruzou os braços tal como Vanja, mantendo os olhos ?xos em Edward com uma expressão quase desa?adora.

Hinde enfrentou o seu olhar e inclinou ligeiramente a cabeça para um lado antes de abordar Vanja de novo.

– Ele não fala. Bom plano. Não gostamos de silêncios desconfortáveis neste país. Por isso, preenchêmo-los. Começamos a tagarelar. Denunciamo-nos. – Edward fez uma pausa, como se estivesse a pensar se teria falado de mais, se acabara de fornecer um exemplo do próprio defeito que descrevera. – Eu também sou psicólogo – explicou ele a Vanja. – Acabei o curso dois anos antes do Sebastian. Ele referiu isso?

– Não.

Sebastian observava Hinde cuidadosamente. Para onde estava ele a ir? Porque teria mencionado aquele facto? Edward Hinde não fazia nada que não fosse planeado. Tudo tinha um propósito. A única questão era saber qual o propósito.

– Ele não quer admitir como somos parecidos – dizia Hinde. – Psicólogos de meia-idade que têm uma relação complexa com as mulheres. É isso que somos, não é, Sebastian?

Hinde libertou Vanja do seu olhar e ?tou Sebastian. De repente, Vanja pressentiu que Sebastian tinha razão. Hinde estava mesmo ligado aos quatro homicídios. Não apenas como inspiração, mas efectivamente envolvido. Na verdade. De alguma forma. Não imaginava como, mas ele sabia porque tinham ido falar com ele.

Era apenas um pressentimento, difícil de determinar – uma intuição. De vez em quando isso sucedia-lhe. Por vezes acometia-a quando estava sentada com um suspeito ou a con?rmar um álibi. Uma repentina e profunda convicção de que havia uma ligação. De que existia uma espécie de envolvimento e, porventura, de culpa. Mesmo sem qualquer prova física, talvez nem sequer uma cadeia de provas circunstanciais que apontassem nessa direcção. No entanto, a sensação estava lá. Podia vir de qualquer lado: da linguagem corporal, do modo como a pessoa em questão a olhava nos olhos ou de um tom de voz que soasse a falso numa conversa que, de outro modo, seria perfeitamente normal. Vanja sabia que era boa a detectar esse tom falso, e houve algo no modo como Hinde falara para Sebastian. Uma minúscula, quase imperceptível, entoação de presunção e de triunfo. Que facilmente passaria despercebida. Mas estava lá, e para Vanja isso era o su?ciente. Provavelmente Torkel tinha razão, embora para ela fosse quase impossível admiti-lo: colocar Sebastian naquela sala à frente de Hinde fora a decisão correcta.

– O que sabe você acerca das minhas mulheres? – perguntou Sebastian; nada na sua voz denunciou o facto de se estarem a aproximar do motivo daquela visita.

– São imensas. Ou, pelo menos, costumavam ser. Hoje em dia não sei qual é a situação.

Sebastian abandonou a sua posição junto à parede, puxou a cadeira que estava vaga e sentou-se. Edward examinou-o com cuidado. Ele tinha envelhecido. Não apenas devido aos anos que passaram. A vida fora dura com Sebastian. Edward achava que sabia porquê. Pensou fugazmente se devia fazer referência ao casamento com a alemã.

À ?lha.

Ao tsunami.

À notícia que tanta alegria trouxera ao seu coração quando ?nalmente ouvira falar do assunto. Demorara algum tempo. A perda de Sebastian não fora muito explorada na imprensa. Edward teve de fazer algum trabalho de detective. Juntar as peças do quebra-cabeças. Somar dois e dois.

Tudo começou quando ele viu alguns nomes que pensou reconhecer numa lista das pessoas mortas ou desaparecidas. Suecos ou com ligações à Suécia. Entre os 543 nomes havia dois que de alguma forma lhe pareciam familiares: Lily Schwenk e Sabine Schwenk-Bergman. A seguir teve de retroceder no tempo através dos arquivos de jornais. Encontrou-a quando chegou a 1998. Uma pequena notícia anunciava que Sebastian Bergman, o psicólogo e autor mundialmente famoso, se casara com Lily Schwenk. E cerca de um ano mais tarde, num jornal alemão, encontrou a pequena Sabine. A esposa e a ?lha de Sebastian numa lista de pessoas mortas ou desaparecidas. Ao princípio ?cou contente. Depois, ao ?m de algum tempo, começou a sentir-se desapontado. Enganado. Quase invejoso. Como se desejasse ter sido ele aquela grande onda, aquela força imparável que levou a família de Sebastian para longe e o deixou desfeito. Mas, independentemente do que sentisse, aquela informação continuava a ser útil e, sem dúvida, viria a ser oportuna nalgum momento, mas não naquele local nem naquela altura. Não no seu primeiro encontro. Queria descobrir o que sabiam. Até onde haviam chegado. Por isso, Edward manteve-se calado. Cabia-lhes a eles falarem.

– Foram assassinadas quatro mulheres.

Vanja viu o relampejo nos olhos de Edward quando ele se inclinou para a frente por cima da mesa, subitamente interessado.

– Posso pedir-vos mais alguns pormenores?

Sebastian e Vanja trocaram um olhar. Sebastian fez um breve aceno de cabeça e Vanja abriu a pasta que colocara em cima da mesa. Pegou numa fotogra?a do local do primeiro crime; fora tirada com uma grande angular que mostrava tudo.

– A camisa de dormir, as meias de nylon, uma provisão de víveres escondida, a vítima violada enquanto estava deitada de barriga para baixo – disse ela, empurrando a fotogra?a em direcção a Hinde.

Ele lançou-lhe um olhar curioso e, a seguir, ergueu os olhos com uma expressão de genuína surpresa.

– Alguém anda a imitar-me.

– Imagine-se – disse Sebastian com um tom de voz comedido.

– Então era por isso que queriam falar comigo. Eu ?quei intrigado. – De repente parecia ter compreendido, como se tivesse acabado de receber a resposta a uma pergunta acerca da qual matutava desde há muito. Uma aula de mestre completamente surpreendente. Aquilo teria enganado qualquer um. Até Vanja, se não estivesse prevenida. Mas ela estava à procura de sinais que con?rmassem a sua intuição, e era evidente que Hinde não ?cara a matutar no assunto. Ele sabia. Sempre o soubera. Estava apenas a jogar.

Hinde abanou a cabeça com lassidão.

– Mas as pessoas já não têm ideias próprias? É esse o problema hoje em dia. Não há qualquer originalidade. Limitam-se a imitar os que chegaram primeiro. E os melhores.

– Isto não é uma ideia que alguém tenha arranjado por conta própria. Isto é você. – A voz de Sebastian endurecera.

Uma acusação.

Clara e inconfundível.

Vanja não tinha a certeza de que era a melhor técnica em relação a Hinde mas, como Sebastian o conhecia melhor, engoliu as suas objecções.

Edward levantou os olhos da fotogra?a que estava em cima da mesa, revelando-se surpreendido tanto na expressão como na voz.

– Eu? Nunca saio da ala de segurança. Não tenho quaisquer privilégios. A minha liberdade de movimentos é extremamente limitada. – Estendeu os braços, esticando as correntes presas às algemas para mostrar como estava acorrentado. – Nem sequer tenho autorização para usar o telefone.

– Alguém o ajudou.

– A sério? – Edward inclinou-se por cima da mesa, manifestando um claro e sincero interesse. Percebeu que tinha saudades daquilo. Da discussão. Do jogo. De uma declaração de Sebastian que pudesse contrariar. De optar por alinhar no raciocínio dele, colocá-lo em causa ou tentar desviar-lhe a atenção, pôr-se com rodeios, desa?ar e ser desa?ado. Meu Deus, as saudades que tinha daquilo. A maioria das pessoas que conheceu na ala de segurança eram irracionais, sem qualquer resquício de inteligência. Naquele sala existia pelo menos alguma ?bra intelectual, algo que se trincasse. Era maravilhosamente libertador.

Recostou-se para trás.

– E, na sua opinião, como pode isso ter acontecido?

– Como é que as escolheu? – Sebastian optou por ignorar o isco. Não estava com disposição. Sempre que se respondia a uma pergunta, perdia-se o controlo da conversa. Era-se liderado, ao invés de liderar. Sebastian não podia permitir que isso acontecesse. Não com Hinde.

– A quem?

– Às mulheres.

Hinde suspirou profundamente e abanou a cabeça. Desapontado. Para Sebastian teria sido mais adequado não responder de todo. A ?m de permitir que aquele «A quem?» de Hinde ?casse a pairar entre eles sem resposta. Os seus olhares ter-se-iam cruzado. Como num duelo. Quem pegaria primeiro na ponta da meada? E como? Oferecer de imediato a resposta certa à pergunta acabava com o entusiasmo para Hinde. Matava a conversa. Matava o seu interesse.

– Sebastian, Sebastian, Sebastian... O que aconteceu consigo? Directo ao assunto. Sem ?nesse. Sem conversar. Você pergunta e é suposto eu responder. O que aconteceu a um encontro entre iguais?

– Nós não somos iguais.

Hinde suspirou um pouco alto. Sebastian nem sequer aproveitou esse facto. Quando era instado a tal não conseguia decidir-se a embarcar num diálogo, a medir forças com Hinde. Edward recostou-se na cadeira. Novamente desapontado.

– Você está a aborrecer-me, Sebastian. Antigamente nunca o fazia. Você sempre foi mais um... – Hinde procurou as palavras certas e encontrou-as passado um bocado – ... um desa?o estimulante. O que aconteceu consigo?

– Cansei-me de fazer jogos com psicopatas.

Edward decidiu desistir de Sebastian. Aquilo era demasiado aborrecido, demasiado inútil. Obviamente que deixara de ser o adversário formidável de outrora. Virou-se para a atraente colega de Sebastian. Talvez ela lhe desse algo mais em troca. Era bastante jovem; devia ser possível atraí-la para a sua teia.

– Vanja, possa tocar-lhe no cabelo?

– Cale-se com isso! – As palavras de Sebastian soaram como uma chicotada. Hinde foi apanhado de surpresa. Uma reacção forte. Voz elevada. Aquilo parecia raiva genuína. Interessante. Até àquele momento, Sebastian mostrara-se calmo e decidido. Determinado a não ser arrastado para qualquer tipo de discussão, a não denunciar nada. Mas de certeza que valeria a pena explorar mais um pouco aquela pequena explosão de raiva. Hinde inclinou a cabeça para um lado e deixou o seu olhar deambular, para cima e para baixo, pelo cabelo de Vanja.

– Parece tão macio. Não me importava de apostar que também cheira bem.

Vanja olhou para aquele homem magro sentado à sua frente, com o cabelo ?no e os olhos aquosos. O que pretendia ele?

Catorze anos.

Preso há catorze anos.

Pensou que Hinde não se devia ter encontrado com muitas mulheres durante esse tempo. Algum dos psicólogos que conheceu podia ser uma mulher, ou porventura uma funcionária da biblioteca. Contudo, a ideia de tocar nalguma delas estava fora de questão. Por isso ela conseguia entender o seu pedido. O seu desejo. Mas quão forte seria? Poderia usá-lo em seu benefício? Decidiu, pelo menos, levar as coisas um passo mais longe.

– O que ganho se o deixar tocar no meu cabelo?

– Cala-te com isso! – disse Sebastian de novo, ainda com a mesma aspereza no seu tom de voz. – Não fales com ele.

Sem interromper o contacto visual com a expressão desa?adora de Vanja, Edward recapitulou a situação. Daquela vez a voz de Sebastian revelou algo mais do que raiva e impaciência; parecia um pouco protector. Seriam amantes? Ela devia ser vinte e tal anos mais nova do que ele; o Sebastian que Hinde conhecera no ?nal da década de 1990 geralmente apegava-se a mulheres da sua idade. Mas pode ter mudado, claro. No entanto, tendo em consideração o comportamento de ambos, nada sugeria que tivessem qualquer relacionamento. Pelo contrário, Vanja exalava uma certa frieza em relação ao seu colega. Não havia empatia nos olhares que lhe dirigia e a sua linguagem corporal era negativa. Talvez fossem apenas muito bons a disfarçar? Valia a pena descobrir.

– Vocês andam a dormir juntos?

– Claro que não – respondeu Vanja.

– Você não tem nada a ver com isso – disse Sebastian ao mesmo tempo.

Edward ?cou satisfeito. A resposta de Sebastian, uma anti-resposta a ?m de manter o controlo. A resposta de Vanja, directa e instigada pela emoção. Genuína. Eles não andavam a dormir juntos. Então, porquê aquele tom protector? Haveria algo mais a ganhar? Falou de novo para Vanja.

– Se pudesse inclinar-se para a frente e colocar aqui o seu cabelo...

Edward virou a mão algemada para cima, como se fosse uma pequena taça, e apertou os dedos num gesto que, quando o fez, quase pareceu obsceno.

– Responde às minhas perguntas se o ?zer? – Vanja afastou a cadeira para trás como se estivesse prestes a levantar-se.

– Por amor de Deus! – Sebastian cuspiu as palavras como se estivesse a dar uma ordem. – Senta-te!

De?nitivamente perturbado com o cenário provável. Estava na hora de subir a parada.

– O seu cabelo, uma resposta. A qualquer pergunta que quiser. – Edward olhou para ela com uma expressão que resplandecia honestidade total. – O seu peito, três respostas.

Sebastian levantou-se com tanta força que a sua cadeira caiu para trás quando se atirou por cima da mesa e agarrou a mão de Edward, que estava virada para cima. Apertou-lhe os dedos algemados. Com força. Doeu, mas Edward não o demonstrou. A dor não era nada de novo para ele. Conseguia controlá-la. O júbilo que sentiu por ter conseguido dominar as emoções de Sebastian foi mais difícil de disfarçar.

– Não ouviu o que eu disse? – sibilou Sebastian. Estava mais perto. Aquele olhar sombrio a poucos centímetros do rosto de Hinde. Hinde sentiu-lhe a respiração, o suor na palma da mão de Sebastian. Tinha vencido.

– Sim, ouvi. – Edward descontraiu a mão, o que levou Sebastian a afrouxar o aperto. Hinde recostou-se para trás. Satisfeito. Exibia um pequeno sorriso nos cantos da boca. Enfrentou o olhar ?xo de Sebastian com uma expressão de triunfo.

– Mesmo que você não estivesse a jogar, acabou de perder.

 

Vanja e Sebastian percorreram a ala de segurança em silêncio. A sanha de Sebastian pusera um ?m à sessão com Hinde. Edward não dissera mais uma palavra; limitara-se a ?car sentado com aquele pequeno sorriso de satisfação no rosto. Recusara-se a desviar os olhos de Sebastian. Naquele momento encaminhavam-se para a saída, escoltados por um guarda.

– Eu sei cuidar de mim. – Vanja quebrou o silêncio.

– A sério? Seria bom que o demonstrasses. – Sebastian nem abrandou o passo. Ainda estava furioso. Edward tinha razão. Ele perdera. Não, Vanja ?zera-o perder. Isso não era menos irritante, mas diferente. Só porque ela não compreendera que nunca se dava nada a Hinde. Nem sequer se negociava com ele. Havia sempre um motivo por detrás de cada sugestão que fazia, uma traição por detrás de cada promessa. Talvez a culpa tivesse sido do próprio Sebastian. Era evidente que não a preparara devidamente. E isso também o incomodava.

– Eu nem sequer tive muitas hipóteses, não foi? – Vanja quase teve de começar a correr para acompanhar o passo de Sebastian. – O grande Sebastian Bergman veio logo em socorro da mulherzinha indefesa.

Chegaram à saída, uma pesada porta de aço com um pequeno postigo ao centro. Nenhuma fechadura ou puxador do lado de dentro. O guarda que os acompanhava fez o melhor que pôde para aparentar desinteresse pela conversa deles quando bateu na porta. Do outro lado do postigo apareceu um rosto que os examinou minuciosamente a ?m de determinar se tinham autorização para sair daquela ala e se não havia qualquer perigo.

Sebastian virou-se para Vanja pela primeira vez desde que abandonaram a sala de entrevistas e Hinde.

– A sério que pensas que conseguiríamos descobrir algo se tivesses deixado que ele te tocasse nas mamas?

– Tu achas mesmo que teria deixado que ele me tocasse?

A porta zumbiu e, a seguir, abriu-se. Sebastian e Vanja saíram da ala de segurança e prosseguiram ao longo do corredor. Vanja não sabia o que a incomodava mais. Havia muito por onde escolher, tudo relacionado com Sebastian. O facto de ele a ter subestimado, de ter usado a palavra «mamas» como um qualquer labrego do futebol, de achar que ela precisava de protecção, de caminhar àquela velocidade disparatada, de não ter con?ança nela.

– Eu estava só a entrar no jogo. – Ela alcançou novamente Sebastian. – Se não te tivesses comportado como uma porra de um cavaleiro de armadura reluzente, aquilo poderia ter levado a algum lugar.

– Não, não poderia.

– Como sabes? Interrompeste logo a conversa.

– Não podes brincar com o Hinde.

– Porque não?

– Ele é muito mais inteligente do que tu.

Vanja abrandou, deixando-o seguir à frente. Ficou a observá-lo e decidiu não se preocupar com qualquer tipo de hierarquia; passaria simplesmente a odiar tudo o que dissesse respeito a Sebastian. Fim da história.


ANNIKA NORLING FIZERA tudo o que podia para que Sebastian e Vanja se sentassem nos sofás junto à máquina de café enquanto ia dizer ao director que queriam falar com ele, mas sem sucesso. Sebastian passou pela sua secretária, foi direito à porta e abriu-a sem sequer bater.

Thomas Haraldsson deu um pulo na cadeira. Sentiu-se como se tivesse sido apanhado em falta, o que o surpreendeu. Olhou para cima e reconheceu de imediato o homem parado à entrada da porta; a expressão no rosto do homem deixou bem claro que não conseguia compreender o que estava a ver. As suas primeiras palavras con?rmaram -no.

– Que raio está você a fazer aqui?

Haraldsson deu uma pequena tossidela e sentou-se mais direito. Tentou recuperar alguma iniciativa, embora nunca a tivesse tido.

– Agora trabalho aqui.

Sebastian processou a informação e não tardou a chegar à única conclusão possível. A polícia de Västerås encontrara ?nalmente uma maneira de se livrar de Thomas Haraldsson e correra com ele. O que quer que tivesse acontecido, ao que parecia agora trabalhava como guarda em Lövhaga. Haraldsson não era o primeiro agente policial a seguir aquele caminho. Muitas vezes impunha-se uma mudança de carreira por o indivíduo em questão ser demasiado violento, ter acumulado demasiadas advertências o?ciais ou ter-se revelado insatisfatório de qualquer maneira. Era raro que a pura incompetência fosse a razão por detrás de uma despromoção, mas se viesse a existir uma primeira vez Haraldsson tinha de ser o principal candidato.

– Oh, bem, o serviço de polícia não é para todos – disse Sebastian enquanto entrava na sala. Vanja seguiu-o, acenando uma saudação a Haraldsson. Uma saudação de que ele nem se apercebeu. O que queria dizer Sebastian com aquilo de o serviço de polícia não ser para todos? O que pensava que Haraldsson estava a fazer ali?

– Onde está o chefe? – perguntou Sebastian, instalando-se numa das poltronas.

– O quê? – Haraldsson sentia-se ainda mais confuso, como se isso fosse possível. Estava sentado atrás da sua secretária, não estava?

Vanja compreendeu que ninguém dissera a Sebastian que Thomas Haraldsson passara a ser o responsável por Lövhaga e que esse acontecimento estava claramente para além dos limites da sua imaginação. Aquilo poderia ser interessante.

– Então, o que está você a fazer? – perguntou Sebastian com um sugestivo aceno para o computador à frente de Haraldsson. – A surfar em sites pornográ?cos na Internet com a palavra-passe dele? Foi assim que se livraram de si em Västerås?

Haraldsson não estava de todo a perceber. Era óbvio que havia ali algum tipo de mal-entendido. Aparentemente, Sebastian não sabia quem ele era ou, melhor, o que ele era.

– Eu trabalho aqui – disse Haraldsson com uma clareza que teria insultado um garoto de cinco anos.

– Sim, já me disse.

– Eu trabalho aqui. – Haraldsson bateu no tampo da secretária com as palmas das mãos. – Este é o meu gabinete. Eu sou o governador.

Sebastian contraiu -se.

– Você é o director?

– Sim. É minha primeira semana de trabalho.

– Como aconteceu isso? Rifaram o cargo?

Uma pergunta inteiramente justi?cada na opinião de Vanja mas, embora não tivesse grande consideração por Haraldsson nem pelas suas capacidades, sabia que estava em posição de lhes di?cultar consideravelmente a investigação – e, agora que tinha a certeza de que Hinde estava de algum modo envolvido nos homicídios, era a última coisa que desejava. No entanto, tal como da última vez em que trabalharam juntos, Sebastian parecia completamente alheado do facto de precisarem de manter boas relações com certas pessoas. Viu a expressão de Haraldsson ensombrar-se perante o último comentário de Sebastian e decidiu mudar de assunto antes que Sebastian dissesse algo que o ofendesse a sério. Talvez já fosse tarde de mais.

– Acabámos de falar com o Hinde – disse ela, sentando-se na outra poltrona.

Haraldsson desviou a sua atenção para ela e foi acolhido com um sorriso.

– Eu sei. Eu aprovei a autorização de visita.

– E estamos-lhe extremamente gratos por isso; facilitou muito o nosso trabalho mas precisamos de mais informações sobre o Hinde. – Vanja continuou a sorrir para Haraldsson e viu os ombros dele descaírem um pouco quando os descontraiu. Se pelo menos Sebastian tivesse o bom senso de se manter calado... Ele parecia ainda não ter recuperado por completo do choque.

– Tenho a certeza de que podemos ajudar-vos – disse Haraldsson –, mas nesse caso tenho de lhe perguntar o que andam a investigar. – Manteve os olhos ?xos em Vanja, tentando mostrar-se o mais determinado possível. Não tencionava ser um obstáculo na engrenagem no que dizia respeito à Riksmord, mas também não queria ser tratado como se não tivesse nada a dizer acerca do assunto. Podem ter conseguido fazê-lo em Västerås, mas ali não iria acontecer.

Era a sua instituição, as suas regras.

Não, não tens de perguntar, pensou Vanja, mantendo o sorriso. Não precisas de saber nada. Recapitulou rapidamente as opções no seu espírito. Ou saía de Lövhaga com a informação que queria, ou teria de apresentar um requerimento para se apoderar dela. Isso demoraria tempo e criaria problemas desnecessários. Decidiu oferecer alguma coisa a Haraldsson, demonstrar boa vontade.

– Estamos razoavelmente convictos de que o Hinde está envolvido em vários homicídios que andamos a investigar. – Ela podia oferecer-lhe isso. A?nal, tinha a certeza de que era uma mera questão de tempo até que a imprensa estabelecesse essa ligação.

– Como é isso possível? – Haraldsson parecia ter muitas dúvidas e com bons motivos. – Ele nunca sai da ala de segurança.

– Nós não dissemos que ele cometeu os homicídios – respondeu Sebastian, que já recuperara do choque e percebera, para seu deleite, que estava ainda mais irritado do que antes de terem entrado naquela sala. Na verdade, encontrava-se à beira da fúria. Uma fantástica onda de energia inundou-lhe o corpo. – Nós dissemos que ele estava envolvido; não é a mesma coisa.

– Posso perguntar o que vos leva a pensar isso?

– Pode, mas não irá obter uma resposta.

– Pensamos que ele teve ajuda de fora – respondeu Vanja, contrariando de imediato Sebastian. Sentiu que o seu colega olhava para ela. – Há alguém próximo de Hinde que tenha sido libertado recentemente? – prosseguiu, ignorando o suspiro profundo, de enfado, de Sebastian.

– Não sei.

– Você não sabe quem foi libertado? – Sebastian pôs-se em pé, demasiado frustrado para ?car sentado e quieto. – Qual é que você disse que é a sua função? Director?

– Esta é a minha primeira semana no cargo; ainda não estou inteirado de tudo, o que é perfeitamente compreensível.

Haraldsson engoliu o resto da frase. Defendia-se quando não tinha qualquer motivo para o fazer. Jenny estava sempre a dissuadi-lo do seu mau hábito de passar à defensiva assim que alguém o questionava. O melhor era limitar-se a ignorar aquele desagradável psicólogo; em qualquer caso, ele não iria contar nada a Haraldsson. Virou-se de novo para Vanja.

– Vou averiguar.

Pegou no telefone e ligou para um número na marcação rápida. Sebastian dirigiu-se para a porta.

– Onde vais? – quis saber Vanja.

Sebastian saiu da sala sem responder. Entrou na pequena sala de espera que tinha os dois sofás, a máquina de café e a assistente pessoal de Thomas Haraldsson. Ela apresentara-se como Annika qualquer-coisa. Levantou os olhos para Sebastian e sorriu-lhe por uns instantes antes de retomar o trabalho. Sebastian contemplou-a. Cerca de quarenta anos, alguns quilos a mais realçados pela blusa justa apertada com um cinto. Cabelo avermelhado, de certeza pintado; a cor de rato original começava a aparecer junto às raízes. Uma maquilhagem subtil realçava-lhe o rosto arredondado e um berloque pendia-lhe entre os seios. Anéis em dois dedos mas nenhuma aliança de casamento. Pela primeira vez não se sentiu minimamente tentado. Na verdade, naquele momento não se conseguia imaginar interessado em sexo. Por mais que andasse realmente a tentar.

– Posso ajudá-lo em alguma coisa? – Annika olhou de novo para cima; provavelmente tomara consciência do seu escrutínio silencioso desde que saíra do gabinete de Haraldsson. Haraldsson, que acabara de con?rmar aquela hipótese bem conhecida de que a maioria das pessoas sobe na carreira um ou dois níveis acima daquele que a sua competência lhes deveria permitir.

Sebastian não conseguiu resistir à tentação.

– O seu chefe disse para lhe levar um café.

– O quê?

– Com leite, sem açúcar, e é melhor despachar-se, disse ele. – Sebastian percebeu que ela ?cou irritada. Talvez não pelo pedido do café propriamente dito, mas pela menção da necessidade de se apressar a fazê-lo. Levantou-se com um suspiro contido e foi até à máquina de café, que estava entre os dois sofás. Pegou num copo de plástico.

Sebastian decidiu levar a situação um pouco mais longe.

– Ele não quer do instantâneo – disse-lhe. – Quer café a sério, da cafetaria. Numa chávena como deve ser.

Annika virou-se para con?rmar se o ouvira correctamente. Sebastian encolheu os ombros para lhe indicar que era apenas o mensageiro.

– E vocês também querem alguma coisa, já que tenho de ir lá? – Percebeu que ela se esforçava por impedir que o ressentimento lhe transparecesse na voz.

– Não, nós estamos bem, obrigado. – Sebastian brindou-a com um sorriso caloroso e simpático. – Se mudarmos de ideia podemos beber o da máquina.

Annika assentiu e olhou para ele com uma expressão que signi?cava que Haraldsson podia ter feito o mesmo e, a seguir, saiu da sala batendo com a porta atrás de si. Sebastian regressou ao gabinete de Haraldsson, sentindo-se um pouco mais alegre.

O seu sentido de oportunidade não podia ter sido melhor. Haraldsson pousou o telefone, virou-se para o computador e começou a bater no teclado.

– Pelo que entendi, não há ninguém que seja ou que tenha sido particularmente próximo de Edward Hinde. Roland Johansson esteve na ala de segurança com o Hinde e, como é evidente, tiveram algum contacto, mas ele já saiu há quase dois anos. – Olhou para o ecrã e percorreu páginas com o rato. – Sim, faz dois anos em Setembro.

– Mais ninguém? – perguntou Vanja enquanto tomava nota do nome.

– De vez em quando costumava jogar xadrez na biblioteca com o José Rodriguez – continuou Haraldsson, tornando a bater no teclado. – Diz aqui que ele foi libertado há pouco menos de oito meses.

– Gostaria de levar uma cópia de tudo o que tiver acerca deles – disse Vanja, anotando o segundo nome.

– Claro; vou imprimir os processos deles e podem recolhê-los junto da Annika quando saírem.

Vanja agradeceu-lhe com um aceno de cabeça; tinha sido mais fácil do que esperara. Estava prestes a levantar-se quando bateram à porta e Annika entrou com uma chávena de café.

Sebastian apontou para Haraldsson atrás da mesa.

– Para o chefe.

Annika aproximou-se e pousou a chávena à frente de Haraldsson sem dizer uma palavra.

Ele olhou para ela, agradavelmente surpreendido.

– Obrigado, isto é muito gentil. – Agarrou a asa e rodou a chávena um pouco, como se quisesse examiná-la. – E pela primeira vez numa chávena de porcelana.

Sebastian viu o olhar sombrio que Annika lançou ao chefe antes de sair do gabinete. Será que devia mandá-la ir buscar um bolo quando estivessem a sair? Ou talvez esse passo fosse demasiado ousado. Ouviu Vanja agradecer a Haraldsson pelo auxílio e saíram do gabinete.

Após a Riksmord ter abandonado a sala, Haraldsson pegou na chávena de café e recostou-se na cadeira. Sorveu um pouco. Delicioso. Não era a habitual água suja tirada da máquina. Iria perguntar a Annika se não se importava de passar a ir buscar-lhe sempre o café à cafetaria. Mas isso podia esperar.

Portanto, o Hinde estava envolvido em vários homicídios.

Vários.

Plural.

De certeza que eram aqueles homicídios em série acerca dos quais lera nos jornais. «O Tarado do Verão», como um dos tablóides chamara ao assassino. Quatro mortes no espaço de um mês. Apunhaladas, segundo a imprensa. Uma grande investigação. Era um caso importante e a Riksmord achava que Hinde estava envolvido.

Edward Hinde, na ala de segurança de Haraldsson.

Sorveu outra golada daquele delicioso café quente. Era evidente que a Riksmord andava obviamente à procura de um assassino mas não fazia ideia acerca de quem poderia ser. Hinde saberia? E se Haraldsson pudesse ajudá-los? Melhor ainda, e se conseguisse levar Hinde a contar-lhe o que sabia? Não seria nada mau se fosse ele a fornecer as peças em falta no quebra-cabeças daquele caso de grande notoriedade. Talvez não quisesse ?car para sempre como director de uma prisão. Havia outros cargos disponíveis. Mais acima. Haraldsson bebeu outro gole de café e decidiu visitar Hinde com mais frequência. Tornar-se amigo dele.

Ganhar a sua con?ança.

Já conseguia ver os títulos dos jornais.

Já conseguia ouvir os elogios.


FOI DEPOIS do almoço que se reuniram de novo na Sala. Sebastian fora a casa tomar um duche. Ainda não superara o seu fracasso em Lövhaga. Não só não descobrira nada, como Hinde vencera. Com um golpe absolutamente fatal. Sebastian recapitulara aquele encontro na sua cabeça enquanto estava no chuveiro e chegara à conclusão de que a culpa era realmente de Vanja. Não por ela ter começado a negociar com Hinde – podiam ter conseguido inverter a situação, não para obterem vantagem mas para alcançarem, pelo menos, um empate a zeros. O problema era a própria Vanja. Quem ela era. Sua ?lha. Sebastian entrara na reunião com segredos. Outrora, quando conhecera Hinde, não precisava de esconder fosse o que fosse. Podia fazer a sua jogada, reagir como desejasse, tomar decisões no calor do momento sem recear que o homem do outro lado da mesa viesse a descobrir mais do que devia. Já não era esse o caso. Se quisesse manter-se ao nível de Hinde tinha de poder usar todo o terreno de jogo. Se houvesse uma pequena área onde não estivesse disposto a ir, então podia contar com o facto de Hinde orientar a conversa nessa direcção. Desta vez ele não tinha apenas segredos a esconder de Hinde, mas também de Vanja. Era uma situação impossível.

Por culpa de Torkel.

Ou sua.

Devia ter dito que não.

Não devia ter ido a Lövhaga com Vanja, mas com Billy.

Pena que não tivesse pensado nisso antes de estar no chuveiro.

Sebastian sentou-se ao lado de Ursula. A Sala estava quente e pegajosa e cheirava a abafado. Alguém abrira a janela, mas isso de pouco ajudava. Na Sala não havia ar condicionado; estava simplesmente ligada ao sistema de ventilação comum, que se esforçava por lidar com o calor estival.

Quando já estavam todos sentados, Billy acendeu o projector do tecto e ligou o seu computador portátil.

– Encontrei os dois homens que foram libertados de Lövhaga; não foi difícil, mantivemos um bom controlo sobre eles.

Premiu uma tecla e apareceu na parede a imagem de um homem com cerca de cinquenta anos. Rabo-de-cavalo. Rosto largo, nariz partido e uma cicatriz vermelha que atravessava o olho esquerdo e lhe descia pela face. O homem parecia uma caricatura de um criminoso pro?ssional.

– Roland Johansson. Nascido em Gotemburgo em 1962. Duas tentativas de homicídio e agressão agravada. Abuso de drogas. Detido em Lövhaga entre 2001 e 2008. Regressou a Gotemburgo após cumprir a sentença. Falei com o agente de ligação dele. Andavam juntos em viagem quando foram cometidos o segundo e o terceiro assassinatos. Viajavam de autocarro para Österlen com os Narcóticos Anónimos.

– Ele anda a consumir de novo? – interveio Vanja.

– Segundo diz o agente de ligação não, mas frequenta as reuniões com regularidade. – Billy baixou os olhos para as suas notas. – Ele não tem um álibi para o primeiro homicídio mas ontem de manhã estava de certeza em Gotemburgo, uma vez mais segundo o agente de ligação.

Torkel suspirou. De?nitivamente, Johansson parecia ser mais uma pessoa que podiam eliminar da investigação.

– Quem é o agente de ligação dele?

Billy folheou os papéis.

– Fabian Fridell.

– O que sabemos a seu respeito?

Billy compreendeu o que Torkel lhe estava a perguntar. Todos os álibis de Johansson eram fornecidos pelo mesmo homem. Era pouco provável que duas pessoas diferentes tivessem cometido os homicídios mas Johansson podia ter alguma in?uência sobre Fridell, obrigando-o a fornecer-lhe um álibi.

– Pouco. Nenhum cadastro, pelo que pude ver, mas irei investigá -lo.

– Muito bem.

– E irei falar com algumas pessoas que ?zeram a viagem de autocarro.

Torkel assentiu. Sem dúvida que Roland Johansson andara a deambular por Österlen a visitar cervejarias e a fazer pinturas a óleo à beira-mar, ou o que quer que os Toxicodependentes Anónimos faziam durante as suas excursões de autocarro. No entanto, quanto mais cedo tivessem a certeza, mais depressa poderiam eliminá -lo.

– Pedi ao cadastro as impressões digitais dele e as do outro fulano – a?rmou Ursula. – Assim podemos compará-las com as que foram encontradas nos locais dos crimes.

– Óptimo – respondeu Torkel. – Iremos fazer uma investigação forense e con?rmar a actividade de ambos.

– Eu posso ?car com o Fridell – disse Billy.

– Como é que o Johansson arranjou aquela cicatriz? – perguntou Sebastian.

Billy olhou de novo para os seus papéis, de um modo rápido e ansioso. Queria mostrar-se entusiasmado.

– Não diz aqui. Isso é importante?

– Não. Estou apenas curioso.

Billy projectou a imagem seguinte. Um homem mais novo com aparência de latino-americano. Uma grande argola de ouro em cada orelha.

– José Rodriguez, trinta e cinco anos. Detido em Lövhaga desde 2003. Por agressão e violação. Mora em Södertälje.

– Foi aí que roubaram o Focus – disse Vanja.

– Exactamente. Quando estabeleci essa relação entrei em contacto com a polícia local e foram falar com ele. – Billy estava satisfeito por se ter mantido um passo à frente. Prosseguiu: – Segundo eles, o Rodriguez não se lembra do que andou a fazer nas datas em causa. Não há dúvida de que é um verdadeiro alcoólico, pelo menos de tempos a tempos.

Desligou o computador portátil, foi até ao quadro e a?xou cópias em papel das fotogra?as que tinham acabado de ver.

Torkel virou-se para Sebastian.

– O que conseguiram extrair do Hinde?

– Nada.

– Nada?

Sebastian encolheu os ombros.

– Ele perdeu peso e queria apalpar as mamas da Vanja, e na prática foi só isso.

– Mas ele sabe algo acerca dos homicídios – disse Vanja, optando por ignorar o que Sebastian acabara de dizer.

Torkel lançou-lhe um olhar inquiridor.

– E como o sabes?

Foi então a vez de Vanja encolher os ombros.

– É uma intuição.

– Uma intuição? – Torkel empurrou a cadeira para trás com alguma força e levantou-se. Começou a andar pela sala de um lado para o outro. – Portanto, tenho um homem que a?rma ser especialista nos assassinos em série de um modo geral, e no Edward Hinde em particular, e não consegue obter nada de um frente-a-frente. – Fez uma careta para Sebastian, que enfrentou o seu olhar com equanimidade e, a seguir, pegou muma garrafa de água mineral. Por mera consideração pela tensão arterial de Torkel, preferiu não lhe responder. Torkel era em geral a epítome da calma, mas por vezes entrava em erupção. Tudo o que se podia fazer era esperar que aquilo lhe passasse. Sebastian abriu a garrafa e bebeu um trago.

Era evidente que Torkel já não tinha mais nada a dizer-lhe porque se virou para Vanja.

– E depois tenho uma investigadora que tem a intuição de que o Hinde está envolvido. Uma intuição! O que havemos de fazer a seguir? Pedir a alguém para elaborar a merda do horóscopo dele?! Ora foda-se! – Torkel parou e bateu com as mãos em cima da mesa. – Andam a morrer mulheres!

A sala ?cou em silêncio. No exterior conseguiram ouvir o ténue som do trânsito, no qual ninguém reparara até àquele momento. Uma vespa entrou pela janela a zumbir mas pareceu mudar de ideias; bateu várias vezes no vidro até encontrar o caminho de saída. Ninguém se mexeu. Todos mantiveram os olhos ?xos numa qualquer zona neutra onde tinham a certeza de não tropeçar no olhar de alguém. Excepto Ursula, que ?tou cada um deles à vez, aparentemente satisfeita por não ter ?cado debaixo de fogo. Sebastian bebeu mais um trago de água mineral. Billy ajustou uma fotogra?a que já estava perfeitamente direita. Vanja começou a roer uma unha. Torkel permaneceu em pé junto à mesa durante algum tempo, depois caminhou deliberadamente de volta para o seu lugar, puxou a cadeira e sentou-se. Se alguém podia quebrar aquela atmosfera opressiva que se instalara, teria de ser ele. Respirou fundo.

– Se eu conseguir outra reunião com o Hinde existe alguma possibilidade de lhe sacares algo da próxima vez?

– Provavelmente, se for sozinho – respondeu Sebastian.

Vanja reagiu de imediato.

– Ah, claro, portanto fui eu quem teve a culpa por não termos chegado a lado nenhum?

– Não foi isso que eu disse.

– Disseste que farias melhor sem mim. Como raio o hei-de interpretar?

– Tanto me faz. Interpreta-o como quiseres. – Sebastian terminou a garrafa de água mineral e arrotou baixinho devido ao dióxido de carbono, o que tornou o seu tom de voz mais desagradável do que pretendia.

Vanja virou-se para Torkel.

– Tu achas que isto está a dar resultado? Achas?

– Vanja...

– Lembras-te do que dissemos que iríamos fazer se isto não funcionasse? Dissemos que iríamos correr com ele.

Torkel suspirou. Perdera a calma e agora havia um mau ambiente no seio da equipa. A questão era saber se o motivo se devia à frustração por ainda não saberem nada acerca do perpetrador ou se fora por terem readmitido Sebastian. Torkel não sabia mas tinha de voltar a uni-los, ainda que fosse apenas por algum tempo.

Pôs-se lentamente em pé.

– Muito bem... Vamos acalmar-nos. Está calor, temos trabalhado muito, foi um longo dia e ainda não chegou ao ?m.

Avançou até ao quadro, olhou para as fotogra?as e depois virou-se para trás a ?m de encarar os outros.

– Precisamos de nos aproximar deste homem. Temos de o apanhar. Ursula, compara as impressões digitais e o ADN dos nossos registos com os de Johansson e Rodriguez.

Ursula fez um gesto de aquiescência, levantou-se e saiu da sala.

– Vanja, vai até Södertälje e vê se consegues avivar a memória do Rodriguez.

– Não devíamos esperar até ver o que a Ursula descobre?

– O carro que provavelmente andou a seguir Sebastian veio do mesmo local. De momento é su?ciente para justi?car que dediquemos mais alguma atenção ao Rodriguez.

Vanja assentiu.

– Mas ele não vem comigo. – Fez um gesto na direcção de Sebastian sem olhar para ele.

Torkel suspirou.

– Não, ele não vai contigo.

 

– Eu não consigo entender-te.

Torkel e Sebastian entraram no gabinete do primeiro.

– Não és o único.

Sebastian sentou-se no sofá, enquanto Torkel se empoleirava na beira da secretária.

– Esforças-te para regressares e, quando já estás cá dentro, parece que andas a fazer tudo o que é possível para seres expulso de novo.

– Tu estás realmente a pensar livrares-te de mim só porque pisei alguns calos?

– Não é por causa disso. Já não.

– Eu não podia saber que a Annette Willén ia ser assassinada.

– Estou a correr um grande risco ao manter-te nesta investigação. Tens ligações com as quatro vítimas. Imagina o que irão pensar os fulanos do andar de cima.

– Desde quando te preocupas com esse tipo de coisas?

Torkel suspirou, cansado.

– Eu sempre me preocupei com esse tipo de coisas porque é o que dá à minha equipa a liberdade de agir por sua própria iniciativa. Bem sei que isso não te interessa porque fazes sempre exactamente o que queres. Mas estou a dizer-te pela última vez: trata de resolver os teus problemas.

Sebastian pensou no que ?zera, no que dissera, no modo como agira desde que se juntara à investigação. Não tardou a chegar à conclusão de que se comportara exactamente como sempre o fazia. Dizia o que pensava e não se punha em bicos de pés ?ngindo estar eternamente grato. Contudo, na realidade não queria ser expulso. Se permanecesse ali podia manter-se perto de Vanja, mas essa não era a única razão. Já nem sequer era o mais importante. Se uns dias antes alguém lhe tivesse perguntado o que poderia diminuir o seu interesse por Vanja, a sua obsessão com ela, teria respondido «Nada». Mas ter-se-ia enganado. Naquele momento só pensava em algo que ofuscava tudo o resto – até Vanja. Tinham morrido quatro mulheres por sua causa.

– Eu vou realmente esforçar-me – disse Sebastian com sinceridade. – Não quero ir-me embora.

Torkel levantou-se e fechou a porta. Sebastian olhou para o colega com um certo cepticismo quando ele se sentou na poltrona à sua frente. O que seria desta vez?

– O que se passa com o Billy? Parece que está a tentar subir um ou dois níveis – disse Sebastian, esperando que a sessão de terapia fosse esquecida se desviasse as atenções para outra pessoa.

– Estás a mudar de assunto.

– Também notaste.

– Tenho todo o gosto em falar acerca do Billy. Noutra ocasião qualquer. – Torkel inclinou-se para a frente e juntou as mãos como se fosse começar a rezar. Um mau sinal, pensou Sebastian. Uma postura de escuta.

– O que aconteceu, Sebastian? Tu sempre foste egoísta, desagradável e convencido, mas desde que voltaste... É como se estivesses em guerra com tudo e todos.

Torkel calou-se. A pergunta ?cou a pairar no ar. O que acontecera? Por instantes, Sebastian pensou como seria se realmente contasse tudo a Torkel. Acerca de Lily. Acerca de Sabine. Acerca de uma felicidade que ele jamais conhecera antes ou depois. Acerca da onda que levara tudo para longe dele. Que mal poderia isso fazer? Talvez lhe desse até mais algum espaço de manobra no seio da equipa. Tinha a certeza de que Torkel sentiria pena dele. Ficaria genuinamente desolado. Mais preocupado do que qualquer outra pessoa desde que aquilo lhe sucedera. Não que Sebastian tivesse dado a alguém a oportunidade de demonstrar a sua preocupação, mas mesmo assim.

Um Torkel que interpretasse tudo o que Sebastian ?zesse como uma reacção à dor podia ser muito útil.

Era o seu trunfo.

A sua carta -para -sair -da -prisão.

Não tencionava jogá-la antes de ser absolutamente necessário, mas sabia que precisava de encontrar uma espécie de resposta para Torkel. Sabia exactamente o que dizer. Iria contar-lhe a verdade.

– Sinto-me responsável.

– Pelos homicídios. – Uma a?rmação, não uma pergunta.

Sebastian assentiu.

– De certa maneira consigo entendê-lo – disse Torkel. – Mas tu não és culpado pelas suas mortes.

Sebastian sabia-o. Sabia-o a um nível lógico. A um nível emocional era uma questão muito diferente. Continuava a ser surpreendentemente bom falar acerca do assunto. Talvez já o pudesse ter discutido com Stefan, mas depois do que sucedera não sabia ao certo se Stefan ainda era seu terapeuta. Sebastian telefonara-lhe, e até lhe deixara um pedido de desculpas no atendedor automático, mas Stefan não retribuíra a chamada. E isso fora antes de Stefan saber que Annette tinha sido assassinada. Se Stefan descobrisse que ela morreu porque passou a noite com Sebastian, a relação entre os dois acabaria para sempre. Provavelmente estava na altura de procurar outra pessoa com quem conversar, mas até lá Torkel teria de servir.

– A última, a Annette. Eu dormi com ela só para irritar o meu terapeuta.

– E quais foram os teus motivos para dormires com as restantes?

Sebastian ?cou surpreendido com a pergunta e a atitude descontraída de Torkel. Esperava uma condenação. Ou então uma pequena repreensão dado o facto de Sebastian estar visivelmente afectado pelo que acontecera, mas em todo o caso esperava uma espécie de condenação. A bússola moral de Torkel estava muito bem calibrada.

– O que queres dizer?

– Corrige-me se estiver enganado, mas tu não andas por aí à procura da Mulher Certa, pois não? Todas essas mulheres foram apenas uma espécie de... distracção. – Torkel recostou-se na poltrona. – Tu serves-te das pessoas. Não te preocupas com as mulheres. Nem antes, nem depois.

Sebastian nem sequer tentou negar o facto. Não era propriamente uma notícia de última hora.

As três primeiras vítimas, as mulheres do seu passado, atormentavam-no, mas havia um limite para o ponto em que se conseguia rebobinar a ?ta, para o ponto em que se retrocedia no tempo de modo a conseguirmos lamentar as nossas acções. Porém, Annette... essa era diferente. Entranhara-se em si.

– Tinha uma auto-estima muito baixa, a Annette. Andava desesperada por alguém que a ?zesse sentir-se bem consigo mesma. Foi tão fácil...

– Tu tens a consciência pesada. – De novo uma a?rmação, não uma pergunta.

Sebastian teria de pensar no assunto. Há tanto tempo que não sentia a consciência pesada que nem sabia ao certo como seria.

– Suponho que sim.

– Ter-te-ias sentido da mesma maneira se ela não tivesse sido assassinada?

– Não.

– Nesse caso, não conta.

Cruel, mas verdadeiro. A exploração, a conquista, não o incomodavam de todo. Mas ela morrera porque ele tivera um dia mau. Era difícil ignorar esse facto.

– Tens falado com algumas das mulheres com quem andaste? – Torkel levou a conversa numa nova direcção. Avançou.

– Passaram quase quarenta anos entre a primeira e a última. Nem sequer consigo lembrar-me de algumas.

Torkel deu por si a pensar quantas parceiras tivera. Duas esposas, quatro ou cinco namoradas antes da primeira esposa. Quatro, na verdade. Algumas entre os casamentos. E depois a Ursula. Talvez chegasse aos dois algarismos. Não precisava de fazer um grande esforço para se lembrar dos nomes de todas. Mas claro que, no caso de Sebastian, teria de se multiplicar por vinte, talvez trinta. Talvez mais ainda. A memória desilude-nos.

– O que estou a tentar dizer-te – prosseguiu Torkel – é que, se ?zermos o possível para impedir que a situação se repita, isso já seria uma ajuda. Tanto para ti como para nós. – Levantou-se, dando a entender que a conversa chegara ao ?m. – Mas se não te lembras delas não se pode fazer nada.

Sebastian permaneceu onde estava, a olhar para o espaço.

A pensar.

De facto, lembrava-se de algumas...


VANJA CONTEMPLAVA o centro da povoação. Podia ter sido qualquer lugar. Mas era Hovsjö. Uma das trinta e oito regiões que em 2009 o governo assinalara como sendo de «atenção acrescida» a ?m de «combater o sentimento de exclusão», lembrou-se Vanja. «Um investimento» nas «zonas vulneráveis». No fundo, era uma maneira mais elegante de descrever um subúrbio onde existiam mais problemas do que soluções. Vanja não sabia se a tal atenção acrescida dera algum resultado, mas não parecia que isso tivesse acontecido.

O seu GPS guiara-a até Granövägen. Alguns metros mais adiante era permitido virar à esquerda para Kvarstavägen, o local onde o Ford Focus azul-claro fora roubado seis meses antes. De súbito, José Rodriguez tornara-se muito mais interessante.

Vanja estacionara, saíra do carro e olhara para o edifício castanho de oito andares. Encontrara a entrada e o apartamento. Tocara à campainha. Como ninguém respondera, tentara o vizinho da frente no mesmo piso; o nome que estava na caixa do correio era Haddad. Uma mulher com cerca de quarenta e cinco anos abrira-lhe a porta. Vanja mostrou-lhe a identi?cação e perguntou-lhe se tinha visto José Rodriguez ou se sabia onde o poderia encontrar.

– É provável que esteja na praça – disse a mulher, quase sem sotaque.

– Ele trabalha lá? – perguntou Vanja, imaginando um mercado animado como o de Hötorget no meio de Estocolmo.

A mulher que estava à porta sorriu como se Vanja tivesse dito algo de realmente engraçado.

– Não, ele não trabalha. – O tom de voz que usou ao pronunciar aquelas quatro palavras não deixou dúvidas acerca do que pensava do seu vizinho.

Vanja agradeceu à mulher pela informação e partiu a pé em direcção ao centro.

Um cabeleireiro, um restaurante, uma mercearia, uma camioneta a vender hambúrgueres e coisas semelhantes, uma pizzaria, um quiosque de jornais e uma loja de roupa. Todos os estabelecimentos separados por uma faixa de cimento. Um autêntico túnel de vento no Outono e no Inverno, pensou Vanja, mas naquele momento o Sol caía a pique, transformando aquela praça num deserto pedregoso. Algumas pessoas estavam sentadas, à sombra, num dos bancos à porta da clínica. Um pastor alemão magro arfava deitado no chão, e as duas latas de cerveja que iam sendo passadas entre os homens e as mulheres sentados no banco indicaram a Vanja que, provavelmente, aquele seria um bom sítio para começar a procurar Rodriguez. Encaminhou-se para lá. Quando chegou a cerca de dez metros de distância, os cinco ocupantes do banco já tinham virado a sua atenção para ela. O único que se mostrava completamente desinteressado era o cão. Vanja sacou da fotogra?a de José Rodriguez enquanto dava os últimos passos até à sombra por baixo do edifício.

– Sabem onde posso encontrar este homem? – Estendeu-lhes o retrato. Não valia a pena tentar esconder o propósito da sua visita. Provavelmente adivinharam que era agente da polícia assim que pôs os pés na praça.

– Porquê? – Um homem de cabelo grisalho e idade indeterminada que segurava a trela do cão levantou os olhos após observar rapidamente a fotogra?a que ela tinha na mão.

– Preciso de falar com ele – respondeu Vanja, mantendo a abordagem directa.

– Pois, mas será que ele quer falar consigo? – perguntou de novo o homem de cabelo grisalho. Como lhe faltavam dois dentes da frente, a pergunta foi proferida com um ligeiro ceceio. Isso fez com que a sua voz parecesse quase meiga. Vanja pensou que o homem devia ter alguma di?culdade em impor respeito pois parecia um menino de seis anos com a voz grossa. Talvez fosse por isso que trazia o pastor alemão. Para compensar.

– Julgo que ele pode tomar essa decisão.

Não era de todo a resposta que eles pretendiam. Como se obedecessem a uma ordem, continuaram o que estavam a fazer antes de ela aparecer. Foi como se tivesse deixado de existir. Vanja suspirou. Podia caminhar pela praça mostrando o retrato às pessoas e fazendo perguntas até ter sorte, mas estava calor, sentia-se cansada e queria ir para casa. En?ou a mão no bolso da frente dos jeans e tirou uma nota de cem coroas.

– Eu só quero que me digam onde ele está. Ele nunca irá saber como o descobri.

– Normalmente ele pára lá em baixo, junto ao campo de férias – disse de imediato um homem magro, com os cabelos compridos, que vestia um blusão de ganga, pegando no dinheiro com a mão suja e trémula antes que os outros tivessem sequer tempo de trocar um olhar para decidirem se o valor era ou não o correcto.

Vanja manteve a nota fora do seu alcance.

– Onde ?ca isso?

– Lá em baixo. – O homem dos cabelos compridos acenou com a mão na direcção de onde Vanja viera. – Junto ao lago – como é que aquilo se chama... Tomatstigen...

O nome de uma rua. Teria de bastar. Vanja deu-lhe o dinheiro e ele guardou-o rapidamente no bolso, mostrando-se indiferente ao olhares de reprovação dos outros.

Quando chegou ao carro, Vanja inseriu Tomatstigen no GPS e viu que na realidade ?cava muito perto, mas se fosse de carro até lá teria de fazer um desvio considerável.

Em vez disso conduziu até Kvarstavägen, estacionou o mais perto possível e a seguir atravessou a pé um pequeno bosque de árvores até à zona residencial adjacente e ao campo de férias. Os edifícios assemelhavam-se mais a moradias de Verão do que a simples chalés. Os jardins estavam bem tratados; não se tratava de um conjunto de barracões en?ados a um canto. Cada casa devia ter vinte metros quadrados, mobiliário de jardim, zona de churrasco, camas de rede e outros confortos dos quais se podia desfrutar quando os ocupantes não estivessem atarefados com as suas plantas. Vanja não tinha qualquer desejo de se aproximar da natureza, pelo menos daquela maneira. Semear coisas, arrancar ervas, cavar, desbastar – nada disso era para ela. Mal conseguia manter vivas as plantas nos seus vasos. No entanto, um local como aquele era bonito naquela época do ano, com ?ores e verdura por toda a parte e abelhas a zumbirem atrás de cada cerca.

Os sapatos de Vanja rangeram ao longo da pista de gravilha que descia para o lago, e foi examinando a zona enquanto avançava. Aquele não parecia ser o tipo de local que tolerasse bêbados indigentes a passearem e a estragarem aquele idílio. Tê-la-iam enganado na praça por causa das cem coroas? Já chegara ao limite da urbanização e decidira regressar para o carro quando os avistou. No caminho asfaltado que contornava o perímetro da ?oresta, várias pessoas estavam sentadas em cima e ao redor de um banco. No chão havia sacos com a marca do monopólio estatal de álcool. Era um grupo bastante grande; talvez umas oito a dez pessoas. Dois cães. Vanja encaminhou-se rapidamente para o local. Quando chegou mais perto, viu que o homem e a mulher mais próximos dela estavam a comer maçãs, provavelmente furtadas num jardim das proximidades.

Sacou da fotogra?a e foi directa ao assunto.

– Ando à procura de José Rodriguez; algum de vocês o viu?

– Eu sou José Rodriguez.

Vanja virou-se para o lado direito e descobriu que tinha de olhar para baixo para ?tar o homem da fotogra?a. De repente, sentiu-se indizivelmente cansada. Cansada e furiosa. Aquilo não podia estar a acontecer.

– Há quanto tempo está você nessa coisa?

– Porquê?

– Há quanto tempo?

– Fui atropelado por um carro há seis meses, talvez um pouco mais...

Vanja soltou um suspiro audível e deixou-se ?car durante uns instantes a recobrar as forças antes de dar meia-volta e se ir embora.

– Mas então, o que queria você? – gritou o homem atrás dela.

Vanja limitou-se a acenar-lhe com indiferença, sem olhar para ele, e continuou a andar. Pegou no telemóvel e ligou a Torkel na marcação rápida. Estava ocupado. Desligou a chamada e tentou contactar Ursula.


URSULA ESTAVA no refeitório do pessoal a olhar ?xamente para uma dose de peixe gratinado que rodava num dos microondas. Almoço tardio. Ou jantar antecipado. Assim, se Micke lhe telefonasse podia dizer que já tinha comido. Por algum motivo não lhe apetecia sair do emprego e ir para casa.

Para Micke.

Para mais um serão a brincar às famílias felizes.

Os seus pensamentos foram interrompidos pelo som do telemóvel, que deixara em cima da mesa. Atravessou o refeitório; alguém se dera a muito trabalho para tornar aquele espaço menos impessoal e esterilizado. Nas seis mesas compridas havia toalhas aos quadrados vermelhos, que combinavam com as cortinas e as tapeçarias penduradas nas paredes. As cadeiras de plástico branco haviam sido equipadas com almofadas, e as paredes contornadas com um friso ?orido. O mesmo padrão ?oral repetia-se aqui e acolá nas portas dos armários e nos equipamentos brancos da zona da cozinha. As desagradáveis luzes ?uorescentes tinham sido substituídas por candeeiros individuais suspensos por cima de cada mesa, a par de alguns focos de iluminação indirecta. Três canteiros com plantas de interior, além de um aquário junto à porta, atestavam o facto de que a sala «não é apenas um local para comer, mas um espaço que pode proporcionar um período de harmonia e de restabelecimento», como se lia no boletim distribuído ao pessoal após as obras de renovação. Quanto custara aquilo? Ursula nunca se sentira particularmente harmoniosa ou restabelecida depois de comer no refeitório. Saciada, talvez, mas isso também se aplicava à antiga sala.

Pegou no telemóvel e olhou para o ecrã. Era Vanja.

– Olá.

– Sou eu – ouviu Vanja dizer; parecia esbaforida, como se estivesse a andar depressa.

– Eu sei. Como vai isso?

– Não vai. – Vanja quase cuspiu as palavras. – Os fulanos da polícia local que veri?caram o Rodriguez disseram-nos que ele era alcoólico, mas escapou-lhes o pequeno pormenor de que está na merda de uma cadeira de rodas.

Ursula não conseguiu evitar sorrir. A sua con?ança na polícia local era praticamente inexistente. Aquele facto só vinha con?rmar a sua ideia de que nos casos em que não di?cultavam realmente uma investigação, decerto também não faziam nada de útil. Pensou se aquele seria um bom momento para dizer a Vanja que Rodriguez já fora eliminado como possível perpetrador. Nem as suas impressões digitais nem o ADN correspondiam aos que tinham sido encontrados nos locais dos crimes. Decidiu deixar o assunto para mais tarde. Aparentemente, a sua colega já tivera contratempos su?cientes para um dia.

O microondas apitou; o seu peixe estava pronto. Ursula foi buscá -lo.

– Vê as coisas pelo lado positivo – ?zeste uma bela viagem até Södertälje.

Quando Ursula abriu a porta do microondas e retirou o prato, ouviu alguém entrar no refeitório. Virou-se para trás e viu Sebastian encostado ao umbral da porta. Manteve a expressão inalterada quando regressou ao seu jantar e ao telefonema.

– Eu já não volto aí hoje – disse Vanja. – Podes informar o Torkel?

– Claro. Até amanhã.

Ursula terminou a chamada, guardou o telemóvel no bolso e aproximou-se da mesa transportando o prato. De passagem, olhou para Sebastian.

– Era a Vanja. Mandou-te cumprimentos.

– Não, não mandou – disse Sebastian com naturalidade.

– Não, não mandou – con?rmou Ursula, sentando-se. Sebastian não se mexeu. Ursula começou a comer em silêncio, desejando ter algo para ler, algo para onde olhar. Porque estava ele ali em pé? O que queria? Fosse o que fosse, tinha a certeza de que não lhe interessava. Estava convencida de que ele não devia fazer parte da equipa. Nem se atrevia a pensar no que aconteceria se a imprensa estabelecesse a ligação entre as vítimas e uma pessoa que colaborava com a investigação. Tinha a certeza de que Torkel não con?rmara de modo algum a sua decisão junto das instâncias superiores. Se aquilo corresse mal, ele podia perder o emprego. Corria um grande risco por Sebastian. Pensou se Sebastian sentiria algum tipo de gratidão, se pelo menos teria consciência do risco a que Torkel se sujeitara. Provavelmente, não.

Ela tinha assuntos acerca dos quais queria re?ectir. Assuntos privados. Como o motivo por que não lhe apetecia ir para casa. Ou se Torkel também seria uma opção naquela noite. Estava hesitante. Após a última noite que passaram juntos, enquanto continuavam deitados na cama dele, Torkel falara acerca de Yvonne e de outro homem que havia na sua vida; Ursula esquecera o nome do fulano mas ?cara com a sensação de que Torkel andava à pesca, a sondá-la para ver se poderia haver algo mais entre eles.

Algo mais permanente.

Não havia dúvida de que ela só podia culpar-se a si própria; quebrara duas das regras que estabelecera para o relacionamento entre ambos, por isso não era de admirar que ele pensasse que ela também estava disposta a rever a sua atitude quanto à terceira regra. Mas enganava-se.

– Como vão as coisas com o Micke? – perguntou Sebastian num tom de voz casual, como se lhe lesse os pensamentos. Ursula sobressaltou-se e largou a faca, que caiu no prato e, a seguir, no chão com fragor.

– Porque perguntas? – retorquiu quando se baixou para a apanhar.

– Por nada. – Sebastian encolheu os ombros. – Estava apenas a fazer conversa ?ada.

– Tu nunca fazes conversa ?ada. – Ursula pousou o garfo ao lado da faca que apanhou e pôs-se em pé. Perdera o apetite. Saberia ele algo a seu respeito e de Torkel? Se assim fosse, não era bom. Nada bom. Quanto menos Sebastian Bergman soubesse, melhor. Esse princípio aplicava-se a tudo. Ele tinha a capacidade de virar as informações mais inocentes contra uma pessoa. E se pensasse que podia usá-las em seu benefício, não hesitaria em fazê-lo.

Sebastian entrou na sala, puxou a cadeira mais próxima e sentou -se.

– Há uma coisa em que estive a pensar...

– Hum – respondeu Ursula, de costas para ele. Enxugou as mãos numa toalha de chá e virou-se para sair.

– Senta-te por um minuto. – Sebastian indicou a cadeira em frente.

– Porquê?

– Porque estou a pedir.

– Não tenho tempo.

Quando Ursula ia a passar por Sebastian, ele agarrou-lhe o pulso. Ela parou e olhou para ele de modo a deixar claro que era melhor largá-la de imediato. Ele não o fez.

– Senta-te. Por favor.

Ursula afastou a mão de repelão e olhou para Sebastian. De certa maneira o tom de voz dele era diferente, desprovido de qualquer indício de zombaria ou de arrogância, e nos seus olhos havia algo que lhe dizia que o assunto era importante. Não porque ele tivesse algo a ganhar, mas por outro motivo qualquer.

Algo de autêntico.

Algo de signi?cativo.

E dissera «por favor», uma expressão que julgava que nem sequer constava do seu vocabulário. Sentou-se, mas empoleirada na borda da cadeira, pronta a ir-se embora de imediato.

– Estive a falar com o Torkel – começou Sebastian, um pouco hesitante.

– Ah, sim – disse Ursula na defensiva, cada vez mais convencida de que não iria gostar do que Sebastian tinha para lhe dizer.

– Acerca do facto de as quatro vítimas terem um relacionamento comigo – continuou ele sem a olhar nos olhos. – Um relacionamento sexual.

De repente, Ursula percebeu o rumo que a conversa estava a tomar. Não era de todo acerca dela e de Torkel, mas dirigia-se para um tópico que tinha ainda menos vontade de abordar.

– Se existe a possibilidade de que a situação se repita – prosseguiu Sebastian, num tom de voz calmo e sério –, se estiverem em perigo mais mulheres...

– Eu sei cuidar de mim própria – interrompeu Ursula, pondo-se em pé num salto.

– Eu sei, só que... – Sebastian olhou para cima e enfrentou o seu olhar com franqueza e sinceridade. – Não quero que algo te aconteça por minha causa.

– Isso é muito amável da tua parte – disse Ursula, mantendo um tom de voz neutro enquanto se dirigia para a porta. Virou-se para trás de modo a encará-lo antes de sair da sala. – Teria sido ainda melhor se naquela época me tivesses mostrado um pouquinho dessa consideração.

Virou-lhe as costas e desapareceu.


BATERAM À PORTA da cela. Hinde pousou o livro que estava a ler, sentou-se na cama e olhou rapidamente em redor da sala. Não deixara nada à mostra, pois não? Nada que pudesse denunciá-lo? Uma olhadela à mesa, à pequena mesa-de-cabeceira e à única prateleira e a vistoria ?cou concluída. A única vantagem de ter uma cela pequena era ser fácil de vistoriar. Nada à mostra que não devesse ali estar. Balançou as pernas na beira da cama quando a porta se abriu e Thomas Haraldsson en?ou a cabeça.

– Boa-noite, estou a incomodá-lo?

Hinde ?cou assaz surpreendido com aquele cumprimento vulgar, que soou como se Haraldsson tivesse ido simplesmente visitar um vizinho a casa ou um colega do emprego no gabinete do lado. Presumiu que aquela abordagem pessoal visava dar a entender que o director não estava ali por motivos o?ciais mas por outra razão qualquer. Poderia ser interessante.

– Não, estava só a ler. – Hinde adoptou o mesmo tom amigável. – Entre – acrescentou com um aceno.

Haraldsson entrou na cela e a porta fechou-se atrás dele. Edward observou-o em silêncio. Haraldsson olhava em redor como se fosse a primeira vez que se encontrava numa cela da ala de segurança. Edward pensou se o seu visitante iria continuar a recorrer às frases bem-educadas do mundo exterior e dizer-lhe que tinha ali um belo espaço. Era incrível o que se podia fazer com um espaço minúsculo.

– Daqui a pouco vou para casa, mas lembrei-me de passar por cá para o ver – disse Haraldsson, completando a sua breve inspecção da cela. Era muito pequena. Como conseguiam aguentar aquilo?

– Vai para casa ter com a Jenny – comentou Hinde, sentado na cama.

– Sim.

– E com o bebé.

– Sim.

– De quanto tempo está ela?

– Onze semanas.

– Que adorável.

Edward sorriu para Haraldsson, que puxou a única cadeira e se sentou. Bastava de conversa ?ada.

– Fiquei a pensar – começou Haraldsson –, como correu aquilo com a Riksmord?

– Como é que eles lhe disseram que correu? – perguntou Hinde, inclinando-se para a frente.

– Não falaram muito. – Haraldsson meditou no assunto. O que descobrira realmente junto de Vanja e de Sebastian após se terem encontrado com Hinde? Pensavam que estava envolvido numa série de homicídios, mas podiam tê-lo dito a Haraldsson sem falarem sequer com Hinde. Não lhe haviam dito nada acerca da reunião propriamente dita, ocorreu-lhe naquele momento.

– Na verdade, não disseram nada...

Hinde acenou em jeito de compreensão. Por uns instantes, Haraldsson considerou contar-lhe as experiências negativas que tivera com a Riksmord em Västerås, colocando-se do mesmo lado que Hinde, por assim dizer, mas depois lembrou-se que o homem sentado na cama não sabia que ele já fora agente da polícia. Nem precisava de saber. Na verdade, era melhor que não o soubesse. Era melhor que pensasse que Haraldsson não passava de um vulgar e inofensivo manga-de-alpaca.

– Como acha que correu a reunião? – perguntou-lhe, em vez disso.

Hinde pareceu meditar na pergunta. Apoiou os cotovelos nos joelhos e pousou o queixo nas mãos entrelaçadas.

– Foi bastante decepcionante, para ser franco – respondeu, pensativo.

– De que maneira?

– Não foi uma grande conversa.

– Porque não?

– Fiz-lhes uma proposta que não aceitaram.

– Que tipo de proposta?

Hinde endireitou-se, aparentemente à procura das palavras adequadas.

– Havia algumas... coisas que eu queria e disse-lhes que, se mas dessem, responderia a uma ou mais perguntas. Dizendo-lhes a verdade.

Olhou para Haraldsson para ver se estava a morder o isco, mas o homem sentado na cadeira parecia muito confuso.

– Troca de favores – explicou Hinde. – Pode dizer-se que é como um jogo. Se tenho algo que eles querem e eles algo que eu quero, porquê dá-lo a troco de nada? Mas Sebastian não quis entrar no jogo.

Hinde ?tou Haraldsson. Fora demasiado explícito? Era demasiado óbvio onde pretendia chegar com a conversa? A?nal, em tempos o seu conviva fora agente da polícia, na verdade até há muito pouco tempo. Terá começado a soar algum sinal de alerta? Aparentemente, não. Edward decidiu ir até ao ?m.

– Eu podia fazer-lhe a mesma proposta.

Haraldsson não respondeu de imediato. O que estava Hinde a oferecer-lhe? Informações em troca de quê? Iria descobrir se entrasse no jogo. Mas porque estaria ele a fazer-lhe semelhante proposta? Para obter vantagens para si próprio, claro. Privilégios. Também podia dar-se o caso de estar simplesmente entediado e a aproveitar todas as oportunidades que surgiam para tornar a sua vida quotidiana menos banal, mais estimulante. Haraldsson ponderou rapidamente os prós e os contras.

As vantagens eram muito evidentes. Hinde responderia às suas perguntas. A quaisquer perguntas. Isso dar-lhe-ia um discernimento e conhecimento únicos. Na melhor das hipóteses, descobriria o su?ciente para resolver quatro homicídios.

As desvantagens? Não sabia o que Hinde queria em troca das respostas. Mas se não lhe dissesse que sim, nunca iria descobrir. Caso se tratasse de algo que fosse contra as regras, ou com que não pudesse alinhar por qualquer outro motivo, podia simplesmente dizer-lhe que não. Parar com tudo.

Não poderia correr mal.

Haraldsson anuiu.

– Muito bem. O que tem em mente?

Edward teve de fazer um verdadeiro esforço para resistir ao impulso de soltar uma risada presunçosa. Em vez disso, mostrou a Haraldsson um grande e caloroso sorriso e inclinou-se para a frente como se se preparasse para fazer uma con?dência.

– Vou dizer-lhe o que quero e, quando o tiver obtido, pode fazer-me qualquer pergunta que lhe responderei.

– Dizendo a verdade.

– Prometo.

Hinde estendeu a mão direita para selar o acordo. Um aperto de mão. Não era preciso mais entre homens.

Apertaram as mãos e, a seguir, Edward acomodou-se de novo na cama, encostou-se à parede e colocou os pés em cima do colchão. Descontraído. Amigável. Minimizando a situação. Perscrutou Haraldsson por entre os joelhos dobrados. Por onde devia começar? Precisava de ter uma ideia do grau de interesse do homem sentado na cadeira.

– Tem alguma fotogra?a da sua esposa?

– Si-im...? – Hesitação na resposta.

– Posso ?car com ela?

– O quê? – perguntou Haraldsson, mostrando-se um pouco confuso. – Só para ver ou quer guardá-la?

– Quero guardá-la.

Haraldsson hesitou. A situação não parecia boa. Nada boa. Não fora aquilo que imaginara que Hinde lhe iria pedir. Mais tempo no pátio de exercícios. Comida melhor. Maior liberdade no computador. Uma cerveja, porventura. Coisas que melhorassem e dessem mais qualidade à sua estadia em Lövhaga. Não aquilo. O que queria Hinde fazer com uma fotogra?a da sua esposa? Segundo os relatórios era sexualmente inactivo, por isso a ideia de se masturbar com uma foto de Jenny parecia improvável.

– Para que a quer?

– É essa a pergunta que pretende fazer?

– Não...

Haraldsson começava a sentir-se enervado. Devia acabar com tudo de imediato? Podia fazê-lo?

Era apenas um retrato.

A Riksmord estava convencida de que o homem sentado naquela cama se envolvera em quatro homicídios. Se Haraldsson jogasse bem a sua cartada, podia resolver o caso praticamente sozinho. Hinde estava fechado em Lövhaga. Não podia fazer nada. Haraldsson nem sequer precisava de informar a Riksmord. Podia ir mais acima, directo ao topo com a sua informação. Ficar com toda a glória para si próprio. Resolver o caso enquanto os outros continuavam sem saber o que fazer.

Era apenas um retrato.

Tirou a carteira do bolso detrás e abriu-a. De um dos lados, protegida pelo plástico transparente, estava uma fotogra?a de Jenny, tirada num quarto de hotel em Copenhaga cerca de dezoito meses antes. Não se conseguia ver grande coisa do quarto porque o retrato fora recortado para caber na carteira, mas Jenny tinha um ar radiante. Muito feliz. Haraldsson adorava aquele retrato. Captara Jenny exactamente como ela era. Mas ainda o tinha no cartão de memória; podia imprimir uma cópia.

Era apenas um retrato.

E, no entanto, não conseguiu libertar-se da sensação de que estava a cometer um grande erro quando colocou a fotogra?a na mão estendida de Hinde.

– Você está envolvido nos recentes homicídios de quatro mulheres? – perguntou Haraldsson assim que a fotogra?a ganhou um novo proprietário.

– De?na envolvido – respondeu Hinde, olhando para a fotogra?a que tinha na mão. Pouco mais de trinta anos. Esbelta. Sorridente. Morena. Podia captar todos os pormenores mais tarde. Pousou a fotogra?a, virada para baixo, em cima do livro que estava na sua mesa-de-cabeceira.

– Sabe delas?

– Sim.

– Como?

Hinde abanou a cabeça e recostou-se de novo contra a parede.

– Essa é a pergunta número dois, Thomas. Mas só para lhe mostrar quanto aprecio o facto de me ter vindo visitar, vou responder a essa pergunta sem lhe pedir nada em troca. – Fitou Haraldsson. Viu antecipação, esperança. Ele estava interessado, quanto a isso não havia dúvida. – A Riksmord falou-me dos homicídios – disse, por ?m.

– Mas antes disso? – prosseguiu Haraldsson, ansiosamente. – Antes disso você não sabia nada acerca delas?

– A resposta a essa pergunta vai custar-lhe algo.

– Vai custar-me o quê?

– Deixe-me pensar nisso. Volte amanhã. – Hinde deitou-se e estendeu a mão para o livro. A fotogra?a de Jenny escorregou para cima da mesa, como se se tivesse esquecido que a colocara naquele local. Haraldsson percebeu que a conversa terminara. Não estava satisfeito mas era um começo. Sem dúvida que aquilo podia levar a algum lado. Levantou-se, foi até à porta e saiu da cela.

 

No caminho de regresso para o seu gabinete, Haraldsson tomou duas decisões.

Primeiro, não iria contar a Jenny que dera uma fotogra?a dela a Edward Hinde. Não sabia ao certo como lho devia explicar. Assim que fosse possível imprimiria uma cópia para substituir a antiga.

Em segundo lugar, decidiu considerar aquele dia um sucesso. Fora confrontado com opções difíceis mas tomara a decisão acertada. Dera um passo na direcção certa.

– Isto correu bem – disse para si mesmo, em voz alta, no corredor vazio. Achou que soou um pouco como se estivesse a fazer um grande esforço para se convencer a si próprio, por isso pigarreou e repetiu-o.

Mais alto.

Com mais ?rmeza.

– Isto correu realmente bem.

Na sua cela, Edward Hinde, deitado na cama a examinar a fotogra?a de Jenny Haraldsson, pensava exactamente o mesmo.


VANJA CONDUZIA muito depressa. Como de costume. Sentia-se cheia de energia, impaciente. Quando chegasse a casa, iria sair para correr. Ainda seria dia durante mais algumas horas e estava um pouco mais fresco.

Na verdade, não lhe apetecia ir correr.

Na verdade, queria trabalhar. Fazer progressos. Chegar a algum lugar. Um mês após o primeiro homicídio ainda andavam às apalpadelas no escuro. Hinde estava envolvido, mas como? As vítimas tinham ligação com Sebastian, mas porquê? Vingança, claro. Mas e se Sebastian nunca tivesse feito parte daquela investigação? A?nal, nunca houve a garantia de que iria trabalhar de novo com a Riksmord. Nesse caso, eles nunca poderiam ter estabelecido a ligação, descoberto a relação entre as vítimas. Não seria uma grande vingança se o alvo da mesma nunca chegasse sequer a aperceber-se disso. Ou teria Hinde contado com o envolvimento de Sebastian, mais cedo ou mais tarde? Por isso era tão importante o facto de os homicídios serem imitações exactas? Que eles berrassem o nome de Edward Hinde? Para que a Riksmord fosse obrigada a falar com Sebastian e então ele compreendesse a ligação?

E agora que Sebastian era uma parte activa da investigação e se apercebera das implicações pessoais, isso signi?cava que os assassinatos iriam parar?

Tantas perguntas.

Nenhumas respostas.

Vanja pisou o acelerador. O ponteiro do velocímetro chegou aos cento e quarenta. Queria deixar para trás, o mais depressa possível, aquelas horas desperdiçadas em Södertälje. Mas foram desperdiçadas ou ela é que as desperdiçara? Não conseguia livrar-se da sensação de que permitira que o seu desapontamento e a impaciência lhe afectassem o trabalho.

Colocou o telemóvel em alta-voz e fez uma chamada.

 

Billy estava de pé na cozinha a cortar brócolos, pimentos e cebolas quando o telemóvel tocou. Maya fritava galinha numa das placas do fogão, enquanto na outra tostava cajus em lume brando. A galinha devia ser cozinhada num wok, mas Billy não o tinha. Os pais ofereceram-lhe a frigideira pelo Natal, há muitos anos. Desde o solstício já a usara mais vezes do que até ao momento. Maya gostava que cozinhassem juntos.

– Olá, fala o Billy – disse, entalando o telemóvel entre o queixo e o ombro enquanto continuava a cortar.

– Olá, onde estás? – Era Vanja a telefonar-lhe do carro; Billy teve que se esforçar para lhe ouvir a voz por entre o ruído. O sistema de alta-voz dela e a maneira esquisita como segurava o telemóvel não eram propriamente uma ajuda.

– Em casa. E tu, onde estás?

– A regressar de Södertälje. O Rodriguez está numa cadeira de rodas devido a um acidente rodoviário, por isso não pode ser ele.

– Espera aí, deixa-me pôr-te em alta-voz. – Disse «É a Vanja» para Maya, ao mesmo tempo que premia a tecla apropriada e pousava o telemóvel em cima da bancada da cozinha. Ela assentiu com a cabeça como se já o tivesse descoberto. – Pronto, já consigo ouvir -te.

– O que é isso que está aí a assobiar?

– É a frigideira, julgo.

– O que estás a fazer?

– A cozinhar.

– A sério? Estás a cozinhar?

– Estou.

Houve um silêncio do outro lado. Billy conseguiu entender a surpresa de Vanja. Ele era um grande consumidor de comida rápida e de refeições pré-confeccionadas; as lojas de conveniência e uma variedade de arcas congeladoras é que o mantinham vivo. Não que não soubesse cozinhar, simplesmente não se interessava por o fazer e achava que o tempo que uma refeição demorava a preparar podia ser melhor usado. No entanto, a sua indiferença total não era tema que quisesse abordar enquanto Maya estava a ouvir. Lembrava-se vagamente de ter enumerado a culinária como um dos seus passatempos ao início da manhã do solstício de Verão.

– O que queres? – Billy empurrou os legumes para o lado com a faca e olhou para Maya, que continuava a ouvir a conversa com interesse. Começou a picar ?namente uma malagueta vermelha.

– Quero saber se podes descobrir quando ocorreu o acidente? O que colocou Rodriguez numa cadeira de rodas.

– Ele não sabe?

– Não lho perguntei. Fiquei tão furiosa por a polícia local não ter mencionado esse facto que me vim logo embora. Mas é claro que, apesar disso, ele ainda pode ter algo a ver com o roubo do Ford, não é? Vive muito perto dali.

Billy parou de cortar. Ela telefonava-lhe para lhe pedir que descobrisse algo. Uma tarefa simples que todos, qualquer um, podia fazer. Pelo canto do olho viu Maya abanar a cabeça. Billy largou a faca e inclinou-se mais para o telemóvel.

– Espera aí, será que percebi bem? Esqueceste-te de perguntar quando se deu o acidente e por isso queres que eu vá veri?car?

– Sim.

– Eu estou em casa.

– Não estou a dizer que é agora – podes fazê-lo amanhã.

– Porque não podes fazê-lo tu amanhã?

Silêncio de novo. Billy sabia porquê. Vanja não estava habituada a ser contrariada ou posta em causa. Pelo menos, não por ele. Bom, havia sempre uma primeira vez, pensou; ela podia muito bem habituar-se à ideia.

– És melhor do que eu a encontrar esse tipo de coisas. Será mais rápido se fores tu a fazê-lo – disse Vanja; Billy apercebeu-se de uns laivos de irritação na sua voz.

O que ela dissera era certamente verdade, mas não bastava como argumento. Durante demasiado tempo ele aceitara desempenhar o papel de uma espécie de braço-direito administrativo no seio da equipa. Mas já não o queria.

– Eu mostro-te como hás-de fazer.

– Eu sei como hei-de fazer.

– Bom, então faz. – Billy olhou de soslaio para Maya, que lhe respondeu com um sorriso encorajador.

– Pronto... está bem – ouviu Vanja dizer-lhe de um modo lacónico. A seguir houve novo silêncio, e um segundo depois o som do carro também desapareceu. Vanja desligara a chamada. Billy pegou no telemóvel e guardou-o no bolso. Maya aproximou-se dele e apertou-lhe o braço.

– Como te sentiste?

– Bem. – Billy calou-se por um momento e decidiu ser franco com ela. – E um pouco mesquinho, para ser honesto. Eu conseguia fazer aquilo num instante.

– Mas ela sabe o que fazer?

– Sim, mas o problema é que agora ?cou zangada comigo por algo insigni?cante.

Maya en?ou-se entre a bancada da cozinha e Billy e passou os seus braços em redor do pescoço dele. Olhou para ele intensamente.

– Da próxima vez que ela te pedir alguma coisa, podes fazê-lo. Não se trata de recusar ajuda um ao outro, mas de Vanja não te tomar por garantido.

Deu-lhe um beijo suave, afagou-lhe o rosto e a seguir regressou às suas frigideiras.


URSULA ESTAVA SENTADA à secretária. Tentava trabalhar, mas era-lhe impossível concentrar-se. O seu espírito continuava a puxá-la para trás. Não para a conversa no refeitório, mas ainda mais para trás.

Para o passado.

Para ambos.

Conheceram-se no início do Outono de 1992. Sebastian Bergman, o psicólogo criminal que se formara nos EUA, ia proferir uma palestra na Universidade de Gotemburgo acerca da assinatura dos comportamentos e aquilo que os locais do crime podiam revelar sobre os assassinos em série. Ursula trabalhava no laboratório nacional forense, em Linköping, e pedira para assistir à palestra como parte da sua formação pro?ssional contínua. Fora interessante e esclarecedor. Sebastian estava no seu meio – fascinante, sabedor, espontâneo – e a audiência escutara-o atentamente, ansiosa por saber mais. Ursula sentara-se mesmo à frente e colocara várias perguntas.

A seguir, ?zeram sexo no quarto de hotel onde estava hospedado. Ela não esperava que aquilo se transformasse em algo mais. O mundo pro?ssional deles era muito pequeno e já ouvira os boatos acerca de Sebastian. Por conseguinte, regressou a Linköping. Para junto de Micke e de Bella, que acabara de entrar para a escola. Micke cuidava de todos os preparativos para a escola e chegava a casa ao início da tarde para que a ?lha de ambos não tivesse de permanecer demasiado tempo na creche. Ursula trabalhava. Como de costume. A vida prosseguia. Como de costume.

Micke não bebia há mais de um ano. Era dono da sua própria empresa e trabalhava tanto quanto queria. Possuíam uma casa numa boa zona, ?nanceiramente estavam confortáveis, Bella era feliz na escola, Ursula tinha uma carreira estimulante, Micke permanecia sóbrio. Uma existência suburbana de classe média. Uma boa vida. Tão boa quanto possível, presumia.

Depois, um dia, quando ia para casa, alguém a chamou no parque de estacionamento. Era ele. Sebastian Bergman. Ela perguntou-lhe o que estava ali a fazer.

Queria estar com ela.

Se pudesse ser.

Ela ?cou contente por o ver. Contente por a ter procurado. Mais satisfeita do que queria admitir. Telefonou a Micke e disse-lhe que tinha de trabalhar até tarde. Foram para um motel. Estavam em Linköping, podia aparecer uma pessoa qualquer, alguém poderia vê-los e reconhecê-los. Ursula não se importou.

A digressão das palestras de Sebastian terminara. No ?m do período lectivo iria regressar à universidade, mas de momento estava livre. Podia muito bem passar o tempo em Linköping. Se ela quisesse.

Durante quase dois meses encontraram-se com a maior frequência possível. Por vezes à hora do almoço, outras de manhã, antes de ela começar a trabalhar. Geralmente ao ?m da tarde e à noite. Ele estava sempre disponível. Sempre pronto. Ela é que decidia onde, quantas vezes e durante quanto tempo. Isso convinha -lhe na perfeição.

Em Dezembro ela sugerira a Micke que deviam mudar-se para Estocolmo. Queria candidatar-se a um lugar na Riksmord. Já andava há algum tempo a pensar mudar de emprego, estava farta de trabalhar no laboratório. Farta de não ser uma parte activa na caçada; sentia falta da adrenalina, de estar presente na conclusão de um caso, da captura. A Riksmord acabara de nomear um novo chefe, Torkel Höglund, um homem a respeito do qual ouvira muitos relatos positivos. Estava na altura de fazer algo novo, de dar esse passo.

Não era apenas por causa de Sebastian. O facto de trabalharem no mesmo local se conseguisse um emprego na Riksmord não passava de um bónus. Um bónus de boas-vindas, mas não era esse o motivo por que se queria mudar. Não era uma menina de escola que perdia a cabeça quando se apaixonava e permitia que os sentimentos comandassem as acções. Sabia perfeitamente que tudo podia acabar a qualquer momento. No entanto, a proximidade e o facto de passarem a ver-se todos os dias também podia levar a que a relação se transformasse em algo de mais profundo. Pela primeira vez, sentiu que era capaz de um outro tipo de relacionamento. De um relacionamento no qual conseguisse descontrair-se e já não precisasse de manter a distância, como sempre o ?zera no passado.

Em relação a Micke.

Em relação a Bella.

Em relação a todos.

Além disso, a sua irmã morava em Mälarhöjden e os pais em Norrtälje. Era perfeito se precisassem de alguém que cuidasse de Bella durante um ?m-de-semana. Havia todos os motivos para ir e nenhuma razão para ?car.

Micke não concordou.

A empresa dele estava bem estabelecida em Linköping e tinha a carteira de clientes no Oeste da Suécia. O que iria fazer em Estocolmo? Começar tudo de novo? E quanto a Bella? Já frequentara um período lectivo, ?zera novos amigos, mantivera os antigos e adorava a professora. Seria correcto tirá-la de um ambiente tão estável? Ursula defendeu que as crianças faziam novas amizades onde quer que fossem e que, como era natural, Micke podia gerir a empresa a partir de Estocolmo; isso implicaria apenas mais algumas viagens de negócios, mais algumas noites longe da família. Contudo, durante todo o tempo em que tentou persuadi-lo, não conseguia afastar um pensamento: não seria uma catástrofe se Micke e Bella não fossem com ela. Isso dar-lhe-ia paz e tranquilidade para explorar o que estava a acontecer. Para saber se chegara a altura de uma mudança permanente.

Teve sorte. Micke aventou a ideia de que devia ir sozinha e de que podiam viver separados – durante algum tempo, pelo menos. Não queria ser um entrave à carreira dela e, se outras pessoas suportavam as deslocações aos ?ns-de-semana, decerto também eles o poderiam fazer?

Ursula protestou respeitosamente, mas não por muito tempo. Conversou com Bella e prometeu ir a casa com tanta frequência quanto possível. Bella ?cou perturbada, claro. Foi uma grande mudança, um pouco como um divórcio, mas Ursula tinha a certeza de que ?caria muito mais angustiada se tivesse sido Micke a sair de casa. No mundo de Bella, quem estava presente era o legítimo progenitor.

Ursula conseguiu o emprego e mudou-se. Encontrou um apartamento com duas assoalhadas em Södermalm, mas passava tanto tempo em casa de Sebastian como na sua, senão mais. No trabalho eram totalmente pro?ssionais; ninguém diria que eram mais do que colegas. Fora do trabalho começaram a assumir cada vez mais a relação. Faziam coisas que dois colegas de trabalho podiam muito bem fazer; iam ao teatro, ao cinema, a restaurantes, mas também começaram a passar tempo com a irmã de Ursula e do seu marido. Saíam para jantar juntos. Ursula ainda regressava a Linköping quase todos os ?ns-de-semana, mas cada vez mais parecia-lhe que deixava algo para trás em vez de ir para algum sítio. Não sentia que regressava a casa. Tinha a certeza de que a relação com Sebastian signi?cava muito mais para ela do que para ele. Por vezes assustava-a o quanto signi?cava. Na Primavera acabou por se atrever a exprimi-lo em palavras no seu espírito.

Estava apaixonada.

Pela primeira vez na sua vida.

 

Ursula levantou-se da secretária. Não conseguia trabalhar e era inútil ?car ali sentada a pensar no que ocorrera há quase vinte anos. Estava na hora de ir. Para casa, talvez. Em todo o caso, para longe dali. Roland Johansson e José Rodriguez haviam sido eliminados enquanto possíveis perpetradores. As impressões digitais e o esperma encontrados nos locais do crime pertenciam a outra pessoa. Isso não signi?cava necessariamente que não estivessem de alguma outra forma envolvidos – a?nal, o carro usado para seguir Sebastian fora roubado a algumas centenas de metros do local onde Rodriguez morava –, mas a decisão sobre se se devia continuar a explorar aquela pista, e nesse caso de que modo, podia ?car para o dia seguinte. A caminho do elevador, Ursula passou pelo gabinete de Torkel e olhou lá para dentro. Vazio. Um pouco de desapontamento. Não sabia o que fazer se o encontrasse, mas teria sido bom terminar o dia sentada no seu sofá, talvez decidirem irem jantar juntos. Estava com fome. A sua refeição fora interrompida. Por aquele homem que estava parado mais adiante no corredor, aparentemente à sua espera. Ursula passou por ele sem sequer olhar.

– Até amanhã.

– Eu acompanho-te até ao carro – disse Sebastian, começando a andar ao seu lado.

– Não sejas ridículo. Não é preciso.

– Não comeces. Eu quero ir.

Ursula suspirou, avançou até aos elevadores e premiu o botão. Sebastian postou-se ao lado dela, em silêncio. Ao ?m de trinta segundos as portas abriram-se e Ursula entrou, seguida por Sebastian. Premiu o P e ?xou o olhar nas portas de metal.

– Estive a pensar na Barbro – disse Sebastian quebrando o silêncio. – Talvez também deva ir falar com ela.

Ursula manteve-se calada. Decidiu ?ngir que não o ouvira.

– Não sei onde ela vive agora – continuou Sebastian, e Ursula apercebeu-se de um tom de desculpa na sua voz. – Se calhar casou-se e mudou de nome...

– Não faço ideia.

– Julguei que vocês as duas podiam ter...

– Não – interrompeu Ursula. – Não aconteceu.

Sebastian calou-se. O elevador parou e as portas abriram-se. Ursula saiu para o parque de estacionamento subterrâneo. Sebastian seguiu-a. Ursula caminhou com um ar decidido até ao carro, e o som dos seus saltos ecoou no betão. Sebastian olhou em redor enquanto se mantinha alguns passos atrás dela, atento a qualquer mudança, a qualquer movimento. O parque de estacionamento estava deserto. Ursula abriu o carro a alguns metros de distância; quando chegou junto deste abriu a porta detrás, atirou o saco para o interior e a seguir abriu a porta do condutor. Sebastian estava junto ao pára-choques da frente.

– Pronto, então boa-noite. Tem cuidado. – Virou-lhe as costas e começou a arrastar os pés de regresso ao elevador. Ursula pensou por um momento. Não achava que fosse realmente necessário, mas só por precaução...

– Sebastian.

Ele parou e virou-se para trás. Ursula deixou a porta do carro aberta e foi ao seu encontro. Ele ?tou-a com um misto de perplexidade e curiosidade.

– Nunca, em circunstância alguma, deves falar a alguém acerca de nós. – Ursula sussurrava o que, paradoxalmente, soava quase mais alto do que o tom de voz normal porque ressoava nas paredes. – Nunca.

Sebastian encolheu os ombros.

– Está bem. – Como não contara a ninguém nos últimos dezassete anos, provavelmente conseguiria manter-se calado durante mais algum tempo. Foi evidente que Ursula interpretou o encolher de ombros e a curta resposta como um sinal de que considerava aquilo importante.

– Estou a falar a sério. Nunca te perdoaria.

Sebastian olhou para ela.

– E já alguma vez me perdoaste?

Ursula susteve o olhar dele. Havia anseio? Uma esperança?

– Boa-noite. Vemo-nos amanhã.

Virou-se para trás e regressou ao carro. Sebastian permaneceu no mesmo local até ela sair do parque de estacionamento.

Iria ser um longo serão.


STORSKÄRSGATAN, NÚMERO 12.

Um endereço que iria ?car impresso para sempre na memória de Sebastian. Fora ali que a carta que encontrara em casa dos seus pais o havia conduzido. Fora ali que ganhara uma ?lha. De novo. Empurrou a porta e penetrou na escuridão das escadas. Era a segunda vez que entrava no bloco de apartamentos. Da última vez que subira aquelas escadas estava muito nervoso por antecipação, embora ao mesmo tempo tentasse dizer a si próprio que talvez ?casse desapontado. Daquela vez... Sob muitos aspectos, era pior. Chegou ao terceiro piso. Eriksson/Lithner, estava escrito na porta. Sebastian respirou fundo e deixou o ar sair lentamente pelos lábios, num longo suspiro. Depois, tocou à campainha.

– O que estás a fazer aqui? – Foi a primeira coisa que disse quando abriu a porta e viu quem era. Anna Eriksson. O seu cabelo estava mais curto do que da última vez. E tinha as pontas arrebitadas. Os mesmos olhos azuis. As mesmas maçãs do rosto salientes e os mesmos lábios ?nos. Uns jeans coçados e uma camisa de algodão aos quadrados, su?cientemente larga para pertencer a Valdemar.

– Estás sozinha? – perguntou-lhe Sebastian, decidindo rapidamente ignorar as subtilezas. Na verdade, perguntava-lhe se tinha alguma amiga no apartamento; vira Valdemar a sair cinco minutos antes.

– Tu não devias voltar aqui.

– Eu sei disso. Estás sozinha?

Anna pareceu compreender as implicações da pergunta dele. Deu um passo em frente, bloqueando a entrada com e?cácia. Após uma rápida olhadela para as escadas atrás de Sebastian para veri?car se não tinha companhia, baixou a voz num murmúrio.

– Tu não podes vir aqui! Prometeste que ias manter-te longe de nós!

Tanto quanto se lembrava, ele jamais o ?zera. Prometer. Saíra dali com um acordo tácito de que nunca voltaria a falar com Vanja, Valdemar ou Anna, mas não prometera. E, em qualquer caso, a situação alterara-se.

– Preciso de falar contigo.

– Não! – Anna sublinhou a palavra com um aceno de cabeça. – Já foi su?cientemente mau teres trabalhado com a Vanja. Não quero ter nada a ver contigo.

Sebastian reagiu ao tempo verbal. Teres trabalhado. Era evidente que Vanja não contou que ele regressara à equipa. Pelo menos à sua mãe.

– Não é por causa da Vanja – disse, num tom quase implorante. – É por causa de ti.

Viu a mulher que estava à sua frente contrair-se. Durante uns breves instantes, Sebastian percebeu como os últimos meses deviam ter sido para ela. Vivera com a mentira durante trinta anos. Não vivera apenas com ela; era a pedra-de-toque de toda a sua existência. Trinta anos. Tempo su?ciente para quase começar a acreditar em si mesma. Decerto, tempo su?ciente para pensar que se iria safar. Para pensar que estava a salvo. E depois ele aparecera. A pessoa que podia fazer desabar tudo. Tudo o que ela havia construído. Tudo o que tinha. Tudo. Agora estava ali de novo, embora não fosse suposto regressar. A situação só podia piorar.

– O que se passa por minha causa? – O tom de voz era agora puramente defensivo.

Sebastian decidiu nem sequer tentar amenizar o golpe.

– Podes correr perigo.

– O quê? Porquê? – Confusão em vez de medo. A questão era saber se compreendera o que ele lhe dissera.

– Posso entrar? – disse Sebastian do modo mais suave que conseguiu. – Digo-te o que me trouxe aqui e a seguir prometo que me vou embora.

Anna ?tou-o como se tentasse averiguar se estava a mentir-lhe. Se havia um propósito oculto para a sua visita. Se devia preparar-se para algumas surpresas desagradáveis.

Sebastian olhou para ela com toda a sinceridade e franqueza de que foi capaz.

– Por favor – implorou ele. – É importante; se não fosse, eu não estaria aqui.

Anna suspirou, desviou o olhar e deu um passo para o lado. Sebastian passou por ela e entrou no apartamento. Com um último olhar para as escadas, Anna seguiu-o e fechou a porta.


LÁ FORA, na Storskärsgatan, a cerca de trinta metros do número 12, o homem alto estava sentado dentro do seu carro. Era um carro novo. Alguém se livrara de imediato do Ford depois de Sebastian Bergman ter corrido pela rua na sua direcção à frente da sede da polícia. Agora tinha um Toyota Auris prateado. Não sabia o que acontecera ao carro velho, nem de onde viera o novo. Provavelmente, fora roubado. Aparecera uma mensagem na fygorh.se a dizer onde e quando o devia ir buscar. Comparecera à hora marcada e nada falhara: o carro estava parado, no local exacto, com as chaves na ignição. Podia recomeçar a seguir Sebastian, mas daquela vez a uma distância maior. Não tão visível atrás do volante. Estava mais cuidadoso, mas Sebastian não parecia andar à sua procura. Nem por uma vez olhara em seu redor ou se metera por desvios que tornassem difícil segui-lo. Por uns momentos, o homem alto ?cara com a ideia de que se podia tratar de uma armadilha. Que a falta de interesse do psicólogo pelo que o rodeava e a ausência de qualquer impacto óbvio nos seus movimentos podia dever-se ao facto de outros agentes andarem a cobri-lo para obterem um vislumbre do homem que o seguia. Mas não parecia ser esse o caso. Se fosse, o homem alto já teria reparado.

Tinham encontrado a número quatro. No apartamento. Os jornais deram grande destaque ao acontecimento. Nesse dia o homem alto comprara todos os jornais da manhã e da tarde. Estavam ao seu lado, em cima do banco do passageiro. Ansiava por chegar a casa para os poder ler. Para crescer. Quando viu os rápidos desenvolvimentos na Internet, percebeu que precisava de aumentar e aperfeiçoar o ritual que acompanhava a recolha de tudo o que se escrevera a seu respeito.

Não fora de todo evidente, a número quatro. Pelo que conseguiu perceber, era um conhecimento recente. O psicólogo de Bergman apanhara-o no outeiro junto ao prédio de apartamentos onde Vanja Lithner morava, e a seguir foram juntos a uma reunião qualquer. Bergman saíra cerca de duas horas mais tarde e entrara num táxi com a mulher que viria a ser a número quatro. Foram para o apartamento dela. O homem alto seguira-os até às escadas e conseguira descobrir para que andar subiram, mas fora-lhe impossível averiguar qual o apartamento. Enquanto Sebastian estava lá dentro com a mulher, o homem alto regressara ao carro e começara a investigar. Tomara nota dos nomes que constavam nas caixas de correio do terceiro andar. Não demorara muito tempo a veri?car que naquele piso só morava uma mulher. Annette Willén. Havia, naturalmente, um ligeiro risco de que Sebastian tivesse engatado uma mulher temporariamente só e estivesse na cama com uma das mulheres casadas ou em união de facto que o homem alto descobrira. Mas era mais provável que fosse Annette Willén, e pretendia começar por aí.

Sebastian saíra do edifício por volta das cinco horas da manhã. Parecia desgastado e fatigado, reparou o homem alto enquanto o observava até sair do seu campo de visão. Estava na hora de se certi?car. Não havia margem para erros. O homem alto saiu do carro, entrou no edifício e subiu a pé os três lanços de escadas. Foi aí que as coisas se complicaram. Tocar a uma campainha àquela hora da manhã podia atrair atenções indesejadas. Algum vizinho podia acordar e espreitar pelo óculo da porta sem que ele sequer se apercebesse. Mas de que outra maneira poderia ter a certeza? Bateu suavemente. Nenhuma reacção. Bateu de novo, agora um pouco mais alto e durante mais tempo. Movimentos no interior. Passos.

– Quem é? – perguntou uma voz ensonada do outro lado da porta.

– Lamento acordá-la, mas ando à procura do Sebastian – respondeu o homem em voz baixa, desviando o rosto do óculo da porta o máximo que podia sem levantar suspeitas.

– De quem? – Era evidente que a mulher ainda não estava completamente acordada.

– Sebastian Bergman. Ele devia estar aqui.

– Espere um instante...

Silêncio durante alguns segundos. O tempo que Annette Willén demorou a descobrir que se encontrava sozinha. Para o homem alto, aquilo foi o su?ciente. Se ela tinha ido procurar Sebastian, ele deve ter estado ali. Era tudo o que precisava de saber. Já se afastara um passo da porta quando a mulher falou de novo.

– Ele não está cá. Foi-se embora...

Mesmo através da porta de madeira sólida, percebeu a sua surpresa e desapontamento. Falava como se estivesse prestes a romper em pranto.

– Muito bem, desculpe ter vindo incomodá-la.

O homem apressara-se a descer as escadas antes que Annette se lembrasse de abrir a porta para falar com ele. Para averiguar quem era e como sabia que Sebastian estivera ali. O homem alto não tinha nada para fazer no interior do apartamento. Ainda não. Antes de mais, precisava de ir apresentar o relatório e receber as suas ordens. Depois voltaria.

Fora para casa e recebera as suas ordens. Ela seria a número quatro.

O homem alto fora de carro até ao bloco de apartamentos, estacionara a uma distância razoável e ?zera o resto do caminho a pé, com o saco de desporto preto por cima do ombro. Subira os três lanços de escadas e batera de novo à porta. Annette estava em casa, mas não abrira. Perguntara quem era.

– Sou eu. Estive aqui hoje de manhã à procura do Sebastian... – O homem alto tinha um plano para que lhe abrisse a porta. Tinha sempre um plano. Um novo plano para cada vítima. Era bastante óbvio que a despedida dessa manhã não resultara de um acordo mútuo. Sebastian saíra à socapa enquanto ela dormia. Deixara-a. Abandonara-a. Ele iria usar esse facto.

– Eu trabalho com ele – prosseguiu o homem alto em voz baixa, aproximando os lábios da porta. – Ele sente-se um pouco mal por causa desta manhã. Por ter saído sem lhe dizer nada.

Silêncio do outro lado da porta. Pelo menos ela não o mandara para o inferno.

– Ele não é muito bom... na manhã seguinte. Mas se me deixar entrar, talvez possa tentar explicar-lhe.

– Foi ele que o mandou? – Parecia indignada.

O homem alto riu como se ela tivesse dito algo não apenas divertido, mas impensável.

– Não, não – ele ?caria furioso se soubesse que estive aqui.

Era importante mostrar-lhe que estavam do mesmo lado. Ambos contra Sebastian Bergman.

– Ele é um idiota em determinadas situações.

Nenhuma resposta. Teria ido longe de mais? Mas depois a corrente de segurança chocalhara e a porta abrira-se.

O homem alto estava dentro do apartamento.

 

Agora encontrava-se na Storskärsgatan. De novo. Sebastian fora lá várias vezes. Não lá dentro, mas cá fora. Sobretudo às quintas-feiras, quando Vanja Lithner ia visitar umas pessoas que deviam ser os seus pais. Anna Eriksson e Valdemar Lithner. Mas naquele dia Sebastian esperara que Valdemar Lithner saísse do prédio e a seguir entrara. Andaria a dormir com a mãe de Vanja? Era possível. Tudo era possível. Nunca conseguira deslindar a ligação entre Sebastian e aquela família. O homem alto tinha a certeza de que não andava a ter um relacionamento sexual com Vanja, por isso nunca relatara o tempo que Sebastian passava do lado de fora do prédio dela.

O homem alto inclinou-se para a frente e olhou para o número 12. Esperava que Sebastian não tardasse a sair. É certo que estavam no pino do Verão, mas a escuridão não tardaria a chegar. Como na cave. Quando a luz da lâmpada nua se apagava.


ANNA ERIKSSON SENTIA a cabeça a rodopiar. Já lera aquela frase por diversas vezes em vários livros, mas nunca conseguira realmente imaginar semelhante coisa. Agora compreendia exactamente qual era a sensação.

Alguém andava a matar as antigas amantes de Sebastian. Aqueles homicídios acerca dos quais já lera. Ela era uma das antigas amantes de Sebastian.

Podia morrer.

Argumentara que ninguém sabia nada a respeito deles. Mas ele dissera-lhe que andava a ser seguido. Portanto, isso signi?cava que outras pessoas sabiam deles? E de Vanja?

Ela podia morrer. Aquilo era de doidos.

Sebastian estava sentado ao seu lado no sofá. Não lhe oferecera nada quando entrou. Certamente não iria demorar-se. Contudo, ainda estava ali.

No sofá dela.

Na sua sala de estar.

Na sua vida.

A qual, a partir do momento em que chegou, se tornou inimaginavelmente complicada. Percebeu que estava ali sentada em silêncio, apenas a olhar para o espaço. Sem ver nada.

Sebastian inclinou-se um pouco mais para ela.

– Entendeste o que te disse?

Anna abanou a cabeça lentamente e olhou para o rosto dele, como se pretendesse con?rmar que estava a responder à pergunta.

– Sim, mas isto é de doidos. Ninguém sabe.

– Eu também pensava que ninguém sabia das outras. Mas se ele as encontrou, também te pode encontrar.

Anna acenou de novo com a cabeça. Passaram mais de vinte anos desde que Sebastian estivera com duas daquelas mulheres. Todas as vítimas eram da área de Estocolmo. Tinham família e amigos por perto. E mesmo assim morreram. A ameaça era real. A ansiedade revirou-lhe o estômago. Parecia que tinha cãibras. Curiosamente, era como se a percepção de que podia correr o risco de morte continuasse ofuscada pelo consequente medo de que alguém, algures, tivesse descoberto a verdade acerca da sua ?lha.

– Portanto, alguém pode saber também acerca de Vanja? – perguntou Anna com um tom de voz que quase não passou de um sussurro.

– Não há qualquer razão para o pensar e não é disso que se trata. – Sebastian calou-se. Cedeu a um impulso; estendeu a mão e pegou na dela. – Tu precisas de desaparecer por uns tempos.

Anna afastou a mão ao mesmo tempo que se levantou. Não permitia que ele lhe tocasse. Nem para a consolar ou fazê-la sentir-se melhor. Tudo aquilo era culpa dele. Se viesse a precisar de ajuda, Sebastian Bergman era a última pessoa a quem tencionava pedi -la.

– Eu não posso ir-me embora de repente. – Deu alguns passos rápidos pela sala e estendeu as mãos num gesto que realçava o facto de não se tratar de uma opção. – Tenho um emprego. Tenho uma família. Uma vida.

– E é exactamente por isso que tens de partir.

Anna parou de repente. No meio da sala. Ele tinha razão, claro. Infelizmente.

– Não podes ir para casa de alguém e ?car por lá uns tempos? – perguntou Sebastian, sentado no sofá.

– Bom, sim, suponho que sim, mas não posso limitar-me a desaparecer, não é? O que digo às pessoas? Ao Valdemar? E à Vanja? O que digo à Vanja?

– Nada. Não lhe podes dizer qual o motivo da tua partida porque, se o ?zeres, ela irá perceber tudo.

Anna assentiu. Concentrou-se.

Sebastian levantou-se e foi ter com ela.

– Vai para casa de alguém – insistiu. – Os teus pais ainda estão vivos?

– A minha mãe está.

– Vai visitá-la.

– Não sei... – Anna deixou o resto da frase em suspenso no ar enquanto meditava no assunto. Começava a pôr a cabeça em ordem. Em nítido contraste com o que sucedera momentos antes, naquele momento o seu cérebro trabalhava com todos os cilindros. Os pensamentos que haviam rodopiado em torno de uma trapalhada sem sentido apresentavam-se-lhe com clareza, permitindo que os rejeitasse ou os analisasse melhor.

– Iria parecer muito estranho se ?casses com ela durante uma semana? – perguntou Sebastian, determinado a obter uma decisão de?nitiva antes de deixar Anna.

– Sem nenhum aviso. Sim, iria parecer. Não temos propriamente esse tipo de relação. – Porém, apesar da sua resposta ?rme, Anna começara a imaginar um cenário possível.

A mãe dela telefonara enquanto Valdemar estava fora. Naquele momento, naquela noite. Pedira-lhe para ir lá. Porque não se sentia muito bem ou por causa de algo que tivesse a ver com a casa – em todo o caso, porque precisava de ajuda. Valdemar iria acreditar. Depois, ela poderia ir. Inventaria uma história qualquer para a mãe a ?m de lhe explicar o seu aparecimento súbito. Andava com muitos problemas no emprego. Já não podia mais. Precisava de se afastar de tudo. Se Valdemar telefonasse, a mãe podia fazer-lhe o favor de lhe dizer que tinha sido ela quem pedira ajuda a Anna? Não queria deixá-lo preocupado. Não naquela altura, quando ele ainda estava a recuperar do cancro. A mãe iria alinhar. Mentiria a seu favor. Anna poderia ?car por lá algum tempo. Regressaria quando já tivessem apanhado o assassino. Diria à mãe que se sentia muito melhor e, se o assunto viesse à baila durante um jantar em família, no Natal ou algo assim, limitar-se-ia a rir e a dizer que a mãe percebera mal. Ninguém o iria aprofundar. Podia funcionar. Iria funcionar.

Tinha de funcionar.

– Tu não podes ?car aqui – persistiu Sebastian. – Se algo te acontecer, se eles te encontrarem... Então a Vanja irá descobrir. Da pior maneira imaginável.

– Eu sei, mas não posso ir esta noite.

– Porque não?

Porque isso não se adequava ao seu plano. A situação não devia parecer demasiado urgente, caso contrário Valdemar insistiria em ir com ela. Partiria no dia seguinte. Ainda seria um pouco à pressa, mas era possível.

– Simplesmente, não é possível – respondeu a Sebastian. Não tinha vontade nem energia para lhe explicar o seu plano. – Mas há-de correr bem. O Valdemar chega a casa daqui a pouco.

– Eu posso esperar até que ele volte.

– Não! Quero que te vás embora. Já. Neste preciso instante. – Anna sentiu que recuperava o controlo após o choque inicial. Resolveria o assunto, tal como resolvera todos os outros problemas que surgiram ao longo dos anos. Contudo, Sebastian tinha de ir-se embora. Agarrou-o e empurrou-o em direcção ao corredor.

Sebastian percebeu que não havia mais nada que pudesse fazer. Saiu para o corredor.

– Não abras a porta a ninguém a não ser ao Valdemar.

– Ele tem chave.

Quando Sebastian se virou para trás e viu Anna em pé, no meio da sala de estar, embrenhada nos seus pensamentos, percebeu de repente os problemas que havia causado. Passaram poucos meses desde que o marido fora informado de que o cancro estava em remissão. Durante quanto tempo vivera com a noção de que o seu companheiro podia morrer? Meses? Anos? E ele aparecera-lhe ali com mais uma ameaça, trazendo de novo a morte para aquele apartamento confortável.

– Lamento muito.

Palavras que raramente usava mas que eram sinceras. Parou com a mão na maçaneta da porta. Queria mesmo saber, e di?cilmente podia ser menos popular do que já era ou provocar ainda mais sofrimento do que já o havia feito.

– Ele nunca perguntou?

– Quem? – Os pensamentos de Anna estavam num local completamente diferente.

– O Valdemar. Ele nunca perguntou quem é o pai dela?

A expressão no rosto de Anna deixou claro que não queria falar daquele assunto. Não com ele. Nem com ninguém.

– Uma vez – disse ela secamente. – Mas eu não lhe disse.

– E deixou o assunto por aí?

Anna encolheu os ombros.

– Ele é um bom homem.

– Já o percebi.

Silêncio. Que mais havia para dizer? Sebastian abriu a porta.

– Lamento muito – disse, de novo, quando saiu para o patamar escuro.

– Sim, já me tinhas dito.

Ela fechou a porta assim que ele saiu. Sebastian deixou-se ?car por um momento, ciente do cansaço que sentia. Física e mentalmente. Aquele fora o dia mais longo da sua vida e ainda não chegara ao ?m. Faltava outra paragem. Mais uma. Começou a descer as escadas com passos pesados.


O HOMEM ALTO estava prestes a desistir quando viu Sebastian sair pela porta mais ao fundo da rua, com o telemóvel colado ao ouvido. Escondeu-se atrás do volante o melhor que conseguiu, sem perder a presa de vista. Tinha a certeza de que mesmo que Sebastian olhasse na sua direcção, a distância, o pára-brisas ligeiramente re?ector e o crepúsculo que começava a instalar-se tornariam impossível detectá-lo. Contudo, Sebastian não o fez. Guardou o telemóvel no bolso e partiu na direcção oposta. O homem alto deixou-se ?car, a observá-lo. Sebastian parou quando chegou ao cruzamento; parecia estar à espera de algo.

Ao ?m de cinco minutos um táxi parou. Sebastian entrou e o carro arrancou. O homem alto rodou a chave na ignição e começou a segui-lo. Só durante mais algum tempo. Podia dispensar uma meia hora até o dever o chamar.

Estava a gostar da situação. Não da perseguição propriamente dita, mas daquilo a que poderia conduzir.

À número cinco.

Talvez à número seis.

Só lhe deram os nomes e os endereços das três primeiras mulheres através do site da Internet. Investigara-as, descobrira tudo o que julgava precisar de saber acerca das suas vidas e escolhera a ocasião. Com a número quatro fora diferente. De repente, tinha de ser alguém que recentemente se tivesse encontrado com Sebastian Bergman. Para evidenciar o padrão. Resultara. Sabia que a Riksmord já estabelecera a relação. Descobrira o denominador comum. O facto de Sebastian estar envolvido na investigação provava-o. Segundo o Mestre, aquilo devia levar Sebastian a examinar a sua consciência e a tentar avisar algumas das antigas parceiras. Não todas, o que seria evidentemente impossível, mas devia tentar contactar com as que fossem relativamente recentes ou tivessem mais signi?cado para ele a ?m de que pudessem ser protegidas. A mãe de Vanja Lithner seria uma delas? Foi por isso que Sebastian fora a casa dela naquela noite? Podia ser. Em todo o caso, valia a pena reportar o facto.

O táxi percorria a Valhallavägen. Na direcção errada caso Sebastian fosse para casa. Iria avisar mais alguém? O homem alto não conseguiu reprimir um sorriso. Daquela vez talvez o autorizassem a escolher. A decidir a vida e a morte. Ele. Mais ninguém. Fora-lhe dado esse poder. Pelo qual ?caria eternamente grato.

Imagine-se se o tivesse antigamente.

 

Após o casamento e a mudança para o elegante apartamento no centro da cidade Lennart tornara-se visita habitual na sua casa, por vezes com a esposa mas geralmente sozinho. Quando So?a e o pai saíam, o que acontecia com frequência, Lennart ?cava a tomar conta do menino.

Ele gostava do seu «avô». Faziam juntos os trabalhos de casa, jogavam às cartas e até tentara ensinar o homem mais velho a jogar Nintendo. Ainda não ?zera amigos na nova escola, mas Lennart levava-o muitas vezes para fora aos ?ns-de-semana. Iam a Skansen, à torre de Kaknäs, a Djurgården, ao Palácio Real, a locais que a maioria das pessoas já visitara ou dos quais pelo menos ouvira falar mas que, para ele, eram mais ou menos desconhecidos. Lennart também o deixava experimentar coisas diferentes para ele ver do que gostava. Iam pescar, patinar no gelo, apanhar amoras, jogar bowling e ao parque aquático.

Gostava imenso desses passeios com o avô. O seu pai e So?a nunca queriam ir com eles. Pelo contrário, pareciam apreciar o facto de, de vez em quando, desaparecer por algumas horas. Nunca o diziam, claro, mas os anos que passara com a mãe tinham-lhe dado uma capacidade quase única para ler os humores dos adultos, interpretando os olhares e a linguagem corporal. Aquilo surgira-lhe naturalmente, como um modo de evitar problemas. De se adaptar completamente à mãe. Os desejos dela eram sempre mais importantes do que os seus.

Um dia Lennart viera buscá-lo, como de costume. Cheio de expectativa. Iam fazer uma viagem.

– Onde vamos? – perguntara ele.

– Já vais ver – foi a resposta.

Viajaram em silêncio. O avô parecia mais tenso do que o habitual. Taciturno, quase brusco. Ele tentara compreendê-lo para se adaptar, mas não conseguira entender os sinais. Lennart emitia uma nova aura, uma espécie de incomunicabilidade com a qual nunca se deparara. Por isso, deixou-se ?car sentado e calado. Parecia resultar.

Saíram da cidade. Estradas mais pequenas. Muitas curvas e contracurvas; por vezes ?cava com a sensação de que regressavam ao local de onde tinham vindo, mas nunca perguntou. Não fazia a mínima ideia de onde se encontravam quando Lennart virou para um estreito trilho da ?oresta que terminava numa pequena casa de madeira castanha situada numa clareira. Um telhado de duas águas de metal verde, com parapeitos e persianas verdes nas janelas.

Lennart desligara o motor e ?caram sentados a olhar para a pequena casa.

– Que sítio é este? – perguntara ele.

– É uma cabana de caça.

– É tua?

– Não.

– De quem é?

– Isso não interessa.

– O que viemos aqui fazer?

– Já vais ver.

Saíram do carro e caminharam até à cabana. Era Verão. A ?oresta cheirava exactamente como é suposto uma ?oresta cheirar num dia quente e pacato. Uma leve brisa sussurrava nas copas das árvores, mas no local para onde se dirigiam não havia qualquer movimento graças à vegetação densa. Os insectos zumbiam. Pareceu-lhe vislumbrar, por entre as árvores, o brilho de um lago. Talvez fossem nadar?

Um pequeno lanço de degraus de pedra conduzia a uma porta de madeira verde, que Lennart abriu. Entraram para um vestíbulo estreito. Painéis de madeira nas paredes. Uma chapeleira, uma prateleira para sapatos no chão. Embora não houvesse sapatos nem roupa pendurada à entrada, teve a sensação de que não estavam sozinhos. Não conseguia ver nem ouvir ninguém. Era apenas uma sensação. Pressentiu a existência de um quarto maior à direita e de uma pequena cozinha no lado oposto, mas Lennart abrira imediatamente uma porta à esquerda da entrada e mostrara-lhe uma escadaria que dava para a cave.

– O que há aí em baixo? – perguntara ele.

– Vai ver – foi a resposta.

Ele descera as escadas estreitas com painéis horizontais de madeira dos lados. Ao fundo, uma lâmpada nua iluminava não apenas as escadas, mas a pequena sala mais adiante. Tinha aproximadamente metade do tamanho da cabana. Vigas de madeira. Paredes de pedra. Sem janelas. Fria e húmida. Cheirava a mofo e a algo mais, sentia-se um ténue cheiro a metal que não reconheceu. Tapetes no chão. Além disso, estava vazia. Nenhum sítio para se sentar. Nada para fazer. Estava prestes a perguntar de novo o que faziam ali quando ouviu algo, que só podiam ser passos, no andar de cima. Mais de uma pessoa. Mais de duas. Pareciam estar com pressa. Os pés arrastavam-se com precipitação. Sentia-se mais intrigado do que assustado e virou-se para Lennart, que ?cara parado ao fundo das escadas. Tinha a mão pousada num interruptor antiquado, preto, ?xado na parede. Sem dizer uma palavra, rodou-o. Ouviu-se um estalido, ao qual se seguiu a escuridão quando a lâmpada se apagou. Ficou tão escuro que nem sequer sabia se tinha os olhos abertos ou fechados. Por um breve instante, pareceu-lhe ter visto uma faixa de luz ao cimo das escadas e sombras que a atravessavam lentamente para depois serem logo engolidas pelas trevas. Mas não tinha a certeza. A imagem da lâmpada brilhante ?cara-lhe impressa na retina, de uma forma distorcida e confusa. Pestanejou várias vezes. Nada além da escuridão. Porém, tinha a certeza de que ouvia passos as descerem as escadas. Passos e uma respiração pesada, expectante.

– Avô... – disse ele.

Mas ninguém respondeu.

No carro, de regresso a casa, o comportamento de Lennart fora exactamente o mesmo de sempre. Pedira-lhe desculpa caso o tivesse assustado. Aquilo era apenas uma brincadeira. Um menino crescido como ele conseguia aguentar uma pequena brincadeira, não era? Não acontecera nada, pois não? Ele abanara a cabeça. Tivera medo. Dos ruídos. Da escuridão. Mas mais do que isso... Não sabia quanto tempo ?cara ali no escuro, mas quando Lennart voltou a acender a luz a sala estava vazia. Não havia vestígios de outra pessoa. No carro quis dizer-lhe que não lhe agradara a brincadeira, que não gostara de todo, mas manteve-se calado. Na verdade, nada acontecera. E sentado ali no carro, à luz do dia, nem sequer tinha a certeza de que alguém lá estivera. Talvez se tivesse simplesmente assustado. Imaginara coisas. Não se atreveu a perguntar a Lennart. Pararam no McDonald’s para comer gelados e, a seguir, foram comprar um novo jogo de vídeo. Quando chegaram a casa tudo regressou mais ou menos ao normal. Ele assustara-se, mas essa memória começava a desvanecer-se. Parecia-lhe que tudo não passara de um sonho. Algo que, na realidade, nunca acontecera. Devido aos anos que passara com a mãe, ganhara o hábito de se adaptar rapidamente a novas situações, a mudanças de humor, a promessas quebradas, a alterações súbitas das circunstâncias. Tornara-se mestre a esquecer e seguir em frente. Podia fazer o mesmo naquele momento.

Ele e Lennart ?zeram mais viagens. Ao princípio ele hesitara, não quisera ir, mas fora exactamente como antes. Fizeram coisas divertidas. Coisas boas. Aquela memória ?cou cada vez mais ténue. Desapareceu até não conseguir realmente lembrar-se mais dela.

Até que foram de novo parar à cabana.

Meses mais tarde. Com relutância, caminhou com Lennart em direcção à casa de madeira castanha na clareira. O avô segurava-lhe a mão. Quase puxava por ele. Pernas pesadas. Di?culdade em respirar. Entrar de novo no vestíbulo. Penetrar naquele silêncio especial que só existe quando várias pessoas tentam não fazer barulho. Pareceu-lhe sentir a sua presença nos quartos que não podia ver. Esperar. Descer as escadas. A lâmpada nua. Lennart junto ao interruptor da luz. A escuridão. Os passos rápidos a virem lá de cima em tropel. Daquela vez não olhou para a lâmpada antes de esta se apagar, e assim conseguiu ver mais nitidamente com a luz ténue que se in?ltrou quando a porta da cave se abriu. Pessoas. Claro. Nuas. Com máscaras de animais. Teve a certeza de ver uma raposa e um tigre. Ou não viu? Não sabia ao certo. Foi tudo muito rápido. Estava com medo. A porta só ?cou aberta durante alguns segundos. Em seguida, a escuridão.

Os passos furtivos.

As respirações.

– Quem são eles? – perguntara ele baixinho, dentro do carro, no regresso a casa.

– Quem? – Lennart devolveu-lhe a pergunta.

– As pessoas das máscaras.

– Não sei do que estás a falar – retorquiu Lennart.

Após a segunda vez já não queria sair com Lennart. Não queria ir a lugar algum. Nunca mais. Falara com o pai. Não podia simplesmente ?car em casa? O pai não quis ouvir falar de semelhante coisa. Era importante que mantivessem boas relações com os novos parentes. Lennart só tinha um neto; como era evidente, queria passar mais tempo na sua companhia. Devia sentir-se contente por ter um avô que se interessava tanto por ele. Que investia nele muito tempo e dinheiro. Contente e agradecido.

Ele tentou explicar-lhe que não queria mesmo ir. Foi informado de que esse facto era irrelevante. Iria. Fim da discussão. Não ?cou verdadeiramente surpreendido. Nem sequer irritado. Já devia ter percebido. Era exactamente o mesmo que sucedera com a sua mãe. Os seus sentimentos não contavam.

O que as outras pessoas queriam era sempre mais importante.

E por isso as excursões continuaram. Na maioria das vezes, tudo era como de costume. Actividades normais entre pessoas normais. Mas a intervalos regulares, que lhe pareciam ser cada vez mais curtos, iam visitar a cabana. Começou a tentar descobrir o que ?zera de diferente nas ocasiões em que acabaram por ir até lá. Seria por causa do seu comportamento? Talvez a culpa fosse realmente sua. Foi ganhando cada vez mais consciência de tudo o que fazia, desde o momento em que descobria que o avô o ia buscar até estarem sentados no carro. Se a viagem fosse agradável, da vez seguinte fazia exactamente o mesmo. Se acabasse por ir parar à cabana, provavelmente fora por causa de algo que lhe escapara. Tudo passou a ter signi?cado. A maneira como fazia a cama. O modo como dobrava a roupa. Nada devia estar errado. A forma como servia a comida no prato. O tempo que demorava a escovar os dentes. O mínimo erro, a mais pequena coisa feita de um modo diferente, podia signi?car que iria dar consigo na escuridão da cave. O número de passos que dava desde o seu quarto até à cozinha quando ia tomar o pequeno-almoço. A ordem segundo a qual arrumava as coisas dentro do seu saco de ginástica. A sua vida tornou-se cada vez mais ritualizada. Uma noite, quando pensavam que ele já estava a dormir, ouviu So?a falar com o seu pai acerca de algo chamado «comportamento compulsivo».

Ela parecia preocupada. O pai prometeu-lhe que iria ter uma conversa com ele.

Fê-lo alguns dias depois. Perguntou-lhe que raio estava a acontecer. Então, o ?lho contou-lhe. Acerca da cabana. Acerca das pessoas que pareciam animais. Que ao princípio só andaram em redor dele na escuridão, para o assustarem. Porém, agora faziam outras coisas. Andavam por toda a parte. À volta dele. Em cima dele. Dentro dele.

O pai não acreditou. Pessoas que pareciam animais! Tentou dar-lhe uma explicação para as máscaras, mas atrapalhou-se. Gaguejou. Ficou embaraçado. Então, onde ?cava a cabana? Não sabia. Parecia que seguiam sempre por um caminho diferente. Ele perdia a concentração quando percebia para onde se dirigiam. Ficava tudo mais ou menos desfocado. Era no meio da ?oresta. Numa clareira. O pai agarrou-o. Tinha uma expressão séria. Não devia voltar a falar daquilo. Compreendia? Nunca. Porque não podia limitar-se a deixar tudo como estava? Porque tentava estragar tudo quando, ?nalmente, a vida era boa sob todos os aspectos? Andava a assustar So?a com o seu comportamento estranho. E se ela se fartasse deles? O que fariam depois?

O pai recordou-lhe o que acontecera à sua mãe. Também ?cara doente, imaginava coisas, confundia-se em relação à realidade. Talvez fosse algo de família. Se continuasse daquela maneira, poderiam ter de o mandar embora. Fechá-lo. Não queria isso, pois não?

Nunca mais falou a ninguém sobre o que acontecia na cabana.

Mas aconteceu outra vez.

E outra.

Só parou algumas semanas após ter feito os dezasseis anos, quando Lennart morreu. Ele ostentou um grande sorriso no rosto durante todo o funeral, imaginando que o matara.

 

O táxi parou e Sebastian saiu. Vasastan. Ellinor Bergkvist. O homem alto já tinha informações a respeito dela, mas agora que Sebastian retomara o contacto iria incluí-la de novo no seu relatório. Olhou para o relógio. Mesmo que Sebastian tivesse tempo para visitar mais uma ou duas antes que fosse demasiado tarde, precisava de interromper a sua vigilância naquele ponto. Engrenou o carro na primeira velocidade e passou pelo táxi, que ainda estava parado. Esperava que lhe fosse permitido escolher. Nesse caso, optaria por Anna Eriksson. O facto de Sebastian trabalhar com a sua ?lha seria um bónus.


SEBASTIAN SUBIU as escadas para o apartamento de Ellinor. Hesitou antes de tocar à campainha. Teria de ser rápido. Ela dera-lhe a mão, convencera-o a tomar o pequeno-almoço e enviara-lhe ?ores no dia do seu nome. Decididamente, não era alguém que Sebastian tencionasse conhecer melhor.

Entrar, explicar-lhe a situação, sair. Era esse o plano. Não lhe daria qualquer oportunidade para interpretar mal o motivo da sua visita. Respirou fundo e tocou à campainha. A porta abriu-se para trás quando ainda tinha o polegar no botão. Ellinor sorriu para ele.

– Vi-te pela janela – disse-lhe, dando um passo para o lado. – Entra. Tive saudades tuas.

Sebastian suspirou entredentes, debatendo-se com o impulso de lhe virar as costas e ir-se embora. A correr. Esquecer tudo aquilo. Mas não, tinha de lhe contar. Para o seu próprio bem.

Entrar, explicar, sair.

Entrou para o corredor.

– Eu não tive saudades tuas. Não foi por isso que vim.

– Mas, seja como for, estás aqui. – Ellinor piscou-lhe o olho de um modo ligeiramente atrevido quando se inclinou à sua frente e fechou a porta. – Despe o casaco. – Apontou para o cabide na parede.

– Não vou ?car.

– Mas de certeza podes entrar um bocadinho?

A expressão de Ellinor era de esperança. Sebastian pensou por uns instantes e decidiu que a sua missão não era, de facto, algo que devesse ser tratado em pé, no meio de um corredor. Nem mesmo tratando-se de Ellinor Bergkvist. Manteve o casaco vestido mas seguiu-a até à sala de estar. O parapeito da janela apinhado de vasos de plantas. Sofá, cadeirões, mesa de café com uma prateleira inferior para revistas, numa parede a estante com uma pequena quantidade de livros. Alguns ornamentos alinhados, porventura lembranças de viagens ao estrangeiro. Nenhumas fotogra?as. Dois pedestais com grandes plantas verdes de ambos os lados da porta.

– Posso oferecer-te alguma coisa? – perguntou-lhe depois de ele se ter sentado no sofá.

– Não.

– Tens a certeza? Que tal um café?

– Não.

– Desde que estiveste cá comprei café a sério, já moído, e uma daquelas cafeteiras. – Com a mão direita, demonstrou como se mergulhava o êmbolo no recipiente.

– Não quero café nenhum! Obrigado. Preciso de falar contigo.

– Sobre quê?

Havia uns laivos de expectativa na voz dela? Conseguiu ver um sorrisinho de esperança? Não fazia ideia do que ela imaginava que tinha vindo dizer-lhe, mas não valia a pena tentar amenizar o golpe. Respirou fundo e embarcou na explicação que preparara.

Tinham morrido quatro mulheres. (Sim, ela já lera acerca do assunto.)

Todas haviam tido uma relação sexual com Sebastian. (Que coincidência!)

Era possível que alguém andasse a segui-lo há algum tempo, pelo que existia o risco de que o assassino também soubesse daquela noite que passaram juntos. (O que queria ele dizer com aquilo?)

Ela podia estar em perigo.

Ellinor empoleirou-se na beira de um dos seus cadeirões e ?tou-o com uma expressão séria.

– Queres dizer que ele pode vir aqui?

– Existe esse risco, sim.

– O que devo fazer?

– O melhor seria ires para casa de alguém. Afastares-te daqui por uns tempos.

Ellinor entrelaçou as mãos no regaço e pareceu meditar no que lhe acabara de dizer. Sebastian aguardou. Tal como sucedera com Anna Eriksson, antes de se ir embora queria ter a certeza de que Ellinor entendia a gravidade da situação e tencionava realmente sair do apartamento.

– E vou para casa de quem?

Tudo o que ele sabia acerca de Ellinor era o que descobrira após a palestra sobre Jussi Björling, e na verdade não abordaram o tema de saber com quem poderia ?car se, subitamente, precisasse de abandonar a sua casa. Ela sabia que ele não tinha resposta. E, mesmo assim, fez-lhe a pergunta. Isso incomodou-o. Claro.

– Como raio hei-de saber? Deve haver alguém, com certeza.

– Não sei...

Ellinor calou-se. Sebastian levantou-se. Já tratara do que fora ali fazer. Avisara-a. O que ela ?zesse com aquela informação não seria um problema seu. E, no entanto, deu por si quase a sentir pena dela. Aquela pergunta sugeria que não tinha um lugar óbvio para onde pudesse ir em caso de emergência. Estava realmente assim tão sozinha? Não fazia ideia. E, a bem dizer, não se importava. Mas ela pareceu-lhe muito pequena, ali empoleirada na beira do cadeirão com as mãos entrelaçadas.

– Podes ir para um hotel se não tiveres outro sítio.

Ellinor anuiu sem falar. Sebastian pensou por um segundo. Podia simplesmente ir-se embora dali? Na verdade, as regras de etiqueta não determinavam quanto tempo se devia ?car junto de uma pessoa após a informar de que a sua vida corria perigo. De qualquer modo, tê-las-ia ignorado. Mas devia ?car? Aceitar a tal chávena de café? Não, isso seria mal interpretado. Ela iria ver algo nisso. Meia hora na cozinha não a tornaria menos solitária. O melhor era esquecer o café. Iria manter o seu plano.

– Tenho de ir.

Ellinor assentiu de novo com a cabeça e pôs-se em pé.

– Acompanho-te à porta.

Chegaram ao vestíbulo. Sebastian abriu a porta e parou. Sentia que devia dizer-lhe algo mas não conseguia descobrir o quê. Não valia a pena adverti-la de novo. Ela já compreendera a gravidade da situação, percebia-o pelo seu rosto. Começou a descer as escadas e ouviu a corrente de segurança chocalhar quando fechou a porta atrás dele.

 

Ellinor encostou-se à porta e sorriu para si mesma. O seu coração batia mais depressa. As pernas tremiam. Ele voltara. Claro que voltara. Ellinor entrou na sala e sentou-se no sofá, no local que Sebastian ocupara pouco tempo antes. Ainda conseguia sentir algum do calor do seu corpo. Isso aquecia-a por dentro, não apenas devido ao calor físico que ele deixara para trás mas à sua consideração. A toda aquela conversa acerca de não deixar entrar ninguém no apartamento e ter cuidado com homens estranhos que pudessem aproximar-se dela; o que signi?cava a não ser uma forma indirecta de lhe dizer que não queria que ela se encontrasse com outros? Que lhe pertencia?

Recostou-se para trás. Pensou ter-lhe detectado o odor. Ele era tímido. Quem o teria imaginado; disfarçava-o muito bem por detrás daquela aparência exterior rude e grosseira. Ela dera-lhe algumas oportunidades para dizer o que realmente queria, para que expusesse o verdadeiro motivo da sua visita, mas ele fora incapaz de o fazer. Em vez disso, lembrou-se daquela história ridícula.

Ela não podia ?car ali.

Tinha de se ir embora.

Ellinor esforçara-se por manter uma expressão séria. Entrara no jogo. Na verdade, apetecera-lhe saltar do cadeirão e abraçá-lo, sacudi-lo, dizer-lhe que entendia. Mas iria permitir que ele ?zesse tudo à sua maneira. Ellinor sorriu outra vez para si mesma. O facto de lhe ser tão difícil dizer-lhe que a queria consigo era, na verdade, de uma grande ternura. Mas ela compreendia. Compreendia-o muito bem. Almas gémeas, era isso que eles eram. Fechou os olhos e desfrutou a sensação de estar onde ele se sentara. Podia entregar-se a esse prazer durante alguns minutos.


URSULA DESLIZOU PARA dentro da água morna. Apoiou a cabeça na borda da banheira e fechou os olhos. Tentou relaxar. No mínimo, fora um dia desgastante. O caso tomara um rumo que ninguém poderia ter previsto. Ninguém na equipa ?cara incólume ao assunto mas Ursula sentia que, provavelmente, fora mais afectada do que os outros.

A ligação com Sebastian trouxera-lhe memórias que deliberadamente se esforçara por apagar. Memórias que relegara para o esquecimento. E que naquele momento a?uíam de rompante, sem aviso prévio nem serem desejadas, fazendo-a sentir-se tensa e irritada.

De repente, sobressaltou-se. Ouvira um barulho? Lá em baixo? Permaneceu imóvel dentro de água, escutando atentamente, mas não ouviu mais nada.

Fantasias.

Fantasmas.

Micke não estava em casa. Tinha ido jantar fora com uns clientes. Podia chegar tarde. Chegaria tarde. Ela não fora convidada. Raramente o era. Micke não optava pelo tipo de entretenimento dos clientes que exigia uma esposa ao seu lado. O que era uma sorte. Para ser inteiramente honesta, não se interessava particularmente pelo seu trabalho. As coisas corriam-lhe de feição e ele estava feliz. Era tudo o que ela precisava de saber.

Ainda estava com fome quando chegara a casa. Comera na cozinha uma tigela de cereais com iogurte e ?zera uma sanduíche com queijo e fatias de pimento em pão de centeio dinamarquês. Depois de comer fora para a sala de estar com uma cerveja gelada, para ver televisão, mas não conseguira concentrar-se. Sebastian Bergman. As memórias continuavam a regressar. Sentindo-se inquieta, desligara o televisor e decidira ir tomar um banho quente. Antes de subir para a casa de banho veri?cara se as portas estavam trancadas e as janelas devidamente fechadas. Colocou na banheira uma cápsula com óleos essenciais e abriu as torneiras. Enquanto a banheira enchia, despiu a roupa e vestiu o roupão. Quando regressou à casa de banho hesitou por uns instantes, e depois abanou a cabeça; a ideia era disparatada. No entanto, sacou da sua arma de serviço e levou-a consigo para a casa de banho. Estava em cima do tampo da sanita. Poderia alcançá-la facilmente antes de alguém conseguir forçar a fechadura da porta da casa de banho. Afastou aquele pensamento.

Era estúpido.

Ninguém viria. Ela não corria perigo. Estava a salvo. Pela simples razão de que ninguém podia saber que ela e Sebastian tiveram um relacionamento. Foram muito espertos. Bom, havia uma pessoa que sabia: a sua irmã, Barbro. Ela e o marido, Anders, eram as únicas pessoas com quem Ursula e Sebastian passavam algum tempo fora do trabalho.

Num certo dia de Verão, quando estavam a pôr a mesa no pátio, Barbro perguntara de repente a Ursula:

– O que se passa com o Sebastian?

Ursula olhara para Anders e Sebastian, que estavam em pé, junto ao churrasco, ambos com uma cerveja na mão. Fora do alcance da voz.

– O que queres dizer?

– Quero dizer o que se passa com o Sebastian?

– Nós trabalhamos juntos, damo-nos bem.

– Andas a dormir com ele?

Ursula não respondera. O que, naturalmente, só por si já era uma resposta.

– E o que vais fazer a respeito do Micke? – perguntara Barbro no mesmo tom de voz, como se estivessem a conversar acerca do tempo, enquanto continuava a colocar os talheres.

– Não sei.

– Quando foi a última vez que estiveste em Linköping?

– No ?m-de-semana, há quinze dias.

Klara, a ?lha de Barbro que tinha oito anos, saíra de dentro de casa com uma tigela de salada. Barbro pegara na tigela e ?zera uma festa na cabeça de Klara, lançando ao mesmo tempo um olhar sugestivo a Ursula.

– Obrigada, querida.

Klara voltara para dentro de casa.

– Tu achas que sou uma má mãe.

– Só acho que devias terminar uma relação antes de começares outra.

Não voltaram a tocar no assunto. Não durante o resto dessa noite. Nem mais tarde. Nunca mais, a bem dizer. Durante os dias seguintes, Ursula pensara muito naquela conversa. Porque não terminava com Micke? O que tinha com Sebastian era algo que jamais experimentara. Muito mais do que sexo. Era inteligente e apreciava o facto de ela também o ser. Nunca fugia a uma discussão. Mentia quando lhe convinha. Assegurava-se de que mantinha sempre uma pequena distância entre ele e tudo o resto, incluindo ela própria. Estava mais próximo dela do que de qualquer outra pessoa.

Era como ela.

Ela adorava Sebastian, embora não tivesse de todo a certeza de que o sentimento fosse mútuo. Passavam muito tempo juntos, mas não todo o tempo. Queria vê-lo com mais frequência do que ele a ela. Faziam sexo, dormiam juntos, mas nunca falavam acerca de viverem juntos. Nunca falavam sobre um futuro em comum. Era o motivo por que não se separava de Micke? Isso alteraria todas as regras. Enquanto estivesse casada e fosse a casa a intervalos regulares, entre ela e Sebastian não poderia haver mais do que aquilo que já existia. Mas se, de repente, ?casse disponível e lhe dissesse o que queria, como se sentia, então o que aconteceria? Queria saber e, ao mesmo tempo, não queria. Tudo corria bem entre eles, dizia a si própria, mas também ansiava por algo mais permanente. Um compromisso. Contudo, se ?zesse tal exigência perderia Sebastian? O risco era esse.

Durante o Outono, ela e Sebastian viram-se cada vez com menos frequência. Micke estava mais ocupado por causa do trabalho, o que signi?cava que lhe era mais difícil aguentar-se sozinho em Linköping, e há alguns meses recomeçara a beber demasiado. Ursula era necessária em casa. Pediu uma licença no emprego e mudou-se para lá. Ao chegar, percebeu o que aquela ausência ?zera ao seu relacionamento com Bella. Por vezes sentia que a ?lha a considerava uma estranha. Alguém que apenas viera resolver a situação até que o seu pai regressasse. A maior parte do tempo, Micke estava fora. Era o que fazia sempre que recomeçava a beber. Não queria que ninguém, e muito menos Bella, o visse naquelas ocasiões. Ursula fez o que pôde para aguentar a situação em casa e melhorar o seu relacionamento com Bella, mas apetecia-lhe estar noutro lugar qualquer. Os avós de Bella tinham de intervir cada vez mais regularmente. Ela culpava o emprego. Voltara para Estocolmo. Para Sebastian. Mas algo mudara. Era difícil de?nir exactamente o quê, mas algo havia mudado. Seria por já não se verem com tanta frequência? Ou era outro motivo qualquer? Após a sua terceira viagem de regresso, Ursula teve a nítida sensação de que ele lhe era in?el.

Sebastian era Sebastian. Ela sabia-o. A sua reputação de mulherengo era bem conhecida. Mas acreditara realmente que seria su?ciente para ele. Esperara isso. Porém, não tencionava satisfazer-se com as suas esperanças e as palavras dele. A?nal, era a principal técnica forense da Suécia.

Após um ?m-de-semana com Sebastian, ela tirara um lençol do cesto da roupa suja dele. Um lençol com vestígios evidentes de actividade sexual. Levara-o para o laboratório em Linköping e pedira um favor a um dos seus antigos colegas. Queria fazer um teste de ADN. O colega percebeu rapidamente que não se tratava de uma investigação policial; mostrou uma relutância compreensível em se envolver, mas deixou-a usar o laboratório. Por isso, fê-lo sozinha. Era simples.

Recolhera o ADN de Sebastian de alguns ?os de cabelo da sua escova. O resultado do teste revelou que um dos vestígios de ADN no lençol provinha de Sebastian. Claro. No entanto, o outro só correspondia ao ADN de Ursula em alguns pontos. Cada vez mais horrorizada, Ursula percebeu o que tinha à sua frente.

Era ciência forense elementar. Se o per?l de ADN não tinha exactamente o mesmo padrão mas era semelhante, podia muito bem pertencer a um parente. Quanto mais próximo o parentesco, mais semelhante o per?l de ADN.

Aqueles eram muito semelhantes.

Como o de duas irmãs.

Confrontara Sebastian, que o assumira de imediato. Sim, andava a dormir com a Barbro. Tanto quanto se lembrava, ele e Ursula nunca prometeram ser ?éis um ao outro. Ela ausentara-se durante vários meses. O que era suposto ele fazer, viver como um monge?

Afastou -se dele.

Talvez, apenas talvez, tivesse conseguido lidar com a sua in?delidade. Com uma estranha. Mas não com a Barbro. Não com a sua irmã.

Quando deixara Sebastian, conduzira directamente até Mälarhöjden. Toda a família estava em casa quando entrou de rompante e confrontou Barbro com o que sabia. O que dissera ela acerca de terminar uma relação antes de começar outra? Barbro negara tudo. Ursula mostrara-lhe o relatório do ADN. Anders ?cara furioso. Klara e Hampus começaram a chorar. Ursula deixara aquela casa num caos. Foi a última vez que viu a irmã. Por intermédio dos pais veio a saber que Barbro e Anders se haviam separado e foram morar para outro sítio. Ela não sabia onde. Nem queria saber. Não tinha a mínima intenção de alguma vez perdoar Barbro.

Voltara para Linköping. Para Bella. Para Micke, que andava novamente nos eixos. Debateram a situação e, ao ?m de algum tempo, Ursula conseguira convencer a família a mudar-se para Estocolmo. Ela adorava o seu trabalho. Não estava disposta a desistir só porque Sebastian Bergman era um porco. Conseguiriam trabalhar juntos. Ela assegurar-se-ia disso.

Ela tinha ido antes deles para Estocolmo e foi visitar Sebastian. Esclarecer a situação. Iriam trabalhar juntos. Ela odiava-o, odiava o que ?zera, mas não iria desistir do seu trabalho. Não permitiria que continuasse a destruí-la. Se se atrevesse a murmurar a qualquer pessoa que tinham estado juntos, matava-o. Dissera-lhe realmente isso. E fora sincera. Sebastian mostrara-se atipicamente cooperante. Cumprira a sua promessa e, tanto quanto ela sabia, não dissera uma palavra a ninguém acerca do relacionamento deles. Micke e Bella mudaram-se para Estocolmo. A vida continuou. Funcionava a todos os níveis. Na família. No emprego. Mas ninguém ?cou mais feliz do que ela quando Sebastian saiu da Riksmord em 1998.

Porém, agora estava de regresso.

Naquele momento, nem a água quente nem os óleos essenciais a relaxavam.

Estava ali deitada e tinha uma arma carregada em cima da sanita.

Pensava em acontecimentos que durante vários anos tentara suprimir.

Sim, Sebastian Bergman estava de regresso.

Da pior maneira imaginável.

 

 


C O N T I N U A