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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DOMADOR DE LEÕES / Camilla Läckberg
O DOMADOR DE LEÕES / Camilla Läckberg

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O CAVALO SENTIU O CHEIRO DO MEDO ainda a rapariga não tinha saído do bosque. A cavaleira incitava-o, cravando-lhe as esporas nos flancos, mas não teria sido necessário. Entendiam-se tão bem que o animal lhe adivinhava a intenção de avançar.

O ressoar abafado e rítmico dos cascos rompia o silêncio. Durante a noite, caíra uma fina camada de neve e o cavalo ia deixando marcas novas enquanto os flocos de neve revolteavam em torno das suas patas.

A rapariga não corria. Caminhava desajeitadamente, com os braços muito juntos ao corpo, descrevendo uma linha irregular. A cavaleira lançou um grito. Um grito retumbante que fez com que o animal intuísse que algo não estava bem. A rapariga não reagiu, continuando a avançar aos tropeções.

Estavam a aproximar-se dela, e o cavalo acelerou ainda mais. Aquele cheiro ácido e intenso a medo misturava-se com outra coisa, com algo indefinível e tão aterrador que o animal baixou as orelhas. Queria deter-se, dar meia-volta e regressar a galope à segurança do estábulo. Aquele não era um lugar seguro.

O caminho interpunha-se entre eles. Estava deserto e a neve acabada de cair redemoinhava sobre o asfalto como uma névoa suspensa.

A rapariga continuava a aproximar-se. Seguia descalça e tinha os braços nus, tal como as pernas, num contraste gritante com a brancura que os rodeava; os abetos cobertos de neve formavam um improvável cenário idílico por detrás dela. Agora já estavam perto, cada qual de um dos lados do caminho, e o cavalo ouviu outra vez o grito da cavaleira. O som daquela voz era-lhe muito familiar; contudo, de certo modo, parecia-lhe estranha.

De repente, a rapariga deteve-se. Ficou no meio do caminho, com a neve a revoltear em torno dos pés. Tinha algo estranho nos olhos. Pareciam dois buracos negros no rosto.

O carro apareceu como que vindo do nada. O ruído dos travões cortou o silêncio e em seguida ressoou o baque de um corpo a aterrar no chão. A cavaleira puxou as rédeas com tal vigor que o freio se cravou na boca do cavalo. O animal obedeceu e estacou. Ela e ele eram um só. Era assim que tinha aprendido.

No chão, a rapariga jazia imóvel. Com aqueles olhos tão estranhos cravados no céu.

 

 

 

 

Erica Falck parou diante do estabelecimento prisional e, pela primeira vez, inspecionou-o mais demoradamente. Nas visitas anteriores tinha estado tão obcecada a pensar em quem a esperava que não se detivera a observar o edifício e tudo o que o rodeava. Mas precisava de se munir de todas as impressões para poder escrever o livro sobre Laila Kowalska, a mulher que, há muitos anos, matou brutalmente o marido, Vladek.

 

Interrogava-se como poderia transmitir a atmosfera que reinava naquele edifício que fazia lembrar um bunker, como conseguiria que os leitores sentissem o hermetismo e o desespero. O estabelecimento prisional ficava a meia hora de carro de Fjällbacka, isolado e solitário, rodeado por uma cerca de arame farpado, mas sem aquelas torres de vigia com agentes armados que apareciam sempre nos filmes norte-americanos. Fora construído tendo em conta exclusivamente a função a que se destinava: manter as pessoas encerradas no seu interior.

 

Do lado de fora parecia completamente vazio, mas Erica sabia que não era de todo assim. A ânsia de cortar nas despesas e as restrições orçamentais levaram a que se concentrassem no mesmo espaço tantos presos quanto possível. Nenhum autarca tinha particular interesse em investir num novo estabelecimento e arriscar-se a perder votos. Portanto, todos se conformavam com o que havia.

 

O frio começou a infiltrar-se-lhe nas roupas e Erica encaminhou-se para a porta principal. Quando entrou na receção, o guarda lançou uma olhadela apática ao cartão de identificação que Erica lhe mostrou e assentiu sem erguer os olhos. Depois levantou-se e a escritora seguiu-o pelo corredor sem deixar de pensar na manhã de cão que tinha tido. No fundo, fora uma manhã igual a todas as outras dos últimos tempos. Em abono da verdade, dizer que os gémeos estavam na idade rebelde era um eufemismo. Por mais que tentasse, Erica não conseguia recordar-se de Maja ter sido assim tão desobediente, nem aos dois anos nem em qualquer outra idade. Noel era o pior. Fora sempre o mais irrequieto dos dois e Anton imitava-o em tudo. Se Noel chorava, Anton também chorava. Era um milagre que Patrik e Erica conservassem os tímpanos intactos, tendo em conta o nível de decibéis que reinava naquela casa.

 

Para não falar do tormento que era vesti-los com roupa de inverno. Cheirou discretamente a axila. Já começava a sentir-se o suor. Quando terminara a luta para lhes vestir todos os agasalhos necessários para poderem ir com Maja para o infantário, Erica já não teve tempo de mudar de roupa. Bem, também não ia propriamente a uma festa.

 

Ouviu-se um retinir de chaves quando o guarda abriu a porta e a convidou a entrar na sala de visitas. De certo modo, parecia-lhe um pouco antiquado que ainda tivessem fechaduras com chaves. Claro que, logicamente, era mais fácil descobrir o código de uma porta eletrónica do que roubar uma chave; por isso, talvez não fosse assim tão estranho que, ali, os velhos hábitos se impusessem às modernices.

 

Laila estava sentada à única mesa da divisão, com o rosto voltado para uma janela por onde entrava o sol invernal, deixando uma aura em torno do cabelo louro. As grades que protegiam as janelas projetavam quadradinhos de luz no chão, onde as partículas de pó redemoinhavam, revelando que a divisão não fora tão bem limpa como devia.

 

– Olá – disse Erica antes de se sentar.

 

Na verdade, perguntava a si própria porque é que Laila concordara voltar a vê-la. Era a terceira vez que se encontravam e Erica não tinha progredido nada. De início, Laila negara-se terminantemente a recebê-la. De nada adiantava a quantidade de cartas suplicantes que lhe enviava e as chamadas que lhe fazia. Contudo, há uns meses, Laila não hesitara em aceitar. Certamente por Erica quebrar a monotonia da vida no hospital psiquiátrico com as suas visitas; e enquanto Laila acedesse, Erica continuaria a comparecer. Há muito que desejava contar uma boa história e não poderia fazê-lo sem a ajuda de Laila.

 

– Olá, Erica. – Laila cravou nela aqueles seus olhos tão claros e tão estranhos. Da primeira vez que Erica a viu pensou naqueles cães de trenó. Depois da visita foi procurar o nome da raça. Husky. Laila tinha os olhos de um husky siberiano.

 

– Porque concorda encontrar-se comigo se não quer falar da ocorrência? – perguntou Erica sem rodeios. E lamentou de imediato ter empregado um termo tão formal. Para Laila, aquilo que tinha acontecido não era uma ocorrência. Era uma tragédia, algo que continuava a atormentá-la.

 

A mulher encolheu os ombros.

 

– As suas visitas são as únicas que recebo – respondeu, confirmando assim as suposições de Erica.

 

Retirou da mala a pasta com os artigos, as fotografias e as notas que tinha tomado.

 

– Mas ainda não me dei por vencida – disse, dando umas pancadinhas na pasta com os nós dos dedos.

 

– Bem, suponho que esse é o preço que tenho de pagar por um pouco de companhia – retorquiu Laila, com um toque de sentido de humor; o mesmo que Erica vislumbrara numa ou noutra ocasião. Aquele sorriso amargo alterava-lhe completamente as feições. Erica vira fotografias de Laila anteriores ao que tinha acontecido. Não era bonita, antes atraente, de um modo diferente, interessante. Na altura tinha o cabelo louro, comprido e, na maior parte das fotografias, usava-o solto e liso. Agora usava-o muito curto, sem qualquer penteado digno de tal nome, apenas quase rapado, sinal de que há muito deixara de se preocupar com a aparência. Porque haveria de preocupar-se? Há anos que estava afastada do mundo real. Para quem ia pôr-se bonita ali dentro? Para as visitas que nunca recebia? Para os outros reclusos? Para os guardas?

 

– Hoje parece cansada. – Laila examinava atentamente Erica. – Foi uma manhã difícil?

 

– A manhã e a noite, tal como a noite de ontem, e de certeza que esta tarde também vai ser. Mas suponho que as coisas são assim quando há crianças pequenas... – Erica deixou escapar um grande suspiro e tentou descontrair-se. Conseguia sentir a tensão que se lhe acumulara no corpo depois do stresse daquela manhã.

 

– O Peter portava-se sempre tão bem... – disse Laila, cujos olhos se toldaram. – Nunca fez uma única birra.

 

– Da última vez disse-me que era muito calado.

 

– Sim, ao princípio pensávamos que tinha algum problema. Até aos três anos não abriu a boca. Eu queria levá-lo a um especialista, mas o Vladek recusava-se. – Laila resfolegou e, sem se dar conta, cruzou as mãos, que antes repousavam em cima da mesa.

 

– Que aconteceu quando o Peter fez três anos?

 

– Bem, um dia, sem mais nem menos, começou a falar. Frases completas. Com muito vocabulário. Ceceava um pouco, lá isso é verdade, mas de resto era como se tivesse falado desde sempre. Como se os anos de silêncio não tivessem existido.

 

– E nunca souberam qual era o motivo?

 

– Não. Quem é que ia explicar-nos o motivo? O Vladek não quis levá-lo a nenhum especialista. Dizia sempre que não devíamos envolver desconhecidos nos problemas da família.

 

– E a Laila? Porque acha que o Peter esteve tanto tempo sem falar?

 

Laila virou o rosto para a janela e a luz voltou a desenhar-lhe uma aura em redor do cabelo louro. Como um mapa de todo o sofrimento pelo qual tivera de passar.

 

– Suponho que se deu conta de que o melhor era passar o mais despercebido possível. Fazer com que nem sequer se desse por ele. O Peter era uma criança muito esperta.

 

– E a Louise? Começou logo a falar? – Erica continha a respiração. Até àquele momento, Laila tinha feito orelhas moucas a todas as perguntas sobre a filha.

 

E o mesmo se passou desta vez.

 

– O Peter adorava organizar as coisas. Gostava de ordem e harmonia. Quando ainda era muito pequeno e brincava com cubos de construção, erguia torres perfeitas e ficava muito triste quando... – Laila calou-se de repente.

 

Erica viu-a cerrar os dentes e tentou, com a força do pensamento, fazer com que Laila continuasse a falar, fazer com que libertasse o que tão zelosamente guardava dentro de si. Mas a oportunidade passou. Exatamente como nas visitas anteriores. Às vezes tinha a impressão de que Laila se encontrava à beira de um precipício e que o que realmente desejava era lançar-se nele. Como se quisesse deixar-se cair, mas alguma força superior a impedisse e a obrigasse a retirar-se novamente para a segurança das sombras.

 

Não foi por acaso que Erica pensou precisamente em sombras. Desde a primeira vez que se viram, teve a sensação de que Laila habitava um mundo de sombras. Uma vida que corria paralelamente à que tivera, à vida que se esfumou numa escuridão infinita naquele dia há tantos anos.

 

– Às vezes não tem a sensação de que está a perder a paciência com os seus filhos? De que está a ponto de ultrapassar aquele limite invisível? – O interesse de Laila parecia sincero, mas havia igualmente um laivo de súplica na sua voz.

 

Não era uma pergunta de resposta fácil. Já todos os pais sentiram alguma vez que estavam a roçar a fronteira entre o permitido e o proibido, e contaram até dez enquanto iam passando mentalmente em revista o que poderiam fazer para acabar com as birras e os gritos. Mas havia uma diferença abismal entre pensá-lo e fazê-lo. Por isso, Erica abanou a cabeça.

 

– Nunca seria capaz de lhes fazer mal.

 

Naquele momento, Laila não disse nada. Ficou a olhar para Erica com aqueles olhos de um azul intenso. Porém, quando o guarda lhes anunciou à entrada da sala que a visita tinha terminado, disse em voz baixa, sem tirar os olhos de Erica:

 

– Isso é o que você pensa.

 

Erica pensou nas fotografias que tinha na pasta e estremeceu de horror.

 

Tyra estava a escovar Fanta com passagens ritmadas. Como sempre, sentia-se melhor quando tinha os cavalos por perto. Na verdade, teria preferido encarregar-se de Scirocco, mas Molly não permitia que ninguém a substituísse. Parecia-lhe tão injusto... Como os pais dela eram os donos das cavalariças, levava sempre a melhor.

 

Tyra adorava Scirocco desde a primeira vez que o viu. Ele olhava-a como se a compreendesse. Era uma comunicação sem palavras que nunca tinha experimentado com ninguém, humano ou animal. Mas com quem haveria de comunicar? Com a mãe? Ou com Lasse? Pensou em Lasse e começou a escovar Fanta com mais energia, mas a grande égua branca não parecia ter nada contra. Pelo contrário, dava a impressão de estar a adorar cada passagem, resfolegava e movia a cabeça de cima para baixo, como se estivesse a fazer vénias. Por um momento, pareceu-lhe que a queria convidar para dançar; Tyra sorriu e acariciou-lhe o focinho acinzentado.

 

– Tu também és muito bonita – disse, como se o animal tivesse conseguido ler-lhe os pensamentos sobre Scirocco.

 

Sentiu depois uma pontada de remorsos. Olhou para a mão, que ainda conservava no focinho de Fanta, e compreendeu quão mesquinha era a sua inveja.

 

– Tens saudades da Victoria, não é? – sussurrou, apoiando a cabeça no pescoço da égua.

 

Victoria, era ela quem se encarregava de Fanta. Victoria, que estava há vários meses desaparecida. Victoria, que sempre fora – e continuava a ser – a sua melhor amiga.

 

– Eu também tenho saudades dela. – Tyra sentiu na face a crina sedosa da égua, mas isso não lhe trouxe o consolo que esperava.

 

Na verdade, devia estar na aula de matemática, mas naquele dia não se julgava capaz de pôr boa cara e controlar a nostalgia. De manhã, fingiu que se dirigia ao autocarro escolar, mas na realidade fora em busca de consolo nas cavalariças, o único sítio onde conseguia encontrá-lo. Os adultos não percebiam nada. Só estavam interessados nas suas próprias preocupações, na sua própria dor.

 

Victoria era mais do que a sua melhor amiga. Era como uma irmã. Davam-se desde o primeiro dia no infantário e, a partir desse momento, tornaram-se inseparáveis. Não havia nada que não tivessem partilhado. Ou haveria? Tyra já não tinha a certeza. Nos meses que antecederam o desaparecimento da amiga, algo mudara. Era como se entre elas se tivesse erguido um muro. Tyra não queria pressioná-la. Disse a si própria que, quando Victoria sentisse que era o momento certo, lhe contaria o que lhe ia na alma. Mas o tempo foi passando e Victoria não apareceu.

 

– Vais ver que ela volta, não deve faltar muito – disse a Fanta, apesar de, no fundo do seu ser, saber que Victoria não voltaria. Ninguém lho dizia, mas todos sabiam que algo de grave acontecera. Victoria não era rapariga para desaparecer por gosto, se é que havia alguma rapariga assim. Estava demasiado satisfeita com a vida e não era nada aventureira. Aquilo de que mais gostava era estar em casa ou nas cavalariças e nem sequer lhe apetecia sair com as amigas em Strömstad aos fins de semana. E a família de Victoria não era nem de perto nem de longe como a de Tyra. Eram todos muito simpáticos, incluindo o irmão mais velho. Não se importava de levar a irmã às cavalariças, mesmo que fosse muito cedo. Tyra sempre se sentira bem em sua casa. Sentia-se como mais um membro da família. Às vezes até desejava que aquela fosse a sua família. Uma família perfeitamente normal.

 

Fanta resfolegou um pouco e Tyra reparou na respiração do animal. Algumas lágrimas humedeceram o focinho da égua e Tyra limpou rapidamente os olhos com as costas da mão.

 

De repente ouviu um ruído do lado de fora das cavalariças. Fanta também ouviu, esticou muito as orelhas e ergueu a cabeça tão inesperadamente que atingiu Tyra no queixo. O sabor acre do sangue não tardou a encher-lhe a boca. Disse um palavrão e, apertando bem os lábios com a mão, foi ver o que se passava.

 

O sol cegou-a ao abrir a porta, mas os olhos não tardaram a habituar-se à luz e viu Marta a aproximar-se a galope, montada em Valiant. Freou com tal violência que o cavalo quase se empinava. Não parava de gritar algo. A princípio, Tyra não a ouvia bem, mas Marta continuou a repetir o mesmo em altos berros. E Tyra acabou por receber a mensagem:

 

– Victoria! Encontrámo-la!

 

Sentado à secretária do seu gabinete na esquadra de Tanumshede, Patrik Hedström aproveitava a tranquilidade. Tinha começado cedo, logo que tinha conseguido levar a bom termo o episódio de vestir os filhos e levá-los ao infantário, uma tarefa que se convertera numa verdadeira tortura, dada a transformação que tinham sofrido os gémeos, passando de dois anjinhos a parecerem-se com Damien, o rapaz de O Génio do Mal1. Não havia explicação para que dois seres tão pequenos conseguissem roubar tanta energia a uma pessoa. Atualmente, os momentos que mais gostava de passar com os filhos eram as noites, quando ficava sentado durante um bocado no quarto dos gémeos enquanto estes dormiam. Então conseguia apreciar o amor puro e profundo que lhe inspiravam, sem vestígios da frustração absoluta que sentia às vezes quando os ouvia gritar: «NAAÃO, NÃO QUEEERO!»

 

Com Maja, as coisas eram sempre muito mais fáceis. Tanto que, em certas ocasiões, ficava com remorsos, porque ele e Erica dedicavam quase toda a sua atenção aos gémeos. Às vezes, Maja ficava para segundo plano. Portava-se tão bem e conseguia entreter-se tão facilmente sozinha que, pura e simplesmente, davam por adquirido que não precisava de nada. Além disso, apesar de ainda ser tão nova, tinha uma habilidade mágica para acalmar os irmãos, mesmo nos piores momentos. Mas isso não era justo e Patrik decidiu que, nessa noite, passaria um bom bocado com Maja, a ler-lhe uma história.

 

Nesse momento, o telefone tocou. Atendeu, distraído, ainda a pensar em Maja, mas não tardou a reagir e a endireitar-se na cadeira.

 

– O quê? – perguntou, e continuou a ouvir. – Okay, vamos já para lá.

 

Vestiu o blusão enquanto saía e, já no corredor, gritou:

 

– Gösta! Mellberg! Martin!

 

– Que raio aconteceu? Vamos apagar algum fogo? – grunhiu Bertil Mellberg, que, curiosamente, foi o primeiro a sair do seu gabinete. Martin Molin e Gösta Flygare não tardaram a juntar-se-lhe, assim como a secretária da esquadra, Annika, que estava na receção, a zona do edifício mais afastada do gabinete de Patrik.

 

– Encontraram Victoria Hallberg. Foi atropelada por um carro na entrada Este de Fjällbacka e segue neste momento numa ambulância a caminho do hospital de Uddevalla. Gösta, eu e tu vamos para lá agora mesmo.

 

– Valha-me Deus! – exclamou Gösta, que regressou a correr ao gabinete para vestir o blusão. Naquele inverno, ninguém se atrevia a sair sem um agasalho, por mais urgente que fosse a situação.

 

– Martin, Bertil e tu podem ir ao local do acidente falar com o condutor do veículo – prosseguiu Patrik. – Telefona também aos técnicos e diz-lhes que se reúnam lá convosco.

 

– Bem, hoje o Hedström está muito mandão – resmungou Mellberg. – Mas sim, claro, dado que sou o chefe da esquadra, é lógico que seja eu a deslocar-me ao local do acidente. É o procedimento correto.

 

Patrik suspirou para dentro, mas não disse nada. Com Gösta nos calcanhares, apressou-se até um dos carros-patrulha, sentou-se ao volante e ligou o motor.

 

«Que tempo horrível», pensou quando o carro lhe fugiu na primeira curva. Não se atrevia a conduzir tão depressa como teria gostado. Começara outra vez a nevar e não queria correr o risco de sair da estrada. Deu um soco de impaciência no volante. Estavam em janeiro e, tendo em conta quão comprido era o inverno sueco, era expectável que aquele inferno se prolongasse mais dois meses, pelo menos.

 

– Acalma-te – disse Gösta, agarrando-se à pega. – Que foi que te disseram ao telefone? – O carro derrapou; Gösta conteve a respiração.

 

– Pouca coisa. Apenas que houve um acidente e que a rapariga atropelada era Victoria. Parece que uma testemunha a reconheceu. Pelos vistos, a pobrezita não ficou em muito bom estado e creio que, antes de ter sido atropelada pelo carro, já tinha alguns ferimentos.

 

– De que género?

 

– Não sei, já vamos saber quando chegarmos.

 

Menos de uma hora mais tarde, estacionaram à entrada do hospital de Uddevalla. Entraram meio a correr nas urgências e depois conseguiram falar com um médico que, pela identificação que trazia na bata, se chamava Strandberg.

 

– Ainda bem que chegaram. A rapariga está prestes a entrar no bloco operatório, mas não sei se resistirá à cirurgia. Soubemos que estava dada como desaparecida e, em circunstâncias tão extraordinárias, pensámos que o melhor seria que os senhores falassem com a família. Suponho que já os contactaram, não é verdade?

 

Gösta assentiu.

 

– Vou ligar-lhes agora mesmo.

 

– Tem alguma informação acerca do que aconteceu? – perguntou Patrik.

 

– Sabemos que foi atropelada, pouco mais. Tem hemorragias internas graves e um traumatismo craniano cuja extensão ainda não conseguimos apurar. Vamos mantê-la sedada durante algum tempo depois da operação, para minimizar os danos cerebrais. Se sobreviver, claro.

 

– Pelo que sei, a rapariga já apresentava ferimentos antes de ter sido atropelada.

 

– Sim, bem... – Strandberg não se decidia a prosseguir. – Acontece que não sabemos ao certo quais eram os ferimentos anteriores. Mas... – o médico ganhou coragem, parecendo estar à procura das palavras certas. – Faltam-lhe os dois olhos. E a língua.

 

– Faltam-lhe?! – Patrik olhava para o médico, incrédulo. Pelo canto do olho viu que Gösta também estava atónito.

 

– Sim, cortaram-lhe a língua e tiraram-lhe os olhos... Bem, não sei como, mas tiraram-lhos.

 

Gösta levou a mão à boca. Tinha tão má cara que estava quase verde.

 

Patrik engoliu em seco. Por um momento, perguntou a si próprio se aquilo não seria um pesadelo do qual ia despertar de um momento para o outro. Não tardaria a constatar que tudo não passava de um sonho, ia voltar-se para o outro lado e continuar a dormir. Mas não, aquilo era a realidade. Uma realidade pavorosa.

 

– Quanto tempo calcula que vai demorar a operação?

 

Strandberg abanou a cabeça.

 

– É difícil de prever. Como eu disse, a doente apresenta graves hemorragias internas. Duas ou três horas. No mínimo. Podem esperar aqui – disse o médico, assinalando uma ampla sala de espera.

 

– Bem, vou então ligar para a família – disse Gösta, e afastou-se um pouco pelo corredor.

 

Patrik não lhe invejava a tarefa. A alegria que sentiriam ao saber que Victoria tinha aparecido não tardaria a converter-se no mesmo desespero e na mesma angústia que a família Hallberg tivera de suportar nos últimos quatro meses.

 

Sentou-se numa das cadeiras de assento duro, imaginando os ferimentos de Victoria. Mas uma enfermeira muito stressada que apareceu à procura de Strandberg interrompeu-lhe os pensamentos. Patrik mal teve tempo de reagir ao que a mulher disse e já o médico saía da sala a toda a velocidade. No corredor ouvia-se a voz de Gösta, que falava ao telemóvel com os familiares de Victoria. A questão era saber que notícias lhes iriam dar.

 

Tenso, Ricky observava o rosto da mãe enquanto ela falava ao telemóvel. Tentava interpretar-lhe os gestos, ouvir o que dizia. O coração martelava-lhe tão forte no peito que mal conseguia respirar. O pai estava ao seu lado e Ricky suspeitava que o coração dele também batia desenfreadamente. Era como se o tempo tivesse congelado, como se o tivessem parado naquele instante. Estava muito atento à conversa, mas ao mesmo tempo ouvia perfeitamente todos os outros ruídos, sentia o toque da toalha de oleado nas mãos, cruzadas sobre a mesa, o cabelo que lhe fazia cócegas no pescoço, o chão de linóleo sob os pés.

 

A polícia tinha encontrado Victoria. Foi a primeira coisa que souberam. A mãe reconhecera logo o número e tinha-se lançado sobre o telemóvel. Ricky e o pai, que estavam a comer sem apetite, imobilizaram-se quando a ouviram perguntar:

 

– O que aconteceu?

 

Não houve frases corteses nem cumprimentos, nem sequer o nome, que era como a mãe de Ricky costumava atender os telefonemas. Ultimamente, todas essas coisas – as frases corteses, as normas sociais, o que era preciso fazer, o que devia ser feito – tinham-se transformado em algo completamente insignificante, algo que pertencia à vida anterior ao desaparecimento de Victoria.

 

Amigos e vizinhos apareciam constantemente, levando-lhes comida e palavras bem-intencionadas, mas não ficavam muito tempo. Os pais de Ricky não aguentavam as perguntas, a amabilidade, a preocupação e a compaixão que traziam nos olhos. Ou o alívio, sempre o mesmo alívio de não serem eles. De os seus filhos estarem em casa. Em segurança.

 

– Vamos já para aí.

 

A mãe desligou e pousou o telemóvel na bancada, que era de aço inoxidável, das antigas. Há anos que andava a dizer ao pai para a trocar por outra mais moderna, mas este respondia num murmúrio que era inaceitável trocar algo que estava impecável e que funcionava perfeitamente bem. E a mãe não insistia, mas de vez em quando mencionava o assunto, na esperança de que um dia o marido mudasse de opinião.

 

Ricky não acreditava que a mãe ainda se preocupasse com a bancada que tinham ou deixavam de ter. Era curioso como tudo podia tornar-se insignificante de repente. Tudo menos Victoria.

 

– Que foi que disseram? – perguntou o pai. Tinha-se levantado, mas Ricky continuava sentado, a olhar para os punhos cerrados. A expressão da mãe indicava-lhes que, na realidade, não iam querer ouvir o que ia dizer-lhes.

 

– Encontraram-na. Mas tem ferimentos múltiplos e está no hospital de Uddevalla. Gösta disse que é melhor apressarmo-nos. E não sei mais nada.

 

Desatou a chorar e desabou como se tivesse perdido a força nas pernas. O pai mal teve tempo de sustê-la, acariciou-a e acalmou-a, apesar de também lhe estarem a correr lágrimas pelas faces.

 

– Minha querida, temos de ir. Veste o casaco e depois saímos. Ricky, ajuda a tua mãe enquanto eu ligo o motor do carro.

 

Ricky assentiu e aproximou-se da mãe. Muito devagar, rodeou-lhe os ombros com o braço e levou-a até à entrada. Aí, deu-lhe a parka de penas, vermelha, e ajudou-a a vesti-la, tal como se ajuda uma criança. Primeiro um braço, depois o outro. Depois subiu-lhe o fecho de correr.

 

– Já está – disse, pondo-lhe as botas à frente. Agachou-se e ajudou a mãe a calçá-las. Depois vestiu apressadamente o blusão e abriu a porta. Ouviu o pai a ligar o motor, viu como raspava nervosamente as janelas e a geada ficava a flutuar em seu redor como uma nuvem, misturando-se com o vapor da respiração.

 

– Inverno de merda! – gritou, raspando com tanta força que quase riscava o vidro. – Sacana de inverno de merda!

 

– Senta-te no carro, pai, que eu já faço isso – disse Ricky que, depois de sentar a mãe no banco traseiro, começou a limpar o gelo com o raspador.

 

O pai obedeceu sem protestar. Sempre tinham deixado que pensasse que era ele quem mandava na família. Os três – ele próprio, a mãe e Victoria – tinham um acordo tácito e fingiam que Markus, o pai, comandava, quando todos sabiam que era demasiado brando para isso. Era sempre Helena, a mãe, que se encarregava de levar a água ao seu moinho. Quando Victoria desapareceu, Helena esvaziou-se tão depressa, que Ricky às vezes se interrogava se a mãe alguma vez tinha realmente sido aquela mulher forte que recordava ou se sempre fora aquele ser abatido e amedrontado que se encontrava no banco traseiro a olhar o vazio. Apesar disso, pela primeira vez em muito tempo, depois da chamada da Polícia, via-lhe nos olhos uma mistura de expectativa e de pânico.

 

Ricky sentou-se ao volante. Era estranha a forma como se preenchiam os lugares na família; como ele, de forma instintiva, tinha ocupado o lugar da mãe no carro. Como se houvesse uma força da qual nem sequer tinha consciência.

 

Victoria dizia-lhe sempre que ele era como o touro Ferdinando2. Um bonacheirão, um bocado seca, mas que na hora da verdade era capaz de fazer frente a qualquer coisa. Ricky ameaçava-a sempre na brincadeira quando a irmã dizia que era bonacheirão e seca, porém, no fundo, agradava-lhe aquela descrição. Adorava ser o touro Ferdinando, embora já não tivesse calma suficiente para se sentar a cheirar as flores. Só o poderia fazer quando Victoria regressasse.

 

As lágrimas começaram a correr-lhe, e limpou-as à manga do blusão. Até àquele momento, não se atrevera a pensar que a irmã não ia voltar. Se o tivesse feito, o mundo teria desabado à sua volta.

 

Agora, Victoria regressara. Mas não sabiam o que os esperava no hospital. E Ricky pressentia que era algo que não queriam saber.

 

Helga Persson espreitou pela janela da cozinha. Pouco tempo antes tinha visto Marta a aproximar-se a galope pelo pátio, mas agora estava tudo calmo. Vivia ali há muito tempo e conhecia muito bem as vistas, embora tivessem mudado um pouco ao longo dos anos. O velho celeiro continuava ali, mas tinham derrubado o alpendre onde ordenhava as vacas. No seu lugar erguiam-se agora as cavalariças que Jonas e Marta tinham construído para a escola de equitação.

 

Para Helga, era uma alegria que o filho tivesse decidido instalar-se tão perto. Eram vizinhos. Escassas centenas de metros separavam as duas vivendas e, como ele exercia veterinária em casa, ia vê-la com muita frequência. Cada vez que a visitava alegrava-lhe o dia, e era mesmo disso que ela precisava.

 

– Helga! Heeelgaaaa!

 

Fechou os olhos sem se mexer de onde estava, ao lado do lava-louças. A voz de Einar preencheu cada canto da casa e Helga sentiu que a cercava por todos os lados. Cerrou os punhos. Mas já não lhe restava o mais pequeno vestígio de vontade de fugir. Há muitos anos que Einar lha tirara à pancada. E, agora que já não era autónomo e dependia completamente dela, Helga não conseguia ir-se embora. Isso já nem sequer se punha em questão. Para onde poderia ir?

 

– HEELGAAA!

 

Apenas conservara a força na voz. As doenças, a amputação das duas pernas, consequência da falta de cuidado que teve com a diabetes, tinham-lhe roubado o vigor físico. Mas a voz de Einar era tão exigente como dantes. Continuava a obrigá-la a submeter-se com a mesma eficácia com que os seus punhos o tinham feito em tempos. A lembrança das agressões, a sensação das costelas partidas e das nódoas negras dolorosas eram tão vívidas que bastava ouvir aquela voz para se sentir invadida pelo pavor e pelo medo de não sobreviver à próxima vez.

 

Ergueu-se um pouco, respirou fundo e respondeu, também em voz alta:

 

– Vou já!

 

Subiu as escadas o mais depressa que pôde. Einar não gostava de esperar, nunca gostou, mas Helga não conseguia perceber o motivo de tanta pressa. Einar não tinha mais nada que fazer além de passar o dia sentado a queixar-se de tudo, desde o tempo ao governo.

 

– Há aqui uma fuga! – disse quando Helga chegou lá acima.

 

Helga não disse nada. Arregaçou as mangas e aproximou-se de Einar para tentar perceber se a fuga era grande. Sabia que ele gostava daquilo. Já não a mantinha prisioneira pela violência, mas pela necessidade de cuidados, cuidados que ela deveria ter reservado para os filhos que não pôde ter, os filhos que Einar lhe arrancava do corpo com golpes certeiros. Apenas um sobrevivera e havia alturas em que perguntava a si própria se não teria sido melhor ter perdido também aquele filho no meio de uma torrente de sangue a jorrar-lhe entre as pernas. Por outro lado, não sabia o que teria sido dela se não fosse ele. Jonas era a sua vida, era tudo para Helga.

 

Einar tinha razão, a sonda retal tinha uma fuga. E das grandes. O marido tinha metade da camisa ensopada e manchada.

 

– Porque é que não vieste logo? – perguntou Einar. – Não me estavas a ouvir? Não me parece que tenhas algo mais importante para fazer – acrescentou, cravando nela aqueles olhos aquosos.

 

– Estava na casa de banho. Vim assim que pude – respondeu Helga, começando a desabotoar-lhe a camisa. Puxou-lhe os braços com cuidado, para não o sujar ainda mais.

 

– Tenho frio.

 

– Já te visto uma camisa limpa. Mas antes tenho de lavar-te – disse Helga com toda a paciência de que foi capaz.

 

– Ainda apanho uma pneumonia.

 

– Vou demorar-me o menos possível. Não me parece que dê tempo para te constipares.

 

– Ora essa, agora também és enfermeira? Se calhar até sabes mais do que os médicos. – Helga manteve-se em silêncio. Einar só queria perturbá-la. Aquilo que mais satisfação lhe dava era vê-la chorar, vê-la suplicar-lhe e rogar-lhe que se calasse. Nessa altura invadia-o a paz e um prazer que lhe arrancavam ao olhar um brilho estranho. Mas, hoje, Helga não lhe ia dar essa alegria. Nos últimos tempos fazia por não cair nas suas armadilhas. Além disso, durante todos aqueles anos, de certeza que já tinha chorado quase todas as lágrimas que tinha para chorar.

 

Helga foi buscar água no cântaro de barro que havia na casa de banho do quarto. Já sabia de cor o que tinha de fazer: encher a bacia com água e sabão, molhar o pano, limpar-lhe as partes sujas e vestir-lhe uma camisa lavada. Helga suspeitava que era o próprio Einar quem se encarregava de entornar o conteúdo da sonda. Tinha comentado isso com o médico, que lhe assegurara ser impossível que a sonda vertesse tão frequentemente. Mas estava constantemente a verter. E Helga constantemente a limpá-lo.

 

– A água está demasiado fria. – Einar estremeceu quando o pano lhe roçou a barriga.

 

– Vou pôr mais água quente. – Helga levantou-se, foi até à casa de banho, pôs a bacia debaixo da torneira, abriu a água quente e regressou.

 

– Ai! Está a ferver! Queres esturricar-me, sua bruxa? – Einar gritou tão alto que Helga deu um salto. Mas não respondeu. Pegou na bacia e foi à casa de banho enchê-la de água fria, confirmou que a água com sabão estava apenas um pouco acima da temperatura corporal e regressou ao quarto. Dessa vez, Einar não disse nada quando lhe roçou a pele com o pano.

 

– Quando vem o Jonas? – perguntou Einar enquanto Helga torcia o pano e a água se tingia de um tom castanho-claro.

 

– Não sei. Está a trabalhar em casa dos Andersson. Têm uma vaca que está prestes a parir e o vitelo não está em boa posição.

 

– Bem, diz-lhe para vir ver-me quando chegar – disse Einar, fechando os olhos.

 

– Sim – retorquiu Helga, baixinho, e voltou a torcer o pano.

 

Gösta viu-os no corredor do hospital a aproximarem-se. Quase corriam e teve de lutar contra o impulso de começar igualmente a correr na direção deles. Sabia que tinha escrita no rosto a notícia que iam receber, e assim era. Quando os olhos de Gösta se cruzaram com os de Helena, esta procurou o braço de Markus e deixou-se cair no chão. O eco do grito da mulher ficou a ressoar no corredor e silenciou todos os outros sons.

 

Ricky parecia congelado. Branco como cera, ficara atrás da mãe, enquanto o pai continuava a avançar. Gösta engoliu em seco e foi ao seu encontro. Markus passou por ele como se não o tivesse visto, como se não tivesse compreendido, como se não tivesse visto a mesma mensagem que a mulher lhe vira no rosto. Continuou corredor acima, aparentemente sem rumo.

 

Gösta não o deteve, dirigindo-se antes a Helena para a ajudar a levantar-se lentamente. Depois abraçou-a. Não era algo que fizesse muitas vezes. Em toda a sua existência só tinha abraçado duas pessoas: a mulher e aquela menina que em tempos entrara nas suas vidas quando era pequena e que, agora, por esses caminhos inescrutáveis do destino, regressara novamente à sua existência. Por isso, para Gösta não era nada natural estar assim abraçado a uma mulher que conhecia há muito pouco tempo. No entanto, desde que Victoria desaparecera, Helena telefonava-lhe todos os dias, umas vezes esperançosa, outras resignada, furiosa ou triste, para tentar obter informações sobre a filha. Tudo o que Gösta tinha para lhe oferecer eram mais pontos de interrogação e mais preocupações. E agora extinguira-lhe finalmente toda a esperança. Dar-lhe um abraço e deixá-la chorar no seu ombro era o mínimo que podia fazer.

 

O olhar de Gösta cruzou-se com o de Ricky. Aquele rapaz tinha algo muito especial. Era a espinha dorsal que tinha mantido à tona a família de Victoria nos últimos meses. Mas agora que Ricky estava ali, diante dele, o rosto branco como cera e o olhar vazio, Gösta viu-o como o rapaz que realmente era. E sabia que Ricky perdera para sempre a inocência que só é dada às crianças, a confiança de que, no fim, tudo acaba por resolver-se.

 

– Podemos vê-la? – perguntou Ricky com a voz embargada. Gösta reparou que Helena tinha ficado tensa. Afastou-se dele, limpou as lágrimas e o nariz à manga do casaco e lançou-lhe um olhar suplicante.

 

Gösta olhou fixamente para um ponto distante. Como poderia explicar-lhes que não gostariam de ver Victoria? E porquê.

 

Todo o gabinete estava atulhado de papéis. Apontamentos passados a limpo, post-its, artigos, cópias de fotografias. Parecia um caos absoluto, mas Erica adorava trabalhar assim. Quando trabalhava num novo livro, queria estar rodeada de todas as informações, de todas as ideias que tinha sobre um caso.

 

No entanto, dessa vez, parecia que se estava a afogar. Dispunha de montanhas de material e de dados de fundo, mas apenas de fontes secundárias. A capacidade de escrever um bom livro, a capacidade de relatar um caso de homicídio e de responder a todas as questões levantadas dependia do facto de obter ou não informações em primeira mão. Até agora, sempre o conseguira. Por vezes fora fácil convencer as pessoas implicadas. Algumas até se tinham disponibilizado a falar, talvez para atrair a atenção dos média e desfrutar do seu pequeno momento de fama. Mas, noutras ocasiões, isso levou-lhe algum tempo, teve de as convencer, de lhes explicar porque queria desenterrar outra vez o passado, como queria contar a sua história... No fim acabava sempre por o conseguir. Até àquele momento. O caso de Laila não a estava a levar a lado algum. Em cada visita, tentava que a mulher lhe contasse o que tinha acontecido, mas sem sucesso. Laila gostava de falar, mas não daquele assunto.

 

Com um sentimento de frustração, Erica pôs os pés em cima da mesa e deixou vaguear a mente. Podia telefonar a Anna. A irmã conseguia lembrar-se de boas soluções e tinha pontos de vista inovadores. Claro que já não era a mesma pessoa. Anna tinha sofrido muito nos últimos anos e as desgraças pareciam não ter fim. Era verdade que parte do que acontecera fora responsabilidade da irmã, mas Erica não a podia julgar. Compreendia porque é que aquilo acontecera. A questão era saber se Dan algum dia conseguiria compreendê-lo e perdoar Anna. Erica duvidava, claro. Conhecia Dan desde sempre, até tinham namorado quando eram mais novos, e sabia como o amigo podia ser teimoso. A teimosia e o orgulho que o caracterizavam iam voltar-se contra ele naquele caso. E o resultado era evidente: ficavam todos a perder. Anna, Dan, os filhos e, sim, ela própria também. Queria que a irmã pudesse finalmente ter um pouco de felicidade nesta vida, depois de ter sofrido o inferno com Lucas, o pai dos filhos.

 

Era tão injusto como tinham sido diferentes as suas vidas, pensava Erica. Tinha um casamento sólido e repleto de amor, três filhos saudáveis e uma carreira de escritora que corria cada vez melhor. Por outro lado, Anna sofrera uma série de infortúnios e Erica não fazia a mais pequena ideia de como poderia ajudá-la. Esse fora sempre o seu papel: era a protetora, aquela que animava a irmã, que cuidava dela. Anna era a que irradiava alegria de viver, a rebelde. Mas a vida tinha-a domado e deixara-a reduzida a uma carcaça, a um ser plácido, mas desorientado. Erica tinha saudades da Anna de outros tempos.

 

«Esta noite telefono-lhe», disse para si, e começou a folhear alguns artigos. Reinava um silêncio muito agradável e Erica sentia-se feliz por poder trabalhar ali. Nunca lhe interessou particularmente ter colegas, nem um escritório para onde ir. Adorava estar sozinha.

 

O absurdo era que estava mortinha por que chegasse a hora de ir buscar Maja e os gémeos. Como era possível ter sentimentos tão contraditórios acerca da rotina de ser mãe? Aquela montanha-russa com tantos altos e baixos esgotava-a. Apertar com força o punho dentro do bolso para, um segundo mais tarde, ter vontade de os cobrir de beijos. E sabia que Patrik sentia o mesmo.

 

Ao pensar em Patrik e nos filhos, Erica também pensou, inadvertidamente, na conversa com Laila.

 

Era completamente inconcebível. Como é que uma pessoa podia transpor aquele limite invisível, embora inquestionável, do que era ou não permitido fazer? Não era essa a essência do ser humano? A capacidade de conter os instintos mais primitivos e de fazer o que está certo e o que é socialmente aceite pelo grupo? Seguir as leis e as normas da existência humana através das quais a sociedade funcionava?

 

Erica continuou a folhear os artigos. O que dissera a Laila naquela manhã era verdade. Seria incapaz de fazer mal aos filhos. Mesmo nos piores momentos, quando sofrera de depressão pós-parto depois do nascimento de Maja, no caos que marcou o nascimento dos gémeos, nas noites de vigília ou durante as birras, que às vezes lhe pareciam eternas, ou mesmo quando as crianças repetiam «Não!» de cada vez que respiravam, lhe passou pela cabeça algo semelhante. Mas na pilha de papéis que tinha no colo, nas fotografias que tinha sobre a mesa e nas suas notas havia provas de que esse limite podia ser ultrapassado.

 

Sabia que as pessoas de Fjällbacka chamavam à casa nas fotografias a «Casa dos Horrores». Para dizer a verdade, não era um nome muito original, mas era bastante apropriado. Depois da tragédia, ninguém quisera comprá-la e a casa viera a deteriorar-se ao longo dos anos. Erica estendeu a mão em busca de uma fotografia da casa como era nessa altura. Não havia nenhum indício do que ali tinha acontecido. Era uma casa igual a qualquer outra: branca, com janelas cinzentas, um pouco afastada no topo de uma colina e rodeada por algumas árvores. Erica interrogava-se qual seria o seu aspeto atual e se estaria muito degradada.

 

Depois sentou-se muito direita na cadeira e pousou a fotografia na mesa. Porque é que não fora até lá? Ia sempre aos lugares onde tinham ocorrido os crimes. Sempre o fizera em relação a todos os livros que já escrevera, mas não dessa vez. Alguma coisa a tinha mantido afastada. Nem sequer fora uma decisão consciente; simplesmente não tinha ido àquela casa.

 

Fosse como fosse, no dia seguinte teria de lá ir. Agora estava na hora de ir buscar as pequenas feras. Sentiu no estômago uma mistura de anseio e de cansaço.

 

A vaca estava a ser muito corajosa. Jonas estava encharcado em suor depois de várias horas a tentar posicionar bem o vitelo. O animal resistia, não compreendia que queriam ajudá-lo.

 

– Bella é a nossa melhor vaca – disse Britt Andersson. Britt e Otto, o marido, eram os proprietários da quinta que ficava a poucos quilómetros da propriedade de Jonas e de Marta. Tinham um pequeno negócio, embora florescente, cuja principal fonte de rendimento eram as vacas. Britt era muito empreendedora e completava os lucros da venda de leite à Arla3 com os rendimentos da modesta loja da quinta, que vendia queijo caseiro. Mas, nesse momento, apenas a vaca a preocupava.

 

– Sim, Bella é uma vaca magnífica – disse Otto, que coçava o pescoço, preocupado. Era o quarto vitelo que lhes dava e com os três anteriores tudo correra às mil maravilhas. Mas aquela cria tinha-se atravessado e estava relutante em sair, e Bella estava a ficar exausta.

 

Jonas limpou o suor da testa e preparou-se para nova tentativa de puxar o vitelo com força para que nascesse e o vissem cair sobre a palha, pegajoso e instável. Não devia dar-se por vencido, porque assim morreriam os dois, a vaca e o vitelo. Acariciou a pele suave de Bella para a tranquilizar. O animal respirava com dificuldade e olhava-o com os olhos muito abertos.

 

– Vá lá, minha linda, vamos lá tentar tirar esse vitelo – disse, voltando a colocar as grandes luvas de plástico. Lenta mas firmemente, Jonas voltou a enfiar a mão no estreito canal até tocar no vitelo. Tinha de lhe agarrar bem uma pata e dar um bom puxão para girar o animal, mas com cuidado, para não o magoar.

 

– Já agarrei um casco – disse Jonas. Pelo canto do olho viu que Britt e Otto se aproximavam para ver melhor. – Tem calma, minha linda, tem calma.

 

Jonas falava em voz baixa, suavemente, ao mesmo tempo que começava a puxar. Nada. Puxou com um pouco mais de força, mas não conseguia mover o vitelo.

 

– Que tal está a correr? Já se conseguiu virar? – perguntou Otto. Estava a coçar o couro cabeludo com tanta força que Jonas pensou que ia ficar com uma pelada.

 

– Ainda não – respondeu Jonas, cerrando os dentes. O suor escorria-lhe pelo rosto e um cabelo louro tinha-lhe entrado para um olho, por isso estava constantemente a pestanejar. Mas naquele momento não podia pensar em nada a não ser em puxar o vitelo. A respiração de Bella era cada vez mais superficial e o animal deixou cair a cabeça no leito de palha, como se estivesse prestes a render-se.

 

– Tenho medo de partir algum osso ao vitelo – disse Jonas, puxando o máximo a que se atreveu. Depois puxou um pouco mais e prendeu a respiração, esperando não ouvir o barulho de um osso a partir. Reparou em seguida que o vitelo se soltava da posição que o mantinha preso. Mais uns quantos puxões e ali estava o vitelo no chão, fraco, mas vivo. Britt aproximou-se e começou a esfregá-lo com palha. Com movimentos firmes e ternos foi limpando e massajando o vitelo, até que o animal começou a ganhar ânimo.

 

Bella, no entanto, estava muito quieta, deitada sobre um dos flancos. Não reagiu quando o vitelo nasceu, a vida que tinha carregado no ventre durante mais de nove meses. Jonas contornou-a, sentou-se perto da cabeça da vaca e retirou algumas palhas que estavam perto de um dos olhos do animal.

 

– Já está. Portaste-te muito bem, minha linda.

 

Jonas acariciou o pelo preto macio de Bella e continuou a falar com a vaca tal como fizera durante todo o processo. A princípio, o animal não reagiu, mas depois ergueu a cabeça a custo e observou o vitelo.

 

– Tens uma cria muito bonita. Olha, Bella – disse Jonas sem deixar de a acariciar. Reparou que a pulsação recuperava o ritmo normal. O vitelo ficaria bem, tal como Bella. Levantou-se, afastou por fim aquele cabelo tão irritante que lhe tinha entrado no olho e fez um sinal a Britt e a Otto.

 

– É uma vitela excelente.

 

– Obrigada, Jonas. – Britt aproximou-se do veterinário e deu-lhe um abraço.

 

Um pouco constrangido, Otto estendeu-lhe uma mão enorme.

 

– Obrigado, obrigado, fizeste tudo mesmo muito bem – disse, sacudindo a mão de Jonas para cima e para baixo.

 

– Bem, é o meu trabalho – respondeu Jonas com um amplo sorriso. Era tão gratificante que tudo acabasse por correr bem. Não lhe agradava não conseguir resolver os problemas; nem no trabalho, nem na esfera pessoal.

 

Satisfeito com o resultado, retirou o telemóvel do bolso do casaco.

 

Ficou a olhar para o ecrã durante alguns segundos. Depois começou a correr em direção ao carro.

 

1 The Omen, no original. Filme norte-americano realizado em 1976 por Richard Donner. (N. do T.)

2 Personagem de animação criada pelo escritor norte-americano Munro Leaf e adaptada por Walt Disney. (N. do T.)

3 A Arla Foods é uma cooperativa dinamarquesa fundada em 2000. É a maior produtora de lacticínios da Escandinávia. (N. do T.)

 

FJÄLLBACKA, 1964

OS SONS, OS CHEIROS, AS CORES. TUDO ERA INEBRIANTE E RESPIRAVA-SE A AVENTURA NO AR. LAILA IA DE MÃO DADA COM A IRMÃ. NA VERDADE, JÁ ERAM DEMASIADO VELHAS PARA ISSO, MAS ELA E AGNETA DAVAM AS MÃOS SEMPRE QUE ACONTECIA ALGO FORA DO NORMAL. E UM CIRCO EM FJÄLLBACKA NÃO ENCAIXAVA DE TODO NA NORMALIDADE.

MAL HAVIAM SAÍDO DAQUELA CIDADEZINHA PISCATÓRIA. TINHAM IDO DUAS VEZES A GOTEMBURGO, REGRESSANDO SEMPRE NO PRÓPRIO DIA, E ESSAS FORAM AS VIAGENS MAIS LONGAS QUE HAVIAM FEITO NA VIDA; O CIRCO TRAZIA CONSIGO A PROMESSA DE UM MUNDO DESCONHECIDO.

– QUE LÍNGUA É QUE ELES FALAM? – SUSSURROU AGNETA, EMBORA PUDESSE TER GRITADO QUE NINGUÉM A OUVIRIA NO MEIO DA MULTIDÃO.

– A TIA EDLA DISSE QUE SÃO DA POLÓNIA – SUSSURROU POR SUA VEZ LAILA, APERTANDO A MÃO DA IRMÃ.

– OLHA, UM ELEFANTE! – ENTUSIASMADA, AGNETA APONTOU PARA O ENORME ANIMAL CINZENTO A PASSAR, PACHORRENTO, À FRENTE DE AMBAS, CONDUZIDO POR UM HOMEM NA CASA DOS TRINTA ANOS. FICARAM ALI A OBSERVAR O ELEFANTE, TÃO BONITO, TÃO ADMIRÁVEL E, AO MESMO TEMPO, TÃO DESPROPOSITADO NAQUELE DESCAMPADO DE FJÄLLBACKA ONDE ESTAVA MONTADO O CIRCO.

– VEM, VAMOS VER QUE OUTROS ANIMAIS TÊM. DIZEM QUE TAMBÉM HÁ LEÕES E ZEBRAS. – AGNETA PUXAVA LAILA, QUE ESTAVA OFEGANTE E SENTIA O SUOR A ESCORRER-LHE PELAS COSTAS E A ENSOPAR O VESTIDO ESTAMPADO DE VERÃO.

FORAM CORRENDO POR ENTRE AS AUTOCARAVANAS ESTACIONADAS EM TORNO DA TENDA, QUE JÁ ESTAVA A SER MONTADA. UNS HOMENS FORTES DE T-SHIRT TRABALHAVAM ARDUAMENTE PARA QUE TUDO ESTIVESSE PRONTO NO DIA SEGUINTE, O DIA DO PRIMEIRO ESPETÁCULO DO CIRKUS GIGANTUS. MUITOS HABITANTES DA REGIÃO, INCAPAZES DE ESPERAR, FORAM VER O ESPETÁCULO DA MONTAGEM DA TENDA. E LÁ ESTAVAM ELES, A OLHAR ESPANTADOS PARA TODAS AQUELAS COISAS TÃO DIFERENTES DO QUE ESTAVAM HABITUADOS A VER. COM EXCEÇÃO DOS DOIS OU TRÊS MESES EM QUE OS TURISTAS APARECIAM, E DE TODA A ANIMAÇÃO QUE ISSO IMPLICAVA, A VIDA QUOTIDIANA DE FJÄLLBACKA ERA BASTANTE MONÓTONA. OS DIAS PASSAVAM SEM QUE NADA DE EXTRAORDINÁRIO ACONTECESSE; POR ISSO, A NOTÍCIA DO PRIMEIRO CIRCO A ATUAR NA CIDADE ESPALHOU-SE COMO FOGO.

AGNETA PUXAVA-A NA DIREÇÃO DOS ATRELADOS. DE UM DELES DESPONTAVA UMA CABEÇA LISTRADA.

– OLHA, QUE BONITA!

LAILA ESTAVA PLENAMENTE DE ACORDO. ERA UMA BELA ZEBRA, COM AQUELES OLHOS GRANDES COM LONGAS PESTANAS, E TEVE DE SE CONTER PARA NÃO SE CHEGAR MAIS PERTO DO ANIMAL E ACARICIÁ-LO. SUPÔS QUE ERA PROIBIDO TOCAR NOS ANIMAIS, MAS ERA DIFÍCIL RESISTIR À TENTAÇÃO.

– DON’T TOUCH! – UMA VOZ POR DETRÁS DAS RAPARIGAS SOBRESSALTOU-AS.

LAILA VIROU-SE. NUNCA TINHA VISTO UM HOMEM TÃO ROBUSTO. MAS ALI ESTAVA ELE, À SUA FRENTE, ALTO E MUSCULADO. ENCONTRAVA-SE DE COSTAS PARA O SOL, E LAILA E AGNETA TIVERAM DE FAZER SOMBRA COM A MÃO PARA CONSEGUIREM VER ALGUMA COISA. QUANDO OS SEUS OLHOS SE ENCONTRARAM, FOI COMO SE LAILA TIVESSE SIDO ATINGIDA POR UMA CORRENTE ELÉTRICA. ERA UMA SENSAÇÃO QUE NUNCA TINHA EXPERIMENTADO, NEM POR SOMBRAS. SENTIA-SE DESCONCERTADA E COM TONTURAS, E TINHA A PELE DO CORPO TODO EM BRASA. DISSE A SI PRÓPRIA QUE DEVIA SER DO CALOR.

– NO... WE... NO TOUCH. – LAILA TENTOU ENCONTRAR AS PALAVRAS CERTAS. TINHA ESTUDADO INGLÊS NA ESCOLA E APRENDERA BASTANTE COM OS FILMES AMERICANOS, MAS NUNCA TIVERA NECESSIDADE DE FALAR AQUELE IDIOMA.

– MY NAME IS VLADEK. – O HOMEM OFERECEU-LHE UMA MÃO CALEJADA E, DEPOIS DE HESITAR POR UM MOMENTO, LAILA APERTOU-LHA E VIU COMO A SUA MÃO SE PERDIA NA DELE.

– LAILA. MY NAME IS LAILA. – GOTAS DE SUOR ESCORRIAM-LHE PELAS COSTAS.

VLADEK REPETIU O NOME DELA, MAS NOS SEUS LÁBIOS SOOU ESTRANHO E DIFERENTE. SIM, NOS LÁBIOS DELE SOAVA QUASE EXÓTICO, NÃO PARECIA UM NOME VULGAR E PROSAICO.

– THIS IS... – PROCURAVA FEBRILMENTE NA MEMÓRIA E GANHOU CORAGEM PARA TENTAR – THIS IS MY SISTER.4

APONTOU PARA AGNETA E O HOMEM TAMBÉM A CUMPRIMENTOU. LAILA ESTAVA UM POUCO ENVERGONHADA DO SEU INGLÊS, MAS A CURIOSIDADE VENCEU A TIMIDEZ.

– WHAT... WHAT YOU DO? HERE? IN CIRCUS?

O ROSTO DE VLADEK ILUMINOU-SE.

– COME, I SHOW YOU. – FEZ-LHES SINAL PARA O SEGUIREM E COMEÇOU A ANDAR SEM ESPERAR POR UMA RESPOSTA. AS DUAS IRMÃS SEGUIRAM-NO, MEIO A CORRER; LAILA SENTIU O SANGUE A ACELERAR POR TODO O CORPO. O HOMEM DEIXOU PARA TRÁS AS AUTOCARAVANAS E A TENDA, E DIRIGIU-SE A UM VAGÃO QUE ESTAVA UM POUCO AFASTADO. MAIS DO QUE UM VAGÃO, TRATAVA-SE DE UMA JAULA, COM BARRAS EM VEZ DE PAREDES. NO INTERIOR, ANDAVAM DOIS LEÕES ÀS VOLTAS.

– THIS IS WHAT I DO. THESE ARE MY BABIES, MY LIONS. I AM... I AM A LION TAMER!5

LAILA NÃO CONSEGUIA DESVIAR O OLHAR DOS DOIS ANIMAIS SELVAGENS. ALGO COMEÇOU A MEXER COM ELA, ALGO ASSUSTADOR E MARAVILHOSO AO MESMO TEMPO. SEM PENSAR NO QUE ESTAVA A FAZER, DEU A MÃO A VLADEK.

 

4 Em inglês no original: «Não mexam»; «Não, nós não mexer»; «Chamo-me Vladek»; «Laila. Chamo-me Laila»; «Esta é a minha irmã». (N. do T.)

5 Em inglês no original: «Que... Que faz? Aqui? No circo?» «Venham, eu mostro-vos»; «Isto é o que eu faço. Estes são os meus bebés, os meus leões. Eu sou... Eu sou um domador de leões!» (N. do T.)

 

ERA MUITO CEDO. Na esquadra, as paredes amarelas da cozinha pareciam mais cinzentas por causa da neblina invernal que pairava sobre Tanumshede. Estavam todos em silêncio. Não se podia dizer que tivessem dormido muitas horas e ostentavam o cansaço como uma máscara no rosto. Os médicos haviam lutado como heróis para salvar Victoria, mas não tinham sido bem-sucedidos. Confirmaram o óbito às onze e um quarto da manhã do dia anterior.

 

Martin serviu café a todos e Patrik lançou-lhe um olhar furtivo. Desde a morte de Pia que o colega deixara praticamente de sorrir e todas as suas tentativas de recuperar o Martin de sempre tinham falhado. Era óbvio que, ao morrer, Pia levara com ela uma parte dele. Os médicos acreditaram que lhe restava um ano de vida, no máximo, mas o fim fora muito mais rápido do que se imaginava. Três meses após o diagnóstico, Pia morreu e Martin ficou sozinho com a filha pequena. «Cancro de merda!», pensou Patrik, levantando-se.

 

– Como sabem, Victoria Hallberg morreu por causa dos ferimentos causados pelo acidente de viação. O condutor não é suspeito de qualquer crime.

 

– Não – interveio Martin. – Falei com ele ontem. Um tal David Jansson. Segundo ele, a Victoria apareceu de repente no meio da estrada e o Jansson não teve qualquer hipótese de travar a tempo. Tentou esquivar-se, mas o piso estava muito escorregadio e perdeu o controlo do carro.

 

Patrik assentiu.

 

– Temos uma testemunha, Marta Persson. Fora dar uma volta a cavalo, quando viu uma pessoa a sair do bosque e um carro a atropelá-la. Foi Marta quem chamou a Polícia e a ambulância, e quem identificou Victoria. Ontem estava em estado de choque, por isso devíamos falar com ela hoje. Tratas tu disso, Martin?

 

– Claro, Patrik, fica descansado.

 

– Além disso, temos de avançar o mais rapidamente possível na investigação do desaparecimento da Victoria. Ou seja, temos de encontrar a pessoa ou pessoas que a raptaram e que, como é óbvio, a agrediram.

 

Patrik esfregou o rosto com a mão. A imagem de Victoria morta na maca ficara-lhe gravada na retina. Foi diretamente do hospital para a esquadra e passou algumas horas a rever o material de que dispunham. Ou seja, todas as conversas com a família, com as colegas da escola e com as raparigas que andavam com ela na equitação, assim como as tentativas de localizar todas as pessoas com quem Victoria se dava e de esclarecer o que tinha feito nas últimas horas antes de ir para as cavalariças dos Persson. E ainda informações acerca das outras raparigas desaparecidas durante os últimos dois anos. Como era lógico, não podiam ter a certeza, mas o facto de cinco raparigas, aproximadamente da mesma idade e com a mesma aparência, terem desaparecido de uma zona bem delimitada não podia ser uma coincidência. Por essa razão, no dia anterior, Patrik enviara todas as novas informações aos restantes distritos policiais e pedira aos colegas para fazerem o mesmo se tivessem alguma novidade. Era possível que lhes tivesse escapado alguma coisa.

 

– Continuaremos a colaboração com os distritos policiais envolvidos e, na medida do possível, vamos unir esforços nesta investigação. A Victoria foi a primeira das raparigas a aparecer depois do rapto e pode ser que este acontecimento trágico consiga levar-nos a encontrar as restantes. E a impedir o rapto de outras. Uma pessoa que é capaz de cometer as atrocidades que a Victoria sofreu... Enfim, uma pessoa dessas não pode andar por aí em liberdade.

 

– Sacana! Louco nojento! – murmurou Mellberg. Ernst, o cão, ergueu a cabeça, inquieto. Como sempre, estava a dormir com a cabeça sobre os pés do dono e sentia a mais pequena alteração no seu estado de espírito.

 

– O que nos dizem os ferimentos? – perguntou Martin, inclinando-se para a frente na cadeira. – O que terá motivado o criminoso a fazer uma coisa daquelas?

 

– Isso gostava eu de saber... Tenho estado a pensar se não devíamos contactar alguém que nos traçasse um perfil do agressor. Não temos muito por onde pegar, mas talvez haja algum padrão interessante, alguma ligação que não nos tenha ocorrido.

 

– Perfil do agressor? Então agora quer que um desses psicólogos armados em espertos, que nunca puseram os olhos num criminoso a sério, nos venha dizer como havemos de fazer o nosso trabalho? – Mellberg abanou a cabeça com tal veemência que o cabelo, que costumava estar enrolado no topo da cabeça para cobrir a calva, escorregou e lhe ficou a tapar uma orelha. Com uma agilidade surpreendente, Mellberg voltou a pô-lo no lugar.

 

– Bem, vale a pena tentar – afirmou Patrik. Sabia muito bem que Mellberg era avesso a todas e quaisquer modernices no trabalho da Polícia. E, em teoria, o chefe da esquadra de Tanumshede era Bertil Mellberg, mas todos sabiam que, na prática, quem geria a esquadra era Patrik e que era dele o mérito de solucionar os casos que surgiam no distrito policial que integravam.

 

– Bem, se isso acabar por se revelar um fracasso e os chefes se queixarem de que foi um desperdício de dinheiro, a responsabilidade é sua. Eu lavo daí as minhas mãos. – Mellberg recostou-se na cadeira e cruzou as mãos sobre a barriga.

 

– Vou saber quem poderemos contactar – disse Annika. – E seria boa ideia falar com os outros distritos, não vá dar-se o caso de terem feito algo semelhante e não nos terem comunicado. É um bocado absurdo fazer trabalho duplicado. Seria um desperdício de tempo e de recursos.

 

– Boa ideia. Obrigado, Annika. – Patrik virou-se para o quadro branco, onde estava afixada uma fotografia de Victoria. Ao lado tinham sido anotados os seus dados.

 

Ao fundo do corredor, a poucos metros de distância, ouvia-se uma canção em voga na rádio, e tanto a sua melodia alegre como a sua mensagem contrastavam fortemente com o ambiente sério e sombrio que reinava na cozinha da esquadra. Tinham uma sala de reuniões, mas achavam-na fria e impessoal, por isso quando tinham de se reunir preferiam utilizar a cozinha, muito mais agradável e acolhedora. Além disso, assim tinham o café mais à mão e era óbvio que ainda iam consumir muitos litros até terminarem aquela investigação.

 

Patrik refletiu por um momento. Depois reagiu e começou a distribuir tarefas.

 

– Annika, prepara um dossiê com todo o material que temos sobre o caso da Victoria e com o que nos enviarem os outros distritos. Em seguida envia-lo para a tal pessoa que nos poderá ajudar a desenhar um perfil. E encarrega-te também de manter o dossiê atualizado com tudo o que se for descobrindo.

 

– Claro, já tomei nota – disse Annika, sentada à mesa da cozinha com um bloco e um lápis na mão. Patrik tentara convencê-la a utilizar um computador portátil, mas a secretária recusava-se a fazê-lo. E quando havia alguma coisa que Annika não queria fazer, não havia maneira de a convencer.

 

– Ótimo. Prepara uma conferência de imprensa para as quatro da tarde. Caso contrário, não vão parar de telefonar para cá. – Patrik vislumbrou pelo canto do olho que Mellberg alisava o cabelo com ar satisfeito. Claro que seria impossível mantê-lo longe dos jornalistas.

 

– Gösta, tu vais perguntar ao Pedersen quando estará concluído o relatório da autópsia. Precisamos de dados concretos o mais depressa possível. E, se puderes, fala novamente com a família, para ver se se lembraram de alguma coisa que possa ser importante para a investigação.

 

– Já falámos tantas vezes com eles... Não achas que era melhor deixá-los em paz, pelo menos num dia como este? – Gösta estava com uma expressão resignada. Calhara-lhe em sorte a difícil tarefa de falar com os pais e o irmão de Victoria no hospital, e Patrik apercebeu-se de que o colega estava destroçado.

 

– Claro, mas também hão de querer que continuemos a trabalhar e que encontremos quem fez aquilo à filha. Fala com eles com toda a calma. Não temos outro remédio que não seja falar com várias pessoas com quem já conversámos. Agora que a Victoria está morta, pode ser que não se importem de revelar informações que anteriormente preferiram manter em segredo. E isso inclui a família, os amigos e as pessoas que trabalham nas cavalariças, e que possam ter visto algo no dia em que a Victoria desapareceu... Por exemplo, devíamos falar novamente com a Tyra Hansson, a melhor amiga da Victoria. Podes tratar tu disso, não é, Martin?

 

Martin respondeu com um «hã-hã».

 

Mellberg tossiu um pouco. Faltava atribuir uma missão a Bertil, a mais absurda possível. Algo que o fizesse sentir-se importante, mas que provocasse danos mínimos. Patrik pensou por um segundo. Às vezes, o mais sensato era mantê-lo por perto para o conseguir controlar melhor.

 

– Ontem à tarde falei com o Torbjörn e a investigação dos técnicos forenses não produziu nenhum resultado. Como estava a nevar, tiveram dificuldade em trabalhar e não encontraram nenhuma pista do sítio de onde Victoria poderia ter saído. Já não têm recursos disponíveis para essa busca, por isso pensei que podíamos juntar alguns voluntários para nos ajudarem a cobrir uma área mais ampla. Podem tê-la aprisionado numa antiga quinta abandonada ou numa cabana no bosque. Além disso, a Victoria apareceu não muito longe do sítio onde foi vista pela última vez antes de desaparecer, portanto, pode ser que tenha estado sempre por ali.

 

– Sim, já tinha pensado nessa hipótese – referiu Martin. – E isso não indicia que o criminoso é de Fjällbacka?

 

– Bem, sim, de certa forma... – disse Patrik. – Mas não tem forçosamente de ser assim. Sobretudo se o caso da Victoria estiver relacionado com os outros desaparecimentos. Não encontrámos nenhuma ligação clara entre Fjällbacka e os outros locais.

 

Mellberg tossiu novamente e Patrik virou-se para ele.

 

– Tinha pensado que podia dar-me uma ajuda em relação a isso, Bertil. Vamos ao bosque e, com alguma sorte, damos com o lugar onde mantinham a Victoria presa.

 

– Parece-me bem – disse Mellberg. – Mas não vai ser agradável com este frio horroroso.

 

Patrik não respondeu. De momento, o clima não era a sua principal preocupação.

 

Anna estava a dobrar a roupa lavada sem qualquer vontade de o fazer. Sentia um cansaço indescritível. Estava de baixa desde o acidente e as cicatrizes que tinha no corpo começavam a desaparecer, mas as feridas interiores ainda não tinham sarado. Não se debatia apenas com a dor pelo filho que perdera mas também com uma dor que se autoinfligia.

 

Os remorsos eram como uma dor surda, como náuseas permanentes, e Anna passava noites acordada, revendo o que acontecera, examinando os seus motivos. Mas nem mesmo quando tentava ser autoindulgente conseguia entender o que a levara a ir para a cama com outro homem. Gostava de Dan e, apesar disso, tinha beijado outro homem e deixado que ele lhe tocasse.

 

Seria assim tão fraca a sua autoestima, tão forte a sua necessidade de afirmação a ponto de acreditar que as mãos e a boca de outro homem lhe dariam o que Dan não podia dar-lhe? Se ela própria não compreendia, como poderia Dan compreender? Dan, que era a lealdade e a confiança personificadas. Costumam dizer que não se pode saber tudo sobre outra pessoa, mas Anna sabia que nunca sequer passara pela cabeça de Dan a ideia de a enganar com outra. Não lhe teria ocorrido tocar noutra mulher. Tudo o que Dan desejava era amá-la.

 

Após a raiva das primeiras semanas, as palavras ofensivas foram substituídas por algo muito pior: um silêncio asfixiante e opressivo. Moviam-se evitando-se um ao outro, como dois animais feridos, e Emma, Adrian e as filhas de Dan eram reféns na sua própria casa.

 

O sonho que chegou a albergar de gerir o seu próprio negócio de decoração e de objetos de arte morreu no mesmo instante em que enfrentou o olhar ferido de Dan. Foi a última vez que o companheiro a olhou nos olhos. Agora, Dan não conseguia olhar para ela. Quando não tinha alternativa senão dirigir-lhe a palavra por causa de algo relacionado com os filhos, ou por alguma coisa tão banal como pedir-lhe para passar o sal ao jantar, falava num murmúrio e com os olhos baixos. Anna sentia vontade de gritar, de o sacudir para o levar a olhar para ela, mas não se atrevia e também ela mantinha os olhos baixos, mas não por causa da dor que sentia, antes por vergonha.

 

Claro que as crianças não imaginavam o que tinha acontecido. Não imaginavam, mas sofriam as consequências. Passavam os dias em silêncio, fingindo que nada mudara. Mas há muito tempo que Anna não as ouvia rir.

 

Com o coração prestes a rebentar de remorsos, Anna baixou a cabeça, afundou o rosto na roupa e chorou amargamente.

 

 

Ali, fora ali que tudo tinha acontecido. Erica entrou lentamente na casa, que parecia poder desmoronar-se a qualquer momento. Esquecida por Deus, abandonada e vazia, não havia nada nela que sugerisse ter sido um dia habitada por uma família.

 

Baixou-se para evitar embater numa prancha de madeira que pendia do teto. Ouviu o barulho de vidro sob as solas das botas pesadas que usava. No rés do chão não havia uma única janela inteira. Os sinais evidentes da presença de algum hóspede passageiro eram visíveis no chão e nas paredes. Havia nomes e palavras rabiscados que só faziam sentido para quem os tinha escrito, obscenidades e insultos, muitos com erros ortográficos. Quem se dedicava a esborratar com spray as casas abandonadas mostrava normalmente poucos sinais de literacia. Viam-se latas de cerveja vazias por todo o lado e, junto a um cobertor, com um ar tão repugnante que Erica teve vontade de vomitar, estava um pacote vazio de preservativos. O vento arrastara a neve para o interior da casa e formara montículos aqui e ali.

 

Todo o edifício emanava miséria e solidão. Erica tirou da mala as fotografias que levara dentro de uma pasta para poder imaginar um cenário bastante diferente. As fotografias mostravam uma casa completamente distinta, uma habitação mobilada onde tinham vivido pessoas. Mesmo assim, Erica estremeceu, porque havia igualmente vestígios do que tinha acontecido. Olhou à sua volta com curiosidade. Sim, ainda se distinguia a mancha de sangue nas pranchas do soalho. E as quatro marcas dos pés do sofá que em tempos ali estivera. Erica observou novamente as fotografias e tentou orientar-se. Começou a imaginar a casa: via o sofá, a mesa, a poltrona a um canto, o candeeiro de pé à esquerda, a televisão. Era como se tudo o que tinha estado naquela sala se materializasse diante dos seus olhos.

 

Mas Erica também imaginou o corpo dilacerado de Vladek. Aquele corpo forte e musculoso, meio deitado no sofá. O enorme buraco, como uma boca aberta no pescoço, as punhaladas no peito, os olhos a fitar o teto. E o sangue, que formara uma poça no chão.

 

Nas fotos que a Polícia lhe tirou após o homicídio, Laila tinha um olhar vazio. Apresentava manchas de sangue na parte da frente da camisa e sangue no rosto. Usava o cabelo comprido e solto. Parecia tão jovem... Muito diferente da mulher que agora cumpria uma pena de prisão perpétua.

 

O caso não levantou qualquer dúvida. Havia alguma lógica naquilo, uma lógica que todos tinham aceitado. Apesar disso, Erica sempre teve a sensação de que havia algo errado e, há seis meses, decidira escrever sobre aqueles acontecimentos. Desde criança que ouvia falar daquele caso: o homicídio de Vladek e aquele terrível segredo de família. A história da Casa dos Horrores pertencia à antologia de crónicas da região e, com o passar dos anos, foi-se tornando uma lenda. A casa era um lugar onde as crianças eram postas à prova, era uma casa assombrada com que as pessoas assustavam os amigos, onde podiam mostrar a sua coragem, enfrentar o seu medo, enfrentar o mal que impregnava as paredes.

 

Erica deu meia-volta e afastou-se da sala de estar. Estava na altura de explorar o primeiro andar. A casa estava tão fria que sentia os ossos enregelar, por isso deu alguns pulos para se aquecer antes de avançar para as escadas. Testou cada degrau antes de assentar completamente o pé. Não tinha contado a ninguém que ia ver a casa e não queria enfiar o pé por uma prancha podre e ficar para ali caída com a coluna partida.

 

Os degraus aguentaram, mas Erica caminhou cautelosamente pelo soalho do primeiro andar. As pranchas rangiam de modo inquietante, mas Erica tinha a sensação de que iam aguentar o seu peso e prosseguiu com passos mais decididos enquanto inspecionava o que a rodeava. A casa não era muito grande: havia apenas três quartos no primeiro andar, e um corredor minúsculo. Logo a seguir às escadas ficava o quarto maior, o de Vladek e de Laila. Alguém levara os móveis, talvez tivessem sido roubados, e não tinha deixado mais nada além de umas cortinas rasgadas e sujas. Também ali se viam latas de cerveja e um colchão imundo que indicava que alguém tinha passado ali a noite ou utilizara a casa abandonada para encontros amorosos longe do olhar vigilante dos pais.

 

Semicerrou os olhos e tentou imaginar o quarto inspirando-se nas fotografias. Um tapete cor de laranja no chão, uma cama de casal em pinho coberta por um edredão com capa de flores verdes. Era um quarto típico dos anos 70 e, a julgar pelas fotografias que a Polícia tirara após o homicídio, estava limpo e completamente arrumado. Erica ficara surpreendida da primeira vez que tivera a oportunidade de as ver, porque, pelo que tinha acontecido, era de esperar antes uma casa caótica, suja, descuidada e desarrumada.

 

Erica saiu do quarto de Laila e de Vladek e entrou noutro mais pequeno. Era o quarto de Peter. Folheou as fotografias que tinha na mão até encontrar a que pretendia. Aquele quarto também estava limpo e era bonito, mas a cama estava desfeita. Tinha uma decoração clássica com papel de parede com fundo azul e figuras circenses. Palhaços alegres, elefantes com plumas coloridas, uma lontra a equilibrar uma bola vermelha no focinho... Era um papel muito bonito e Erica compreendeu porque tinham escolhido aquele padrão em particular. Desviou os olhos da fotografia e concentrou-se no quarto. Ainda se viam vestígios do papel, aqui e ali, mas a maior parte tinha caído ou estava pintalgado; da espessa alcatifa nada mais restava do que vestígios residuais de cola no soalho de madeira sujo. A estante, que na fotografia estava cheia de livros e de brinquedos, desaparecera, assim como as duas pequenas cadeiras e a mesinha, ideais para uma criança se sentar a desenhar. Também faltava a cama que ali estivera ao canto, à esquerda da janela.

 

Erica estremeceu. As vidraças das janelas estavam partidas, como no rés do chão, e entrara alguma neve que redemoinhava no chão junto aos seus pés.

 

O outro quarto do primeiro andar, que conscientemente deixara para o fim, era o de Louise. Ficava ao lado do quarto de Peter, e Erica teve de se encher de coragem para olhar para a fotografia. O contraste era muito evidente. Enquanto o quarto de Peter era agradável e acolhedor, o de Louise parecia a cela de uma prisão, tal como de certo modo fora. Erica passou o dedo pelo grande ferrolho que ainda pendia de uns parafusos na porta. Um ferrolho que tinha sido colocado para trancar bem a porta do lado de fora. Para prender uma menina no interior.

 

Erica segurava a fotografia quando cruzou a soleira da porta. Sentiu os pelos da nuca eriçarem-se. Embora soubesse que era imaginação sua, teve a impressão de que reinava naquele quarto uma atmosfera misteriosa. Nem as casas nem as suas divisões possuíam memória, nem sequer a capacidade de preservar o passado. De certeza que era o facto de saber o que ali acontecera que a fazia sentir aquele mal-estar ao entrar no quarto de Louise.

 

De acordo com a fotografia, não havia nada. Apenas um colchão no chão. Nem um brinquedo, nem sequer uma cama como devia ser. Erica aproximou-se da janela. Estava entaipada e, se não soubesse a história, teria pensado que aquele trabalho fora feito depois de a casa ter ficado vazia. Erica olhou para a fotografia. As mesmas tábuas que lá estavam naquele tempo. Uma menina, encerrada e trancada no seu próprio quarto. E o mais trágico de tudo é que aquilo não foi o pior que a Polícia encontrou quando chegou à casa depois de ter sido avisada do homicídio de Vladek. Erica ficou com pele de galinha. Parecia ter sentido uma aragem gelada e não era por os vidros das janelas estarem partidos; o próprio quarto parecia emanar frio.

 

Teve de fazer um esforço para permanecer naquele quarto, não queria deixar-se intimidar por aquele ambiente tão estranho. Mas não pôde reprimir um suspiro de alívio quando saiu para o corredor. Dirigiu-se às escadas e desceu-as com tanto cuidado como as tinha subido. Só lhe faltava investigar uma divisão. Erica avançou até à cozinha, cujos móveis não tinham portas e estavam vazios. Não havia fogão nem frigorífico e os excrementos que se avistavam nos buracos onde antes tinham estado as tomadas para os ligar indicavam que os ratos tinham encontrado passagens para entrar e sair.

 

A mão tremia-lhe quando rodou a maçaneta da porta que conduzia à cave. Ao abri-la foi confrontada com o mesmo frio estranho que sentira no quarto de Louise. Praguejou ao constatar que reinava ali uma escuridão compacta e que se tinha esquecido de levar uma lanterna. Se calhar, a inspeção à cave teria de esperar. Mas foi avançando às apalpadelas e deu com um interruptor dos antigos. Rodou-o e, como que por milagre, a luz ligou-se.

 

Claro que era impossível que a lâmpada continuasse a funcionar desde os anos 70, por isso registou aquele dado: alguém a devia ter mudado.

 

O coração martelava-lhe o peito enquanto descia as escadas. Teve de se baixar para contornar as teias de aranha e tentou ignorar a sensação de comichão em todo o corpo e a impressão de que aranhas imaginárias se lhe tinham colado à roupa.

 

Quando chegou à cave, Erica respirou fundo algumas vezes para se acalmar. Não passava da cave vazia de uma casa abandonada, era apenas isso. E parecia uma cave perfeitamente comum. Havia prateleiras e uma bancada de trabalho que devia ter pertencido a Vladek, mas sem ferramentas. Ao lado via-se um bidão vazio e, a um canto, alguns jornais antigos enrugados. Nada que despertasse a atenção. Exceto um pormenor: a corrente com quase três metros aparafusada à parede.

 

As mãos de Erica tremiam enquanto vasculhava as fotografias. A corrente era a mesma daquela época, apenas um pouco mais enferrujada. Porém, faltavam as algemas. Haviam sido levadas pela Polícia e, no relatório elaborado pelos agentes, leu que tiveram de ser serradas porque não foram encontradas as chaves. Erica agachou-se, tocou na corrente e sopesou-a. Era pesada e sólida, tão robusta que teria igualmente servido para prender uma pessoa muito mais forte do que uma menina de sete anos emaciada e abatida. De que material eram feitas as pessoas?

 

Sentiu as náuseas aflorarem-lhe à garganta. Teria de fazer uma pausa nas visitas a Laila. Não sabia como poderia enfrentá-la, depois de ter estado ali a ver com os próprios olhos as marcas da sua maldade. Uma coisa eram as fotografias, mas ali, com a corrente na mão, apercebeu-se ainda melhor daquilo que a Polícia devia ter encontrado naquele dia, em março de 1975. Sentiu o horror que os agentes deviam ter sentido ao descerem à cave e descobrirem a menina acorrentada à parede. Ouviu um barulho a um canto e levantou-se rapidamente. O coração voltou a disparar. Em seguida, a luz apagou-se e Erica soltou um grito. O pânico dominou-a e começou a respirar com dificuldade, de forma superficial, enquanto, prestes a chorar, tateava as paredes para tentar chegar às escadas. Por todo o lado se ouviam barulhos estranhos e, percebendo que algo lhe tinha roçado o rosto, soltou outro grito. Começou a esbracejar como uma louca até compreender que se tratava de uma teia de aranha. Enojada, começou a avançar para o lado onde julgava estarem as escadas e ficou com falta de ar quando bateu de lado no corrimão. A luz piscou e voltou a brilhar, mas Erica continuava apavorada. Agarrou-se ao corrimão e subiu as escadas a correr. Saltou um dos degraus e magoou-se nas canelas, mas conseguiu chegar à cozinha.

 

Fechou a porta e depois ajoelhou-se no chão, aliviada. Doíam-lhe as pernas e o estômago, mas ignorou a dor e concentrou-se em respirar pausadamente para afastar o pânico. Sentia-se um pouco ridícula ao ver-se naquele estado, mas parecia impossível libertar-se do medo da escuridão que a dominava desde a infância e, enquanto esteve na cave, o pânico trespassou-a de alto a baixo. Por um momento, experienciou parte do que Louise vivera naquela cave. Com a diferença de que pôde sair a correr para a luz e para a liberdade, ao passo que Louise estava acorrentada nas trevas.

 

Impressionada, tomou pela primeira vez consciência da dimensão do cruel destino da menina e, com a cabeça apoiada nos joelhos, começou a chorar. A chorar pela pobre Louise.

 

Martin observava Marta, que estava a preparar café. Era a primeira vez que a via, porém, como todos os habitantes da região, já tinha ouvido falar do veterinário de Fjällbacka e da sua mulher. Tal como lhe tinham dito, era muito bonita, mas era uma espécie de beleza inacessível e transmitia uma certa frieza, acentuada por uma palidez impressionante.

 

– Devia falar com alguém – sugeriu Martin.

 

– Refere-se a um pastor? Ou um psicólogo? – Marta abanou a cabeça. – Não sou eu quem precisa de ajuda. Eu só estou um pouco... abalada.

 

Cravou os olhos no chão, mas logo os voltou a erguer e olhou para Martin.

 

– Não consigo parar de pensar na família da Victoria. Quando finalmente a recuperaram, voltaram a perdê-la. Uma rapariga tão nova e talentosa... – Marta ficou em silêncio.

 

– Sim, é terrível – disse Martin. Estavam na cozinha, e o agente olhou à sua volta. Não poderia dizer-se que fosse desconfortável, mas suspeitava que os habitantes daquela casa não davam muita importância à decoração. Parecia que o que por ali havia fora colocado ao acaso e, embora tudo parecesse limpo, flutuava no ar um leve cheiro a cavalo.

 

– Já sabem quem lhe poderá ter feito uma coisa destas? Será que as outras raparigas correm perigo? – perguntou Marta. Serviu o café e sentou-se à frente de Martin.

 

– Não podemos adiantar nada. – Gostaria de lhe ter dado uma resposta mais animadora e ficou com um nó no estômago ao pensar na preocupação que sentiriam as famílias com filhas adolescentes. Aclarou um pouco a garganta. Era inútil estar obcecado com tais pensamentos. Tinha de se concentrar em fazer o seu trabalho e descobrir o que acontecera a Victoria. Só então poderia ajudar.

 

– Conte-me o que aconteceu ontem – disse, bebendo um gole de café.

 

Marta refletiu por um momento. Depois falou-lhe do passeio a cavalo e de ter visto a rapariga a sair do bosque. A voz embargou-se-lhe um par de vezes, mas Martin não a apressou, deixando-a falar ao seu próprio ritmo. Não podia imaginar quão horrível devia ter sido o espetáculo.

 

– Quando vi que era a Victoria chamei-a várias vezes. Tentei avisá-la de que se aproximava um carro, mas ela não reagiu. Continuou a avançar, parecia um robô.

 

– Não viu mais nenhum carro por lá? Ou mais alguém na floresta?

 

Marta abanou a cabeça.

 

– Não. Tentei rever o que aconteceu, mas não vi mais nada antes ou depois do acidente. Só estávamos lá eu e o condutor. Além disso, foi tudo muito rápido, e eu estava tão concentrada na Victoria...

 

– A Marta tinha um bom relacionamento com a Victoria?

 

– Bem, depende – respondeu Marta, e passou o dedo pela borda do copo. – Tento ter um bom relacionamento com todas as raparigas que vêm aqui montar e a Victoria teve aulas de equitação durante muitos anos. Aqui somos como uma família, embora um pouco disfuncional, às vezes. E a Victoria fazia parte dessa família.

 

Marta desviou o olhar e Martin viu que tinha começado a chorar. Esticou o braço para agarrar um guardanapo de papel que estava em cima da mesa e estendeu-lho. Ela limpou delicadamente os cantos dos olhos.

 

– Lembra-se de ter acontecido algo suspeito perto das cavalariças? Ou de alguém que tenha andado a passear por aqui, talvez a observar as raparigas? Há algum funcionário com quem devamos falar? Sei que já fizemos estas perguntas, mas é importante repeti-las, agora que a Victoria apareceu nesta zona.

 

Marta assentiu.

 

– Compreendo, mas não posso fazer mais nada a não ser repetir o que já disse. Não tivemos problemas desse género e também não temos funcionários. A escola de equitação fica tão isolada que nem notaríamos se alguém começasse a rondar por aqui. Quem fez aquilo deve ter visto a Victoria noutros sítios. Ela era muito bonita...

 

– Sim, isso é verdade – disse Martin. – E parece que também era boa pessoa. Que pensavam as outras raparigas dela?

 

Marta respirou fundo.

 

– Por aqui, toda a gente gostava da Victoria. Não tinha inimigos e, que eu saiba, nunca teve nenhuma discussão com ninguém. Era uma rapariga perfeitamente normal que vivia num ambiente familiar estável. Deve ter tido o azar de se cruzar com um louco.

 

– Sim, acho que tem razão – disse Martin. – Embora o termo «azar» não me pareça suficiente.

 

Martin levantou-se, disposto a concluir a conversa.

 

– Realmente. – Marta não fez qualquer movimento para acompanhar Martin à porta. – O azar não é suficiente para explicar o que aconteceu.

 

Nos primeiros anos, o mais difícil fora o facto de os dias serem tão parecidos uns com os outros. Porém, com o tempo, a rotina tornou-se a tábua de salvação de Laila. A segurança e a certeza de que cada dia seria exatamente como o anterior, mantinha ao largo o medo de continuar a viver. As tentativas de suicídio dos primeiros anos confirmavam isso mesmo: o medo de ver como a vida se prolongava infinitamente diante dela, enquanto o fardo do passado a impedia de sair da escuridão. A rotina tinha-a ajudado a habituar-se. O fardo era permanente, mas as coisas tinham mudado e era demasiado pesado para que o carregasse sozinha.

 

Folheava os jornais da tarde com mãos trémulas. Só havia jornais na sala de convívio e os outros doentes, que tinham de esperar para poder lê-los, pensavam que estava a demorar demasiado. Os jornalistas não pareciam saber muito, embora tentassem extrair o máximo possível do que tinham. Incomodava-a a ânsia de sensacionalismo das notícias reles dos tabloides. Sabia como se sentia uma pessoa que estava do outro lado das manchetes. Por detrás de cada um daqueles artigos havia gente de carne e osso, sofrimento bastante real.

 

– Ainda demoras muito? – Marianne apareceu e colocou-se à frente de Laila.

 

– Não – murmurou sem erguer os olhos.

 

– Demoras uma eternidade a ler os jornais. Acaba lá com isso e dá-mos.

 

– Já vai – disse, e continuou a examinar as páginas para as quais já estava a olhar há algum tempo.

 

Marianne suspirou, dirigiu-se a uma mesa junto a uma janela e sentou-se à espera.

 

Laila não conseguia desviar o olhar da fotografia da esquerda. A menina tinha uma expressão tão feliz e tão inocente, parecia-lhe tão inconsciente do mal que havia no mundo... Mas Laila poderia ter-lhe dito. Poderia ter-lhe dito que, numa sociedade em que os homens vivem com uma venda nos olhos e se recusam a ver o que têm à frente do nariz, o mal pode ser vizinho do bem. Bastava a alguém ver o mal de perto uma única vez para passar a ser incapaz de fechar os olhos daí em diante. Aquela era a sua maldição, a sua responsabilidade.

 

Fechou o jornal lentamente, levantou-se e foi entregá-lo a Marianne.

 

– Quando acabares, quero-o outra vez – disse.

 

– Claro – murmurou Marianne, já absorta nas páginas dos espetáculos.

 

Laila ficou por ali um bocado, a observar a cabeça inclinada de Marianne sobre a crónica do último divórcio de Hollywood. Como era maravilhoso viver sempre com uma venda.

 

Que nojo de tempo. Mellberg não compreendia como é que Rita, a sua companheira chilena, tinha conseguido habituar-se a viver num país com um clima tão horrível. Na verdade, estava a pensar emigrar. Teria valido a pena ir a casa mudar de roupa, mas não pensara que também teria de ir ao bosque. Ser chefe implicava dizer aos outros o que tinham de fazer e o plano de Mellberg fora dirigir o grupo de pessoas que haviam reunido, dizer-lhes que direção deviam tomar e, em seguida, sentar-se no carro aquecido com uma boa garrafa térmica de café.

 

Mas não foi assim que as coisas correram. Porque, claro, Hedström insistira que também deviam ajudar nas buscas. Que absurdo. Que desperdício de chefias, pô-lo a passarinhar por ali, correndo o risco de ver congelar partes vitais do corpo. E o pior de tudo é que decerto ia adoecer. E depois, como é que iriam desembaraçar-se na esquadra? Bastariam umas horas para tudo se desmoronar e considerava um verdadeiro mistério que Hedström não tivesse percebido isso.

 

– Raios! – Os sapatos de pele resvalaram e Mellberg agarrou-se instintivamente a um ramo para não cair. Com aquela manobra, abanou a árvore inteira, e sobre ele estendeu-se um monte de neve, que se lhe enfiou pelo colarinho e pelas costas abaixo como um manto gelado.

 

– Então? – perguntou Patrik. Não parecia ter nem um bocadinho de frio com aquele gorro de pele, umas belas botas e um blusão com uma espessura invejável.

 

Mellberg sacudiu a neve, indignado.

 

– Não seria melhor eu ir para a esquadra e preparar a conferência de imprensa?

 

– Annika encarrega-se disso, além de que só começa às quatro, por isso temos mais do que tempo.

 

– Seja como for, gostaria de salientar que isto é uma perda de tempo. O nevão de ontem apagou as pegadas há horas e nem os cães vão ser capazes de cheirar o que quer que seja com este frio. – O superintendente apontou para um local entre as árvores, onde trabalhavam os dois cães-polícia e o treinador, que Patrik tinha conseguido que lhes enviassem. Os cães tinham sido enviados de imediato para não se confundirem com novas pistas e cheiros.

 

– O que procuramos? – perguntou Mats, uma das pessoas cuja ajuda tinham conseguido através do grupo desportivo. Na verdade, tinham-se reunido voluntários com uma rapidez surpreendente, todos desejosos de ajudar, todos desejosos de colaborar dentro das suas possibilidades.

 

– Alguma coisa que a Victoria tenha deixado. Pegadas, vestígios de sangue, um ramo partido, em suma, qualquer coisa que vos chame a atenção. – Mellberg repetiu palavra por palavra o que Patrik acabara de dizer para esclarecer o grupo antes de darem início às buscas.

 

– Também esperamos encontrar o local onde permaneceu sequestrada – acrescentou Patrik, compondo o gorro de pele para que lhe tapasse as orelhas.

 

Mellberg observava com inveja como devia ser quente. Quanto a ele, as orelhas doíam-lhe, tal era o frio, e o cabelo, por mais bem penteado que estivesse, não era suficiente para lhe aquecer a calva.

 

– No estado em que estava não poderia ir muito longe – murmurou Mellberg a tremer de frio.

 

– Não, claro, se ia a pé, não – disse Patrik, e continuou a avançar lentamente enquanto examinava o chão e tudo o que havia em redor. – Mas é possível que tenha conseguido fugir de um carro, por exemplo. Se o raptor a estivesse a transportar para outro sítio. Ou então soltaram-na aqui de propósito.

 

– Acha mesmo que o raptor a libertou voluntariamente? Porque faria isso? Seria um risco enorme para ele.

 

– Porquê? – Patrik deteve-se. – A Victoria não podia falar, nem ver. De certeza que estava traumatizada. E o mais provável é que o culpado esteja a começar a sentir-se muito seguro, porque passaram dois anos sem que a Polícia tenha uma única pista que ajude a encontrar as raparigas desaparecidas. Quem sabe se não queria troçar de nós trazendo-nos aqui uma das suas vítimas para nos mostrar o que tinha feito. Até sabermos algo em concreto, não podemos supor o que quer que seja. Não podemos supor que a tenham mantido sequestrada nesta zona, mas também não podemos supor o contrário.

 

– Pois, pois, mas não tem de falar comigo como se eu fosse um principiante – disse Mellberg. – Como deve compreender, eu já sei isso tudo. Só estava a fazer as perguntas que sei que as pessoas vão colocar.

 

Patrik não comentou, acabara de baixar novamente a cabeça para se concentrar na inspeção do solo. Mellberg encolheu os ombros. Os colegas novos eram tão suscetíveis... Cruzou os braços e tentou fazer com que os dentes parassem de bater. «Mais meia hora e vou para o carro coordenar as operações», pensou. Algum travão havia de pôr a tanto desperdício de recursos. Esperava que o café da garrafa térmica ainda estivesse quente quando lá chegasse.

 

Martin não invejava Patrik e Mellberg, a trabalhar ao ar livre e no meio da neve. Tinha a sensação de que lhe calhara o primeiro prémio quando fora destacado para falar com Marta e com Tyra. Na verdade, não lhe parecia que a divisão de tarefas tivesse sido a ideal quando calhou a Patrik inspecionar o bosque, mas depois de vários anos a trabalhar com ele, já sabia o porquê daquela decisão. Para o colega era importante aproximar-se das vítimas, estar onde tinham estado, sentir os mesmos cheiros, ouvir os mesmos sons, para ter uma ideia do que acontecera. Esse instinto, essa capacidade sempre fora o seu ponto forte. Bem, e se assim conseguisse manter Mellberg ocupado, claro que era um efeito colateral positivo.

 

Martin esperava que o instinto de Patrik o guiasse bem. Porque o grande dilema era a Victoria ter desaparecido sem deixar rasto. Não faziam a mais pequena ideia de onde a tinham mantido durante os meses em que estivera desaparecida e viria mesmo a calhar se descobrissem alguma coisa como resultado das buscas no bosque. Se nem isso nem a autópsia produzissem nada de concreto, seria difícil encontrar outras linhas de investigação.

 

Enquanto Victoria estivera desaparecida falaram com todas as pessoas com quem pudesse ter contactado. Revistaram o quarto de cima a baixo, analisaram o computador, os contactos de chat, os e-mails, as mensagens do telemóvel, mas tudo sem resultado. Patrik pediu a colaboração de outros distritos policiais e dedicaram muito tempo a tentar encontrar um denominador comum entre Victoria e as outras raparigas desaparecidas. Mas não encontraram nenhuma ligação. As raparigas não pareciam partilhar interesses, não gostavam da mesma música, não tinham comunicado entre si, nem participavam nos mesmos fóruns na Internet nem em nada do género. E nenhum dos familiares, amigos ou conhecidos de Victoria referiu conhecer alguma delas.

 

Martin levantou-se e foi até à cozinha em busca de um café. O mais certo era estar a beber demasiado café ultimamente, mas depois de tantas noites sem dormir precisava da cafeína para conseguir funcionar. Quando Pia morreu receitaram-lhe comprimidos para dormir e ansiolíticos, e estava a tomá-los há algumas semanas, mas os comprimidos envolviam-no num manto húmido de indiferença, o que o assustava. Por isso, no dia do funeral de Pia, deitou-os fora. Agora, mal se lembrava do que era dormir uma noite seguida. De dia, as coisas iam melhorando lentamente. Desde que estivesse ocupado – esforçava-se ao máximo no trabalho, ia buscar Tuva ao infantário, fazia o jantar, limpava a casa, brincava, lia histórias de embalar à filha... – conseguia aguentar-se. Mas à noite era assaltado pela dor e pelos pensamentos. Passava horas a olhar para o teto enquanto as recordações se sucediam e era invadido pelas saudades insuportáveis de uma vida que jamais poderia recuperar.

 

– Como estás? – Annika pôs-lhe a mão no ombro e Martin apercebeu-se de que estava há algum tempo de pé no meio da cozinha com o recipiente da máquina de café na mão.

 

– Bem, tenho andado a dormir melhor – disse, servindo-se de café. – Queres?

 

– Sim, obrigada – respondeu Annika, esticando o braço.

 

Ernst apareceu a arrastar-se desde o gabinete de Mellberg, provavelmente esperando que a pausa na cozinha lhe trouxesse alguma guloseima. Quando Annika e Martin se sentaram, o animal foi deitar-se debaixo da mesa com a cabeça sobre as patas, sem desviar os olhos dos movimentos do agente e da secretária.

 

– Não lhe dês nada – disse Annika. – Está a ficar demasiado gordo. A Rita esforça-se ao máximo para que faça exercício, mas é impossível manter o ritmo necessário para compensar tudo o que come.

 

– Estás a referir-te ao Bertil ou ao Ernst?

 

– Sim, claro que pode aplicar-se a ambos. – Annika esboçou um sorriso, mas depois ficou muito séria. – Bem, mas diz lá como é que tu estás?

 

– Não estou mal. – Martin viu o ceticismo na expressão de Annika. – A sério. Só não durmo bem.

 

– Alguém te ajuda a tomar conta da Tuva? Tens de arranjar tempo para descansar e recuperar.

 

– Os pais da Pia são excelentes e os meus também. Portanto, por aí não há problema, mas... tenho muitas saudades dela. Em relação a isso ninguém me pode ajudar. Fico contente por ter tantas boas recordações, mas ao mesmo tempo gostava de poder arrancá-las do corpo, porque são precisamente essas memórias tão boas que me causam tanta dor. E não aguento mais continuar assim! – Martin abafou um soluço. Não queria desatar a chorar no emprego. Era a sua zona franca e não queria que a dor também a invadisse, porque então não teria onde refugiar-se do sofrimento.

 

Annika olhou-o com compaixão.

 

– Quem me dera ter um monte de palavras sábias para te confortar, mas não posso sequer imaginar como é perder a pessoa que se ama, nem imagino como te sentes, e só de pensar em perder Lennart fico destroçada. A única coisa que posso dizer-te é que vai demorar algum tempo e que estou aqui para o que precisares. Mas isso já tu sabes, não é? – Martin assentiu. – Vá, vê lá se consegues dormir um pouco. Pareces um trapo. Já sei que não queres tomar comprimidos para dormir, mas vai a uma ervanária para ver se têm alguma coisa que possa ajudar-te.

 

– Sim, realmente podia ir a uma ervanária – disse Martin, pensando que valia a pena tentar. Não ia aguentar muito mais se não dormisse umas quantas horas seguidas.

 

Annika levantou-se e encheu as chávenas de café. Esperançoso, Ernst ergueu a cabeça, mas voltou a pousá-la sobre as patas ao constatar que não lhe ia calhar nenhum bocado de bolo.

 

– Que disseram os outros distritos sobre a ideia de elaborar um perfil do assassino? – Martin mudou conscientemente de assunto. Ficava muito grato pelo interesse de Annika, mas esgotava-o falar do sofrimento depois de Pia ter morrido.

 

– Acharam boa ideia. Ainda nenhum dos distritos solicitara um perfil e agradecem quaisquer sugestões que possam desbravar novos caminhos. O que aconteceu chocou-os. Todos fazem a mesma pergunta: será que as outras raparigas tiveram o mesmo destino que Victoria? E, claro, estão preocupados com a reação das famílias quando souberem os pormenores. Esperemos que demorem algum tempo a divulgá-los.

 

– Sim, mas duvido. As pessoas têm uma inclinação mórbida para contar tudo aos jornais. E, tendo em conta todos os funcionários do hospital que viram os ferimentos, acho que, infelizmente, não tarda a ser revelado, se é que ainda não foi.

 

Annika assentiu.

 

– Nesse caso, na conferência de imprensa ficaremos a saber.

 

– Está tudo pronto?

 

– Tudo, a questão é saber se conseguimos manter o Mellberg fora do cenário. Ficaria muito mais descansada.

 

Martin ergueu uma sobrancelha e Annika levantou as mãos para que o colega não dissesse nada.

 

– Já sei, já sei, ninguém consegue fazer isso... Mellberg seria capaz de se levantar do túmulo como Lázaro para participar na conferência de imprensa.

 

– Sim, essa é uma análise correta...

 

Martin pôs a chávena na máquina de lavar louça. Ia a sair da cozinha, mas deteve-se e deu um abraço a Annika.

 

– Obrigado – disse. – E agora vou a casa da Tyra Hansson. Já deve ter voltado da escola.

 

Ernst seguiu-os com uma expressão tristonha. No que lhe dizia respeito, o coffee-break fora uma completa deceção.

 

FJÄLLBACKA, 1967

A VIDA ERA MARAVILHOSA. FANTÁSTICA E COMPLETAMENTE IRREAL, MAS INQUESTIONÁVEL. TUDO MUDOU NAQUELE VERÃO QUENTE. QUANDO O CIRCO PARTIU DE FJÄLLBACKA, VLADEK NÃO PARTIU COM ELE. LAILA E VLADEK TINHAM PASSADO JUNTOS AQUELA NOITE, DEPOIS DO ÚLTIMO ESPETÁCULO E, COMO QUE POR ACORDO TÁCITO, VLADEK FEZ AS MALAS E FOI COM LAILA PARA SUA CASA. DEIXOU TUDO POR ELA. A MÃE E OS IRMÃOS. A SUA VIDA E OS SEUS COSTUMES. O SEU MUNDO.

A PARTIR DAQUELE MOMENTO, FORAM MAIS FELIZES DO QUE LAILA ALGUMA VEZ IMAGINARA SER POSSÍVEL. TODAS AS NOITES DORMIAM ABRAÇADOS NA CAMA DE LAILA, QUE ERA DEMASIADO PEQUENA MAS QUE TINHA ESPAÇO PARA OS DOIS E PARA O SEU AMOR. EM GERAL, TODA A CASA ERA DEMASIADO PEQUENA. NÃO ERA MAIS DO QUE UM ESTÚDIO COM A COZINHA A UM CANTO, PORÉM, CURIOSAMENTE, VLADEK PARECIA SENTIR-SE BEM. INSTALARAM-SE NO ESPAÇO DISPONÍVEL E O AMOR QUE SENTIAM UM PELO OUTRO CRESCIA DIARIAMENTE.

E AGORA TERIAM DE ABRIR ESPAÇO PARA MAIS UM. LAILA LEVOU A MÃO À BARRIGA. QUEM NÃO SOUBESSE AINDA NÃO NOTAVA, MAS LAILA NÃO CONSEGUIA EVITAR PASSAR CONSTANTEMENTE A MÃO PELA BARRIGA. QUASE TINHA DE SE BELISCAR PARA ACREDITAR QUE ERA VERDADE, QUE IAM SER PAIS.

NO PÁTIO DO PRÉDIO, VIU VLADEK CHEGAR, EXATAMENTE À MESMA HORA DE SEMPRE, DEPOIS DO DIA DE TRABALHO. MAS CONTINUAVA A SENTIR UMA ESPÉCIE DE CHOQUE ELÉTRICO AO VÊ-LO. E VLADEK PARECEU REPARAR QUE LAILA ESTAVA A OLHAR PARA ELE, PORQUE ERGUEU OS OLHOS PARA A JANELA. COM UM SORRISO RASGADO TRANSBORDANTE DE AMOR, ACENOU-LHE LÁ DE BAIXO. LAILA RETRIBUIU O ACENO E ACARICIOU NOVAMENTE A BARRIGA.

 

– COMO ESTÁ HOJE O PAI? – Jonas beijou a mãe na face, sentou-se à mesa da cozinha e tentou sorrir.

 

Helga pareceu não ouvir a pergunta.

 

– Que horror o que aconteceu à rapariga, aquela da escola de equitação – disse, pondo à frente do filho um prato de fatias de bolo acabado de fazer. – Deve ser horrível para todos vocês.

 

Jonas trincou a primeira fatia.

 

– Tu mimas-me demasiado, mãe. E queres mesmo que eu engorde, não é?

 

– Vá, come. Eras tão magro quando eras pequeno... Viam-se as costelas.

 

– Eu sei. Contaste-me milhares de vezes como era pequeno quando nasci. Mas agora tenho um metro e noventa e um apetite devorador.

 

– Claro, mas mexes-te tanto que tens mesmo de comer. Todo o dia a correr de um lado para o outro. Isso não te deve fazer bem.

 

– Pois, toda a gente sabe que o exercício é um perigo para a saúde. Tu nunca fizeste exercício, mãe? Nem mesmo quando eras nova? – Jonas estendeu a mão em busca de outra fatia de bolo.

 

– Quando era nova? Filho, dito dessa maneira parece que sou uma velha decrépita – Helga disse isto num tom muito grave, mas não conseguiu conter o riso que lhe aflorava aos lábios. Jonas fazia-a sempre rir.

 

– Não, uma velha decrépita, não. Julgo que a palavra certa é uma relíquia.

 

– Bem, bem – disse Helga, dando-lhe uma palmadinha no ombro. – Se não te portares bem, não te faço mais bolo nem mais comida nenhuma. Vais ter de contentar-te com os cozinhados da Marta.

 

– Valha-me Deus, se fosse assim, eu e a Molly morreríamos à fome. – Jonas serviu-se da última fatia de bolo.

 

– Para as raparigas da escola de equitação deve ser muito difícil pensar naquilo que aconteceu a uma das colegas – repetiu Helga, retirando migalhas inexistentes da bancada.

 

Aquela cozinha estava sempre imaculada. Jonas não conseguia lembrar-se de alguma vez a ter visto suja ou desarrumada e a mãe estava sempre ali a fazer alguma coisa: a limpar, a arrumar, a fazer bolos, a tratar do pai... Jonas olhou em redor. Os pais não gostavam muito de modernizar a decoração e a casa encontrava-se na mesma há anos: o papel de parede, as portas dos armários, o chão coberto de linóleo, os móveis... Estava tudo exatamente como o recordava da infância. As únicas coisas que tinham mudado, embora contra vontade dos pais, eram o frigorífico e o fogão. Mas Jonas gostava que tudo estivesse como sempre tinha estado. Transmitia-lhe estabilidade.

 

– Pois, e não é para menos. Eu e a Marta vamos falar com as raparigas esta tarde – afirmou. – Mas não te preocupes com isso, mãe.

 

– Não, claro que me preocupo. – Helga retirou o prato, onde já só havia algumas migalhas de bolo. – E ontem, como é que correram as coisas com a vaca?

 

– Bem, foi complicado, porque...

 

– JOOONAS! – A voz do pai ribombou vinda do primeiro andar. – Estás cá?

 

A irritação ecoava pelas paredes e Jonas observou a tensão no rosto da mãe.

 

– É melhor ires lá acima – disse Helga, que começou a limpar a mesa com um pano molhado. – Está zangado por não teres vindo ontem.

 

Jonas assentiu. Depois subiu as escadas, sentindo o olhar da mãe cravado nas costas.

 

Erica ainda estava a tremer quando chegou ao infantário. Eram apenas duas da tarde e não costumava ir buscar os filhos antes das quatro, mas depois da visita àquela cave estava com tanta vontade de os ver, que decidiu ir diretamente ter com eles. Precisava de os ver, de os abraçar, de ouvir aquelas vozes estridentes que dominavam toda a sua existência.

 

– Mamã! – Anton aproximava-se dela a correr com os braços estendidos. Estava sujo dos pés à cabeça, despontava-lhe uma orelha do gorro e tinha um ar tão divertido que Erica pensou que o coração lhe ia rebentar. Agachou-se e estendeu os braços para o abraçar. Claro que iria ficar toda suja, mas não queria saber.

 

– Mamã! – Ouviu outra vozita no pátio do infantário e depois apareceu Noel, também a correr, macacão vermelho, em vez de azul, que era a cor de Anton, mas com o gorro torto, tal como o irmão. Eram tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes...

 

Erica sentou Anton no joelho direito e apanhou o outro gémeo em plena corrida, tão sujo como o primeiro, que enterrou o rosto no pescoço da mãe. Noel tinha o narizito gelado e Erica desatou a rir.

 

– Ouve, cubinho de gelo, estás a pensar descongelar o nariz no pescoço da mamã?

 

Beliscou-lhe o narizinho e o filho também desatou a rir. Depois levantou a camisola da mãe e pôs-lhe as mãos enluvadas frias e cheias de areia na barriga: Erica soltou um grito, enquanto os gémeos chilreavam de riso.

 

– Meu Deus, vocês estão num estado lastimável! Vamos ter de vos enfiar na banheira assim que chegarmos a casa. – Pousou-os no chão, levantou-se e baixou a camisola. – Venham, ouriços, vamos buscar a vossa irmã – disse Erica, apontando para a parte do edifício onde estava Maja. Os gémeos adoravam ir buscar Maja com a mãe e brincar um bocado com as crianças mais velhas. E Maja também adorava que os irmãos fossem vê-la. Apesar de serem endiabrados e não o merecessem, adorava-os.

 

Quando chegaram a casa deram início ao projeto de reorganização. Normalmente, Erica detestava aquilo, mas nesse dia não estava minimamente preocupada que o vestíbulo estivesse cheio de areia ou que Noel se tivesse atirado para o chão a chorar desconsoladamente por causa de alguma coisa, embora fosse impossível saber qual era. Nada disso importava minimamente depois de ter visitado a cave da família Kowalski e imaginar o horror que Louise devia ter sentido quando estava acorrentada lá em baixo completamente às escuras.

 

Os seus filhos viviam na luz. Os seus filhos eram a luz. Os gritos de Noel, que normalmente a punham fora de si, hoje não surtiam qualquer efeito; Erica acariciou-lhe a cabeça e o filho parou de chorar, absolutamente espantado.

 

– Venham, vamos enfiar-nos na banheira. Depois descongelamos um monte de bolos de canela da avó e vamos comê-los enquanto vemos televisão e bebemos um chocolate quente. Parece-vos boa ideia? – Erica sorriu para as crianças, que estavam sentadas no chão molhado e cheio de areia. – E hoje não jantamos. Vamos comer todos os restos de gelado que houver no congelador. Além disso, podem ficar acordados até às horas que vos apetecer.

 

Fez-se um silêncio absoluto. Maja olhou para Erica muito séria, aproximou-se dela e pôs-lhe a mão na testa.

 

– Estás doente, mamã?

 

Erica não resistiu e desatou a rir à gargalhada.

 

– Não, meus queridos – disse, abraçando os três. – Não estou doente nem fiquei maluca. É que vos adoro tanto, tanto...

 

Abraçou-os com muita força para os sentir muito perto. Mas, diante de si, Erica via outra menina. Uma menina sozinha no escuro.

 

Ricky guardara o segredo nas profundezas do seu ser. Não parava de pensar naquilo desde que Victoria desaparecera, examinando-o sob todos os pontos de vista, tentando compreender se estaria relacionado com o seu desaparecimento. Julgava que não, mas continuava a ter dúvidas. E se...? Aquelas duas palavras zumbiam-lhe na cabeça, sobretudo à noite, quando estava deitado a olhar para o teto. E se...? A questão era se teria agido mal, se o silêncio não teria sido um erro terrível. Mas era tão fácil deixar que o segredo continuasse enterrado dentro de si para sempre, como Victoria, aquela que agora iam enterrar.

 

– Ricky?

 

A voz de Gösta sobressaltou-o no sofá. Quase se tinha esquecido do polícia e das suas perguntas.

 

– Não te lembras de nada mais que possa ter interesse para a investigação? Agora que julgamos ter a certeza de que mantiveram a Victoria presa algures nesta zona...

 

Gösta falava num tom suave e contristado, e Ricky apercebeu-se de como estava cansado. Tinha acabado por se afeiçoar àquele homem que fora o seu contacto na Polícia durante aqueles meses, e sabia que Gösta também simpatizava com ele. Ricky sempre se dera bem com os mais velhos e desde pequeno que lhe diziam que era velho de espírito. Quem sabe, talvez fosse verdade. Fosse como fosse, sentia-se como se tivesse envelhecido mil anos desde o dia anterior. Toda a alegria e todas as expectativas para a vida que tinha à sua frente se esfumaram com a morte de Victoria.

 

Ricky abanou a cabeça.

 

– Não, já lhe disse tudo o que sei. A Victoria era uma rapariga normal, com amigos normais e passatempos normais. E nós somos uma família normal; bem, mais ou menos normal, pelo menos... – sorriu e olhou para a mãe, mas ela não lhe devolveu o sorriso. O sentido de humor que sempre mantivera a família unida também se tinha esfumado com Victoria.

 

– O vizinho disse-me que pediram voluntários para vasculhar os bosques da zona. Acham que vão encontrar alguma coisa? – Markus olhava para Gösta, esperançado e com o rosto devastado pela fadiga.

 

– Esperemos que sim. As pessoas saíram à rua para ajudar; com um pouco de sorte, pode ser que encontremos uma pista. Em algum sítio há de ter estado presa.

 

– E as outras raparigas de que falam os jornais? – Helena esticou o braço em busca da chávena de café. A mão tremia-lhe e Ricky sentiu uma pontada de dor ao constatar como a mãe tinha emagrecido. Sempre fora pequena e delgada, mas agora estava tão magra que se lhe adivinhava o esqueleto sob a pele.

 

– Continuamos a trabalhar com os outros distritos policiais. Todos têm grande interesse em resolver este caso, por isso ajudamo-nos mutuamente e trocamos informações. Utilizaremos todos os nossos recursos para encontrar quem raptou a Victoria e, provavelmente, também as outras raparigas.

 

– O que eu quis dizer... – Helena parecia hesitar. – Acha que elas também...? – Não foi capaz de concluir a pergunta, mas Gösta compreendeu o que queria dizer.

 

– Não sabemos. Mas, enfim, é bastante provável que... – Gösta também não terminou a frase.

 

Ricky engoliu em seco. Nem se atrevia a pensar no que Victoria teria tido de suportar. Mas as fotografias vinham-lhe à cabeça, quer quisesse, quer não, e provocavam-lhe náuseas. Os belos olhos azuis da irmã, que transmitiam sempre tanta ternura... Era assim que queria recordá-los. Na outra, naquela visão tão assustadora, nem sequer queria pensar.

 

– Esta tarde vamos dar uma conferência de imprensa – disse Gösta depois de alguns momentos de silêncio. – E, infelizmente, os jornalistas também vos vão telefonar. O desaparecimento das raparigas tem sido notícia nos jornais nacionais há muito tempo e isto... Enfim, mais vale estarem preparados.

 

– Já apareceram duas vezes e também já nos ligaram. Deixámos de atender o telefone – explicou Markus.

 

– Não percebo porque é que não nos deixam em paz. – Helena abanou a cabeça e o cabelo curto e escuro moveu-se de um lado para o outro em torno do rosto. – Não consigo perceber...

 

– Não, infelizmente, eles não compreendem – disse Gösta, levantando-se. – Vou voltar para a esquadra. Mas não hesitem em telefonar-me, tenho sempre o telemóvel ligado. E prometo mantê-los informados.

 

Virou-se para Ricky e pôs-lhe a mão no braço.

 

– Toma conta dos teus pais, está bem?

 

– Vou fazer o que estiver ao meu alcance. – Ricky sentiu nos ombros o peso da responsabilidade, mas Gösta tinha razão. Naquele momento era mais forte do que os pais. Se havia alguém capaz de manter aquela família à tona, era ele.

 

 

Molly podia sentir as lágrimas a queimar-lhe as pálpebras. O desapontamento era grande e levantava nuvens de poeira ao pontapear o chão do estábulo.

 

– Merda, que estupidez do caraças!

 

– Ei, tento nessa língua, está bem? – disse Marta num tom de voz tão frio, que Molly se sentiu encolher. Mas a raiva era tanta que não conseguia conter-se.

 

– Mas eu quero! E estou a pensar dizer ao Jonas.

 

– Eu sei que tu queres – Marta cruzou os braços –, mas dadas as circunstâncias não é possível. E o Jonas pensa como eu.

 

– Quais circunstâncias? Eu não tenho culpa nenhuma do que aconteceu à Victoria. Porque tenho de sofrer as consequências?

 

As lágrimas começaram a correr e Molly limpou-as à manga do casaco, desesperada. Olhou para Marta por entre a franja para ver se as lágrimas a tinham amolecido, mas na realidade já sabia a resposta. Marta não vacilou. Observava-a com aquela expressão altiva, que Molly tanto detestava. Às vezes gostava que Marta se zangasse, que lhe gritasse e que praguejasse, revelando assim os seus sentimentos. Mas ela mostrava sempre a mesma tranquilidade. E nunca cedia nem dava ouvidos a ninguém.

 

As lágrimas eram já uma torrente, o nariz pingava-lhe e a manga do casaco ficara pegajosa.

 

– É a primeira competição da temporada! Não percebo porque é que não posso participar só por causa do que aconteceu à Victoria. Não fui eu quem a matou!

 

Zás! A bofetada queimou-lhe a pele sem que Molly pudesse sequer pressenti-la. Incrédula, levou a mão à face. Foi a primeira vez que Marta lhe bateu. Foi a primeira vez que alguém lhe bateu. As lágrimas cessaram imediatamente e Molly olhou para Marta. A mãe voltara a ser a calma personificada com os braços cruzados sobre o colete acolchoado.

 

– Chega! – exclamou. – Para de agir como uma menina mimada e começa a portar-te como uma pessoa normal. – Aquelas palavras doeram-lhe tanto como a bofetada. Nunca lhe tinham chamado menina mimada. Bem, talvez nas costas, mas apenas por inveja.

 

Com a mão na face, Molly manteve os olhos cravados em Marta. Depois deu meia-volta e saiu a toda velocidade das cavalariças. As outras raparigas começaram a cochichar quando a viram atravessar o pátio a chorar, mas Molly não se importava. O mais certo era pensarem que chorava por causa de Victoria, tal como andavam todas a chorar desde o dia anterior.

 

Correu até casa, contornou o edifício e rodou a maçaneta, mas a porta do escritório estava trancada. Não havia luz no interior. Jonas não estava lá. Molly ficou algum tempo ao relento, na neve, a bater com os pés no chão para se aquecer e a perguntar a si própria onde estaria Jonas. Depois desatou a correr.

 

Abriu a porta da casa dos avós.

 

– Avó!

 

– Valha-me Deus! O que aconteceu? – Helga apareceu à entrada a limpar as mãos a um pano de cozinha.

 

– O Jonas está? Tenho de falar com ele.

 

– Calma, para de chorar, quase não percebo o que estás para aí a dizer. É por causa da rapariga que a Marta encontrou ontem?

 

Molly abanou a cabeça. Helga conduziu-a à cozinha e convidou-a sentar-se.

 

– É que... É que... – Tinha a voz embargada e respirou fundo várias vezes. O ambiente da cozinha ajudou-a a recuperar a calma. Na casa da avó era como se o tempo parasse, como se o mundo continuasse a fervilhar lá fora enquanto ali dentro tudo permanecia inalterado.

 

– Preciso de falar com o Jonas. A minha mãe quer proibir-me de participar na competição deste fim de semana. – Molly assentiu com veemência e ficou em silêncio por um momento para que a avó refletisse na situação e compreendesse como aquela decisão era injusta.

 

Helga sentou-se.

 

– Bem, a Marta gosta muito de mandar. Fala com o teu pai, para ver o que diz. É uma competição importante?

 

– Claro que sim! Mas a Marta diz que não parece bem entrar na competição neste momento, depois do que aconteceu à Victoria. Claro que é uma tragédia, mas não compreendo porque tenho de perder uma competição por causa disso. Assim, de certeza que ganha a idiota da Linda Bergvall, e depois ninguém a vai conseguir aturar, apesar de ela saber que, se eu participasse, ganharia! Dá-me uma coisa se não puder participar! – Com um gesto dramático, Molly apoiou a cabeça nos braços, sobre a mesa, e começou a chorar.

 

Helga deu-lhe uma palmadinha no ombro.

 

– Então, então, também não é caso para tanto. Seja como for, os teus pais é que decidem. Apoiam-te sempre e correm o país de lés a lés por tua causa. Se agora acham que deves abster-te de participar... Bem, acho que não podes fazer nada.

 

– Mas o Jonas vai compreender, não vai? – perguntou Molly, olhando para Helga com uma expressão suplicante.

 

– Ouve, eu conheço o teu pai desde que era deste tamanho – disse Helga, assinalando um centímetro entre o polegar e o indicador – e também já conheço a tua mãe há algum tempo. Acredita em mim, não se consegue convencer nenhum dos dois a fazer alguma coisa que não queiram. Por isso, se eu estivesse no teu lugar, parava de me chatear e concentrava-me na próxima competição.

 

Molly limpou os olhos com um guardanapo que Helga lhe deu.

 

Assoou o nariz e levantou-se para atirar o guardanapo para o lixo. O pior de tudo era que a avó tinha razão. Era inútil tentar argumentar com os pais depois de terem tomado uma decisão. Mas, de qualquer maneira, iria tentar. Quem sabe se Jonas não ia ficar do seu lado, apesar de tudo.

 

Patrik demorou uma hora a derreter completamente e Mellberg demoraria ainda mais tempo. Caminhar pelo bosque com dezassete graus abaixo de zero de sapatos de pele e blusão podia ser considerado uma loucura e Mellberg estava agora ao canto da sala de reuniões com os lábios roxos.

 

– Como está, Bertil? Está com frio? – perguntou Patrik.

 

– Caraças! – exclamou Mellberg enquanto dava palmadas nas próprias costas para tentar aquecer-se. – Agora um whisky calhava que nem ginjas, para ver se descongelava por dentro.

 

Patrik estremeceu perante a ideia de ter uma personagem como Bertil Mellberg embriagada durante a conferência de imprensa. Embora a questão fosse saber se a variante sóbria de Mellberg era preferível.

 

– Como tinha planeado organizar a conferência de imprensa? – perguntou.

 

– Bem, a minha ideia é pegar nas rédeas e o Hedström apoiar-me. Os média gostam de ter uma figura central, um líder a quem se dirigir nestas situações. – Mellberg tentou falar com toda a autoridade possível ao mesmo tempo que batia os dentes.

 

– Claro – disse Patrik, emitindo um suspiro interior tão sentido que pensou que Mellberg podia ter ouvido. Era sempre a mesma cantiga. Era tão difícil conseguir que Mellberg fosse útil para uma investigação como apanhar moscas com pauzinhos chineses. Mas quando chegava a hora de ser o centro das atenções ou de ficar com os créditos pelo trabalho feito, era impossível mantê-lo longe do palco.

 

– Vamos lá abrir as portas, que entrem as hienas, importa-se? – Mellberg acenou a Annika, que se levantou e se dirigiu para a porta. Tinha preparado tudo enquanto Patrik e Mellberg estavam no bosque, e entregara ao chefe um resumo dos pontos mais importantes, assim como algumas notas de apoio. Restava-lhes apenas fazer figas e esperar que Mellberg não os deixasse debaixo de fogo.

 

Os jornalistas começaram a entrar e Patrik cumprimentou alguns que reconheceu, tanto dos meios de comunicação locais como de jornais nacionais que contactara em diversas ocasiões. Como era habitual, também descobriu um par de caras novas. Os jornais pareciam ter uma elevada taxa de rotatividade de pessoal.

 

Sentaram-se a sussurrar uns com os outros enquanto os fotógrafos competiam amigavelmente para ficar com os melhores locais da sala. Patrik albergava a esperança de que os lábios de Mellberg parecessem um pouco menos roxos nas fotografias, mas temia que, mesmo assim, pensassem que na verdade devia estar na morgue.

 

– Já chegaram todos? – perguntou Mellberg enquanto ia estremecendo como se tivesse calafrios. Os jornalistas já tinham começado a levantar as mãos, mas o superintendente silenciou-os com um gesto. – Responderei a perguntas daqui a pouco, mas primeiro vou dar a palavra ao Patrik Hedström, que nos vai fazer um resumo do que aconteceu.

 

Patrik olhou para Mellberg, surpreendido. Possivelmente teria acabado por compreender que talvez não tivesse a visão global necessária para enfrentar os média.

 

– Claro, obrigado... – Patrik aclarou a garganta e pôs-se ao lado de Mellberg. Ordenou as ideias durante uns momentos, pensou no que podia revelar e no que devia omitir. Um comentário irrefletido perante os jornalistas podia causar estragos; ao mesmo tempo, os média eram o elo de ligação a um dos principais recursos de qualquer investigação policial: a opinião pública. Tratava-se de fornecer dados adequados e suficientes, capazes de provocar uma onda de choque de ruído das pessoas da rua. Era algo que tinha aprendido ao longo dos anos que passara na Polícia: havia sempre alguém que tinha visto ou ouvido alguma coisa que poderia ser relevante sem que essa pessoa estivesse ciente disso. Pelo contrário, fornecerem demasiadas informações ou algum dado que não podiam revelar poderia dar vantagem ao agressor. Se soubesse de que pistas dispunha a Polícia, podia apagá-las ou simplesmente evitar cometer os mesmos erros da próxima vez. Porque, nesta fase, era o que mais os assustava: que voltasse a acontecer. Os assassinos em série não paravam espontaneamente. Ou, pelo menos, Patrik tinha a desagradável sensação de que aquele não o faria.

 

– Ontem, encontrámos Victoria Hallberg perto do bosque a leste de Fjällbacka. Foi atropelada por um carro. Parece não haver dúvida de que se tratou de um acidente. Victoria foi levada para o hospital de Uddevalla, onde foram feitos todos os possíveis para lhe salvar a vida. Infelizmente, os ferimentos eram tão graves que o hospital confirmou o óbito às onze e quarenta e cinco da manhã. – Patrik fez uma pausa e esticou o braço para alcançar o copo de água que Annika deixara em cima da mesa. – Revistámos a zona onde Victoria apareceu; a propósito, quero aproveitar para agradecer a todos os habitantes de Fjällbacka que se ofereceram para ajudar a Polícia. Além disso, não tenho muito mais a acrescentar. Como é óbvio, estamos a colaborar com os distritos policiais onde houve casos semelhantes, para que os nossos colegas também possam encontrar as outras raparigas e podermos prender o raptor. – Patrik bebeu outro gole de água. – Perguntas?

 

Todos levantaram as mãos ao mesmo tempo e alguns começaram a falar antes de lhes ter sido dada a palavra. As câmaras, que estavam na primeira fila, zumbiram durante toda a intervenção de Patrik, que teve de fazer um esforço para não alisar o cabelo com a mão. Ver a nossa cara impressa a toda a largura da primeira página dos vespertinos causava uma sensação algo estranha.

 

– Kjell? – Patrik apontou para Kjell Ringholm, do Bohusläningen6, o principal jornal da região. Kjell prestara ajuda à Polícia em investigações anteriores e Patrik tinha tendência para lhe dar mais atenção do que a outros jornalistas.

 

– Disse que a rapariga apresentava ferimentos. Que tipo de ferimentos? Eram consequência do acidente ou foram provocados antes do atropelamento?

 

– Sobre isso não posso pronunciar-me – respondeu Patrik. – Só posso dizer que a vítima foi atropelada por um carro e morreu em consequência dos ferimentos.

 

– Parece que foi submetida a alguma espécie de tortura... – prosseguiu Kjell.

 

Patrik engoliu em seco e recordou-se das órbitas vazias de Victoria, assim como da sua boca sem língua. Mas essa era uma informação que devia permanecer secreta. Amaldiçoou interiormente as pessoas que não conseguiam manter a boca fechada. Era realmente necessário espalhar aqueles pormenores?

 

– Para que a investigação se desenrole sem problemas, não podemos fazer comentários sobre esses pormenores nem sobre a extensão dos ferimentos da vítima.

 

Kjell recomeçou a falar, mas Patrik levantou a mão e deu a palavra a Sven Niklasson, jornalista do Expressen.7 Também já colaborara com ele numa investigação e sabia que Niklasson tinha uma mente aguçada, que estava sempre bem informado e que nunca escreveria nada que pudesse prejudicar uma investigação em curso.

 

– Havia indícios de abuso sexual? E encontraram alguma ligação com as outras raparigas desaparecidas?

 

– Ainda não sabemos. A autópsia só será feita amanhã. Quanto às outras raparigas, por enquanto não posso revelar o que possamos saber sobre um possível denominador comum. Mas, como eu disse, estamos a colaborar com os outros distritos policiais e estou convencido de que juntos vamos encontrar o criminoso.

 

– Têm a certeza de que se trata de um criminoso? – o enviado do Aftonbladet8 tomou a palavra sem que lha tivessem concedido. – Não poderão ser vários, até mesmo um bando? Por exemplo, já investigaram se o caso não poderá ter alguma coisa que ver com tráfico de seres humanos?

 

– De momento não podemos limitar-nos a uma linha de investigação, e isso também tem que ver com a possibilidade de haver um ou mais criminosos. Claro que pensámos na questão do tráfico de seres humanos, mas o caso da Victoria contradiz essa teoria.

 

– Porquê? – insistiu o jornalista do Aftonbladet.

 

– Porque os ferimentos que apresentava eram tão graves que não permite pensar que pudesse ter utilidade para ser vendida. – Kjell olhou para Patrik, que cerrou os dentes.

 

Era uma conclusão correta e revelava mais do que Patrik teria querido dizer, mas desde que não confirmasse nenhum pormenor, os jornais não poderiam fazer mais do que especular.

 

– O que vos posso dizer é que estamos a investigar todas as pistas possíveis, plausíveis ou não. Não descartamos nada.

 

Concedeu aos jornalistas mais um quarto de hora, mas a maioria das perguntas eram irrespondíveis, ou porque desconheciam a resposta ou porque esta era sigilosa. Infelizmente, existiam demasiadas da primeira categoria. Quanto mais perguntas lhe lançavam, mais claro se tornava o pouco que a Polícia sabia. Tinham passado quatro meses desde o desaparecimento de Victoria e, no caso dos outros distritos policiais, até mais tempo. Apesar disso, não tinham nada. Motivado por uma frustração repentina, Patrik decidiu terminar a conferência de imprensa.

 

– Bertil, há alguma coisa que queira acrescentar para terminar? – Patrik afastou-se para um lado para que Mellberg tivesse a sensação de ter sido ele a controlar a conferência de imprensa.

 

– Sim, gostaria de aproveitar esta oportunidade para salientar que, independentemente do desenlace, a primeira rapariga que foi raptada apareceu precisamente no nosso distrito, um sinal claro da extraordinária competência desta esquadra. Na verdade, sob a minha liderança, temos solucionado uma série de importantes casos de homicídio e a minha lista de louvores até à data é...

 

Patrik interrompeu Mellberg, pondo-lhe a mão no ombro.

 

– Não posso estar mais de acordo. Muito obrigado, tenho a certeza de que continuaremos em contacto.

 

Mellberg fulminou-o com o olhar.

 

– Não me deixou terminar – murmurou. – Eu queria enfatizar os meus anos na Polícia de Gotemburgo e a minha longa experiência de trabalho policial de alto nível. É importante terem todas as informações quando traçarem o meu perfil nos média.

 

– Claro que sim – disse Patrik, conduzindo Mellberg lentamente mas com firmeza para fora da sala enquanto os jornalistas e os fotógrafos recolhiam os seus pertences. – Mas se não tivéssemos terminado, teriam chegado atrasados ao fecho da edição. E, tendo em conta o magnífico ponto da situação que o Bertil fez, acho que era importante que a notícia da conferência de imprensa saísse nos diários de amanhã, para podermos contar com o impulso dos média de que tanto precisamos.

 

Patrik tinha vergonha dos disparates que acabara de dizer, mas com o chefe pareceu resultar, porque o rosto de Mellberg iluminou-se.

 

– Claro, isso é inteiramente verdade. Muito sábio, Hedström. Às vezes você tem os seus momentos de lucidez.

 

– Obrigado – disse Patrik com voz cansada. Dar a volta a Mellberg exigia-lhe tanta energia quanto a própria investigação. Se não mais.

 

– Porque é que continua a não querer falar sobre o que aconteceu? Já passaram tantos anos... – Ulla, a psicóloga da instituição, olhava-a por cima dos aros vermelhos dos óculos.

 

– Porque é que continua a perguntar se já passaram tantos anos? – retorquiu Laila.

 

Nos primeiros anos sentiu-se pressionada, todos lhe exigiam que contasse o que aconteceu, que se abrisse de par em par e revelasse todos os pormenores acerca daquele dia, dos dias anteriores. Mas já não se importava. Já ninguém esperava que respondesse às perguntas e limitavam-se a jogar um jogo que se baseava no entendimento mútuo. Laila compreendia que Ulla tinha de continuar a perguntar e Ulla sabia que Laila não ia responder. Ulla trabalhava ali há dez anos como psicóloga. Houve outros antes dela, que ficaram mais ou menos tempo, de acordo com as suas ambições. Trabalhar para a saúde mental dos reclusos não envolvia qualquer recompensa digna desse nome, nem económica nem profissional, nem sequer a satisfação de conseguir bons resultados. Para a maioria dos reclusos já não havia cura possível, como todos já tinham percebido. Fosse como fosse, era preciso fazer o trabalho e, de todos os psicólogos, Ulla parecia a mais satisfeita com o papel que ali desempenhava. Por essa razão, Laila sentia-se mais à vontade com Ulla, por mais que soubesse que nunca iriam fazer qualquer progresso.

 

– Parece que as visitas da Erica Falck despertaram o seu interesse – disse Ulla.

 

Laila fez uma careta. Era um novo tema de conversa. Não um dos do costume, daqueles que já conhecia e que conseguia contornar na perfeição. Sentiu que as mãos começavam a tremer-lhe no colo. Não gostava de novas perguntas. Ulla, que estava bem ciente disso, esperava silenciosamente a sua resposta.

 

Laila lutava consigo própria. De repente, tinha de tomar uma decisão. Ficar calada ou responder. Já nenhuma das respostas automáticas que era capaz de dar mesmo em sonhos era válida.

 

– É outra coisa – disse por fim, na esperança de que fosse suficiente. Porém, naquele dia, Ulla parecia completamente em forma. Como um cão que se recusava a largar o pedaço de carne que tinha finalmente conseguido apanhar.

 

– Em que sentido? Está a querer dizer que é uma mudança nesta rotina ou refere-se a algo mais?

 

Laila entrelaçou os dedos para que as mãos não lhe tremessem. Aquela pergunta tinha-a desconcertado. É que não sabia exatamente o que queria alcançar com aqueles encontros com Erica. Poderia ter continuado a dizer que não perante a persistência daquela mulher e aos seus pedidos para ir visitá-la. Poderia ter continuado a viver no seu mundo enquanto os anos iam passando lentamente e a única coisa que mudava era o próprio reflexo no espelho. Mas o que poderia fazer, agora que o mal começava a vir à tona? Agora que tinha compreendido que não só colhia novas vítimas, mas também que o fazia ali mesmo, muito perto de onde se encontrava?

 

– Eu gosto da Erica – disse Laila. – E, claro que sim, quebra um bocado esta pasmaceira.

 

– Eu julgo que é mais do que isso – afirmou Ulla, examinando-a sem levantar o queixo. – A Laila sabe o que ela quer. Quer que lhe conte aquilo de que tentámos falar tantas vezes. E que a Laila não quer contar.

 

– Isso é problema dela. Ninguém a obriga a vir aqui.

 

– É verdade – retorquiu Ulla. – Mas não consigo deixar de me perguntar se, no fundo, não quer contar à Erica e, assim, aliviar o peso que carrega dentro de si. Se a Erica não terá conseguido chegar a si, ao contrário de todos nós, que falhámos apesar das nossas tentativas.

 

Laila não disse nada. Sim, sem dúvida que tinham tentado. Mas não tinha a certeza de poder contar, mesmo que quisesse. Era tão horrível... E por onde ia começar? Pela primeira vez que se tinham encontrado, pela maldade crescente, pelo último dia ou pelo que estava a acontecer naquele momento? Que ponto de partida devia escolher para conseguir que alguém compreendesse algo que era incompreensível até para ela?

 

– Não será que connosco se acomodou a um comportamento? Que está há tanto tempo a esconder o que aconteceu que não consegue deixá-lo sair? – Ulla inclinou a cabeça para um lado. Laila perguntou a si própria se lhes ensinariam aquele gesto na faculdade de psicologia. Todos os terapeutas que a tinham tentado tratar faziam o mesmo.

 

– E que interessa isso? Há tanto tempo...

 

– Pois, eu sei, mas continua aqui. E acho que, de certa forma, está aqui porque assim o decidiu. Não me parece que tenha qualquer desejo de viver uma vida normal fora dos muros desta instituição.

 

Se Ulla soubesse como estava certa... Laila não queria viver lá fora, não fazia a mais pequena ideia de como o conseguiria. Mas essa não era toda a verdade. A verdade é que também não se atreveria. Não se atrevia a viver no mesmo mundo daquela maldade que, no seu tempo, tinha visto tão de perto. Aquele centro era o único lugar onde podia sentir-se segura. Talvez não tivesse sido uma vida muito digna, mas pelo menos estava viva, e aquela era a única forma de vida que conhecia.

 

– Não quero falar mais – disse Laila, e levantou-se.

 

Ulla ficou a olhar para ela. Teve a sensação de que a tinha estado a ver por dentro. Laila esperava que não fosse assim. Havia coisas que esperava que nunca ninguém visse.

 

Normalmente era Dan quem se encarregava de levar as filhas à escola de equitação, mas nesse dia tinha tido complicações na sua escola, por isso foi Anna quem as levou. Anna sentiu uma alegria pueril quando Dan lhe pediu que lhe desse uma ajuda, quando viu que o companheiro estava a pedir-lhe alguma coisa, qualquer coisa. Embora tivesse preferido que não fosse ir à escola de equitação. Detestava profundamente cavalos. Aqueles animais enormes assustavam-na desde a infância, quando era obrigada a montar. Elsy, a mãe, insistira que Erica e Anna tinham de aprender a montar a cavalo, o que implicou dois anos de tortura para ela e para a irmã. Anna não conseguia perceber como é que as outras raparigas ficavam loucas com os cavalos. Não lhe pareciam nada de fiar e o coração acelerava-lhe ao recordar como era agarrar-se a um cavalo empinado. Sem dúvida que os animais sentiam o medo a quilómetros de distância, mas agora isso não importava, porque pensava deixar Emma e Lisen e depois manter a devida distância de segurança.

 

– Tyra! – Emma saiu do carro de um pulo e correu para a rapariga que se aproximava, cruzando o pátio. Lançou-se-lhe nos braços e Tyra ergueu-a no ar.

 

– Meu Deus, como cresceste desde a última vez que nos vimos! Daqui a nada estás mais alta do que eu – disse Tyra com um sorriso. O rosto de Emma iluminou-se de felicidade. De todas as raparigas que frequentavam a escola de equitação, Tyra era a sua preferida. Adorava-a.

 

Anna aproximou-se das raparigas. Lisen tinha ido diretamente para o estábulo mal saíra do carro, pelo que não voltariam a vê-la até ser hora de regressar a casa.

 

– Como estás hoje? – perguntou Anna, dando uma palmadinha no ombro de Tyra.

 

– Horrível – respondeu Tyra. Tinha os olhos vermelhos e inchados, como se não tivesse dormido uma hora que fosse.

 

Um pouco mais longe, na penumbra da tarde, alguém avançava pelo pátio em direção às cavalariças e Anna não tardou a constatar que era Marta Persson.

 

– Olá – disse quando a proprietária da escola se aproximou. – Como têm corrido as coisas por aqui?

 

Anna sempre achara Marta lindíssima, com aquelas feições tão definidas, as maçãs do rosto salientes e a cabeleira escura, mas nesse dia achou-a cansada e com má cara.

 

– Bem, tem havido algum rebuliço – respondeu Marta com voz calma. – Onde está o Dan? Não é de bom grado que vens cá, pois não?

 

– Ele teve de fazer horas extraordinárias na escola. Esta semana estão a fazer autoavaliações.

 

Dan era pescador por vocação e tradição familiar, porém, como era impossível ganhar a vida com a pesca em Fjällbacka, há anos que era também professor na escola de Tanumshede. A pesca tornara-se uma atividade secundária, mas pelo menos fazia o que podia para conservar o barco.

 

– A aula não devia estar a começar? – perguntou Anna, olhando para o relógio. Eram quase cinco.

 

– Hoje vai ser mais curta. Eu e o Jonas achamos que devemos falar com as raparigas acerca do que aconteceu à Victoria. Se quiseres, uma vez que já cá estás, podes ficar. A Emma vai ficar toda contente.

 

Marta começou a andar. Anna e Emma seguiram-na até à sala de reuniões e sentaram-se ao pé das outras raparigas. Lisen já estava instalada e olhou para Anna com uma expressão muito séria.

 

Marta e Jonas sentaram-se lado a lado e esperaram até que os murmúrios se extinguissem por completo.

 

– Certamente já sabem o que aconteceu – disse Marta, e todas assentiram.

 

– A Victoria morreu – disse Tyra em voz baixa. Escorriam-lhe lágrimas pelo rosto e limpou o nariz à manga da camisola.

 

Marta não sabia bem como continuar, mas por fim respirou fundo e ganhou coragem.

 

– Exatamente. A Victoria morreu ontem no hospital. Sabemos que estavam todas preocupadas, que gostavam muito dela e, na verdade, que a espera tenha acabado assim é... horrível.

 

Anna deu-se conta de que Marta procurava o apoio do marido e Jonas indicou com um gesto que tinha percebido.

 

– Sim, é impensável que uma coisa destas tenha acontecido. Proponho que façamos um minuto de silêncio pela Victoria e pela sua família. Neste momento estão a sofrer mais do que ninguém e gostaria que soubessem que pensamos neles. – Jonas calou-se e baixou a cabeça.

 

Todos lhe seguiram o exemplo. Ouvia-se o tiquetaque do relógio e, um minuto mais tarde, Anna ergueu os olhos. As raparigas estavam para ali sentadas com a preocupação e a tristeza estampadas no rosto.

 

Marta retomou a palavra.

 

– Não sabemos mais do que vocês sobre o que aconteceu à Victoria, mas tenho a certeza de que a Polícia voltará a querer falar connosco. Nessa altura dar-nos-ão mais informações e quero que todas estejam disponíveis para responder às suas perguntas.

 

– Mas nós não sabemos nada. Já falamos várias vezes com a Polícia e ninguém sabe nada – disse Tindra, uma rapariga alta e loura com quem Anna tinha falado uma ou outra vez.

 

– Compreendo que sintam isso, mas pode haver alguma coisa de cuja utilidade para a investigação não tenham consciência. Por isso respondam às perguntas da Polícia, sejam elas quais forem. – Jonas olhou para as raparigas, uma a uma.

 

– Está bem – murmuraram em uníssono.

 

– Muito bem, então concordamos em dar o nosso melhor para colaborar – disse Marta. – E agora vamos à aula. Estamos todas muito preocupadas, mas é precisamente por isso que talvez nos faça bem pensar noutra coisa durante algum tempo. A situação é esta, por isso, ao trabalho.

 

Anna foi até às cavalariças de mãos dadas com Emma e Lisen. As raparigas estavam muito tranquilas. Com um nó na garganta, Anna observou como preparavam os cavalos, os conduziam até à pista e os montavam. Já quanto a ela, não se podia dizer que estivesse tão serena. Embora o seu bebé não tivesse vivido mais de uma semana, conhecia por experiência própria o sofrimento e o desespero provocados pela perda de um filho.

 

Foi sentar-se nas bancadas. De repente, ouviu que, atrás de si, alguém estava a tentar conter os soluços. Virou-se e viu Tyra, sentada com Tindra um pouco mais acima.

 

– Que achas que aconteceu? – perguntou Tyra entre soluços.

 

– Ouvi dizer que lhe tinham arrancado os olhos – sussurrou Tindra.

 

– O quê? – exclamou Tyra quase aos gritos. – E como é que sabes? Falei com um polícia e ele não me disse nada disso.

 

– O meu tio era um dos enfermeiros da ambulância que a foi buscar ontem. Disse-me que lhe faltavam os dois olhos.

 

– Meu Deus! – Tyra inclinou-se para a frente, como se estivesse prestes a vomitar.

 

– Será alguém que conhecemos? – perguntou Tindra, incapaz de esconder o nervosismo.

 

– Estás doida? – retorquiu Tyra, e Anna achou que estava na altura de pôr fim àquela conversa.

 

– Pronto, meninas. – Anna foi ter com as duas raparigas e rodeou Tyra com o braço para a confortar. – Não faz sentido andarmos com especulações. Não vês que estás a assustar a Tyra?

 

Tindra levantou-se.

 

– Bem, de qualquer maneira, acho que é o mesmo maluco que matou as outras raparigas.

 

– Nem sequer sabemos se estão mortas... – afirmou Anna.

 

– Claro que estão – disse Tindra sem sombra de dúvida. – E de certeza que também lhes arrancaram os olhos.

 

Anna sentiu um trago amargo subir-lhe à garganta e abraçou Tyra, que tremia, com um pouco mais de força.

 

Patrik entrou no ambiente aquecido do vestíbulo. Estava morto de cansaço. Tinha sido um dia muito longo, mas a fadiga devia-se mais ao peso da investigação. Às vezes gostava de ter um emprego normal, num escritório ou numa fábrica, e não um trabalho onde o destino das pessoas dependia dele. Sentia-se responsável por tanta gente... Em primeiro lugar pelas famílias, que depositavam todas as suas esperanças na Polícia, que precisavam de respostas para, na medida do possível, poder reconciliar-se com o que acontecera. Depois pelas vítimas, que era como se lhe suplicassem que encontrasse quem pusera prematuramente fim às suas vidas. Mas, acima de tudo, Patrik sentia-se responsável pelas raparigas desaparecidas que talvez ainda estivessem vivas, e também pelas que ainda não tinham sido raptadas. Enquanto o raptor continuasse à solta sem ser identificado, podia haver mais vítimas. Raparigas que viviam, que respiravam e riam, sem saber que tinham os dias contados por causa da maldade de um presumível assassino.

 

– Papá! – Um minúsculo projétil humano saiu disparado contra ele e logo depois apareceram mais dois, de modo que caíram todos no chão, uns em cima dos outros. Patrik reparou que a neve no tapete lhe molhava o traseiro, mas não se importou. Ter os filhos tão perto curava tudo. Por um momento, tudo era perfeito, mas não tardavam a começar:

 

– Ai! – guinchou Anton. – O Noel deu-me um beliscão!

 

– É mentira! – berrou Noel. E, numa tentativa de mostrar que não o tinha feito antes, deu um beliscão ao irmão. Anton começou a uivar e a esbracejar como um louco.

 

– Ouçam... – Patrik separou-os e tentou manter-se sério. Maja foi postar-se ao lado do pai e fez o mesmo.

 

– Não se dão beliscões! – ordenou muito séria e a ameaçar com o dedo. – Se lutarem vão daim out. – Patrik conteve o riso. Desde muito pequena que Maja percebera mal aquela história do time out9 e não havia maneira de a pôr a dizer a expressão como devia ser.

 

– Obrigado, minha querida, eu trato disto – afirmou Patrik, levantando-se com um gémeo em cada braço.

 

– Mamã, os gémeos estão a brigar! – Maja saiu a correr em busca de Erica, que estava na cozinha, e Patrik seguiu-a com os filhos.

 

– Não me digas... – afirmou Erica com os olhos muito abertos. – Estão a brigar? Não posso acreditar. – Sorriu e beijou Patrik na face. – O jantar está pronto, por isso instala esses dois vândalos para ver se ficam mais bem-humorados com umas panquecas.

 

O truque funcionou e, depois de plantar os filhos já jantados à frente da série infantil Bolibompa, Erica e Patrik puderam sentar-se calmamente a conversar na cozinha.

 

– Como estão a correr as coisas? – perguntou Erica, bebendo um gole de chá.

 

– Estamos a começar. – Patrik esticou o braço em busca do açúcar e pôs cinco colheres no chá. Naquelas ocasiões, não era capaz de pensar em dietas. Erica vigiava-o como um falcão desde os problemas cardíacos que ele tivera quando os gémeos nasceram, mas daquela vez deixou passar. Patrik fechou os olhos e saboreou o primeiro gole doce e quente.

 

– Hoje, contámos com a ajuda de metade da população de Fjällbacka para vasculhar o bosque, mas não encontrámos nada. Depois, da parte da tarde, tivemos a conferência de imprensa. Não sei se já viste os jornais online.

 

Erica assentiu. Hesitou por um instante, mas depois levantou-se e retirou do congelador os últimos bolos de canela que Kristina lhes levara, pô-los num prato e enfiou-os no micro-ondas. Poucos minutos mais tarde, um delicioso aroma a manteiga e canela invadiu a cozinha.

 

– Não há o risco de as provas serem destruídas se metade de Fjällbacka andar a calcorrear o bosque?

 

– Sim, claro, mas não temos noção de onde a Victoria veio nem onde esteve, e esta manhã não restava uma única pegada, a neve tinha-as apagado. Por isso, pensei que valia a pena arriscar.

 

– E a conferência de imprensa, como correu? – Erica tirou o prato do micro-ondas e pousou-o na mesa.

 

– Não temos muito para dizer, por isso, o que aconteceu foi os jornalistas a fazer perguntas e nós sem sabermos o que responder. – Patrik deitou a mão a um bolo, mas praguejou e deixou-o logo cair no prato.

 

– Olha, é melhor deixá-los arrefecer.

 

– Muito obrigado, que bom conselho. – Patrik soprou para os dedos.

 

– Porque é que não podiam responder-lhes? Para não dificultarem a investigação?

 

– Olha, antes tivesse sido por isso, mas a verdade é que, até agora, não sabemos nada de nada. Quando a Victoria desapareceu foi como se se tivesse esfumado. Nem um único vestígio, ninguém viu nada, ninguém ouviu nada, não havia nenhuma ligação com as outras raparigas desaparecidas... E de repente aparece como se tivesse vindo do nada.

 

Mantiveram-se em silêncio por uns instantes; Patrik tocou novamente no bolo e constatou que já arrefecera.

 

– Ouvi uns rumores sobre uns ferimentos – disse cautelosamente Erica.

 

Patrik hesitava... Na verdade, não devia falar dos ferimentos com ninguém estranho à investigação, mas era óbvio que o assunto já se tinha espalhado e, além disso, precisava de desabafar com alguém. Erica não era apenas a sua mulher, era também a sua melhor amiga. Além disso, era a mais perspicaz dos dois.

 

– Sim, é verdade. Bem, não sei o que ouviste. – Patrik ganhou algum tempo enquanto dava uma dentada num bolo, mas sentiu logo uma pequena pontada no estômago e nem por sombras o bolo lhe soube tão bem como esperara.

 

– Que lhe tinham arrancado os olhos.

 

– Sim, realmente... não tinha olhos. Mas não sabemos como o fizeram. O Pedersen vai autopsiá-la de manhã cedo. – Patrik voltou a hesitar. – E tinham-lhe cortado a língua.

 

– Meu Deus! – exclamou Erica. Também parecia ter perdido o apetite de repente e deixou no prato o que restava do bolo.

 

– Já tinham muito tempo?

 

– Como assim?

 

– Eram ferimentos recentes ou já tinham cicatrizado?

 

– Boa pergunta. Bem, não sei. Espero que o Pedersen nos dê os pormenores amanhã.

 

– Não haverá religião metida nisso? Olho por olho, dente por dente. Ou pior, alguma manifestação odiosa de um misógino que não queria que ela olhasse para ele nem que abrisse a boca, ou algo do género.

 

Erica gesticulava enquanto falava e, como era costume, Patrik ficou impressionado com a sagacidade da mulher. Não tinha avançado nem metade nas suas próprias especulações sobre o motivo do crime.

 

– E as orelhas? – prosseguiu Erica.

 

– Que têm as orelhas? – Patrik inclinou-se, apoiando-se na mesa, e ficou com as mãos cheias de migalhas.

 

– Bem... Estava a pensar no seguinte. Imagina que quem fez isso, quem a privou da visão e da fala, também a privou da audição. Se assim for, deixou-a numa bolha, incapaz de comunicar. Imagina o poder que isso não daria ao criminoso.

 

Patrik ficou a olhar para a mulher, perplexo. Tentava imaginar o que Erica acabara de descrever e o simples pensamento provocou-lhe calafrios. Que destino mais assustador. Nesse caso, terá sido uma bênção Victoria não ter sobrevivido, embora parecesse cruel pensar assim.

 

– Mamã, eles estão outra vez a brigar! – Maja apareceu à porta da cozinha, resignada. Patrik olhou para o relógio na parede.

 

– Bem, está na hora de irem dormir. – Patrik levantou-se. – Jogamos pedra, papel ou tesoura?

 

Erica abanou a cabeça, aproximou-se e beijou-o na face.

 

– Vai tu deitar a Maja que esta noite eu encarrego-me dos gémeos.

 

– Obrigado – disse Patrik, dando a mão à filha. Subiram as escadas até ao primeiro andar enquanto Maja tagarelava sobre os acontecimentos do dia. Mas Patrik não a ouvia. Estava a pensar no que teria acontecido a uma rapariga encerrada numa bolha.

 

Jonas bateu com a porta e Marta não demorou muito a aparecer à entrada da cozinha. Encostou-se à ombreira com os braços cruzados. Jonas sabia que Marta esperava há muito por aquela conversa e vê-la tão calma ainda o deixou mais irritado.

 

– Estive a falar com a Molly. Que raio! Não decidimos estas coisas em conjunto?

 

– Pois, isso pensava eu. Mas às vezes parece que não sabes o que é preciso fazer.

 

Jonas conteve-se e respirou fundo. Marta sabia que só assuntos relacionados com Molly o faziam perder as estribeiras.

 

Ele baixou a voz.

 

– A Molly queria tanto participar naquela competição... É a primeira da temporada.

 

Marta virou-lhe as costas e entrou na cozinha.

 

– Estou a fazer o jantar. Se queres discutir é melhor vires para aqui.

 

Jonas pendurou o casaco, descalçou as botas e praguejou quando molhou as meias ao pisar a neve que trazia agarrada às solas dos sapatos. O facto de Marta se ter posto a cozinhar não augurava nada de bom, tal como confirmava o cheiro vindo da cozinha.

 

– Desculpa ter-te falado daquela maneira. – Jonas estava por detrás dela e pôs-lhe as mãos nos ombros. Marta estava a mexer o conteúdo de um tacho e Jonas espreitou para ver o que era. Não se percebia bem o que a mulher estava a cozinhar, mas o que quer que fosse não era nada apetecível.

 

– Salsichas strogonoff – respondeu Marta à pergunta que pairava no ar.

 

– Podes explicar-me porquê? – perguntou suavemente Jonas enquanto lhe massajava os ombros. Conhecia-a demasiado bem; sabia que não adiantava gritar ou discutir. Por isso tentou outra tática. Prometera a Molly que, pelo menos, ia tentar. Acabara de falar com ela. Molly estava inconsolável e chorou tanto que lhe encharcou a camisa.

 

– Não iria parecer bem entrarmos numa competição nesta altura. A Molly tem de aprender que nem tudo gira à volta dela.

 

– Pois eu acho que ninguém iria achar mal... – protestou Jonas.

 

Marta virou-se e olhou-o nos olhos.

 

Sempre o atraíra que Marta fosse mais pequena do que ele. Fazia-o sentir que era ele o forte, o responsável por proteger. Embora, no fundo, soubesse que não era assim. Marta era mais forte do que ele, sempre fora.

 

– Mas, Jonas, será que não percebes? Sabes como as pessoas falam. É óbvio que não podemos deixar a Molly competir depois do que aconteceu ontem. A escola de equitação não está bem de finanças e o nosso principal recurso é a nossa reputação. Não podemos arriscar perdê-la. A Molly pode queixar-se à vontade. E devias ter ouvido como falou comigo. É inaceitável. És demasiado brando com ela.

 

Era verdade. Mesmo a contragosto, Jonas tinha de o admitir. Mas não era toda a verdade e Marta sabia-o. Jonas estreitou-a mais nos braços. Sentiu o corpo dela, a atração que havia entre os dois, uma atração que sempre existira e sempre existiria. Nada era mais forte, nem mesmo o amor que sentia por Molly.

 

– Vou falar com ela – disse com a boca encostada ao cabelo de Marta. Inalou o perfume que já lhe era tão familiar, embora continuasse a ser tão exótico. Sentiu a reação de Marta, que também sentiu a de Jonas. Levou-lhe a mão à virilha e começou a acariciá-lo. Jonas gemeu e beijou-a.

 

As salsichas estavam a queimar-se. Nenhum dos dois quis saber.

 

6 Diário regional de tendência liberal fundado em 1878 e sediado em Uddevalla. (N. do T.)

7 Tabloide vespertino de tendência independente e liberal fundado em 1944. (N. do T.)

8 Tabloide vespertino concorrente direto do Expressen fundado em 1830 e que se autoproclama «independente e social-democrata». (N. do T.)

9 Em inglês no original: «Desconto de tempo». Interrupção de um jogo a pedido de uma equipa utilizado em vários desportos, como o basquetebol ou o hóquei no gelo. (N. do T.)

 

UDDEVALLA, 1967

AS COISAS TINHAM CORRIDO TÃO BEM QUE LAILA NEM CONSEGUIA ACREDITAR. VLADEK NÃO ERA SÓ UM BOM DOMADOR DE LEÕES; TAMBÉM TINHA UM TALENTO ÚTIL PARA A VIDA QUOTIDIANA. TINHA JEITO PARA CONSERTAR COISAS. EM BREVE, TODA A FJÄLLBACKA SABIA E AS PESSOAS IAM LEVAR-LHE TUDO, DESDE UMA MÁQUINA DE LAVAR LOUÇA DANIFICADA A UM CARRO AVARIADO.

EM ABONO DA VERDADE, BOA PARTE DOS TRABALHOS ERAM-LHE DADOS MERAMENTE PELA CURIOSIDADE QUE AS PESSOAS SENTIAM. HAVIA MUITOS QUE QUERIAM VER COM OS SEUS PRÓPRIOS OLHOS ALGO TÃO EXTRAORDINÁRIO COMO UM ARTISTA DE CIRCO A SÉRIO. PORÉM, DEPOIS DE SATISFEITA A CURIOSIDADE, FICAVA O RESPEITO PELAS SUAS HABILIDADES E, ASSIM QUE SE ADAPTARAM À SUA PRESENÇA, ERA COMO SE SEMPRE TIVESSE VIVIDO NA PEQUENA CIDADE.

VLADEK GANHOU CONFIANÇA EM SI PRÓPRIO E, NO DIA EM QUE VIU O ANÚNCIO DO TRESPASSE DE UMA CARPINTARIA EM UDDEVALLA, PARECEU-LHES LÓGICO APROVEITAREM PARA SE MUDAREM, EMBORA LAILA TIVESSE MUITA PENA DE NÃO VIVER PERTO DE AGNETA E DA MÃE. MAS VLADEK PODERIA FINALMENTE REALIZAR O SONHO DE ABRIR O SEU PRÓPRIO NEGÓCIO.

ALÉM DISSO, EM UDDEVALLA ENCONTRARAM A CASA IDEAL. APAIXONARAM-SE POR ELA À PRIMEIRA VISTA. NA VERDADE, ERA UMA CASA BASTANTE SIMPLES E ESTAVA TUDO MUITO DEGRADADO, MAS RECUPERARAM-NA E DECORARAM-NA SEM NECESSIDADE DE INVESTIR MUITO. TORNARA-SE UM PARAÍSO.

A VIDA ERA MARAVILHOSA E LAILA E VLADEK CONTAVAM OS DIAS QUE FALTAVAM PARA TER O FILHO NOS BRAÇOS. MUITO EM BREVE SERIAM UMA FAMÍLIA COMPLETA. LAILA, VLADEK E O FILHO.

 

MELLBERG ACORDOU por causa de um pequeno ser que lhe saltava em cima da barriga. Além disso, era a única pessoa que podia dar-se ao luxo de o acordar. Ou de saltar sobre ele.

 

– Acorda, avô! Vá, avô! – gritava Leo, saltando em cima da enorme barriga de Mellberg. O superintendente reagiu como era habitual e começou a fazer cócegas ao menino.

 

– Mas que grande confusão que para aí vai! – protestou Rita da cozinha. Fazia-o sempre, embora Mellberg soubesse que, na verdade, a companheira gostava de os ouvir a brincar de manhã.

 

– Chiu! – disse Mellberg com os olhos muito abertos. Leo imitou-o, levando o dedo gorducho aos lábios. – Está uma bruxa malvada na cozinha. Come crianças e acho que também comeu as mamãs delas. Mas há uma maneira de a vencer. Sabes qual é?

 

Embora Leo soubesse perfeitamente, abanou a cabeça com um ar muito sério.

 

– Temos de nos aproximar muito devagar e fazer-lhe cócegas até morrer a rir! O problema é que as bruxas ouvem muito bem, por isso, para ela não nos ouvir, não podemos fazer o mais pequeno barulhinho, senão... Senão... estamos perdidos! – Mellberg passou o dedo pelo pescoço e Leo fez o mesmo. Depois saíram ambos do quarto e entraram na cozinha, onde Rita esperava o ataque.

 

– Ao ataqueeee! – uivou Mellberg enquanto ele e Leo se lançavam sobre Rita para lhe fazer cócegas onde calhasse.

 

– Ai, ai – gritava Rita entre risos. – Vocês são um castigo divino! – Tanto Ernst como Señorita, deitados debaixo da mesa, saíram a abanar as caudas e começaram a ladrar.

 

– Meu Deus, que barulheira! – disse Paula. – É um milagre que ainda não vos tenham posto na rua.

 

Mellberg manteve-se em silêncio, tal como Rita e Leo. Nem sequer tinham ouvido a porta a abrir-se.

 

– Olá, Leo. Dormiste bem? – perguntou Paula. – Lembrei-me de vir tomar o pequeno-almoço convosco antes de o levar ao infantário.

 

– Johanna também vem? – perguntou Rita.

 

– Não, já foi trabalhar.

 

Paula avançou lentamente e sentou-se à mesa. Carregava Lisa nos braços e, para variar, a bebé estava a dormir pacificamente. Leo aproximou-se da mãe a correr, deu-lhe um abraço e começou a examinar a irmã. Desde que Lisa nasceu, Leo ficava muitos dias a dormir em casa da avó e do avô Bertil, não só para não ter de ouvir a choradeira da recém-nascida, que tinha cólicas, mas também porque, aconchegado e abraçado a Mellberg, dormia como um anjinho. Desde o início que eram inseparáveis, uma vez que Mellberg ajudara Leo a nascer. E agora que tinha uma irmã e que as suas mães andavam muito ocupadas, ficava às mil maravilhas com o avô, que muito oportunamente morava no mesmo prédio, embora no andar de cima.

 

– Há café? – perguntou Paula.

 

Rita não tardou a servir-lhe uma grande chávena com um pouco de leite e deu um beijo a cada uma na cabeça.

 

– Estás com muito má cara, isto não pode continuar. Porque é que o médico não lhe dá alguma coisa?

 

– Não há nada que lhe possam dar, isto passa por si. Pelo menos espero que sim. – Paula bebeu um grande gole de café.

 

– Pois, também eu. Dormiste alguma coisa de jeito?

 

– Nem por isso. Agora é a minha vez de tomar conta dela. A Johanna não pode ir trabalhar sem ter pregado olho – disse com um suspiro, dirigindo-se depois a Mellberg. – Como correram as coisas ontem?

 

Mellberg tinha Leo sentado no joelho e estava muito ocupado a barrar fatias de pão doce com compota. Quando Paula viu o que o filho ia comer ao pequeno-almoço abriu a boca para reclamar, mas fechou-a imediatamente.

 

– Bem, não sei se isso é muito saudável – interveio Rita, que reparara que Paula não tinha forças para travar aquela batalha.

 

– O pão doce não faz mal nenhum – disse Mellberg, dando uma grande dentada como sinal de rebeldia. – Eu fui criado a pão doce. E a compota também não tem problema. São só bagas e frutos. E as bagas têm vitaminas. Vitaminas e oxidantes, o que é perfeito para o crescimento de uma criança.

 

– Antioxidantes – contrapôs Paula.

 

Mas Mellberg já não a ouvia. Que disparate. Era só o que faltava, estarem a ensinar-lhe regras sobre alimentação.

 

– Tudo bem, mas diga-me como correram as coisas ontem – repetiu Paula ao compreender que tinha perdido a batalha.

 

– Ouro sobre azul. Dei uma conferência de imprensa com autoridade e rigor. Por isso é melhor comprares os jornais de hoje. – Mellberg esticou o braço em busca de outra fatia. As três primeiras eram apenas para aquecer.

 

– Sim, sim, de certeza que foi simplesmente fantástico, isso para mim já era um dado adquirido.

 

Mellberg olhou para Paula com suspeição, para ver se conseguia detetar algum pingo de ironia, mas não viu nada na sua expressão, que era absolutamente neutra.

 

– Mas, além disso, conseguiram descobrir alguma coisa? Há alguma pista? Já sabem de onde vinha a rapariga ou onde a tinham presa?

 

– Não, nada de nada.

 

Lisa começou a contorcer-se nos braços de Paula que, de repente, parecia simultaneamente cansada e frustrada. Mellberg sabia que para ela era insuportável não poder participar na investigação. Dir-se-ia que não lhe agradava nada estar de licença de maternidade e as primeiras semanas também não haviam sido um mar de rosas de felicidade maternal. Pôs-lhe a mão na perna e sentiu, através do pijama de flanela, como tinha emagrecido. Há semanas que não despia aquele pijama...

 

– Prometo que vou manter-te informada. Mas acontece que, de momento, não sabemos quase nada... – Mellberg foi interrompido por um grito de Lisa. Era extraordinário como é que um corpo tão minúsculo conseguia emitir um som tão penetrante.

 

– Obrigada. – Paula levantou-se. Como uma sonâmbula, começou a andar pela cozinha, trauteando uma canção ao ouvido da filha para que Lisa acalmasse.

 

– Pobre criatura – disse Mellberg, servindo-se de mais uma fatia de pão. – Olha que ter constantemente essas dores... Eu tive sorte, nasci com uma barriga à prova de bomba.

 

Patrik estava diante do quadro branco da cozinha da esquadra. Ao lado, na parede, estava pendurado um mapa da Suécia e, marcados com pioneses, os locais onde as raparigas tinham desaparecido. De repente, lembrou-se de um caso com alguns anos em que também tinham utilizado um mapa com muitos pioneses. Dessa vez conseguiram resolver o caso. Esperava que isso voltasse a acontecer.

 

À frente da mesa estava o material relevante para a investigação que Annika tinha conseguido juntar em colaboração com os outros distritos policiais. Havia quatro maços, um para cada rapariga.

 

– Não faz qualquer sentido encarar a morte da Victoria como um caso isolado, temos de estar atualizados em relação à investigação dos outros desaparecimentos.

 

Gösta e Martin assentiram. Mellberg já tinha chegado à esquadra, mas saíra logo a seguir para ir passear Ernst, o que normalmente significava que ia empanturrar-se na pastelaria do bairro e ficaria ausente pelo menos durante uma hora. Não era por acaso que Patrik tinha escolhido precisamente aquela hora para a reunião.

 

– Soubeste alguma coisa do Pedersen? – perguntou Gösta.

 

– Não, mas disse que me ligava assim que terminasse a autópsia – respondeu Patrik, pegando no primeiro processo. – Já analisámos isto antes, mas vamos dar uma vista de olhos aos dados das outras raparigas por ordem cronológica. Pode ser que isso nos inspire, quem sabe.

 

Patrik folheou os documentos e virou-se para começar a escrever no quadro.

 

– Sandra Andersson. Catorze anos. Estava prestes a fazer quinze quando desapareceu há dois anos. Vivia em Strömsholm com a mãe, o pai e a irmã mais nova. Os pais têm uma loja de roupa. Uma família sem problemas, ao que parece. Além disso, segundo todos os depoimentos, Sandra era uma rapariga exemplar, que tinha boas notas e queria seguir medicina.

 

Patrik mostrou-lhes uma fotografia. Sandra tinha cabelo castanho-claro, era bonita, sem ser linda, e tinha um olhar sério e inteligente.

 

– Gostos pessoais? – perguntou Martin. Bebeu um gole de café, mas fez uma careta, enojado, e pousou a chávena em cima da mesa.

 

– Nenhum em particular. Parecia estar cem por cento concentrada nos estudos.

 

– E não aconteceu nada de suspeito nos dias anteriores ao desaparecimento? – perguntou Gösta. – Chamadas anónimas? Alguém a rondar os arbustos do jardim? Uma carta?

 

– Cartas? – exclamou Patrik. – Na idade da Sandra seriam mais e-mails ou SMS. Nessas idades acho que nem sequer sabem o que é uma carta ou um postal.

 

Gösta resmungou.

 

– Eu sei, como deves compreender, também não sou assim tão velho. Mas quem disse que o raptor está a par das novas tecnologias? Quem fez tudo isto pode pertencer à geração do correio lento. Não tinhas pensado nisso, pois não? – Gösta traçou a perna com ar triunfante.

 

Relutantemente, Patrik apercebeu-se de que o colega tinha razão.

 

– Bem, não há nenhuma informação em relação a isso – afirmou. – E os colegas de Strömsholm foram tão meticulosos como nós. Conversaram com os amigos, com os colegas, revistaram o quarto da rapariga a pente fino, inspecionaram o computador, investigaram os contactos dela... Mas não encontraram nada de anormal.

 

– Bem, isso já me parece um pouco estranho, uma adolescente sem nenhum segredo – murmurou Gösta. – Parece-me quase patológico, se queres saber a minha opinião.

 

– Pois a mim parece-me mais um sonho – disse Patrik, que pensava com horror no que o esperava a ele e a Erica quando Maja chegasse à adolescência. Tinha visto tantas coisas no trabalho que só de pensar nisso ficava com um nó no estômago.

 

– E pronto? Não há mais nada? – Martin olhava com preocupação para os poucos tópicos escritos no quadro. – Onde estava essa rapariga quando desapareceu?

 

– A caminho da casa de uma amiga. Ao verem que não voltava, os pais chamaram a Polícia.

 

Patrik não precisava de olhar para os documentos. Lera-os várias vezes. Pousou o processo de Sandra e pegou no seguinte.

 

– Jennifer Backlin. Quinze anos. Desapareceu em Falsterbo há ano e meio. Tal como Sandra, provinha de uma família normal. Pessoas da classe alta de Falsterbo, mais ou menos. O pai tem uma empresa de investimentos, a mãe é dona de casa. E tem uma irmã. Na secundária tinha notas normais, mas era uma promessa do desporto. Estava inscrita na ginástica e queria seguir educação física – afirmou Patrik, segurando a fotografia de uma rapariga morena com um grande sorriso e olhos azuis.

 

– Algum namorado? E Sandra também tinha um, de certeza – disse Gösta.

 

– Jennifer namorava um rapaz, mas ele foi completamente descartado da investigação. Sandra, não. – Patrik bebeu um pouco de água do copo que tinha em cima da mesa.

 

– E a mesma história: ninguém viu nada, ninguém ouviu nada. Nenhum conflito no seio familiar nem no círculo de amigos, nenhuma indicação sobre alguém suspeito, antes ou depois do desaparecimento, nada na Internet...

 

Patrik tomou algumas notas no quadro que se assemelhavam de forma inquietante às de Sandra. Sobretudo, em relação à ausência de pistas e de dados interessantes. Era estranho. As pessoas viam e ouviam coisas continuamente, mas aquelas raparigas pareciam ter sido engolidas pela terra.

 

– Kim Nilsson. Um pouco mais velha do que as outras, dezasseis anos. Desapareceu há um ano de Västerås. Os pais têm um restaurante requintado e Kim ajudava-os de vez em quando, tal como a irmã. Não tinha namorado. Boas notas, nenhum interesse particular, além da escola, que parecia levar muito a sério, tal como Sandra. De acordo com os pais, Kim sonhava estudar economia e fundar a sua própria empresa, como eles.

 

Outra fotografia de uma rapariga morena.

 

– Importas-te de fazer uma pausa, é que tenho de ir esvaziar a bexiga – disse Gösta. As articulações do velho agente rangeram quando se levantou e Patrik deu-se conta do pouco tempo que faltava para o colega se reformar. Pensou com surpresa que ia ter saudades dele no dia em que se fosse embora da esquadra. Durante anos, tinha-se irritado sempre que o colega seguia a lei do menor esforço e fazia apenas o essencial. No entanto, também tinha visto outras facetas, momentos em que Gösta mostrava como podia ser um bom polícia. Além disso, sob aquela fachada áspera, Gösta tinha um coração de ouro.

 

Patrik abanou a cabeça e olhou para Martin.

 

– Okay. Enquanto esperamos pelo Gösta, podes contar-nos se conseguiste sacar alguma coisa da conversa com a Marta.

 

– Bem, não, nada de nada – Martin deixou escapar um suspiro. – Marta não viu nenhum carro nem ninguém na orla do bosque até a Victoria aparecer. E também não viu ninguém depois. Ela e o condutor que a atropelou esperaram pela ambulância ao lado da Victoria. Também não tinha nenhuma novidade sobre o desaparecimento em si, nem nenhum episódio na escola de equitação do qual se tivesse recordado desde a conversa anterior.

 

– E a Tyra?

 

– O mesmo de antes. No entanto, fiquei com a sensação de que havia algo que a Tyra não queria contar, como se tivesse uma suspeita que lhe custava revelar.

 

– Muito bem – disse Patrik, olhando com a testa franzida para as notas que tinha gatafunhado. – Esperemos que em breve ganhe coragem para contar. Talvez possamos pressioná-la um pouco mais, não?

 

– Já cá estou outra vez! – anunciou Gösta, voltando a sentar-se no lugar. – Esta maldita próstata obriga-me constantemente a sair disparado para a casa de banho.

 

Patrik ergueu as mãos e disse:

 

– Okay, obrigado, não precisamos de mais pormenores.

 

– Já acabámos com a Kim? – perguntou Martin.

 

– Sim, estamos como nos dois casos anteriores. Nenhuma impressão digital, nenhum suspeito, nada. Mas, com a quarta rapariga, as coisas são um pouco diferentes. É o único caso em que uma testemunha viu um suspeito.

 

– Minna Wahlberg – disse Martin.

 

Patrik assentiu, escreveu o nome e mostrou uma fotografia de uma rapariga com olhos azuis e cabelo castanho atado num rabo-de-cavalo propositadamente despenteado.

 

– Sim, Minna Wahlberg. Catorze anos, de Gotemburgo. Desapareceu há pouco mais de sete meses. Tem um ambiente familiar diferente do das outras raparigas. Mãe solteira, muitas denúncias de discussões em casa quando a Minna era pequena: os namorados da mãe eram os elementos desviantes. Desde cedo que a Minna começou a aparecer nos registos da Segurança Social; furtos, haxixe... Ou seja, infelizmente, a clássica história de uma rapariga que se perde na vida. Elevado absentismo escolar.

 

– Irmãos? – perguntou Gösta.

 

– Não, Minna morava sozinha com a mãe.

 

– Não anotaste como a Jennifer e a Kim desapareceram – salientou Gösta, e Patrik virou-se para o quadro e constatou que o colega tinha razão.

 

– A Jennifer também desapareceu quando regressava a casa depois do treino de ginástica. A Kim desapareceu perto de casa. Ia encontrar-se com uma amiga, mas nunca chegou a aparecer. Em ambos os casos, a Polícia recebeu muito rapidamente a comunicação do desaparecimento.

 

– Ao contrário do que aconteceu com a Minna, certo? – perguntou Martin.

 

– Exatamente. Quando a mãe telefonou a avisar a Polícia, há três dias que a Minna não aparecia na escola nem em casa. Aparentemente, a mãe não tinha grande controlo sobre a filha e a Minna entrava e saía mais ou menos quando lhe apetecia. Ficava a dormir em casa de amigas e de alguns rapazes... Por isso, não sabemos exatamente em que dia desapareceu.

 

– E a testemunha? – Martin bebeu um gole de café. Patrik sorriu ao ver a expressão do colega quando ele provou o café, que ficara amargo depois de tantas horas a sobreaquecer no recipiente da máquina.

 

– Olha, Martin, é melhor fazeres mais café – disse Gösta. – Eu tomo um e de certeza que o Patrik também.

 

– Porque é que não o fazes tu? – retorquiu Martin.

 

– Bem, então é melhor não. Além disso, faz mal beber tanto café.

 

– Acho que nunca conheci ninguém tão preguiçoso como tu – disse Martin. – Deve ser da idade.

 

– Então, então?! – Gösta podia brincar e queixar-se da idade, mas não gostava nada que outra pessoa se saísse com piadas sobre o assunto.

 

Patrik perguntou a si próprio como é que alguém de fora encararia aqueles desvarios com os quais interrompiam assuntos tão sérios. Mas precisavam daquilo. De vez em quando trabalhavam tanto, que precisavam de um momento de descontração, de brincar e de rir um pouco. Para conseguirem resistir a todos os momentos de dor, morte e desespero.

 

– Bem, que tal continuarmos? Onde estávamos?

 

– A testemunha – lembrou Martin.

 

– Ah, pois. Trata-se realmente do único caso em que houve uma testemunha, uma senhora de oitenta anos. Mas os dados não são nada claros. A mulher tinha dificuldade em lembrar-se ao certo do dia, mas quase de certeza que foi no primeiro dia em que a Minna não apareceu em casa. Parece que a rapariga entrou para um carro branco não muito grande em Hisingen, à porta de um supermercado ICA.

 

– E a mulher não reconheceu o modelo? – perguntou Gösta.

 

– Claro que não. A Polícia de Gotemburgo tentou saber mais pormenores do carro, mas sem resultado. Sem outra descrição para além de «um carro branco velho» é quase impossível encontrá-lo.

 

– E a testemunha não viu quem estava dentro do carro? – perguntou Martin, embora já soubesse a resposta.

 

– Não, dizia que podia haver um jovem sentado ao volante, mas não tinha a certeza.

 

– Bem, isto é incrível! – afirmou Gösta. – Como é possível que tenham desaparecido cinco adolescentes assim, sem mais nem menos? Alguém deve ter visto alguma coisa.

 

– Pelo menos, ninguém de que tenhamos conhecimento – disse Patrik. – E reparem que não foi por falta de divulgação nos média. Depois das resmas e resmas de artigos que foram escritos sobre o desaparecimento das raparigas, se alguém tivesse visto ou ouvido alguma coisa, certamente tinha contactado a Polícia.

 

– Bem, ou é uma pessoa demasiado inteligente ou tão irracional que não deixa nenhum rasto, claro – pensou Martin em voz alta.

 

Patrik abanou a cabeça.

 

– Julgo que há um padrão. Não posso dizer porquê, mas sinto-o, e quando soubermos qual é... – Fez um gesto de resignação. – Enfim, como está a questão do perfil psicológico? Já encontrámos alguém que possa fazê-lo?

 

– Parece que não é assim tão fácil... – respondeu Martin. – Não há assim tantos especialistas nessa área e os que há estão muito ocupados. Mas a Annika acaba de me dizer que encontrou um, um tal Gerhard Struwer. É criminologista e professor da Universidade de Gotemburgo, onde pode receber-nos esta tarde. A Annika já enviou todas as informações que temos. Na verdade, é estranho que a Polícia de Gotemburgo ainda não tenha falado com ele.

 

– Claro, porque certamente somos os únicos suficientemente parvos para acreditar nessas coisas. Seria quase como uma rifa de feira – sussurrou Gösta que, naquele assunto, partilhava a opinião de Mellberg.

 

Patrik ignorou o comentário.

 

– Talvez não consiga traçar-nos um perfil, mas pelo menos dar-nos alguma orientação. E, já que vamos a Gotemburgo, talvez devêssemos aproveitar a oportunidade para falar com a mãe da Minna, não achas? Se quem conduzia o carro era o criminoso, é possível que tivesse um relacionamento pessoal com a Mina; ou com a mãe. Isto porque parece que a Minna entrou no carro de livre vontade.

 

– A Polícia de Gotemburgo já deve ter interrogado a mãe, não? – perguntou Martin.

 

– Sim, claro, mas gostava de falar com ela pessoalmente para ver se conseguimos sacar-lhe mais alguma coisa em relação a...

 

O som estridente do telemóvel interrompeu Patrik. Sacou o aparelho do bolso, olhou para o ecrã e depois para os colegas.

 

– É o Pedersen.

 

Einar ergueu-se na cama, queixando-se até ficar sentado. Tinha a cadeira de rodas mesmo ao pé, mas contentou-se em sacudir um pouco a almofada que tinha por detrás das costas e continuar sentado onde estava. De qualquer forma, não tinha para onde ir. Aquele quarto era o seu mundo, mas não fazia mal, porque conseguia viver das recordações.

 

Ouviu Helga a fazer barulho no rés do chão e foi invadido por uma repulsa tal que sentiu um gosto metálico na boca. Era horrível depender de alguém tão patético como Helga, que o equilíbrio de poder se tivesse alterado de tal modo que agora era ela quem dominava, aquela que podia controlar-lhe a vida, e não o contrário.

 

Helga era uma pessoa especial. Tinha uma alegria de viver, um brilho nos olhos que Einar fora apagando aos poucos com prazer e há muito desaparecera. Todavia, quando o corpo o traiu, quando deu por si encerrado naquela prisão que era o próprio corpo, algo mudou. Helga continuava a ser uma mulher destruída, mas ultimamente vira-lhe uma centelha de desafio nos olhos. Era algo muito ténue, mas o suficiente para o irritar.

 

Olhou de relance para a fotografia do casamento que Helga tinha pendurado na parede por cima da cómoda. Era um retrato a preto e branco em que Helga sorria, radiante de felicidade, sem saber o que viria a ser a vida com o homem de fraque que se via ao seu lado. Naquele tempo era um homem bonito. Alto, louro, de ombros largos e olhos azuis, olhar firme e sereno. Helga também era loura, embora atualmente tivesse o cabelo grisalho. Dantes tinha o cabelo comprido e na fotografia usava-o apanhado e ornado com uma grinalda de murta e um véu. Helga também era bonita e Einar tinha reparado nisso, mas começou a achá-la mais bonita depois, quando já a tinha moldado a seu gosto. Considerava um vaso rachado mais bonito do que um intacto e as fissuras tinham-se aberto sem muito esforço da sua parte.

 

Estendeu a mão em busca do controlo remoto. Incomodava-o aquela enorme barriga e sentiu um ódio terrível pelo seu corpo. Tornara-se algo que não se assemelhava minimamente ao que tinha sido. Mas, se fechasse os olhos, voltava a ser o Einar da sua juventude. Tudo era tão vívido como dantes: a pele macia das mulheres, o toque do cabelo liso e comprido, a respiração ofegante junto ao ouvido, aqueles ruídos que o excitavam e inflamavam. As memórias libertavam-no da prisão que era aquele quarto, cujo papel de parede desbotara e onde as cortinas eram as mesmas há décadas. As quatro paredes que cercavam aquele corpo inútil.

 

Às vezes, Jonas ajudava-o a sair dali. Sentava-o na cadeira de rodas e levava-o para baixo pela rampa das escadas. Jonas era forte, como Einar tinha sido. Mas os breves passeios não eram nenhum consolo. Era como se, quando estava lá fora, as recordações se evaporassem e desaparecessem, como se o sol, ao bater-lhe na cara, lhe roubasse a memória. Portanto, preferia ficar ali dentro. Ali, recebia o apoio necessário para manter aquelas memórias vivas.

 

Havia uma luz mortiça no escritório, embora fosse de manhã, e Erica estava sentada a olhar o vazio, sem fazer nada. Ainda a invadiam as memórias do dia anterior: a cave escura, o quarto com aquele ferrolho. Também não conseguia parar de pensar no que Patrik lhe contara acerca de Victoria. Estava consciente do trabalho árduo que o marido e os colegas tinham tido na altura para tentar encontrar a rapariga desaparecida, e agora não sabia o que sentir perante o desenlace. Sentia uma pontada no coração só de pensar no sentimento de perda que a morte de Victoria implicara para os familiares e amigos. E se nunca a tivessem encontrado? Como podiam uns pais viver numa situação daquelas?

 

Quatro outras raparigas continuavam desaparecidas. Não havia sinal delas. Quem sabe se não estariam já mortas e nunca mais viessem a ser encontradas. As famílias viviam vinte e quatro horas por dia com aquele vazio, questionando-se, angustiadas, albergando esperança, mas pressentindo que não havia nada a esperar. Erica estremeceu. De repente ficou com calafrios e foi ao quarto buscar umas meias de lã. Decidiu não ligar à confusão reinante. A cama estava desfeita e havia roupas espalhadas aqui e ali. À beira da cama, copos vazios; o fio dental de Patrik acumulava bactérias na mesa de cabeceira dele, e na dela amontoavam-se os frascos de desentupidor nasal. Desde que ficara grávida dos gémeos que tinha de estar constantemente a pôr spray no nariz. Estava dependente do mucolítico e nunca parecia ser boa altura para o deixar. Tentara por diversas vezes e sabia que isso significava três dias infernais em que mal conseguia respirar, e depois era muito fácil voltar a cair novamente naquele vício. Era fácil compreender como devia ser difícil deixar de fumar, ou pior, desistir das drogas, quando ela própria não conseguia libertar-se de algo tão banal como os descongestionantes nasais.

 

Só de pensar naquilo sentiu o nariz inchado, por isso foi até à mesa de cabeceira, abanou vários frascos até encontrar um que não estava vazio e aplicou-o ansiosamente nas duas narinas. A sensação que experimentou quando o nariz ficou desentupido foi quase orgiástica. Patrik costumava dizer-lhe a brincar que, se ela fosse forçada a escolher entre o descongestionante e o sexo, ele teria de arranjar uma amante.

 

Sorriu. A ideia de Patrik com uma amante pareceu-lhe ridícula, como sempre. Para começar, não teria forças para tal. Além disso, Erica sabia como o marido a amava, mas a vida quotidiana encarregava-se quase sempre de dar cabo do romantismo e há muito que aquele desejo ardente dos primeiros anos tinha definhado e, a substituí-lo, palpitava agora uma chama mais suave. Ambos sabiam que podiam confiar um no outro e Erica adorava essa segurança.

 

Voltou para a divisão minúscula que era o seu escritório. Os pés já tinham aquecido graças às meias de lã e Erica tentou concentrar-se no que via no ecrã. Mas parecia estar num daqueles dias impossíveis.

 

Passou os olhos pelo documento com apatia. Era-lhe difícil avançar, sobretudo porque Laila não tinha vontade de colaborar. Sem a cooperação dos familiares, Erica não podia escrever livros sobre casos reais de homicídio; pelo menos, não como queria. Descrever um caso baseando-se unicamente em arquivos de tribunal e relatórios policiais resultaria numa história sem vida. Interessavam-lhe os sentimentos, os pensamentos, tudo aquilo que não era dito. E, naquele caso, Laila era a única pessoa que poderia contar o que tinha acontecido. Louise tinha morrido, tal como Vladek, e Peter desaparecera. Apesar das suas muitas tentativas, Erica não tinha conseguido localizá-lo e duvidava de que tivesse alguma coisa a dizer sobre aquele dia. Só tinha quatro anos quando o pai foi assassinado.

 

Erica fechou o documento, irritada. O pensamento resvalava incessantemente para o caso de Patrik, de Victoria e das outras raparigas. Talvez não fosse nenhum absurdo pensar naquilo: normalmente, interromper o trabalho durante algum tempo para se dedicar a algo radicalmente diferente enchia-a de energia. Mas não lhe apetecia nada ir pôr a roupa a lavar.

 

Abriu a gaveta da mesa da secretária e tirou lá de dentro um bloco de post-its. Tinham-na ajudado muitas vezes quando precisava de estruturar o material. Depois de abrir o navegador da Internet, começou a procurar artigos. O desaparecimento das raparigas tinha ocupado as primeiras páginas dos jornais mais do que uma vez, por isso não foi difícil encontrar informações. Erica escreveu os nomes em cinco post-its, um de cada cor, para que tudo fosse mais claro. Depois acrescentou outras informações: cidade natal, idade, pais, irmãos, hora e local do desaparecimento, interesses. Colou as notas na parede, uma fila para cada rapariga. Sentiu um nó no estômago enquanto as observava. Por detrás de cada fila escondiam-se uma dor e um vazio indescritíveis. O pior dos pesadelos de uns pais.

 

Erica apercebeu-se de que faltava algo, de que tinha de acrescentar rostos ao escasso texto das notas. Por isso imprimiu uma fotografia de cada rapariga, o que também não foi difícil de encontrar nas páginas online dos jornais da tarde. Erica perguntava a si própria quanto teriam subido as vendas quando publicaram aqueles artigos sobre os desaparecimentos, mas preferiu pôr de lado o cinismo. Os jornais faziam o seu trabalho e ela era precisamente a pessoa menos indicada para criticar, tendo em conta o facto de viver muito bem a escrever sobre as tragédias alheias, dedicando-lhes muito mais espaço e pormenorizando-as mais do que os diários alguma vez fariam.

 

Quando acabou as suas consultas, Erica imprimiu um mapa da Suécia em várias folhas que juntou com fita-cola. Depois pô-lo ao lado das notas e assinalou com um lápis vermelho as cidades onde as raparigas tinham desaparecido.

 

Deu um passo atrás. Já tinha uma estrutura básica, um esqueleto. Com toda a pesquisa que levava a cabo para escrever os seus livros, tinha aprendido que, muitas vezes, as respostas se encontravam pelo conhecimento das vítimas. Que tinham aquelas raparigas para terem sido escolhidas? Erica não acreditava que se tratasse de uma coincidência. Unia-as mais do que a idade e o aspeto físico, algum traço de personalidade ou alguma característica das condições de vida... Qual seria o denominador comum?

 

Contemplou os cinco rostos na parede. Quanta esperança, quanta curiosidade sobre o que a vida lhes traria... Fixou o olhar numa das fotografias e soube imediatamente por onde ia começar.

 

Laila espalhou os recortes em cima da mesa e sentiu que o coração começava a bater com mais força. Uma reação física à angústia mental. Batia cada vez mais e a sensação de impotência fez com que a pulsação acelerasse até sentir falta de ar.

 

Tentou respirar fundo, inspirou todo o ar viciado que pôde naquele pequeno quarto, forçando o coração a acalmar-se. Tinha aprendido muito ao longo dos anos sobre como controlar os ataques de ansiedade sem a ajuda de terapeutas nem de drogas. A princípio tomava todos os comprimidos que lhe davam, engolia tudo o que pudesse ajudá-la a desaparecer numa névoa de esquecimento, onde não podia ver o mal à sua frente. Mas quando os pesadelos começaram a perfurar também essa névoa, deixou de os tomar de um dia para o outro. Porque, sóbria e alerta, conseguia lidar melhor com os pesadelos. Se perdesse o controlo, tudo podia acontecer. E os segredos viriam ao de cima.

 

Os recortes mais antigos tinham começado a amarelecer. Estavam dobrados e enrugados, porque os guardava numa caixa minúscula que tinha conseguido esconder debaixo do colchão. Quando faziam a limpeza ao quarto, escondia-a na própria roupa.

 

Deslizava o olhar pelas palavras. Na verdade, não precisava de as ler. Sabia o texto de cor. Apenas as palavras dos artigos mais recentes, que não tinha conseguido ler tantas vezes, resistiam a ressoar-lhe sozinhas na cabeça. Passou a mão pelo cabelo cortado à escovinha. Ainda estranhava. Cortara a longa cabeleira no primeiro ano depois de ter entrado para a prisão psiquiátrica. Mas, na verdade, não sabia porquê. Talvez tivesse sido uma maneira de se distanciar ou colocar um ponto final. De certeza que Ulla tinha uma boa teoria para explicar aquilo, mas Laila não lhe perguntara. Não havia razão para esgaravatar no que quer que fosse que pudesse afetá-la. Sabia praticamente todos os motivos pelos quais as coisas tinham acontecido como aconteceram. Na verdade, só ela sabia todas as respostas.

 

Falar com Erica era brincar com o fogo. Nunca lhe ocorrera entrar em contacto com ninguém, mas calhou Erica tê-la contactado quando acabara de acrescentar mais um recorte à coleção da pequena caixa e o mais certo era que nesse dia estivesse vulnerável. Não se recordava com exatidão. Apenas se lembrava de que, para sua surpresa, concordou que Erica a visitasse.

 

Erica apareceu nesse mesmo dia. E, apesar de na altura Laila ignorar, como ainda ignorava, se um dia seria capaz de responder ao que Erica lhe perguntava, encontrava-se com ela, conversava com ela e ouvia as suas questões, que ficavam sempre sem resposta naquela sala de visitas. Às vezes quando Erica se preparava para se retirar era invadida pela angústia e pela certeza de que começava a ser tarde, de que tinha de falar daquela maldade com alguém, e que Erica era, sem dúvida, a pessoa mais indicada para ouvir a sua história. Mas era tão difícil abrir uma porta que estava fechada há tanto tempo...

 

Ainda assim, Laila estava ansiosa que chegasse o dia da visita. Erica fazia as mesmas perguntas que toda a gente, mas fazia-as de outro modo. Sem a ânsia da curiosidade sensacionalista, antes com interesse sincero. Talvez fosse por esse motivo que Laila continuava a encontrar-se com ela. Ou porque o segredo que guardava tinha de ver a luz do dia, porque começara a recear o que poderia acontecer se assim não fosse.

 

Erica regressaria no dia seguinte. Os funcionários do hospital tinham-na avisado de que ela solicitara outro encontro e Laila aceitou.

 

Voltou a guardar os recortes na caixa. Dobrou-os como estavam, para que não se deteriorassem mais, e fechou a tampa. O coração voltou a bater-lhe mais pausadamente.

 

 

Patrik aproximou-se da impressora com as mãos a tremer em busca dos documentos. Sentia náuseas e teve de se acalmar por um momento antes de atravessar o corredor até ao gabinete de Mellberg. A porta estava fechada, por isso bateu antes de entrar.

 

– Que aconteceu? – ouviu Mellberg dizer num tom de irritação. Acabara de regressar daquilo a que ele chamava o seu passeio e Patrik suspeitava que já se tinha instalado para dormir uma sesta.

 

– Sou eu, Patrik. Já tenho o relatório do Pedersen e pensei que gostasse de saber os resultados da autópsia. – Conteve o impulso de abrir a porta de supetão. Uma vez tinha-o feito e encontrara o chefe da esquadra a ressonar sem nada mais vestido do que uns boxers muito velhos. Era daqueles erros que só se cometem uma vez.

 

– Entre – disse Mellberg passados uns instantes.

 

Quando Patrik entrou, o superintendente começou a reorganizar os documentos que tinha sobre a mesa para dar a entender que estava extremamente ocupado. Patrik sentou-se à frente de Mellberg e Ernst saiu logo de debaixo da mesa para o cumprimentar. Tinham dado este nome ao cão por causa de um ex-colega já falecido e, por mais que custasse a Patrik falar mal dos mortos, pensava que o animal era muito mais agradável do que aquele que lhe dera o nome.

 

– Olá, campeão – disse, coçando o pelo de Ernst, que ganiu, deliciado.

 

– Está branco como a cal – disse Mellberg. Uma observação bastante perspicaz, vinda de quem vinha.

 

– Bem, sim, isto não é uma leitura agradável. – Patrik pousou as cópias em cima da mesa. – Quer lê-las ou prefere que lhe conte?

 

– Força! – disse Mellberg, e recostou-se na cadeira.

 

– Quase não sei por onde começar. – Patrik tossiu um pouco para aclarar a garganta. – Tiraram os olhos a Victoria vertendo-lhe ácido. As feridas já tinham sarado e, pelo estado das cicatrizes, Pedersen julga que foram feitas pouco tempo depois do rapto.

 

– C’um caraças! – Mellberg avançou um pouco e apoiou os cotovelos na mesa.

 

– Cortaram-lhe a língua com um instrumento afiado. Pedersen foi incapaz de determinar ao certo qual, mas acredita que tenha sido feito com uma ferramenta grande, uma tesoura de podar ou algo assim. Não foi uma simples faca. – Patrik ouviu o tom de repugnância com que proferira aquelas palavras, enquanto Mellberg parecia estar com náuseas.

 

– Depois, Pedersen diz que lhe espetaram um objeto pontiagudo nos ouvidos, de tal forma que as lesões a fizeram perder também a audição. – Patrik disse de si para si que tinha de contar a Erica, pois a ideia que ela tivera de a rapariga poder estar encerrada numa bolha provara-se muito acertada.

 

Mellberg ficou a olhar para Patrik durante um bom bocado.

 

– Quer dizer que a rapariga não podia ver, ouvir ou falar? – disse pausadamente.

 

– Exatamente – disse Patrik.

 

Ficaram em silêncio durante algum tempo. Os dois tentaram imaginar o que sentiria uma pessoa ao perder três dos sentidos mais importantes, ao dar por si presa numa escuridão compacta e silenciosa, incapaz de comunicar.

 

– C’um caraças! – repetiu Mellberg. O silêncio prolongou-se um pouco mais, as palavras não eram suficientes. Ernst latiu e olhou para os dois agentes com ar preocupado. O animal podia sentir o ambiente pesado, embora não fosse capaz de o interpretar.

 

– O mais provável é que esses ferimentos também tenham sido infligidos depois do rapto, muito pouco tempo depois. Além disso, parece que a mantiveram amarrada. Apresentava marcas de cordas nos pulsos e nos tornozelos. Cicatrizadas e recentes. E tinha chagas por causa da pressão, por ter estado deitada durante muito tempo.

 

Mellberg também já estava branco como a cal.

 

– A análise toxicológica também está pronta – acrescentou Patrik. – Havia vestígios de ketamina no sangue.

 

– Keta quê?

 

– Ketamina. É um anestésico. Está classificado como estupefaciente.

 

– E porque é que a Victoria teria isso no sangue?

 

– Não é fácil de explicar. De acordo com Pedersen, pode ter efeitos diferentes, dependendo da dose. Uma dose mais elevada deixa uma pessoa insensível à dor e até mesmo inconsciente, ao passo que uma mais baixa provoca psicose alucinatória. Quem sabe que efeito pretendia o raptor. Talvez ambos.

 

– Onde se consegue encontrar essa ketamina?

 

– Bem, como as outras drogas, só que esta é considerada algo exclusiva. Há que saber como utilizá-la e em que doses. Os tipos que a consomem nos bares não querem estragar a noite deixando-se dormir, que é o resultado que se consegue se se toma em excesso. Costumam misturá-la com ecstasy. Mas é utilizada principalmente em contexto hospitalar. E como anestésico para animais. Cavalos, sobretudo.

 

– C’um caraças! – disse novamente Mellberg quando estabeleceu a ligação. – Já investigámos o veterinário, o tal Jonas?

 

– Sim, claro. A Victoria desapareceu depois de ter estado nas cavalariças. O veterinário tinha um álibi sólido, estava numa urgência. Os proprietários do cavalo doente atestaram que Jonas chegou um quarto de hora depois de terem visto a Victoria nas cavalariças e que ele esteve lá várias horas. Além disso, não encontrámos nenhuma ligação entre o veterinário e as outras raparigas.

 

– Sim, mas depois desta descoberta devíamos investigá-lo de novo a fundo, não lhe parece?

 

– Claro. Quando eu contei isto aos outros, o Gösta lembrou-se de que o consultório de Jonas foi assaltado há algum tempo. Disse que ia procurar a queixa, para ver se referia o roubo de ketamina. A questão é saber se Jonas teria reportado o assalto se ele próprio quisesse utilizar a droga. Em todo o caso, vamos falar com ele.

 

Patrik ficou em silêncio por um momento, mas depois ganhou coragem.

 

– Há outra coisa. Pensei que, hoje, eu e o Martin podíamos fazer uma viagem.

 

– Ah, sim? – perguntou Mellberg com ar de estar a cheirar uma despesa extra.

 

– Gostava de ir a Gotemburgo falar com a mãe de Minna Wahlberg. E já que lá vamos...

 

– Sim...? – A voz de Mellberg soou ainda mais desconfiada.

 

– Bem, já que lá vamos podemos falar com um homem que talvez nos possa ajudar a analisar o comportamento do raptor.

 

– Pois, um desses psicólogos – disse Mellberg, e mostrou através de todo um repertório de gestos o que pensava daquela categoria profissional.

 

– Eu sei que não é uma ciência exata, mas pelo menos não implicará uma despesa extra, já que, de qualquer maneira, temos de ir a Gotemburgo.

 

– Está bem, está bem, mas só se não me aparecer aqui com nenhuma adivinha – murmurou Mellberg, o que lembrou a Patrik como o chefe e Gösta eram parecidos em algumas coisas. – E, por amor de Deus, não pisem os calos dos colegas de Gotemburgo. Sabe tão bem como eu como gostam de marcar o território por aquelas bandas, por isso tenham cuidado.

 

– Vou levar as luvas de pelica – disse Patrik, que saiu e fechou a porta do gabinete do chefe. Os roncos não tardariam a voltar a ouvir-se no corredor.

 

Erica sabia que era muito impulsiva. Demasiado, às vezes. Pelo menos era isso que Patrik pensava por se imiscuir repetidamente em assuntos que, na verdade, não lhe diziam respeito. Ao mesmo tempo, porém, ajudara Patrik mais do que uma vez nas suas investigações, por isso, o marido não devia queixar-se tanto.

 

Aquela era uma dessas ocasiões em que Patrik iria pensar que Erica estava a meter-se onde não era chamada. Como tal, precisamente por causa disso, Erica não pensava dizer-lhe nada por enquanto, preferindo antes esperar para ver se a sua excursão dava frutos. Se não desse, poderia utilizar a mesma desculpa que dera a Kristina, a sogra, a quem pedira, muito em cima da hora, para ir buscar os filhos ao infantário. Dir-lhe-ia que ia a Gotemburgo para se encontrar com a agente literária por causa de uma proposta de contrato com uma editora alemã. Vestiu o casaco e olhou com desagrado para o espetáculo. Parecia que tinha caído ali uma bomba. Kristina teria muito a dizer sobre aquilo e faria certamente uma longa palestra sobre a importância de manter uma casa limpa e arrumada. Curiosamente, nunca fazia o mesmo discurso ao filho, uma vez que parecia considerar que, por ser o homem da casa, estava acima de tais tarefas. E Patrik parecia não ter nada contra isso.

 

Bem, talvez estivesse a ser um pouco injusta. Patrik era fantástico numa data de coisas. Fazia a sua quota-parte das tarefas sem protestar e é claro que se ocupava tanto dos filhos quanto ela. No entanto, Erica não podia dizer que a repartição de tarefas fosse inteiramente igualitária. Era como se tivesse de ser a diretora do projeto; era ela quem tinha de decidir quando a roupa deixava de servir aos filhos e quando era preciso comprar nova; quem sabia quando tinham de levar lanche para o infantário ou quando tinham de levar a vacina no centro de saúde. E milhares de outras coisas. Era Erica quem se dava conta de que o detergente estava a acabar, a única que sabia quando era preciso ir comprar fraldas; era ela quem sabia que creme resultava quando os filhos tinham dermatite da fralda e quem sabia sempre onde Maja tinha deixado o peluche preferido com que dormia. Aquilo estava-lhe tudo na massa do sangue, mas Patrik parecia não conseguir pensar em nada disso. Nem querer. Era uma suspeita que sempre tinha albergado de forma mais ou menos latente, mas na qual tinha optado por não pensar mais do que a conta, pelo que, com a maior das naturalidades, tinha assumido o papel de diretora daquele projeto e dava graças a Deus por ter um companheiro que realizava voluntariamente as tarefas que lhe eram atribuídas. Muitas das suas amigas não tinham a mesma sorte.

 

O frio quase a fez retroceder quando abriu a porta. Estava uma invernia diabólica. Esperava que não houvesse muito gelo na estrada. Não a entusiasmava minimamente conduzir e só o fazia quando não tinha alternativa.

 

Trancou a porta ao sair. Para o melhor e para o pior, Kristina tinha a sua própria chave, uma vez que costumava ir buscar as crianças quando as coisas se complicavam. Erica franziu a testa quando se dirigiu ao carro. Kristina tinha-lhe perguntado se podia ir acompanhada, uma vez que fora avisada com tão pouca antecedência. A sogra tinha uma vida social intensíssima com as suas numerosas amigas, que às vezes a acompanhavam quando ia tomar conta dos netos, de modo que aquilo não tinha nada de estranho. Mas o modo como Kristina dissera que iria «acompanhada» deu que pensar a Erica. Será que, pela primeira vez desde que se separou do pai de Patrik, Kristina conhecera outro homem?

 

Achou graça à ideia e ligou o motor do carro a sorrir. Patrik ia ter um ataque. Não tivera qualquer problema em aceitar que o pai tinha tido outra mulher durante muitos anos, porém, por alguma razão, quando se tratava da mãe, era diferente. Sempre que Erica gozava com ele a dizer que ia inscrever Kristina num site de encontros pela Internet, Patrik estremecia. Mas agora talvez tivesse chegado a altura de aceitar que a mãe tinha a sua própria vida. Erica riu-se para dentro e apanhou a estrada para Gotemburgo.

 

Jonas estava a limpar o consultório com movimentos bruscos. Ainda o irritava que Marta tivesse suspendido a competição. Não devia ter negado essa possibilidade a Molly. Sabia como aquilo era importante para a filha e doía-lhe tê-la dececionado.

 

Quando Molly era pequena, ter o consultório em casa era uma vantagem enorme. Receava que Marta não conseguisse cuidar da filha como devia ser e, quando estava a trabalhar, podia ir dar uma vista de olhos quase entre uma consulta e outra para confirmar que ela estava bem.

 

Ao contrário de Marta, Jonas queria ter filhos, alguém a quem transmitir a sua herança. Queria rever-se nessa criança e sempre imaginou que seria um rapaz. Mas tiveram Molly e já durante o parto ficou surpreendido com uma série de sentimentos cuja existência desconhecia.

 

Marta, porém, deixou-lhe a recém-nascida nos braços com um rosto inexpressivo. Os ciúmes que lhe surgiram nos olhos desapareceram instantaneamente. Jonas já esperava que a mulher se sentisse assim, era normal. Marta era dele e ele era dela, mas acabaria por compreender que a filha não mudava nada, pelo contrário, reforçava a união que tinham.

 

Jonas soube que Marta era a mulher ideal assim que a viu. A sua cara-metade, a sua alma gémea. Eram palavras gastas, clichês, mas que no seu caso eram inteiramente acertadas. O único assunto em relação ao qual tinham opiniões diferentes era Molly. Mesmo assim e só por ele, Marta tinha dado o seu melhor. Educara a filha como Jonas queria e tinha permitido que ele e Molly tivessem o relacionamento pai-filha em paz, enquanto investia toda a sua energia na relação do casal.

 

Esperava que Marta tivesse consciência de quanto a amava, de como era importante para ele. Jonas tentava demonstrar-lho, era tolerante e permitia-lhe partilhar tudo. Só uma vez tinha duvidado. Por um momento sentira um abismo entre os dois, uma ameaça à simbiose em que viviam há tanto tempo. Mas aquele lampejo de dúvida já fora erradicado.

 

Jonas sorriu e ajeitou a caixa de luvas de látex. Tinha muito por que estar agradecido. E sabia disso.

 

 

Mellberg pôs a coleira a Ernst. O cão começou a dar pulos de alegria e desatou a correr em direção à saída da esquadra. Do seu lugar na receção, Annika olhou para cima e o superintendente disse-lhe que ia almoçar a casa saindo aliviado para o ar livre. Quando a porta se fechou, Mellberg respirou fundo. Depois do que Hedström acabara de lhe contar, o gabinete parecia-lhe sufocante como uma prisão.

 

A Rua Affärsvägen estava deserta. No inverno não havia muito movimento na cidade, o que geralmente permitia poder dormir uma sesta de vez em quando. No verão, no entanto, as pessoas não paravam de fazer disparates. Por pura estupidez ou pelo consumo excessivo de álcool. Os turistas eram uma praga e Mellberg preferiria que Tanumshede e as localidades da região estivessem assim, desertas o ano inteiro. Quando por fim terminava o mês de agosto, geralmente estava à beira da exaustão de tanto trabalhar. A profissão que tinha escolhido era terrível, sem dúvida, mas claro que tinha um talento inato para o trabalho policial, a sua paixão. Além disso, não eram poucas as invejas que despertava. Não lhe passavam despercebidos os olhares invejosos que Patrik, Gösta e Martin lhe lançavam às vezes. Já Paula não parecia tão impressionada, mas de certeza que não era de estranhar. Não era tonta, antes pelo contrário, e já por mais de uma vez se saíra com observações bastante pertinentes. Mas faltava-lhe a lógica masculina e, portanto, a capacidade para apreciar a cem por cento a sua sagacidade.

 

Quando chegou a casa sentia-se um pouco mais animado. O ar fresco tinha feito com que voltasse a pensar claramente. Embora fosse verdade que aquilo da rapariga era uma tragédia horrível, gerando igualmente uma data de trabalho numa estação do ano por regra tão calma, parecia-lhe também algo emocionante. E além disso oferecia-lhe uma excelente oportunidade de brilhar.

 

– Alô? – gritou quando entrou. Viu que os sapatos de Paula estavam no vestíbulo, o que significava que ela e Lisa tinham ido visitá-los.

 

– Estamos na cozinha! – respondeu Rita.

 

Mellberg soltou Ernst, para que o cão fosse a correr cumprimentar a donzela. Sacudiu a neve dos sapatos no tapete, despiu o casaco e seguiu o cão.

 

Na cozinha, Rita punha a mesa e Paula rebuscava um armário, com Lisa colada à barriga num porta-bebés.

 

– Já não há café – disse.

 

– Está ao fundo, à direita – disse Rita, apontando. – Também vou pôr um prato para ti, filha. Já que estás cá, aproveitas e comes alguma coisa.

 

– Obrigada, mãe. Bem, então e na esquadra? – perguntou Paula, virando-se para Mellberg com a embalagem de café na mão. Encontrara-o onde Rita tinha dito, nem mais nem menos. Na cozinha da mãe reinava uma ordem marcial.

 

Mellberg refletiu se devia realmente falar do resultado da autópsia àquela mulher exausta que ainda estava a amamentar a filha. Mas sabia que Paula ficaria furiosa se viesse a descobrir que lhe tinha ocultado informações, por isso resumiu o que Patrik acabara de lhe contar na esquadra. Diante do lavatório da cozinha, Rita ficou gelada, mas continuou a separar os talheres.

 

– Meu Deus, que barbaridade! – exclamou Paula. Sentou-se à mesa e começou a acariciar distraidamente Lisa. – Dizes que lhe cortaram a língua?

 

Mellberg aguçou os ouvidos. Apesar de tudo, Paula provara ocasionalmente ter alguma aptidão para o trabalho policial, além de uma memória incrível.

 

– Porque perguntas? – O superintendente sentou-se ao lado de Paula, observando-a com interesse.

 

Paula abanou a cabeça.

 

– Não sei, recorda-me alguma coisa... Ahhh, este cérebro inundado de leite materno! Já não aguento mais isto!

 

– Isso passa – disse Rita da bancada, onde estava a preparar a salada.

 

– Sim, mas enquanto dura é muito irritante. Essa história da língua soa-me familiar...

 

– Se deixares de pensar nisso, acabas por te lembrar, é o que acontece sempre – disse Rita para consolar a filha.

 

– Sim... – afirmou Paula, e Mellberg quase podia vê-la a vasculhar a memória. – Não sei se não será alguma coisa que li num relatório policial antigo. Importa-se que dê um salto à esquadra daqui a pouco?

 

– Estás mesmo a pensar ir à esquadra com a Lisa, com o frio que está lá fora? E ainda por cima para trabalhar, cansada como estás? – protestou Rita.

 

– Tanto faz estar cansada aqui ou lá – retorquiu Paula. – E a Lisa... podia deixá-la ficar aqui um bocado contigo, não? Não vou demorar muito, só vou dar uma vista de olhos no arquivo.

 

Rita resmungou algo inaudível em resposta, mas Mellberg sabia que a companheira não tinha absolutamente nada contra ficar com Lisa, apesar de haver o risco de a bebé ter um dos seus ataques e desatar a chorar. Para dizer a verdade, até lhe pareceu que Paula ficou com melhor cara só de pensar em passar pela esquadra.

 

– Bem, então gostava de ver o relatório da autópsia – disse. – Espero que não haja nenhum problema, embora eu esteja oficialmente de licença de maternidade. Ou haverá?

 

Mellberg resfolegou. Queria lá saber se Paula estava ou não de licença de maternidade. Na verdade, nem sequer sabia que regra se aplicava naquele caso, mas se tivesse de seguir todas as regras e disposições que regiam os locais de trabalho em geral e a profissão de polícia em particular, não teria tempo para fazer mais nada.

 

– Annika tem-no juntamente com o material da investigação. Basta pedires-lho quando chegares.

 

– Ótimo. Nesse caso, e para o bem de todos, vou arranjar-me um pouco antes de ir.

 

– Sim, mas primeiro tens de comer – disse Rita.

 

– Claro, mãe.

 

Da bancada emanavam aromas que arrancavam rugidos de prazer ao estômago de Mellberg. Os cozinhados de Rita punham quase tudo o resto a um canto. A única falha era ser tão mesquinha com as sobremesas. Mellberg imaginou os bolos da pastelaria do bairro. Já tinha passado por lá, mas talvez ainda desse lá um salto quando fosse a caminho da esquadra. Não era possível considerar uma refeição completa sem alguma coisa doce a coroá-la.

 

Gösta já não pedia muito da vida. «Se conseguires ter os pés e a cabeça quentes já podes dar-te por satisfeito», dizia o avô. Gösta começava a compreender o que ele queria dizer: tudo consistia em não ter grandes pretensões. E agora que Ebba regressara à sua vida, depois dos acontecimentos extraordinários do verão, estava mais do que satisfeito com a sua existência. A jovem mudara-se novamente para Gotemburgo e Gösta chegou a temer que voltasse a desaparecer, que não lhe interessasse manter o contacto com um velho que conhecera durante muito pouco tempo quando era pequena. Mas Ebba telefonava-lhe de vez em quando e, sempre que ia a Fjällbacka ver a mãe, aproveitava a oportunidade para lhe fazer uma visita. Claro que estava traumatizada depois de tudo o que tinha passado, mas de cada vez que se encontravam parecia mais forte. Gösta desejava de todo o coração que as feridas de Ebba sarassem e que recuperasse a fé no amor. Quem sabe, talvez no futuro pudesse encontrar outro homem e voltar a ser mãe? E quem sabe, com um pouco de sorte, Gösta poderia ser avô emprestado e tomar outra vez conta de um miúdo. Era o seu maior sonho: aproximar-se dos arbustos de framboesa que tinha no jardim com uma criança pela mão e ajudá-la a apanhar os frutos mais doces.

 

Mas já chegava de sonhar acordado. Tinha de se concentrar na investigação. Ficava com calafrios só de pensar no que Patrik lhes contara sobre os ferimentos de Victoria, mas fez um esforço para pôr de lado essas sensações desagradáveis. Não devia ficar obcecado com elas. Tinha visto muitos horrores ao longo dos anos que passara na Polícia, e, embora aquilo superasse tudo o resto, o princípio era o mesmo: não havia mais nada a fazer a não ser trabalhar.

 

Olhou para o relatório à sua frente e refletiu por uns minutos. Depois levantou-se e foi ao gabinete de Patrik, que ficava paredes-meias com o seu.

 

– O Jonas comunicou o assalto alguns dias antes de a Victoria desaparecer. E a ketamina é uma das substâncias roubadas. Posso ir falar com ele a Fjällbacka enquanto tu e o Martin vão a Gotemburgo.

 

Observou o olhar de Patrik e, embora lhe doesse um pouco, compreendia a surpresa que expressava. Gösta nem sempre tinha sido o agente mais disposto a trabalhar daquela esquadra e, diga-se em abono da verdade, continuava a não o ser. Mas tinha capacidades e, ultimamente, albergava um novo sentimento. Queria que Ebba se orgulhasse dele. Além disso, tinha pena da família Hallberg, cujo sofrimento testemunhava há meses.

 

– Realmente parece haver uma ligação, e é excelente que te tenhas apercebido disso – afirmou Patrik. – Mas queres mesmo ir sozinho? Se não, podemos ir juntos amanhã.

 

Gösta rejeitou a oferta com um gesto.

 

– Não, não, eu vou sozinho, isto não é nada do outro mundo. Além disso, fui eu que tomei conta da ocorrência. Espero que as coisas vos corram bem em Gotemburgo. – Gösta despediu-se e dirigiu-se ao carro.

 

Não demorou mais de cinco minutos a chegar à quinta nos arredores de Fjällbacka, depois entrou no pátio e estacionou em frente à casa de Marta e de Jonas.

 

– Toc, toc – proferiu ao abrir a porta das traseiras.

 

O consultório não era muito grande. Uma sala de espera minúscula, não muito maior do que um corredor, uma kitchenette e a sala de tratamentos.

 

– Não tem para aqui cobras, aranhas ou outros animais esquisitos, espero – brincou ao ver Jonas.

 

– Olá, Gösta. Não, tenha calma, felizmente não há muita bicharada dessa em Fjällbacka.

 

– Posso entrar por um momento? – Gösta entrou e limpou os sapatos ao tapete.

 

– Claro, a próxima consulta é só daqui a uma hora. Parece que hoje vai ser um dia calmo, por isso tire o casaco. Quer um café?

 

– Sim, obrigado, se não for incómodo.

 

Jonas abanou a cabeça e dirigiu-se à pequena cozinha, onde havia uma máquina de café e uma caixa com cápsulas de cores diferentes.

 

– Investi numa destas a bem da minha própria sobrevivência. Forte ou fraco? Leite? Açúcar?

 

– Forte, e leite e açúcar, se faz favor. – Gösta despiu o casaco e sentou-se numa das cadeiras.

 

– Aqui está. – Jonas entregou a Gösta uma chávena e sentou-se à sua frente. – Calculo que tenha vindo por causa da Victoria.

 

– Bem, não, vim para lhe fazer umas perguntas acerca do assalto.

 

Jonas ergueu as sobrancelhas.

 

– Ah, pensava que o processo tinha sido arquivado. Tenho de admitir que fiquei um pouco desapontado que não tenham conseguido descobrir nada de concreto, embora compreenda que a prioridade fosse o caso da Victoria. Suponho que não me possa dizer porque é que, de repente, estão outra vez interessados no assalto, certo?

 

– Pois, realmente não posso, desculpe – respondeu Gösta. – Como descobriu que tinha sido assaltado? Já sei que mo disse na altura, mas gostava de o ouvir contar outra vez o que aconteceu – acrescentou. Fez um gesto de desculpas e quase derrubou a chávena, mas conseguiu evitá-lo no último segundo e já não voltou a largá-la, não fosse o diabo tecê-las.

 

– Bem, como vos disse, quando cheguei de manhã vi que a porta fora forçada. Eram mais ou menos nove horas. É a hora a que costumo começar, porque as pessoas não têm vontade de vir mais cedo. Enfim, percebi logo que tinha sido forçada.

 

– Como estava o consultório?

 

– Por acaso não estava muito mal. Havia algumas coisas dos armários que estavam no chão, mas pouco mais. O pior é que o armário onde guardo os medicamentos classificados como estupefacientes tinha sido forçado, embora eu o tenha sempre bem fechado. A taxa de criminalidade em Fjällbacka não é alarmante, mas os poucos toxicodependentes que por aqui há sabem certamente que tenho cá medicamentos. Embora até agora não tenha havido nenhum incidente.

 

– Pois, sei a quem se refere e tivemos uma conversa com eles logo depois do assalto. Não lhes conseguimos sacar nada, mas não creio que tivessem sido capazes de manter a boca fechada se algum deles tivesse conseguido entrar aqui. Além disso, também não encontrámos impressões digitais que coincidissem com as deles.

 

– Sim, claro, deve ter razão, de certeza que foi outra pessoa.

 

– Que faltava depois do assalto? Já sei que está na queixa, mas gostaria que mo recordasse.

 

Jonas franziu a testa.

 

– Bem, na verdade não me lembro ao certo, mas as substâncias classificadas como estupefacientes que aqui temos são etilmorfina, ketamina e codeína. Além disso, levaram algum material de enfermagem, tais como ligaduras, desinfetante e... luvas de látex, julgo eu. Coisas normais e baratas que se podem comprar em qualquer farmácia.

 

– A menos que não se queira chamar a atenção ao comprar uma data de material de enfermagem – referiu Gösta como se pensasse em voz alta.

 

– Sim, claro. – Jonas bebeu um gole de café. Era o resto, por isso o veterinário levantou-se para ir preparar mais. – Quer outro?

 

– Não, obrigado, ainda tenho – respondeu Gösta, e apercebeu-se de que não tocara no café. – Fale-me dos medicamentos. Há algum pelo qual os toxicodependentes se interessem em particular?

 

– Bem, a ketamina, julgo eu. Creio que se tornou moda nesses ambientes. Parece que nas festas lhe chamam Special K.

 

– Como é utilizada em veterinária?

 

– Tanto nós como os médicos utilizamo-la como anestésico em intervenções cirúrgicas. Com um anestésico normal há o risco de inibição da atividade cardíaca e da respiração, mas com a ketamina evita-se esse efeito secundário.

 

– Em que animais é utilizada?

 

– Sobretudo em cães e cavalos, para os anestesiar de forma segura e eficaz.

 

Gösta esticou lentamente as pernas. Cada vez lhe estalavam mais as articulações e cada inverno se sentia mais rígido.

 

– Que quantidade de ketamina levaram?

 

– Se bem me lembro, quatro frascos com cem mililitros cada.

 

– Isso é muito? Quanto administra a um cavalo, por exemplo?

 

– Bem, depende do peso – respondeu Jonas. – Geralmente calcula-se cerca de dois mililitros por cada cem quilos.

 

– E para uma pessoa?

 

– Para ser franco, não sei, vai ter de perguntar a um cirurgião ou a um anestesista. Podem dar-lhe dados precisos. Fiz um curso de medicina geral, mas foi há muito tempo. Percebo de animais, não de pessoas. Mas porque está tão interessado precisamente na ketamina?

 

Gösta hesitou. Não sabia se lhe devia contar e assim revelar o verdadeiro motivo daquela visita. Ao mesmo tempo, tinha curiosidade em saber como reagiria Jonas. Se, contra todas as probabilidades, tivesse sido ele quem utilizara a ketamina e tivesse comunicado o assalto só para despistar, talvez isso se lhe notasse no rosto.

 

– Temos o resultado da autópsia – disse por fim. – E a Victoria tinha vestígios de ketamina no sangue.

 

Jonas teve um sobressalto e olhou-o com surpresa e horror.

 

– Quer dizer que consideram que quem raptou a Victoria, utilizou nela a ketamina roubada do meu consultório?

 

– Bem, ainda não temos a certeza disso, porém, tendo em conta que foi roubada pouco antes do rapto e perto do local onde a Victoria foi vista pela última vez, não é completamente inverosímil.

 

Jonas abanou a cabeça.

 

– É horrível.

 

– Não tem nenhuma suspeita de quem possa ter-lhe assaltado o consultório? Não viu nada fora do normal nos dias que antecederam o assalto ou pouco depois disso?

 

– Não, realmente não faço a mais pequena ideia. Já vos disse que em todos estes anos é a primeira vez que acontece uma coisa destas. Sempre tive o máximo cuidado em manter tudo bem fechado.

 

– E não acha que alguma das raparigas poderia...? – Gösta apontou para os estábulos.

 

– Não, claro que não. Claro que já beberam aguardente às escondidas e não lhe posso dizer que não tenham fumado um cigarro ou outro, mas nenhuma delas é nem de perto nem de longe tão espevitada a ponto de saber que os medicamentos usados pelos veterinários podem ser utilizados em festas. Se quiser converse com elas, mas posso garantir-lhe que nunca ouviram falar de ketamina.

 

– Claro, com certeza – murmurou Gösta. Não conseguia pensar em mais nada para perguntar, e Jonas pareceu notar que o agente vacilava.

 

– Mais alguma coisa? – perguntou, sorrindo algo embaraçado. – De qualquer maneira podíamos deixar isso para outra altura, é que está quase na hora de atender o próximo paciente. Parece que Nelly, um rato fêmea, comeu alguma coisa que não lhe caiu bem.

 

– Que nojo, não percebo porque é que as pessoas têm esses animais em casa. – Gösta torceu o nariz de repugnância.

 

– Se você soubesse... – disse Jonas, e deu-lhe um aperto de mão de despedida.

 

UDDEVALLA, 1968

APERCEBEU-SE DESDE MUITO CEDO DE QUE HAVIA ALI ALGUMA FALHA. ERA COMO SE FALTASSE ALGO QUE DEVIA EXISTIR, MAS LAILA NÃO ERA CAPAZ DE IDENTIFICAR O QUE ERA E PARECIA SER A ÚNICA A DAR-SE CONTA DAQUILO. LEVANTOU VÁRIAS VEZES A QUESTÃO, E PROPÔS-SE LEVAR A FILHA AO MÉDICO, MAS VLADEK NÃO LHE DAVA OUVIDOS. ERA UMA MENINA BONITA E MUITO BEM-COMPORTADA, DE CERTEZA QUE NÃO TINHA NADA DE MAL.

MAS OS SINAIS ERAM CADA VEZ MAIS EVIDENTES. O ROSTO DA FILHA EXPRESSAVA APENAS SERIEDADE E LAILA ESPERAVA INCANSAVELMENTE UM SORRISO QUE NUNCA CHEGOU. VLADEK TAMBÉM COMEÇOU A PERCEBER QUE ALGO SE PASSAVA, MAS NINGUÉM LEVOU AQUILO A SÉRIO. NO HOSPITAL PEDIÁTRICO DISSERAM A LAILA QUE CADA CRIANÇA TINHA A SUA MANEIRA DE SER, QUE NÃO HAVIA UM PADRÃO, QUE ALGUMAS ERAM MAIS LENTAS. MAS LAILA NÃO TINHA DÚVIDAS. DEFINITIVAMENTE, FALTAVA ALGUMA COISA À FILHA.

ELA TAMBÉM NÃO CHORAVA. ÀS VEZES, LAILA TINHA DE SE CONTER PARA NÃO LHE DAR UM BELISCÃO, PARA A SACUDIR OU FAZER QUALQUER COISA PARA PROVOCAR ALGUMA REAÇÃO. QUANDO ESTAVA ACORDADA, A FILHA PERMANECIA EM SILÊNCIO, OBSERVANDO O MUNDO COM TANTO NEGRUME NO OLHAR QUE LAILA SE SENTIA APAVORADA. ERA UM NEGRUME ARRAIGADO, QUE NÃO SE LIMITAVA AOS OLHOS, ANTES IRRADIAVA DO CORPO TODO.

NEM POR SOMBRAS A MATERNIDADE LHE CORRERA COMO IMAGINOU. A IMAGEM QUE TINHA, OS SENTIMENTOS QUE PENSARA VIR A ALBERGAR PELA CRIATURA QUANDO A TIVESSE NOS BRAÇOS... NADA COINCIDIA COM A REALIDADE. SUSPEITAVA QUE ERA TUDO POR CAUSA DA FILHA, MAS ERA A SUA FILHA. E A OBRIGAÇÃO DE UMA MÃE É PROTEGER OS FILHOS, ACONTEÇA O QUE ACONTECER.

 

ANDAR DE CARRO COM PATRIK estava a ser tão horrível como sempre. Martin agarrava-se com força à pega por cima da porta do lugar do morto e, embora não fosse crente, fartou-se de rezar.

 

– Ainda bem que hoje o piso está ótimo – disse Patrik.

 

Deixaram para trás a igreja de Kville e, enquanto atravessavam a pequena cidade, Patrik abrandou um pouco a velocidade. Mas não tardou a voltar a acelerar e, alguns quilómetros depois, ao chegar àquela curva tão apertada que havia à direita, Martin ficou com a cara colada ao vidro gelado da janela.

 

– Patrik! Tens de perder a mania de acelerar quando sais das curvas! Esquece o que te disse o instrutor da escola de condução, acredita que não é a técnica mais apropriada.

 

– Eu conduzo perfeitamente bem – murmurou Patrik, embora soltando um pouco o acelerador. Não era a primeira vez que tinham aquela discussão e certamente não seria a última.

 

– Como está a Tuva? – perguntou Patrik passados alguns minutos. Martin viu pelo canto do olho que o colega também estava a olhar para ele de soslaio. Só queria que as pessoas não andassem sempre com paninhos quentes. Nada acontecia por lhe perguntarem, antes pelo contrário, isso significava que se importavam com ele e com Tuva. As perguntas não pioravam as coisas, o pior já tinha acontecido. Nem abriam novas feridas, pois as feridas eram sempre as mesmas, todas as noites, quando ia deitar a filha e ela lhe perguntava pela mãe. Ou quando ele próprio ia para a cama e se deitava do seu lado, junto ao lado vazio de Pia. Ou sempre que telefonava para casa a perguntar se era preciso alguma coisa do supermercado e se dava conta de que Pia nunca mais ia atender.

 

– Parece-me estar bem. Pergunta pela Pia, claro, mas sobretudo pede para lhe contar coisas dela. Julgo que já aceitou que a mãe partiu. Nesse aspeto, parece-me que as crianças são mais espertas do que nós – respondeu Martin, calando-se logo em seguida.

 

– Não consigo sequer imaginar o que teria feito se Erica tivesse morrido – disse Patrik baixinho.

 

Martin percebeu que o colega estava a pensar no que acontecera dois anos antes, quando não apenas Erica, mas os gémeos de que estava grávida estiveram a ponto de morrer num acidente de viação.

 

– Não sei se conseguia ter continuado a viver. – A voz de Patrik tremia só de se lembrar do dia em que quase perdera a mulher.

 

– Conseguias, acredita que sim – disse Martin, olhando em seguida para a paisagem nevada que percorriam. – É assim. E há sempre alguém por quem viver. Terias ficado com a Maja. Agora, a Tuva é tudo para mim, e a Pia continua viva nela.

 

– Achas que algum dia conhecerás outra mulher?

 

Martin apercebeu-se de que fora difícil a Patrik formular a pergunta, como se a achasse despropositada.

 

– Por agora, isso parece-me impensável; quase tão impensável como a ideia de viver sozinho o resto da vida. Esse tempo virá. Por enquanto já tenho trabalho suficiente a tentar equilibrar-me a mim e a Tuva. Estamos a aprender a preencher como podemos os espaços que a Pia deixou. E não sou só eu quem tem de estar preparado, a Tuva também tem de estar disposta a permitir que entre outra pessoa na família.

 

– Parece-me sensato – Patrik sorriu. – Além disso, também não restam assim tantas mulheres em Tanum, pois não? Andaste com quase todas antes de conhecer Pia, por isso vais ter de expandir a zona de buscas se não quiseres repetir.

 

– Ha!, ha!, ha!, tens cá uma piada – Martin reparou que estava a corar. Patrik estava a exagerar, mas tinha alguma razão. Nunca tinha sido uma pessoa muito convencional, mas com a combinação do charme de rapazinho adorável, o cabelo ruivo e as sardas, sempre tinha conseguido que as raparigas ficassem caídas por ele. Porém, quando conheceu Pia, esses joguinhos terminaram e, enquanto estiveram juntos, nunca olhou para outra mulher. Amava-a tanto que agora tinha saudades dela a cada segundo.

 

De repente, Martin sentiu que não tinha forças para continuar a falar de Pia. A dor atingiu-o com toda a sua força e crueldade, por isso mudou de assunto. Patrik percebeu, e passaram o resto da viagem até Gotemburgo a falar de desporto.

 

Erica hesitou antes de tocar à campainha. Era sempre uma delicada questão de equilíbrio, o modo de abordar a conversa com os familiares da vítima, mas a mãe de Minna pareceu-lhe amigável e tranquila ao telefone. Nenhum sinal daquele tom amargo e cético tão habitual quando contactava os familiares para reunir documentação para os seus livros. Além disso, daquela vez não se tratava de um caso encerrado há muito, mas de uma investigação em curso.

 

Tocou à campainha. Não tardaram a ouvir-se passos do outro lado da porta, que alguém entreabriu logo em seguida.

 

– Olá – disse Erica, algo insegura. – Anette?

 

– Toda a gente me trata por Nettan – disse a mulher, que se afastou para um lado e a convidou a entrar.

 

Era triste. Foi o primeiro pensamento de Erica quando entrou no vestíbulo. Tanto a mulher como o apartamento pareciam tristes, o que certamente não se devia apenas ao desaparecimento de Minna. A mulher que estava diante dela parecia ter perdido a esperança há muito, humilhada pelas deceções que a vida lhe trouxera.

 

– Entre – disse Nettan, avançando para a sala de estar.

 

Por toda a parte se viam objetos que simplesmente ali tinham ido parar e ali tinham ficado. Nettan olhou nervosamente para um monte de roupa que estava em cima do sofá e pô-lo no chão.

 

– Estava... a fazer umas arrumações.... – começou a dizer, mas depois deixou a frase por terminar.

 

Erica observou a mãe de Minna à socapa e sentou-se na beira do sofá. Nettan era quase dez anos mais nova do que ela, mas parecia ter pelo menos a mesma idade. Tinha a pele enrugada, quase de certeza de tanto fumar, e os cabelos quebradiços e sem brilho.

 

– Estava a pensar... – Nettan aconchegou-se ainda mais no casaco de lã cheio de borboto, como que a ganhar coragem para pedir alguma coisa. – Desculpe, estou um bocado nervosa. Raramente vêm cá pessoas famosas. Bem, na verdade nunca veio nenhuma.

 

Nettan deu uma risada seca e, por um momento, Erica viu como devia ter sido quando era mais nova, quando ainda tinha vontade de viver.

 

– Bem, que estranho que isso me soa – disse Erica, fazendo uma careta. Não gostava nada que se referissem a ela como uma pessoa famosa. Era um estatuto com o qual não se identificava minimamente.

 

– Pois, mas a Erica é famosa. Vi-a na televisão. Mas estava mais maquilhada. – Nettan observou discretamente o rosto da escritora, sem qualquer vestígio de maquilhagem.

 

– Sim, põem-nos uma data de cosméticos quando vamos aparecer na televisão. Mas tem mesmo de ser, porque aqueles focos dão-nos um aspeto horrível. Normalmente nunca me maquilho. – Erica sorriu e apercebeu-se de que Nettan começava a descontrair-se.

 

– Pois, eu também não – comentou Nettan, e Erica achou comovente que referisse algo tão evidente. – O que eu queria perguntar-lhe era... porque é que quer falar comigo? A Polícia já me interrogou várias vezes.

 

Erica refletiu por alguns segundos. Para ser franca, não tinha nenhuma explicação razoável. A curiosidade era o motivo que mais se aproximava da verdade, mas claro que não podia dizer isso abertamente a Nettan.

 

– Colaborei com a Polícia local em ocasiões anteriores e agora que andam com poucos recursos, estou outra vez a ajudá-los. Depois do que aconteceu à rapariga que tinha desaparecido em Fjällbacka, precisam de todo o apoio que lhes possam dar.

 

– Ah, sim, isso é estranho, porque... – Nettan deixou novamente a frase inacabada, mas Erica não ligou. Queria começar a fazer perguntas sobre Minna quanto antes.

 

– Fale-me do dia em que a sua filha desapareceu. – Nettan fechou um pouco mais o casaco. Olhou para o joelho e, quando começou a falar, fê-lo tão baixo que Erica mal a conseguia ouvir.

 

– No princípio não percebi que a minha filha tinha desaparecido. Ou seja, não verdadeiramente. A Minna entrava e saía quando lhe apetecia. Nunca consegui controlá-la. Sempre teve uma personalidade muito forte e eu não... – Nettan ergueu os olhos e fitou a janela. – Às vezes ficava uns dias em casa de uma amiga. Ou de algum rapaz.

 

– Algum em especial? Tinha namorado? – interrompeu Erica.

 

Nettan abanou a cabeça.

 

– Que eu saiba, não. Havia vários rapazes, mas não acho que namorasse nenhum em particular. É verdade que nas últimas semanas parecia mais feliz e isso deu-me que pensar. Mas perguntei a várias amigas dela e nenhuma ouvira falar de um namorado. Era um grupo muito unido e, se houvesse alguém, certamente teriam conhecimento.

 

– Então porque lhe parece que a Minna estava mais feliz?

 

Nettan encolheu os ombros.

 

– Não sei. Mas lembro-me de como eu era na adolescência. Aquelas mudanças de humor tão repentinas. Também podia ser por causa de Johan se ter ido embora.

 

– Johan?

 

– Sim, o meu namorado. Morou cá em casa durante um tempo, mas a Minna e o Johan não se davam bem.

 

– Quando é que o Johan se foi embora?

 

– Não sei. Cerca de seis meses antes de a Minna desaparecer.

 

– A Polícia falou com ele?

 

Nettan voltou a encolher os ombros.

 

– Acho que falaram com vários dos meus ex-namorados. Às vezes eu tinha umas relações um bocado conflituosas...

 

– Algum teve alguma atitude ameaçadora ou violenta em relação à Minna? – Erica engoliu a raiva que começava a bulir-lhe por dentro. Sabia muito bem como podiam reagir as vítimas de violência doméstica. E, depois do que Lucas tinha feito a Anna, sabia perfeitamente como o medo se apoderava da sua vontade. Mas como é que alguém podia permitir que os filhos passassem por uma coisa daquelas? Como é que o instinto maternal podia enfraquecer a ponto de permitir que outra pessoa provocasse danos psíquicos ou físicos ao nosso próprio filho? Não tinha explicação. Por um momento, Erica pensou em Louise, sozinha e acorrentada na cave da família Kowalski. Era o mesmo, ou muito pior.

 

– Sim, bem, uma ou outra vez. Mas Johan nunca lhe bateu, apenas discutiam aos gritos por dá cá aquela palha. Por isso, julgo que quando o Johan se foi embora, a Minna ficou aliviada. Um dia, o Johan fez a mala e saiu de casa sem mais nem menos. Nunca mais ouvimos falar dele.

 

– Quando é que se apercebeu de que a Minna não estava em casa de uma amiga?

 

– Nunca tinha estado fora de casa mais do que um dia ou dois, no máximo. Por isso, depois de dois dias sem ela atender o telemóvel, comecei a telefonar às amigas. Ninguém sabia nada dela há três dias e depois...

 

Erica mordeu a língua. Como era possível que tivesse demorado três dias a reagir sem ter notícias de uma rapariga de catorze anos? Erica estava decidida a exercer um controlo férreo sobre os filhos quando chegassem à adolescência. Nunca os deixaria sair sem saber para onde iam e com quem.

 

– A princípio, a Polícia não me levou a sério – prosseguiu Nettan. – Conheciam a Minna, a minha filha tinha tido... alguns problemas; por isso, nem sequer queriam tomar conta da ocorrência.

 

– Quando é que se aperceberam de que devia ter acontecido alguma coisa?

 

– Passadas mais vinte e quatro horas. Depois encontraram a tal senhora que disse que tinha visto a Minna entrar num carro. Com o precedente das outras raparigas desaparecidas, deviam ter relacionado os factos mais cedo. O meu irmão diz que eu devia fazer queixa deles. Diz que se fosse uma menina rica como as outras, tinham dado logo o alerta. Mas não dão ouvidos a pessoas como nós. Não me parece justo. – Nettan baixou os olhos e começou a tirar borbotos do casaco.

 

Erica engoliu o que estava a pensar. Era interessante ouvir Nettan chamar ricas às outras raparigas. Na verdade, pertenciam mais à classe média, mas as diferenças de classe eram relativas. Ela própria tinha aparecido ali com um punhado de preconceitos, que se tinham acentuado assim que entrou no apartamento. Mas que direito tinha de censurar Nettan? Nem sequer fazia a mais pequena ideia do que a mulher já passara na vida.

 

– Sim, claro que lhe deviam ter dado ouvidos – disse Erica e, num impulso, deu a mão a Nettan.

 

A mãe de Minna sobressaltou-se como se se tivesse queimado, mas não retirou a mão. E as lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces.

 

– Fiz tantos disparates... Eu... eu... E agora pode ser tarde de mais. – Nettan começou a falar com voz ofegante e ficou com os olhos cada vez mais cheios de lágrimas.

 

Era como se tivessem aberto uma torneira e Erica calculou que Nettan devia estar a conter o pranto há muito tempo. Naquele momento, chorou não só pela filha que tinha desaparecido e que, com toda a probabilidade, jamais voltaria, mas também por causa de todas as decisões erradas que tomara e que tinham empurrado a filha para uma vida muito diferente da que sem dúvida sonhara para ela.

 

– Só queria que fôssemos uma família completa. Que a Minna e eu tivéssemos alguém que cuidasse de nós. Nunca ninguém se preocupou connosco. – Nettan tremia entre soluços e Erica aproximou-se um pouco mais dela, abraçou-a e deixou-a chorar no seu ombro. Acariciou-lhe o cabelo e acalmou-a como costumava fazer com Maja e com os gémeos quando os filhos precisavam de conforto. Perguntou a si própria se alguma vez alguém tinha confortado Nettan. Que talvez também nunca tivesse confortado Minna daquela forma. Uma triste sequência de deceções numa vida que não correra como devia ter corrido.

 

– Quer ver fotos? – perguntou repentinamente Nettan, libertando-se do abraço de Erica. Limpou as lágrimas à manga do casaco e olhou-a com expectativa.

 

– Sim, claro.

 

Nettan levantou-se e, passado um momento, regressou com alguns álbuns que estavam numa estante periclitante da Ikea.

 

O primeiro álbum, de quando Minna era pequena, continha fotografias de uma jovem e sorridente Nettan com a filha nos braços.

 

– Estava tão contente! – disse Erica sem conseguir conter-se.

 

– Sim, foram tempos maravilhosos. Os melhores. Eu só tinha dezassete anos quando a tive, mas era imensamente feliz. – Nettan passou o dedo ao longo de uma das fotografias. – Mas estas roupas às pintas, valha-me Deus... – Riu-se e Erica assentiu com um sorriso. A moda dos anos oitenta era horrível, mas a dos anos noventa não foi muito melhor.

 

Continuavam a folhear os álbuns e os anos iam-lhes passando pelas mãos. Minna era uma rapariga bonita, mas à medida que crescia, mais carregado se lhe ia tornando o semblante e mais se lhe ia apagando o brilho dos olhos. Erica apercebeu-se de que Nettan também tinha reparado.

 

– Eu pensava que estava a fazer tudo o que estava ao meu alcance – disse suavemente. – Mas não era verdade. Não devia ter... – Nettan cravou os olhos num dos homens que aparecia nos álbuns. Eram bastantes, constatou Erica para si mesma. Homens que entravam nas vidas de Nettan e de Minna, que provocavam mais deceções e voltavam a desaparecer.

 

– Este é o Johan, claro. O nosso último verão juntos. – Nettan apontou para outra fotografia onde reinava uma atmosfera estival. Um homem alto de cabelo louro rodeava-lhe os ombros com o braço num terraço. Por detrás do casal havia uma casa de campo vermelha com janelas pintadas de branco e rodeada de folhagem verdejante. A única coisa que estragava o idílio era Minna, completamente entediada. Sentada ao lado do casal, a rapariga observava a mãe e Johan com ar furioso.

 

Nettan fechou o álbum de repente.

 

– Só quero que a Minna volte para casa. Faria tudo de forma muito diferente. Tudo.

 

Erica permaneceu calada. Ficaram sem saber o que dizer durante algum tempo. Porém, não era um silêncio incómodo, antes pacífico e seguro. De repente, uma batida na porta fê-las sobressaltarem-se. Nettan levantou-se para ir abrir.

 

Ao ver quem entrava no vestíbulo, Erica ficou atordoada.

 

– Olá, Patrik – disse com um sorriso apatetado.

 

Paula entrou na cozinha da esquadra e, tal como imaginara, lá estava Gösta. Ao vê-la, o rosto do velho agente iluminou-se.

 

– Caramba, tu por aqui, Paula! Olá!

 

Paula sorriu ao colega, satisfeita. Annika também ficou felicíssima ao vê-la e saiu apressadamente da receção para lhe dar um abraço e fazer-lhe mil perguntas sobre a pequena Lisa.

 

Gösta aproximou-se de Paula, abraçou-a com mais moderação do que Annika e depois afastou-se um pouco. Perscrutou-a com o olhar.

 

– Estás branca como a cal e parece que há semanas que não dormes.

 

– Obrigada, Gösta, sabes mesmo pôr uma pessoa bem-disposta – disse Paula em tom de brincadeira, mas depois viu como o colega estava sério. – Sim, foram uns meses muito duros. Ser mãe não são só maravilhas – acrescentou.

 

– Sim, disseram-me que essa bebé te está a dar muito que fazer, portanto, espero que isto seja apenas uma visita de cortesia, que não tenhas vindo cá a pensar em trabalho.

 

Gösta conduziu Paula com suavidade, embora com firmeza, à cadeira ao lado da janela.

 

– Senta-te. Sai já um café. – Gösta encheu uma chávena e pousou-a na mesa. Depois serviu outra para si e sentou-se à frente de Paula.

 

– Bem, digamos que vim pelos dois motivos – afirmou Paula, bebendo um gole de café. Achava estranho ver-se fora de casa sozinha, sem os filhos, mas também era muito agradável sentir-se novamente a mesma pessoa de sempre.

 

Gösta franziu a testa.

 

– Temos feito o possível.

 

– Já sei. Mas, há pouco, Bertil disse uma coisa que me lembrou outra. Ou melhor, fez-me sentir que há algo de que devia lembrar-me.

 

– Como assim?

 

– Então, o Bertil falou-me dos resultados da autópsia. E aquela história da língua dizia-me qualquer coisa. Não sei onde é que vi aquilo, por isso pensei escavar um bocado nos arquivos para ver se refresco a memória. Já não tenho a mesma cabeça que tinha, infelizmente. Parece que aquilo de se ficar com o cérebro cheio de serradura quando se amamenta não é um mito. Quase nem consigo controlar o comando da televisão.

 

– Sim, bem sei como isso das hormonas funciona. Lembro-me quando Maj-Britt... – Gösta calou-se, virou a cara e começou a olhar pela janela. Paula sabia que o colega estava a pensar no filho que ele e a mulher tinham tido e perdido muito pouco tempo depois de nascer, e Gösta sabia que Paula sabia e que lhe estava a dar uns instantes para recordar em silêncio.

 

– E não fazes ideia do que possa ser? – acabou por perguntar Gösta, voltando a olhar para Paula.

 

– Bem, lamento, mas não – suspirou a agente. – Seria um pouco mais fácil se ao menos soubesse por onde começar. O arquivo não é propriamente pequeno.

 

– Pois não. Realmente, vasculhá-lo sem um plano é obra – disse Gösta.

 

Paula fez uma careta.

 

– Eu sei. Portanto, mais vale começar o mais depressa possível.

 

– De certeza que não devias estar em casa a descansar e a cuidar da Lisa? – Gösta continuava com uma expressão preocupada.

 

– Acredites ou não, isto é mais relaxante do que estar em casa. E é ótimo poder despir o pijama um dia que seja. Obrigada pelo café!

 

Paula levantou-se. Hoje em dia, quase tudo era arquivado informaticamente, mas todo o material das investigações antigas era conservado em papel. Se tivessem recursos para o fazer, poderiam ter digitalizado tudo para que coubesse num único disco rígido, em vez de ocupar uma divisão inteira da cave. Mas não dispunham desses recursos e a questão era se alguma vez disporiam.

 

Paula desceu as escadas, abriu a porta e deixou-se ficar por um momento na soleira. «Meu Deus, tantos documentos!» Havia ainda mais do que se lembrava. As investigações eram arquivadas por anos e, de modo a seguir o que mais se aproximava de uma estratégia, decidiu começar pelos mais antigos. Resoluta, retirou a primeira caixa e sentou-se com ela no chão.

 

Uma hora mais tarde, só ia a meio da caixa e percebeu que o projeto podia acabar por revelar-se tão lento como infrutífero. Não só não tinha a certeza do que procurava como também não sabia se o que quer que fosse estava naquela divisão. Porém, desde que começara a trabalhar na esquadra, Paula passara um tempo considerável a consultar material antigo e documentação de arquivo. Por um lado, porque lhe interessava, por outro, para ficar a par do historial de criminalidade na região. Por isso, o mais lógico era que o que estava a tentar recordar estivesse ali.

 

Uns leves toques na porta arrancaram-na às suas cogitações. Mellberg enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

 

– Como vai isso? A Rita acabou de me ligar, queria saber como estavas e dizer-te que a Lisa está perfeitamente bem.

 

– Ótimo, eu também estou muito bem, obrigada. Mas acho que não era bem isso que o Bertil queria saber...

 

– Pois, bem...

 

– Desculpe, não fiz grandes progressos e continuo sem conseguir lembrar-me do que tenho de procurar. Pode não ser mais do que este meu pobre cérebro esgotado a pregar-me partidas. – Tomada pela frustração, Paula fez rapidamente um rabo-de-cavalo com um elástico que tinha no pulso.

 

– Não, não, não comeces a duvidar agora – disse Mellberg. – Tens muita intuição e há que confiar nesse palpite inicial.

 

Paula olhou para o superintendente com ar perplexo. Bertil a manifestar o seu apoio e a incentivá-la com frases positivas. Era melhor ir a correr comprar uma cautela de lotaria.

 

– Sim, se calhar tem razão – disse Paula ao mesmo tempo que ordenava os documentos da pasta que tinha diante de si. – Alguma coisa há de ser, vou continuar a tentar mais um bocado.

 

– Todas as sugestões são bem-vindas. Por enquanto não temos nada. O Patrik e o Martin foram a Gotemburgo falar com um tipo que vai adivinhar quem é o raptor olhando para uma espécie de bola de cristal mental. – Mellberg adotou uma expressão de superioridade e prosseguiu com afetação: – Na minha opinião, o assassino tem entre vinte e setenta anos, pode ser homem ou mulher e viver num apartamento ou, porque não, numa vivenda. Fez uma ou mais viagens ao estrangeiro ao longo da sua vida, costuma fazer compras no ICA ou no Konsum10, comer tacos à sexta-feira e não perde um episódio de Dança com as Estrelas. Nem o Allsång, o festival de música de verão em Estocolmo.

 

Paula não conseguiu conter uma gargalhada ao ouvir aquela ladainha.

 

– O Bertil é o modelo do homem sem preconceitos. Mas não concordo consigo. Acredito que possa dar-nos alguma coisa, sobretudo tendo em conta as particularidades deste caso.

 

– Bem, bem, depois vemos quem tem razão. Continua a procurar. Mas vê lá, não fiques esgotada, senão a tua mãe mata-me.

 

– Prometo-lhe – declarou Paula com um sorriso. E recomeçou a rebuscar e a consultar os processos antigos.

 

Patrik fumegava de indignação. A surpresa que tivera ao ver a mulher na sala de estar da mãe de Minna transformou-se em raiva num abrir e fechar de olhos. Erica tinha a irritante tendência para se meter em assuntos que não lhe diziam respeito e já tinha estado a ponto de estragar tudo. Mas não podia descair-se diante de Nettan, pelo que teve de fazer cara alegre durante a conversa, enquanto, ao lado, Erica ouvia com os olhos muito abertos e um sorriso de Mona Lisa.

 

Quando saíram do prédio e Nettan já não os podia ouvir, Patrik explodiu:

 

– Que raio pensas que estás a fazer? – Era raro Patrik perder a calma e a cabeça começou a doer-lhe mal pronunciou a primeira sílaba.

 

– Pensava que... – começou a dizer Erica, tentando acompanhar as passadas de Patrik e de Martin a caminho do parque de estacionamento. Martin ia muito calado e com cara de querer estar em qualquer outro lado menos ali.

 

– Não, bolas! Não posso acreditar que estivesses a pensar! – Patrik tossiu um pouco. Tinha acelerado tanto e respirava tão depressa que o ar gelado encheu-lhe os pulmões.

 

– Vocês não têm tempo para fazer tudo sozinhos, com a vossa falta de recursos, por isso pensei que... – disse Erica, fazendo nova tentativa.

 

– Ao menos podias ter-me dito, não? Claro que nunca teria permitido que viesses falar com familiares envolvidos numa investigação e suponho que não me disseste precisamente por causa disso.

 

Erica assentiu.

 

– Sim, mais ou menos. Também foi porque precisava de afastar-me do livro. Estou num impasse e pensei que, se me concentrasse noutra coisa, talvez...

 

– Como se este caso fosse uma espécie de terapia ocupacional! – Patrik gritava tão alto que os pássaros pousados no cimo de um poste telefónico levantaram voo, aterrados. – Se estás num impasse com o livro, arranja outra maneira de resolver o problema sem meteres o nariz numa investigação em curso. Será que enlouqueceste, mulher?

 

– Então, agora falas como o teu avô, é? – Erica tentou levar a reação do marido com bom humor, mas tudo o que conseguiu foi que Patrik ficasse ainda mais irritado.

 

– É ridículo, caramba! Parece uma daquelas histórias de detetives inglesas de terceira categoria em que uma idosa curiosa anda de um lado para o outro a interrogar toda a gente.

 

– Sim, mas para escrever um livro, faço o mesmo que vocês fazem, falo com as pessoas, verifico os factos, preencho as lacunas que há nas investigações, leio depoimentos de testemunhas...

 

– Sim, claro e és uma excelente escritora, mas isto é uma investigação policial que, como o nome sugere, deve ser conduzida por polícias.

 

Tinham chegado ao carro. Martin estava do lado do passageiro, indeciso e sem saber como agir ao ver-se involuntariamente apanhado em plena linha de fogo.

 

– Mas tens de admitir que já vos ajudei noutras ocasiões – disse Erica.

 

– Sim, claro – reconheceu Patrik com relutância. Erica não só ajudara como tinha contribuído ativamente para solucionar vários dos casos de homicídio que tinham passado pela esquadra de Tanumshede, mas Patrik não tencionava reconhecer isso.

 

– Já vão para casa? É uma viagem muito grande só para conversar um pouco com Nettan, não é?

 

– Bem, foi o que tu fizeste, não foi? Vir cá só para conversar com ela.

 

– Touché. – Erica sorriu e Patrik sentiu que a irritação começava a esmorecer. Não conseguia estar zangado com a mulher durante muito tempo e, infelizmente, Erica sabia-o perfeitamente.

 

– Mas eu não tenho de poupar recursos – prosseguiu Erica. – Que mais vos trouxe a Gotemburgo?

 

Patrik praguejou para dentro. Às vezes, Erica era mais inteligente do que lhe convinha. Olhou para Martin em busca de apoio, mas o colega limitou-se a abanar a cabeça. «Cobarde de um raio», pensou Patrik.

 

– Vamos falar com uma pessoa.

 

– Com uma pessoa? Que pessoa? – perguntou Erica, e Patrik apertou os lábios. Tinha plena consciência de como Erica era teimosa e a que extremos podia chegar a sua curiosidade. Era uma combinação que podia ser incrivelmente insuportável.

 

– Vamos falar com um especialista – disse Patrik. – É verdade, quem é que vai buscar os miúdos? A minha mãe? – perguntou depois numa tentativa de desviar a conversa.

 

– Sim, a Kristina e o namorado – respondeu Erica, fazendo a mesma cara de um gato que acaba de engolir um canário.

 

– A minha mãe e quem? – Patrik sentia que estava prestes a ter uma enxaqueca. Aquele dia estava a ir de mal a pior.

 

– Claro que deve ser uma pessoa adorável. Bem, mas diz-me lá com que género de especialista é que vão encontrar-se?

 

Patrik apoiou-se no carro, exausto. E rendeu-se.

 

– Vamos encontrar-nos com um especialista em perfis de criminosos.

 

– Um especialista em comportamento criminal? – Os olhos de Erica brilharam.

 

Patrik soltou um suspiro.

 

– Bem, não sei, julgo que não é bem isso.

 

– Muito bem, então vou atrás de vocês – disse Erica, voltando-se para o carro.

 

– O quê? Não, espera lá...! – gritou Patrik, falando para as costas da mulher, que não lhe ligava nenhuma, mas Martin interrompeu-o.

 

– Mais vale desistires; não tens a mais pequena hipótese. Deixa-a ir connosco. É verdade que tem sido uma grande ajuda em outras ocasiões, além disso, desta vez nós estamos presentes e podemos controlar a situação. Três pares de olhos são melhores do que dois.

 

– Okay, Okay, mas seja como for... – murmurou Patrik.

 

Entrou no carro e sentou-se ao volante.

 

– Ainda por cima não sacámos nada de interesse à mãe da Minna.

 

– Pois não, mas pode ser que tenhamos sorte e que Erica tenha conseguido algumas informações – disse Martin.

 

Patrik lançou-lhe um olhar assassino. Depois arrancou e o carro afastou-se a derrapar.

 

– Com que roupa a vamos enterrar?

 

A pergunta da mãe foi como uma machadada no coração de Ricky. Pensava que não podia sentir mais dor, mas a ideia de mergulhar Victoria numa escuridão eterna era tão dolorosa que lhe deu vontade de gritar.

 

– Sim, temos de pensar nisso, mas deve haver alguma coisa bonita que lhe possamos vestir, não é? – perguntou Markus. – Talvez aquele vestido vermelho que a Victoria adorava.

 

– Esse vestido é de quando ela tinha dez anos – explicou Ricky. Apesar da dor, não pôde deixar de sorrir perante a proverbial distração do pai.

 

– A sério? É assim tão antigo? – Markus ergueu-se e começou a levantar os pratos, mas de repente parou e voltou a sentar-se à mesa. Passava-se o mesmo com todos, tentavam realizar as tarefas quotidianas, mas logo se apercebiam de que lhes faltava energia. Que lhes faltava força. E agora tinham de tomar uma data de decisões acerca da cerimónia fúnebre e do enterro, mas eram incapazes sequer de pensar no que iam comer ao pequeno-almoço.

 

– O preto. O de Filippa K – disse Ricky.

 

– Qual é esse? – perguntou Helena.

 

– É aquele que tu e o pai achavam sempre demasiado curto. A Victoria adorava-o. E não é verdade que lhe desse um aspeto vulgar. Ficava-lhe muito bem. Maravilhosamente.

 

– A sério? – perguntou Markus. – Preto... Não é um bocado deprimente?

 

– Não, era mesmo esse que devia levar – insistiu Ricky. – A Victoria ficava lindíssima com esse vestido. Não se lembram? Passou seis meses a poupar dinheiro para o comprar.

 

– Tens razão. Sim, é esse que tem de levar. – Helena olhou para o filho com ar suplicante. – E a música? Que música escolhemos? Nem sequer sei do que ela gostava... – Helena desatou a chorar e Markus acariciou-lhe desajeitadamente o braço.

 

– Vamos pôr Some Die Young, de Laleh11, e também Beneath Your Beautiful, de Labrinth12. Eram duas das músicas preferidas de Victoria. E são muito apropriadas.

 

Consumia-o ter de lidar com tudo aquilo e as lágrimas provocavam-lhe um nó na garganta. Aquelas lágrimas que estavam sempre a querer libertar-se.

 

– E para comer no velório? – Outra pergunta atirada para o ar de repente. A mãe mexia nervosamente as mãos sobre a mesa. Os dedos eram finos e pálidos.

 

– Bolo sanduíche. A Victoria gostava dos pratos tradicionais. Não se lembram de que era o prato preferido dela?

 

A voz quebrou-se-lhe e sabia que tinha sido injusto: claro que se lembravam de muita coisa, de muito mais do que ele. E as memórias dos pais recuavam bastante mais no tempo. Eram certamente tantas que nem sequer conseguiam classificá-las. Ricky teria de dar o seu melhor para os ajudar.

 

– E refresco de Natal. A Victoria conseguia beber litros e litros de refresco de Natal. Não acredito que já não se venda! Não é possível, pois não? – tentou lembrar-se se tinha visto recentemente a bebida nas prateleiras dos supermercados e quase teve um ataque quando constatou que não lhe vinha à mente a imagem do refresco de Natal. De repente pareceu-lhe a coisa mais importante do mundo: encontrar refresco de Natal para o velório.

 

– Tenho a certeza de que ainda se vende. – O pai tranquilizou-o, pondo-lhe a mão no ombro. – É uma ótima ideia. Tudo o que propuseste é excelente. Vamos pôr-lhe o vestido preto. De certeza que a mãe sabe onde está e pode passá-lo a ferro. E vamos pedir à tia Anneli para fazer alguns bolos sanduíche. Saem-lhe sempre muito bem e a Victoria gostava muito. Lembram-se de que até tínhamos pensado encarregar a Anneli da festa de fim de curso deste verão... – dito isto, o pai pareceu perder um pouco o fio à meada. – Enfim, claro que ainda vendem refresco de Natal. Vamos fazer isso, vai correr muitíssimo bem. Tudo vai correr muitíssimo bem.

 

«Não, nada vai correr bem» foi o que Ricky teve vontade de gritar. Estavam a dizer que iam enfiar a irmã num caixão e depois enterrá-la. Nunca mais nada ficaria bem.

 

No mais fundo do seu ser, aquele segredo não parava de o atormentar. Tinha a sensação de que era quase impossível não notarem que escondia alguma coisa, mas os pais não pareciam reparar. Passavam o tempo sentados naquela cozinha com as típicas cortinas estampadas com mirtilos de que a mãe tanto gostava e que Victoria e ele queriam que trocasse.

 

Será que as coisas iam mudar quando despertassem do seu torpor? Será que nessa altura compreenderiam tudo? Ricky sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria de falar com a Polícia. Mas será que os pais suportariam a verdade?

 

 

Às vezes, Marta sentia-se como a governanta do filme Annie. Raparigas e mais raparigas por todo o lado.

 

– A Liv montou Blackie três vezes seguidas! – Ida aproximava-se dela pelo pátio com as faces muito coradas. – Agora devia ser a minha vez.

 

Suspirou. Sempre as mesmas disputas. A hierarquia nas cavalariças era muito rígida e Marta via, ouvia e pressentia as brigas muito mais do que as raparigas pensavam. Normalmente, agradavam-lhe os jogos de poder entre elas, achava-os interessantes. Mas naquele dia não estava com forças para os suportar.

 

– Resolvam o assunto. Não me chateiem com esses disparates!

 

Viu Ida recuar, horrorizada. As raparigas sabiam que Marta era severa, mas não costumava explodir daquela maneira.

 

– Desculpa – disse rapidamente Marta, embora não estivesse verdadeiramente arrependida. Ida estava sempre a protestar e era uma mimada. Devia aprender a comportar-se, mas Marta tinha de ser prática. Dependiam das mensalidades que as raparigas pagavam na escola de equitação, nunca poderiam viver apenas do que Jonas ganhava como veterinário e as raparigas, mais do que os pais delas, eram as suas clientes. Por isso, não tinha outro remédio que não fosse dar-lhes graxa.

 

– Desculpa, Ida – repetiu. – Estou chocada com o que aconteceu à Victoria, espero que compreendas. – Marta fez das tripas coração e sorriu a Ida, que logo se acalmou.

 

– Claro que compreendo. É horrível. A Victoria ter morrido e tudo isso.

 

– Bem, acho que podemos falar com a Liv para que hoje sejas tu a montar Blackie. A menos que prefiras montar Scirocco, claro.

 

Um olhar de alegria acendeu-se no rosto de Ida.

 

– A sério? Não vai ser montado pela Molly?

 

– Hoje não – disse Marta, cuja expressão se ensombrou só de pensar na filha, que estava em casa a chorar por causa de uma competição em que não participaria.

 

– Bem, então prefiro Scirocco. Assim, hoje, a Liv também pode montar Blackie – disse Ida num ataque de generosidade.

 

– Excelente. Então está resolvido. – Marta rodeou-lhe os ombros com o braço e entraram juntas no estábulo. O cheiro a cavalo atingiu-a. Era um dos poucos sítios no mundo onde se sentia em casa, onde se sentia plenamente realizada. Apenas Victoria gostava tanto daquele cheiro como ela. Cada vez que entrava nas cavalariças aflorava-lhe aos olhos a mesma expressão de felicidade que Marta sabia que se podia agora ver nos seus. Ficou surpreendida ao constatar que tinha saudades de Victoria. E essa nostalgia abateu-se sobre ela com uma força tão inesperada que a deixou atordoada. Deixou-se ficar no corredor e ouviu ao longe a voz de Ida a dizer triunfantemente a Liv que estava a escovar Blackie na estrebaria:

 

– Hoje também podes montá-lo. A Marta disse-me que eu vou montar Scirocco – era óbvia a satisfação de poder gabar-se daquilo à outra rapariga.

 

Marta fechou os olhos e recordou Victoria. O cabelo preto que lhe revolteava em torno do rosto quando cruzava a pista a toda a velocidade. Como conseguia, com uma firmeza suave, que todos os cavalos obedecessem ao seu mais leve movimento. Marta tinha o mesmo poder inexplicável sobre aqueles animais, mas havia uma grande diferença. Os cavalos obedeciam a Marta porque a respeitavam, mas também porque a temiam. A Victoria, os animais obedeciam pela suavidade com que os tratava e pela determinação. Esse contraste sempre fascinou Marta.

 

– Porque é que ela pode montar Scirocco e eu não?

 

Marta olhou para Liv, que de repente se materializou à sua frente, de braços cruzados.

 

– Porque tu não pareces estar muito disposta a deixar que as outras montem Blackie. Por isso vais montá-lo também hoje. Tal como querias. Todas felizes!

 

Sentiu que estava prestes a perder novamente a calma. O trabalho seria muito mais fácil se apenas tivesse de lidar com cavalos.

 

Além disso, para discussões já lhe bastava a sua fedelha. Jonas detestava que ela tratasse Molly assim, mesmo quando fingia que estava apenas a brincar com a filha. Não conseguia perceber como é que Jonas podia ser tão cego. Molly começava a tornar-se um ser insuportável, mas Jonas recusava-se a dar-lhe ouvidos e Marta não podia fazer nada.

 

Desde que se viram pela primeira vez, Marta soube que Jonas era a peça que faltava no puzzle da sua vida. Após terem trocado apenas um olhar, sabiam que tinham sido feitos um para o outro. Cada um tinha-se revisto no outro e continuavam a ver-se refletidos, isso nunca mudaria. A única coisa que se interpunha entre os dois era Molly.

 

Jonas ameaçara deixá-la se Marta não aceitasse ter filhos, por isso acabou por ceder. Na verdade, Marta não acreditava que Jonas estivesse a falar a sério. Sabia tão bem como ela que, se se separassem, não encontrariam ninguém que os compreendesse tão bem. Mas não se atreveu a arriscar. Encontrara a sua alma gémea e, pela primeira vez na vida, curvou-se perante a vontade alheia.

 

Quando Molly nasceu, tudo aconteceu exatamente como Marta temera. Teve de partilhar Jonas com outra pessoa. Alguém que, no início, nem sequer possuía vontade ou identidade próprias e lhe roubava uma grande parte dela. Não tinha explicação.

 

Jonas amou Molly desde o primeiro momento, de um modo tão automático e incondicional que Marta quase não o reconheceu. E, a partir do nascimento de Molly, abriu-se uma brecha entre os dois.

 

Foi ajudar Ida com Scirocco. Sabia de antemão que Molly ficaria louca de raiva quando soubesse que ela deixara que outra rapariga o montasse, mas apesar da pequena cena que a filha faria, Marta sentia alguma satisfação ao pensar nisso. Certamente que Jonas também iria reclamar por causa disso, mas Marta sabia como fazer o marido pensar noutra coisa. A próxima competição era daí a uma semana; até lá, teria Jonas na palma da mão.

 

A tarefa que Paula tinha empreendido não era nada fácil. Gösta não podia deixar de se preocupar. A colega tinha muito má cara.

 

Revolvia os documentos sobre a mesa um pouco ao acaso. Era frustrante não saber exatamente como continuar a investigação. Todo o trabalho que tinham feito desde o desaparecimento de Victoria fora em vão e agora não lhes restavam muitas pistas. As declarações que Jonas prestara não lhes tinham trazido nada de novo. Gösta pedira-lhe intencionalmente que lhe voltasse a contar a história do assalto apenas para verificar se algum pormenor mudava em relação à queixa que fizera, mas o relato dos acontecimentos foi o mesmo que o descrito da primeira vez, sem desvios. Quando soube que tinha sido utilizada ketamina com Victoria, Jonas tivera uma reação natural e totalmente lógica. Gösta suspirou. Bem podia dedicar algum tempo a examinar as outras queixas que estavam há algum tempo a ganhar pó em cima da secretária.

 

A maioria eram coisas de pouca monta: o roubo de uma bicicleta, furtos, conflitos entre vizinhos com os disparates do costume e acusações fictícias de permeio. Mas algumas estavam há muito tempo por resolver e Gösta sentiu-se um pouco envergonhado.

 

Decidiu analisar a queixa que estava no fundo do maço de documentos e que, portanto, era a mais antiga. Uma suspeita de tentativa de assalto e invasão de propriedade. Mas será que aquilo podia mesmo ser considerado como tal? Uma mulher, Katarina Mattsson, tinha descoberto umas pegadas suspeitas no jardim, leu Gösta, e uma noite viu alguém no escuro a observar atentamente. Foi Annika quem tomou conta da ocorrência e, tanto quanto Gösta sabia, a mulher não telefonara novamente, por isso deduziu que não voltara a ter problemas. De qualquer forma, deviam acompanhar o caso, de modo que Gösta decidiu que telefonaria a Katarina Mattsson um pouco mais tarde.

 

Estava prestes a voltar a pousar a queixa em cima da mesa quando reparou na morada da autora e começou a matutar naquilo. Podia tratar-se de uma coincidência, mas quem sabe. Leu novamente o relatório com muito cuidado durante alguns minutos e tomou uma decisão.

 

Pouco tempo depois já estava no carro a caminho de Fjällbacka. A morada que procurava ficava num bairro a que chamavam «o Viveiro», mas ninguém sabia porquê. Virou para a rua tranquila com casas muito próximas umas das outras e com pequenos jardins. Não tinha tentado confirmar antes se Katarina estava em casa, resolveu simplesmente tentar a sorte, mas ao chegar ao local viu que havia luz nas janelas. Com grande expectativa, tocou à campainha. Se não estava enganado, talvez tivesse descoberto algo decisivo. Gösta olhou de relance para a casa à esquerda. Não se via nenhum membro daquela família e esperou que ninguém aparecesse precisamente naquele momento.

 

Ouviu passos a aproximar-se e, por fim, a porta foi aberta por uma mulher que parecia surpreendida. Gösta identificou-se de imediato e explicou-lhe o motivo da visita.

 

– Ah, sim, telefonei há tanto tempo a queixar-me disso que já quase me tinha esquecido. Entre, entre.

 

Katarina afastou-se para o deixar passar. Duas crianças com cerca de cinco anos enfiaram as cabeças pela porta entreaberta de uma divisão do rés do chão e Katarina apontou para elas antes de as apresentar.

 

– O meu filho, Adam, e o amigo, Julius.

 

Os rostos dos rapazes iluminaram-se ao vê-lo trajado de polícia. Gösta fez um sinal discreto e os rapazinhos aproximaram-se dele a correr e começaram a examiná-lo de cima a baixo.

 

– És um polícia a sério? Tens uma pistola? Já disparaste contra alguém? Tens as tuas algemas? E o rádio para falar com os outros polícias?

 

Gösta desatou a rir e ergueu ambas as mãos para que as duas crianças parassem.

 

– Calma, rapazes. Sim, sou um polícia a sério. E sim, tenho uma pistola, embora não ande com ela, e não, nunca disparei contra ninguém. Quais eram as outras perguntas? Ah, sim, tenho um rádio para pedir reforços, se vocês forem demasiado travessos. E tenho aqui as algemas. Se me deixarem falar primeiro com a mãe do Adam, depois mostro-vos como funcionam.

 

– A sério? Fixeee! – As crianças começaram a dançar de alegria e Katarina abanou a cabeça, divertida com a cena.

 

– Já lhes fez ganhar o dia. Diria mesmo que lhes fez ganhar o ano inteiro. Mas atenção, meninos, ouviram o que o Gösta disse. Vai deixar-vos ver as algemas e o rádio dele só se se portarem bem enquanto falamos, por isso continuem a ver o filme e, quando acabarmos de conversar, já vos chamamos.

 

– Está bem... – disseram os rapazinhos, que se afastaram pelo corredor, mas não sem antes lançarem a Gösta um olhar de admiração.

 

– Peço desculpa pelo ataque – disse a mulher, avançando para a cozinha.

 

– Não faz mal, até acho graça – afirmou Gösta, seguindo-a. – Temos de aproveitar enquanto são assim. Se calhar, daqui a dez anos estão a gritar-me «Polícia nojento!» se me virem na rua.

 

– Ai, não diga isso. Já sofro o suficiente ao pensar nas coisas maravilhosas que a adolescência vai trazer.

 

– Não me parece que tenha nenhum problema. A senhora e o seu marido vão conseguir fazer com que Adam seja bom rapaz. É verdade, tem mais filhos? – Gösta sentou-se à mesa de uma cozinha a precisar urgentemente de uma remodelação, embora fosse luminosa e agradável.

 

– Não, Adam é filho único. Mas nós estamos... Bem, nós separámo-nos quando Adam tinha um ano e o pai não se interessa muito por ele. Tem outra mulher, tem filhos e parece que o amor não chega para todos. Das poucas vezes que o convidam, Adam sente-se um empecilho.

 

Katarina ia falando de costas para Gösta, enquanto retirava colheradas de café de um frasco e as ia deitando na máquina de café. Depois virou-se e encolheu os ombros, como que a desculpar-se.

 

– Perdoe-me ter começado a desabafar assim, sem mais nem menos. Às vezes, a amargura transborda. Mas Adam e eu aguentamo-nos muito bem, e se o pai não quer saber do filho maravilhoso que tem, é ele quem fica a perder.

 

– Não tem nada que pedir desculpa – disse Gösta. – Acho que tem todos os motivos para se sentir dececionada.

 

«Há cada sacana», pensou Gösta. Como é que alguém era capaz de pôr um filho de lado para se dedicar exclusivamente a uma nova fornada? Observou Katarina a levar as chávenas para a mesa. Irradiava uma espécie de serenidade agradável e Gösta calculou que devia ter cerca de trinta e cinco anos. Lembrou-se de ver na queixa que era professora primária e pensou que devia ser boazinha e que os alunos deviam gostar muito dela.

 

– Já não esperava ter notícias vossas – disse, e sentou-se depois de servir o café e de abrir uma lata de biscoitos. – E acredite que não estou a queixar-me. Quando a Victoria desapareceu, percebi que era óbvio que tinham de concentrar-se no caso.

 

Estendeu a lata a Gösta, convidando-o a provar os biscoitos, e o velho agente decidiu-se por três bolachas de aveia. Depois das bolachas Ballerina, eram as suas preferidas.

 

– Sim, claro, tem ocupado a maior parte do nosso tempo, mas de qualquer maneira eu devia ter-me ocupado um pouco mais cedo da sua queixa, por isso, lamento muito que tenha tido de esperar tanto tempo.

 

– Bem, agora o Gösta já aqui está – disse Katarina, levando uma bolacha à boca.

 

Gösta sorriu-lhe, agradecido.

 

– Podia contar-me o que recorda do incidente e dizer-me porque é que decidiu fazer queixa?

 

– Bem... – Katarina tentou lembrar-se e franziu a testa. – A primeira coisa que me surpreendeu foram umas pegadas no jardim. Quando chove, transforma-se num lamaçal e no início do outono choveu muitíssimo. Vi aquelas pegadas várias manhãs seguidas. Eram grandes, por isso supus que pertenciam a um homem.

 

– E a seguir viu alguém lá fora, certo?

 

Katarina franziu novamente a testa.

 

– Sim, julgo que para aí duas semanas depois de ter visto as pegadas. Primeiro pensei se não seria o Mathias, o pai de Adam, mas na verdade não me pareceu muito plausível. Porque haveria de estar a espiar-nos daquela maneira quando afinal não quer ter qualquer contacto com o filho? Além disso, quem quer que fosse, fumava, e o Mathias não fuma. Não sei se lhe disse na altura, mas também encontrei pontas de cigarro no jardim.

 

– Sim, disse. Por acaso não guardou nenhuma? – perguntou Gösta, embora estivesse consciente de que não era provável.

 

Katarina fez uma careta de repulsa.

 

– Claro que não. Acho que consegui apanhá-las todas. Não queria que o Adam as encontrasse. Claro que me pode ter passado alguma, mas... – Katarina apontou para o jardim e Gösta compreendeu o que quis dizer. Uma espessa camada de neve cobria o terreno.

 

Gösta suspirou.

 

– Conseguiu ver como era essa pessoa?

 

– Não, lamento. Na verdade, o que vi foi mais a ponta do cigarro a arder. Já tínhamos ido deitar-nos, mas Adam acordou e queria água, por isso desci até à cozinha às escuras. E então vi a ponta do cigarro a arder no jardim. Alguém estava lá fora a fumar, mas apenas vi uma silhueta.

 

– De qualquer maneira acha que era um homem, certo?

 

– Sim, se era a mesma pessoa que deixou as pegadas. E, agora que penso nisso, parecia alguém muito alto.

 

– A Katarina fez alguma coisa? Deu de alguma forma a entender que o tinha visto, por exemplo?

 

– Não, a única coisa que fiz foi ligar-vos a fazer queixa. Realmente foi um bocado desagradável, embora não possa dizer que me tenha sentido ameaçada. Mas então deu-se o desaparecimento da Victoria e, francamente, não era fácil pensar noutra coisa. Depois disso, não voltei a ver mais nada.

 

– Sim... – Gösta amaldiçoou-se em silêncio por não se ter encarregado da queixa no próprio dia e por não a ter relacionado antes. Mas não valia a pena lamentar-se. Teria de tentar recuperar o tempo perdido. Levantou-se.

 

– Tem uma pá para remover a neve? Apesar de tudo, estava a pensar que podia ir lá fora tentar encontrar uma ponta de cigarro.

 

– Claro, a pá está na garagem e é toda sua. Já que vai dar-se a esse trabalho, também podia remover a neve da entrada.

 

Calçou os sapatos, vestiu o blusão e foi até à garagem. Estava limpa e arrumada, e Gösta viu a pá encostada à parede, junto à entrada.

 

No jardim, parou para refletir por um momento. Era absurdo trabalhar sem ser necessário, por isso tinha de escolher o sítio onde ia escavar antes de começar. Katarina abriu a porta que dava para o alpendre e Gösta perguntou-lhe:

 

– Onde recolheu as pontas de cigarro?

 

– Ali, à esquerda, junto à fachada.

 

Gösta assentiu e abriu caminho pela neve até ao local que Katarina lhe tinha assinalado. A neve era compacta e pesada, e Gösta sentiu como que uma chicotada nas costas da primeira vez que ergueu a pá cheia.

 

– Gösta, não era melhor ser eu a fazer isso? – perguntou Katarina, preocupada.

 

– Não, deixe, faz bem ao corpo trabalhar um bocado.

 

Viu que os rapazinhos o observavam da janela, cheios de curiosidade, e acenou-lhes antes de retomar o trabalho. De vez em quando parava para descansar e, passado algum tempo, já tinha destapado cerca de um metro quadrado. Agachou-se e inspecionou minuciosamente o solo, mas tudo que encontrou foi um pouco de barro congelado com alguma relva agarrada. De repente, Gösta focou a visão. Mesmo na borda do retângulo que tinha limpado, despontava algo amarelado. Cuidadosamente, limpou a neve em torno do objeto. Uma ponta de cigarro. Retirou-a cuidadosamente e levantou-se com as costas doridas. Ficou a olhar para a descoberta. Depois ergueu os olhos e, nesse momento, viu o que, com toda a certeza, a pessoa que tinha estado ali a fumar também vira. De facto, a partir daquele sítio do jardim de Katarina, via-se perfeitamente a casa de Victoria. E a sua janela no primeiro andar.

 

10 As duas principais cadeias de supermercados e hipermercados da Suécia. (N. do T.)

11 Cantora e compositora pop sueca nascida no Irão em 1982. (N. do T.)

12 Cantor pop britânico. (N. do T.)

 

UDDEVALLA, 1971

QUANDO SE APERCEBEU DE QUE ESTAVA OUTRA VEZ GRÁVIDA, INVADIRAM-NA MUITOS SENTIMENTOS CONTRADITÓRIOS. E SE NÃO TIVESSE CAPACIDADE DE SER MÃE? E SE FOSSE INCAPAZ DE SENTIR POR UM FILHO O AMOR QUE ERA ESPERADO QUE SENTISSE...?

MAS ESTAVA A PREOCUPAR-SE DESNECESSARIAMENTE. COM PETER FOI TUDO COMPLETAMENTE DIFERENTE. MARAVILHOSO E DIFERENTE. NUNCA SE CANSAVA DE OLHAR PARA O FILHO, NÃO SE FARTAVA DE INSPIRAR O SEU CHEIRO, DE LHE ACARICIAR AQUELA PELE MACIA COM AS PONTAS DOS DEDOS. QUANDO O TINHA NOS BRAÇOS, COMO NAQUELE MOMENTO, PETER OLHAVA-A NOS OLHOS COM TANTA CONFIANÇA QUE IMEDIATAMENTE SE LHE AQUECIA O CORAÇÃO. QUER DIZER QUE AMAR UM FILHO ERA ASSIM... NUNCA IMAGINOU QUE FOSSE POSSÍVEL SENTIR TANTO AMOR POR UMA PESSOA. MESMO O SEU AMOR POR VLADEK POUCO ERA EM COMPARAÇÃO COM O QUE SENTIA PERANTE A SIMPLES CONTEMPLAÇÃO DO FILHO RECÉM-NASCIDO.

POR OUTRO LADO, QUANDO VIA A FILHA, FORMAVA-SE-LHE UM NÓ NO ESTÔMAGO. AQUELES OLHOS, A SOMBRA ESCURA QUE LHE PERCORRIA O PENSAMENTO... OS CIÚMES DO IRMÃO TRANSFORMAVAM-SE EM BELISCÕES E GOLPES CONSTANTES, E O MEDO FAZIA COM QUE LAILA PASSASSE AS NOITES EM CLARO. ÀS VEZES SENTAVA-SE A VIGIAR PETER AO LADO DO BERÇO, SEM SE ATREVER A DESVIAR O OLHAR POR UM SEGUNDO.

VLADEK AFASTAVA-SE CADA VEZ MAIS DELA. E LAILA DELE. SEPARAVAM-NOS FORÇAS QUE JAMAIS PODERIAM TER PREVISTO. ÀS VEZES, EM SONHOS, LAILA CORRIA ATRÁS DELE, CADA VEZ MAIS DEPRESSA, MAS QUANTO MAIS CORRIA, MAIOR ERA A DISTÂNCIA. NO FINAL, APENAS O VISLUMBRAVA DE COSTAS, AO LONGE.

TAMBÉM DESAPARECERAM AS PALAVRAS. AS CONVERSAS NOTURNAS DEPOIS DO JANTAR, AS PEQUENAS PROVAS DE AMOR QUE ANTES LHES ILUMINAVAM O QUOTIDIANO. TINHA SIDO TUDO ENGOLIDO POR UM SILÊNCIO QUE APENAS ERA QUEBRADO PELO CHORO DOS FILHOS.

LAILA NÃO DEIXAVA DE CONTEMPLAR PETER E INUNDAVA-A UM INSTINTO PROTETOR QUE ANULAVA TUDO O RESTO. VLADEK NÃO PODIA SER TUDO PARA LAILA. SOBRETUDO AGORA QUE TINHA PETER.

 

O BARRACÃO ERA GRANDE e estava silencioso e frio. O vento arrastara um pouco de neve para o interior através das rachas na parede e misturara-a com o pó e a sujidade. Há muito que o celeiro estava vazio e a escada que a ele conduzia estava partida desde que Molly se conseguia lembrar. Além dos reboques para os cavalos, havia ali apenas veículos antigos e esquecidos. Uma ceifeira enferrujada, um trator Grålle que já não funcionava e, acima de tudo, um monte de carros.

 

Molly ouvia o som distante de vozes vindo das cavalariças, que ficavam um pouco mais à frente, mas nesse dia não tinha vontade de montar. Parecia absurdo, se não ia poder competir no dia seguinte... Certamente que algumas das outras raparigas estariam felicíssimas por poder montar o Scirocco.

 

Lentamente, Molly foi caminhando por entre aqueles carros antigos. O que restava da antiga empresa do avô. Passara a infância a ouvi-lo falar da empresa. Estava sempre a discorrer sobre todas as descobertas que tinha feito ao percorrer o país, dos carros que à partida não passavam de lixo que comprou por uma ninharia e depois restaurou e vendeu por muito mais. Mas desde que o avô adoeceu, o barracão tornara-se um cemitério de carros, cheio de veículos inacabados dos quais ninguém se tinha preocupado em desfazer.

 

Molly passou a mão por um velho Volkswagen Carocha que murchava a um canto, todo enferrujado. Não faltava muito para poder começar a aprender a conduzir. Talvez conseguisse convencer Jonas a oferecer-lhe aquele carro.

 

Rodou um pouco a manivela e a porta abriu-se. O interior também exigiria muito trabalho. Estava enferrujado e sujo e tinha os estofos rotos, mas Molly viu que o carro tinha grande possibilidade de ficar bonito. Sentou-se ao volante e percorreu-o muito lentamente com as mãos. Gostava muito daquele Carocha; as outras raparigas iam morrer de inveja.

 

Molly já se imaginava a conduzir por Fjällbacka e a dar generosamente boleia às amigas. Apesar de ainda faltarem alguns anos para poder conduzir sozinha, decidiu que ia falar com Jonas o mais depressa possível. Tinha de consertar aquele carro, quer quisesse, quer não. Molly sabia que Jonas sabia fazê-lo. O avô tinha-lhe contado como o ajudara a restaurar carros antigos e dissera-lhe que Jonas tinha muito jeito. Foi a única vez que ouviu o avô dizer alguma coisa positiva acerca de Jonas. Normalmente estava sempre a criticá-lo.

 

– Com que então é aqui que vens enfiar-te!

 

Molly ficou surpreendida ao ouvir a voz de Jonas.

 

– Gostas desse carro? – perguntou-lhe com um sorriso enquanto Molly abria a porta do carro, envergonhada. Era um bocado ridículo ser apanhada sentada num carro a fingir que se conduzia.

 

– É muito bonito – respondeu Molly. – Estava a pensar que podia ser meu, quando tirasse a carta de condução.

 

– Não está em condições...

 

– Sim, mas...

 

– Mas já te ocorreu que eu podia consertá-lo, não foi? Bem, porque não, ainda temos tempo. Se lhe dedicar umas horas de vez em quando, estará pronto quando chegar o momento.

 

– A sério? – disse Molly, radiante e abraçando-lhe o pescoço.

 

– Sim, a sério. – Jonas também a abraçou. Depois afastou-a um pouco e, deixando as mãos nos ombros de Molly, disse: – Assim está melhor, já chega de andares mal-humorada. Sei que a competição era importante para ti, já conversámos sobre isso, mas não falta muito para a próxima.

 

– Sim, lá isso é verdade.

 

O humor de Molly começou a melhorar. Passeou por entre os carros. Havia um ou outro que também podia ficar muito fixe, mas o seu preferido era o Carocha.

 

– Porque é que não os consertas? Ou então desfazes-te deles. – Molly tinha parado à frente de um carro preto grande onde se lia «Buick».

 

– O avô não quer. Por isso ficam aqui até apodrecerem de vez. Ou até o avô morrer.

 

– Bem, eu acho que é uma pena – disse, dirigindo-se a uma carrinha verde que parecia a máquina mistério caça-fantasmas de Scooby Doo. Jonas afastou-a dali.

 

– Vamos, não gosto muito que andes por aqui. Isto está cheio de vidros e de sucata enferrujada. E não há muito tempo até vi ratazanas.

 

– Ratazanas! – exclamou Molly, dando de imediato um passo atrás a olhar em redor.

 

Jonas desatou a rir.

 

– Anda, vamos tomar um café. Está frio. E garanto-te que dentro de casa não há ratazanas.

 

Pôs-lhe o braço em torno do ombro e dirigiram-se ambos para a porta. Molly estremeceu. Jonas tinha razão. Estava mesmo muito frio no barracão e, se tivesse aparecido uma ratazana, teria morrido de susto. Mas a felicidade por causa do carro compensava tudo. Estava em pulgas para contar aquilo às amigas.

 

Tyra estava secretamente satisfeita por alguém ter posto Liv no seu lugar. Era uma mimada, mais do que Molly, e a cara que fez quando viu que Ida ia montar Scirocco foi impagável. Passou o resto da aula a protestar e Blackie sentiu tudo, esteve bastante rebelde, o que fez com que Liv ficasse ainda mais furiosa.

 

Tyra estava a transpirar naquelas roupas quentes. Custava-lhe tanto andar com toda aquela neve que as pernas lhe doíam. Estava ansiosa que a primavera chegasse para poder ir para as cavalariças de bicicleta. A vida era muito mais simples na primavera.

 

A pista de trenós Sete Saltos estava cheia de crianças. Tinha-se lançado lá de cima muitas vezes quando era criança e lembrava-se da sensação de vertigem quando descia a rampa íngreme a voar no trenó. Claro que a pista já não lhe parecia nem tão comprida nem tão íngreme como antes, mas era mais emocionante do que a do Doutor, que ficava perto da farmácia. Por essa só se lançavam as crianças muito pequenas. Recordava-se de também ali ter feito esqui de fundo, o que lhe causou problemas nas primeiras e únicas férias de Natal que passou numa escola de esqui. Com efeito, explicou a um monitor perplexo que já sabia esquiar porque tinha aprendido na pista do Doutor e a seguir lançou-se pela pista mais longa e íngreme. Tudo acabou bem e a mãe contava sempre aquela história cheia de admiração e muito orgulhosa por ter uma filha tão desembaraçada.

 

Onde tinha ido buscar aquela autoconfiança era um mistério para Tyra. Bem, vinha à tona com os cavalos, mas de resto sentia-se mais como uma lebre. Depois de o pai ter morrido num acidente de viação, Tyra começou a pensar que a tragédia estava sempre à espreita ao virar da esquina. Já se tinha apercebido de que tudo podia decorrer na mais completa normalidade e, num segundo, mudar completamente para sempre.

 

Com Victoria sentia-se corajosa, sem dúvida. Era como se, quando estavam juntas, se transformasse noutra pessoa, numa pessoa melhor. Iam sempre para casa de Victoria, não para a sua. Deitava as culpas nos irmãos mais novos por fazerem demasiada barulheira, mas a verdade é que tinha vergonha de Lasse; em primeiro lugar, por causa das bebedeiras e depois pelo seu delírio religioso. Também se envergonhava da mãe, porque se deixava subjugar e andava pela casa como um rato assustado. Não era como os pais de Victoria, que eram adoráveis e também as pessoas mais normais do mundo.

 

Tyra pontapeou a neve. O suor escorria-lhe pelas costas. Fora um longo caminho, mas naquela manhã decidira que não voltaria atrás. Devia ter questionado Victoria, devia ter exigido respostas. Atormentava-a pensar que nunca chegaria a saber o que aconteceu. Mas teria feito qualquer coisa por Victoria e era isso que iria fazer.

 

O corredor do Departamento de Sociologia da Universidade de Gotemburgo era igual a todos os outros e estava quase deserto. Tinham perguntado pelos criminologistas e ali estavam agora, à frente de uma porta fechada com uma placa que exibia o nome Gerhard Struwer. Patrik bateu discretamente.

 

– Entre! – disse uma voz do outro lado, e o grupo entrou.

 

Patrik não sabia exatamente o que esperava encontrar, mas certamente não era um homem que parecia ter saído de um anúncio de moda masculina.

 

– Bem-vindos. – Gerhard levantou-se e apertou-lhes a mão. Erica foi quem cumprimentou por último, já que ela se mantivera um pouco à margem. – Bem, é uma honra conhecer Erica Falck.

 

Gerhard parecia mais entusiasmado do que seria recomendável e Patrik não se sentiu propriamente muito à vontade. No entanto, da maneira como aquele dia estava a decorrer, não ficou surpreendido por Struwer se revelar um conquistador. Por sorte, Erica não era recetiva àquele género de personagens.

 

– A honra é toda minha. Vi na televisão as análises acutilantes que fez – disse Erica.

 

Patrik olhou para a mulher, perplexo. Que raio de arrulhar era aquele?

 

– O Gerhard é analista permanente no programa Procura-se – explicou Erica, sorrindo para o sociólogo. – Adorei o seu retrato da Juha Valjakkala. Pôs o dedo numa ferida que ninguém tinha detetado e acho que...

 

Patrik tossiu um pouco. Aquilo não estava a correr como planeara. Observou Gerhard e reparou que não só tinha dentes perfeitos, mas também o tom grisalho ideal nas têmporas. E sapatos acabados de engraxar. Quem raio usava sapatos a brilhar em pleno inverno? Patrik lançou uma rápida olhadela às suas botas que, para ficarem limpas, teriam de passar por uma lavagem automática.

 

– Bem, temos várias perguntas a fazer-lhe – disse, sentando-se numa das cadeiras livres. Esforçou-se por manter uma expressão neutra. Erica não podia ter a satisfação de suspeitar sequer que estava com ciúmes. Porque na verdade não estava. Simplesmente parecia-lhe desnecessário perder um tempo precioso com toda aquela conversa sobre assuntos que não tinham nada que ver com o motivo daquela visita.

 

– Sim, claro. Li com atenção o material que me enviaram. – Gerhard sentou-se à sua secretária. – Tanto sobre a Victoria como em relação aos restantes desaparecimentos. Como devem compreender, não posso fazer uma análise como deve ser com tão pouco tempo e tão poucas informações, mas há vários pormenores que me chamam a atenção... – o sociólogo cruzou as pernas e juntou as pontas dos dedos num gesto que Patrik achou extremamente irritante.

 

– Tomamos notas? – perguntou Martin, acotovelando Patrik de lado. Este teve um sobressalto e depois assentiu.

 

– Sim, claro, vai tomando notas – respondeu. Martin pegou no bloco e na esferográfica e esperou que Gerhard prosseguisse.

 

– Creio que se trata de uma pessoa organizada e racional. Ele ou ela, por uma questão de simplicidade vamos dizer «ele», conseguiu fazer as coisas de modo a não deixar qualquer sinal de ser uma pessoa psicótica ou perturbada, por exemplo.

 

– Como é que alguém que rapta uma pessoa pode ser considerado racional? Ou que provoca ferimentos como os que sofreu Victoria, vamos lá? – Patrik deu-se conta de que o tom com que dissera aquelas palavras soara um pouco cortante.

 

– Quando digo racional, quero dizer que se trata de uma pessoa que é capaz de planear com antecedência, de prever as consequências dos seus atos e de reagir de acordo com essas previsões. Uma pessoa capaz de modificar rapidamente os seus planos caso se produza uma mudança nas condições.

 

– A mim, parece-me claríssimo – comentou Erica.

 

Patrik mordeu a língua e deixou que Struwer continuasse a exposição.

 

– É muito provável que este criminoso seja também uma pessoa relativamente madura. Um adolescente ou um jovem de vinte e tal anos seriam incapazes de tal autocontrolo e desta capacidade de planeamento. Porém, tendo em conta a força física necessária para controlar as vítimas, deve tratar-se de alguém que ainda seja suficientemente forte e que esteja em boa forma física.

 

– Ou então, talvez haja vários criminosos – sugeriu Martin.

 

Gerhard assentiu.

 

– Sim, claro, não podemos descartar essa possibilidade. Há mesmo casos em que a autoria do crime pertencia na verdade a um grupo de pessoas. Normalmente, nestas situações, havia uma espécie de motivo religioso, como no caso de Charles Manson e da sua seita13.

 

– Que tem a dizer dos intervalos temporais? As três primeiras raparigas desapareceram regularmente a cada seis meses. Mas depois decorreram apenas cinco meses até ao desaparecimento da Minna. E, cerca de três meses depois, a Victoria foi raptada – interveio Erica. Patrik teve de admitir que era uma boa pergunta.

 

– Se pensarmos nos assassinos em série mais famosos dos EUA, como Ted Bundy, John Wayne Gracy14 ou Jeffrey Dahmer15, de certeza que já ouviram estes nomes muitíssimas vezes, geralmente seguem um padrão em que a sua necessidade aumenta como que por uma espécie de pressão interna. Os criminosos começam com fantasias sobre o rapto, depois perseguem a vítima que escolhem, observam-na durante um tempo e, por fim, atacam. Ou então são coincidências. O assassino imagina uma determinada situação com um determinado tipo de vítima e, em seguida, ataca alguém que encaixa na situação imaginada.

 

– Talvez seja uma pergunta disparatada, mas também há assassinas em série? – perguntou Martin. – Na verdade, só ouvi falar de homens.

 

– É mais frequente serem homens, mas também há alguns casos de mulheres. Aileen Wuornos16 é um exemplo, mas temos mais. – Struwer voltou a juntar as pontas dos dedos. – Mas, voltando à questão temporal, o raptor pode reter a vítima por um período mais longo. Quando a vítima, por assim dizer, já cumpriu a sua função ou morre por causa dos ferimentos e da exaustão, o criminoso precisará, mais cedo ou mais tarde, de outra vítima que possa satisfazer a sua necessidade. A pressão aumenta cada vez mais até que o criminoso tem de encontrar um escape. E então volta a agir. Muitos assassinos em série interrogados descrevem-no não como um ato de vontade ou de livre-arbítrio, mas como um imperativo.

 

– Acha que estamos perante algo assim? – perguntou Patrik. Relutantemente, o que Struwer estava a dizer-lhes estava a deixá-lo cada vez mais fascinado.

 

– A linha temporal parece indicá-lo. E é possível que essa necessidade se tenha convertido em algo cada vez mais urgente. O criminoso já não pode esperar tanto tempo entre uma vítima e a outra. Isto se realmente se trata de um assassino em série. Pelo que percebi, não encontraram os cadáveres e Victoria Hallberg estava viva quando apareceu.

 

– Sim, é verdade. Mas o mais verosímil é que o agressor não pensasse deixá-la viver e que a rapariga tenha conseguido de alguma forma escapar com vida. Pelo menos é o que me parece.

 

– Sim, é o mais provável, sem dúvida. Mas, embora apenas se tenha tratado de rapto, este crime também pode seguir o mesmo padrão de comportamento. Por outro lado, podemos estar perante um assassino que mata simplesmente por prazer; um psicopata que assassina as suas vítimas por puro gozo. E pela satisfação sexual. A autópsia da Victoria mostrou que não tinha sido abusada sexualmente, mas este género de casos tem normalmente uma motivação sexual. De momento, sabemos muito pouco do caso da Victoria para afirmar que possa ter havido conotações sexuais.

 

– Sabem que há estudos que mostram que 0,5 por cento da população pode ser definida como psicopata? – perguntou Erica com entusiasmo.

 

– Sim – disse Martin. – Acho que li na Café. Uma coisa qualquer acerca dos chefes...

 

– Bem, não sei se devemos confiar nas investigações científicas de uma revista como a Café, mas a Erica tem realmente razão. – Gerhard sorriu, mostrando-lhe uma fileira de dentes imaculadamente brancos. – Uma percentagem da população normal encaixa perfeitamente nos critérios das psicopatias. E, embora normalmente associemos a palavra psicopata a um assassino, ou pelo menos a um criminoso, essa crença está longe de se adequar à verdade. A maior parte dessas pessoas aparenta levar uma vida normal. Aprendem a adaptar-se às normas sociais e podem inclusivamente ser membros destacados da sociedade. Não sentem empatia e são incapazes de compreender os sentimentos dos outros. Todo o seu mundo e todo o seu pensamento giram em torno deles próprios. A capacidade de interagir com o meio ambiente depende da capacidade que essas pessoas têm de imitar os diversos sentimentos que são esperados em determinadas situações. Mas, apesar disso, nunca o conseguem completamente. Têm sempre um toque de falsidade e dificuldade em estabelecer relacionamentos íntimos duradouros com outras pessoas. Utilizam frequentemente as pessoas em redor para os seus próprios fins e, quando isso deixa de funcionar, passam à próxima vítima sem sentirem uma ponta de arrependimento, sem sentirem qualquer culpa ou remorso. Em resposta à sua pergunta, Martin: há estudos que suportam a ideia de que a percentagem de psicopatas é muito maior nas altas esferas empresariais do que entre o resto da população. Muitas das características que acabo de expor podem ser vantajosas em posições de poder, onde a falta de consideração e de empatia desempenham um papel importante.

 

– Por outras palavras, é possível que uma pessoa seja psicopata e não se notar, certo? – perguntou Martin.

 

– Sim, em princípio, sim. Os psicopatas podem ser pessoas adoráveis. Mas quem mantenha com eles um relacionamento relativamente prolongado, mais cedo ou mais tarde acabará por reparar que lhes falta alguma coisa.

 

Patrik contorcia-se na cadeira. Não era muito confortável e começava a sentir dores nas costas. Lançou uma olhadela a Martin, que não parava de tomar notas. Em seguida virou-se para Struwer.

 

– Na sua opinião, porque terá escolhido justamente estas raparigas?

 

– É muito possível que seja uma questão de preferência sexual. Jovens, virgens, sem experiência sexual prévia. Além disso, uma rapariga é mais fácil de controlar e de assustar do que uma mulher adulta. Creio que é uma combinação desses dois fatores.

 

– Pode ser relevante o facto de serem fisicamente parecidas? Todas têm, ou tinham, cabelo castanho e olhos azuis. Acha que é esse o tipo que o criminoso procura?

 

– Pode ser. Ou, na verdade, julgo que o mais provável é que isso seja relevante. As vítimas podem lembrar-lhe alguém e o que lhes faz é algo que sofreu. Ted Bundy é um exemplo disso mesmo. A maioria das vítimas de Bundy17 também se assemelhava entre si e recordavam-lhe uma antiga namorada que o tinha rejeitado. Por isso, vingava-se dela através das vítimas.

 

Martin não tinha parado de ouvir com muita atenção e chegou-se à frente na cadeira.

 

– Há pouco disse que a vítima desempenha um papel. Qual podia ser o objetivo dos ferimentos que Victoria apresentava? Porque terá o criminoso feito uma coisa daquelas?

 

– Como eu disse, o mais provável é que as vítimas tenham alguma semelhança significativa com alguma pessoa importante para o criminoso. E, se olharmos para os ferimentos, creio que aquilo que o criminoso buscava era uma sensação de controlo. Ao despojá-la daqueles sentidos, controla completamente a vítima.

 

– E não seria suficiente mantê-la prisioneira? – perguntou Martin.

 

– Para a maioria dos assassinos que querem controlar as vítimas costuma ser suficiente. Porém, neste caso, o criminoso deu um passo mais além. Pensem como privou a Victoria da visão, da audição e do paladar; deixou-a trancada num quarto escuro e silencioso, incapaz de comunicar. No fundo, o que fez foi criar uma boneca viva.

 

Patrik sentiu um calafrio. O que aquele homem acabara de descrever era tão extravagante e tão hediondo que parecia ter sido tirado de um filme de terror; mas era tudo real. Refletiu durante uns segundos. Apesar de aquilo ser tudo muito interessante, custava-lhe ver de que forma concreta lhes permitiria avançar na investigação.

 

– Tendo em conta o que aqui foi dito – disse Patrik –, tem alguma ideia do que podemos fazer para encontrar alguém assim?

 

Struwer permaneceu em silêncio por um momento, como se estivesse a ponderar como formular o que pretendia dizer.

 

– Talvez esteja a arriscar demasiado, mas diria que a vítima de Gotemburgo, a Minna Wahlberg, tem um interesse especial. Apresenta características diferentes das outras raparigas, além de ser a única com a qual o raptor se desleixou a ponto de ter sido visto na sua companhia.

 

– Bem, não sabemos se quem estava no carro branco era o raptor – salientou Patrik.

 

– Não, claro, isso é verdade. Mas se imaginarmos que sim, é interessante que a Minna tenha entrado no carro de livre vontade. Claro que não sei como foram as outras raparigas aliciadas, mas o facto de a Minna ter entrado no carro, indica que o condutor não parecia perigoso ou que a Minna não tinha medo dele.

 

– Quer dizer que é possível que a Minna conhecesse o raptor? Que pode ter alguma relação com ela ou com a região?

 

O que Struwer estava a dizer corroborava de certo modo as suspeitas de Patrik, que também pensava que a Minna era diferente.

 

– O criminoso não precisava necessariamente de a conhecer, mas a Minna podia saber quem ele era. O facto de o terem visto recolher a Minna, mas não as outras raparigas, pode indicar que estava no seu território e que se sentia mais seguro do que era costume.

 

– E não deveria ter-se mostrado mais cauteloso precisamente por isso? O risco de ser reconhecido era muito maior – contrapôs Erica.

 

Patrik olhou para a mulher com orgulho.

 

– Sim, claro, seria o mais lógico – afirmou Struwer. – Mas os seres humanos nem sempre são inteiramente lógicos e é difícil renunciar aos hábitos e aos costumes. Certamente que se sentia mais à vontade no seu ambiente, o que aumentou o risco de cometer um erro. E foi isso que aconteceu, o criminoso cometeu um erro.

 

– Pois, eu também tenho a sensação de que a Minna era de alguma forma diferente – disse Patrik. – Falamos há pouco com a mãe dela, mas não descobrimos nada. – Pelo canto do olho, Patrik viu Erica assentir.

 

– Bem, se estivesse no vosso lugar, continuava a investigação centrada em Minna. Focava-me nas diferenças. É uma recomendação geral na altura de criar um perfil. Porque quebrou o padrão? Porque é que essa vítima é tão especial a ponto de fazer com que o agressor tenha mudado de comportamento?

 

– Ou seja, temos de pensar nas anomalias, não no denominador comum, não é verdade? – Patrik compreendeu que tinha razão.

 

– Sim, esse é o meu conselho. Ainda que, em última instância, estejam a investigar o desaparecimento da Victoria, o caso da Minna pode ser-vos útil – Gerhard deteve-se. – É verdade, coordenaram-se, certo?

 

– Como assim? – perguntou Patrik.

 

– Todos os distritos policiais. Examinaram em conjunto todas as informações de que dispõem?

 

– Mantemo-nos em contacto e partilhamos o material que temos.

 

– Tudo bem, mas acho que ganhavam muito se fossem falar diretamente com os vossos colegas. Às vezes pode tratar-se de uma sensação, de algo que não está escrito, algo que só se possa ler nas entrelinhas no material da investigação. De certeza que têm experiência em deixar-se levar pelo sexto sentido. Em muitas investigações é precisamente isso, o indefinível, o que acaba por conduzir à captura do assassino. E não tem nada de estranho. O subconsciente desempenha um papel mais importante do que muitos pensam. Dizem que só utilizamos uma percentagem ridícula da nossa capacidade cerebral e talvez seja verdade. Tentem reunir-se todos e ouvir o que cada um tem a dizer.

 

Patrik assentiu.

 

– Tem razão, devíamos ter feito isso. Mas ainda não conseguimos marcar.

 

– Pois, mas acho que valeria a pena – insistiu Gerhard.

 

Fez-se silêncio. Ninguém conseguia pensar em mais perguntas e todos continuavam a refletir no que Struwer tinha dito. Patrik não tinha a certeza se aquilo os ia ajudar a avançar, mas estava disposto a ter tudo em linha de conta. Antes isso, do que chegar mais tarde à conclusão de que Struwer tinha razão e de que não o tinham levado a sério.

 

– Obrigado por nos ter dispensado o seu precioso tempo – disse Patrik, levantando-se.

 

– Foi um verdadeiro prazer. – Gerhard fixou os olhos azuis em Erica, e Patrik respirou fundo. Tinha vontade de fazer o perfil de Struwer. Não seria nada difícil. No mundo havia demasiados tipos como ele.

 

Terese sempre achara um pouco estranho ir às cavalariças. Conhecia tão bem a quinta... Jonas e ela tinham estado juntos dois anos. Eram muito jovens, ou pelo menos assim lhe parecia agora, e desde então muitas coisas tinham acontecido. Mas era realmente um pouco estranho, sobretudo por ter sido Marta a razão pela qual se tinham separado.

 

Um dia, Jonas chegou ao pé dela e disse com toda a calma que tinha conhecido outra mulher, que era a sua alma gémea. Disse-o assim, literalmente, e Terese achou que era uma forma demasiado séria e bastante insólita de o expressar. Mais tarde, quando conheceu a sua própria alma gémea, compreendeu o que Jonas tinha querido dizer. Porque foi isso que sentiu quando Henrik, o pai de Tyra, se aproximou dela e a convidou para dançar no cais, perto da Praça Ingrid Bergman. Era tão óbvio que iam acabar juntos... Mas então, num abrir e fechar de olhos, tudo mudou. Os planos, os sonhos. O carro derrapou numa noite escura e Tyra e ela ficaram sozinhas.

 

Com Lasse nunca foi a mesma coisa. Aquela relação era apenas uma maneira de fugir à solidão, de ter novamente alguém com quem partilhar o quotidiano. Mas tinha sido um desastre completo. Não sabia o que tinha sido pior, se todos os anos que Lasse passara a beber, com ela e Tyra constantemente a antecipar a cena seguinte, ou a sobriedade atual, que Terese agradecia, mas que trouxera outro tipo de problemas.

 

Terese nem por um momento tinha acreditado no renascimento espiritual de Lasse. No entanto, compreendeu perfeitamente o que o tinha interessado naquela congregação. Dera-lhe a oportunidade de se esquivar à responsabilidade por todas as más decisões e dívidas do passado. Assim que se juntou a eles e que, com uma rapidez desproporcionada no entender de Terese, obtivera o perdão de Deus, Lasse cindiu-se em dois. Tudo aquilo que Terese e os filhos tinham sofrido até então era por ele atribuído ao antigo Lasse e ao seu modo de vida egoísta e pecaminoso. O novo Lasse, no entanto, era um ser puro e bom que não podia ser recriminado pelos atos do antigo Lasse. Se Terese mencionava em alguma ocasião todas as vezes que os tinha magoado, Lasse reagia com raiva contida ao que apelidava de «lengalenga cansativa» e dizia-lhe como se sentia dececionado ao ver que Terese se focava no lado negativo das coisas em vez de fazer como ele, de aceitar Deus tornando-se uma pessoa que espalhava «luz e amor».

 

Terese resfolegou para si mesma. Lasse não fazia a mais pequena ideia do que eram a luz e o amor. Nem sequer pedira perdão pelo modo como tratara a família. De acordo com a sua lógica, Terese era um ser mesquinho porque, não sendo capaz de perdoar como Deus, na cama, à noite, continuava a virar-lhe as costas.

 

Tomada pela mais profunda frustração, Terese apertou o volante quando virou em direção à quinta e às cavalariças. A situação estava a tornar-se insustentável. Mal conseguia olhar para Lasse e não suportava ouvi-lo recitar versículos a toda a hora, como se aquela fosse a música de fundo da sua casa. Mas primeiro tinha de resolver os aspetos práticos. Tinha dois filhos de Lasse e sentia-se tão destroçada que não tinha a certeza de conseguir separar-se.

 

– Olhem, meninos, vão ficar aqui sem brigar enquanto eu vou procurar a Tyra? – Terese virou-se e fitou muito séria os dois rapazinhos que estavam no banco traseiro. As crianças deram uma gargalhada e Terese soube que a guerra ia rebentar assim que saísse do carro. – Não demoro nada – acrescentou em tom de advertência. Mais gargalhadas. Terese suspirou, mas não pôde deixar de sorrir quando fechou a porta do carro.

 

Entrou nas cavalariças a tiritar. Quando vivera ali não existiam, tinham sido construídas mais tarde por Jonas e por Marta.

 

– Está aqui alguém? – Terese olhou em redor, à procura de Tyra, mas viu apenas algumas das outras raparigas.

 

– A Tyra não está por aqui?

 

Marta saiu de um dos estábulos.

 

– Não, foi-se embora há cerca de uma hora.

 

– Ah, está bem – Terese franziu a testa. Pela primeira vez tinha prometido a Tyra que iria buscá-la de carro. A filha ficara muito contente por não ter de ir para casa a pé com toda aquela neve, por isso era estranho que se tivesse esquecido.

 

– A Tyra monta muito bem – disse Marta enquanto se aproximava de Terese.

 

Como sempre que a via, também daquela vez Terese ficou surpreendida com a beleza de Marta. Soube desde o primeiro dia que nunca poderia competir com ela. Além disso, Marta sempre fora baixa e delicada, e Terese sentira-se logo uma gigantona desajeitada ao pé dela.

 

– Ainda bem – disse, e olhou para o chão.

 

– A Tyra tem uma habilidade natural para os cavalos. Devia competir. Julgo que ficaria bem classificada. Nunca pensaste nisso?

 

– Sim, bem... – balbuciou Terese, sentindo-se ainda mais inepta, se é que isso era possível. Não podia permiti-lo, mas como poderia dizer-lho? – Temos tido tantos problemas com as crianças e tudo o mais. E Lasse está na paró... Mas vou pensar nisso. Fico feliz por saber que consideras que a Tyra tem jeito. Ela é... Bem, tenho muito orgulho nela.

 

– Compreendo – disse Marta, observando-a por um instante. – Já tinha reparado que a Tyra está muito triste com o que aconteceu à Victoria. Bem, estamos todos.

 

– Sim, para a Tyra está a ser muito difícil. Vai demorar algum tempo a recompor-se.

 

Terese procurou uma forma de acabar a conversa. Não lhe apetecia nada ficar para ali a falar com Marta. Começava a sentir-se inquieta. Onde se teria metido Tyra?

 

– Bem, os miúdos estão à espera no carro, por isso é melhor ir ter com eles antes que comecem a brigar.

 

– Claro. E não te preocupes com a Tyra. O mais certo é ter-se esquecido de que hoje vinhas buscá-la, sabes como são as miúdas.

 

Marta regressou ao estábulo e Terese apressou-se a cruzar o pátio em direção ao carro. Queria chegar a casa o mais depressa possível. Com um pouco de sorte, Tyra já lá estaria.

 

Anna estava sentada à mesa da cozinha a falar para as costas de Dan. Através da camisa, via como o companheiro tinha os músculos tensos. Mas Dan não dizia nada, limitava-se a limpar os pratos.

 

– Que vamos fazer? Não podemos continuar assim.

 

Embora ficasse apavorada só de pensar na separação, Anna sabia que tinham de falar sobre o futuro. As coisas já não estavam nada bem antes do que tinha acontecido no verão. Tinha ficado um pouco mais animada, embora pelos motivos errados e, agora, a vida de ambos era um verdadeiro caos, cheio de esperanças frustradas. E tudo por causa dela. Não podia de todo partilhar a culpa com Dan, nem responsabilizá-lo.

 

– Já sabes como estou arrependida pelo que aconteceu e gostava muito de desfazer o que foi feito, mas não posso. Portanto, se queres que eu me vá embora, eu vou. Arranjamos um apartamento para mim, para a Emma e para o Adrian. De certeza que nos prédios aqui ao lado há algum livre que nos possam alugar rapidamente. Porque assim não podemos viver, é impossível. Estamos a dar cabo um do outro. E também estamos a prejudicar os miúdos. Não vês? Nem sequer se atrevem a discutir, quase não ousam falar com medo de dizer alguma coisa inconveniente e piorar a situação. Não aguento, prefiro sair de casa. Por favor, diz alguma coisa! – Os soluços fizeram com que a voz de Anna se embargasse ao proferir as últimas palavras. Era como ouvir outra pessoa, como se fosse outra que chorasse. Sentia-se como se estivesse a flutuar por cima de si mesma, como se observasse os despojos do que foi a sua vida, como se observasse o homem que tinha sido o seu grande amor e a quem tanto mal fizera.

 

Muito lentamente, Dan virou-se. Apoiou-se na borda da bancada e olhou para os pés. Anna sentiu uma pontada no coração ao ver como o companheiro tinha má cara, o tom cinzento do desespero. Mudara-o completamente e isso era o que mais lhe custava perdoar-se. Dan, que pensava bem de toda a gente, que considerava todos tão honestos como ele próprio. Anna mostrara-lhe que isso não era verdade, arrebatou-lhe a confiança que ele depositava nela e no mundo.

 

– Não sei, Anna. Não sei o que quero. Os meses passam e a única coisa que fazemos é tratar das coisas práticas, movemo-nos em círculos, um ao lado do outro.

 

– Mas temos de tentar resolver o problema. A outra opção é separarmo-nos. Não suporto continuar a viver num limbo como este. E os miúdos também merecem que tomemos uma decisão.

 

Anna sentiu que as lágrimas começavam a marejar-lhe os olhos e limpou-as com a manga. Não tinha forças para se levantar e ir buscar uma folha de papel de cozinha. Além disso, o rolo estava por detrás de Dan e precisava de manter uma distância de segurança para poder ter aquela conversa. Sentir o cheiro de Dan ao perto, sentir o calor do corpo do companheiro fá-la-ia vacilar. Nem sequer tinham dormido juntos desde o verão. Dan dormia num colchão no escritório e Anna na cama de casal. Oferecera a cama a Dan, pensava que devia ser ela a dormir naquele colchão tão estreito e desconfortável, e a acordar de manhã com dores nas costas. Mas Dan recusou e todas as noites ia dormir para o colchão.

 

– Quero tentar – disse Anna, agora num sussurro. – Mas só se tu quiseres e se achares que há uma hipótese. Se não, mais vale que eu e os miúdos nos mudemos. Posso telefonar para a imobiliária de Tanum ainda esta tarde para ver o que têm. Para começar não precisamos de muito espaço, apenas o suficiente para a Emma e o Adrian e para mim. Já morámos num apartamento pequeno, por isso vamos adaptar-nos bem.

 

Dan fez uma careta. Tapou o rosto com as mãos e começou a tremer. Desde o verão que usava uma máscara de desapontamento e de raiva, mas naquele momento começou a chorar e as lágrimas escorriam-lhe pelo queixo e caíam-lhe na camisa cinzenta. Anna não conseguiu resistir, aproximou-se dele e abraçou-o. Dan ficou petrificado, mas não se afastou. Anna podia sentir o calor, mas também os tremores que lhe provocavam um pranto que estava a crescer, por isso abraçou-o cada vez com mais força, como se estivesse a tentar impedi-lo de se partir em mil pedaços. Quando por fim se acalmou, deixaram-se ficar assim e Dan retribuiu-lhe o abraço.

 

Lasse sentia a raiva queimá-lo por dentro quando virou à esquerda em direção a Kville. Irritava-o que Terese não pudesse ir com ele uma vez que fosse. Seria de mais pedir-lhe para partilharem a vida quotidiana, que Terese mostrasse interesse por algo que mudara completamente a sua vida e o transformara numa nova pessoa? Lasse e a congregação tinham tanto a ensinar-lhe... Mas Terese preferia viver na escuridão em vez de deixar que o amor de Deus a iluminasse, tal como o iluminava a ele.

 

Carregou ainda mais no acelerador. Perdera tanto tempo a implorar-lhe que o acompanhasse que ia chegar atrasado à reunião de liderança. Além disso, teve de explicar a Terese porque não a queria na quinta, perto de Jonas. Terese tinha pecado com Jonas, dormira com ele sem serem casados, e não importava que isso tivesse acontecido há muitos anos. Deus queria que o homem fosse imaculado e honesto, sem uma data de ações sujas do passado a pesar-lhe na alma. Lasse, pelo seu lado, tinha reconhecido tudo, purificara-se.

 

Nem sempre era fácil. O pecado rodeava-o por todo o lado. Mulheres desavergonhadas que se ofereciam desrespeitando a vontade e os mandamentos de Deus, que tentavam seduzir todos os homens. Essas pecadoras mereciam um castigo e Lasse estava convencido de que essa era a sua missão. Deus falara com ele e ninguém poderia duvidar de que se tornara um homem novo.

 

Tinha-se dado conta de que na congregação todos viam isso. Enchiam-no de amor como prova de que Deus o perdoara e de que agora era uma página em branco. Lasse lembrou-se de como estivera perto de ter uma recaída no seu antigo comportamento. Mas Deus salvou-o miraculosamente da fraqueza da carne e converteu-o num discípulo forte e corajoso. Ainda assim, Terese recusava-se a ver quanto tinha mudado.

 

Continuou irritado até chegar. Porém, como sempre, a paz inundou-o logo que cruzou as portas do edifício moderno da congregação, financiado graças à generosidade de alguns fiéis. Para conseguir manter-se independente, tinha de ser uma congregação grande, o que acontecia em larga medida graças ao líder, Jan-Fred, que se encarregara dela há dez anos depois de duras lutas internas. Na altura denominava-se Igreja Pentecostal de Kville, mas Jan-Fred mudou-lhe o nome para Fé Cristã; ou apenas Fé, como costumavam chamá-la.

 

– Olá, Lasse, fico muito contente por teres vindo. – Leonora, a mulher de Jan-Fred, aproximava-se para o receber. Era uma loura lindíssima com cerca de quarenta anos que, juntamente com o marido, era responsável pelo grupo de liderança.

 

– Vir até aqui é sempre uma maravilha – disse Lasse, e beijou-a na face. Sentiu o cheiro a champô e, com ele, uma brisa pecaminosa. Mas só durou um momento. Lasse sabia que, com a ajuda de Deus, conseguiria combater os velhos demónios. Tinha conseguido vencer o vício do álcool, mas o fraco por mulheres provara-se mais persistente.

 

– Eu e o Jan-Fred falámos de ti esta manhã. – Leonora deu-lhe o braço e conduziu-o à sala de reuniões onde ministravam o curso de liderança.

 

– Não me digas – afirmou. Ficou à espera, ansioso que Leonora prosseguisse.

 

– Sim, falámos sobre o trabalho fantástico que fizeste. Estamos muito orgulhosos de ti. És um discípulo autêntico e digno, e vemos que tens um grande potencial.

 

– Limito-me a fazer o que Deus me pede. Tudo é obra Dele. Foi Ele quem me deu a força e a coragem necessárias para reconhecer os meus pecados e purificar-me deles.

 

Leonora deu-lhe uma palmadinha no braço.

 

– Sim, Deus é bom para nós, que somos fracos e pecadores. A Sua paciência e o Seu amor são infinitos.

 

Tinham chegado à sala e viram que os outros participantes do curso já estavam nos seus lugares.

 

– E a família? Hoje também não puderam vir? – Leonora lançou-lhe um olhar contristado. Lasse mordeu a língua e abanou a cabeça.

 

– Para Deus, a família é importante. O que Deus uniu, o homem não pode separar. E uma mulher deve partilhar a vida do seu marido, e a vida deste com Deus. Mas vais ver que, mais cedo ou mais tarde, também ela descobrirá quão bela é a alma que Deus descobriu dentro de ti. E que Ele te curou.

 

– Claro que sim, mas precisa de algum tempo – murmurou Lasse. Sentiu na boca o sabor metálico da ira, mas esforçou-se por afastar aqueles pensamentos negativos. Para isso, repetiu silenciosamente o seu mantra: luz e amor. Era o que Lasse era, luz e amor. Tinha de fazer com que Terese o compreendesse.

 

– Temos mesmo de ir? – Marta estava a vestir-se depois de se livrar do cheiro a cavalo no duche. – Não podemos ficar em casa e fazer o que as outras pessoas fazem à sexta à noite? Comer tacos, por exemplo.

 

– Não temos alternativa, sabes bem disso.

 

– Mas porque é que temos de ir jantar com eles, precisamente às sextas-feiras? Nunca pensaste nisso? Porque não podemos jantar com eles aos domingos, quando as outras pessoas jantam com os sogros? – Marta abotoou a blusa e penteou-se ao espelho de corpo inteiro que havia no quarto.

 

– Quantas vezes é que já falámos disso, hein? Como aos fins de semana temos quase sempre competições, só nos restam as sextas-feiras. Para que é que perguntas coisas para as quais já sabes a resposta?

 

Marta ouviu Jonas terminar a pergunta com voz estridente, como sempre acontecia quando começava a irritar-se. Claro que Marta já sabia a resposta àquela pergunta. Só não conseguia explicar porque é que Helga e Einar tinham de organizar-lhes a vida.

 

– Além disso, julgo que ninguém gosta destes encontros. Acho que toda a gente sentiria um grande alívio se acabássemos com os jantares de sexta-feira. O problema é que ninguém se atreve a dizê-lo – insistiu Marta, calçando um par de meias extra por cima das que já tinha. A casa dos pais de Jonas era tão fria... Einar era muito avarento e queria poupar na eletricidade. Teria de vestir igualmente um casaco de lã por cima da blusa. Caso contrário, já estaria congelada antes da sobremesa.

 

– A Molly também não quer ir. Durante quanto tempo achas que podemos continuar a obrigá-la antes que se revolte?

 

– Não conheço nenhuma adolescente que goste de jantares de família, mas a Molly não tem alternativa a não ser vir connosco. Também não é assim tão mau, caramba!

 

Por um momento, Marta ficou a observá-lo no espelho. Ainda estava mais bonito do que quando se conheceram. Nessa altura era tímido e desajeitado e tinha marcas vermelhas de acne nas faces. Mas Marta podia ver que havia algo por baixo daquela camada de insegurança; algo que Marta reconheceu. E, com o tempo e com a ajuda dela, a insegurança de Jonas desapareceu. Agora era elegante, forte e musculoso e, passados todos aqueles anos, ainda conseguia fazê-la estremecer.

 

Aquilo que partilhavam mantinha vivo o desejo e, naquele momento, Marta sentiu-o despertar, como sempre acontecia. Tirou as meias e despiu as cuecas apressadamente, mas deixou ficar a blusa. Aproximou-se dele e desabotoou-lhe as calças de ganga que acabara de vestir. Sem dizer uma palavra, Jonas deixou que Marta lhas baixasse e ela descobriu que ele já tinha reagido. Atirou-o para cima da cama com um empurrão decidido e sentou-se em cima dele, cavalgando-o com as costas arqueadas até o sentir a vir-se dentro dela com força. Marta limpou-lhe algumas gotas de suor da testa e afastou-se. Os olhos de ambos encontraram-se no espelho quando Marta voltou a vestir as cuecas e a calçar as meias de costas para Jonas.

 

Um quarto de hora mais tarde, entravam em casa Helga e de Einar. Molly resmungava atrás deles. Na verdade, a filha protestara vigorosamente quando soube que tinham de passar outra sexta-feira com os avós. Aparentemente, os amigos tinham milhares de coisas divertidas para fazer naquela noite e Molly ia arruinar a vida se não a deixassem ir ter com eles. Mas Jonas foi implacável e Marta deixou-o resolver aquele assunto.

 

– Boa noite – disse Helga.

 

Vinha um cheiro delicioso da cozinha e Marta sentiu o estômago roncar de fome. Era o único atenuante de passar a sexta-feira à noite com os sogros: os cozinhados de Helga.

 

– Fiz lombo de porco no forno. – Helga pôs-se na ponta dos pés para beijar o filho no rosto. Deu um abraço frio a Marta. – Queres trazer o teu pai para baixo? – perguntou Helga, assinalando com a cabeça o primeiro andar.

 

– Claro – disse Jonas, e subiu as escadas.

 

Marta ouviu o som de vozes e, em seguida, o som de algo pesado nas escadas. Tinham recebido um subsídio para instalar uma rampa pela qual era descida a cadeira de rodas; ainda assim, era preciso bastante força física para descer Einar. O ruído da cadeira de rodas a deslizar pelas guias das escadas já lhe era muito familiar. Marta mal se recordava de Einar antes de lhe terem amputado as pernas. Dantes pensava sempre nele como um touro enorme e irascível. Porém, naquele momento, enquanto deslizava escadas abaixo, parecia-lhe mais um sapo gordo.

 

– Ora cá está a visita da praxe – disse Einar com um olhar malicioso. – Anda cá dar um beijo ao teu avô.

 

Molly aproximou-se relutantemente de Einar e beijou-o na face.

 

– Venham, venham, que a comida arrefece – disse Helga, incitando-os com um gesto a seguirem-na até à cozinha, onde estava tudo pronto.

 

Jonas ajudou o pai a colocar-se à mesa e sentaram-se todos em silêncio.

 

– Quer dizer que amanhã não há competição, não é? – perguntou Einar passado algum tempo.

 

Marta viu um brilho matreiro nos olhos do sogro e percebeu que Einar só tinha referido aquilo para provocar. Molly suspirou e Jonas lançou ao pai uma olhadela de advertência.

 

– Depois de tudo o que aconteceu, pensámos que o momento não era o mais indicado – respondeu, estendendo a mão para a taça de puré de batata.

 

– Sim, claro, compreendo. – Einar lançou-lhe um olhar intimidatório e Jonas deitou-lhe puré no prato antes de se servir.

 

– E há desenvolvimentos nessa história? A polícia já descobriu alguma coisa? – perguntou Helga, que serviu as fatias de lombo de uma grande travessa antes de se sentar.

 

– O Gösta esteve hoje no consultório a fazer-me perguntas sobre o assalto – disse Jonas.

 

Marta ficou a olhar para ele com ar intrigado.

 

– Porque é que não me contaste?

 

Jonas encolheu os ombros.

 

– Porque não teve importância. Parece que quando fizeram a autópsia encontraram vestígios de ketamina no corpo da Victoria; por isso, o Gösta perguntou-me o que foi que me roubaram do consultório.

 

– Ainda bem que informaste a Polícia. – Marta baixou os olhos. Detestava não ter controlo absoluto sobre o que acontecia e estava irritadíssima por Jonas não lhe ter falado da visita de Gösta. Conversariam sobre aquilo mais tarde, quando estivessem sozinhos.

 

– Pobre rapariga – disse Einar, enfiando um bom pedaço de lombo na boca. Um fio de molho escuro escorria-lhe pela comissura dos lábios. – Das poucas vezes que a vi, achei-a bonita. Como me têm aqui prisioneiro, não tenho nada com que entreter os olhos. A única coisa que vejo nos últimos tempos é esta velhadas. – Einar desatou-se a rir, apontando para Helga.

 

– Temos mesmo de falar sobre a Victoria? – Molly revolveu a comida no prato e Marta perguntou-se quando tinha sido a última vez que a vira comer em condições. Enfim, devia ser a típica obsessão das adolescentes com os quilos. Acabaria por passar.

 

– A Molly descobriu o Carocha antigo no barracão e diz que gostava de ficar com ele. Por isso, estou a pensar começar a consertá-lo para que esteja pronto quando ela tirar a carta – disse Jonas, mudando assim de assunto. Piscou o olho a Molly, que revolvia com desinteresse o feijão-verde.

 

– Achas que é seguro a Molly ir ao barracão? – perguntou Einar, levando à boca outra garfada de comida. Ainda se viam vestígios de molho no queixo.

 

– Sim, realmente devias limpar aquilo. – Helga levantou-se para pôr mais carne na bandeja. – E aproveitavas para deitar fora aquela sucata e aquele lixo todo.

 

– Eu gosto daquilo como está – disse Einar. – São as minhas recordações. E são boas recordações. Além disso, como acabaste de ouvir, Helga, essas recordações vão continuar a viver com Jonas.

 

– Não sei para que quer a Molly aquele traste. – Helga voltou a colocar a bandeja no centro da mesa e sentou-se.

 

– Vai ficar lindo. Espetacular! Ninguém vai ter um como aquele. – Os olhos de Molly brilhavam.

 

– Sim, até pode ficar bonito – disse Jonas, servindo-se pela terceira vez. Marta sabia que o marido adorava os cozinhados da mãe e talvez fosse essa a razão de terem de ir lá a casa todas as sextas-feiras.

 

– Lembras-te de como se fazia? – perguntou Einar.

 

Marta quase podia ver o turbilhão de recordações a girar-lhe na cabeça. Lembranças de um tempo em que Einar era um touro e não um sapo.

 

– Diria que já sei de cor. Ajudei-te a consertar tantos carros, que acho que vou lembrar-me perfeitamente – Jonas trocou um olhar com o pai.

 

– Sim, não é absurdo nenhum que um pai deixe de herança ao filho conhecimentos e interesses. – Einar ergueu o copo. – Um brinde aos Persson, pai e filho, e aos interesses partilhados! E parabéns à menina, que vai ter um carro novo.

 

Molly ergueu o copo de Coca-Cola e brindou com ele. Ainda lhe brilhavam os olhos com a felicidade que sentia ao pensar no carro.

 

– Muito bem, mas tenham cuidado – disse Helga. – Quando menos se espera há um acidente. Devemos dar graças a Deus pela sorte que temos tido até agora e não devemos abusar dela.

 

– Sempre a agoirar... – Einar, que começava a ficar um pouco tocado, virou-se para os outros e disse: – Foi sempre assim. Eu era o intelectual, o visionário, e a minha querida mulher dedicou-se a grunhir e a ver problemas em todo o lado. Acho que não te atreveste a viver a vida plenamente um momento que fosse, pois não, Helga? É ou não é verdade? Será que chegaste realmente a viver? Ou estiveste sempre tão assustada que te limitaste a aguentar e a tentar que nós também sucumbíssemos ao medo?

 

Einar falava com voz pastosa e Marta suspeitava que devia ter estado a beber antes de terem chegado. Mas até aquilo era igual a todas as sextas-feiras à noite em casa dos sogros.

 

– Bem, fiz o que pude. E não foi fácil – disse Helga. Depois levantou-se e começou a levantar a mesa. Marta viu que as mãos lhe tremiam. Helga sempre tinha tido os nervos à flor da pele.

 

– Tiveste muita sorte, arranjaste um marido melhor do que merecias. E deviam dar-me uma medalha por todos os anos que tive de suportar. Realmente. Não sei onde tinha a cabeça, com a quantidade de raparigas que andavam sempre a correr atrás de mim, mas devo ter pensado que tinhas boas ancas para trazer filhos ao mundo. E, afinal, descobriu-se que quase nem para isso serves. Olha, que se lixe, skäl!18 – Einar voltou a erguer o copo.

 

Marta examinava as unhas. Aquilo nem sequer a violentava. Já tinha presenciado aquele espetáculo demasiadas vezes. Helga não costumava incomodar-se com as observações ébrias de Einar, mas algo tinha mudado naquela noite. De repente, pegou num balde e lançou-o com todas as suas forças para o lava-louças, salpicando tudo de água. Depois virou-se lentamente. Falou em voz baixa, quase inaudível. Mas no silêncio e na perplexidade reinantes, as suas palavras ouviram-se perfeitamente:

 

– Não-Aguento-Mais.

 

– Está cá alguém? – Patrik entrou no vestíbulo. Ainda estava de mau humor depois da viagem a Gotemburgo e, no regresso, nada o distraíra dos seus pensamentos. Além disso, pensar que Erica lhe dissera que possivelmente a mãe tinha levado um homem lá a casa não melhorava as coisas.

 

– Olá! – gorjeou a mãe da cozinha.

 

Patrik olhou em redor, desconfiado. Por um momento, perguntou a si próprio se não se teria enganado na casa, de tão limpa e arrumada que estava.

 

– Esta agora! – disse Erica com os olhos muito abertos quando cruzou a entrada. Não parecia nada satisfeita com a mudança.

 

– Veio cá alguma empresa de limpezas? – Patrik não fazia ideia de que o chão da entrada pudesse estar tão limpo e sem qualquer vestígio de gravilha. Reluzia e os sapatos estavam arrumados na sapateira, um móvel que raramente era utilizado lá em casa, já que, a maior parte das vezes, os sapatos eram deixados amontoados no chão.

 

– A empresa Hedström e Zetterlund – disse a mãe ao sair da cozinha com a mesma voz melodiosa de antes.

 

– Zetterlund? – repetiu Patrik, embora já calculasse qual era a explicação.

 

– Olá! Sou o Gunnar. – Apareceu um homem vindo da sala de estar que se aproximou de Kristina, e lhe estendeu a mão. Patrik perscrutou-o e, pelo canto do olho, viu que Erica o estava a observar, divertidíssima. Patrik apertou a mão ao homem, que começou a agitá-la para cima e para baixo com um entusiasmo excessivo.

 

– Que casa tão acolhedora que aqui têm! E os vossos filhos são muito engraçados! Bem, esta miúda não é nada fácil de enganar, não senhor. É uma espertalhona e peras. E acredito que este par de diabinhos não vos dê um minuto de descanso, mas são tão queridos que vocês aguentam tudo, não é? – O homem continuava a agitar a mão de Patrik, que forçou um sorriso.

 

– Sim, são os três fantásticos – disse, e fez menção de retirar a mão. Depois de a abanar durante mais alguns segundos, Gunnar acabou por soltá-la.

 

– Calculei que viessem com fome, por isso fiz o jantar – declarou Kristina, regressando ao fogão. – Também lavei duas máquinas de roupa. E, já que aqui vínhamos, disse a Gunnar para trazer a caixa de ferramentas e ele conseguiu consertar umas coisas que tu não tinhas tido tempo de arranjar, Patrik.

 

Naquele momento, Patrik apercebeu-se de que a porta da casa de banho, que há já algum tempo estava frouxa, anos, talvez, estava agora bem aparafusada. Perguntou a si próprio que mais teria Bob o Construtor consertado e, sem querer, ficou mal-humorado. Já tinha pensado consertar aquela porta. Tinha-a na lista. Só ainda não tinha tido tempo.

 

– Não me custou nada. Tive uma empresa de remodelações durante anos, por isso foi canja. O truque é fazer logo as coisas, assim não se acumulam – explicou Gunnar.

 

Patrik sorriu-lhe, horrorizado.

 

– Sim... Obrigado. Muitíssimo obrigado.

 

– Sabe, compreendo que para vocês, os jovens, não seja fácil fazer tanta coisa: o trabalho, os filhos, as tarefas domésticas e, além disso tudo, estes consertos. Em casas como esta, que já têm os seus anitos, aparecem sempre goteiras. Mas é uma casa muito bonita e bem-feita. Antigamente sabiam construir uma casa, não agora, que ficam prontas em algumas semanas. Depois é natural que as pessoas estranhem que tenham humidade, mofo e essa coisada toda. As artes dos antigos foram completamente esquecidas... – Gunnar começou a abanar a cabeça e Patrik aproveitou a oportunidade para bater em retirada em direção à cozinha, onde a mãe falava sem parar com Erica, frente à bancada. Com uma alegria um pouco maldosa, apercebeu-se de que a sua querida esposa também exibia um sorriso bastante forçado.

 

– Sim, eu sei que tu e o Patrik têm muitas coisas na cabeça e que não é fácil conciliar os filhos e a carreira, e que as pessoas da vossa geração acreditaram que conseguiam fazer tudo ao mesmo tempo, mas o mais importante para uma mulher, e por favor não leves a mal o que vou dizer, Erica, digo-to com as melhores intenções, o mais importante são os filhos e a casa, e quem quiser que se ria de nós, que fomos donas de casa, mas era muito satisfatório cuidar dos filhos em casa e não ter de os levar para uma daquelas instituições. Além disso, foram criados rodeados de ordem e de harmonia, essa história de que é saudável haver alguma sujidade nos cantos da casa não me convence de todo. De certeza que é por isso que as crianças de hoje têm muitas alergias e doenças, porque as pessoas já não conseguem manter a casa em condições. E também nunca é de mais salientar a importância de as crianças comerem comida caseira e, quando o marido chega a casa – e, como é óbvio, Patrik tem um trabalho de muita responsabilidade –, é mais do que justo esperar que esteja tudo limpo e que haja um ambiente agradável, e que lhes seja servida uma refeição decente, não essas refeições pré-preparadas horrorosas com montes de aditivos estranhos com que vocês enchem o frigorífico, e devo ainda dizer-te que...

 

Patrik ouvia, fascinado, perguntando a si próprio se a mãe tinha chegado a respirar durante aquela alocução. Viu que Erica rangia os dentes e a alegria maldosa deu lugar a um leve sentimento de compaixão.

 

– Mãe, o que acontece é simplesmente que a nossa maneira de fazer as coisas é um pouco diferente – interrompeu-a Patrik. – O que não significa que seja pior. Tu criaste-nos maravilhosamente bem, mas a Erica e eu decidimos partilhar a responsabilidade pelos miúdos e pela casa, e a profissão dela é tão importante como a minha. Claro que tenho de reconhecer que às vezes me encosto um bocado e deixo que a Erica carregue um fardo mais pesado, mas tenho tentado melhorar isso. Por isso, se tens de criticar alguém, critica-me a mim, porque a Erica trabalha como uma mula para que as coisas funcionem. E estamos muitíssimo bem juntos. Pode haver um bocado de sujidade nos cantos e é verdade que comemos douradinhos, morcela frita e almôndegas congeladas, mas parece-me que ainda ninguém morreu por causa disso – deu um passo e beijou Erica na face. – Dito isto, agradecemos-te muito tudo o que fazes para que possamos desfrutar da tua deliciosa comida caseira de vez em quando. Depois dos douradinhos e das almôndegas congeladas, ainda a apreciamos mais.

 

Deu igualmente um beijo na face à mãe. A última coisa que queria era ofendê-la. Não conseguiriam levar aquele barco a bom porto sem a ajuda de Kristina, e gostava muito da mãe. Mas aquela era a casa dele e de Erica. Kristina tinha de compreender.

 

– Sim, bem, não quis criticar-vos. Só queria dar-vos alguns conselhos que podem ser-vos úteis – disse, não parecendo muito ofendida.

 

– Então, fala-me lá do teu namorado. – Patrik viu com satisfação que a mãe corava. Ao mesmo tempo, aquilo parecia um pouco estranho ou, na verdade, muito estranho.

 

– Bem, então... – começou Kristina a dizer.

 

Patrik respirou fundo e preparou-se para o que aí vinha. A mãe tinha um namorado. Olhou para Erica, que lhe enviou um beijo silencioso.

 

 

Terese mal conseguia estar quieta na cadeira. Os filhos berravam tão alto que estava prestes a levantar-se para lhes gritar que se calassem, mas acabou por conseguir conter-se. Não tinham culpa daquela preocupação que estava a devorá-la.

 

Onde raio estaria? Como era costume, a preocupação transformou-se em raiva e o medo cravava-se-lhe como um punhal no peito. Como é que Tyra podia fazer uma coisa daquelas depois do que tinha acontecido a Victoria? Todos os pais de Fjällbacka tinham os nervos à flor da pele desde o desaparecimento de Victoria. E se o raptor ainda estivesse na região? E se as suas filhas corressem perigo?

 

O sentimento de culpa reforçava a preocupação e a raiva. Talvez não fosse tão estranho que Tyra se tivesse esquecido de que ia buscá-la. Normalmente tinha de voltar para casa a pé e várias vezes, depois de lhe ter prometido que ia buscá-la, as coisas acabaram por complicar-se e não pôde aparecer.

 

Não seria melhor telefonar à Polícia? Quando chegou a casa e viu que Tyra não estava, Terese tentou convencer-se de que a filha estava a chegar, que se tinha entretido a conversar com alguma amiga. Até se preparou para as recriminações quando ela chegasse a casa, transpirada e a morrer de frio. Imaginou-se a mimá-la um pouco mais com um chocolate quente e uma sanduíche de queijo gouda com montes de manteiga.

 

Mas Tyra não apareceu. Ninguém abriu a porta, ninguém sacudiu a neve batendo com os pés no chão nem despiu o casaco a tiritar. E ali, sentada na cozinha, Terese sentiu como os pais de Victoria se devem ter sentido no dia em que a filha não voltou para casa. Apenas os tinha visto algumas vezes, o que na verdade era muito estranho. As filhas eram inseparáveis desde a infância, porém, agora que pensava nisso, também não tinha estado muitas vezes com Victoria. As miúdas iam sempre para casa dela. Pela primeira vez, Terese perguntou-se porquê, mas já sabia qual era a dolorosa resposta. Não tinha conseguido criar para os filhos o lar com que sonhara, aquele lugar seguro de que precisavam. As lágrimas começaram a arder-lhe por detrás das pálpebras. Se Tyra voltasse para casa, faria tudo o que estivesse ao seu alcance para mudar tudo isso.

 

Olhou para o telemóvel, como se uma mensagem de Tyra pudesse materializar-se por magia. Terese tinha-lhe telefonado das cavalariças, mas quando voltou a tentar, ao chegar a casa, ouviu o aparelho tocar no quarto da filha. Como já acontecera tantas vezes, tinha deixado o telemóvel em casa. Era mesmo descuidada.

 

De repente ouviu-se um ruído à entrada. Terese sobressaltou-se. Podia ser a sua imaginação, tal era a ansiedade que sentia, porque era quase impossível ouvir alguma coisa com a barulheira que os filhos estavam a fazer. Mas sim, era o ruído de uma chave a rodar na fechadura. Terese levantou-se e dirigiu-se apressadamente ao vestíbulo, rodou a maçaneta e abriu a porta. Um segundo depois, estava a abraçar a filha e pôde deixar correr as lágrimas que contivera várias horas.

 

– Minha querida filha – sussurrou-lhe com a cara enfiada no cabelo dela. Depois perguntar-lhe-ia onde tinha estado. Naquele momento, a única coisa importante era que Tyra tinha regressado a casa.

 

13 Seita fanática religiosa responsável pelo homicídio, em 1969, em Los Angeles, EUA, da atriz Sharon Tate, grávida de oito meses e casada com o realizador Roman Polanski, assim como do assassínio de quatro amigos do casal. (N. do T.)

14 John Wayne Gracy foi responsável pela violação e homicídio, nos anos 70 do século XX, nos EUA, de pelo menos 29 rapazes e homens entre os 9 e os 27 anos. Executado por injeção letal em 1994. (N. do T.)

15 Nascido nos EUA em 1960, Dahmer assassinou 17 homens e rapazes entre 1978 e 1991. Os crimes envolviam violação, necrofilia e canibalismo. Foi assassinado na prisão por um recluso psicótico em 1994. (N. do T.)

16 Considerada a primeira serial killer dos EUA, Wuornos nasceu em 1956 e assassinou sete homens entre 1989 e 1990. Foi executada em 2002 e a sua vida inspirou o filme Monstro, realizado em 2003. As suas últimas palavras foram: «I’ll be back.» (N. do T.)

17 Bundy confessou ter violado e assassinado trinta mulheres nos EUA, mas o número exato das suas vítimas continua a ser desconhecido e pode ser superior. Foi executado na cadeira elétrica em 1989. (N. do T.)

18 Expressão utilizada para brindar nos países nórdicos. (N. do T.)

 

UDDEVALLA, 1972

A FILHA SEGUIA-A COM OS OLHOS PARA ONDE QUER QUE FOSSE E LAILA SENTIA-SE PRISIONEIRA NA SUA PRÓPRIA CASA. VLADEK ESTAVA TÃO PERPLEXO COMO A MULHER, MAS, AO CONTRÁRIO DELA, CONSEGUIA ALIVIAR A PRESSÃO.

DOÍA-LHE O DEDO. TINHA COMEÇADO A SARAR, MAS SENTIA PICADAS À MEDIDA QUE O OSSO IA SOLIDIFICANDO. NOS ÚLTIMOS SEIS MESES FORA AO MÉDICO BASTANTES VEZES. TINHAM COMEÇADO A SUSPEITAR E A FAZER PERGUNTAS. LAILA GRITAVA INTERIORMENTE COM VONTADE DE APOIAR A TESTA NA SECRETÁRIA DO MÉDICO, DEIXAR AS LÁGRIMAS CORRER E CONTAR-LHE TUDO. MAS SÓ DE PENSAR EM VLADEK DETINHA-SE. OS PROBLEMAS TINHAM DE SER RESOLVIDOS NO SEIO DA FAMÍLIA, DIZIA ELE. E SE NÃO MANTIVESSE A BOCA FECHADA, VLADEK NUNCA LHE PERDOARIA.

AFASTARA-SE DA FAMÍLIA. SABIA QUE A IRMÃ TINHA SAUDADES DELA, TAL COMO A MÃE. NO INÍCIO IAM VISITÁ-LOS A UDDEVALLA, MAS DEPOIS FORAM PERDENDO ESSE HÁBITO. HÁ ALGUM TEMPO QUE SE LIMITAVAM A TELEFONAR DE VEZ EM QUANDO E A PERGUNTAR DISCRETAMENTE COMO ESTAVAM A CORRER AS COISAS. TINHAM-SE DADO POR VENCIDAS E LAILA DESEJAVA PODER FAZER COMO ELAS, MAS ERA IMPOSSÍVEL, POR ISSO MANTINHA-AS AFASTADAS, RESPONDIA ÀS SUAS PERGUNTAS SEM SE ALARGAR, PROCURANDO MANTER UM TOM DESCONTRAÍDO E NÃO EMPREGAR PALAVRAS ALARMISTAS. NÃO PODIA CONTAR-LHES NADA.

A FAMÍLIA DE VLADEK TELEFONAVA AINDA COM MENOS FREQUÊNCIA, MAS SEMPRE FORA ASSIM DESDE O INÍCIO. VIAJAVAM MUITO E NÃO TINHAM MORADA FIXA; POR ISSO, COMO PODERIAM MANTER-SE EM CONTACTO? ANTES ASSIM. TERIA SIDO IGUALMENTE IMPOSSÍVEL CONTAR-LHES. VLADEK E LAILA MAL CONSEGUIAM EXPLICÁ-LO A SI PRÓPRIOS.

AQUELE ERA UM FARDO QUE TERIAM DE CARREGAR SOZINHOS.

 

LASSE IA ASSOBIANDO ALEGREMENTE enquanto passeava pela rua. A satisfação após o encontro do dia anterior na congregação ainda durava. A sensação de pertencer ao grupo era como uma bebedeira na sobriedade e era muito libertador fugir de toda aquela escala de cinzentos que reinava no mundo e compreender que a resposta a todas as perguntas se encontrava entre as capas da Bíblia.

 

Por isso sabia que o que estava a fazer era o correto. Caso contrário, porque lhe teria dado Deus aquela saída? Porque o teria tão oportunamente colocado no Seu caminho, logo no momento em que era preciso castigar o pecador? No mesmo dia em que tinha acontecido, pedira a Deus para o ajudar a sair daquela situação, que sabia ser cada vez mais desesperada. Lasse acreditava que a resposta às suas orações se manifestaria sob a forma de um contrato de trabalho, mas não foi isso que aconteceu e a saída apresentou-se de outra maneira. E quem sofreu foi um pecador da pior espécie, um pecador que merecia o rigor da justiça bíblica.

 

Terese tinha começado a perguntar pelo dinheiro. Era Lasse quem se encarregava de pagar as contas, mas Terese não conseguia explicar como era possível que o ordenado que ganhava no supermercado Konsum desse para tudo, agora que ele estava desempregado. Lasse respondeu evasivamente, falando do subsídio que recebia, mas Terese mostrou-se cética. Enfim, tudo acabaria por resolver-se. As respostas não tardariam a aparecer.

 

Nesses momentos, Lasse ia até à praia de Sälvik. Escolhera-a como ponto de encontro porque de certeza que estaria vazia naquela época do ano. No verão, a praia que ficava ao lado do parque de campismo de Fjällbacka era um formigueiro humano; mas agora estava deserta e a casa mais próxima ainda ficava a alguma distância. Era um lugar perfeito para se encontrarem e era sempre Lasse quem propunha os encontros.

 

O chão estava escorregadio, por isso, Lasse descia cuidadosamente o caminho que conduzia à praia. Uma espessa camada de neve cobria o areal e Lasse viu que o gelo se estendia mar adentro. No fim do cais, perto das escadas, tinha sido feito um furo para os malucos que insistiam em saltar para a água no inverno. Lasse, por seu lado, achava que o clima sueco não era de todo adequado para banhos, nem sequer no verão.

 

Foi o primeiro a chegar. O frio trespassava-lhe a roupa e lamentou não ter vestido mais uma camisola. Mas tinha dito a Terese que ia a uma reunião da congregação e não quis levantar suspeitas, agasalhando-se demasiado.

 

Cheio de impaciência, Lasse subiu para o cais completamente silencioso sob os seus pés, congelado e formando com o gelo um bloco uniforme. Olhou para o relógio e franziu a testa, irritado. Depois caminhou até à extremidade, inclinou-se sobre o corrimão das escadas e olhou para baixo. Aqueles banhistas tresloucados deviam ter ali estado recentemente, porque ainda não tinha começado a formar-se gelo na água do furo. Estremeceu. A água não devia estar muitos graus acima de zero.

 

Ouviu passos no cais e virou-se.

 

– Atrasaste-te – disse, apontando para o relógio.

 

– Dá-me o dinheiro e vamos acabar com isto o mais depressa possível. Não quero que me vejam aqui. Além disso, estou quase a congelar.

 

Estendeu a mão e sentiu que a expectativa lhe fazia vibrar todo o corpo. Deus era bom e tinha-lhe encontrado aquela solução. Desprezava o pecador que tinha à sua frente com um ardor que lhe inflamava as faces.

 

Mas aquele sentimento não tardou a dar lugar à surpresa. E ao medo.

 

Não conseguia parar de pensar no livro. Quando Patrik lhe dissera que tinha de trabalhar, Erica a princípio ficou um pouco irritada, porque tinha planeado fazer outra visita à prisão psiquiátrica. Mas depois chamou-se à razão. Claro que o marido tinha de ir para a esquadra, mesmo ao sábado. A investigação do desaparecimento de Victoria entrara numa nova fase que exigia um trabalho intenso e Erica sabia que Patrik não se renderia até ter solucionado o caso.

 

Por sorte, Anna podia dar uma ajuda e servir de babysitter, de modo que Erica estava novamente na sala de visitas do estabelecimento prisional. Não sabia como começar a conversa, mas o silêncio não parecia incomodar Laila, que olhava pensativamente pela janela.

 

– No outro dia estive na casa – disse Erica. Observou Laila para ver como reagia às suas palavras, mas aqueles olhos azuis gélidos não revelaram nada. – Acho que devia ter ido lá antes, mas talvez o tenha andado a evitar inconscientemente.

 

– É apenas uma casa. – Laila encolheu os ombros. Todo o seu ser irradiava indiferença e Erica teve vontade de se inclinar para a frente e abaná-la. Depois de ter vivido naquela casa, onde permitira que a filha permanecesse acorrentada na cave como um animal, como podia mostrar-se indiferente a semelhante crueldade, por mais terrível que tivesse sido o tormento a que Vladek a submetera e por mais que a sua personalidade tivesse sido anulada?

 

– Com que frequência a agredia? – perguntou Erica, tentando manter a calma.

 

Laila franziu a testa.

 

– Quem?

 

– Vladek – respondeu Erica, perguntando a si própria se Laila se estaria a fazer de parva. Tinha lido a história clínica de Uddevalla e estava a par dos ferimentos.

 

– É fácil julgar – afirmou Laila, cravando os olhos na mesa. – Mas Vladek não era mau.

 

– Como é que pode dizer uma coisa dessas depois do que vos fez, a si e à Louise?

 

Embora soubesse algo acerca da psicologia das vítimas, Erica não compreendia que Laila continuasse a defender Vladek. Afinal de contas, tinha-o matado, em legítima defesa ou para se vingar da violência a que os submetera a todos, aos filhos e a ela própria.

 

– Ajudou-o a acorrentar Louise? Vladek obrigou-a a fazê-lo? É por isso que não quer falar, porque se sente culpada? – Era a primeira vez que Erica pressionava Laila. Talvez tivesse sido a conversa do dia anterior com Nettan, o desespero daquela mulher com o desaparecimento da filha, o que a indignava tanto naquele momento. Não era normal permanecer tão indiferente ao sofrimento de uma criança.

 

Incapaz de se controlar, abriu a mala que levava sempre consigo e tirou a pasta com as fotografias.

 

– Veja! Será que já se esqueceu de como estava tudo quando a Polícia chegou à vossa casa? Então veja, veja bem! – Erica empurrou uma fotografia sobre a mesa na direção de Laila, que olhou relutantemente para ela passado algum tempo. Erica mostrou-lhe outra. – E veja esta. Aqui está a cave, tal como a Polícia a encontrou naquele dia. Vê a corrente a as tigelas de comida e de água? Como se a Louise fosse um animal! Era uma menina que estava ali acorrentada, a sua filha! E a Laila permitiu que o Vladek a mantivesse presa numa cave escura. Compreendo que o tenha matado, eu também o teria feito se alguém tivesse tratado um filho meu daquela maneira. Mas porque é que o defende?

 

Erica calou-se e respirou fundo. O coração martelava-lhe o peito e lembrou-se de que a vigilante do lado de fora estava a vê-la através do vidro da porta. Baixou a voz.

 

– Desculpe-me, Laila, é que... Não queria ofendê-la, mas a casa impressionou-me muito.

 

– Parece que lhe chamam a Casa dos Horrores – disse Laila, que devolveu as fotografias a Erica, empurrando-as pelo tampo da mesa. – O nome assenta-lhe bem. Era uma casa dos horrores. Mas não pelo motivo que toda a gente pensa. – Laila levantou-se e bateu à porta para que a deixassem sair.

 

Erica deixou-se ali ficar, amaldiçoando-se a si própria. Agora, Laila não ia querer voltar a falar com ela e não poderia terminar o livro.

 

Mas a que estaria Laila a referir-se quando dissera aquelas últimas palavras? O que é que não era como toda a gente pensava? Resmungando, recolheu as fotografias e voltou a guardá-las na pasta.

 

Sentiu uma mão no ombro, que lhe interrompeu aqueles pensamentos coléricos.

 

– Venha, quero mostrar-lhe uma coisa. – Era a vigilante, que estava do outro lado da porta.

 

– O quê? – perguntou Erica, levantando-se.

 

– Já vai ver. Está no quarto da Laila.

 

– A Laila não está lá?

 

– Não, foi ao jardim. Quando fica alterada, vai sempre dar um passeio. De certeza que se vai demorar um bocado, mas despache-se, não vá o diabo tecê-las.

 

Erica leu o nome na camisa da mulher: Tina. Seguiu-a, apercebendo-se de que era a primeira vez que ia ver o quarto onde Laila passava a maior parte do seu tempo.

 

Tina abriu uma porta que havia ao fundo do corredor e Erica entrou. Não fazia a mais pequena ideia de como eram os quartos dos reclusos e, provavelmente, tinha visto demasiadas séries americanas, porque esperava encontrar algo como uma divisão almofadada. No entanto, era um quarto agradável e tão acolhedor quanto era possível. Uma cama imaculada, uma mesa de cabeceira com um despertador e um pequeno elefante de porcelana cor-de-rosa bastante bonito e com expressão ensonada, uma mesa com uma televisão ligada. Na janela, que não era grande e era alta, mas que mesmo assim deixava entrar bastante luz, havia cortinas amarelas.

 

– Laila pensa que não sabemos de nada. – Tina aproximou-se da cama e ajoelhou-se.

 

– Tem autorização para fazer isto? – perguntou Erica, olhando para a porta. Não sabia se estava mais nervosa por Laila poder chegar de repente ou por poder aparecer um chefe que pensasse que estavam a violar os direitos da reclusa.

 

– Temos o direito de ver tudo o que esteja nos quartos – disse Tina, e estendeu o braço sob o colchão.

 

– Sim, mas eu não trabalho aqui – objetou Erica enquanto tentava dominar a curiosidade.

 

Tina tirou uma caixa, levantou-se e entregou-a a Erica.

 

– Quer ver ou não?

 

– Claro que sim.

 

– Bem, eu fico a vigiar, já sei o que está aí. – Tina foi até à porta, deixou-a entreaberta e pôs-se a observar o corredor.

 

Depois de lançar um olhar de preocupação a Tina, Erica sentou-se na beira da cama com a caixa em cima dos joelhos. Se Laila aparecesse naquele momento, a pouca confiança que ainda pudesse depositar nela desapareceria instantaneamente. Mas como poderia resistir à tentação de ver o que estava na caixa? Tina parecia acreditar que aquilo lhe interessaria...

 

Abriu a tampa com expectativa. Não sabia o que esperar, mas o conteúdo surpreendeu-a. Foi retirando um a um os recortes de jornais e os pensamentos começaram a assaltá-la desordenadamente. Porque é que Laila tinha conservado os recortes das raparigas desaparecidas? Porque é que aquilo lhe interessava? Erica passava rapidamente os olhos pelos artigos e apercebeu-se de que Laila se tinha dado ao trabalho de recortar a maior parte do que fora publicado sobre os desaparecimentos na imprensa local.

 

– Laila pode aparecer a qualquer momento – avisou Tina com os olhos fixos no corredor. – Mas a senhora também concorda que isso é estranho, não é? Assim que os jornais chegam, atira-se a eles e, depois de toda a gente os ter lido, pede-os. Não sabia para que os queria até ter encontrado a caixa.

 

– Obrigada – disse Erica, recolocando os recortes na caixa. – Onde é que estava?

 

– Junto ao pé da cama, ao fundo, ao canto – respondeu Tina, tentando não perder de vista o corredor para ver se via Laila.

 

Erica empurrou lentamente a caixa, devolvendo-a ao seu lugar. Não sabia exatamente o que pensar do que acabara de descobrir. Talvez não significasse nada. Talvez Laila se interessasse simplesmente pelos casos das raparigas desaparecidas. As pessoas podiam ficar obcecadas pelas coisas mais estranhas. Ao mesmo tempo, não acreditava que fosse essa a explicação. Havia uma relação entre a vida de Laila e algumas daquelas raparigas que desconhecia em absoluto. Mas estava determinada: ia descobrir qual era essa ligação.

 

– Bem, temos bastantes informações para rever – disse Patrik.

 

Todos assentiram. Annika estava a postos, de bloco e esferográfica na mão, e Ernst, deitado debaixo da mesa, esperava que caíssem algumas migalhas. Ou seja, tudo como sempre. Apenas a tensão que reinava na cozinha da esquadra revelava que aquela não era uma das habituais pausas para o café.

 

– Martin e eu estivemos ontem em Gotemburgo. Conversámos com Anette, a mãe da Minna Wahlberg, mas também com Gerhard Struwer, que nos deu o seu ponto de vista sobre o caso a partir do material que lhe enviámos.

 

– Uma data de disparates – murmurou Mellberg como se lhe tivessem pedido a opinião. – Um desperdício de recursos.

 

Patrik ignorou os comentários do chefe e prosseguiu:

 

– Martin passou a limpo as notas que tomou e vamos entregar uma cópia a cada um.

 

Annika começou a distribuir um monte de folhas que estava em cima da mesa.

 

– Tinha pensado resumir os pontos mais importantes, mas gostava que depois lessem o relatório completo, para o caso de me ter escapado alguma coisa.

 

Da forma mais sucinta possível, Patrik contou-lhes ambas as conversas.

 

– Do que o Struwer disse, há duas coisas que julgo que devemos ter em linha de conta. Para começar, referiu que a Minna se distingue das outras raparigas. Tanto o seu ambiente familiar como o modo como desapareceu são diferentes. A questão é saber se havia alguma razão para escolher a Minna por causa disso. Creio que o Struwer tem razão e que devemos estudar com mais atenção o seu rapto. Por isso é que quis encontrar-me com a mãe da Minna. Talvez o raptor tivesse um relacionamento pessoal com a Minna. O que, por sua vez, faria com que ficássemos mais perto de solucionar o caso da Victoria. Em colaboração com a Polícia de Gotemburgo, como é lógico.

 

– Claro – disse repentinamente Mellberg. – Mas como eu referi, estas coisas podem ser delicadas e...

 

– Não vamos imiscuir-nos no território de ninguém – interrompeu-o Patrik, e ficou surpreendido por se aperceber de que Mellberg tinha de dizer as coisas pelo menos duas vezes. – Mas espero termos oportunidade de nos encontrarmos com os nossos colegas de Gotemburgo. Por outro lado, o Struwer aconselhou-nos precisamente a que nos reuníssemos com representantes de outros distritos policiais para avaliarmos juntos todas as informações disponíveis. Não é fácil, mas julgo que devíamos tentar organizar uma reunião conjunta.

 

– Vai custar um balúrdio. Viagens, alojamento, horas extraordinárias. As chefias nunca vão aceitar uma coisa dessas – afirmou Mellberg, dando um pedaço de bolo a Ernst por baixo da mesa.

 

Patrik teve de se conter para não resfolegar alto e bom som. Trabalhar com Mellberg podia ser como tirarem-nos um dente muito lentamente. Por outras palavras, nunca era indolor.

 

– Resolveremos esse problema quando se colocar. Não me surpreenderia nada que fosse atribuída tal prioridade a este caso a ponto de nos enviarem recursos do comando central.

 

– Devíamos poder reunir-nos todos. Podíamos propor a realização da reunião em Gotemburgo, não acham? – Martin inclinou-se para a frente na cadeira.

 

– Sim, é uma excelente ideia – disse Patrik. – Annika, podes encarregar-te de coordenar a reunião? Já sei que estamos na época natalícia e que pode ser difícil localizar alguns deles, mas gostava que ficasse agendado o mais depressa possível.

 

– Claro. – Annika fez uma anotação no bloco e rematou a frase com um enorme ponto de exclamação.

 

– É verdade que encontraste a patroa em Gotemburgo? – perguntou Gösta.

 

Patrik revirou os olhos.

 

– Bem, realmente é impossível ter segredos nesta esquadra.

 

– O quê? A Erica estava em Gotemburgo? E o que é que tinha ido lá fazer? Já está outra vez a meter-se onde não deve? – Mellberg estava tão indignado que o ninho de cabelo desabou para cima de uma orelha. – Tens de aprender a controlar essa mulher. Não podemos consentir que interfira no nosso trabalho.

 

– Já falei com a Erica e não voltará a acontecer – disse calmamente Patrik, mas sentiu a irritação do dia anterior a latejar-lhe por dentro. Era inexplicável que Erica não compreendesse a que ponto conseguia complicar as coisas e dificultar o trabalho da Polícia com a sua interferência.

 

Mellberg olhou para Patrik com ar cético.

 

– Sim, mas não podemos dizer que a Erica ligue grande coisa ao que o Hedström diz, pois não?

 

– Eu sei, mas prometo que não voltará a acontecer. – Patrik apercebeu-se de como soava pouco credível e, por via das dúvidas, apressou-se a mudar de assunto. – Porque não nos contas outra vez o que aconteceu ontem, Gösta? Aquilo que me disseste ao telefone.

 

– O quê? – perguntou Gösta.

 

– As duas visitas que fizeste, embora a segunda me pareça mais interessante.

 

Gösta assentiu. Sem pressas e por ordem, contou a visita a Jonas e a conversa sobre a ketamina que tinha sido roubada pouco antes do rapto de Victoria. Depois explicou como tinha relacionado a queixa de Katarina com o caso de Victoria e, por fim, a descoberta da ponta de cigarro no jardim.

 

– Bom trabalho – disse Martin. – Quer dizer que o quarto de Victoria se vê perfeitamente do jardim dessa mulher?

 

Gösta endireitou-se na cadeira, orgulhoso. Não era todos os dias que lhe elogiavam a capacidade de iniciativa.

 

– Sim, é isso mesmo, e acho que a pessoa em questão estava lá a fumar e a espiá-la. Encontrei o cigarro exatamente no sítio onde a Katarina viu alguém.

 

– E enviaste a ponta de cigarro para o laboratório? – interveio Patrik.

 

Gösta voltou a assentir.

 

– Sim, senhor. Torbjörn já a tem e, se houver ADN, podemos compará-lo e ver se corresponde ao de algum suspeito.

 

– Bem, é melhor não nos precipitarmos, mas também acho que sim, que era o raptor que estava lá a vigiá-la. Certamente para ter uma ideia dos hábitos da Victoria e depois poder raptá-la. – Mellberg entrelaçou os dedos sobre a barriga com ar satisfeito. – Podíamos fazer a mesma coisa que fizeram naquela cidade inglesa, não era? Recolher o ADN de todos os habitantes de Fjällbacka e depois comparar os resultados com o ADN da ponta de cigarro. Assim, de uma penada, tínhamos o nosso homem. Simples e brilhante.

 

– Para começar, não sabemos se é um homem. – Patrik fez um esforço para ser paciente. – Além disso, tendo em conta o local onde desapareceram as outras raparigas, não sabemos se o culpado é desta zona. Pelo contrário, há vários indícios a sugerir que a ligação está em Gotemburgo, no caso da Minna Wahlberg.

 

– Porque é que o Hedström tem de ser sempre tão negativo... – disse Mellberg, irritado ao ver que aquele plano, brilhante na sua opinião, fora imediatamente descartado.

 

– Diga antes realista – contrapôs Patrik, mas arrependeu-se imediatamente. Era absurdo argumentar com Mellberg. E, se cedesse a essa tentação, nunca mais teria tempo de fazer outra coisa. – Creio que a Paula esteve cá ontem, não foi? – perguntou, mudando de assunto. Mellberg assentiu.

 

– Sim, conversámos um pouco sobre o caso e a questão da língua cortada parece ter-lhe recordado algo que tinha visto num relatório antigo. O problema é que não se lembra de que caso era, e quando ocorreu. Já se sabe como fica o cérebro de quem deu à luz há pouco tempo.

 

Mellberg levou o dedo à têmpora e começou a movê-lo em círculos, mas parou imediatamente quando ouviu Annika a resfolegar em protesto. Se havia alguém no mundo que Mellberg não queria irritar, era a secretária da esquadra. E talvez também não fosse muito boa ideia implicar com Rita quando estava com os azeites.

 

– Paula esteve umas duas horas no arquivo – informou Gösta. – Mas julgo que não encontrou o que queria.

 

– Pois, por isso estava a pensar voltar hoje. – Mellberg sorriu e olhou com ar submisso para Annika, que continuava irritada.

 

– Desde que saiba que não lhe podemos pagar horas extraordinárias – disse Patrik.

 

– Sim, sim, a Paula sabe. Na verdade, penso que ela precisa de sair um pouco de casa – acrescentou Mellberg com uma lucidez pouco habitual.

 

Martin sorriu.

 

– Bem, para preferir ir para o arquivo em vez de estar em casa é porque já devia estar a trepar às paredes.

 

O sorriso iluminou-lhe o rosto e Patrik apercebeu-se de como aquilo era raro ultimamente. Tinha de dar mais apoio a Martin. Não devia ser fácil carregar o luto pela morte de Pia, ter ficado sozinho com a filha e, além disso, tomar parte numa investigação daquela envergadura.

 

Patrik devolveu-lhe o sorriso.

 

– Esperemos que consiga descobrir alguma coisa.

 

Gösta ergueu a mão.

 

– Sim? – disse Patrik.

 

– Não consigo parar de pensar no assalto em casa de Jonas. Talvez valha a pena perguntar às raparigas das cavalariças, quem sabe... Pode ser que alguma tenha visto alguma coisa.

 

– Boa ideia. Tu podes tratar disso depois do minuto de silêncio de hoje, mas sê cuidadoso, de certeza que as raparigas estão muito perturbadas.

 

– Claro, e Martin podia vir comigo, assim seria mais fácil.

 

Patrik olhou de relance para Martin.

 

– Não sei, achas mesmo que o Martin podia aju...

 

– Por mim, tudo bem; vou contigo – interrompeu Martin.

 

Patrik hesitou por um instante.

 

– Okay – disse, virando-se para Gösta. – Encarregas-te também de manter o contacto com Torbjörn por causa dos resultados da análise de ADN?

 

Gösta assentiu.

 

– Ótimo. Também acho que devemos falar com os vizinhos da Katarina, para saber se algum se lembra de ter visto alguém a rondar por lá. E com a família da Victoria, para ver se repararam se alguém andava a vigiá-los.

 

Gösta passou a mão pelo cabelo grisalho, que ficou espetado.

 

– Se assim fosse já nos teriam dito. Acho que lhes perguntámos se tinham visto alguém a rondar a casa, mas posso consultar os relatórios das declarações que prestaram.

 

– Bem, seja como for, fala novamente com eles. Agora sabemos que alguém estava de facto a vigiar a casa. Eu posso falar com os vizinhos. Bertil, o senhor podia controlar tudo e ver se, com a ajuda de Annika, pode organizar a reunião conjunta?

 

– Claro. Quem faria isso se não fosse eu? Eles querem é falar com o chefe e com o responsável pela investigação.

 

– Ótimo, então, tenham cuidado lá fora – disse Patrik, mas sentiu-se um pouco ridículo, como se aquilo fosse um episódio de A Balada de Hill Street19. De qualquer forma valeu a pena, porque Martin estava outra vez a sorrir.

 

– Daqui a uma semana há outra competição. Esquece a que perdeste e pensa na próxima. – Jonas acariciou a cabeleira de Molly. Ficava sempre espantado por ser tão parecida com a mãe.

 

– Pareces o Dr. Phil da televisão – resmungou Molly com o rosto enterrado na almofada. A alegria da promessa do carro já tinha passado e Molly estava outra vez irritada por não ter podido participar na competição.

 

– Se não treinares o suficiente, vais arrepender-te e não fará sentido irmos lá. Além disso, quem se vai chatear mais por não ganhar és tu, não sou eu nem a mãe.

 

– A Marta não quer saber – disse Molly baixinho.

 

Jonas deteve a mão no ar e parou de acariciá-la.

 

– Então, todos os quilómetros que andámos e todas as horas que dedicámos não contam. A mãe... A Marta tem investido muito dinheiro e tempo nas tuas competições, e é muito ingrato da tua parte falares assim. – Jonas apercebeu-se de que estava a falar asperamente, mas a filha tinha de crescer de uma vez.

 

Molly sentou-se lentamente na cama. Toda ela irradiava espanto por causa do tom com que o pai lhe falara. Abriu a boca como se estivesse prestes a protestar, mas depois baixou os olhos.

 

– Desculpa – disse em voz baixa.

 

– Não percebi. Que disseste?

 

– Desculpa! – As lágrimas encheram-lhe a garganta e Jonas abraçou-a. Sabia que sempre a tinha mimado e estava consciente de ter contribuído tanto para as suas virtudes, como para os seus defeitos. Mas aquilo tinha-lhe feito bem. Molly tinha de aprender que, às vezes, a vida exigia que nos conformássemos.

 

– Vá, minha querida, anda... Vamos para baixo para montares? Se queres dar cabo da Linda Bergvall, tens de treinar. Ela que não pense que já assegurou o lugar no trono.

 

– Pois não... – disse Molly, e limpou as lágrimas com a manga.

 

– Anda. Hoje não tenho trabalho, por isso pensei que podia acompanhar-te enquanto treinas. A mãe está à tua espera lá em baixo com Scirocco.

 

Molly girou as pernas para fora da cama e Jonas divisou o instinto competitivo no brilho dos olhos da filha. Nisso eram parecidos como duas gotas de água. Nenhum deles gostava de perder.

 

Quando chegaram à pista, Marta esperava-os com Scirocco já selado e pronto. Olhou para o relógio com um gesto eloquente.

 

– Ainda bem que a senhora se dispôs a aparecer. Já devia estar cá há meia hora.

 

Jonas lançou um olhar de advertência à mulher. Uma palavra imprudente e Molly correria de volta para a cama para se pôr novamente a choramingar. Viu que Marta se debatia consigo mesma. Não suportava ter de adaptar-se aos desejos da filha e, embora assim o tivesse escolhido, detestava não fazer parte da equipa pai e filha. Mas também gostava de ganhar, mesmo que fosse através de uma filha que nunca quisera ter e que nunca compreendera.

 

– Já preparei a pista – disse, entregando o cavalo a Molly.

 

Molly montou de um salto e pegou nas rédeas. Com os músculos e os calcanhares, esporeou Scirocco, que obedeceu como sempre. Quando Molly montava era como se a adolescente e os seus acessos de raiva se esfumassem. Ali estava uma mulher forte, segura de si, calma e cheia de confiança. Jonas adorava testemunhar aquela transformação.

 

Subiu os degraus e sentou-se para poder observar o trabalho de Marta. Ia ensinando a filha com sábia mestria e sabia exatamente como conseguir que tanto a cavaleira como o cavalo dessem o máximo. Molly tinha um talento natural para todas as disciplinas equestres, mas era Marta quem aperfeiçoava esse talento. Evoluía com grande desenvoltura na pista e bastavam breves instruções para que cavalo e cavaleira voassem por cima dos obstáculos. Ia sair-se bem na competição. Formavam uma equipa imbatível: Marta, Molly e ele. Lentamente, sentiu crescer dentro de si aquela expectativa que tão bem conhecia.

 

Erica estava no escritório a rever a longa lista de tarefas que tinha para fazer. Anna dissera-lhe que podia ficar todo o dia com os miúdos, se fosse preciso, e Erica não hesitou em aceitar a oferta. Eram tantas as pessoas com quem devia falar e tinha muito material por ler... E gostaria de ter avançado mais. Assim, talvez compreendesse porque é que Laila tinha juntado todos aqueles artigos. Por um instante, pensou em perguntar-lho diretamente, mas depois concluiu que isso não serviria de nada. Depois de ter saído da prisão psiquiátrica foi para casa tentar descobrir mais alguma coisa.

 

– Mamãaaa! Os gémeos estão a brigar! – Erica apanhou um susto quando ouviu a voz de Maja. Segundo Anna, os filhos tinham-se comportado de forma exemplar, mas naquele momento parecia que estavam a matar-se uns aos outros lá em baixo.

 

Desceu os degraus dois a dois e entrou como um furacão na sala. Lá estava Maja, a olhar com irritação para os irmãos, que realmente estavam a brigar no sofá.

 

– Não me deixam ver televisão, mamã. Querem à força que lhes dê o comando e estão sempre a desligá-la.

 

– Bem, paciência – atalhou Erica, um pouco mais zangada do que pretendia. – Assim mais vale que ninguém veja televisão e ponto final.

 

Aproximou-se do sofá e pegou no controlo remoto. Os filhos olharam-na com espanto e começaram a chorar em uníssono. Erica contou lentamente até dez, porém, apesar disso, sentiu o suor e a irritação a emergirem. Nunca imaginou que ser mãe exigisse tanta paciência. E tinha vergonha por uma vez mais ter castigado Maja por algo de que não era culpada.

 

Anna, que estava na cozinha com Emma e Adrian, também apareceu na sala de estar. Vendo a expressão de Erica, fez um meio sorriso.

 

– Acho que te faria bem saíres mais um bocadinho. Não tens mais voltas para dar? Aproveita enquanto estou cá.

 

Erica estava prestes a responder que ficaria contente se conseguisse trabalhar um pouco em paz quando teve uma ideia. Sim, havia uma coisa que tinha de fazer. Um ponto da lista que lhe interessava mais do que qualquer outro.

 

– A mamã tem de ir trabalhar mais um bocadinho, mas a Anna fica convosco. E, se se portarem bem, preparo-vos um lanche.

 

Os filhos calaram-se imediatamente. Era óbvio que a palavra lanche exercia neles um efeito mágico.

 

Erica deu um abraço à irmã. Foi até à cozinha para telefonar e certificar-se de que a viagem não era em vão e, um quarto de hora mais tarde, estava a caminho. Por essa altura, os filhos já deviam estar mais do que satisfeitos, sentados a uma mesa repleta de bolos de canela e de bolachinhas. Ingeririam uma grande quantidade de açúcar, mas Erica preocupar-se-ia com isso mais tarde.

 

Não foi difícil encontrar a casa geminada nos arredores de Uddevalla onde Wilhelm Mosander morava. Ao telefone parecia cheio de curiosidade e abriu logo a porta antes de Erica ter tido tempo de pôr o dedo na campainha.

 

– Entre – disse um idoso.

 

Erica sacudiu um pouco a neve das botas antes de entrar.

 

Era a primeira vez que via Wilhelm Mosander em pessoa, mas conhecia-o muito bem. Já na sua juventude era uma lenda como jornalista do Bohusläningen e a sua reportagem mais famosa fora precisamente sobre o homicídio de Vladek Kowalski.

 

– Então está a escrever outro livro? – O homem deu um passo em frente e entrou na cozinha. Erica olhou em redor e descobriu que era pequena, mas limpa e arrumada. Acolhedora. Não havia qualquer indicação de presença feminina, por isso assumiu que Wilhelm era solteiro. Como se lhe tivesse lido a mente, o homem disse:

 

– A minha mulher morreu há dez anos, por isso vendi o velho casarão que tínhamos e mudei-me para aqui. É muito mais fácil de manter, mas claro que é um pouco espartana, porque não há cortinas nem outros enfeites.

 

– Eu acho-a muito bonita. – Erica sentou-se à mesa da cozinha e o homem não tardou a servir o café da praxe. – Sim, sobre a Casa dos Horrores – disse, respondendo à pergunta de Wilhelm.

 

– E qual acha que possa ser a minha contribuição? Calculo que já tenha lido mais do que eu escrevi.

 

– Sim, Kjell Ringholm, do Bohusläningen, facultou-me os artigos. E, como pode imaginar, juntei dados acerca de como tudo aconteceu e sobre o julgamento. O que eu queria era ouvir as impressões de alguém que esteve lá. Suponho que tenha observado e descoberto coisas acerca das quais depois não pôde escrever. Talvez tenha alguma teoria própria sobre o caso, não sei. Pelo que ouvi dizer, nunca deixou de se interessar por ele. – Erica bebeu um gole de café sem deixar de observar Wilhelm.

 

– Sim. Bem, havia muito sobre que escrever. – O jornalista fitava-a sem desviar o olhar e Erica viu-lhe um brilho nos olhos. – Nem antes nem depois me deparei com um caso tão interessante. De uma maneira ou de outra, afetou toda a gente que estava relacionada com ele.

 

– Sim, é uma das histórias mais terríveis que já ouvi na vida. E gostava de saber exatamente o que aconteceu naquele dia...

 

– Então já somos dois – disse Wilhelm. – Embora a Laila tenha confessado o homicídio, nunca me livrei da sensação de que havia qualquer coisa que não batia certo. Não tenho nenhuma teoria, mas julgo que a verdade era muito mais complicada.

 

– Exato – disse ansiosamente Erica. – O problema é que a Laila se recusa a falar sobre isso.

 

– Ah, mas concordou encontrar-se consigo? – perguntou Wilhelm, interessado. – Quem diria.

 

– Sim, encontramo-nos de vez em quando. Passei algum tempo a tentar, enviei-lhe cartas, telefonei-lhe... Já tinha começado a perder a esperança quando, de repente, ela aceitou receber-me.

 

– Veja lá. Passou aqueles anos todos em silêncio e agora quer falar consigo... – Wilhelm movia a cabeça como se não conseguisse acreditar. – Eu tentei umas quantas vezes que me desse uma entrevista e nunca consegui.

 

– Pois. Mas ela não diz grande coisa. Na verdade, não consegui sacar-lhe nada com interesse. – O que acabara de dizer, até a ela lhe pareceu pessimista.

 

– Conte-me, como está a Laila? Como é que lhe pareceu? – Erica sentiu que a conversa estava a tomar um rumo errado. Era ela quem tinha de fazer as perguntas, não o contrário, mas decidiu ser um pouco complacente. Dar e receber, devia ser esse o jogo.

 

– Está serena. Calma. Mas, ao mesmo tempo, parece preocupada com alguma coisa.

 

– Diria que tem algum sentimento de culpa em relação ao homicídio? E pelo que fez à filha?

 

Erica tentou recordar-se.

 

– Bem, sim e não. Não se pode dizer que esteja arrependida, mas ao mesmo tempo responsabiliza-se pelo que aconteceu. É difícil de explicar. Uma vez que, no fundo, não diz nada sobre isso, tudo o que posso fazer é ler nas entrelinhas. Mas claro que posso estar enganada ao interpretá-la e posso estar a deixar-me levar pelos meus sentimentos em relação ao que a Laila fez.

 

– Sim, foi horrível. – Wilhelm assentiu. – Esteve na casa?

 

– Fui lá no outro dia. Está bastante degradada, mas é normal, tendo em conta que está vazia há muito tempo. Mas era como se as paredes estivessem impregnadas de qualquer coisa... E a cave... – Erica ficou arrepiada só de se lembrar.

 

– Sei o que quer dizer. É um mistério como se pode tratar uma filha como o Vladek a tratou. E como a Laila pôde deixar que isso acontecesse. Pessoalmente, considero que a Laila é tão culpada como ele, apesar de viver apavorada com o que Vladek pudesse fazer. Há sempre uma saída e julgo que o instinto maternal devia ter sido mais poderoso.

 

– Não tratavam assim o filho. Porque é que lhe parece que o Peter teve melhor sorte?

 

– Bem, na verdade, nunca o consegui esclarecer. Provavelmente já leu a entrevista que fiz a alguns psicólogos sobre isso.

 

– Sim, diziam que a misoginia de Vladek o impulsionava a ser violento apenas com as mulheres da família. Mas isso não é inteiramente verdade. De acordo com a história clínica, o Peter também apresentava ferimentos. Tinham-lhe deslocado o braço e tinha um corte profundo feito com uma arma branca...

 

– Sim, mas não se pode comparar com o que fizeram à Louise.

 

– Tem alguma ideia do que aconteceu ao Peter? Não consegui encontrá-lo. Ainda.

 

– Nem eu. Se o conseguir localizar, agradeço-lhe que me avise.

 

– Não está reformado? – perguntou Erica, dando-se conta de que era uma pergunta absurda. Há muito que o caso Kowalski deixara de ser um simples trabalho jornalístico para Wilhelm, se é que alguma vez o fora. Erica viu-lhe nos olhos que, com o passar dos anos, aquilo tornara-se mais uma obsessão. E o homem não respondeu à pergunta, continuando a falar de Peter.

 

– É realmente um grande mistério. Como sabe, depois do homicídio, o Peter teve de ir morar com a avó materna, e parecia estar bem por lá. Mas, quando tinha quinze anos, a avó foi assassinada num assalto à casa. O Peter estava num acampamento de futebol em Gotemburgo no dia em que isso aconteceu. A partir daí foi como se a terra o tivesse engolido.

 

– Será que se suicidou? – perguntou Erica, pensando em voz alta. – De alguma forma estranha, fazendo com que nunca encontrassem o cadáver, por exemplo.

 

– Quem sabe. Seria mais uma tragédia na família.

 

– Está a pensar na morte da Louise?

 

– Sim, afogou-se quando vivia com uma família de acolhimento que se pensou lhe daria o melhor apoio depois do trauma que sofrera.

 

– Foi um acidente inexplicável, não foi? – Erica tentou recordar os pormenores do que lera.

 

– Sim, tanto a Louise como a outra rapariga acolhida pela família, aproximadamente da mesma idade, tiveram o mesmo estranho destino e nunca foram encontradas. Um fim trágico para uma vida trágica.

 

– Quer dizer que o único parente próximo ainda vivo é a irmã da Laila, que mora em Espanha, não é?

 

– Sim, mas as irmãs não se davam muito, mesmo antes do homicídio. Tentei falar com a irmã várias vezes, mas ela não queria ter nada que ver com a Laila. E o Vladek deixara a família e a vida que tinha quando decidiu ficar na Suécia com a Laila.

 

– Que mistura mais estranha, amor e... maldade – disse Erica à falta de melhores palavras para descrever toda aquela situação.

 

De repente, pareceu-lhe que Wilhelm estava muito cansado.

 

– Bem, o que eu vi naquela sala e naquela cave é o mais próximo do Mal que presenciei em toda a minha vida.

 

– Esteve no local do crime?

 

Wilhelm assentiu.

 

– Suponho que, naquela época, era mais fácil entrar em sítios onde não se devia estar. Eu tinha bons contactos na Polícia, por isso deixaram-me ir dar uma vista de olhos. Havia tanto sangue naquela sala... E parece que, quando a Polícia chegou, a Laila estava para ali sentada. Não vacilou; limitou-se a acompanhar os agentes.

 

– E Louise estava acorrentada quando a encontraram – recordou Erica.

 

– Sim, na cave, fraca e cheia de feridas e de hematomas.

 

Erica imaginou a cena e engoliu em seco.

 

– Chegou a ver os filhos deles?

 

– Não. O Peter era muito pequeno quando tudo aconteceu. Nós, os jornalistas, fomos suficientemente sensatos para deixar as crianças em paz. Além disso, tanto a avó como a família de acolhimento mantiveram-nos afastados dos média.

 

– Na sua opinião, porque é que a Laila confessou logo?

 

– Bem, na verdade não tinha muitas alternativas. Quando a Polícia chegou estava sentada ao lado do cadáver de Vladek de faca na mão. E foi a Laila quem telefonou a avisar a Polícia. E disse isto ao telefone: «Eu matei o meu marido.» De resto, a única coisa que conseguiram sacar-lhe acerca do homicídio. A Laila repetiu-o durante o julgamento e, desde então, ninguém conseguiu fazê-la quebrar o silêncio.

 

– E o que pensa de ela ter concordado em falar comigo? – perguntou Erica.

 

– Bem, na verdade não compreendo... – Wilhelm olhou para a escritora, pensativo. – Foi obrigada a enfrentar a Polícia, assim como os psicólogos, mas no seu caso foi um ato completamente voluntário.

 

– Se calhar precisa de companhia e cansou-se de estar sempre a olhar para as mesmas caras – disse Erica, embora não acreditasse de todo naquela explicação.

 

– A Laila não é assim. Deve haver outra razão. Não disse nada que lhe tenha chamado a atenção, nada que a tenha feito reagir, nenhuma pista de que algo mudou, de que tenha acontecido alguma coisa? – Wilhelm, que já estava sentado na borda da cadeira, aproximou-se ainda mais.

 

– Sim, houve uma coisa... – Erica hesitou por uns segundos. Depois respirou fundo e falou dos artigos que a Laila escondia no quarto. Ouvia-se falar e parecia-lhe inverosímil que aquilo estivesse relacionado com os encontros que tivera com Laila, mas o jornalista escutava-a com interesse e Erica viu-lhe nos olhos que estava em alerta máximo.

 

– Nunca refletiu sobre a data exata? – perguntou.

 

– Que data?

 

– A data em que a Laila concordou finalmente encontrar-se consigo.

 

Erica vasculhou febrilmente na memória. Tinha sido há cerca de quatro meses, mas não conseguia lembrar-se do dia. Até que de repente percebeu: fora na véspera do aniversário de Kristina. Erica disse a data a Wilhelm que, com um sorriso, se agachou e pegou numa pilha de exemplares antigos do Bohusläningen. Começou a folheá-los, procurou durante alguns instantes e depois assentiu, satisfeito, mostrando a Erica um jornal aberto. A escritora amaldiçoou a sua estupidez. Era óbvio. Tinha de ser isso. A questão era saber o que significava.

 

O ar no barracão não circulava e saía-lhe vapor da boca quando respirava. Helga envolveu-se mais no casaco. Sabia que Jonas e Marta encaravam os jantares de sexta-feira como uma obrigação. Via-se-lhes nas expressões de sofrimento. Mas aquelas refeições eram o seu ponto de ancoragem à existência, o único momento em que, durante alguns minutos, se via como parte de uma família a sério.

 

Na noite anterior tinha sido mais difícil manter a ilusão do que era habitual. Porque era exatamente disso que se tratava, de uma ilusão, um sonho. E Helga albergara tantos sonhos... Quando conheceu Einar, aquele que viria a ser o seu marido impôs-se no seu mundo e preencheu-o completamente com aqueles ombros largos, o cabelo louro e um sorriso que julgou ser caloroso, mas cujo verdadeiro significado só mais tarde descobriu.

 

Parou à frente do carro de que Molly falava. Sabia perfeitamente qual era e, se tivesse a idade da neta, também o teria escolhido. Helga percorreu com os olhos os veículos que estavam no barracão. Ali estavam eles, completamente esquecidos, cada vez mais corroídos pela ferrugem.

 

Lembrava-se exatamente de onde tinha vindo cada carro, de cada viagem que Einar fizera para comprar a peça certa. E de todas as horas que trabalhara até poder vender o carro. Na verdade, não lucrava muito com aquilo, mas era suficiente para viverem bem e Helga nunca teve de se preocupar com dinheiro. Isso, pelo menos, Einar tinha feito bem: tinha-a sustentado a ela e a Jonas.

 

Lentamente, Helga afastou-se do carro de Molly, como já tinha começado a chamar-lhe em pensamento, e dirigiu-se a um Volvo preto com a carroçaria muito enferrujada e uma janela partida. Teria ficado muito bonito se Einar tivesse tido tempo de o consertar. Se fechasse os olhos, via perfeitamente o rosto do marido quando chegava a casa com um carro novo. Notava-se quando as coisas lhe tinham corrido bem. Umas vezes só regressava passados dois ou três dias; outras, as viagens levavam-no a regiões remotas da Suécia e ficava uma semana fora de casa. Quando entrava no pátio com aquele brilho de triunfo nos olhos e as faces coradas, Helga sabia que tinha encontrado o que queria. Depois passava dias ou semanas embrenhado no trabalho e ela podia dedicar-se a Jonas e à casa. Livrava-se dos acessos de raiva, do ódio no olhar gelado de Einar. Eram os seus momentos de maior felicidade.

 

Tocou no carro e estremeceu ao sentir na mão a chapa fria. No barracão, a luz tinha-se deslocado lentamente enquanto caminhava por entre os carros, e os raios de sol que entravam pelas frestas da parede refletiram-se de repente na tinta preta que cobria o carro. Retirou a mão. Aquele carro não voltaria a andar. Era um objeto inerte, algo que pertencia ao passado. E Helga pensava encarregar-se de fazer com que continuasse a ser assim.

 

Erica recostou-se na cadeira. De casa de Wilhelm fora diretamente para a prisão psiquiátrica. Tinha de voltar a falar com Laila. Felizmente, parecia que conseguira acalmar-se depois da visita daquela manhã e concordou encontrar-se com ela. Talvez não tivesse ficado tão irritada como Erica temera.

 

Já estavam há algum tempo em silêncio e Laila examinava-a com alguma preocupação no olhar.

 

– Porque quis voltar a encontrar-se comigo hoje?

 

Erica deliberou consigo mesma. Não sabia o que dizer, mas tinha a certeza de que Laila se fecharia como uma ostra se mencionasse os recortes e lhe desse a entender que suspeitava que havia uma ligação.

 

– Não conseguia parar de pensar no que me disse esta manhã – acabou por responder. – Aquilo de a sua antiga casa ser a Casa dos Horrores, mas não pelo motivo que toda a gente pensava. A que se estava afinal a referir?

 

Laila olhou pela janela.

 

– Porque haveria eu de querer falar sobre isso? Não é nada que alguém queira recordar.

 

– Compreendo, mas como concordou encontrar-se comigo, suponho que na verdade queira mesmo. Além disso, talvez lhe faça bem contar a alguém o que aconteceu, poder desabafar.

 

– As pessoas falam de mais. Vão a terapeutas e a psicólogos, massacram os amigos, têm de analisar tudo o que acontece. Há coisas que mais vale ficarem trancadas cá dentro.

 

– Está a referir-se a si própria ou ao que aconteceu? – perguntou Erica em tom discreto.

 

Laila tirou os olhos da janela e fitou-a com aquele olhar de um azul gélido.

 

– A ambas – afirmou. Tinha o cabelo mais curto, se é que isso era possível; deviam ter-lho acabado de cortar pouco tempo antes.

 

Erica decidiu mudar de tática.

 

– Não temos falado muito do resto da sua família, acha que devíamos fazer isso? – estava a tentar encontrar uma brecha no muro de silêncio que a sua interlocutora erguera à sua volta.

 

Laila encolheu os ombros.

 

– Porque não?

 

– O seu pai morreu quando era pequena. E como era com a sua mãe? Tinha um bom relacionamento com ela?

 

– Sim, a minha mãe era a minha melhor amiga. – Um sorriso iluminou-lhe o rosto e rejuvenesceu-a vários anos.

 

– E a sua irmã mais velha?

 

Laila ficou em silêncio por um momento.

 

– Vive há muitos anos em Espanha – disse por fim. – Nunca nos demos muito bem. Distanciou-se completamente de mim quando... Quando aquilo aconteceu.

 

– A sua irmã tem família?

 

– Sim, é casada com um espanhol e tem um filho e uma filha.

 

– A sua mãe ficou a tomar conta do Peter. Porquê apenas dele e não também da Louise?

 

Laila soltou uma risada fria.

 

– A minha mãe nunca teria sido capaz de tomar conta da Rapariga. Mas com Peter era diferente. Ele e a minha mãe gostavam muito um do outro.

 

– Da Rapariga? – Erica olhou para Laila, intrigada.

 

– Sim, era assim que lhe chamávamos – disse Laila em voz baixa. – Ou melhor, foi Vladek quem começou a tratá-la assim e o nome pegou.

 

«Pobre criatura», pensou Erica. Tentou conter a raiva e concentrar-se nas perguntas que tinha de fazer.

 

– Então porque é que a Louise, ou a Rapariga, não podia ficar a viver com a sua mãe?

 

Laila olhou para Erica com irritação.

 

– Porque era uma criança que exigia muita atenção. É tudo o que posso dizer sobre isso.

 

Erica teve de aceitar que não conseguiria sacar-lhe mais nada e mudou de assunto.

 

– Na sua opinião, o que aconteceu a Peter quando a sua mãe... morreu?

 

Uma aura de tristeza toldou-lhe o rosto.

 

– Não sei. Desapareceu, pura e simplesmente. Julgo que... – Laila engoliu em seco, parecia que lhe custava pronunciar as palavras. – Que não aguentou mais. Peter nunca foi muito forte. Era uma criança sensível.

 

– Quer dizer que pensa que o Peter se suicidou? – perguntou Erica com o máximo respeito possível.

 

A princípio, Laila não reagiu, mas depois assentiu lentamente, olhando para baixo.

 

– Mas nunca encontraram o corpo – disse Erica.

 

– Pois não.

 

– A Laila deve ser uma pessoa muito forte para ter suportado tantas perdas.

 

– Uma pessoa consegue suportar mais do que pensa. Se não tem outro remédio – acrescentou Laila. – Não sou crente, mas dizem que Deus nos põe aos ombros um fardo maior do que aquele que podemos suportar. De certeza que já sabe que eu consigo suportar muito.

 

– Hoje vai haver um minuto de silêncio na igreja de Fjällbacka – disse Erica, observando Laila com atenção. Era arriscado abordar o assunto de Victoria.

 

– Ah, sim? – Laila parecia confusa, mas Erica apercebeu-se de que sabia exatamente do que ela estava a falar.

 

– É por causa da rapariga que desapareceu e depois morreu. De certeza que já ouviu falar dela. Chamava-se Victoria Hallberg. Os pais devem estar a passar um mau bocado, assim como os pais das raparigas que continuam desaparecidas.

 

– Sim, claro. – Laila parecia estar a lutar para manter a calma.

 

– Imagine, as filhas estão desaparecidas e, agora que sabem o que aconteceu à Victoria, devem estar a sofrer todos os tormentos do inferno só de pensarem que lhes pode ter acontecido a mesma coisa.

 

– Só sei o que li nos jornais. – Laila engoliu em seco. – Mas sim, deve ser horrível.

 

Erica assentiu.

 

– Acompanhou o caso de perto?

 

Laila fez um sorriso ambíguo.

 

– Bem, aqui lemos o jornal todos os dias. Por isso acompanhei a história como todos os outros.

 

– Estou a ver – disse Erica, pensando na caixa de recortes cuidadosamente dobrados que Laila tinha no quarto, guardada debaixo do colchão.

 

– Olhe, estou mesmo cansada. Não me apetece falar mais hoje, vai ter de voltar outro dia. – Laila levantou-se bruscamente.

 

Por um segundo, Erica ponderou se devia pô-la entre a espada e a parede, se devia dizer-lhe que sabia da existência dos recortes e que suspeitava que ela estivesse relacionada com aqueles casos, embora desconhecesse qual a relação. Mas conteve-se. Laila tinha uma expressão hermética e agarrava-se com tanta força às costas da cadeira que os nós dos dedos estavam brancos. Fosse o que fosse que queria dizer-lhe, não se atreveu.

 

Erica deixou-se levar por um impulso, avançou e acariciou-lhe a face. Era a primeira vez que lhe tocava e a pele de Laila era de uma suavidade surpreendente.

 

– Voltaremos a encontrar-nos – disse com voz doce. Depois dirigiu-se à porta com os olhos de Laila cravados na nuca.

 

Tyra ouvia a mãe a cantarolar na cozinha. Quando Lasse saía, Terese ficava sempre muito mais feliz. E também já não parecia irritada pelo que tinha acontecido no dia anterior. Aceitara a explicação que Tyra lhe dera de que se tinha enganado no caminho e fora parar a casa de uma amiga. O melhor era não lhe contar nada; se a mãe descobrisse a verdade seria uma chatice. Foi até à cozinha.

 

– Que estás a fazer?

 

A mãe estava diante da mesa, com as mãos cheias de farinha. Também tinha algumas manchas no rosto. A limpeza nunca tinha sido o seu forte e, quando preparava o jantar, Lasse queixava-se sempre de que a cozinha se tornava um campo de batalha.

 

– Bolos de canela. Pensei que podíamos comê-los hoje ao lanche depois da cerimónia na igreja e também pensei congelar alguns.

 

– E o Lasse, está em Kville?

 

– Claro, como é habitual. – Terese afastou uma madeixa com a mão enfarinhada e sujou ainda mais o rosto.

 

– Se continuares assim, vais ficar parecida com o Joker – disse Tyra, e sentiu um formigueiro no estômago quando viu a mãe rir-se. Acontecia tão raramente nos últimos tempos... Via-a quase sempre cansada e triste. Mas aquela sensação esfumou-se tão depressa como tinha aparecido. A memória de Victoria estava sempre presente e anulava toda a felicidade que pudesse sentir. Só de pensar na cerimónia ficava com um nó no estômago. Não queria realmente despedir-se da amiga.

 

Observou a mãe em silêncio por um momento.

 

– Olha, como era o Jonas como namorado? – perguntou por fim.

 

– Porque perguntas?

 

– Não sei. De repente pensei que já tinham andado um com o outro.

 

– Bem, na verdade era um pouco difícil saber o que lhe passava pela cabeça. Era um bocado fechado e retraído. E também um pouco atado. Tive de esforçar-me muito para que finalmente se atrevesse a enfiar-me a mão por baixo da camisa.

 

– Mãe! – Tyra tapou os ouvidos com as mãos e repreendeu Terese com o olhar. Era o género de coisas que uma rapariga não quer ouvir a mãe dizer. Preferia pensar em Terese como uma Barbie, completamente assexuada.

 

– Mas é verdade, era um atado. Tinha um pai muito dominador e, às vezes, tanto ele como a mãe pareciam ter medo dele.

 

Terese estendeu a massa e barrou-a com manteiga.

 

– Achas que os maltratava?

 

– Quem? O Einar? Hum, não sei, nunca vi nada disso. Estava sempre a resmungar e a mandar postas de pescada. Julgo que é daqueles homens que ladram mais do que mordem. Mas para ser franca, também não passava muito tempo com ele. Ou estava fora a comprar carros ou a trabalhar no barracão.

 

– E como foi que o Jonas e a Marta se conheceram?

 

Tyra beliscou a massa e levou um pedaço à boca. Terese parou o que estava a fazer e demorou alguns segundos a responder.

 

– Sabes, a verdade é que nunca soube. Um dia aconteceu e pronto. Foi tudo muito rápido. Eu era jovem e ingénua e pensava que ficaríamos juntos para sempre, mas o Jonas pôs-se a andar à primeira oportunidade. Eu nunca fui muito dada a discussões, por isso afastei-me e ponto final. Claro que fiquei triste durante uns tempos, mas depois passou-me. – Terese começou a polvilhar canela sobre a massa coberta de manteiga e enrolou-a.

 

– E as pessoas não falam do Jonas e da Marta desde que isso aconteceu? Não há coscuvilhice?

 

– Sabes bem o que eu penso das coscuvilhices, Tyra – respondeu Terese em tom severo, cortando depois a massa às rodelas. – Mas, enfim, nunca ouvi nada, exceto que estão bem juntos. E depois conheci o teu pai, por isso... O destino não planeava que eu e o Jonas ficássemos juntos. Além disso, éramos muito jovens. Vais ver, também vais ter uma paixão adolescente.

 

– Então... – disse Tyra, e sentiu-se corar. Detestava que a mãe falasse com ela sobre rapazes e essas coisas. Fosse como fosse, fazia orelhas moucas àquelas conversas.

 

Terese parecia estar a estudá-la com o olhar.

 

– Mas porque me fazes tantas perguntas sobre o Jonas e a Marta?

 

– Por nada, por nada. Curiosidade... – Tyra encolheu os ombros, continuou com uma expressão indiferente e mudou de assunto: – Vão dar à Molly um dos carros que estão no telheiro, um Carocha. O Jonas prometeu-lhe que o vai consertar.

 

Não pôde evitar que lhe ressoasse na voz a inveja que sentia e, pela expressão de Terese, Tyra percebeu que a mãe tinha reparado.

 

– Desculpa não poder dar-te tudo o que gostaria. Nós... Bem, eu... Enfim, a vida nem sempre corre como uma pessoa imagina. – Terese respirou fundo e polvilhou com açúcar cristalizado os rolos de massa que estavam no tabuleiro do forno.

 

– Eu sei, está tudo bem – respondeu logo Tyra.

 

Não tencionara parecer ingrata. Sabia que a mãe fazia tudo o que estava ao seu alcance. E tinha vergonha de pensar sequer num carro naquela altura. Agora, Victoria nunca poderia ter um carro.

 

– O Lasse já encontrou emprego? – perguntou.

 

Terese resfolegou.

 

– Parece que Deus não é capaz de lhe arranjar um em tão pouco tempo.

 

– Bem, se calhar, Deus tem mais do que fazer do que arranjar um emprego ao Lasse.

 

Terese parou o que estava a fazer e ficou a olhar para a filha.

 

– Tyra... – Parecia estar à procura das palavras certas. – Como é que pensas que nos íamos aguentar sozinhos, sem Lasse?

 

Por um momento, a cozinha ficou mergulhada em silêncio. O único som que se ouvia no apartamento era o barulho vindo do quarto das crianças. Então, Tyra respondeu calmamente:

 

– Bem, acho que nos íamos aguentar muito bem.

 

Aproximou-se e deu à mãe um beijo na face cheia de farinha, antes de ir para o quarto mudar de roupa. Todas as raparigas da escola de equitação iam à igreja. Quase parecia que o consideravam emocionante. Tinha-as ouvido sussurrar, alteradas, e até mesmo combinar o que iam vestir. Idiotas. Idiotas superficiais. Parvas. Nenhuma conhecera Victoria tão bem como ela. Lentamente, tirou do guarda-fatos o vestido preferido. Estava na hora de se despedir.

 

Tinha sido maravilhoso sair um pouco de casa e ir tomar conta de Maja e dos gémeos. Anna não mentira a Erica, tinham tido um comportamento exemplar durante todo o dia, como era habitual nas crianças. Só com os pais é que mostravam o seu lado pior. Além disso, de certeza que a tarefa fora facilitada por ter levado Emma e Adrian consigo. Eram os ídolos dos sobrinhos pelo simples fato de terem o cobiçado estatuto de «graaandes».

 

Anna sorriu para si mesma enquanto limpava a bancada. Há muito que não sorria, já perdera o hábito. No dia anterior, quando estava a conversar com Dan na cozinha, acendera-se-lhe no peito uma centelha de esperança. Sabia que não tardaria a extinguir-se, porque Dan voltou a retirar-se para o seu silêncio. Porém, apesar de tudo, talvez tivessem dado um pequeno passo no sentido da aproximação.

 

Estava a falar a sério quando disse que estava disposta a mudar-se se Dan quisesse. Na verdade, já por duas vezes tinha pesquisado na Internet um apartamento para ela e para os filhos. Mas não era isso que queria. Queria Dan.

 

Apesar de tudo, nos últimos meses tinham feito algumas tentativas de transpor a distância que havia entre eles. Num momento carregado de vinho e de angústia, Dan chegou até a tocar-lhe e Anna aferrou-se a ele como se estivesse a afogar-se. Foram para a cama, mas, depois de terem feito amor, Anna viu-o tão atormentado que a única coisa que desejou foi ir-se embora. Desde então não tinham voltado a tocar-se. Até ao abraço do dia anterior.

 

Anna olhou pela janela da cozinha. Os filhos brincavam na neve. Apesar de já começarem a ser mais velhos, todos gostavam de fazer bonecos e de batalhas com bolas de neve. Limpou-se a um pano de cozinha e levou a mão à barriga, tentando recordar-se de como se sentia quando esperava aquele que teria sido o filho dela e de Dan. Não se perdoava pelo que fizera motivada pela dor da perda, não tinha qualquer cabimento deitar as culpas para cima de uma criança inocente. Mas a saudade misturava-se com os remorsos e Anna não podia deixar de pensar que tudo teria sido diferente se o filho não tivesse morrido. Agora estaria a brincar na neve com os irmãos mais velhos, forrado de roupa como um boneco da Michelin, como acontecia a todas as crianças pequenas no inverno.

 

Sabia que Erica ficava preocupada por os gémeos poderem lembrar a Anna o filho que perdera. E, a princípio, foi o que aconteceu. Anna tinha inveja, pensava coisas horríveis, que era uma injustiça. Mas depois tudo isso lhe passou. Neste mundo não havia nenhuma balança que repartisse as coisas com equidade, nem havia nenhuma explicação lógica para ela e Dan não terem podido conservar o filho que tanto amavam. Agora, só esperava que fossem capazes de encontrar o caminho para uma rotina comum.

 

Uma bola de neve atingiu a janela e Anna viu o terror espelhado nos olhos de Adrian, que levou a mão enluvada à boca. Sentiu um nó no estômago ao vê-lo e tomou uma decisão. Dirigiu-se à entrada, vestiu o blusão e abriu a porta. Imitou o melhor que pôde um monstro horrível e rugiu: «Agora vão ver o que é uma guerra de bolas de neve!»

 

A princípio, os filhos olharam para ela, perplexos, mas depois os gritos de felicidade subiram ao céu invernal.

 

Gösta e Martin sentaram-se nos últimos bancos da igreja. Gösta decidiu que ia à cerimónia em memória de Victoria assim que soube que ia ser celebrada. O destino cruel da jovem tinha semeado o medo e o desespero em Fjällbacka, e amigos e família tinham-se reunido à espera de que o funeral se realizasse. Precisavam de falar de Victoria, de recordá-la, de processar a dor que tinham sentido ao saber o que lhe tinham feito. Que Gösta e Martin assistissem à cerimónia como representantes da Polícia local era, evidentemente, o mínimo que podiam fazer.

 

Ali sentado, era-lhe difícil manter as próprias recordações ao largo. Naquele mesmo lugar tinha assistido a dois funerais: o do filho e, muitos anos mais tarde, o da mulher. Gösta dava voltas à aliança, que continuava a usar. Nunca sentira que era altura de a tirar. Maj-Britt fora o amor da sua vida, a sua companheira, e nunca lhe passou pela cabeça substituí-la por ninguém.

 

Os caminhos da vida eram realmente inescrutáveis, disse para si próprio. Às vezes quase duvidava de que houvesse uma força superior a comandar os destinos dos homens. Antigamente, não acreditava naquelas coisas; na verdade, Gösta considerava-se ateu, porém, à medida que envelhecia, sentia cada vez mais a presença de Maj-Britt. Era como se ainda estivesse a seu lado. E o facto de, passados tantos anos, Ebba ocupar um lugar tão proeminente na sua vida e no seu coração era quase um milagre.

 

Olhou em redor. Era uma igreja muito bonita. Construída com aquele granito pelo qual a região de Bohuslän era famosa, com janelas altas, que deixavam entrar torrentes de luz, um púlpito azul à esquerda e o altar ao fundo, por detrás da balaustrada semicircular do reclinatório. Estavam lá vários parentes e muitos jovens da idade de Victoria. Alguns deviam ser colegas de turma, mas Gösta também reconheceu várias raparigas da escola de equitação. Estavam todas sentadas em dois dos bancos centrais e algumas não paravam de soluçar.

 

Gösta olhou de relance para Martin e compreendeu que não devia ter-lhe proposto que o acompanhasse. Não há muito tempo, era o caixão de Pia que estava ali e, a julgar pela palidez de Martin, era precisamente nisso que estava a pensar.

 

– Ouve, se quiseres eu fico aqui sozinho. Não és obrigado a estar presente.

 

– Está tudo bem – disse Martin com um sorriso forçado, mas depois, durante o minuto de silêncio, olhou fixamente em frente.

 

Foi tudo muito emotivo e, quando ressoou o último salmo, Gösta pensou que desejava ter podido consolar a família. Na primeira fila, os pais de Victoria levantaram-se pesadamente. Helena ia apoiada em Markus. Começaram a caminhar pela nave e os outros foram-nos seguindo lentamente.

 

Reuniram-se à frente da igreja em pequenos grupos de familiares e amigos. Estava um dia frio, embora bonito, e a neve refletia o sol reluzente. Chorosos e enregelados, falavam discretamente das saudades que Victoria lhes deixara e de como era terrível o que tinha acontecido. Gösta também viu o medo no rosto de algumas das raparigas. Seria a sua vez? Será que aquele que levara Victoria ainda estava na região? Decidiu esperar um pouco antes de falar com elas, até que todos começassem a despedir-se e a dirigir-se para as suas casas.

 

Markus e Helena andavam de grupo em grupo com o olhar vazio, trocando algumas palavras com cada um. Ricky, no entanto, estava sozinho, à parte. Olhava para as botas e mal respondia quando lhe dirigiam a palavra. Algumas das amigas de Victoria tinham-se reunido em torno dele, mas não pareciam conseguir arrancar-lhe mais do que um monossílabo ocasional, por isso acabaram por deixá-lo ficar outra vez sozinho.

 

De repente, Ricky olhou para cima e encontrou o olhar de Gösta. Parecia indeciso, mas depois aproximou-se dos dois agentes.

 

– Preciso de falar consigo – disse em voz baixa. – Onde ninguém consiga ouvir-nos.

 

– O meu colega também pode ir?

 

Ricky assentiu e encaminhou-se para um canto solitário do cemitério.

 

– Há uma coisa que tenho de lhes contar – disse, batendo com a bota no chão. Havia flocos soltos e o pontapé fez erguer uma nuvem em seu redor antes de voltar a pousar, ficando a reluzir no chão. – É uma coisa que já vos devia ter contado há muito tempo.

 

Gösta e Martin entreolharam-se, expectantes.

 

– Eu e a Victoria nunca tivemos segredos entre nós. Nunca mesmo. É difícil de explicar, mas sempre fomos muito unidos e um dia reparei que a minha irmã estava a esconder-me alguma coisa. Além disso, a Victoria começou a evitar-me e nessa altura fiquei mesmo preocupado. Tentei falar com ela, mas evitava-me cada vez mais. Até que... Até que percebi o que era.

 

– O que era? – perguntou Gösta.

 

– A Victoria e o Jonas. – Ricky engoliu em seco. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e parecia que sentia uma dor física ao pronunciar aquelas palavras.

 

– Que estava a acontecer com a Victoria e o Jonas?

 

– Andavam – disse Ricky.

 

– Tens a certeza?

 

– Não, não tenho a certeza, mas tudo indicava que sim. E ontem encontrei a Tyra, a melhor amiga da Victoria, e ela disse-me que também tinha as suas suspeitas.

 

– Tudo bem, mas se isso for verdade porque é que achas que a Victoria não te falou do Jonas?

 

– Não sei. Ou melhor, até sei. Acho que a Victoria se sentia envergonhada. De certeza que sabia que eu não ia achar bem, embora não tivesse de ter vergonha por minha causa. Nada do que a minha irmã fizesse teria mudado a minha opinião sobre ela.

 

– Quanto tempo achas que durou o relacionamento? – perguntou Martin.

 

Ricky abanou a cabeça. Não usava gorro e tinha as orelhas vermelhas do frio.

 

– Não faço ideia, mas foi antes do verão que comecei a achá-la um pouco... estranha.

 

– Estranha em que sentido? – Gösta balançava-se nos dedos dos pés. Tinham começado a ficar dormentes.

 

Ricky tentou lembrar-se.

 

– A Victoria tinha uma aura de mistério que eu nunca lhe tinha visto. Por exemplo, estava fora de casa umas horas e, quando lhe perguntava onde tinha ido, respondia que não era da minha conta. A minha irmã nunca me tinha dito nada assim. Além disso, andava contente e, ao mesmo tempo... Não sei como descrevê-lo, mas parecia feliz e deprimida ao mesmo tempo. Mudava completamente de humor, como da noite para o dia e muito depressa. Pensei que seria da adolescência, mas não, havia mais alguma coisa. – Gösta estava espantado com a maturidade de Ricky, que tinha apenas dezoito anos.

 

– E não suspeitaste que pudesse ter algum namorado? – perguntou Martin.

 

– Sim, claro que sim. Mas nunca me passou pela cabeça que pudesse ser o Jonas. Bolas, o Jonas já é... muito velho! Além disso é casado!

 

Gösta não pôde deixar de sorrir um pouco. Se Jonas, que estava na casa dos quarenta, era muito velho, ele próprio devia ser uma múmia aos olhos de Ricky.

 

O rapaz limpou uma lágrima que lhe rolava pelo rosto.

 

– Fiquei tão irritado quando descobri, que era como se o cérebro me ficasse a arder. Aquilo parecia... pedofilia.

 

Gösta abanou a cabeça.

 

– No fundo, concordo contigo, mas em termos legais a idade limite é de quinze anos. Claro que a nossa opinião acerca disso é outra história. – Fez uma pausa e tentou pôr alguma ordem no relato de Ricky. – Mas conta-nos lá, como é que te apercebeste de que a Victoria e o Jonas tinham uma relação?

 

– Como vos disse, calculava que a Victoria andasse com alguém que não nos agradasse, nem aos meus pais nem a mim. – Ricky hesitou por um segundo. – Mas eu não sabia quem era e a Victoria recusou-se a contar-me quando lhe pedi. Era tão estranho a minha irmã estar assim... Contava-me tudo! Então, um dia, fui buscá-la à escola de equitação e vi-os a discutir. Não ouvi o que estavam a dizer, mas percebi imediatamente. Desatei a correr na direção deles e gritei à Victoria que finalmente tinha percebido tudo, e que me parecia nojento, mas ela também me gritou que eu não percebia nada e que era um idiota. Depois foi-se embora a correr. O Jonas ficou para ali especado feito parvo e eu estava com tanta raiva que comecei a pedir-lhe satisfações.

 

– Alguém vos ouviu?

 

– Julgo que não. As raparigas mais velhas tinham ido montar com as mais novas e a Marta estava a dar uma aula à Molly na pista de treino.

 

– Mas o Jonas não reconheceu nada? – Gösta sentiu que a raiva também se começava a apoderar dele.

 

– Não, nada de nada. Tentou acalmar-me e não parava de dizer que não era verdade, que nunca tinha tocado na Victoria e que eu estava a imaginar coisas. Uma data de tretas. Depois, o telemóvel dele tocou e ele teve de se ir embora. De certeza que não passava de uma desculpa esfarrapada para não falar sobre o assunto.

 

– Ou seja, não acreditaste, pois não? – Os dedos dos pés de Gösta já tinham adormecido completamente. Pelo canto do olho, viu que Markus estava a olhar para eles e pensou que certamente iria querer saber o que estavam a conversar com o filho.

 

– Claro que não! – respondeu Ricky, cuspindo as palavras. – Estava muito calmo, mas vi, pela maneira como tinham estado a discutir, que aquilo era alguma coisa pessoal. E a resposta da Victoria acabou por confirmá-lo.

 

– Mas porque é que não nos contaste? – perguntou Martin.

 

– Não sei, estava tudo um verdadeiro caos. A Victoria não voltou para casa naquela noite e, quando percebi que tinha sido raptada no regresso da escola de equitação, chamámos a Polícia. O pior é que eu sabia que a culpa tinha sido minha! Se não tivesse gritado com a minha irmã e não tivesse discutido com o Jonas, se ele a tivesse levado para casa de carro, como estava planeado, a Victoria não teria sido raptada por nenhum psicopata de merda. Eu não queria que os meus pais soubessem da relação dela com o Jonas, nem que, além da preocupação, passassem pela tortura do escândalo e das coscuvilhices. Sobretudo porque eu estava convencido de que a Victoria ia voltar para casa. E, como não lhes tinha contado logo na altura, era-me quase impossível contar-lhes depois de a Victoria ter desaparecido. Fiquei com uns remorsos horríveis e... – Ricky já não conseguia conter as lágrimas e Gösta aproximou-se instintivamente dele e abraçou-o.

 

– Pronto, pronto... a culpa não foi tua, não penses assim. Ninguém está a acusar-te de nada. Só querias proteger a tua família, nós compreendemos. Não tiveste culpa de nada – repetiu Gösta. Depois de ter acabado de falar, reparou que os músculos de Ricky começavam a descontrair-se e que o rapaz ia parando de chorar aos poucos.

 

Ricky olhou-o nos olhos.

 

– Mais alguém sabia – disse em voz baixa.

 

– Quem?

 

– Não sei. Mas encontrei um monte de cartas muito estranhas no quarto da Victoria. Uma data de disparates sobre Deus e os pecadores a arder no inferno.

 

– Guardaste as cartas? – perguntou Gösta, temendo a resposta.

 

Ricky abanou a cabeça.

 

– Não, deitei-as fora. É que... eram tão repugnantes... Além disso, tinha medo de que os meus pais as encontrassem. Teria sido uma dor de alma para eles. Por isso, livrei-me delas. Fiz asneira, não foi?

 

Gösta deu-lhe uma palmadinha no ombro.

 

– O que está feito, feito está. Mas onde é que as encontraste? Consegues lembrar-te com mais precisão do que diziam?

 

– Revistei o quarto da minha irmã de uma ponta à outra antes de vocês chegarem. Pensei que talvez encontrasse alguma coisa que revelasse o relacionamento dela com o Jonas. As cartas estavam no fundo de uma gaveta. Não me lembro exatamente do que diziam, apenas que me faziam lembrar citações da Bíblia. Falavam de «pecadores», «rameiras» e coisas do género.

 

– E supuseste que se referiam à relação da Victoria com o Jonas? – perguntou Martin.

 

– Sim, era o mais lógico. Que fosse alguém que sabia e que queria... assustá-la.

 

– Pois, e não fazes ideia de quem poderia ser, pois não?

 

– Não, desculpe.

 

– Calma, não tens nada que pedir desculpa, muito obrigado por nos teres contado. Fizeste muito bem – disse Gösta. – Vá, vai ter com os teus pais. De certeza que já estão a estranhar toda esta conversa.

 

Ricky não disse nada, baixou a cabeça e afastou-se com passos pesados em direção à igreja.

 

 

Quando Patrik chegou a casa já anoitecera há algumas horas. Ao cruzar a soleira, sentiu o cheiro que vinha da cozinha. Parecia que Erica tinha feito alguma coisa especial para o jantar por ser sábado e calculou que fosse lombo de porco com queijo roquefort e batatas assadas, um dos seus pratos preferidos. Dirigiu-se à cozinha.

 

– Espero que estejas com fome – disse Erica, abraçando-o.

 

Ficaram algum tempo assim até que Patrik se aproximou da bancada e levantou a tampa da cocotte20 turquesa Le Creuset que Erica utilizava apenas em ocasiões especiais. Tal como pensara, os bifes do lombo borbulhavam num delicado molho cremoso. E as batatas já estavam a dourar no forno. A salada estava pronta numa taça e Patrik percebeu que também era uma variante luxuosa, com folhas de espinafre, tomate, queijo parmesão e pinhões, tudo temperado com um molho de ervas finas que adorava.

 

– Estou a morrer de fome, literalmente – disse, e não estava a exagerar. Até sentia guinadas no estômago e apercebeu-se de que não tinha comido nada o dia todo. – E os miúdos?

 

Erica apontou para a mesa, posta para dois, com o serviço de porcelana e velas acesas. Em cima da mesa havia uma garrafa de Amarone21 a respirar e Patrik pensou que, depois de uns horríveis dias de trabalho, aquela poderia ser uma noite de sábado extraordinária.

 

– Eles já comeram e estão a ver Carros. Pensei que podíamos ter um jantar tranquilo para variar. A menos que queiras mesmo muito que eles fiquem aqui sentados enquanto comemos, claro – disse Erica, piscando-lhe o olho.

 

– Não, não, parece-me melhor as crianças ficarem o mais longe possível da cozinha. Ameaças, subornos, tudo o que for preciso: esta noite quero jantar sozinho com a minha bela mulher.

 

Patrik inclinou-se e beijou-a na boca.

 

– Vou dizer-lhes olá e já volto. Depois dizes-me se precisas que eu te ajude na cozinha.

 

– Está tudo sob controlo – Erica mexia o guisado. – Podes ir dar-lhes um beijo e já jantamos.

 

Patrik dirigiu-se à sala, a sorrir. As luzes estavam apagadas e, hipnotizados pela luz da televisão, os filhos seguiam o avanço imparável de Faísca McQueen na pista.

 

– Boa Faísca, és rápido – disse Noel com a manta de dormir bem agarrada, como sempre faziam quando se sentavam no sofá a ver televisão.

 

– Mas não tão rápido como o papá! – gritou Patrik, saltando sobre os filhos e começando a fazer-lhes cócegas.

 

– Paaara, Paaara! – gritaram em coro. Porém, a julgar pelos seus movimentos e pelas expressões, estavam a pensar: «mais, mais».

 

Patrik continuou a brincar com os filhos durante algum tempo, sentindo aquela energia que parecia inesgotável; o calor da respiração das crianças na face, os risos e os gritos que subiam até ao teto. Nesse momento, esqueceu tudo o resto. Tudo o que existia eram os filhos e aquele momento que partilhavam. Passados alguns minutos ouviu uma tosse discreta.

 

– Amor, o jantar...

 

Patrik parou.

 

– Muito bem, meninos. Agora o papá tem de ir jantar com a mamã. Aconcheguem-se bem no sofá que daqui a pouco já vos levamos para a caminha.

 

Tapou-os com a manta e foi com Erica para a cozinha, onde o jantar já estava na mesa e o vinho servido nos copos.

 

– Está espetacular! – Patrik começou a servir-se e, em seguida, ergueu o copo na direção de Erica.

 

– Skäl, meu amor.

 

– Skäl – disse Erica.

 

Beberam uns goles em silêncio. Patrik fechou os olhos e saboreou o vinho.

 

Conversaram um bocado e Patrik contou a Erica como evoluíra a investigação ao longo do dia, que os vizinhos não tinham visto ninguém a espiar a casa da família Hallberg e que, depois da cerimónia na igreja, Gösta e Martin não tinham conseguido extrair nada digno de nota às raparigas da escola de equitação sobre o assalto ao consultório de Jonas, mas que tinham ficado a saber algo muito interessante.

 

– Tens de prometer que não contas isto a ninguém – disse. – Nem sequer à Anna.

 

– Claro – prometeu Erica.

 

– Bem, de acordo com o Ricky, o irmão da Victoria, ela tinha uma relação com o Jonas Persson.

 

– Não pode... – disse Erica.

 

– Eu sei, é estranhíssimo. A Marta e o Jonas são o casal perfeito. Parece que ele negou tudo, mas, se for verdade, teremos de questionar-nos se isto não poderá estar relacionado com o desaparecimento.

 

– Talvez o Ricky tenha interpretado mal o que viu. Talvez a Victoria tivesse uma relação com outra pessoa e se estivesse a dirigir a casa dela quando desapareceu. E quem sabe se essa pessoa não a raptou?

 

Patrik refletia sobre o que Erica acabara de dizer. Teria razão?

 

Passado um momento, apercebeu-se de que a mulher queria falar de outro assunto.

 

– Há uma questão que gostava de comentar contigo – disse. – É rebuscado e, por enquanto, está preso por alfinetes e não sei se me estarei a precipitar, mas mesmo assim gostava que ouvisses.

 

– Força! – Patrik pousou os talheres. O tom sério de Erica despertara-lhe a curiosidade.

 

Erica começou a falar-lhe do trabalho com o livro, das conversas com Laila, da visita que fizera à casa, e de toda a investigação que tinha em curso. Enquanto falava, Patrik deu-se conta de que se tinha interessado pouquíssimo pelo novo projeto da mulher. A única desculpa era que o desaparecimento de Victoria lhe exigira tanta atenção que simplesmente não tivera forças para mais.

 

Quando Erica chegou à questão da caixa dos recortes, Patrik aguçou os ouvidos, mas continuava a pensar que não era nada de extraordinário. Não era assim tão fora do comum as pessoas interessarem-se por um caso particular e juntarem informações recolhidas nos jornais acerca dele. Mas, depois, Erica falou-lhe da outra visita do dia, a que tinha feito a Wilhelm Mosander, do Bohusläningen.

 

– Na altura, Wilhelm investigou e escreveu sobre o caso da Laila e há anos que tenta falar com ela. Não é o único e tenho consciência de como foi importante para mim a Laila ter concordado em encontrar-se comigo tão depressa. Mas julgo que não foi por acaso. – Erica fez uma pausa e bebeu um gole de vinho.

 

– Não foi por acaso? Que queres dizer com isso? – perguntou Patrik.

 

Erica olhou-o fixamente.

 

– Que a Laila concordou em falar comigo no mesmo dia em que apareceu o primeiro artigo sobre o desaparecimento da Victoria.

 

Naquele momento, o telemóvel de Patrik tocou e, com o instinto próprio de um polícia, soube logo que aquela conversa não traria nada de bom.

 

 

Einar estava sozinho e às escuras. Lá fora, nos edifícios do pátio, havia algumas luzes ligadas. Ouvia ao longe um ou outro relincho vindo das cavalariças. Os animais estavam inquietos naquela noite. Einar sorriu. Ficava sempre mais satisfeito quando não reinava a harmonia. Herdara isso do pai.

 

Às vezes pensava nele e tinha saudades. Não fora um homem carinhoso, mas os dois entendiam-se, como acontecia com ele e Jonas. Helga, no entanto, estaria sempre fora da sua aliança, completamente tonta e ingénua como era.

 

As mulheres eram seres simples, sempre o pensara, mas tinha de admitir que Marta era diferente. Ao longo dos anos, chegara mesmo a admirá-la. Era completamente diferente de Terese, aquela mosquinha morta que se punha a tremer quando ele olhava para ela. Detestou-a desde o primeiro momento. Ainda por cima, houve uma altura em que Jonas e Terese falavam em casar. Helga adorava Terese, claro. Era mesmo o género de rapariga que teria gostado de acolher debaixo da sua asa e com quem não se teria importado de passar as horas mortas a conversar sobre coisas de mulheres enquanto lhe dava conselhos de dona de casa e assoava o nariz aos netos.

 

Bem, pelo menos isso não tinha acontecido. Um belo dia, Jonas chegou lá a casa com Marta e Terese desapareceu. O filho disse-lhe que ficaria a viver com eles e que ele e Marta ficariam juntos para sempre; e Einar acreditou no filho. Marta e Einar trocaram um olhar que foi mais do que suficiente para saber quem era quem. Deu o seu consentimento com um simples aceno de cabeça. Helga passou muitas noites a chorar em silêncio com a cabeça na almofada, mas percebeu que não valia a pena dizer nada, que já estava tudo decidido.

 

Einar nunca comentou com Helga de como era diferente a opinião que tinham de Marta. Não falavam dessas coisas. Durante algum tempo, quando a desejava antes do casamento, fez um esforço e conversou com ela sobre as coisas da vida, como sabia que era esperado que fizesse. Mas isso acabou finda a noite de núpcias, depois de a ter violado como quisera fazer desde o primeiro dia. Não havia qualquer razão para continuar com aquele jogo ridículo.

 

Sentiu as virilhas molhadas na cadeira de rodas. Examinou-se. Tal como pensava, o saco da sonda, que soltara uns minutos antes, tinha entornado bastante. Com grande satisfação, encheu os pulmões de ar.

 

– Helgaaaaa!

 

19 Hill Street Blues, no original. Série policial norte-americana estreada em 1981. (N. do T.)

20 Em francês no original: «caçarola». (N. do T.)

21 Variedade de vinho tinto seco italiano. (N. do T.)

 

UDDEVALLA, 1973

 

LAILA NUNCA ACREDITARA NO MAL, MAS AGORA SIM. PODIA OLHÁ-LO NOS OLHOS TODOS OS DIAS E O MAL TAMBÉM OLHAVA PARA ELA. ESTAVA INDIZIVELMENTE ASSUSTADA E EXAUSTA. COMO PODERIA DORMIR COM O MAL NA SUA PRÓPRIA CASA? COMO DESCANSAR UM SEGUNDO QUE FOSSE? O MAL IMPREGNAVA AS PAREDES, HABITAVA CADA ESQUINA, CADA CANTO, POR MAIS DIMINUTO QUE FOSSE.

 

ELA PRÓPRIA O DEIXARA ENTRAR. ATÉ O TINHA CRIADO. NUTRIRA-O, ALIMENTARA-O, DEIXARA-O CRESCER ATÉ SE TER TORNADO INCONTROLÁVEL.

 

OBSERVOU AS MÃOS. AS CICATRIZES CRUZAVAM AS COSTAS COMO RAIOS VERMELHOS E O DEDO MINDINHO DA MÃO DIREITA TINHA UM ÂNGULO ESTRANHO. TERIA DE IR NOVAMENTE AO MÉDICO E VOLTAR A ENFRENTAR AQUELES OLHARES DESCONFIADOS, AQUELAS PERGUNTAS A QUE NÃO PODIA RESPONDER. COMO PODIA CONTAR-LHES A VERDADE? COMO PODIA PARTILHAR O TERROR QUE A REPRIMIA? NÃO HAVERIA PALAVRAS PARA O DESCREVER. NÃO SERVIRIA DE NADA.

 

TERIA DE PERMANECER CALADA E CONTINUAR A MENTIR, MESMO QUE LHES VISSE NA CARA QUE NÃO ACREDITAVAM NO QUE DIZIA.

 

O DEDO LATEJAVA DE DOR. CUSTAR-LHE-IA CUIDAR DE PETER E FAZER AS TAREFAS DOMÉSTICAS, MAS TINHA APRENDIDO MUITO ACERCA DA SUA CAPACIDADE. DO MUITO QUE ERA CAPAZ DE SUPORTAR, DA QUANTIDADE DE MEDO E DE HORROR COM QUE PODIA CONVIVER, DE QUÃO PERTO PODIA ESTAR DO MAL SEM RETROCEDER UM PALMO. DE ALGUMA FORMA IA CONSEGUIR.

 

 

 

                                                                             CONTINUA

 

 

 

TERESE TINHA TELEFONADO a toda a gente que lhe ocorrera. Aos escassos parentes de Lasse, quase todos afastados. Aos velhos amigos de bebedeira, aos amigos mais recentes, aos ex-colegas, aos membros da congregação cujo nome conhecia.

Os remorsos provocavam-lhe náuseas. No dia anterior, quando preparava bolos de canela na cozinha, sentiu algo que se assemelhava a alegria só de pensar na decisão de o deixar. Não se preocupou até às sete e meia da tarde, quando viu que não voltava para casa para jantar e não atendia o telemóvel. Lasse entrava e saía quando queria e, habitualmente, quando não estava em casa, estava na igreja. Mas desta vez isso não aconteceu. Não o tinham visto na igreja durante todo o dia, o que a deixava bastante preocupada. Porque Lasse não tinha outro sítio para onde ir.

O carro também não se encontrava lá. Terese pediu o do vizinho emprestado e passou metade da noite à procura de Lasse, embora a Polícia lhe tivesse dito que trataria do assunto no dia seguinte. Afinal, Lasse era adulto e podia ter-se ido embora voluntariamente. Mas Terese não podia continuar em casa, morta de preocupação e sem fazer nada. Enquanto Tyra ficava com os meninos, percorreu todos os recantos de Fjällbacka e foi mesmo a Kville, onde ficava a sede da congregação, mas não viu o Volvo Combi vermelho em parte nenhuma. Pelo menos, a Polícia levara o seu telefonema a sério, graças a Deus. Talvez por o agente ter ouvido o pânico com que lhe dera parte do desaparecimento. Mesmo nos períodos em que bebia mais, Lasse acabava sempre por voltar para casa à noite. E há muito que não tocava numa gota de álcool.

 

 

 

 

O agente que foi a casa de Terese para falar com ela fez perguntas sobre a bebida, como era de esperar. Era uma cidade pequena e toda a gente conhecia o passado de Lasse. Terese assegurou-lhe com firmeza que Lasse não voltara a beber. Mas, pensando bem, sim, tinha notado alguma alteração nos últimos meses. Não era apenas a obsessão pela religião, havia algo mais. De vez em quando apanhara-o a sorrir com satisfação para si mesmo, como se guardasse um segredo fantástico, alguma coisa que não queria que Terese descobrisse.

Não sabia como explicar algo tão vago à Polícia, pois até a ela lhe parecia um disparate. Mesmo assim, de repente, viu tudo com clareza: Lasse tinha um segredo. E o que Terese mais temia naquela manhã, enquanto a luz do sol afugentava a escuridão da cozinha, era a certeza de que esse segredo o levara pelo caminho errado.

Marta orientava Valiant pelo caminho do bosque. Um bando de pássaros levantou voo, assustado, quando passaram por eles, e Valiant reagiu, trotando para fora do bosque com nervosismo. Marta apercebeu-se de que o animal queria galopar, mas obrigou-o a seguir a passo naquela manhã agradável. Estava frio, mas Marta não o sentia. O corpo do animal aquecia-a, além disso, sabia que devia usar várias camadas de roupa e assim vestida podia montar ao ar livre durante várias horas, mesmo no inverno.

O treino de Molly no dia anterior tinha corrido bem. A filha continuava a evoluir como cavaleira e, na verdade, Marta sentia-se ligeiramente orgulhosa. De resto, era sempre Jonas quem fazia alarde da filha, mas talvez fosse tão óbvio de onde vinha aquele talento que era como se a elogiasse a ela.

Esporeou Valiant e saboreou a sensação quando o cavalo começou a mover-se mais depressa. Nunca se sentia tão livre como quando montava um cavalo. Era como se durante o resto do tempo estivesse a representar um papel e apenas fosse ela própria no relacionamento com o animal.

A morte de Victoria tinha mudado tudo. Sentia-o no ambiente da escola de equitação, sentia-o em casa e até mesmo em Einar e em Helga. As raparigas andavam taciturnas e amedrontadas. Logo após o minuto de silêncio, algumas dirigiram-se ao picadeiro. Ela e Jonas levaram umas quantas no carro. Permaneceram em silêncio no banco traseiro, sem falar, sem rir, sem as discussões do costume. E a rivalidade entre elas parecia ter piorado. Brigavam pelos cavalos, lutavam pela atenção de Marta e...

 

 

                                                                                                   

 

 

                                       

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