Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O ECO DA MEMÓRIA
Primeira Parte
Numa noite de Inverno, numa estrada remota do Nebrasca, Mark Schlutter, sofre um acidente quase fatal. A sua irmã Karin regressa à sua cidade natal para tomar conta de Mark. Porém, ao despertar de um prolongado coma, Mark acredita que esta mulher — que se assemelha, age e fala como a sua irmã — é, na verdade, uma impostora. Magoada pela recusa do irmão em reconhecê-la, Karin contacta o neurologista Gerald Weber, famoso pelas suas investigações sobre o mundo infinitamente bizarro dos distúrbios cerebrais. Weber acredita que Mark sofre de uma perturbação rara conhecida como síndrome de Capgras — a ilusão de que as pessoas que nos rodeiam são impostoras. O que o médico descobre em Mark mina lentamente as suas próprias noções sobre o “eu”. Entretanto, Mark, armado apenas de um bilhete deixado por uma testemunha anónima, tenta descobrir o que aconteceu na noite do seu inexplicável acidente. A verdade sobre essa noite mudará profunda e inalteravelmente a vida dos três. O Eco da Memória é um cativante mistério que explora o poder e os limites da inteligência humana.
NÃO SOU NINGUÉM
“Somos todos potenciais fósseis, transportando ainda nos nossos corpos as cruezas de anteriores existências, as marcas de um mundo no qual as criaturas vivas fluem de era para era com pouco mais consistência do que a de uma nuvem.”
Loren Eiseley, The Immense Journey, “The Slit”
Os grous continuam a pousar à medida que a noite cai. Faixas deles deslizam em direcção ao solo, indolentes contra o céu vespertino. Esvoaçam vindos de todos os pontos cardeais, em bandos de dúzias, pousando com o crepúsculo. Centenas de Grus canadensis instalam-se no rio que começa agora o seu degelo. Juntam-se nos baixios da ilha, alimentando-se, batendo as asas, vocalizando: a guarda avançada de uma evacuação em massa. A cada minuto que passa pousam mais aves, o ar zumbindo com os chamamentos que entoam.
Um pescoço alonga-se; as pernas pendem para trás. As asas curvam-se para a frente, do comprimento de um homem. Esticadas como dedos, as rémiges viram a ave na direcção do vento. A cabeça vermelha-sanguínea inclina-se e as asas agitam-se em conjunto, um sacerdote encapotado dando a bênção. A cauda assume a forma de uma concha e o abdómen contrai-se, surpreendido pelo encapelamento do solo. As pernas pontapeiam, os joelhos retrógrados abanando como um trem de aterragem avariado. Outra ave mergulha e tropeça para a frente, lutando por um espaço no já apinhado palco ao longo dos poucos quilómetros de água ainda desimpedidos e largos o suficiente para serem considerados seguros.
O crepúsculo cai mais cedo, e assim será durante mais algumas semanas. O céu, azul-glacial por entre os invasores salgueiros e choupos, inflama-se de um rosa fugaz antes de sucumbir ao azul. Finais de Fevereiro no Platte, e a gélida neblina nocturna paira sobre este rio, enregelando o restolho do Outono passado que ainda ocupa os campos limítrofes.
As nervosas aves, da altura de crianças, amontoam-se lado a lado nesta extensão de rio que aprenderam a encontrar de cor.
Convergem para o rio no final do Inverno desde há uma eternidade, cobrindo os pauis como um tapete. Sob esta luz, há nelas ainda algo de sáurio: os seres voadores mais antigos da Terra, apenas um pequeno passo à frente dos pterodáctilos. À medida que a escuridão se instala definitivamente, é o regresso ao mundo primevo, a mesma noite como naquele dia há sessenta milhões de anos quando esta migração teve início.
Meio milhão de aves — quatro quintos de todos os Grus canadensis da Terra — dirige-se a este rio. Percorrem uma rota migratória que descreve uma espécie de ampulheta e que se estende sobre o continente americano. Avançando desde o Novo México, passando pelo Texas e pelo México, centenas de quilómetros todos os dias, outras centenas mais a percorrer, antes de chegarem aos mesmos ninhos da época anterior. Durante algumas semanas, esta extensão de rio abrigará este gigantesco bando. Depois, no início da Primavera, levantam voo e encaminham-se mais para Norte, dirigindo-se para Saskatchewan, para o Alasca, ou mais além.
O percurso deste ano é o mesmo do passado. Algo em cada ave reconstitui uma rota estabelecida há séculos antes de os seus progenitores lha terem ensinado. E cada grou recorda o itinerário que terá ainda de percorrer.
Os grous desta noite agitam de novo a água. Durante mais uma hora, os seus chamamentos uníssonos preenchem o ar. As aves batem as asas e inquietam-se, ansiosas com a migração. Algumas arrancam gravetos gelados e lançam-nos ao ar. A ansiedade degenera em combates. Por fim, os grous acomodam-se num sono cauteloso e pernilongo, alguns na água, outros mais acima, no restolhal.
Um guincho de travões, o amolgar de metal no asfalto, um grito entrecortado e depois outro sobressaltam o bando. A carrinha descreve um arco no ar, rebolando pelo campo. Pulam do chão, batendo as asas. O apavorado bando levanta voo, descreve um círculo e volta a pousar. Vocalizações que parecem provir de criaturas com o dobro do tamanho delas viajam vários quilómetros até se desvanecerem.
De manhã, tal som nunca acontecera. Mais uma vez, existe apenas o aqui, o agora, os braços do rio, um festim de grãos malbaratados que sustentará estes bandos na sua viagem para Norte, para lá do Círculo Árctico.
À medida que os primeiros raios de luz despontam, os fósseis regressam à vida, testando as suas pernas, provando o ar gélido, saltitando em liberdade, os bicos a apontar para o céu e as gargantas abertas. Então, como se a noite nada tivesse reclamado, esquecendo tudo menos este momento, os grous matutinos começam a dançar. A dançar como têm vindo a fazer desde antes do aparecimento deste rio.
O irmão precisava dela. Este pensamento protegeu Karin durante aquela estranha noite. Conduziu num transe, sem nunca se afastar do extenso itinerário em forma de cotovelo, em direcção a Sul pela estrada 77 que atravessa o Nebrasca desde Siouxland, depois rumo a Oeste pela estrada 30, paralela ao rio Platte. As estradas secundárias não eram sequer uma opção, no estado em que se encontrava, ainda aturdida por aquele telefonema às duas da manhã: Karin Schluter? Fala do Good Samaritan Hospital em Kearney. O seu irmão sofreu um acidente.
O funcionário não adiantou mais informações ou pormenores, apenas que Mark se despistara na carrinha em que viajava na berma de North Line Road e que ficara preso no interior, quase enregelado, até os paramédicos o encontrarem e socorrerem. Durante bastante tempo depois de desligar, não conseguira sentir os dedos, até dar por eles pressionados contra as maçãs do rosto. Tinha a cara dormente, como se tivesse sido ela quem estivera ali deitada, exposta ao frio daquela noite de Fevereiro.
As mãos, hirtas e azuladas, agarravam o volante, quais garras, à medida que atravessava as reservas nativas-americanas. Primeiro a dos Winnebago, depois a ondulante reserva dos Omaha. As pequenas árvores que ladeavam a remendada estrada curvavam-se sob o peso da neve. Winnebago Junction, o recinto do Pow Wow, o tribunal tribal e quartel de bombeiros voluntários, a bomba de gasolina onde ela abastecia o carro sem ter de pagar imposto, a ripa de madeira pintada à mão onde se lia “Loja de Recordações de Arte Nativa”, o liceu — Home of the Indians — onde leccionara em regime de voluntariado até o desespero a ter feito afastar-se, tudo aquilo lhe virava as costas numa atitude hostil. No longo e deserto troço a leste de Rosalie, um homem solitário mais ou menos da idade do seu irmão, com um casaco pouco quente e um boné, avançava pela berma da estrada.
Virou-se e rosnou à medida que ela passava, repelindo a intrusão.
A sutura da linha divisória da estrada empurrava-a para a frente para a nívea escuridão. Não fazia sentido: Mark, um condutor quase profissional, despistar-se numa estrada rural em recta que conhecia tão bem quanto a palma da sua mão. Um despiste no centro do Nebrasca é como cair de um cavalinho de balouço. Pensou na data: 20/02/02. Quereria dizer alguma coisa? Bateu com as palmas das mãos no volante e o carro abanou. O seu irmão sofreu um acidente. Na verdade, ele tomara há muito todos os caminhos errados que era possível tomar na vida, e sempre em contramão. Telefonemas a horas impróprias, desde que ela se lembrava. Mas nunca um como este.
Usou o rádio para se manter acordada. Sintonizou um programa absurdo no qual se discutia a melhor forma de proteger os animais de estimação de envenenamentos perpetrados por terroristas através da água. Todas as vozes transtornadas e estáticas na escuridão se infiltravam nela, sussurrando a situação em que se encontrava: sozinha numa estrada deserta a meio quilómetro da sua própria desgraça.
Que criança amorosa Mark fora, vendendo os brinquedos para protelar o sequestro da quinta, intrometendo-se, com oito anos de idade, entre os pais naquela horrenda noite há 19 anos quando Cappy ameaçou Joan com um cabo de electricidade. Era assim que imaginava o irmão à medida que mergulhava de cabeça na escuridão. A raiz de todos os seus acidentes: demasiado preocupado pela metade.
Nos arrabaldes de Grand Island, a 300 quilómetros de Sioux, à medida que o dia despontava e o céu se tornava cor de pêssego, avistou o rio Platte. Os primeiros raios de luz fizeram reluzir o tom castanho lamacento das águas, tranquilizando-a. Algo chamou a sua atenção, balanceantes ondas cor de pérola salpicadas de encarnado. Até mesmo ela pensou, a princípio, tratar-se de hipnose da auto-estrada. Um tapete de aves com um metro estendia-se até à distante linha das árvores. Vira-as todas as primaveras durante mais de trinta anos, e ainda assim a enorme massa dançante fê-la guinar o volante, quase seguindo o destino do irmão.
Mark esperara pelo regresso das aves para perder o controlo. Já estava um caco em Outubro passado, quando ela fizera este mesmo caminho para o velório da mãe. Acampado com os amigos embaladores de carne no nono círculo do inferno da Nintendo, começando a beber cerveja logo ao pequeno-almoço, completamente bêbado quando ia trabalhar no segundo turno diário. Tradições a proteger, Coelhinha; honra familiar. Na altura não tivera força de vontade para o tentar chamar à razão. Ele não a teria escutado, ainda que ela tivesse tentado. Porém, aguentara-se durante o Inverno, até se recompusera um pouco. E tudo para isto.
Kearney surgiu no horizonte: os arrabaldes dispersos, o recém-construído hipermercado, a gamela de gordura da fast-food ao longo da Second Street, a antiga rua principal. Toda a cidade lhe pareceu de repente uma glorificada via de saída da I-80. A familiaridade encheu-a de uma estranha e inapropriada calma. Estava em casa.
Encontrou o Good Samaritan Hospital da mesma forma que os grous encontravam o Platte. Falou com o especialista em traumatismos, esforçando-se por acompanhá-lo. Não parava de dizer coisas como gravidade média, estável e muita sorte. Parecia jovem o suficiente para ter estado na farra naquela noite com Mark. Pensou pedir-lhe para ver o diploma universitário. Ao invés disso, perguntou o que “gravidade média” queria dizer e acenou educadamente ao escutar a obscura resposta. Inquiriu então sobre a expressão “muita sorte” e o médico explicou: “Muita sorte por estar vivo.”
Os bombeiros tinham-no desencarcerado da carrinha com um maçarico de acetileno. Poderia ter ficado ali toda a noite, esmagado contra o pára-brisas, enregelando e esvaindo-se em sangue, a poucos metros da berma da estrada, se não fosse a chamada anónima feita de uma bomba de gasolina nos limites da cidade. Deixaram-na entrar na unidade de cuidados intensivos para o ver. Uma enfermeira tentou prepará-la, mas Karin não ouviu nada. Deteve-se frente a um novelo de cabos e monitores. Sobre a cama jazia um volume envolto em ligaduras brancas. Um rosto no meio do emaranhado de tubos, inchado e roxo, coberto de escoriações. Os lábios e maçãs do rosto ensanguentados estavam salpicados de pedrinhas embutidas. O cabelo emaranhado dava lugar a uma clareira de couro cabeludo descoberto de onde haviam germinado vários fios. A testa fora pressionada contra uma grelha quente. Numa fina bata azul-esverdeada, o irmão esforçava-se por inspirar.
Ouviu-se a si mesma chamá-lo à distância. “Mark?” Os olhos abriram-se ao escutar o som, como os olhos de plástico das suas bonecas de infância. Nada se mexeu, nem mesmo as suas pálpebras. Nada, até que a boca exalou, sem som. Ela inclinou-se sobre o equipamento. O ar sibilou entre os lábios dele, por cima do zumbido dos monitores. Vento por entre uma seara de trigo maduro.
O rosto dele reconheceu-a. Mas nada lhe saiu da boca, excepto um fio de saliva. Os olhos suplicavam, aterrorizados. Ele precisava de alguma coisa dela, vida ou morte. “Está tudo bem, eu estou aqui”, disse ela. Contudo, isto apenas piorou o estado dele. Estava a excitá-lo, precisamente o que as enfermeiras haviam proibido. Ela desviou os olhos, para qualquer lado menos para o olhar animalesco do irmão. O quarto cauterizou-se na sua memória: a cortina corrida, as duas filas de ameaçador equipamento electrónico, a parede cor de lima, a mesa de rodas ao lado da cama.
Fez nova tentativa. “Markie, é a Karin. Vais ficar bem.” Dizê-lo tornava-o numa espécie de verdade. Um gemido escapou-se da sua boca fechada. A mão, picada com a agulha intravenosa, esticou-se e agarrou-lhe o punho. A pontaria dele assombrou-a. O aperto foi fraco mas mortal, puxando-a para baixo para a confusão de tubos. Os dedos agitaram-se, frenéticos, como se, nesta fracção de segundo, ela conseguisse ainda impedir a carrinha de se despistar.
A enfermeira obrigou-a a sair. Karin Schluter foi sentar-se na sala de espera da unidade de traumatismos, um terrário de vidro na extremidade de um longo corredor que cheirava a anti-sépticos, terror e revistas de saúde antigas. Filas de agricultores de cabeças curvadas e respectivas esposas, de camisolas escuras e fatos-macacos, esperavam sentados nas cadeiras quadradas e almofadadas em cor de damasco ao lado dela. Tentou decifrar as suas expressões: pai, ataque de coração; marido, acidente de caça; filho, overdose. No canto, uma televisão sem som emitia imagens de uma montanha sem vegetação salpicada de guerrilheiros. Afeganistão, Inverno de 2002. Ao fim de um momento, reparou num fio de sangue correndo pelo dedo indicador direito, fruto da cutícula que roera. Deu por si a levantar-se da cadeira e a encaminhar-se para a casa de banho, onde vomitou.
Mais tarde comeu qualquer coisa quente e pegajosa comprada na cafetaria do hospital. A determinada altura, dirigiu-se às escadarias de betão sem acabamentos, destinadas apenas a serem vistas em situações de incêndio, e telefonou para a Sioux City, a gigantesca empresa de informática e electrónica e para o lar onde trabalhava no departamento de atendimento ao cliente. Alisou a saia amarrotada como se o supervisor a conseguisse ver através da linha. Contou ao chefe, tão vagamente quanto podia, o acidente do irmão. Um relato extraordinariamente monótono, insípido: trinta anos de prática a esconder verdades. Pediu dois dias de licença. Ele ofereceu-lhe três. Ela começou por protestar, mas aceitou de imediato num tom agradecido.
De volta à sala de espera, reparou em oito homens de meia-idade em roupa de flanela dispostos em círculo, os seus olhos indolentes examinando o chão. Um murmúrio elevou-se do grupo, o vento a importunar os solitários guarda-ventos da casa de uma quinta. O som elevava-se e desvanecia-se em ondas. Levou um instante a perceber: um círculo de oração, para outra vítima que chegara logo a seguir a Mark. Um culto de Pentecostes improvisado, abrangendo qualquer coisa que os bisturis, os medicamentos e os lasers não fossem capazes de resolver. O dom das línguas desceu sobre o círculo de homens, como conversa fiada numa reunião de família. O lar era o local de onde nunca se escapava, mesmo em pesadelos.
Estável. Muita sorte. As palavras consolaram Karin até meio do dia. Porém, quando o médico voltou a falar com ela, as palavras haviam-se transformado em edema cerebral. Alguma coisa fizera aumentar a pressão dentro do crânio do seu irmão. As enfermeiras tentavam arrefecer-lhe o corpo. O médico mencionou um ventilador e um dreno ventricular.
Quando voltaram a deixá-la ver Mark, ela já não o conhecia. A pessoa à qual a conduziram da segunda vez jazia comatosa, o rosto transformado no de um estranho. Os seus olhos já não se abriam quando ela o chamava pelo nome. Os braços permaneciam imóveis, mesmo quando ela lhos apertava.
Os funcionários do hospital vieram conversar com ela. Falavam-lhe como se ela tivesse alguma lesão cerebral. Espremeu deles todas as informações que pôde. O nível de alcoolemia no sangue de Mark revelara estar abaixo do limite permitido pelas leis do Nebrasca — três ou quatro cervejas nas horas que antecederam o acidente.
Não havia mais nada de relevo nas análises ao sangue. A carrinha ficara destruída.
Dois agentes da polícia chamaram-na à parte no corredor e fizeram-lhe algumas perguntas. Respondeu com o que sabia, que era nada. Uma hora mais tarde interrogou-se se imaginara a conversa. Mais adiante nessa tarde, um homem de cerca de cinquenta anos numa camisa azul de trabalho sentou-se a seu lado. Conseguiu virar a cabeça e pestanejar. Não era possível, nem mesmo nesta cidade: ser assediada, na sala de espera da unidade de traumatismos.
- Devia arranjar um advogado - disse o homem.
Ela pestanejou mais uma vez e abanou a cabeça. Privação de sono.
- Está com aquele rapaz que capotou a carrinha? Li o relato do acidente no Telegraph. Devia mesmo arranjar um advogado.
A cabeça não parava de abanar.
- Você é advogado?
O homem deu um pulo para trás.
- Valha-me Deus, não. É apenas um conselho de amigo.
Procurou o Telegraph e leu o superficial relato do acidente até o jornal ceder sob o peso das páginas. Ficou sentada no terrário de vidro até já não aguentar mais, depois passeou pelos corredores e voltou a sentar-se. A cada hora suplicava que a deixassem vê-lo. E de cada vez recebia uma resposta negativa. Passou pelo sono durante cinco minutos encostada à cadeira cor de damasco. Mark levantou-se nos seus sonhos, qual gramínea depois de um incêndio de pradaria. Uma criança que, por pena, escolhia sempre os piores jogadores para a sua equipa. Um adulto que apenas telefonava quando a bebedeira o tornava lamechas. Sentia os olhos a arder e a boca pastosa de saliva. Observou-se ao espelho no chão da casa de banho: manchada e cambaleante, o cabelo ruivo pendido numa cortina de contas emaranhada. Mas ainda assim apresentável, tendo em conta tudo.
- Houve algum retrocesso - explicou o médico.
Falou em ondas B e milímetros de mercúrio, lobos e ventrículos e hematomas. Karin compreendeu por fim. Mark iria necessitar de ser submetido a uma intervenção cirúrgica.
Abriram-lhe a garganta e colocaram-lhe um parafuso no crânio. As enfermeiras pararam de responder às perguntas de Karin.
Horas mais tarde, no seu melhor tom de relações públicas, pediu para o ver novamente. Disseram-lhe que estava demasiado fraco devido à cirurgia. As enfermeiras ofereceram-se para lhe dar qualquer coisa, mas só lentamente é que Karin percebeu que se referiam a medicação.
- Oh, não, obrigada - respondeu-lhes. - Estou bem.
- Vá até casa por algumas horas - aconselhou o médico. - Ordens do médico. A senhora precisa de descansar.
- Há outras pessoas a dormir no chão da sala de espera. Posso ir arranjar um saco-cama e voltar num instante.
- De momento, não há nada que possa fazer - afirmou o médico. Mas isso não podia ser; pelo menos no mundo de onde ela vinha.
Prometeu ir descansar se a deixassem ver o irmão, apenas por um instante. Assentiram. Tinha os olhos ainda fechados e não respondeu a nada.
Foi então que viu o bilhete. Estava em cima da mesa-de-cabeceira, à espera. Ninguém lhe sabia dizer quando ali aparecera. Um qualquer mensageiro esgueirara-se até ao quarto sem ser visto, apesar de a Karin ser impedida a entrada. A letra era araneiforme, etérea: garatujos imigrantes de há um século atrás.
Não sou Ninguém
mas esta Noite em North Line Road
DEUS conduziu-me até si
para que pudesse VIVER
e trazer de volta outra pessoa.
Um bando de aves, cada uma em chamas. As estrelas mergulham como projécteis. Pontos vermelhos e quentes materializam-se, fazem aí o ninho, uma parte de um corpo, em parte um corpo.
Dura para sempre: sem qualquer mudança mensurável.
Bando de cinzas ígneas. Quando a dor cinzenta delas rareia, então a água, sempre. A vastidão mais rasa tão lenta que nem chega a ser líquida. Nada no final a não ser corrente. Ribeiro sem depois, a coisa mais inferior acima do conhecimento. Uma coisa em si mesma, o frio, e por isso não consegue senti-lo.
Corpo água rasa, caindo um centímetro por quilómetro. O torso longo como o mundo. Trajecto gelado todo o percurso de aberto a fechado. Grandes cotovelos, curvas de idade, S indolente, retardado, descia a corrente para retardar durante o mais tempo possível a longa queda que já termina.
Nem sequer rio, nem sequer oeste molhado, castanho, lento, nem agora nem depois excepto no agora e depois elevando-se. O rosto esforçando-se num grito mudo. Coluna branca, iluminada num rio de luz. Depois puro terror, saltando para o ar, virando-se e caindo, tudo menos acertar no alvo.
Um som não perfaz uma palavra, mas ainda assim diz: vem. Vem comigo. Tenta a morte.
Por fim, apenas água. Água rasa dispersando-se até ao seu nível. Água que não é nada, mas que para o nada flui.
Hospedou-se num daqueles lugares para os turistas que vêm ver os grous junto à estrada interestadual. Parecia acabado de cair das traseiras de um camião. Cobraram-lhe o couro e o cabelo por um quarto, contudo estava perto do hospital - a única coisa que interessava. Ficou uma noite e depois teve de encontrar outra alternativa. Como familiar mais próxima, preenchia os requisitos necessários para se alojar no abrigo que ficava a um quarteirão do hospital, um lar subsidiado com os trocos do maior cartel global de fast-food do mundo. A Casa do Palhaço, como ela e Mark a haviam alcunhado quando, há quatro anos, o pai se encontrava a morrer de insónia fatal. Demorara quarenta dias a morrer e no final, quando assentiu por fim em ser levado para o hospital, a mãe por vezes dormia na Casa do Palhaço para ficar mais perto dele. Karin não conseguia enfrentar essa recordação, não neste momento. Ao invés disso, decidiu ficar em casa de Mark, a meia hora de distância.
Conduziu até Farview, onde Mark comprara uma casa por catálogo poucos meses depois da morte do pai com a sua parte da escassa herança. Perdeu-se e teve de pedir direcções para River Run Estates ao homem que parecia imitar o actor Walter Brennan da Texaco de Four Corners. Psicológico. Nunca quisera que Mark aqui vivesse. Mas depois da morte de Cappy, Mark não escutava ninguém.
Encontrou por fim a Homestar pré-fabricada, o orgulho de Mark. Comprara a casa mesmo antes de começar a trabalhar como técnico de manutenção e reparações na fábrica de embalamento de carne em Lexington. No dia em que Mark passou o cheque da entrada para a casa, andou por toda a cidade a comemorar, como se tivesse acabado de ficar noivo.
Um monte fresco de coco de cão recebeu-a à porta. Blackie estava encolhida no canto da sala de estar, ganindo confusa e culposamente. Karin deixou o pobre animal sair e deu-lhe de comer. No quintal, digno de um selo postal, o border collie voltou às suas origens de cão pastor, juntando em rebanho esquilos, outeiros de neve, estacas de sebes, qualquer coisa que convencesse os humanos de que ainda era merecedor de amor e carinho.
O aquecimento estava desligado. Só o hábito do irmão de nunca fechar totalmente uma torneira impedira os canos de rebentar. Despejou o cone de coco no quintal gelado. O cão correu até ela, desejoso de travar amizade, mas querendo em primeiro lugar inquiri-la sobre o paradeiro de Mark. Karin agachou-se no alpendre e pressionou o rosto contra a balaustrada gelada.
Tremendo, voltou para dentro. Podia arrumar a casa para ele, pelo menos. A limpeza não era feita há semanas. No que o irmão apelidava de sala da família, endireitou as pilhas de revistas sobre personalização de carrinhas e mulheres. Juntou discos espalhados e empilhou-os por trás do bar apainelado que Mark instalara sem grande sucesso. Um poster de uma rapariga de biquini de couro preto estendida sobre a cobertura do motor de uma carrinha antiga pendia da parede do quarto. Enojada, arrancou-o. Só ao ver os pedaços de papel nas mãos é que se deu conta do que fizera. Encontrou um martelo num armário e tentou voltar a pregar o poster à parede, mas estava demasiado despedaçado. Colocou-o no balde do lixo, amaldiçoando-se a si mesma.
A casa de banho assemelhava-se a um laboratório científico experimental. Mark não tinha materiais de limpeza a não ser desentupidores de canos e sabonete com aroma a couro. Vasculhou a cozinha em busca de vinagre ou amónia, mas não encontrou nada mais dissolvente do que cerveja. Por baixo do lava-louças encontrou um balde cheio de trapos com uma lata de pó de limpeza que emitiu um ruído surdo quando a ergueu. Rodou a tampa e esta abriu-se. No interior estava uma embalagem de comprimidos.
Sentou-se no chão da cozinha e chorou. Pensou em regressar a Sioux City, reduzindo os prejuízos e retomando a sua vida. Manuseou os comprimidos, rodando-os entre os dedos. Acessórios de casa de bonecas ou equipamento desportivo: pratos brancos, halteres encarnados, minúsculos pires purpúreos com monogramas ilegíveis. De quem os estaria ele a esconder ali em baixo, para além dele mesmo? Pareceu-lhe reconhecer o preferido ali da zona: Ecstasy. Tomara alguns uma vez, dois anos antes, em Boulder. Passara a noite a fundir a mente com os amigos e a abraçar perfeitos desconhecidos. Entorpecida, segurou num comprimido e esfregou-o contra a língua pendida. Rasgou a embalagem e enfiou os comprimidos no lixo. Abriu a porta a Blackie, que não parava de latir. O cão farejou-a em redor da barriga das pernas, exigindo a sua atenção.
- Está tudo bem - prometeu ao animal. - Tudo estará de volta mais uma vez, em breve.
Passou ao quarto, um museu de dentes de vaca, minerais coloridos e centenas de cápsulas de garrafas exóticas montadas em expositores caseiros. Inspeccionou o roupeiro. Ao lado da ganga, quase toda escura, e da bombazina, três fatos-macacos com nódoas de gordura e o logótipo da IBP pendurados num cabide por cima das sujas botas de trabalho, as que usava todos os dias quando ia para o matadouro. O pensamento atravessou-a de uma ponta à outra: coisas com as quais teria conseguido ligar no dia anterior. Telefonou para a fábrica, Iowa Beef Processors: o maior fornecedor mundial de carne de vaca e porco da melhor qualidade e de produtos afins. Foi atendida por um menu automático. Depois outro. Depois por música animada, por uma pessoa animada, depois por alguém rouco, que insistia em tratá-la por minha senhora. Minha senhora. Algures pelo caminho, transformara-se na sua própria mãe.
Um funcionário informou-a dos passos a tomar para requerer a licença por incapacidade de Mark. Durante a hora que demorou a tratar dos papéis sentiu o alívio de ser útil. Tal prazer era cauterizante.
Telefonou ao seu próprio empregador em Sioux. Era uma empresa de renome, o terceiro maior vendedor de computadores do país. Anos antes, no auge de popularidade do PC, a empresa diferenciara-se de vendedores semelhantes por correspondência por meio do simples artifício de colocar manadas de vacas nos seus anúncios. Mark rira-se dela quando Karin viera do Colorado para o Nebrasca e arranjara emprego na empresa.
Vais tratar das queixas da Empresa de Computadores das Vacas? Ela não fora capaz de explicar. Depois de anos do que encarava como uma ascensão na carreira - passando de recepcionista telefónica em Chicago a vendedora de anúncios para revistas comerciais da moda em Los Angeles, progredindo depois para braço direito e, por fim, para testa-de-ferro de dois empresários da Internet em Boulder, que iam ganhar milhões com um mundo on-line onde as pessoas poderiam desenvolver alter egos férteis, mas que acabaram por se processar um ao outro —, voltara a pôr os pés na terra. Passado o marco dos trinta anos, não tinha mais tempo ou orgulho para arriscar em algo como a ambição. Não havia nada de mal em realizar um trabalho honesto e pouco especializado para uma empresa de confiança que não tinha quaisquer pretensões. Se o seu destino estava no atendimento ao cliente, então ela relacionar-se-ia com o consumidor tão habilmente quando lhe era possível. Na verdade, descobrira uma aptidão oculta para lidar com reclamações. Dois e-mails e 15 minutos ao telefone e era capaz de convencer um cliente disposto a fazer o edifício ir pelos ares que tanto ela própria quanto a empresa de vários milhares de empregados não desejavam mais nada a não ser a amizade e o respeito vitalícios do cliente.
Não fora capaz de explicar a sua decisão ao irmão nem a mais ninguém: o estatuto e a satisfação não significavam nada. A competência era tudo. Por fim, a vida parara de a induzir em erro. Tinha um emprego que desempenhava bem, um pequeno apartamento perto do rio em South Sioux, até uma agradável agitação nervosa partilhada com um mamífero amistoso do apoio técnico, e que ameaçava transformar-se num relacionamento mais mês menos mês. Depois isto. Um telefonema e a realidade descobrira-a de novo.
Não importava. Nada em Sioux precisava dela. A única pessoa que realmente necessitava dela jazia no hospital, numa ilha escura, sem qualquer outro familiar que olhasse por si.
Pediu para falar com o director do departamento, alisando o cabelo quando este atendeu. Ele consultou o calendário das férias e disse-lhe que podia ficar ausente até uma semana a contar da próxima segunda-feira. Da forma mais humilde que pôde, explicou que não tinha a certeza se tal seria suficiente. Provavelmente, teria de ser, disse o director. Agradeceu-lhe, desculpou-se mais uma vez e regressou às limpezas.
Armada apenas de detergente para a louça e papel de cozinha, tornou a casa de Mark de novo habitável. Observou-se ao espelho da casa de banho enquanto limpava os salpicos: uma apaziguadora profissional de 31 anos, com um quilo e meio de excesso de peso, cabelo ruivo com 45 centímetros a mais para a sua idade, desesperada por alguma coisa para consertar. Seria capaz de se mostrar à altura da situação. Mark regressaria em breve, enchendo de novo alegremente o espelho de salpicos. Ela regressaria à terra dos Computadores das Vacas onde as pessoas respeitavam o trabalho que ela fazia e apenas os estranhos lhe pediam ajuda. Alisou a pele seca das maçãs do rosto até às orelhas e acalmou a respiração. Terminou de limpar o lavatório e a banheira e depois dirigiu-se ao carro para ver o que colocara na mochila: duas camisolas, um par de calças de sarja e três mudas de roupa interior. Dirigiu-se então a Kearney, onde comprou uma camisola, dois pares de calças de ganga e um creme hidratante. Mesmo tão pouco era já desafiar o destino.
Não sou Ninguém, mas esta Noite em North Line Road... Perguntou por toda a unidade de traumatismos se alguém sabia alguma coisa em relação ao bilhete. Pelos vistos, aparecera simplesmente na mesa-de-cabeceira pouco tempo depois do internamento de Mark. Uma enfermeira hispânica com um colar com um elaborado crucifixo guarnecido de pedras turquesa insistiu que ninguém para além de Karin e do pessoal hospitalar fora autorizado a entrar no quarto nas primeiras 36 horas. Ela apresentou o bilhete para provar o contrário. A enfermeira tentou confiscar-lho, mas Karin recusou-se a entregá-lo. Precisava dele para Mark, quando ele recuperasse os sentidos.
Transferiram-no para um quarto onde ela podia ficar com ele. Ele permanecia imóvel e esticado na cama, um manequim tombado. Dois dias mais tarde, abriu os olhos por meio minuto, fechando-os com força logo a seguir. Mas voltaram a abrir-se, no final da tarde. Ao longo do dia seguinte contou mais seis aberturas. De cada vez, parecia olhar para um qualquer filme de terror.
O rosto dele começou a mexer-se como uma máscara de borracha. O olhar, fixo e incoerente, procurava-a. Ela permanecia sentada à cabeceira da cama, escorregando sobre cascalho na embocadura de uma profunda pedreira. “O que é, Mark? Diz-me. Eu estou aqui.”
Suplicou às enfermeiras por algo que pudesse fazer, qualquer coisa, por mais insignificante que fosse, que pudesse ajudar. Deram-lhe meias especiais em nylon e botas para calçar e descalçar a Mark com intervalos de poucas horas. Ela fazia-o de quarenta em quarenta minutos, massajando-lhe também os pés. Mantinha o sangue a circular e prevenia coágulos. Não saía do seu lado, apertando e massajando. Certa vez, deu por si a murmurar a promessa dos quatro membros:
a minha cabeça para pensar com mais lucidez, o meu coração para conseguir uma maior lealdade, as minhas mãos para ser mais útil, e a minha saúde para viver melhor...como se estivesse de novo no liceu e Mark fosse o seu projecto para a feira do condado.
Ser mais útil: tentara-o toda a sua vida, armada apenas de um bacharelato em Sociologia da Universidade do Nebrasca. Assistente de professora na reserva Winnebago, voluntária em refúgios para sem-abrigo na baixa de L.A., escriturária pro bono para uma empresa de advocacia em Chicago. Por amor a um provável namorado em Boulder, chegara até a fazer as vezes de manifestante em marchas anti-globalização, entoando os protestos com um fervor que não ocultava o quanto achava aquilo tudo uma estupidez. Teria ficado em casa para sempre, ter-se-ia dedicado a manter a sua família intacta, não fosse pela sua família. Agora, o último membro que restava dela jazia a seu lado, inerte, incapaz de objectar à sua utilidade.
O médico colocou uma torneira de metal no cérebro do irmão, drenando-o. Monstruoso, mas funcionou. A pressão dentro do crânio diminuiu. Os quistos e as hérnias retraíram-se. O cérebro tinha agora todo o espaço de que necessitava. E ela disse-lho. “Agora, tudo o que precisas é de te pôr bom.”
As horas passavam num piscar de olhos, mas os dias estendiam-se sem fim. Ela sentava-se ao lado dele, arrefecendo-lhe o corpo com cobertores de arrefecimento especiais, descalçando-lhe os sapatos e calçando-lhos de novo. E não parava de conversar com ele. Ele nunca mostrou qualquer sinal de a escutar, mas isso não a demovia. Os tímpanos tinham ainda de se mover, os nervos por trás deles de vibrar.
“Trouxe-te umas rosas. Não são bonitas? E para além disso, cheiram bem. A enfermeira está a mudar o soro outra vez, Markie. Não te preocupes; eu ainda aqui estou. Tens de te levantar para veres os grous este ano, antes que se vão embora. São magníficos. Nunca vi tantos. Vêm à cidade em bandos. Um grupo deles pousou no telhado do McDonald's. Devem estar a preparar alguma. Meu Deus, Mark. Os teus pés tresandam. Parecem um Roquefort de má qualidade.”
Cheira os meus pés. O seu castigo ritual para qualquer transgressão, começando no ano em que ele a ultrapassou em termos de força. Cheirou o seu inerte corpo de novo, pela primeira vez desde que eram crianças. Roquefort e vomitado coagulado. Como o gatinho selvagem que encontraram escondido debaixo do alpendre quando ela tinha nove anos. Agridoce, como a floresta de bolor na fatia de pão húmido que Mark deixara num prato tapado por cima do respiradouro do forno quando andava na escola, para uma exposição de ciências, e que esquecera. “Quando chegares a casa, tomas um bom banho de espuma.”
Contou-lhe tudo sobre a torrente de visitas ao vizinho comatoso da cama ao lado: mulheres com vestidos pregueados, homens de camisas brancas e calças pretas, como os mórmones dos anos 60 nas suas missões. Ele escutava todas as histórias dela petrificado, os músculos mais pequenos do rosto imóveis.
Na segunda semana, um homem mais idoso entrou no quarto com um casaco entufado que o fazia parecer um homem da Michelin azul-brilhante. Colocou-se ao lado da cama do inconsciente companheiro de quarto de Mark, gritando: “Gilbert. Rapaz? Estás a ouvir-me? Vamos lá, acorda. Não temos tempo para disparates destes. Já chega, estás a ouvir? Temos de voltar para casa.” Uma enfermeira assomou à porta para ver o que se passava e conduziu o homem, sob protestos, até ao corredor. Depois disso, Karin deixou de falar com Mark. Ele pareceu não reparar. O dr. Hayes afirmou que o décimo quinto dia era o ponto de não retorno. Nove décimos das vítimas de trauma encefálico recuperava os sentidos por essa altura.
- Os olhos são boas notícias - disse ele. - O cérebro reptiliano dele demonstra uma boa actividade.
- O meu irmão tem o cérebro de um réptil?
O dr. Hayes sorriu, como um médico num antigo filme de propaganda de saúde pública.
- Todos temos. Uma lembrança do longo caminho evolutivo que percorremos para chegar até onde nos encontramos.
Obviamente, o médico não era destas partes. A maioria dos habitantes locais não percorrera esse longo caminho. Ambos os progenitores Schluter acreditavam que a evolução não passava de propaganda comunista. O próprio Mark tinha as suas dúvidas. Se todos os milhões de espécies se encontram constantemente em evolução, então porque é que o ser humano foi a única espécie a ganhar inteligência?
O médico explicou:
- O cérebro é uma magnífica reconstrução. Porém, não consegue escapar ao seu passado. Apenas lhe é permitido realizar acrescentos ao que já possui.
Ela imaginou as descaracterizadas mansões de Kearney, gloriosos palacetes vitorianos em madeira aumentados com tijolo na década de 1930 e mais uma vez na década de 1970 com alumínio e madeira de contraplacado.
- E o que está o cérebro réptil dele... a fazer? Que tipo de actividade boa?
O dr. Hayes desbobinou uma série de termos: medula, pontes, mesencéfalo, cerebelo. Ela copiou as palavras para um minúsculo bloco de notas onde registava tudo, para investigar mais tarde. O neurologista fez o cérebro parecer mais frágil e vacilante do que as antigas carrinhas de brincar que Mark costumava fazer a partir de pedaços de madeira e garrafas de detergente.
- E o mais elevado...? O que há acima de réptil, algum tipo de ave?
- O nível acima é o do cérebro de mamífero.
Os lábios dela mexiam-se enquanto ele falava, auxiliando-o. Era mais forte do que ela.
- E o do meu irmão?
O dr. Hayes ficou então mais cauteloso.
- É difícil de dizer. Não observamos qualquer lesão explícita. Há actividade. Regulação. O hipocampo e a amígdala parecem intactos, porém registámos alguns picos na amígdala, onde algumas das emoções negativas, como o medo, têm início.
- Está a dizer que o meu irmão tem medo? - Rejeitou as garantias do médico com um aceno de mão, entusiasmada.
Mark sentia alguma coisa. Medo ou o que quer que fosse, não importava.
- E em relação ao... cérebro humano? A parte acima do mamífero?
- Está a recompor-se de novo. A actividade no córtex pré-frontal esforça-se por se sincronizar de modo a recuperar a consciência.
Pediu ao dr. Hayes todo e qualquer panfleto que o hospital tivesse sobre lesões cerebrais, sublinhando todas as sugestões esperançosas a marcador verde de ponta fina. O cérebro é a nossa última fronteira. Quando mais aprendemos sobre ele, mais nos apercebemos do quanto temos ainda que descobrir. Estaria preparada da próxima vez que falasse com o dr. Hayes.
- Doutor, já tomou em consideração algum dos novos tratamentos para lesões cerebrais? - Remexia na mala em busca do seu bloco de apontamentos. - Agentes neuroprotectores? Citicolina ou aptiganel? SOD-PEG?
- Ena, estou impressionado. Vejo que foi para casa estudar.
Tentou fazer um ar tão competente quanto desejava que o médico fosse.
O dr. Hayes uniu as pontas dos dedos de ambas as mãos como se fossem um telhado de duas águas e levou-as aos lábios.
- As coisas evoluem depressa neste campo. O SOD-PEG foi descontinuado após resultados pouco animadores num segundo estudo. E não me parece que queira citicolina ou aptiganel.
- Doutor - argumentou no tom que habitualmente usava no relacionamento com o cliente, - o meu irmão esforça-se diariamente para abrir os olhos. Disse-me que era possível que estivesse aterrorizado. Aceitamos qualquer coisa que lhe possa dar.
- Toda a investigação sobre o aptiganel foi interrompida. Um quinto de todos os doentes que o tomavam acabou por falecer.
- Mas há outros medicamentos, não há? - Consultou o bloco de notas, trémula. A qualquer momento, as suas mãos transformar-se-iam em pombas e voariam dali para fora.
- A maioria encontra-se ainda em fase inicial de testes. Teriam de estar inseridos num ensaio clínico.
- E não estamos já? Quero dizer... - Esticou a mão em direcção ao quarto do irmão. Lá muito ao fundo na sua cabeça escutou o jingle radiofónico: Good Samaritan Hospital... A maior instituição médica entre Lincoln e Denver.
- Teriam de mudar de hospital. Ir para onde os ensaios estão a ser conduzidos.
Olhou para o homem que tinha à sua frente. Devidamente arranjado, podia ser um daqueles médicos que dão conselhos nos programas televisivos da manhã. Ele encarava-a, se é que sequer a via, como apenas uma complicação. Provavelmente, achava-a patética, sob todas as formas mensuráveis. Alguma coisa no cérebro reptiliano dela fazia-a odiá-lo.
Ergue-se nos campos alagados. Uma onda, um balançar nos juncos. Dor mais uma vez, depois nada.
Quando a consciência regressa, está a afogar-se. O pai a ensiná-lo a nadar. Corrente nos seus membros. Quatro anos de idade, e o pai a ajudá-lo a boiar. Voando, depois esbracejando, depois caindo. O pai a agarrar-lhe a perna, a puxá-lo para baixo. Segurando-o abaixo da superfície, uma mão inflexível pressionando-lhe a cabeça para baixo até que já não há mais bolhas. O rio irá morder, rapaz. Está preparado. Mas não há qualquer morder, qualquer preparado. Apenas afogar.
Surge uma pirâmide de luz, diamantes ardentes, campos tortuosos de estrelas. O seu corpo perpassa por triângulos de néon, um túnel que sobe. A água sobre si, os pulmões em chamas e depois explode para cima, em direcção ao ar.
Onde a sua boca se encontrava, apenas pele macia. Sorvos sólidos por aquele buraco acima. A casa remodelada; as janelas cobertas com papel. A porta já não é uma porta. Os músculos puxam os lábios, mas não se abre qualquer espaço. Fios apenas, onde as palavras estavam. O rosto dobrado ao contrário e enrolado em direcção aos olhos. Colocado numa cama de metal, a desgraça em que deve estar. O mais pequeno movimento uma dor pior que morrer. Talvez a morte já tenha acontecido. Ocorrido sob todas as formas. Quem quereria viver após uma tal queda?
Uma sala cheia de máquinas, o espaço que não consegue alcançar. Algo se separa dele. As pessoas aproximam-se e afastam-se demasiado depressa. Rostos acercam-se da sua cara sem boca, empurrando palavras na sua direcção. Ele mastiga-as e depois devolve baforadas de som. Alguém diz seja paciente, mas não para ele. Seja paciente, um paciente é o que ele deve ser.
Poderá demorar dias. Ninguém sabe dizer. O tempo agita-se, asas partidas. As vozes passam, algumas regressam, mas uma está tão próxima do sempre presente quanto é possível. Um rosto quase o seu rosto, tão junto que parece querer alguma coisa dele, se apenas pelo menos palavras. Esse rosto uma mulher e como água gotejando. Nada do que ela é dirá o que aconteceu.
Uma necessidade tenta arrancar-se dele. Necessidade de dizer, mais do que a necessidade de ser. Se tivesse uma boca, então tudo sairia. Então ela saberia o que acontecera, de que modo a morte dele não era o que parecia.
A pressão sobe, como um fluido esmagado. A cabeça: uma pressão interminável, enterrada já. O fluido corre-lhe do ouvido interno. Sangue dos olhos esbugalhados. Pressão mortal, mesmo depois de tudo o que escorre dele. Mais um milhão de pensamentos instrutivos que o seu cérebro pode albergar.
Um rosto paira por perto, formando palavras em chamas. Diz Mark, fica, e ele morreria para a fazer parar de mantê-lo vivo. Repele aquela coisa, sucumbindo. Os músculos contraem-se, mas a pele recusa-se a mexer. Alguma coisa frouxa. Esforça-se até mais não para operar os tendões do pescoço. Por fim a cabeça inclina. Mais tarde, uma vida mais tarde, ergue a extremidade do lábio superior.
Três palavras seriam a sua salvação. Mas nem todos os músculos conseguem libertar um único som.
Pensamentos latejam numa veia. O vermelho palpita-lhe nos olhos mais uma vez, depois aquele mastro branco emergindo do negro que atravessou. Algo na estrada que agora nunca alcançará. Gritando ali perto enquanto a sua vida rebolava. Alguém aqui nesta sala, que morrerá com ele.
A primeira palavra surge. Vem ao de cima por uma ferida mais larga que a sua garganta. A pele que cresceu sobre a sua boca rasga-se e uma palavra força a passagem por entre a ensanguentada abertura. Eu. A palavra sibila, demorando tanto tempo que ela nunca a escutará. Eu não queria.
Porém, as palavras transformam-se em coisas voadoras assim que lhe saem da boca.
Passadas duas semanas, Mark sentou-se e gemeu. Karin estava a seu lado, a um metro do rosto dele. Ele dobrou-se pela cintura e ela gritou. Os seus olhos viraram-se e encontrou-a. O grito dela transformou-se numa gargalhada, depois um soluço, ao mesmo tempo que os olhos dele se crispavam por causa dela. Ela chamou-o pelo nome e o rosto por baixo dos tubos e cicatrizes estremeceu. Não tardou que uma revoada de enfermeiras enchesse o quarto.
Muita coisa acontecera no subsolo durante os dias em que jazera congelado. Agora despontava, como o trigo de Inverno, por entre a neve. Girou a cabeça, alongando o pescoço. As mãos debateram-se desajeitadamente. Os dedos puxaram pela invasiva tecnologia. O que odiava mais era o tubo gástrico pelo qual era alimentado. A medida que os seus braços se tornaram mais hábeis a puxar pelos tubos, as enfermeiras tiveram de lhe prender as mãos.
De vez em quando, algo o assustava e ele debatia-se para lhe escapar. As noites eram o pior. Certa vez, quando Karin se preparava para sair, uma onda de medicamentos percorreu-lhe o corpo, colocando-o praticamente de joelhos na cama do hospital. Teve de o segurar e quase lutar com ele para o impedir de arrancar os drenos.
Observou-o regressar, hora após hora, como num qualquer filme escandinavo lúgubre. Por vezes ele olhava fixamente para ela, avaliando se era comestível ou uma ameaça. Certa vez, uma onda de sexualidade animal, esquecida no momento seguinte. Por vezes, ela era uma ramela que ele tentava sacudir dos olhos. Lançou-lhe aquele olhar líquido, divertido, que lhe deitara uma noite quando eram adolescentes, cada qual rastejando para casa regressados das suas noitadas, bêbados. Tu também? Nunca pensei que fosses capaz.
Começou a vocalizar - gemidos abafados pelo tubo da traqueotomia, uma linguagem secreta, livre de vogais. Cada gemido raspado e áspero dilacerava Karin. Assediou os médicos para que fizessem alguma coisa. Estes mediam o tecido cicatrizado e o fluido craniano, escutando tudo, menos o seu frenético gorgolejar. Trocaram o tubo da traqueia por outro fenestrado, cravado de minúsculos orifícios, uma janela na garganta de Mark larga o suficiente para permitir a passagem de sons. E cada um dos gritos do irmão suplicava qualquer coisa que Karin não era capaz de identificar.
Estava novamente como quando ela o vira pela primeira vez, aos quatro anos de idade, olhando fixamente do patamar do segundo piso para um pedaço de carne embrulhado num cobertor azul-bebé que os pais tinham acabado de arrastar para casa.
A sua primeira memória: no cimo das escadas, interrogando-se por que motivo os pais se davam ao trabalho de acalentar algo bem mais ridículo que os gatos da rua. Mas em breve aprendeu a amar este bebé, o brinquedo mais espectacular que qualquer menina alguma vez poderia desejar. Carregou-o para todo o lado como se fosse uma boneca durante cerca de um ano, até que por fim ele deu alguns passos desorientados sem ela. Ela pairava para ele, adulava-o e subornava-o, colocava lápis de cor e pedaços de comida longe do alcance dele até que ele os chamasse pelos seus verdadeiros nomes. Criara o irmão enquanto a mãe estava sempre ocupada a acumular tesouros para o céu. Karin já uma vez pusera Mark a andar e a falar. Seguramente, com a ajuda do hospital, conseguiria fazê-lo uma segunda vez. Algo dentro de si quase apreciava esta segunda oportunidade de o criar bem desta vez.
Sozinha ao lado da cama entre as visitas das enfermeiras, começou de novo a conversar com o irmão. Talvez as suas palavras ajudassem o cérebro dele a concentrar-se. Nenhum dos livros de neurologia que ela consultara negava essa possibilidade. Ninguém sabia o suficiente sobre o cérebro para afirmar o que o seu irmão seria ou não capaz de escutar. Sentia-se como se sentira ao longo da infância, deitando-o para dormir enquanto os pais andavam a entoar hinos em redor do órgão Hammond do vizinho, antes da primeira bancarrota dos pais e do final das saídas para convívio. Karin, desde os primeiros dias a fazer de ama, ganhando os seus dois dólares por ter mantido o irmão vivo durante mais uma noite. Markie excitadíssimo com uma overdose de Milk Duds e refrigerantes de cereja, exigindo que contassem até ao infinito ou realizassem experiências telepáticas um com o outro ou narrassem longos épicos de Animalia, o país onde os humanos não podiam entrar, povoado por heróis, patifes, travessos e vítimas, todos baseados nas criaturas da quinta da família.
Sempre animais. Os bons e os maus, os que deviam ser protegidos e os que era preciso destruir. “Recordas-te da serpente no celeiro?”, perguntou-lhe ela. Os seus olhos tremeluziram, observando a ideia do animal. “Devias ter nove anos. Pegaste num pau e mataste-a sozinho. Protegendo toda a gente. Foste ter com o Cappy e vangloriaste-te e ele deu-te uma valente sova. Acabaste de nos custar 800 dólares de cereal. Não sabes o que as serpentes comem? O que tens tu no lugar do cérebro, rapaz? Foi a última serpente que mataste.” Ele observou-a, as orlas da boca a mexer-se. Parecia estar a ouvir.
“Lembras-te do Horace?” O grou ferido que tinham adoptado quando Mark tinha 10 anos e Karin 14. Ferido numa asa por uma linha de electricidade, a ave caíra na propriedade durante a migração da Primavera. Lançara-se numa dança frenética e tomada de pânico ao sentir a aproximação deles, pelo que demoraram uma tarde inteira a abordarem-na, permitindo à ave habituar-se a eles, até que esta se resignou e se deixou capturar. “Lembras-te, quando o lavámos, que ele te arrancou a toalha das mãos com o bico e se começou a secar sozinho? Instinto, como quando se enchem de lama para escurecer a plumagem. E nós achávamos que aquela ave era mais inteligente do que qualquer ser humano. Lembras-te de termos tentado ensiná-lo a abanar a cauda?”
De repente, Mark começou a lamuriar-se. Um braço em ângulo recto e o outro aberto. O tronco impelia-se para cima e a cabeça agitava-se. Alguns tubos foram arrancados e o alarme do monitor accionou-se. Karin chamou as enfermeiras enquanto Mark se sacudia nos lençóis, o corpo balançando na direcção dela. Estava lavada em lágrimas quando a enfermeira apareceu.
- Não sei o que foi que fiz. O que se passa com ele? -Vejam bem - comentou a enfermeira, - ele está a tentar abraçá-la!
Viajou até Sioux, para resolver algumas emergências. Não cumprira a data de regresso ao trabalho e atingira o limite do tempo que pedira pelo telefone. Foi falar com o seu supervisor. Este escutou todos os pormenores, abanando a cabeça para demonstrar a sua preocupação. Também tivera um primo que fora atingido no crânio com um taco de golfe. Ficara com lesões num lobo que soava qualquer coisa a varietal. Depois disso, nunca mais fora o mesmo. O supervisor fazia votos para que o mesmo não acontecesse com o irmão de Karin.
Agradeceu-lhe e pediu se podia tirar mais alguns dias.
Quantos ao certo? Não sabia dizer.
O irmão não estava no hospital? Não estava sob o cuidado de profissionais?
Podia pedir uma licença sem vencimento, regateou ela. Apenas por um mês.
O supervisor explicou-lhe que o Family Medical Leave Act não abrangia irmãos. Um irmão, aos olhos da lei que regulava as licenças médicas, não era considerado família.
Talvez ela se pudesse despedir e a empresa a pudesse voltar a contratar quando o irmão estivesse melhor.
Não era algo impossível, afirmou o supervisor. Porém, não podia dar-lhe quaisquer garantias.
Tal feriu-a.
- Sou uma boa profissional - argumentou ela. - Sou tão boa quanto qualquer outra pessoa que atende as reclamações.
- É melhor do que boa - confessou o supervisor, e ainda assim ela inchou de orgulho. - Porém, não preciso que seja boa, apenas que esteja aqui.
Arrumou o seu cubículo num estado de desorientação. Alguns colegas constrangidos exprimiram a sua preocupação e desejaram-lhe felicidades. Terminara antes de ter realmente começado. Um ano antes, acreditara que poderia subir na empresa, ter uma carreira, iniciar uma vida aqui com pessoas que conheciam a sua amistosa disponibilidade e nada acerca do seu confuso passado. Deveria ter sabido que Kearney - o toque de midas dos Schluter - regressaria para a reclamar. Ainda pensou em descer até ao apoio técnico para dar a notícia ao alvo dos seus namoricos, Chris. Ao invés disso, telefonou-lhe do telemóvel a partir do parque de estacionamento. Quando escutou a voz dela, mal lhe falou. Duas semanas sem sequer um telefonema ou um e-mail. Ela não parou de lhe pedir desculpas até ele aceder em falar. Depois de lhe passar o amuo, Chris demonstrou-se verdadeiramente preocupado. Perguntou-lhe o que se passara. A vergonha familiar impediu-a de contar tudo. Por ele, mostrou-se espirituosa, animada, complacente, até mesmo sofisticada, pelos padrões locais. Na verdade, era apenas uma borra-botas educada por fanáticos com um irmão indolente que conseguira arranjar forma de voltar à infância. Emergência familiar, repetiu apenas.
- Quando é que regressas?
Contou-lhe que a emergência lhe acabara de custar o emprego. Chris amaldiçoou generosamente a empresa. Chegou mesmo a ameaçar ir ter uma conversinha com o supervisor dela. Ela agradeceu-lhe, mas argumentou que ele tinha era de pensar nele mesmo. No seu emprego. Ela não conhecia este homem e ele não a conhecia a ela. Contudo, quando ele não argumentou com ela, sentiu-se traída.
- Onde estás? - quis ele saber. Ela entrou em pânico e disse que estava em casa. - Eu posso passar por aí - ofereceu-se. - Este fim-de-semana, ou noutra altura. Para ajudar. Em qualquer coisa de que precises.
Segurou o telefone longe do rosto, que se contorcia num espasmo. Disse-lhe que ele era muito amável e que não se devia ter preocupado daquela forma com ela. Tal fê-lo ficar novamente amuado.
- Muito bem, então - respondeu ele. - Gostei muito de te conhecer. Tem cuidado contigo. Desejo-te uma boa vida.
Ela desligou, praguejando. Porém, a vida em Sioux nunca lhe pertencera na verdade. Fora, quando muito, um bródio de simplicidade do qual agora teria de se desintoxicar. Conduziu até ao seu apartamento para ver como estavam as coisas e emalar um guarda-roupa mais realista.
O lixo não era despejado há semanas e a casa tresandava. Os ratos haviam roído os recipientes com tampas herméticas de plástico e havia lentilhas pelo chão. Os filodendros, a schefflera e o lírio-da-paz já não tinham salvação.
Limpou o que podia, fechou a água e pagou as contas em falta. Não haveria outro cheque mensal para as cobrir. Trancando a porta atrás de si enquanto saía, interrogou-se do quanto mais teria de abdicar por Mark. Na viagem de regresso a Sul, ensaiou todos os truques para gestão da raiva que lhe haviam ensinado durante a formação que recebera para desempenhar o seu cargo. Visualizava-os no pára-brisas como se fossem diapositivos em PowerPoint. Número Um: Não tem nada a ver consigo. Número Dois: O seu plano não é o plano mundial. Número Três: A mente consegue transformar o céu num inferno e um inferno no céu.
Devia a sua própria competência ao facto de ter criado o irmão. Ele era a sua experiência em psicologia: com outro progenitor e tudo o resto na mesma, poderia o sangue do seu sangue ter-se tornado num adulto prestável? No entanto, em troca do cuidado altruísta que ela lhe prestara, ele dera-lhe, na melhor das hipóteses, um interminável fornecimento do seu principal atributo: total ausência de objectivo. Animais como eu, afirmava o rapaz de 11 anos. E era verdade, sem falha. Tudo na quinta confiava nele. Até as joaninhas avançavam temerariamente pelo rosto dele acima, encontrando um bom local para se aninhar nas suas sobrancelhas.
O que queres ser quando fores grande?, cometeu ela certa vez o erro de lhe perguntar. O rosto dele quase que explodiu de entusiasmo: Podia ser um bom tranquilizador de galinhas. No entanto, no que dizia respeito a seres humanos, ninguém sabia muito bem o que pensar do rapaz. Cometera alguns erros durante a infância: queimando o espigueiro ao fazer voar fósforos envoltos em folha de alumínio, sendo apanhado a brincar consigo mesmo por trás da capoeira das galinhas, matando uma vitela de 200 quilos acabada de desmamar ao deitar-lhe uma mistura de medicamentos na gamela, convencido de que a bezerra estava em sofrimento. Pior do que isso, falou com ceceio até aos seis anos, o que convenceu de forma segura ambos os pais de que o rapaz estava possuído. Durante várias semanas, a mãe obrigou-o a dormir junto a uma parede exorcizada com uma cruz ungida com óleo, que gotejava para a cabeça dele enquanto dormia.
Aos sete anos, começou a passar longas horas à tarde num prado a 800 metros da casa. Quando a mãe lhe perguntava o que fazia ele ali tantas horas, respondia “brinco, apenas”. Quando ela lhe perguntava com quem, dizia, a princípio, “com ninguém”, e mais tarde, “com um amigo”. Recusou-se a deixá-lo sair de casa até que lhe dissesse o nome do amigo. Mark respondeu com um sorriso tímido: “O nome dele é Mr. Thurman.” Contou ainda à mãe, já em pânico, o quanto ele e Mr. Thurman se divertiam um com o outro. Joan Schluter mandou chamar toda a força policial de Kearney. Após uma acção de vigilância no prado e uma meticulosa entrevista com o rapaz, a Polícia disse aos apavorados pais que Mr. Thurman não só não tinha registo criminal como nem sequer tinha qualquer registo, pelo menos fora da cabeça do rapaz.
Karin era a única esperança de Mark para sobreviver à adolescência. Quando ele fez 13 anos, ela tentou ensinar-lhe a salvar-se a si mesmo. É fácil, afirmara ela. Descobrira no liceu, para seu espanto, que era capaz de fazer até as elites gostarem de si ao permitir que lhe dissessem o que havia de vestir e a instruíssem em termos de gostos musicais. As pessoas gostam de pessoas que as façam sentir-se seguras. Ele não sabia o que essa palavra queria dizer. Precisas de uma marca, disse-lhe ela. Algo reconhecível. Empurrou-o para o clube de xadrez, o de corta-mato, o de futuros agricultores, até mesmo para o de arte dramática.
Nada resultou até tropeçar no grupo que o admitiria pelo facto de ter passado no simples teste de não conseguir enquadrar-se em mais grupo nenhum - o dos falhados, que o libertou dela.
Depois de ter descoberto a sua tribo, não havia muito mais que ela pudesse fazer por ele. Concentrou-se portanto em salvar-se a si mesma, terminando o seu curso de Sociologia, o primeiro numa família que encarava a faculdade como uma espécie de bruxaria. Pressionou Mark para lhe seguir as pisadas na Universidade do Nebrasca. Ele aguentou um ano, nunca arranjando a coragem suficiente para indispor os seus muitos conselheiros ao escolher uma área curricular. Ela mudou-se para Chicago, atendendo telefones para uma importante firma de contabilidade no octogésimo sexto andar do Standard Oil Building. A mãe costumava telefonar-lhe só para escutar a sua voz de recepcionista. “Como é que aprendeste a falar assim? Isso não está certo! Isso não deve fazer bem nenhum às tuas cordas vocais.” De Chicago mudou-se para Los Angeles, a mais fantástica cidade do mundo. Tentou convencer Mark: Podias ser várias coisas aqui. Conseguirias encontrar emprego em qualquer lado. Não há um único sítio onde não queiram pessoas simples, afáveis. Os teus pais não são culpa tua, disse-lhe. Podias vir para aqui e ninguém nunca teria de saber o que quer que fosse acerca deles. Mesmo quando o seu próprio lançamento começou a retroceder em direcção à terra, ela não abandonou a sua crença: as pessoas gostavam de pessoas que as fizessem sentir-se mais seguras.
Quando Mark se recompusesse, trataria de os colocar a ambos de volta no bom caminho. Iria pô-lo de novo de pé, escutá-lo, ajudá-lo a descobrir o que ele precisava de ser. E, desta vez, levá-lo-ia dali com ela para um lugar aceitável.
Guardara o bilhete e lia-o todos os dias. Uma espécie de encantamento mágico:
Esta noite em North Line Road DEUS conduziu-me até si. Seguramente que o autor do bilhete - o santo que descobrira a carrinha e viera ao hospital na noite do acidente - regressaria para um contacto mais próximo, agora que Mark recuperara a consciência. Karin esperou pacientemente por uma explicação há muito retardada. Porém, ninguém apareceu para se identificar como autor do bilhete ou explicar o que quer que fosse.
Um ramo de flores primaveris chegou da fábrica da IBP. Duas dúzias dos colegas de Mark assinaram o cartão que lhe desejava Rápidas Melhoras, alguns acrescentando encorajamentos galhofeiros e de mau gosto que Karin não foi capaz de decifrar. O condado inteiro sabia do sucedido a Mark: a sirene da polícia não podia ser accionada na região de Big Bend sem que toda a gente entre Grand Island e North Platte soubesse dizer precisamente quem metera o pé na poça, e de que forma.
Alguns dias depois de o tubo da traqueia ter sido mudado, os melhores amigos de Mark vieram por fim visitá-lo. Karin escutou-os quando começaram a avançar pelo corredor.
- Bolas, isto aqui é um universo gelado.
- Nem me digas. Os meus tomates até já migraram para as órbitas.
Entraram no quarto, Tommy Rupp de colete à prova de bala preto e Duane Cain de camuflado forrado a Thinsulate. Os Três Mosqueteiros, reunidos pela primeira vez desde o acidente. Inundaram Karin de saudações e cumprimentos animados. Ela resistiu ao impulso de lhes perguntar onde tinham estado até agora. Rupp avançou até à cabeceira da cama onde Mark grunhia e estendeu-lhe a palma da mão. Mark, fruto de um qualquer reflexo enraizado, estendeu a sua de volta.
- Meu Deus, Gus. Isto é que foi tratarem-te mal. - Rupp apontou para os monitores. - Acreditas nisto? Todo este equipamento só para ti.
Duane ficou para trás, apertando o pescoço.
- Ele está a fazer progressos, não achas? - Virou-se para Karin, atrás de si aos pés da cama. Tatuagens emergiram debaixo do colarinho da roupa interior, um desenho de músculos encarnados gravado no seu peito sem pêlos, tão detalhado e realista quanto um texto anatómico. Parecia esfolado vivo. Sussurrou para Karin, devagar e de forma ressonante, para todos aqueles que tinham acabado de emergir de um coma. - Isto é inconcebível como o caraças. Aconteceu exactamente à pessoa que não o merecia.
Rupp pegou-lhe pelo ombro.
- O nosso rapaz está mesmo em mau estado.
O braço dela ficou a escaldar do pulso para cima. A maldição dos ruivos: corava mais depressa do que um faisão no forno. Afastou o braço e relaxou as maçãs do rosto.
- Deviam tê-lo visto a semana passada. - Não conseguia controlar o tom da sua voz.
Cain e Rupp trocaram um olhar: A mulher está em sofrimento, meu. Não deixes que o seu tom autoritário te tire do sério. O ar de Cain era sereno, sincero, colaborante com o dela.
- Temos telefonado aqui para o hospital. Sabemos que só recentemente é que acordou do coma.
Rupp tinha a ficha de Mark na mão e estava a abanar a cabeça.
- Estão pelo menos a fazer alguma coisa de útil por ele? - O mundo precisava de uma nova gerência, um facto tão óbvio que apenas uns poucos eleitos o sabiam.
- Tiveram de reduzir a pressão no cérebro dele. Não estava a responder a nada.
- Mas agora está a recuperar - declarou Rupp. Voltou-se de novo para Mark e deu-lhe um pequeno murro no ombro. - Não é verdade, Gus? Regresso em força. Os bons velhos tempos outra vez.
Mark jazia imóvel, olhando fixamente. Karin disse abruptamente:
- Estão a vê-lo no seu melhor desde...
- Temo-nos mantido informados - insistiu Duane. Coçou os músculos tatuados. - Temos seguido os progressos dele.
Uma corrente de fonemas fluiu da cama. Os braços de Mark emergiram dos lençóis. Da sua boca saiu Ah... ah, qui-qui-qui.
- Estão a perturbá-lo - declarou Karin. - Ele não devia excitar-se. - Queria correr com eles a pontapé, mas a actividade de Mark entusiasmou-a.
- Estás a brincar? - Rupp arrastou uma cadeira para a cabeceira da cama. - Uma visita é a melhor coisa para ele. Qualquer médico bom da cabeça te dirá isso mesmo.
- O meu amigo precisa dos amigos - apoiou Duane. - Fará subir os seus níveis de serotonina. Sabes o que é a serotonina?
Karin impediu que as suas mãos voassem para cima. Acenou que sim com a cabeça, contrariada. Agarrou os cotovelos para se equilibrar e abandonou o quarto. A saída, ouviu as cadeiras arrastar e Tommy Rupp dizer:
- Acalma-te, amigo. Relaxa. Que queres dizer? Uma pancada para sim, duas para não...
Se alguém sabia o que acontecera naquela noite, aqueles dois sabiam. Porém, recusou-se a perguntar-lhes em frente a Mark. Deixou o hospital, vagueando em direcção a Woodland Park. Final da tarde, sob um céu castanho purpúreo. Março trouxera uma das sua falsas primaveras, daquele género que fazia toda a cidade baixar a guarda antes de a atingir com outra rajada árctica. Plumas de vapor erguiam-se dos montes de neve suja. Atravessou a baixa de Kearney, uma área de negócios preparada para chegar tão longe no futuro quanto qualquer pessoa conseguia vislumbrar. Preços dos bens essenciais em queda, desemprego crescente, população a envelhecer, sangria de jovens, quintas familiares vendidas a empresas agrícolas por uma miséria: a geografia decidira o destino de Mark muito antes do seu nascimento. Apenas os condenados ficavam para o cobrar.
Passou por casas de telhados íngremes de duas águas convertendo-se em barracas de papel alcatroado. Serpenteou da Avenue E para a Avenue I, da rua Thirty-first para a Twenty-fifth, no interior de um álbum fotográfico em tamanho natural do seu passado. A casa do primeiro rapaz por quem se apaixonara; a casa do primeiro rapaz com o qual não conseguira fazer amor. A casa da rapariga que fora sua amiga durante vinte anos e que a renegara um dia, seis semanas depois de se ter casado: aparentemente por qualquer coisa que o novo marido dissera. Esta era a cidade à qual ela tentara escapar por três vezes, cada uma das quais reclamada por perversos desastres familiares. Kearney tinha uma lápide escolhida para si e a sua função era apenas caminhar ao acaso em torno destas ruas de cemitério até tropeçar nela.
Antes de morrer, Joan Schluter dera à filha uma fotografia colada num cartão do bisavô Swanson frente à sua casa em ruínas, aquela capela à desolação, quarenta quilómetros a noroeste do que se tornaria Kearney. O homem da fotografia segurava metade da sua biblioteca - ou Pilgrim's Progress ou a Bíblia: a foto estava demasiado manchada para se perceber. Na parede de lama da cabana por trás de si, suspensa dos chifres de um veado, via-se uma gaiola dourada, adquirida no Leste com grande sacrifício e transportada ao longo de 1600 quilómetros num carro de bois, ocupando precioso espaço de carga que poderia ter albergado ferramentas ou medicamentos. A gaiola era mais importante. O corpo podia sobreviver a qualquer isolamento. Mas havia a mente.
Hoje em dia, os residentes tinham uma gaiola ainda mais dourada: banda larga económica. A Internet atingira o Nebrasca como uma bebida alcoólica a atingir uma tribo da Idade da Pedra - a dádiva divina que todo o descendente de agricultor esperara, a única forma de sobreviver a um tal vazio. A própria Karin abusava diariamente da Web, a norte, na metrópole de Sioux: sítios de viagens, sítios de leilões que vendiam roupa mais barata, mas ainda em bom estado, artigos comestíveis extravagantes para conquistar os colegas de trabalho, e, uma ou duas vezes, o ocasional serviço de encontros. A Net: uma cura de último recurso para a cegueira da pradaria. Porém, utilização em nada se comparava com o vício de Mark. Ele e os amigos comandavam duas dezenas de avatares on-line entre eles, conversando com donas-de-casa em chatrooms, editando longos comentários em blogues sobre teorias da conspiração, enviando imagens questionáveis para a crazedpics.com. Metade das suas horas eram passadas a acumular pontos para personagens fantasiosas em vários mundos alternativos. Assustava-a o número de horas que ele estava disposto a despender num mundo puramente imaginário. Agora estava preso algures num mundo mais profundo, um local onde as mensagens instantâneas não lhe podiam chegar às mãos. E tudo o que ela temia que a Web lhe pudesse fazer parecia agora o céu. Vagueou pela cidade o tempo suficiente para que, quando chegasse ao hospital, a curta capacidade de concentração dos amigos dele já se tivesse esgotado e já lá não estivessem. Os candeeiros públicos acenderam-se, nas ruas onde havia luz. Agora, os edifícios sucediam-se e repetiam-se, as ruas uma simulação mais predizível do que um dos jogos on-line de Mark. Voltou para trás em Central Avenue, rumando de volta ao hospital, desejosa de ter o irmão só para si outra vez.
No entanto, Rupp e Cain ainda lá continuavam, recostados nas cadeiras do hospital. Mark estava sentado na cama. Estavam entretidos a brincar com uma bola de papel amachucado, arremessando-a entre os três. Os lançamentos de Mark eram erráticos. Alguns iam para trás, batendo na parede à qual a cama estava encostada.
Arremessava a bola de papel da mesma forma que um chimpanzé com um fato de marinheiro andaria num triciclo. Porém, estava a arremessar a bola. A ressurreição fê-la estacar, o maior progresso de Mark desde que a sua carrinha saíra da estrada. Cain e Rupp faziam lançamentos em arco e lentos, que ele tentava agarrar meio segundo atrasado. A bola improvisada ressaltava no peito dele, na cara, nas mãos. Um arremesso assaz humilhante produziu um som que apenas podia ser interpretado como uma gargalhada rouca. Karin queria gritar, queria bater palmas de alegria.
No corredor, quando Rupp e Cain terminaram a visita, Karin agradeceu-lhes. Que importava? A parte dela que sobrevivera já não se preocupava com o orgulho. Rupp dispensou os agradecimentos.
- Ele ainda ali está, algures. Não te preocupes. Havemos de o arrancar de lá.
Ela começar a perguntar se tinham estado juntos na noite do acidente. Contudo, não queria colocar em risco esta fugaz aliança. Mostrou-lhes o bilhete.
- Sabem de alguma coisa em relação a isto?
Encolheram ambos os ombros.
- Não fazemos ideia.
- É importante - argumentou ela. Mas eles negaram qualquer conhecimento.
Duane Cain, batendo em retirada como um caranguejo pelo corredor abaixo, gritou para ela:
- Não saberás por acaso o que aconteceu à Ram? - Ela ficou a olhar para ele fixamente, desconcertada. Sacrifícios do Antigo Testamento. Rituais de quinta. - Quero dizer, a carrinha dele ficou totalmente inutilizada? Podíamos, não sei... Podíamos dar uma vista de olhos, se quiseres.
A Polícia voltou a interrogá-la. Falara com os agentes no dia a seguir ao acidente, mas não se recordava da conversa. Agora que ela se encontrava em melhores condições, tinham regressado para tentar saber mais pormenores. Dois agentes retiveram-na numa sala de conferências do hospital durante quarenta minutos.
Perguntaram-lhe se sabia alguma coisa sobre as actividades do irmão na noite do acidente. Estivera ele com alguém? Não teria ele mencionado quaisquer problemas pessoais recentes, quaisquer mudanças no trabalho, qualquer coisa com a qual estivesse preocupado ou se debatesse? Estaria deprimido ou perturbado?
As perguntas derrapavam dentro dela. O seu irmão a tentar matar-se - a ideia parecia-lhe tão estapafúrdia que nem sabia o que responder. Vivera a quatro metros de distância de Mark durante mais de metade da sua vida. Sabia as notas de liceu dele, a marca da roupa interior que ele usava, o sabor das suas pastilhas elásticas preferidas, o nome do meio e o perfume de cada rapariga pela qual ele alguma vez suspirara. Era capaz de completar qualquer frase que ele dissesse antes mesmo que esta saísse da boca dele. Mesmo a brincar, nunca ele mencionara qualquer desejo de morrer. Perguntaram-lhe se ele andara revoltado ou agressivo nas últimas semanas. Não excepcionalmente, respondeu ela.
Disseram-lhe que ele estivera no Silver Bullet, um bar seboso na berma da Route 183. Ela disse-lhes que ele ia lá muitas vezes, depois do trabalho. Era um condutor controlado. Nunca conduzia a não ser que se sentisse sóbrio. A carrinha era a menina dos seus olhos.
Quiseram ainda saber se ele alguma vez fizera mais alguma coisa do que apenas beber. Ela respondeu que não, e soou-lhe como se fosse mesmo verdade. E seria capaz de jurar que assim era num tribunal.
O irmão teria recentemente feito ou recebido ameaças de morte? Em alguma ocasião mencionara estar envolvido em actividade violentas ou perigosas?
Era Inverno. As estradas estavam escorregadias. Uma coisa como esta seguramente que acontecia quase semana sim semana não. Estavam eles a insinuar que não se tratara de um simples acidente? Tinham calculado a velocidade de Mark a partir das marcas da derrapagem. Ao sair da estrada, a carrinha ia a travar a uma velocidade máxima de 120 quilómetros por hora.
O número sobressaltou-a. Porém, nada avançou em jeito de explicação. Tentou mais uma vez: era de noite e ele ia a conduzir demasiado depressa para as condições da via, aproximando-se demasiado da berma da estrada e despistando-se.
Não estava sozinho, revelou a Polícia. Havia três conjuntos de marcas de pneus no troço de North Line Road onde ele perdera o controlo da viatura.
Depois de examinadas, concluíram que uma furgoneta em direcção a Leste derrapara para a faixa de Mark, impedindo-lhe a passagem antes de voltar à faixa correcta e abandonar o local do acidente. Mark, que se dirigia para Oeste, guinara para evitar esta derrapagem, primeiro para a direita, depois atravessando por completo a estrada e terminando capotado na berma do lado esquerdo. Um terceiro veículo, um automóvel médio também em direcção a Oeste, saiu da berma do lado direito da estrada, sendo que a distância a que seguia de Mark lhe dera aparentemente apenas o tempo necessário para evitar a carrinha com segurança.
A descrição desenrolou-se à sua frente como um programa sobre a vida real realizado com uma câmara de vídeo doméstica e editado de forma estranha. Alguém perdera o controlo mesmo em frente a Mark. E ele não pudera travar a fundo por causa da pessoa que seguia atrás de si.
Os agentes encarregados da investigação realçaram as fracas possibilidades de três carros convergirem por mero acaso num troço de estrada rural deserto, depois da meia-noite num dia de semana, seguindo pelo menos um deles a 120 quilómetros por hora. Explicaram também que Mark se encaixava num grupo de alto risco: o dos homens das cidades pequenas do Nebrasca com menos de trinta anos. Perguntaram se o irmão alguma vez se envolvera em corridas. Correr em estradas desertas à noite era um dos passatempos ocasionais da zona.
Mas se estivessem a fazer uma corrida, inquiriu ela, não faria mais sentido que fossem todos na mesma direcção?
Havia jogos mais perigosos, insinuou a polícia. Poderia ela dizer-lhes alguma coisa sobre os amigos do irmão?
Contou-lhes qualquer coisa vaga sobre os colegas de trabalho da IBP. Um grupo deles, afirmava; um círculo. Fez Mark parecer quase popular. Bizarro: desejava que até a Polícia pensasse bem dele. Até mesmo estes homens que queriam que ela acreditasse que alguém fizera o seu irmão sair da estrada. Não se importavam com o que acontecera a Mark. Para eles, Mark era apenas um conjunto de marcas de derrapagem. Ao longo de toda a entrevista, não largou o bilhete, escondido no interior da sua mala de pano. O bilhete de quem quer que encontrara Mark, a pessoa que o trouxera de volta. Não sou Ninguém... Poderiam eles acusá-la de supressão de provas? Porém, se lhes mostrasse o bilhete, eles confiscá-lo-iam, e ela perderia o seu único talismã.
Perguntou quem é que comunicara o acidente. Responderam-lhe que o acidente fora participado de um telefone público da estação de serviço da Mobil na saída de Keamey para a estrada interestadual, por um homem de idade indeterminada que se recusara a dar o nome.
O condutor de um dos outros dois veículos?
Os agentes não sabiam dizer, ou não queriam. Agradeceram a colaboração dela e deixaram-na sair. Disseram que fora de uma grande ajuda, que lamentavam o que acontecera ao seu irmão e que lhe desejavam rápidas melhoras.
“Ah, então, podem prendê-lo”, pensou ela, sorrindo animadamente e acenando-lhes adeus.
Surge uma elevação que nem sempre é morte. Um voo que nem sempre termina em fractura. Ele permanece imóvel ao longo de todas as luzes imagináveis, os feixes atravessando-o como se ele fosse água. Solidifica, mas não todo de uma só vez. Concentra-se como sal quando o mar evapora. Desfazendo-se em lascas ao mesmo tempo que endurece.
De quando em vez, uma corrente fá-lo flutuar. Precipita-se contra o seu corpo partido. Sobretudo, regressa ao acidente. Mas por vezes é erguido por um rio, sobre os longos montes cinzentos, noutro local.
Os seus pedaços continuam a enviar e a receber, mas já não de uns para os outros. As palavras gotejam pela sua cabeça. Menos palavras do que sons. Cabeça de cabra. Cabeça de cabra. Apenas um relógio a fazer tiquetaque, nada menos do que o seu coração. Salpicos de som, como óleo derramado. Cabeça de cabra. Carrinha carneiro. Carneiro firme. Buzina carneiro. Fantasma à frente. Atropelar um fantasma. Cabra morta. Bater na buzina. Feito. Partindo. Caindo. Mergulhando outra vez, sem fundo. As palavras produzem estalidos na sua cabeça, um carregamento interminável. Por vezes ele corre ao lado delas, espreitando para dentro. Por vezes estas palavras espreitam para fora, encontrando-o.
Está acordado, ou algures perto disso. O seu corpo desperta e adormece. É possível que ele mesmo esteja aqui por completo. Só que não o sabe, uma vez que aquilo a que a sua mente se liga vem e vai.
É atingido por ideias, ou ele é que as atinge. Um jogo sempre, pontuações a acumularem-se, à medida que as posições mudam. Rodeado de pessoas - mares delas - a multidão um pensamento enorme, cambiante. Nunca se conheceu a si mesmo. Cada ser humano individual como uma linha separada numa jogada tão grande e lenta que ninguém consegue escutá-la.
O tempo é apenas uma medida para a dor. E ele tem todo o tempo do mundo. Por vezes ergue a cabeça, recordando-se, desesperado por partir, consertar, desfazer. Mas principalmente, permanece deitado quieto, sinais do mundo desconexo zumbindo através dele, um enxame de mosquitos que ele poderia apanhar e matar. Dispersam-se quando estica o braço para eles.
Algo maravilhoso: ele podia contar para qualquer coisa, até mesmo todos estes enxames, adicionando apenas um. Cobrindo dívidas, apostas. Pairando bem no cimo pelo número mais elevado. Numa torre de vigia num monte. As pessoas podiam fazer qualquer coisa. Não sabem que são deuses, que sobrevivem mesmo à morte. As pessoas poderiam fazer um hospital onde seria possível manter cada vida possível viva. E então, um dia, a vida poderia retribuir o favor.
Um bom rapaz outrora, aquele em que ele se encontrava.
Pouco a pouco, não há necessidade. Não existe queda, não existe elevação. Apenas existe.
As pessoas não têm ideias. As ideias têm tudo.
Uma vez, olha para baixo e vê-se a si mesmo, a sua mão a arremessar. Então, tem uma mão, e a mão consegue apanhar. O corpo dele, formado pela bola lançada. Sabe repetir. Mesmo sem que ele, ou qualquer outra pessoa, pense nisso.
Mais qualquer coisa que supostamente deveria recordar. Outra coisa para salvar alguém. Mensagem desesperada. Mas talvez nada mais do que isto.
Os profissionais de saúde caem sobre ele. Cada vez mais, Karin tornava-se um estorvo, inútil, uma vez que os terapeutas tomam o controlo da situação. Porém, manteve-se por perto para ajudar, sempre que possível, a trazer o irmão de 27 anos de volta. Abriu uma fenda na possibilidade, permitindo a si mesma sentir uma insinuação de qualquer coisa que poderia, com o tempo, vir a ser um alívio.
Apontou as rotinas dos terapeutas, os inexoráveis exercícios. Em página a seguir a página, perfeita e vazia, ordenou os dias de Mark.
Anotou a hora em que se levantou e colocou os pés no chão. Descreveu os primeiros esforços falhados para se pôr de pé, agarrado à estrutura da cama. Observado de perto, o mais pequeno espasmo das sobrancelhas dele era um milagre. O bloco de apontamentos era o seu castigo e a sua recompensa. Cada palavra era como renascer. Apenas a vulnerável luta de Mark a fazia continuar. Ele iria precisar que estes dias lhe fossem mostrados, daqui a vários meses. E ela estaria preparada.
Os dias dos exercícios de reabilitação entorpeciam devido à sua esmagadora repetitividade. Um orangotango teria começado a andar e a falar só para escapar a esta tortura. Quando por fim Mark se pós de pé, Karin pô-lo a caminhar em círculos, primeiro em redor do quarto, depois em redor da zona central das enfermeiras, depois em redor do piso. Os tubos foram extraídos, libertando-o. Juntos, em passos curtos e arrastados, fizeram um pequeno sistema solar, órbitas dentro de órbitas. Alívio sacrílego, um sentimento que ela achava que nunca mais voltaria a sentir: apenas por caminhar ao lado dele.
O tubo estriado foi-lhe removido da garganta, deixando a passagem aberta para palavras. Ainda assim, Mark não falou. Karin copiava o seu terapeuta da fala, repetindo continuamente: Aaaa. Óooo. Ummm. Ma ma ma. Ta ta ta. Mark olhava fixamente para a boca dela em movimento, mas não a imitava. Ficava apenas deitado na cama a murmurar, um animal preso debaixo de um contentor, temendo que as criaturas falantes o pudessem silenciar para sempre.
Alternava entre a docilidade e a raiva. Observando os terapeutas, Karin aprendeu a tirar vantagem de cada estado de espírito. Tentou pô-lo a ver televisão. Semanas antes, ele teria adorado. Mas houve qualquer coisa nos cortes súbitos, nas luzes cintilantes e nos sons tumultuosos que o fez choramingar até ela desligar o aparelho.
Uma noite, ela perguntou-lhe se ele gostaria que ela lesse para ele. Ele grunhiu um som que não era não. Começou por ler um número antigo da revista People; ele pareceu não se importar. Na manhã seguinte, vasculhou a The Second Story, a livraria de livros usados na rua Twenty-fifth, até encontrar o que procurava. The Boxcar Children. Surprise Island, Mystery Ranch e Caboose Mystery: três dos originais 19 volumes que flutuavam pelo mundo da revenda da mesma forma que as crianças órfãs que a série retratava flutuavam pelo seu mundo danificado pelos adultos.
Sentou-se numa pilha de livros bolorentos, folheando as primeiras páginas até encontrar uma com um trémulo e imperioso “M.S”. A praga da vida numa pequena cidade na margem de um rio pouco profundo: os teus bens mais queridos aparecem sempre de novo, eternamente revendidos.
Lia para ele durante horas. Lia em voz alta até as visitas do outro lado da cortina terem começado a amaldiçoá-la entredentes. A leitura acalmava-o, em especial à noite, quando ele resvalava de volta para o acidente. Enquanto ela lia, o rosto dele lutava com o mistério de locais esquecidos. Por vezes, a meio de uma frase, ela lia uma palavra - botão, almofada, Violeta - que fazia Mark esforçar-se por se sentar, tentando falar. Karin deixou de chamar as enfermeiras. Elas limitavam-se a sedá-lo.
Tinham-se passado anos desde que ela lera em voz alta. Misturava frases e pronunciava mal as palavras. Mark escutava, os olhos esbugalhados, como se as palavras fossem uma nova forma de vida. Seguramente que a mãe teria lido para eles quando eram crianças. Porém, Karin não conseguia invocar qualquer imagem de Joan Schluter a ler o que quer que fosse a não ser relatos avançados do Final dos Tempos, já naquela altura a irromper por todo o lado.
Joan tivera por fim o seu primeiro vislumbre do verdadeiro Final dos Tempos 18 meses antes. Karin estivera também de vigília à sua cabeceira, embora por motivos diferentes deste. A mãe foi acometida por uma explosão de palavras de última hora, todas as palavras evitadas em vários anos de educação infantil. Querida? Promete-me que se eu me começar a repetir, pões um fim ao meu sofrimento. Cicuta no meu sumo de ameixa.
Estas palavras pronunciadas enquanto agarrava o pulso de Karin, forçando-a a não desviar o olhar.
Se vires os sinais. Uma e outra vez? Sem motivo? Mesmo que te pareça que não é muito relevante. Promete-me, Kar. Um saco na cabeça. Não me apetece ficar por cá para testemunhar esse último acto em particular.
Mas, mãe, isso vai contra a Palavra de Deus.
Não na minha Bíblia. Mostra-me onde isso está.
Pôr fim à própria vida?
É isso precisamente, Kar. Não estaria a fazê-lo!
Ah, já estou a ver. Prefere que eu vá para o Inferno por si. Não matarás.
Isto não é matar. É caridade cristã. Sempre o fizemos pelos animais na quinta. Promete-me, Kar. Promete-me.
Tenha cuidado, mãe. Já se está a repetir. Não me coloque numa situação difícil.
Tu percebes o que eu quero dizer. Não tem piada.
Diversão era um conceito que Joan Schluter desconhecia por completo. Todavia, era capaz de dizer as coisas mais gentis: desculpas terrívelmente afectuosas pelas suas falhas enquanto progenitora. Perto do fim, perguntou: Karin, podias rezar comigo?
E Karin, que jurara nunca mais voltar a falar com Deus, mesmo que fosse Ele a encetar a conversa, baixou a cabeça e murmurou em coro.
Vai ficar algum dinheiro do seguro, informou Joan. Não é muito, mas ainda é algum. É para vocês os dois. Achas que és capaz de fazer uma coisa boa com ele?
O que quer dizer com isso, mãe? Que tipo de coisa boa gostaria que fizesse?
Contudo, a sua mãe já não sabia o que era o bem. Apenas que era preciso praticá-lo.
Por entre as memórias do passado, Karin disse:
- Sabes, Mark? Se pensarmos bem na maneira como fomos educados, é uma sorte termos chegado onde chegámos.
- Uma sorte - concordou o irmão.
Ela levantou-se de um pulo, tapando a boca para conter um grito, e fitou-o. Mark limitou-se a afundar-se nos lençóis, procurando refúgio até o perigo passar.
- Meu Deus, Mark! Falaste. Consegues falar.
- Meu Deus, Mark. Meu Deus - repetiu ele, e depois remeteu-se ao silêncio.
- Ecolalia - explicou o dr. Hayes - Persistência. Ele imita o que ouve.
Contudo, Karin recusava-se a aceitar aquelas explicações.
- Mas se ele é capaz de dizer uma palavra, isso deve significar alguma coisa.
- Aí já está a entrar em questões a que a neurologia não sabe ainda responder.
O discurso de Mark seguia o mesmo padrão errático que a sua capacidade de andar. Uma tarde foi “pintainho, pintainho, pintainho, pintainho”, durante mais de uma hora. Para a irmã era uma autêntica sinfonia. Ao ajudá-lo a levantar-se para mais uma caminhada, disse-lhe:
- Vamos lá apertar os sapatos, Mark.
Isso deu origem a uma avalanche de “apertar sapatos, patos, patos”. E não se calou até que ela começou também a sentir-se um pouco mentalmente lesionada, mas animada. Por entre aquela repetição hipnótica pareceu-lhe escutar “dois sapatos apertados”. Um pouco mais tarde, afirmou:
- Polícia, não me atar.
As palavras tinham de possuir algum significado. Ainda que não fossem pensamentos, ele pronunciava-as como se tivessem sentido. Karin acompanhava-o ao longo de um corredor de hospital apinhado de gente quando Mark balbuciou subitamente:
- Temos muito com que nos preocupar agora.
Abraçou-o com força. Ele sabia. Conseguia dizer. Era a maior recompensa que poderia ter recebido.
Mark libertou-se dos braços da irmã e afastou-se.
- Estás a transformar esse pó em argila.
Karin seguiu-lhe o olhar. Ali, no burburinho do corredor, acabou por entender. Com uma precisão inacreditável, os seus ouvidos captavam pedaços das conversas circundantes e depois alinhava-os uns aos outros. Os papagaios exibiam maior inteligência. Encostou a cara ao peito do irmão e começou a chorar.
- Vamos ultrapassar isto - disse ele, os braços caídos ao longo do corpo.
Ela levantou a cabeça e observou-o. Os seus olhos pareciam desprovidos de emoção.
Ainda assim, continuava incansavelmente a alimentá-lo, a passeá-lo e a ler para ele em voz alta, nunca pondo em causa a sua capacidade de recuperação. Dedicava mais tempo e energia à reabilitação de Mark do que a qualquer emprego que já tivera.
Estavam ambos sozinhos na manhã seguinte quando uma voz semelhante à de um rato de desenho animado encheu o quarto.
- Olá! E como estão vocês os dois?
Karin soltou um grito e abraçou a intrusa.
- Bonnie Travis. Por onde tens andado que nunca mais aparecias?
- Desculpa! - exclamou a rapariga com voz de rato. - Não sabia se...
Pestanejou, mordeu o lábio inferior e depois apertou os ombros de Karin num acesso de medo. Danos cerebrais. Pior do que uma doença contagiosa. Transformavam o desconfiado mais inocente e desencorajavam o mais convicto dos crentes.
Mark estava sentado aos pés da cama envergando umas calças de ganga e uma camisa verde. Tinha as palmas das mãos sobre os joelhos e a cabeça muito direita. Podia estar a imitar a estátua de Lincoln no Lincoln Memorial. Bonnie Travis abraçou-o, mas ele não pareceu reagir ao cumprimento. Ela desfez o gesto e ergueu-se.
- Oh, Marker! Não sabia como te iria encontrar, mas pareces-me muito bem.
Mark tinha a cabeça rapada e duas enormes cicatrizes no couro cabeludo.
A sua cara, repleta ainda de feridas e crostas, mais parecia um caroço de pêssego.
- Muito bem - disse Mark. - Não sabia, mas bem poderia ser bem.
Bonnie soltou uma gargalhada e a sua face branca enrubesceu.
- Ena! Olhem só para ele! O Duane disse que ele não falava, mas eu estou a escutá-lo muito bem.
- Falaste com eles? - perguntou Karin. - O que andam eles a contar às pessoas?
- Muito bem - repetiu Mark. - Bonita, bonita, bonita. - O cérebro reptiliano parecia querer sair para apanhar um pouco de Sol.
Bonnie Travis soltou umas risadinhas.
- Bem, arranjei-me um pouco antes de vir.
As palavras fluíam da boca da rapariga-rato, palavras sem sentido, superficiais, estúpidas, salvadoras. O seu dilúvio de palavras, que durante anos tanto irritara Karin, parecia agora uma perseverante chuva de Abril que saciava o solo. Tagarelando, Bonnie Travis ia tocando na saia de lã cor de ameixa e na camisola rugosa tricotada a mão, as zonas de fio cor de azeitona convergindo na cor predominante do Platte em Agosto.
Num fio em redor do seu pescoço, um Kokopelli dançava e tocava flauta.
Um ano antes, após o funeral da mãe, Karin perguntara a Mark: “Vocês os dois andam juntos? Ela é a tua nova namorada?”, ansiando por alguma protecção para o irmão, ainda que mínima.
Mark limitara-se a grunhir: “Ainda que fosse, ela não se aperceberia de tal coisa”. Bonnie contou a um Mark imóvel tudo sobre o seu novo emprego, desde que abandonara o trabalho como empregada de mesa.
- Só te digo, encontrei o emprego de sonho de qualquer mulher. Nunca conseguirás adivinhar o que é. Nem sequer fazia ideia de que existia. Guia no novo Great Platte River Road Archway Monument. Sabias que o nosso novo arco é o único monumento em todo o mundo que atravessa uma estrada interestadual? Não entendo porque não está sempre cheio de gente.
Mark escutava, de boca escancarada. Karin fechou os olhos e saboreou a maravilhosa inanidade humana.
- Visto-me como as primeiras pioneiras, com um vestido de algodão até aos pés. E uso uma touca muito gira. O trajo completo. Para além disso, tenho de responder às perguntas dos visitantes como se fosse tudo verdade. Sabes, como se ainda vivêssemos há 150 anos. Ficarias espantado com as perguntas que as pessoas fazem.
Karin já se esquecera de como a existência humana podia ser inebriantemente inútil. Mark continuava imóvel aos pés da cama, qual esfinge de arenito, fitando os intrincados movimentos da boca de Bonnie. Temendo parar de falar, continuou a pairar sobre as tendas dos peles-vermelhas que ladeavam a saída da I-80, sobre a simulação de uma debandada de búfalos, sobre o edifício da estação do Pony Express em tamanho real e sobre a história épica da construção da Lincoln Highway.
- E podes ver tudo isso por apenas oito dólares e vinte e cinco cêntimos. Acreditas que há pessoas que acham o preço caro?
- É um roubo - disse Karin.
- Os visitantes são dos lugares mais variados. Da República Bombaim, Nápoles, Florida. A maioria pára para ver as aves. Estão a ficar cada vez mais famosas. O meu patrão diz que o número de observadores cresceu dez vezes nos últimos seis anos. Aqueles pássaros vão colocar a nossa cidade no mapa.
Mark desatou a rir. Pelo menos soava a gargalhadas, que aos poucos se foram tornando cada vez mais lentas. Bonnie hesitou, depois gaguejou e acabou por rir também. Não se recordava de mais nada para dizer. Apertou os lábios, corou e os seus olhos encheram-se de lágrimas.
Chegou a altura de Karin mudar os sapatos e as meias de Mark, o velho ritual para activar a circulação sanguínea que ela continuava a cumprir por não ter mais nada para fazer. Mark deixou-se ficar quieto enquanto a irmã lhe retirava as sapatilhas Converse All-Stars.
Bonnie recompôs-se e ajudou a descalçá-lo. Enquanto segurava o pé de Mark, perguntou:
- Queres que te arranje as unhas?
Ele pareceu ficar a matutar sobre o assunto.
- Queres pintar-lhe as...? Ele teria um ataque.
- É só para nos divertirmos. Algo a que brincávamos no passado. Ele adora. Chama-lhe as suas garras traseiras. Já sei o que estás a pensar, mas não é nada disso. Marker?
Mark não se mexeu nem tão-pouco pestanejou.
- Ele adora - repetiu, numa voz triste e rouca.
Bonnie bateu palmas de alegria e olhou para Karin, que encolheu os ombros. A rapariga mergulhou a mão na mala, retirando do interior uma provisão de frascos de verniz que ali guardara para aquela ocasião. Bonnie fez Mark deitar-se e esticar os pés.
- Cereja? Azul-marinho? Não. Branco-gelo? Boa escolha!
Karin sentou-se e ficou a observar o ritual. Regressara com atraso para ajudar Mark. Fizesse o que fizesse por ele agora, por muito que ajudasse na sua reabilitação, ele regressaria àquilo mesmo.
- Volto já - prometeu ao sair do quarto.
Sem qualquer agasalho, dirigiu-se à estação de serviço da Shell com a qual andava a sonhar há cerca de uma semana. Colocou uma quantia em dinheiro sobre o balcão e pediu um maço de Marlboro.
O caixa riu-se: faltavam dois dólares. Já há seis anos que não fumava e durante esse tempo o preço havia duplicado.
Deu o dinheiro que faltava e trouxe o seu cobiçado prémio para a rua. Levou um cigarro à boca, os lábios já antecipando o sabor do filtro. Com uma mão trémula, acendeu-o e inspirou. Uma indescritível nuvem de alívio expandiu-se nos seus pulmões e alastrou até aos membros. De olhos fechados, fumou metade do cigarro e apagou-o cuidadosamente, guardando a metade não fumada no maço. Quando regressou ao hospital, sentou-se num banco frio mesmo em frente às portas de correr e fumou a outra metade. Iria travar a sua queda o máximo possível. Seria uma longa e lenta viagem de volta ao ponto onde se encontrava antes dos seis anos que arduamente conquistara. Todavia, estava determinada a saborear cada pequenino passo de regresso à escravidão.
De volta ao quarto de Mark, a pedicura parecia estar a terminar. O irmão encontrava-se sentado na cama a observar os dedos dos pés da mesma forma que uma preguiça observaria um filme sobre o ramo de uma árvore. Bonnie saltitava em redor dele, cantarolando.
- Chegaste na hora certa - disse a Karin. - Podias tirar-nos uma fotografia?
Bonnie vasculhou no interior da sua mala mágica e retirou lá de dentro uma máquina fotográfica descartável. Aproximou-se das garras traseiras de Mark, o verde-lima dos seus olhos contrastando com o verniz que lhe aplicara.
Quando Karin encostou a lente ao olho, o seu irmão sorriu. Quem poderia dizer o que ele sabia? Não era capaz sequer de responder por Bonnie.
Com um sorriso de alegria, Bonnie guardou a máquina fotográfica.
- Eu depois peço cópias para vocês os dois. - Esfregou o ombro de Mark. - Vamos divertir-nos muito quando estiveres cem por cento recuperado.
Ele sorriu e observou-a. De súbito, uma das suas mãos saiu disparada em direcção aos seios de Bonnie enquanto a outra agarrava a braguilha, ao mesmo tempo que dizia:
- Força, foder, fazer, meia, mama...
Ela guinchou, afastou-se e enxotou-lhe a mão. Depois agarrou-se ao peito e recuperou o fôlego a tremer. Os tremores transformaram-se em risadinhas.
- Bem, talvez não tanta diversão. - Mas não deixou de o beijar na cabeça antes de sair. - Amo-te, Marker!
Ele tentou erguer-se e segui-la. Karin segurou-o, fazendo-lhe festas e acalmando-o até ele a empurrar e regressar para a cama com um olhar magoado. Karin seguiu Bonnie até ao corredor. Esta estava encostada à parede a chorar.
- Oh, Karin! Lamento muito. Esforcei-me por parecer alegre. Não fazia ideia. Eles disseram-me para estar preparada para tudo. Mas não esperava isto.
- Não faz mal - mentiu Karin. - Ele por enquanto está assim.
Bonnie insistiu num abraço demorado, que Karin retribuiu por causa do irmão.
Desfazendo o abraço, Karin perguntou:
- Sabes o que aconteceu naquela...? Os amigos dele contaram-te...?
Bonnie ficou à espera, ansiosa por responder a qualquer pergunta. Todavia, Karin limitou-se a virar costas. De volta ao quarto, encontrou Mark na cama, apoiado nos braços, cabeça virada para cima a inspeccionar o tecto, como se tivesse parado para descansar de algum exercício e se tivesse esquecido de regressar à vida.
- Mark? Estou de volta. Somos só nós os dois. Estás bem?
- Cem por cento - respondeu. - Recuperado. - Abanou a cabeça energicamente e voltou-se para a irmã. - Talvez não tanta diversão.
Primeiro não está em lado nenhum, depois não é. A mudança ocorre como que pela calada, uma vida espezinhando a outra. Quando regressa, apercebe-se do nenhures onde esteve. Não é sequer um lugar até ao momento em que as sensações voltam a fluir. E depois perder todo o nada que foi.
Aqui está a cama onde vive. Mas é uma cama maior do que a cidade. Ele está deitado a todo o seu comprimento, uma baleia na rua.
Uma criatura encalhada com quarteirões de extensão. A criatura marinha desorientada regressa ao peso que lhe esmaga a vida, morrendo devido à gravidade.
Não existe nada suficientemente grande para o trazer para aqui ou para o erguer para outro lugar. A barriga achatada ocupa toda a extensão da estrada.
A cauda embate nas vedações, apunhalada por topos de árvores afiados. Deitado ao lado de caixas brancas de madeira com telhados inclinados, fumo serpenteando de chaminés feitas a lápis, casa rabiscada por uma criança.
Esta baleia é dor e frio crestante. Plantada nesta pradaria plana, lançada por uma onda que se afastou demasiado depressa. As enormes mandíbulas, maiores do que a porta de uma garagem, abatem-se no solo com estrondo. Cada lamento oriundo da garganta cavernosa abana as paredes e estilhaça os vidros. Ao longe, a quarteirões de distância, a cauda da criatura aprisionada agita-se. Cercada por casas, presa por esta maré vazia instantânea.
Quilómetros de ar comprimem-na e impedem-na de respirar. Incapaz de mover os pulmões. A morrer num oceano sem água, asfixiada sob o elemento que tem agora de inalar. A maior criatura viva, quase Deus, estendida ao comprido, os músculos cansados. Apenas o seu coração, tão grande quanto o tribunal, continua a bater.
Se alguma coisa deseja, é morrer. Porém, a morte acompanha a onda que se afasta. A sua respiração é um tremor de terra. A baleia arqueja e rebola, esmagando vidas sob o seu peso, à medida que também ela é esmagada pelo ar. Na sua cabeça rebentam tempestades. Lanças e cabos envolvem-lhe os flancos. A sua pele desprende-se em lâminas de gordura de baleia.
Passadas semanas, meses, os gemidos da montanha animal putrefacta acalmam. A cidade assustada regressa ao local. Pequenas vidas terrestres espetam o monstro com agulhas e alfinetes, perfuram-no, reclamando as suas habitações esmagadas. Os pássaros debicam a carne em decomposição. Os esquilos arrancam pedaços e armazenam-nos para o Inverno. Os coiotes rapam os ossos até estes brilharem como marfim. Os automóveis passam sob as suas enormes e abobadadas costelas. Os semáforos pendurados nas vértebras da sua espinha dorsal.
Em breve, dos seus ossos brotarão ramos e folhas. Os habitantes passarão por ele não vendo outra coisa que não rua, pedra, árvores.
Os seus membros regressam, tão lentamente que ele nem se apercebe. Jaz na cama que vai ficando mais pequena, fazendo o inventário. Costelas: sim. Barriga: sim. Braços: dois. Pernas: também. Dedos das mãos: muitos. Dedos dos pés: talvez. Repete esta operação várias vezes, sempre com resultados diferentes. Elabora uma lista de si mesmo, como uma máquina antiga reconstruída. Retirar. Limpar. Substituir. Listar de novo.
O local que o expulsou quere-o agora desesperadamente de volta. As pessoas compelem-lhe sons, trechos infindáveis e gratuitos.
Palavras, na forma como as pessoas as pronunciam. Como como como agora agora agora? Algo que poderia escutar nos campos à noite, se parasse para escutar. Mark mark mark, criam-no. Cacarejos, copiados a cada novo utilizador. Não vale a pena. O silêncio não o pode ocultar. Lêem-no em papéis, falam dele. Fundem-no, transportam-no, inventam-no a partir do zero. Palavras sem língua. Ele, língua sem palavras.
Mark Schluter. Sapatos, camisa, ocupação. Os passos que dá. À volta em redor e de volta ao ponto de partida. Repetir conforme necessário. Algo se instala, um ele suficientemente grande que lhe permite voltar a trepar lá para dentro. Quando há barulho e agitação, mantém-se no fundo. Por vezes um campo de milho, as canas a falar com ele. Nunca soube que todas as coisas falam. Teve de abrandar para escutar. Outras vezes, um charco lamacento, corrente num centímetro de água. O seu corpo é uma pequena embarcação. Os pêlos dos membros são remos a lutar contra a corrente. O seu corpo, inúmeras criaturas microscópicas reunidas numa necessidade.
Por fim, da sua garganta soltam-se conceitos. Palavras vomitadas, palavras de criação. Pequenas tarântulas fugindo de cima do seu som materno. Cada linha curva do mundo está a proferir palavras. Ramos a tocar no vidro. Rastos na neve. Está lá “sortudo”, circulando em conjunto. “Bonito”, ofegante, feliz por vê-lo. “Bom”, uma flor roxa a perfurar o relvado.
Um último momento desfeito e ele poderá ainda sentir: algo na estrada acabou comigo. Mas então o restabelecimento trá-lo de volta, à mancha de pensamentos e palavras.
Havia dias em que a sua cólera era de tal forma violenta que até o simples facto de estar deitado o enfurecia. Depois os terapeutas pediram-lhe que saísse. Talvez a sua ausência ajudasse. Instalou-se em Farview, na casa modular do irmão. Deu comida ao cão, pagou-lhe as contas, comeu nos pratos dele, viu a sua televisão, dormiu na sua cama. Fumava apenas no alpendre, açoitada pelo vento gélido de Março, sentada numa cadeira de realizador húmida e na qual estava escrito SCHLUTER, para que a sala de estar não cheirasse a cigarros quando ele regressasse a casa. Tentava fumar apenas um cigarro por hora. Obrigava-se a desacelerar, a saborear o fumo, a fechar os olhos e a escutar apenas. Ao amanhecer e ao crepúsculo, à medida que os seus ouvidos iam ficando mais sensíveis, conseguia escutar o chamamento dos grous sob os vídeos de exercício físico da vizinha e dos pesados camiões de longa distância que percorriam a estrada interestadual para cima e para baixo. Acendia outro cigarro passados sete minutos e voltava a olhar para o relógio 15 minutos mais tarde.
Podia ter telefonado a meia dúzia de amigos, mas não o fez. Quando ia à cidade fazer compras, fazia o possível para se esconder dos antigos colegas de escola. Todavia, era impossível evitá-los a todos. Os conhecidos pareciam sair de uma versão cinematográfica do seu passado, no papel deles próprios, mas mais simpáticos do que haviam sido na vida real. A simpatia deles ansiava por pormenores. Como estava Mark? Iria voltar ao normal? A todos respondia que ele estava quase recuperado.
Tinha um número de telefone, ainda colado à ponta dos dedos. Nos dias em que Mark conseguia derrotá-la, vinha para casa com dois litros da sua cerveja preferida desde os tempos de liceu, embriagava-se lentamente enquanto assistia ao canal dos filmes clássicos, e depois marcava alguns números, apenas pela atracção pelo proibido. Bastavam quatro números para se recordar de que ainda não estava morta e de que algo podia acontecer a qualquer instante. Deixara-o da mesma forma que havia deixado de fumar, embora retirá-lo do seu sistema tivesse sido mais árduo e demorado. Karsh: elegante, habilidoso, impenitente. Robert Karsh, Kearney HS, Classe de 89, O Rapaz Mais Prometedor, o eterno embusteiro ao qual certa vez ordenara que saísse do carro a 200 quilómetros de lado nenhum, o único para além do irmão capaz de lhe ver a alma. Escutou a sua voz, parte evangelista, parte pornógrafo, trazendo-a já de volta à realidade, a apenas mais três dígitos de distância dos seus dedos curiosos.
Uma década de dependência de químicos - raiva e saudade, culpa e ressentimento, nostalgia e cansaço - invadiram-na enquanto marcava o número, quase como um reflexo.
No entanto, detinha-se sempre antes do último dígito. Na verdade, não o queria a ele, necessitava apenas de uma prova de que o irmão não a havia arrastado para o escuro reino dos danos cerebrais.
O embriagante ritual de auto-humilhação misturado com a cerveja e os cigarros destinava-se a fazê-la brilhar com uma cor apenas sua. Colocaria a tocar um dos CD piratas de Mark, depois voltaria a deitar-se na sua cama e deixar-se-ia lentamente afundar no colchão, mergulhando em queda livre pelo ar puro. Tocar-se-ia, tal como Robert fizera, enquanto o cão de Mark observaria da porta, desconcertado. Os testes simples ao seu corpo transformavam-se gradualmente em prazer, desde que conseguisse impedir as mãos de pensar.
Uma questão de orgulho moral: marcou o número completo apenas uma vez. Em finais de Março, com os dias a começar a aumentar, acompanhou o irmão num dos primeiros passeios fora do hospital. Caminharam pelos terrenos circundantes, Mark profundamente concentrado em algo que ela não conseguia atingir. O ar em seu redor estava repleto dos zumbidos dos primeiros insectos da Primavera. O acónito começava já a desaparecer e os crocos e os narcisos rompiam os últimos pedaços de neve. Um ganso-grande-de-testa-branca passou a voar sobre as suas cabeças. Mark inclinou o pescoço para trás. Não conseguiu ver a ave, mas quando olhou para baixo a sua face parecia iluminada pela memória. Escancarou um sorriso maior do que qualquer outro que ela alguma vez lhe vira desde a morte do pai. Depois abriu a boca, preparando a palavra ganso. Ela incitou-o com as mãos e os olhos.
- G-G-G-gaita. Grande gaita. Grande merda porra. Enfia a gaita por ela acima.
E sorriu orgulhoso. Karin arquejou e afastou-se e o sorriso dele desvaneceu-se. Contrariando a vontade de chorar, voltou a agarrar-lhe no braço com uma calma fingida e conduziu-o de volta ao edifício.
- É um ganso, Mark. Tu lembras-te deles.
- Merda, porcaria, porra - cantarolava ele olhando para os pés.
Aquilo era o acidente, não o seu irmão. Não passavam de sons. Coisas sem importância enterradas no seu cérebro e que o trauma fizera vir à tona. Não era sua intenção ofendê-la. Repetiu isso para si própria todo o caminho de volta até Farview. Todavia, Karin já não acreditava em nada do que dizia a si mesma.
Toda a esperança que a alimentara durante semanas desaparecera com aquele chorrilho de profanidades. Encontrou o caminho para casa completamente às escuras. Lá dentro, foi directa para o telefone e ligou para Robert Karsh. A sua perseverante e longa caminhada em direcção à auto-suficiência estava disposta a retroceder novamente.
A menina atendeu o telefone. Antes ela do que o seu irmão mais velho. O “estou” arrastado com que a rapariguinha a atendeu tinha demasiadas sílabas. Sete anos de idade. Que tipo de pais deixam a filha de sete anos atender o telefone depois de escurecer?
Karin recordou-se naquele instante do nome da miúda.
- Ashley?
A pequena voz, que mais parecia saída de um desenho animado do Cartoon Network, respondeu com um nítido e confiante “Siimm!”. Austin e Ashley. Nomes que poderiam marcar uma criança para o resto da vida. Karin desligou e instintivamente marcou outro número, um que há semanas andava a pensar ligar.
Quando ele atendeu, ela limitou-se a dizer:
- Daniel.
Após uma pausa, Daniel Riegel exclamou:
- És tu!
Sentiu-se de tal forma aliviada que se interrogou por que razão não lhe ligara mais cedo. Ele poderia ter ajudado, logo na noite do acidente. Alguém que conhecia Mark. O verdadeiro Mark, o rapaz gentil e carinhoso. Alguém com quem ela poderia falar sobre o passado e o futuro.
- Estás onde? - perguntou ele.
Ela desatou a dar risadinhas. Envergonhada, tentou controlar-se.
- Aqui. Quero dizer, em Farview.
Na sua voz de naturalista, baixa e calma, a mesma que usava para apontar no terreno coisas que se assustavam com facilidade, Daniel acrescentou:
- Por causa do teu irmão.
Parecia telepatia. Mas depois lembrou-se: cidade pequena. Deixou-se embalar pelas suas perguntas compassivas. A libertação que sentia em cada resposta era indescritível. A cada frase revertia as suas habituais afirmações: Mark estava melhor a cada dia; parecia cada vez pior. Era capaz de pensar e identificar objectos e conseguia falar; parecia perdido num labirinto mental, caminhava como um urso domesticado e falava como um papagaio mal-educado.
Daniel perguntou como estava ela a lidar com tudo aquilo. Karin respondeu que bem, tendo em conta a situação. Os dias pareciam mais longos, mas conseguia sobreviver-lhes. Com ajuda, a sua voz implorou, mesmo sem querer.
Pensou pedir a Daniel que se encontrassem algures, mas não podia correr o risco de o assustar. Assim, limitou-se a falar, a voz a enrolar-se como uma onda. Esforçou-se por soar à mulher competente na qual quase se transformara. Não tinha o direito de o contactar, mas o seu irmão não morrera por pouco. O revés levara a melhor sobre o passado e concedia-lhe asilo temporário.
Até aos 13 anos de idade, o seu irmão e Daniel haviam sido irmãos gémeos siameses. Dois amantes da natureza unidos pela anca a virar tartarugas-de-caixa de pernas para o ar, tropeçando em ninhos de codornizes, a acampar junto a luras que sonhavam um dia habitar. Depois, no liceu, algo se passou. Algures durante o segundo ano, de uma aula para outra, zangaram-se. Uma guerra prolongada com uma frente estática. Danny ficou com os animais e Mark trocou-os por pessoas. “Cresci”, explicou Mark, como se o amor pela natuze fosse apenas uma paixão de adolescência. Nunca mais voltou a relacionar-se com Daniel. Anos mais tarde, quando Karin começou a interessar-se por ele, nunca nenhum dos rapazes mencionou sequer o nome do outro.
Ela e Daniel separaram-se quase tão depressa quanto se juntaram. Karin fugiu para Chicago, depois para Los Angeles, antes de voltar para casa a rastejar, humilhada. Daniel, o idealista incansável, recebia-a de volta sem fazer perguntas. Só quando a escutou a imitá-lo em sussurros ao telefone com Karsh é que Daniel correu com ela. Karin refugiou-se junto do irmão em busca de apoio. Todavia, quando por lealdade, começou a dizer mal de Daniel, aludindo veladamente a segredos do passado, Karin ficou tão ofendida que não se falaram durante semanas.
Agora a voz de Daniel tranquilizava-a: era melhor do que o seu passado.
Ele sempre o dissera e a vida lançara-lhe um desafio que iria mostrar o quanto ele estava certo. O tom de voz de Daniel ameaçava convencê-la. A estupidez humana não significava nada, muito menos aquilo que os humanos pensavam que significava. Podia ser sacudida como uma mancheia de insectos a voar em redor da face. As ofensas não intencionais não tinham qualquer importância. Tudo o que importava era o seu irmão. Daniel questionou-a sobre de que cuidados Mark necessitaria, perguntas úteis que ela própria já deveria ter colocado aos terapeutas. Escutou-o como quem ouve uma canção preferida já quase esquecida, daquelas que relembram um capítulo inteiro da vida em três minutos.
- Não me importo de o ir visitar - disse ele.
- Ele ainda não reconhece ninguém.
Algo nela preferia que Daniel não visse Mark naquele estado. O que pretendia dele eram histórias. Histórias de Mark antes do acidente. Pormenores que ela já não tinha a certeza de estar a recordar correctamente, depois de tantos dias à sua cabeceira.
Não se esqueceu de perguntar a Daniel sobre a sua própria vida. A distracção ajudava, ainda que não fosse capaz de se concentrar nos detalhes.
- Como vão as coisas no Santuário?
Ele havia deixado o Santuário, em desacordo com os seus acordos e compromissos. Trabalhava agora para o Refúgio de Grous de Buffalo County, um grupo mais pequeno, mais dinâmico e confrontador. O trabalho no Santuário era estável e bem-intencionado, mas demasiado obsequioso. O Refúgio era mais contestatário.
- Se pretendemos salvar algo que existe há milhões de anos, não podemos ser comedidos.
Como fora desprezível e vil ao subestimar aquele homem. A sua firmeza branda valia dez dela e de Karsh todos juntos. Mal podia acreditar que ele aceitasse falar com ela. Até isso o acidente havia permitido. Por instantes, toda a gente ficara mais gentil do que era e o presente tornara-se mais importante do que o passado. Depois de ter sido apanhada por uma tempestade de gelo, tropeçara num abrigo com lareira. O seu desejo era que aquela conversa continuasse lentamente em direcção a lado nenhum. Pela primeira vez desde o telefonema do hospital, sentia que era capaz de fazer tudo aquilo que o acidente exigisse. Se ao menos pudesse telefonar a este homem de vez em quando.
Num à parte meigo, como se estivesse deitado num campo a espreitar por um par de binóculos, Daniel inquiriu-a sobre a sua vida antes do acidente.
- Não tem sido má - disse. - Aprendi muito sobre mim mesma. Parece que tenho alguma habilidade para lidar com pessoas transtornadas. - E descreveu todas as responsabilidades a seu cargo no emprego que perdera. - Dizem que talvez possam voltar a contratar-me, assim que isto tudo estiver terminado.
- E tens saído com alguém?
Karin desatou novamente a dar risadinhas. Havia algo de muito errado com ela. Algo que começava a fugir do seu controlo.
- Só com o meu irmão. Nove ou dez horas por dia. - Até dizer-lhe aquilo a aterrorizava. Mas era bem melhor ter medo do que estar morta. - Daniel? Seria fantástico se nos pudéssemos sentar uns minutos a conversar. Se tiveres tempo para mim, claro. Não quero sobrecarregar-te. Isto é... muito para mim. Eu sei que sou a última pessoa a quem gostarias de ajudar... mas não sei muito bem como lidar com isto sozinha.
Muito depois de terem desligado, escutou-o dizer:
- Claro. Também gostaria muito.
Era capaz de aprender, disse a si mesma ao adormecer, aprender a não ser a Karin previsível e auto-protectora. A altura de estar constantemente a repelir ofensas imaginárias tinha chegado ao fim. O acidente mudara tudo, dando-lhe a oportunidade de reverter os antigos erros. As últimas semanas haviam-na esvaziado e para tal bastara observar Mark, ali deitado e desprotegido. Como era fácil agora planar sobre si mesma, olhar para as necessidades que a controlavam e vê-las por aquilo que eram: meros fantasmas. Nada tinha o poder de a magoar a menos que ela lhe conferisse esse poder. Cada obstáculo que tentara ultrapassar mais não era do que algemas chinesas que abriam instantaneamente assim que se parava de puxar. Podia apenas observar, aprender sobre o novo Mark, escutar Daniel sem ter de o entender. As outras pessoas preocupavam-se consigo mesmas, não com ela. Toda a gente neste mundo tinha tanto medo quanto ela. Não esquecendo isso, uma pessoa podia vir a amar outra.
Eco caca. Coqui loqui. Coca Lola. Coisas vivas, sempre a falar. Como sabemos que estão vivas? Sempre com o olhar, com o escutar, com o percebes o que quero dizer. O que podem as coisas significar que não o sejam já? As coisas vivas emitem tais sons apenas para dizerem aquilo que o silêncio diz melhor.
As coisas mortas são o que já são e podem calar-se em paz.
Os humanos são os piores. Sempre em cima dele com as suas palavras. Piores do que as cigarras numa noite morna de Verão. Ou do que todos os sapos. Escutem. Escutem os pássaros. Mas os pássaros podem ser bem mais barulhentos. A sua mãe disse-lhe. Quanto mais pequenas as coisas, mais barulho fazem. O vento, por exemplo: todo aquele ruído a deslocar-se para lado nenhum, vindo do nada e por nenhuma razão e não existe nada na Terra mais pequeno do que o vento.
Alguém diz que ele está a perder os pássaros. Como pode isso ser? Os pássaros estão sempre a vir. Como pode ele perdê-los se eles nunca estão perdidos? Os animais deviam ser mais como as rochas. Dizendo apenas o que são. Um maior agora, um mais pequeno depois, vivendo no lugar do qual ele acabou de regressar. Ele sabia o que aquele lugar é, mas agora está apenas a dizer.
Os humanos obrigam-no a dizer muita coisa. Levam-no a passear e é homicídio. O inferno num corredor, pára-choques com pára-choques, pior do que a auto-estrada, pessoas a voar por todo o lado demasiado rápido para que não se note. E ainda assim querem conversar, mesmo enquanto se movem. Como se falar não fosse loucura suficiente. Mas depois de o exercitarem, deixam-no deitar-se. Velhos cães adormecidos a tentar novos truques. Gosta quando lhe devolvem o corpo. Gosta de ficar apenas deitado no zumbido do mundo, todos os canais a derramar em simultâneo pela sua pele.
Tem de trabalhar um pouco, voltar com o tempo. Puseram-no a viver num vagão coberto. Num comboio antigo com outros órfãos como ele. Já viveu em lugares piores. Não é fácil dizer onde está, por isso não diz nada. Algumas coisas dizem-no a ele. Aquilo que está dentro da sua mente salta cá para fora. Os pensamentos escapam-se, pensamentos que ele não sabia que tinha. Nem sempre os outros sabem o que ele quer dizer. Isso não o pode aborrecer e ele também não se aborrece.
Uma rapariga vem visitá-lo e ele gostaria de se deitar com ela. Talvez até já o tenha feito. Isso seria bom. Podiam ir acasalar, sempre. Outra vez. Um carro para os dois. Afinal de contas, aqueles pássaros acasalam para toda a vida. Os pássaros que ele está a perder. Quem pensam os humanos que são para fazerem melhor? Um casal para toda a vida.
Ensinam os filhos a chegar ao cimo da Terra e depois a descobrir o caminho de volta, o caminho que ele encontrou.
Aquelas aves são inteligentes. O seu pai sempre lhe disse isso. Um pai que conhecia aquelas aves tão bem que costumava matá-las.
Algo que o obriga a recordar-se, agora mesmo, mas desaparece.
Conversa fiada, mas sempre conversa. Dizê-lo, dizer se, dizer a. Dizer é fácil. Eco. Lala.
Acabado, terminado, naquele instante. Agora já não está. É por isso que o obrigam a falar: para provar que ele ainda pertence ao mundo das coisas vivas e não ao das pedras.
Não sabe muito bem por que razão está aqui ou como foi ali parar. Parece que teve um ácido dente. Alguma coisa ficou ainda mais amolgada, mas as pessoas verbosas não dizem. Todas aquelas coisas para falar, milhões de coisas móveis e essa nunca é uma que alguém mencione. Na maior parte das vezes em que falam, nada acontece. Nada para além do que já ali está. O que lhe sucedeu é uma coisa que nem as coisas vivas mencionam.
Karin continuava a ler para o irmão: era tudo o que podia fazer. A cara de Mark mantinha-se plácida ao longo das atribulações das histórias. Limitava-se a viajar em cada frase, ao ritmo de um vagão de comboio. Foi Karin quem se deixou sobressaltar por uma das aventuras. A cena em que o rapaz de 12 anos é atingido na cabeça quando tenta entrar sorrateiramente numa casa em ruínas e é deixado atado e amordaçado na cave obrigou-a a fechar o livro, incapaz de continuar a ler. Os traumatismos cranianos estavam a dar cabo dela. Até a ficção infantil lhe parecia demasiado real.
Os Mosqueteiros regressaram para mais uma ofensiva.
- Não prometemos que voltávamos? - perguntou Tommy Rupp. - Não dissemos que ajudávamos a trazer o nosso amigo de volta?
Ele e Cain vinham carregados com bolas de espuma aparelhadas com barbatanas caudais, consolas de jogos electrónicos e até carros com controlo remoto. Mark primeiro reagiu com apatia e depois com satisfação. Fez mais progressos motores em meia hora com os seus amigos do que em vários dias com o fisioterapeuta.
Duane era o mais técnico.
- O que estás a fazer ao ombro, Mark? Cuidado com o manguito rotador. É o que se chama um ponto de inflamação.
Rupp mantinha a acção.
- És capaz de parar de te armares em médico e deixares aqui o Gus atirar a bola? Não é, Gus?
- É, Gus - repetiu Mark observando toda aquela agitação como se estivesse a ser repetida nesse instante.
Bonnie aparecia alguns dias por semana. Mark deliciava-se com as suas visitas. Trazia sempre animais de borracha embrulhados em papel metálico, tatuagens que saíam com água, e sinas fechadas em envelopes decorados.
Em breve encetarás uma aventura fantástica... Ela era melhor do que qualquer livro. Era capaz de estar horas a contar histórias engraçadas sobre viver num vagão coberto ao lado da estrada interestadual que nunca chegara ao terreno da herdade. Uma vez apareceu com o seu uniforme de pioneira. Mark fitou-a admirado, com uma expressão meio de rapaz aniversariante, meio de pedófilo. Bonnie trouxe-lhe um leitor de CD e um par de auscultadores, algo que Karin nunca se lembrara de levar. Trouxe também uma caixa de CD com músicas piegas sobre amores não correspondidos, algo que Mark nunca na vida iria escutar. Todavia, com os auscultadores nas orelhas, Mark fechou os olhos, sorriu e tamborilou a anca ao compasso da música.
Bonnie gostava de escutar as histórias que Karin lia em voz alta:
- Ele segue com atenção cada palavra - insistia.
- Achas mesmo? - perguntava Karin, tentando agarrar-se a qualquer esperança.
- Basta olhar para os olhos dele.
O seu optimismo era um narcótico. Karin estava já dependente dele, mais do que dos cigarros.
- Posso experimentar uma coisa? - pediu Bonnie, tocando-lhe no ombro. As suas mãos sondando Karin incessantemente, transformando cada palavra numa confidência. Aproximou-se de Mark, uma mão incentivando-o e a outra segurando-o. - Estás pronto, Marker! Mostra-nos do que és capaz. Vamos começar. Um, catrapum; dois...! - Ele mirou-a de queixo caído. - Vá lá. Concentra-te! - E começou de novo a cantarolar: - Um, catrapum; dois...
- Bois.
A palavra escapou-se-lhe da boca como um gemido. Karin arquejou face à primeira prova de que algures bem lá no fundo Mark ainda fazia sentido. O seu irmão, que ainda há poucas semanas consertara maquinaria complexa de um matadouro, conseguia agora terminar a primeira linha de uma rima infantil. Os seus lábios esboçaram um sorriso de vitória.
Bonnie continuou, soltando risadinhas como água a correr num ribeiro.
- Três, pedrês. Quatro...
-... pato!
- Cinco, pinto. Seis...
-... merda.
Karin desatou a rir, envergonhada. Bonnie tranquilizou o desanimado Mark.
- Ei! Duas em três. Estás a sair-te muito bem.
Experimentaram depois com o “Pico, pico, sarapico” e Mark, com um olhar concentrado, acertou sem problemas em bico, rainha e cozinha. Bonnie começou a cantar “Cavalinho, cavalinho”, mas a meio já não se lembrava do resto da letra e acabou por gaguejar um pedido de desculpas.
Foi a vez de Karin voltar a tentar. Recordou-se de uma quadra que Bonnie nunca antes havia escutado, mas que para os irmãos condensava todos os medos da infância.
- Luar, luar - recitou Karin, tal como a sua mãe o fizera quando as rimas de Joan Schluter não soavam ainda a exorcismos diabólicos.
- Vem-me...
Os olhos de Mark escancararam-se em súbito reconhecimento. Os seus lábios juntaram-se para formar uma palavra.
- Buscar!
- Que eu sou pequenino - continuou ela, encorajando-o. - E...?
Todavia, o irmão manteve-se quieto, enterrado na cadeira, fitando qualquer estranha criatura desconhecida para a ciência cuja silhueta aparecia subitamente no horizonte ao final do dia.
Uma tarde, estava Karin sentada ao lado de Mark a ensinar-lhe as regras do xadrez quando uma sombra atravessou o tabuleiro. Ela levantou a cabeça e viu uma figura familiar junto ao seu ombro, envergando um casaco verde tropa.
A mão de Daniel deslocou-se em direcção à sua, mas não lhe tocou. Cumprimentou Mark com um olá simpático, como se os dois não estivessem zangados há mais de uma década. Como se Mark não estivesse sentado numa cadeira de hospital como um autêntico robô.
A cabeça de Mark inclinou-se para trás. Depois saltou para cima da cadeira, mais depressa do que alguma vez se movimentara desde o acidente, a apontar e a gritar:
- Meu Deus! Oh, meu Deus! Ajuda-me. Vês vês vês?
Daniel avançou em direcção a Mark para o tentar acalmar, mas este subiu para as costas da cadeira a gritar:
- Não viste, não viste.
Karin empurrou Daniel para fora do quarto quando a enfermeira entrou a correr.
- Eu depois telefono-te - disse-lhe. Era a primeira vez em três anos que estavam assim, cara a cara. Apertou-lhe a mão e depois correu para junto do irmão para o acalmar.
Mark continuava a ver coisas. Karin esforçou-se por reconfortá-lo, porém não conseguia entender o que teria ele visto na longa sombra vinda de lado nenhum. Deitado na cama, o irmão ainda tremia.
- Vês?
Aquietou-o e mentiu-lhe, garantindo que sim, que estava a ver.
Após o descalabro no hospital, Karin procurou Daniel. Ele continuava tal como ela se recordava: regrado, familiar, gregário. E até de aspecto parecia não ter mudado desde os tempos de escola: o cabelo ruivo e comprido, a pequena barbicha, a cara vertical e estreita. A sua continuidade confortava-a, agora que tudo tinha mudado. Conversaram durante 15 minutos, com uma mesa de cozinha a separá-los. Ela apressou-se a sair antes que partisse alguma coisa, mas não sem antes combinarem encontrar-se de novo.
A diferença de idade entre os dois desaparecera. Daniel sempre fora um miúdo. O colega de escola de Markie, o amigo de Markie. Agora era mais velho do que ela e Mark uma criança entre ambos. Passou a telefonar a Daniel sempre que precisava de ajuda com as inúmeras e esmagadoras decisões: formulários bancários, pedidos de incapacidade, os papéis para a reabilitação de Mark. Confiava em Daniel tal como o devia ter feito há anos. Ele conseguia sempre sugerir-lhe as melhores soluções. Para além disso, conhecia o seu irmão e podia dizer-lhe o que Mark preferiria.
Daniel não se abriu com ela logo de início. Não o poderia ter feito. Já não era quem fora, mais que não fosse pelo que Karin lhe havia feito. O facto de dispor do seu tempo para estar com ela espantava-a, deixava-a envergonhada e grata. Não sabia muito bem o que aquela reaproximação significava para ele, ou se ele desejava que significasse alguma coisa. Para Karin, poder contar com ele era a diferença entre boiar e afundar-se. Após outro dia no caos do novo mundo de Mark, deu por si a inventar novas razões para telefonar a Daniel. Podia dizer-lhe qualquer coisa, desde as mais descabidas esperanças pelos ínfimos triunfos do irmão, ao medo que sentia de não aguentar mais. Daniel acolhia cada palavra sua com uma atitude serena e reservada, ajudando-a sempre a regressar a um caminho mais equilibrado e estável.
Podiam vir a não ter nenhum futuro juntos, após as humilhações do passado. Porém, talvez conseguissem construir um passado melhor do que aquele que haviam destruído. As batalhas de Mark ocupavam-nos. O seu trabalho missionário, desfazer antigas insignificâncias: avaliar os avanços de Mark e determinar quanto mais teria de progredir. Daniel trazia-lhe livros de todas as bibliotecas, até de Lincoln. Relatos de danos cerebrais cuidadosamente escolhidos para lhe alimentar as esperanças. Copiava artigos, as últimas pesquisas e descobertas neurológicas, que depois a ajudava a descodificar. Telefonava para saber como ela estava, dando-lhe dicas sobre o que deveria perguntar aos terapeutas. Parecia novamente uma vida, permitindo que Daniel olhasse por ela durante algum tempo. Certa vez, a gratidão que sentia era de tal forma arrebatadora que não foi capaz de conter um abraço.
Começou a ver Daniel com outros olhos. Algo nela sempre o havia rejeitado, um neo-hippie com pendor para a rectidão, demasiado orgânico e puro e sempre à parte da restante carneirada. Agora arrependia-se da sua prolongada injustiça. Ele pretendia apenas que as pessoas fossem o mais altruístas possível, gratas pelos milhões de ligações que as mantinham vivas, tão generosas com os outros quanto a natureza era para elas. Por que razão perdia tempo com ela depois de tudo o que lhe havia feito? Porque ela lhe tinha pedido. O que poderia ele ganhar com aquela nova aproximação? Simplesmente a possibilidade de corrigir o passado. Reduzir, reutilizar, reciclar, reparar, resgatar.
Passeavam juntos. Karin arrastou-o para o Fondel's Auction, o antigo ritual de quarta-feira à noite de todo o condado. Estar longe do hospital parecia-lhe o mais culposo dos paraísos. Daniel não licitou em nenhum dos artigos, mas era a favor da revenda de material usado: Sempre mantém as coisas longe das lixeiras. Karin alimentou a sua obsessão de infância com os fantasmas dos antigos proprietários escondidos nas peças que deitavam fora. Caminhou para cima e para baixo ao longo das extensas mesas dobradiças, tocando em cada panela amolgada e em cada tapete gasto, inventando histórias sobre como teriam ido ali parar. Compraram um candeeiro em conjunto. O pé era composto por uma estátua de Buda. Só uma história mirabolante poderia explicar como teria chegado a Buffalo County ou por que razão ali fora abandonado.
Na sua sétima excursão, às compras na secção de vegetais do Sun Mart para um jantar improvisado, Daniel chamou-lhe K.S. pela primeira vez em anos. Sempre gostara daquela alcunha. Fazia-a sentir-se outra pessoa, uma peça importante numa organização eficiente. “Vais marcar a diferença”, dissera-lhe quando ainda nenhum deles desconfiava sequer que o mundo não estava preparado para grandes diferenças. “Vais deixar a tua marca, K.S. Tenho a certeza.” Agora, séculos depois, a escolher cogumelos, ele voltara a utilizar esse nome, como se o tempo não tivesse passado
- Se alguém o conseguir trazer de volta, esse alguém serás tu, K.S.
Ela ainda poderia marcar a diferença, ainda que fosse apenas para o irmão.
Karin inventava recados para fazerem, lugares onde tinham de ir. Um fim-de-semana sugeriu um passeio junto ao rio. Quase por acidente deram por eles junto à velha ponte Kilgore. Nenhum dos dois se descaiu sobre o significado daquele lugar. Havia ainda gelo junto à orla da água e os últimos grous partiam em direcção a Norte, rumo aos seus territórios de nidificação. No entanto, conseguia ainda escutá-los, invisíveis sobre as suas cabeças.
Daniel encheu a mão de pequenos seixos e atirou-os para o rio, fazendo-os saltitar na superfície da água.
- O nosso Platte. Adoro este rio. Um quilómetro e meio de largura e dois centímetros de profundidade.
Ela sorriu, acenando com a cabeça em sinal de concordância.
- Demasiado lodoso para beber e demasiado delgado para ser navegado. - Piadas de escola, tão familiares quanto os horários das aulas. Entranhadas na pele pelo simples facto de ali terem crescido. - Um rio e peras.
- Um lugar único, não é? - A sua boca arqueou para os lados; uma expressão quase trocista, em qualquer outra pessoa que não Daniel.
Ela deu-lhe um pequeno encontrão.
- Sabes, quando éramos miúdos, estava convencida de que Kearney era uma merda muito importante. - Ele encolheu-se. Karin esquecera-se; ele detestava que ela praguejasse. - O ponto mais importante do continente. Temos o Mórmon Trail, o Oregon Trail, o caminho-de-ferro Transcontinental, a interestadual 80...
Ele acenou com a cabeça.
- E um trilião de aves que atravessam a rota migratória que abrange os estados do centro do país.
- Isso mesmo. A nossa cidade está no centro de tudo. Eu achava que era apenas uma questão de tempo até nos transformarmos na segunda St. Louis.
Daniel sorriu, baixou a cabeça e meteu as mãos nos bolsos do seu casaco verde-tropa.
- A encruzilhada da nação.
Estarem juntos - estando apenas - era mais fácil do que alguma vez se atrevera a acreditar. Detestava os acessos de risadinhas infantis, quase obscenos, tendo em conta o que os juntara. Estava a avançar por terreno minado, a usar o irmão doente para corrigir os erros do seu passado. Todavia, tudo aquilo era mais forte do que ela.
Algo estava prestes a acontecer, uma coisa boa que ela não orquestrara e que de algum modo seria o resultado da catástrofe de Mark. Ela e Daniel caminhavam em direcção a um novo território, calmo, estável e quem sabe livre de culpa, um lugar que ela nunca acreditou existir. Um lugar que iria beneficiar Mark.
Caminharam até meio da ponte. A armação metálica balançava sob os seus pés. O canal norte do rio Platte ziguezagueava logo ali por baixo. Daniel apontou covis e luras, vegetação usurpadora, pequenas alterações no leito do rio em que ela nunca teria reparado.
- Isto hoje está animado. Um pato-de-asa-azul ali. Um rabi-junco. E os mergulhões chegaram mais cedo este ano. Olha ali! Aquilo era um sayornis? Quem és tu? Volta! Não consegui ver quem eras!
A velha ponte abanou e Karin meteu o braço sob a manga do casaco de Daniel. Ele parou e observou-a: um acontecimento inesperado e chocante. Ela olhou para baixo e viu a sua mão a embalar a dele como crianças de escola. O Dia dos Namorados e o Memorial Day misturaram-se num só. Daniel passou levemente as costas dos dedos pelo cabelo cor de cobre dela: uma experiência realizada por um naturalista.
- Ainda te recordas de quando te fazia perguntas sobre as espécies?
Ela continuava agarrada à sua mão.
- Detestava. Não acertava em nenhuma.
A sua mão ergueu-se para apontar para um choupo ainda a rebentar. Havia algo pousado num ramo, pequeno, salpicado de amarelo e tão nervoso quanto ela. Não lhe sabia o nome. O nome apenas o faria desaparecer. O pássaro sem nome abriu o bico e desatou a cantar. Cantava disparatadamente, certo de que ela o seguiria. Em seu redor, começaram a escutar-se respostas vindas dos choupos, do rio, da brisa de Março, dos coelhos no matagal, algo a jusante a bater alarmado na água, segredos e rumores, avisos e negociações, todas aquelas vidas entreligadas a falar ao mesmo tempo. Os estalidos e gritos vinham de todo o lado e terminavam em lado nenhum, não emitindo quaisquer julgamentos e não prometendo nada. Multiplicavam-se apenas uns aos outros, enchendo o ar tal como o rio enchia o seu leito. Nada daquilo lhe pertencia e, pela primeira vez desde o acidente de Mark, sentia-se livre de si mesma, uma liberdade que rasava a felicidade. O pássaro continuava a cantar, inserindo a sua canção no meio de toda aquela conversa.
A intemporalidade dos animais: o tipo de sons que o seu irmão emitia, ao emergir do coma. Era ali que Mark vivia agora e aquela era a canção que teria de aprender se desejava voltar a compreendê-lo.
Algo trombeteou sobre as cabeças deles. Era o que restava da massa alada que se dirigia agora para o Árctico. Daniel olhou para cima, investigando. Karin nada viu para além de nuvens cinzentas.
- Aqueles pássaros estão condenados - afirmou Daniel.
Ela agarrou-o pelo braço.
- Era um cisne?
- Cisne? Não. Grous. Reconhecerias um cisne.
- Não pensei que... Mas os cisnes são aqueles...
- Os cisnes já desapareceram. Migraram cerca de 200. Já não passam de fantasmas. Alguma vez viste algum? São como... alucinações. Desaparecem quando olhas para eles. Não, os cisnes já eram e os grous estão a seguir pelo mesmo caminho.
- Estás a brincar. Devem existir milhares...
- Meio milhão, mais coisa, menos coisa.
- Ou isso. Já sabes que não sou grande coisa em números. Nunca vi tantos grous como este ano.
- Isso é um dos sintomas. O rio está a ser usado em excesso. Quinze barragens, irrigação para três estados. Cada gota é utilizada oito vezes antes de chegar até nós. O caudal tem um quarto do volume que tinha antes de começar a ser explorado. O rio desacelera; as árvores e a vegetação ganham terreno e estas, por sua vez, assustam os grous que precisam de terrenos planos e desimpedidos para pernoitar, onde nada se possa esconder e surpreendê-los. - Rodopiou lentamente, os seus olhos perscrutando o céu. - Esta é a única paragem segura na sua rota. Não existe outro lugar assim no centro do continente que possam utilizar. São aves frágeis com uma baixa taxa anual de nascimentos. Quaisquer alterações no seu habitat serão desastrosas. Como te deves certamente recordar, os cisnes eram tão numerosos quanto os grous. Daqui a alguns anos podemos dizer adeus a uma espécie que habita a Terra desde o Eocénio.
Daniel continuava o mesmo vagabundo que o seu irmão adoptara, o caminhante magricela que via coisas que os restantes não eram capazes de ver. Era a pessoa na qual Markie poderia outrora ter-se tornado. O pequeno Mark. Animais como eu.
- Mas se estão assim tão ameaçados, porque existem tantos...?
- Costumavam fazer a habitual paragem ao longo de todo o Big Bend: cerca de 190 quilómetros ou mais. Agora estão reduzidos a 96 quilómetros, com tendência a diminuir. O mesmo número de aves amontoadas em metade do espaço. Isso resulta em doenças, stresse e ansiedade. É pior do que Manhattan.
Aves a sofrer de ansiedade. Karin reprimiu uma gargalhada. Algo em Daniel lamentava mais do que apenas os grous. Ele apreciava que os humanos tomassem uma atitude consciente e sabedora para preservarem a natureza. Em vez disso, o único animal racional da criação havia destruído o local.
- Estamos a concentrá-los num dos maiores e mais grandiosos espectáculos do momento. É por isso que o turismo relacionado com os grous cresceu tanto. Transformou-se num grande negócio e em cada Primavera gastamos cada vez mais água. Logo, o espectáculo será ainda mais ostentoso no próximo ano.
Daniel falava de uma forma quase compreensiva, esforçando-se por entender o fenómeno. Todavia, a sua capacidade de perceber a raça estava a diminuir mais rapidamente do que o habitat.
Estremeceu. Karin tocou-lhe no peito e, por impulso, ele beijou-a melancolicamente, não entendendo muito bem o que o originara. A mão dele deslizou pelo cabelo até ao colarinho aberto do seu casaco de camurça. Ela cingiu-o contra si, um gesto errado sob mais formas do que ela era capaz de enumerar. A excitação era condenável, dadas as circunstâncias. Mas esse pensamento ainda a excitava mais. O abraço foi compensação suficiente pelas atribulações das últimas semanas. O seu corpo cedeu à exaltação daquela fria Primavera. O que quer que pudesse acontecer, ela não estaria sozinha.
De volta à cidade, por entre campos ondulantes pincelados de verde, Karin perguntou-lhe:
- Ele não vai voltar a ser o mesmo, pois não?
Daniel continuou a olhar para a estrada. Sempre apreciara isso nele. Só falava quando tinha algo de útil para dizer. Inclinou a cabeça e depois afirmou:
- Nunca ninguém é quem era. Temos de observar e escutar. Ver para onde ele vai e ir lá ter com ele.
Colocou a mão sob o casaco de Daniel e massajou-lhe o flanco sem pensar, imaginando-os a sair da estrada e a capotar, até que ele lhe segurou o punho gentilmente e lhe lançou um olhar perplexo.
Estavam sentados no apartamento de Daniel, à luz das velas, como se ainda fossem jovens e passassem o Natal juntos pela primeira vez. Ela estava aninhada junto ao aquecedor. Daniel cheirava a um cobertor de lã acabado de tirar do armário. Ele abraçou-a por trás e desabotoou-lhe a camisa. Ela encolheu-se face à ameaça de fazer aquilo de novo.
O fundo das costas dela retesou-se ao toque dos seus dedos. Ele delineou a curva da sua barriga, tacteando com a mesma surpresa ansiosa de há oito anos.
- Estás a ver? - recitou de memória. - A cicatriz da minha apendicite. Tenho-a desde os 11 anos. Não é nada atraente, pois não?
Daniel soltou uma gargalhada.
- Errada da primeira vez e errada anos depois! - Encostou a ponta do nariz ao seu sovaco. - Algumas mulheres nunca aprendem.
Karin rebolou-o e ergueu-se, uma das suas criaturas aladas, cinzentas, o pescoço esticado. Outra espécie em perigo e a necessitar de protecção. Endireitou-se à frente dele, exibindo-se.
Quando estavam de novo quietos, ela concedeu-lhe a rendição que ele não pedira:
- Daniel? O que era aquele pássaro na árvore?
Ele estava deitado de costas, um espantalho vegetariano. Os seus músculos frouxos suportavam os anos de perguntas contidas que nunca se atrevera a colocar. No escuro, reviu as espécies que tinham visto naquele dia.
- Era... Tem muitos nomes. Tu e eu, K.S.? Podemos chamar-lhe o que quisermos.
Karin acompanhava Mark por aquela ala do hospital na sua caminhada diária quando este teve o seu primeiro pensamento abstracto. Mark ainda caminhava como se estivesse acorrentado. Parou frente ao quarto de um paciente a escutar o que diziam. Alguém chorava e uma voz mais velha dizia: “Está tudo bem. Não te preocupes com isto.”
Mark ouviu, com um sorriso. Depois ergueu a mão e anunciou:
- Tristeza.
Ali, no corredor, aquela façanha notável do seu intelecto levou-a às lágrimas.
Estava junto dele novamente quando ele proferiu a sua primeira frase completa. O terapeuta ocupacional estava a ajudar Mark a lidar com botões e Mark cuspiu as palavras como um oráculo:
- Existem ondas magnéticas no meu crânio.
Tapou a cara com ambos os punhos, ao ver o que era, agora que conseguia nomeá-lo. Como um dique que rebenta, as frases pareciam sair-lhe da boca numa enxurrada.
Na noite seguinte, Mark já fazia conversa: lenta, um pouco indistinta, mas já com algum sentido.
- Por que razão é que este quarto é tão estranho? Não é isto que costumo comer. Este lugar parece um hospital.
Oito vezes por hora perguntava o que lhe havia sucedido e de cada vez ficava admirado com a notícia do acidente.
Nessa noite, quando Karin se despediu dele, Mark levantou-se e correu para a janela, tentando abri-la.
- Estou a dormir? Desapareci? Acordem-me. Isto é o sonho de alguém.
Ela caminhou até à janela e abraçou-o. Depois afastou-o dali para que parasse de bater no vidro.
- Markie, estás acordado. Tiveste um dia longo. A Coelhinha está aqui. Eu volto amanhã de manhã.
Ele seguiu-a de volta à cadeira de plástico junto à cama, a sua prisão. Porém, quando Karin o sentou, ele fitou-a confuso.
- O que estás aqui a fazer? Quem te disse para vires?
Ficou pálida.
- Pára com isso, Mark - ordenou num tom mais brusco do que desejaria. Depois, numa voz mais meiga, brincou: - Achas que a tua irmã não ia tomar conta de ti?
- Minha irmã? Achas que és minha irmã? - Os olhos dele fulminaram-na. - Se acreditas que és minha irmã, então não estás boa da cabeça.
Karin argumentou com o irmão, expondo-lhe as provas, como se estivesse a ler-lhe outra história infantil em voz alta. Quanto mais calma estava, mais aborrecido ele ficava.
- Acordem-me - guinchava Mark. - Este não sou eu. Estou preso na cabeça de outra pessoa.
Não deixou Daniel dormir toda a noite, horrorizada com a memória daquele episódio.
- Não fazes ideia da expressão dele quando disse “Achas que és minha irmã?”. Tão seguro das suas palavras. Nem uma sombra de incerteza. Não imaginas o que senti.
Daniel escutou-a toda a noite. Karin já se esquecera do quanto ele era paciente.
- Ele deu um grande passo no sentido da recuperação. Ainda está a juntar tudo. O resto virá rapidamente.
Aos primeiros raios de Sol, ela parecia acreditar nas suas palavras.
Dias depois, Mark continuava a negar o seu parentesco. Compreendia e aceitava tudo o resto: quem era, onde trabalhava, o que lhe sucedera. Porém, insistia que Karin era uma actriz muito parecida com a sua irmã. Após muitos testes, o dr. Hayes apresentou um nome para aquele comportamento.
- O seu irmão manifesta sintomas de um distúrbio chamado síndrome de Capgras. Faz parte de uma família de delírios de identificação errónea. Pode ocorrer em algumas doenças psiquiátricas.
- O meu irmão não é doente mental.
O dr. Hayes pestanejou.
- Pois não, mas tem grandes desafios à sua frente. Esta síndrome também pode ocorrer em casos de traumatismo craniano, embora seja bastante raro. Lesões em zonas precisas, talvez até em vários locais... Existem pouquíssimos casos registados. O seu irmão é o primeiro doente com Capgras resultante de um acidente de que tenho conhecimento.
- E como pode o mesmo sintoma ter duas causas diversas?
- Isso não se sabe. Pode até não se tratar de uma única síndrome.
- E o que o leva a comportar-se assim?
- De alguma forma, você não corresponde à imagem que ele tem de si. Mark sabe que tem uma irmã. Sabe que você se parece com ela, que se veste como ela, mas não acredita que seja ela.
- O meu irmão reconhece os amigos, reconhece-o a si. Como pode ele conhecer os estranhos e não ser capaz de...
- O doente de Capgras tem quase sempre dificuldades em reconhecer as pessoas que lhe são queridas. A mãe ou o pai. O cônjuge. A zona do cérebro responsável pelo reconhecimento facial está intacta, assim como a memória. Porém, a zona que processa a associação emocional ficou de algum modo desligada do resto.
- Para ele eu não pareço a sua irmã? O que vê ele quando olha para mim?
- Vê o que sempre viu. Apenas... não lhe associa emoções ao ponto de acreditar em si.
Uma lesão que afectava apenas a percepção daqueles que se amava.
- Emocionalmente não sou nada para ele? E então ele acha...? - O dr. Hayes anuiu com a cabeça. - Mas o cérebro dele... O seu raciocínio não está afectado, pois não? Isto é o pior que teremos de enfrentar? Porque se é, tenho a certeza de que conseguirei...
O médico levantou a palma da mão.
- A única certeza no traumatismo craniano é a incerteza.
- E qual é o tratamento?
- Por enquanto temos de observar e ver como ele evolui. Podem existir outros problemas. Défices secundários ao nível da memória, do conhecimento, da percepção. A síndrome de Capgras por vezes revela melhorias espontâneas. O melhor remédio agora é dar tempo ao tempo e ir realizando testes e exames.
Duas semanas mais tarde voltou a utilizar a mesma frase.
Karin não acreditava que o irmão tivesse qualquer síndrome. O seu cérebro estava apenas a tentar organizar o caos resultante do traumatismo. A cada dia que passava ele parecia cada vez mais o velho Mark que ela conhecia. Com um pouco de paciência todas as peças do quebra-cabeças acabariam por se encaixar nos locais correctos. Já regressara dos mortos, também regressaria daquela pequena perda. Ela era quem era e Mark teria de se aperceber disso à medida que a sua cabeça fosse ficando mais desanuviada. Karin aceitou a situação tal como os terapeutas a haviam aconselhado a fazer: um pequeno passo de cada vez. Ajudava Mark, sem nunca forçar nada. Acompanhava-o até ao café do hospital. Respondia às suas estranhas perguntas. Trazia-lhe exemplares das suas revistas preferidas. Auxiliava-o a fortalecer as suas memórias, aludindo vagamente às histórias de família. Contudo, tinha de fazer de conta que não sabia muito sobre ele. Tentou uma vez ou duas e o resultado foi desastroso.
Um dia, Mark perguntou:
- Seria possível tentares saber como está o meu cão? - Karin prometeu que o faria. - E, por amor de Deus, podias trazer cá a minha irmã? Ela nem deve saber o que me aconteceu.
Por essa altura, Karin já sabia que o melhor era não dizer nada.
Esforçava-se por desempenhar bem o seu papel frente a Mark, mas à noite, sozinha com Daniel, dava voz aos seus medos mais terríveis.
- Deixei o meu emprego. Estou de volta a uma cidade da qual pareço não conseguir escapar, a viver na casa do meu irmão e de poupanças. Passei semanas à sua cabeceira a ler-lhe histórias infantis. E agora ele diz que eu não sou eu. É como se estivesse a castigar-me por causa de alguma coisa.
Daniel limitava-se a anuir e a aquecer-lhe as mãos. Karin apreciava essa sua característica: se não havia nada para dizer, ele ficava calado.
- Tenho-o ajudado muito este tempo todo. Ele está bastante melhor do que estava. Não era capaz sequer de abrir os olhos. Por que razão tinha isto de ser tão assustador? Por que razão não consigo aceitar esta situação com calma e paciência?
Daniel massajava-lhe as costas, libertando toda a tensão acumulada.
- Avança devagar - aconselhou. - Ele vai precisar de ti durante muito tempo.
- Quem me dera que precisasse mesmo. Olha para mim como se fosse pior do que uma estranha. Dilacera-me. Se eu fosse capaz de... se ele ao menos dissesse de que precisa.
- É natural que se esconda - disse Daniel. - Uma ave fará qualquer coisa para não mostrar que está ferida.
Mark conduzia o seu corpo como o pior dos alunos de condução. Por vezes acelerava, ultrapassando todos os limites de velocidade. Outras, um pequeno buraco no alcatrão era o suficiente para o fazer embater. Havia dias em que era capaz de resolver todos os quebra-cabeças que os terapeutas inventavam e outros dias não conseguia mastigar sem morder a língua.
Não se recordava do acidente, mas agora podia construir novas memórias. Karin agradecia esse facto a todos os poderes superiores. Continuava a questionar duas vezes por dia como fora ali parar, mas agora fazia-o sobretudo para desafiar a sua mais subtil mudança de fraseologia.
- Não foi isso que disseste da última vez.
Perguntava com frequência sobre a sua carrinha. Queria saber se estava tão amachucada quanto ele. Karin argumentava sempre com as respostas mais vagas.
Os progressos exteriores eram magníficos. Até mesmo os amigos ficavam admirados com os saltos evolutivos de uma visita para a outra. Falava agora mais do que antes do acidente e oscilava entre crises de raiva e acessos de ternura. Karin contou-lhe que os médicos queriam tirá-lo do hospital. Mark encheu-se de satisfação. Pensava que ia para casa.
- Podes dizer à minha irmã que vou sair daqui? Diz-lhe que Mark Schluter recebeu luz verde. Ela saberá onde me encontrar.
Karin mordia o lábio e recusava-se até a acenar com a cabeça. Lera num dos livros de neurologia de Daniel que não devia alimentar ilusões.
- Ela deve estar preocupada comigo. Tens de me prometer. Onde quer que ela esteja, tem de saber o que se passa. Ela sempre tomou conta de mim, estás a perceber? É o que ela faz. Salvou-me a vida uma vez. O meu pai por pouco não me partiu o pescoço. Um dia conto-te. É pessoal. Mas acredita, se não fosse a minha irmã eu estaria morto.
Destroçava-a ouvir tudo aquilo e ficar calada. Ainda assim, sentia um estranho fascínio ao escutar o que Mark dizia sobre ela ao falar com estranhos. Seria capaz de sobreviver àquela provação o tempo que demorasse até que ele voltasse à razão. E a razão dele parecia solidificar-se a cada dia que passava.
- Talvez não a deixem vir cá. Porque não me deixam falar com ela? Estou a ser a cobaia de algum projecto científico? Estão a ver se te confundo com ela, é isso? - Viu a angústia na expressão de Karin, mas tomou-a por indignação. - Pronto, está bem. Também me ajudaste, à tua maneira. Estás aqui todos os dias. Caminhas comigo, lês para mim e essas coisas. Não faço ideia do que pretendes, mas estou-te gratificado.
- Grato - corrigiu Karin. Ele fitou-a, desconcertado. - Disseste “gratificado”. Querias dizer “grato”.
Mark lançou-lhe um olhar mal-humorado.
- Estava a brincar. És muito parecida com ela, sabias? Talvez não tão bonita, mas andas lá perto.
Karin sentiu uma vertigem. Acalmando-se, meteu a mão na pequena bolsa que trazia ao ombro e retirou lá de dentro o pequeno papel.
- Olha para isto, Mark! Não sou a única que tem estado a olhar por ti.
Terapia não planeada. Karin sabia que o irmão precisava de melhorar um pouco mais antes de ser confrontado com o acidente.
Contudo, pensou que aquilo poderia abaná-lo um pouco mais, acordá-lo. E talvez, de alguma forma, provar a autoridade dela.
Mark agarrou no papel e mirou-o com os olhos semicerrados, segurando-o a várias distâncias. Depois devolveu-o.
- Não sei o que está aí escrito.
- Mark! Tu sabes ler. Ainda esta manhã leste duas páginas para o terapeuta.
- Cruzes, credo. Já alguém te disse que pareces mesmo a minha mãe?
A mulher na qual ela passara a vida inteira a tentar não se transformar.
- Toma. Tenta de novo.
- Ei, a culpa não é minha! Já viste esta letra? Isto não é caligrafia. Parece uma teia de aranha ou casca de árvore. Diz-me tu o que está aqui escrito.
A letra era de facto espectral. Ziguezagueava pelo papel, assemelhando-se à escrita cursiva da sua avó sueca. Karin estimava que o autor deveria ter cerca de oitenta anos e ser um antigo imigrante com medo de revelar demasiadas informações que o pudessem colocar numa base de dados. Leu as palavras escritas no pedaço de papel, embora as tivesse memorizado. Não sou Ninguém mas esta Noite em North Line Road Deus conduziu-me até si para que pudesse Viver e trazer de volta outra pessoa.
Mark tocou na cicatriz que lhe atravessava a testa. Voltou a pegar no papel.
- O que quer isto dizer? Deus guiou alguém? Bem, se Deus é tão meu amigo, por que razão pegou na minha carrinha e a capotou? Zás! Como se estivesse a jogar dados comigo.
Karin pegou-lhe no braço.
- Recordas-te disso?
Ele sacudiu-lhe a mão.
- É o que me tens dito para aí umas vinte vezes por dia. Como poderia eu esquecer? - Apontou para o papel. - Não, isto são demasiados passos só para chamar a minha atenção. Nem mesmo Deus se dá a tanto trabalho.
O que dissera a sua mãe o ano passado sobre o seu lento definhamento? Seria de esperar que o Senhor fosse um pouco mais eficiente.
- A pessoa que escreveu esta nota encontrou-te, Mark. Veio visitar-te aos cuidados intensivos e deixou-te isto. Devia querer que soubesses.
Mark emitiu um som, um ganido de um cão cujas patas traseiras haviam sido atropeladas pela carrinha do dono.
- Que soubesse o quê? Que faço eu com isso? Vou ajudar outra pessoa a regressar do mundo dos mortos? E como? Nem tão-pouco sei onde estão os mortos.
Karin sentiu um calafrio na espinha recordando-se das insinuações da Polícia.
- O que queres dizer com isso, Mark?
Ele agitou as mãos em volta da cabeça como se estivesse a afastar um enxame de abelhas.
- Como é que hei-de saber o que quero dizer?
- Que pessoas mortas é que não...?
- Nem sequer sei quem morreu. Não sei onde está a minha irmã. Nem tão-pouco sei onde estou. Este suposto hospital pode muito bem ser um estúdio de cinema para onde levam as pessoas para que pensem que tudo está bem.
Karin murmurou um pedido de desculpas. Aquele papel não queria dizer nada. Esticou a mão para o voltar a guardar, mas Mark afastou-o.
- Preciso de encontrar quem escreveu isto. Esta pessoa sabe o que me aconteceu. - Remexeu nos bolsos traseiros das suas calças de ganga preferidas, que a irmã lhe trouxera de casa. - Merda! Nem sequer tenho uma carteira para guardar isto. Não tenho cartão da segurança social, nem nenhum cartão de identificação! Não admira que não esteja em lado nenhum.
- Eu trago-te a carteira amanhã.
Ele olhou para ela, enraivecido.
- E como planeias entrar em minha casa? - Quando ela não respondeu, ele deixou cair os ombros. - Bem, presumo que se conseguem mexer no meu cérebro sem eu dar conta, também são capazes de conseguir as chaves da minha casa.
Perguntam a Mark Schluter quem ele acha que supostamente é. Parece uma questão fácil, mas todas têm armadilhas. São sempre mais complicadas do que parecem. Não sabe porquê, mas tentam sempre enganá-lo. Tudo o que pode fazer é responder e manter-se calmo.
Perguntam-lhe onde mora. Ele aponta para todo o material médico e para as pessoas de branco que o rodeiam. Não deveriam ser elas a dizer-lhe? Refazem a pergunta: Sabe qual é a morada de sua casa? Mark Schluter, 6737 Sherman, Kearney, Nebrasca. Apresentando-se ao serviço. Eles começam: Tem a certeza? Quanta certeza querem eles que ele tenha? Perguntam-lhe se a sua casa fica em Kearney ou em Farview. Outra tentativa desesperada de o confundirem. Claro, ele agora vive em Farview, mas não lhe disseram que tinha de responder no presente.
Querem saber o que faz. Pergunta com armadilha. Sai com amigos. Vai a concertos, ao Bullet ou noutros locais. Procura peças para automóveis no eBay. Faz vídeos. Vê televisão. Passeia o cão. Tem uma personagem fictícia na Internet que vai construindo quando não tem mais nada que fazer. Não diz o óbvio: que eles o estão a tratar como se ele mesmo fosse uma personagem virtual.
É só isso que faz? Bem, eles não têm de saber tudo. Não é da conta deles o que se passa por trás de portas fechadas. Mas insistem: O que faz para ganhar a vida? Onde trabalha? Deviam ter perguntado logo.
Diz-lhe que é técnico de manutenção de reparação, que máquinas são tramadas e quais são fáceis de manter. Está apenas há três anos lá e já ganha bem à hora. Não lhe perguntam o que pensa dos animais e ainda bem. Detesta quando as pessoas querem saber esses detalhes. Toda a gente come a porcaria dos animais e alguém tem de os matar. E ele nem sequer lhes toca, apenas toma conta do material. Interroga-se por que motivos estão eles tão interessados na fábrica. Já há alguns dias que não aparece por lá e talvez se estejam a passar coisas estranhas. É capaz de haver pessoas interessadas no seu posto. O ordenado é bom, especialmente durante uma recessão. Muita gente mataria por menos.
Perguntam-lhe qual é o vice-presidente do primeiro Bush. Estão doidos. O que se seguirá? Senadores nas árvores? Pedem-lhe que conte em ordem decrescente de três em três começando no cem. Será uma habilidade assim tão útil? Pedem-lhe que realize um sem-número de quebra-cabeças - fazer círculos em redor de coisas, riscar outras. Até nestes jogos tentam enganá-lo, fazendo a fonte demasiado pequena e dando-lhe apenas dez segundos para realizar operações que demoram mais de meia hora. Ele diz-lhes que gosta da sua vida tal como ela é e que não deseja fazer qualquer audição para outro papel. Se quiserem despedi-lo do programa piloto, ele não se importa. Os médicos riem-se e dão-lhe mais testes.
Há algo de estranho em tudo aquilo. Os médicos afirmam que são seus amigos. Os testes provam que ele não é capaz de realizar certas coisas, mas é óbvio que consegue. Deviam era analisar a mulher que se faz passar por sua irmã.
Os seus amigos vêm visitá-lo, mas até eles parecem estranhos. Duane parece normal. É impossível duplicá-lo. Quando começa a falar de terrorismo não há quem o consiga calar.
- Estás a par do conceito de jihad? Há uma coisa que o Departamento de Estado não consegue entender sobre os islâmicos. Não é por culpa deles que pertencem a um país estrangeiro.
- Islâmicos? Pensei que se chamassem muçulmanos. É errado chamar-lhes muçulmanos?
- Bem, “errado” é um termo relativo. Ninguém vai dizer que estás errado, per se...
Um mar interminável de disparates como apenas Cain é capaz de dizer. Rupp parece e soa igual a si mesmo, porém existe algo de desfasado nele. Tommy Rupp nunca está desfasado. O tipo que arranjou emprego na fábrica a Mark, que o ensinou a disparar, que o apresentou a novas experiências. De todos, Rupp, seria o único capaz de lhe explicar o que se estava a passar.
Pergunta ao amigo se sabe alguma coisa sobre a rapariga que está a fazer-se passar por Karin. O tipo olha-o como se se tivesse tornado num lobisomem. Deve andar a fumar coisas estranhas, está sempre tão tenso. Como se estivesse num funeral. O verdadeiro Ruppie estava sempre a marimbar-se para tudo. Sabia divertir-se. O verdadeiro Ruppie podia estar metido no frigorífico o dia todo a carregar quartos de vaca e nem sequer sentia. Nada congelava aquele tipo. Ele estava constantemente congelado.
Todo aquele cenário é profundamente perturbador e tudo o que Mark pode fazer é seguir com a maré. Estavam a esconder-lhe algo. A sua carrinha fora destruída, a irmã desaparecera. Todos se diziam inocentes. Todos se recusavam a contar-lhe sobre o acidente ou sobre o que se passara nas horas que o antecederam e sucederam. Mais não podia fazer do que ficar quieto, fazer-se de parvo e ficar à escuta. Duane e Rupp obrigam-no a jogar às cartas. Dizem que faz parte da terapia. Está bem: não tem mais nada para fazer. Porém, devem ter mexido nas cartas. Os paus e as espadas parecem iguais. O baralho também foi alterado. Existem demasiados seis, setes e oitos. Jogam a autocolantes; o monte de Mark desaparece rapidamente. Eles advertem-no de que já retirou cartas, mas ele sabe que não. É um jogo parvo para cretinos e não tem problemas em dizê-lo. Eles começam: Schluter, este é o teu jogo preferido. Ele nem sequer se dá ao trabalho de os contradizer.
Passam bastante tempo a escutar CD que Duane descarrega da Internet e depois grava. Muita coisa mudou na música desde que Mark se ausentou. As canções espantam-no. Meu Deus! Estão a ouvir isto? É a coisa mais estranha que já escutei. O que é isto, country metal?
Isso aborrece Rupp. Pára de te contorceres e usa os ouvidos, Gus. Country metal! Ainda andas a tomar morfina ou quê?
O country metal existe, insiste Cain. É um género reconhecido. Não gostas? Duane é o verdadeiro Cain, digam o que disserem.
Contudo, os olhares que aqueles dois trocam entre si fazem Mark querer esconder-se. Quando estão por perto ele não consegue pensar. Acontecem demasiadas coisas ao mesmo tempo para que ele se aperceba do que está errado. Porém, quando eles partem fica sem dicas para se guiar.
Não se pode explicar aquilo que não se consegue ver.
O problema é que a sósia de Karin parece muito real. Ele está sentado sozinho, calmo, a escutar algo repousante, quando ela aparece para o aborrecer. Não desiste do papel de irmã. Ouve a música. Trios vocais do Havai?
Não sei. Parecem polcas da Polinésia ou algo do género.
E ela começa logo: Onde arranjaste isso?
Foi uma enfermeira que me ofereceu, por me ter portado bem.
Mark? Estás a falar a sério?
O quê? Achas que o roubei a um doente de Alzheimer? E o que te importa? Agora andas a vigiar as minhas actividades?
Ela diz: Gostas mesmo de ouvir isto?
Ora, o que há para não gostar?
É só que... Não, tenho a certeza de que gostas. Aposto que é muito bom. Os olhos dela vermelhos e inchados, como se alguém lhos tivesse salgado.
Tu não me conheces. Passo a vida a ouvir isto. Gosto de escutar música estúpida quando estou sozinho. Sob o capacete, os... os auscultadores.
Como se tivesse acabado de lhe confessar que gostava de se vestir de mulher, ou assim. Toda abespinhada. Tenho a certeza de que sim, diz ela. Eu também.
Ele não entende e isso atormenta-a. Ela não entende nada. Precisa de falar menos e observar mais. Talvez pudesse tomar nota do que via, mas as páginas podem ser depois ser usadas como provas.
Até Bonnie, a bonita e simples Bonnie, já não é a mesma. Parece um fantasma, algo retirado de um antigo programa de televisão com a sua pequena touca e vestido de pioneira até aos pés. Tem uma vida nova, ou algo assim, alimentando-se de raízes e vivendo numa vala com telhado de colmo, como uma espécie de cão da pradaria gigante junto do arco da estrada interestadual. Tem de fazer de conta que a mãe morre numa tempestade de neve e o pai durante a seca, como um episódio retirado da Bíblia, embora os seus pais estejam ambos vivos e a morar nos arredores de Tucson. Ninguém é quem afirma ser, e ele tem de sorrir e fazer de conta que acredita.
Ainda assim, ela continua atraente, mesmo naquele vestido comprido, por isso não a desmente.
Na verdade, toda aquela fantasia era excitante, principalmente o chapéu antigo. Anima-o estar sentado ao lado dela e observá-la enquanto desenha pequenos cartões. Presentes de melhoras para os estranhos que ocupam os quartos ao lado. Postais com bebés em berços para enviar aos legisladores em Washington. Ele senta-se junto a ela, ajudando, pintando dentro das linhas com uma mão enquanto a outra repousa algures nela. Se não estiver mais ninguém no quarto, ela deixa-o pôr a mão onde quiser.
Porém, os cartões recusam-se a cooperar. Perfura um deles e a ponta da caneta esfola o tampo da mesa. Que raio se passa com isto? resmunga. Isto ficou uma porcaria.
Ela estremece. Tem medo dele, mas coloca o braço à sua volta e conforta-o. Estás cada vez melhor, Marker. É espantoso. Durante uns tempos estiveste bastante mal.
Estive? Mas agora começo a voltar ao que era, não é?
Já conseguiste lá chegar. Basta olhar para ti!
Observa-a, porém não consegue perceber se ela está a mentir. Limpa os olhos e puxa do seu próprio cartão de melhoras: Não sou Ninguém... Bem, junta-te ao clube. Não estás sozinho.
Passaram-se semanas sem que Karin disso se apercebesse. Enquanto os terapeutas examinavam o seu irmão, testando a sua memória e a noção que tinha de coisas comuns, ela perdia dias. Uma parte dela estava dessincronizada. Não admirava, com Mark a chamar-lhe impostora duas vezes por dia. Não eram dias que ela quisesse muito recordar.
Mudaram Mark para o centro de reabilitação. Ficou desolado.
- Então, isto é o que “alta” significa. Este lugar ainda é pior do que onde eu estava. É apenas um hospital de mínima segurança. O que acontece se eu pagar a caução e fugir?
Na verdade, Dedham Glen era uma melhoria em relação ao Good Samaritan. Todo em tons pastel e de seixos do rio, o local poderia ter sido uma casa de repouso despretensiosa. Ele nunca mencionou reconhecer o local onde haviam internado a mãe no final da sua vida. Mark tinha o seu próprio quarto, os corredores eram mais animados, a comida melhor, e o pessoal mais capacitado do que no mais frio e esterilizado hospital.
O melhor de tudo era Barbara Gillespie, a auxiliar de enfermagem da ala onde Mark estava. Embora fosse nova no centro e tivesse seguramente quarenta anos, Barbara trabalhava com o zelo típico do trabalhador independente. Desde o início, ela e Mark relacionaram-se como se se conhecessem desde sempre. Barbara era sempre capaz de perceber, melhor até do que Karin, o que Mark estava a pedir, mesmo quando nem o próprio Mark o sabia. Barbara fazia a clínica de reabilitação parecer uma colónia de férias. Ela era tão encorajadora, que ambos os irmãos Schluter tentavam agradar-lhe fazendo-se mais saudáveis do que na realidade estavam. Em redor de Barbara, Karin dava por si a acreditar em curas completas. Mark apaixonou-se por ela no espaço de poucos dias e Karin não tardou a fazer o mesmo. Vivia para as conversas com a auxiliar, inventando pequenos problemas para ter desculpa para a consultar. Nos sonhos de Karin, ela e Barbara Gillespie eram tão íntimas como se fossem irmãs, consolando-se mutuamente em relação à lesão de Mark como se ambas o conhecessem desde a infância. Na vida real, Barbara era quase tão consoladora, preparando Karin para os obstáculos que ainda a esperavam.
Karin observava Barbara sempre que podia, tentando imitar a sua confiança, serenidade e graciosidade. Descreveu-a a Daniel uma noite na sua sombria cela de monge. Tentou não soar demasiado aduladora.
- Ela está sempre totalmente contigo durante uma conversa. Mais presente do que qualquer outra pessoa que alguma vez tenha conhecido. Nunca à frente ou atrás de si mesma. Não está concentrada no próximo doente ou no anterior. Onde quer que calhe estar, é aí que ela está. Eu estou sempre ou a desfazer as três coisas estúpidas que fiz ou a defender-me, a desviar-me das próximas três. Mas Barbara está simplesmente... centrada. Ali mesmo. Havias de vê-la em acção. É a enfermeira perfeita para Mark. Totalmente confortável com ele. Escuta todas as teorias dele, mesmo quando o que me apetece é enterrar-lhe a cabeça na almofada. Está mais à vontade e em casa na sua própria pele do que qualquer outra pessoa que eu já tivesse visto. Aposto contigo em como não há ninguém no mundo que ela preferisse ser.
Daniel colocou uma mão no antebraço dela, acautelando-a na escuridão. Recostou-se no delgado colchão estendido no chão de um quarto tão despido que as suas três plantas envasadas se assemelhavam a restos de uma liquidação total da natureza.
As poucas peças de mobiliário do seu apartamento do rés-do-chão eram todas recauchutadas. As estantes - recheadas de publicações do U.S Geological Survey, panfletos do Conservation Service e guias de campo - eram feitas de caixas de laranja empilhadas. A sua secretária de trabalho era uma antiga porta de carvalho recuperada de uma demolição e colocada sobre cavaletes. Até o frigorífico era um pequeno minibar renovado e comprado na Goodwill por dez dólares. Mantinha o apartamento a uns indistintos 15°C. É claro que ele tinha razão: a única forma de vida justificável. Mas ela já tinha planos para tornar o apartamento habitável.
- A mulher tem o seu próprio termómetro interno - continuou ela. - O seu próprio relógio atómico. A última pessoa na Terra que não está a ratear o seu tempo. Ela é tão regular. Tão tranquila. Uma bolha de atenção estável.
- Pelo que me contas, ela daria uma óptima observadora de pássaros.
- Mark nunca a irrita, mesmo quando está completamente fora dali. Nenhum dos residentes a enerva, e alguns são do mais arrepiante que possas imaginar. Não tem quaisquer expectativas sobre quem é que as pessoas supostamente devem ser. Ela apenas te vê a ti, vê quem quer que seja que esteja à sua frente.
- O que é que ela faz por ele?
- Oficialmente? É ela quem trata dos calendários, faz alguma da terapia, trata das necessidades diárias dele, vai ver como ele está cinco vezes por dia, controla a maluquice dele, limpa a porcaria que ele faz. É a pessoa mais mal aproveitada que eu conheço, incluindo eu. Não entendo como é que não é ela quem dirige a clínica.
- Se estivesse aos comandos daquilo, não poderia estar a tratar do teu irmão.
- Sim. - Um monossílabo sagaz e falso: copiando Daniel. O seu velho complexo de camaleão. Ser a pessoa com quem se está.
- O progresso na carreira pode ser uma coisa tóxica - comentou Daniel. - Uma pessoa devia fazer o que gosta, independentemente do estatuto que tal lhe possa conferir.
- Bom, isso descreve bem a Barbara, é certo. Ela apanha-lhe a roupa interior suja do chão como se estivesse a fazer ballet. - A mão de Daniel desenhava círculos circunspectos no braço dela. Ocorreu-lhe então: ele estava com ciúmes desta mulher, da descrição de Karin. A paciência era a sua vaidade secreta, algo que ele queria fazer melhor do que qualquer outra pessoa. - Ela senta-se e escuta o meu irmão, enquanto ele verbaliza aquelas bizarras ideias, como se tudo o que ele dissesse fosse completamente plausível. Como se o respeitasse sem margem para dúvidas. Depois limita-se a explorar coisas com ele, sem condescendências, até que ele perceba onde é que estava errado.
- Mmmm. Ela alguma vez esteve nos Escuteiros?
- Mas, não sei, ela parece-me, de algum modo, triste. Completamente estóica, mas triste. Não tem aliança de casamento, ou marca de alguma. Quem sabe? É tão estranho. Ela é, sem tirar nem pôr, quem eu tentei ser toda a minha vida. Daniel? Acreditas que a vida é regida por algum desígnio oculto?
Ele aparentou estar confuso. O homem vivia como um anacoreta e meditava quatro vezes por dia. Sacrificara a sua vida à protecção de um rio com dezenas de milhares de anos. Venerava a natureza. Colocara a própria Karin num pedestal desde a infância. Fosse qual fosse a bitola pela qual fosse medido, era a encarnação da fé. E ainda assim, a palavra desígnio deixava-o nervoso.
Ela prosseguiu.
- Não precisa de ser... Chama-lhe o que tu quiseres. Desde o acidente, tenho vindo a pensar: talvez estejamos todos em percursos invisíveis. Percursos que devemos seguir, sem sabermos. Caminhos que conduzem realmente a algum lado.
Retesou-se na cama. Os rápidos da respiração dele desembocavam em cascata sobre o peito dela.
- Não sei, K.S. Queres dizer que o acidente do teu irmão se destinava a levar-te a conhecer esta mulher?
- Não a mim. A ele. Sabes bem como a vida dele era, antes. Repara nos amigos dele, por amor de Deus. Barbara Gillespie é a primeira não-falhada por quem ele se interessa desde... - Virou-se para ficar de frente para ele, esticando o braço por cima do flanco dele. - Desde ti, sabes?
Ele estremeceu ao escutar o elogio desamparado. O laço da infância, quebrado com a puberdade. O Danny Riegel que Mark outrora amara não era este homem deitado a um palmo dela.
- Achas que este pode ser o... caminho dele? Que esta mulher chegou para o salvar dele mesmo?
Ela recolheu o braço.
- Não faças a coisa soar tão grosseira. - Pelo menos, não troçara dela, como outro homem teria feito. Porém, escutou-se a si mesma e ao quanto estava desesperada. Acabaria como a mãe, usando o volume das Escrituras Vivas como um artifício para realizar vaticínios.
- Esta mulher tem mesmo de ser destino? - perguntou Daniel. - Não poderá ser apenas alguma coisa boa na vida dele, para variar?
- Mas ele nunca a teria conhecido se não fosse o acidente. Daniel pôs-se de pé e caminhou até à janela, totalmente nu, absorto. Como uma criança rebelde. O frio do apartamento não o afectava. Testou a ideia. Ela adorava isso nele, a sua eterna disponibilidade para a testar.
- Não existe ninguém num caminho separado. Tudo se liga. A vida dele, a tua, a dela, a dos amigos dele... A minha. A de outros...
Observando-o a olhar pela janela para todos aqueles percursos emaranhados, pensou nos três conjuntos de marcas de pneus relacionados de que os agentes lhe haviam falado. Três que eles tinham visto e medido. Quantos condutores passaram por ali a grande velocidade, não deixando qualquer vestígio? Sentou-se na cama, cobrindo a nudez com o cobertor.
- És a pessoa mais mística que conheço. Estás sempre a proclamar uma essência viva que não podemos sequer... - Robert Karsh troçara dele impiedosamente. O Homem da Entidade. O Druida. O Gigante Verde Júnior. Karin juntara-se a ele - qualquer crueldade, para ser aceite.
Daniel falou para qualquer coisa do outro lado da janela.
- Um milhão de espécies a caminhar para a extinção. Não podemos ser muito picuinhas em relação aos nossos percursos pessoais.
As palavras repreenderam-na. Sentiu a bofetada.
- O meu irmão quase foi morto. Não sei o que lhe vai acontecer. Se voltará a ser capaz de trabalhar, se o seu cérebro, a sua personalidade... Não me invejes por necessitar de um pouco de fé para sobreviver a isto.
Em silhueta contra a janela, levou as mãos ao cimo da cabeça.
- Invejar? Meu Deus, não! - Regressou à cama. - Nunca. - Afagou-lhe o cabelo, contrito. - É claro que existem forças maiores do que nós.
Ela sentiu-o na sua mão acariciadora: forças tão grandes que os nossos percursos nada significam para elas.
- Amo-te - disse ele. Dez anos depois do facto e, no entanto, talvez ainda assim prematuramente. - Pareces-me tudo o que o ser humano tem de melhor. Nunca me pareceste mais correcta do que agora. - Frágil, queria ele dizer. Necessitada. Enganada.
Ela permitiu que o julgamento dele se mantivesse. Aninhou-se no seu estreito peito, tentando abafar as suas próprias palavras ao mesmo tempo que as pronunciava.
- Diz-me que algo de certo pode ainda resultar disto.
- E pode - afirmou ele. Qualquer crueldade, para ser aceite. - Se esta mulher puder ajudar Mark, então ela é o nosso caminho.
Daniel meditava: a sua versão de um plano. Ela tinha de abandonar o apartamento sempre que ele colocava as pernas na posição de lótus. Não temia incomodá-lo; ele ficava absorto assim que se concentrava na sua respiração. Apenas a incomodava vê-lo tão tranquilo e afastado. Sentia-se abandonada, como se todos os seus problemas com Mark fossem apenas impedimentos à transcendência de Daniel. Ele nunca ficava em transe durante mais de vinte minutos de cada vez, pelo menos pelo relógio dela. No entanto, para Karin tal ameaçava sempre tornar-se numa eternidade.
- O que pretendes obter da meditação? - inquiriu ela, tentando soar imparcial.
- Nada! Quero que me ajude a não querer nada.
Socou a bainha da saia.
- E o que faz isso por ti?
- Torna-me mais... um objecto para mim mesmo. Desidentificado. - Esfregou a bochecha e olhou de relance para cima. - Torna o meu interior mais transparente. Reduz a resistência. Liberta as minhas crenças, de modo a que cada ideia nova, cada nova mudança não seja como... como a minha morte.
- Pretendes que te torne mais fluido?
Acenou que sim com a cabeça, como se tivessem encontrado um ponto de concórdia. Ela achou a ideia quase hedionda. Mark tornara-se fluido. Ela não podia ser mais fluida do que o acidente de Mark agora a forçava a ser. O que ela queria - o que precisava de Daniel - era terra seca e firme.
O último grou desapareceu e Kearney regressou à sua vida. Os turistas que haviam vindo observá-los - o dobro dos que haviam visitado a cidade há apenas cinco anos - desapareceram com os migrantes. A cidade suspirou de alívio por não ter de voltar a impressionar senão dali a dez meses. Famosa cada Primavera, por uma coisa que na melhor das hipóteses odiava: estragava a auto-imagem de qualquer local.
Havia também outras aves que vinham na esteira dos grous. Onda atrás de onda, aves aos milhões passavam pela estreita cintura de uma ampulheta do tamanho de um continente. Aves que Karin Schluter vira desde a sua infância, mas nas quais nunca reparara: Daniel conhecia-as a todas pelo nome. Transportava consigo listas ordenadas alfabeticamente de todas as 446 espécies do Nebrasca - Anãs, Anthus, e Anser, Buteo, Branta, e Bucephala, Calidris, Catharus, Carduelis - cobertas de marcas a lápis e notas de campo indecifráveis e esborratadas.
Karin ia observar aves com ele, uma forma de se manter sã. Nas tardes em que Mark se enfurecia contra ela e precisava de se afastar, ela e o seu observador de aves iam para Noroeste até às dunas, para Nordeste até ao loess ou para Leste e Oeste ao longo dos braços entrecruzados do rio. Ela alternava entre o júbilo e a culpa por, a seu ver, abandonar o irmão, mesmo que por apenas uma tarde. Sentia-se como se tivesse dez anos e regressasse a casa de uma tarde de Verão a brincar às escondidas, apercebendo-se apenas depois de a mãe gritar consigo de que deixara o seu irmãozinho aninhado num bueiro de betão à espera de ser encontrado.
Só lá fora, no ar que começava a aquecer, é que Karin se deu conta do quanto estivera perto de sucumbir. Mais uma semana ali enfiada a tomar conta de Mark e teria começado a acreditar nas teorias dele em relação a ela. Ela e Daniel fizeram um piquenique perto das zonas baixas da saibreira a sudoeste da cidade. Acabara de morder uma fatia de pepino quando todo o seu corpo começou a tremer de forma tão violenta que nem conseguia engolir. Inclinou-se para baixo e tapou o rosto trémulo.
- Oh, meu Deus. O que seria de mim, aqui, com o que aconteceu a Mark, se não fosses tu?
Ele segurou-a pelos ombros e ergueu-a.
- Eu não fiz nada. Quem me dera que houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer. - Estendeu-lhe o seu lenço, o último homem na América do Norte que ainda assoava o nariz a lenços de pano.
Ela usou-o, fazendo barulhos horríveis, mas não se importando.
- Não consigo escapar a este lugar. Tentei-o, tantas vezes. Chicago. L.A. Até mesmo Boulder. Sempre que enceto uma tentativa, que tento passar por normal, este lugar arrasta-me de volta. Toda a minha vida sonhei com a auto-suficiência, algures longe daqui. Vê como cheguei longe! South Sioux.
- Toda a gente regressa a casa, em alguma altura da vida.
Tossiu uma gargalhada catarrosa.
- Acho que nunca cheguei realmente a partir! Estou presa num estúpido ciclo. - Varreu o céu com a mão. - Pior do que o raio das aves.
Ele até deu um pulo, mas perdoou-lhe.
Depois de almoço, fizeram novos avistamentos: rabirruivos, petinhas, uma solitária estrelinha-de-coroa-dourada, até mesmo um errante espécime macho de pica-pau de Lewis. A vegetação baixa proporcionava poucos locais de esconderijo. Daniel ensinou-a a ver sem ser vista.
- O truque é fazeres-te pequena. Reduz o teu campo sonoro ao interior do teu campo visual. Alarga a tua visão periférica; observa apenas o movimento. - Fê-la sentar-se quieta durante 15 minutos, depois quarenta, uma hora, apenas a observar, até que a sua coluna ameaçou rachar-se ao meio e ejectar uma outra criatura da sua casca fendida. Porém, a quietude era salutar, como a maior parte da dor. A sua concentração projectou-se. Precisava de abrandar, de se concentrar. Precisava de se sentar em silêncio com alguém por opção, não por lesão. O irmão continuava a recusar-se a reconhecê-la; a sua persistência acabara por se tornar verdadeiramente assustadora. Não conseguia conceber que este bizarro e instável sintoma se pudesse manifestar durante tanto tempo. Imóvel por uma hora, num montículo de erva que rebentava, no interior de uma bolha de silêncio selvagem, sentiu a sua impotência. À medida que se retraía e o mar de erva se expandia, apercebia-se da escala da vida - milhões de testes emaranhados, mais respostas do que perguntas e uma natureza tão abundantemente esbanjadora que nem uma experiência sequer tinha importância. A pradaria experimentaria todas as histórias. Cem mil casais de martinetes colocavam ovos em todo o lado, desde postes telefónicos em decomposição a chaminés fumegantes.
Uma praga de estorninhos rodopiava no céu, descendentes, Daniel afirmava, de uma mancheia de pássaros libertados no Central Park há um século por um fabricante de medicamentos que queria que a América tivesse todos os pássaros mencionados nas obras de Shakespeare. A natureza podia vender com prejuízo; compensava com a grande quantidade que produzia. Podia conjecturar inexoravelmente; e não tinha qualquer importância se quase todas as suposições estivessem erradas.
Daniel era igualmente extravagante. O homem que negava a si mesmo até duches quentes cumulara-a de atenções toda a tarde. Interpretou marcas e rastos para ela. Procurou um ninho de vespas para lhe mostrar, um excremento de coruja e um minúsculo crânio de toutinegra descolorado que nenhum joalheiro conseguiria reproduzir.
- Conheces aquele verso de Whitman? - perguntou ele. - “Depois de termos esgotado o que há nos negócios, na política, na sociabilidade e assim por diante, de termos descoberto que nenhum finalmente nos satisfaz, ou permanentemente se desgasta, o que resta? Resta a natureza.”
A intenção dele era reconfortá-la, mas a ela soou-lhe inflexível, indiscriminado, indiferente: muito semelhante ao que o seu irmão se tornara. Quando chegaram a casa no final do dia, Daniel estendeu-lhe uma caixa de camisa que andara no porta-bagagem do seu Duster de duas décadas durante todo o último mês. Ela supusera que fosse para si e que ele andara a ganhar coragem para lha dar. Abriu a frágil caixa, preparando já uma grande demonstração de gratidão para qualquer que fosse o item de história natural que ele descobrira para ela. A caixa abriu-se e ela era o espécime que lá se encontrava dentro. Cada bugiganga que ela alguma vez lhe dera. Sentaram-se no pedaço de terreno por trás do apartamento dele enquanto ela esquadrinhava o passado embalsamado. Bilhetes com os seus sarrabiscos miudinhos, escritos com canetas de cores que nunca poderiam ter sido suas, piadas da altura que agora nada significavam para ela e até tentativas não terminadas de escrever poesia. Pares de canhotos de filmes que não poderia ter visto com ele. Esboços da altura em que sabia desenhar. Um postal do seu revés em Boulder: “Bem sabia que deveria ter vendido as opções de acções no mês passado.” Uma pequena figura em plástico de Mary Jane, a grande paixão do Homem-Aranha. Karsh dera-lhe a figura, afirmando que era a imagem chapada dela. Karin dera-a depois a Daniel - zombaria estúpida - em vez de derreter aquilo até nada restar, como deveria ter feito.
Pelo que podia observar, nunca lhe dera nada de valor. Porém, ele guardara tudo. Até tinha o obituário da mãe dela que saíra no The Hub, recortado muito depois da altura em que seria legítimo e de esperar que a caixa já tivesse sido queimada. O desvelo dele era tão assustador quanto a distância de Mark. Olhou para esta cápsula espacial de coisas sem valor, horrorizada. Não era merecedora de preservação.
Daniel observou-a, ainda mais quieto do que quando observava aves.
- Achei que, caso te estivesses a sentir um pouco desenraizada, K.S., talvez gostasses... - Esticou a mão, dez anos aconchegados na palma desta. - Espero que isto não pareça obsessivo.
Ela agarrou na caixa, desanimada com aquela inútil acção de conservação, mas incapaz de o censurar. Todos os haveres pessoais dele cabiam em duas malas, e ele mantivera isto. Ela podia começar a dar-lhe coisas reais, presentes escolhidos de propósito para ele, coisas que não seria patético preservar. Ele bem que precisava de um casaco leve de meia-estação, por exemplo.
- Posso só... Deixas-me ficar com isto durante algum tempo? Preciso de... - Apertou a caixa e depois levou a mão à testa. - Continua a ser tudo teu. Quero apenas... - Ele pareceu satisfeito, mas ela estava demasiado abalada para ter a certeza.
- Podes ficar com ela - respondeu ele. - Fica com ela o tempo que quiseres. Mostra-a ao Mark, se quiseres.
“Nunca”, pensou. “Nunca.” Não a irmã que ela queria que ele reconhecesse.
Apesar da recusa de Mark em reconhecê-la, repreendia-a quando ela se afastava por uma tarde.
- Onde estiveste? Tiveste de te encontrar com os teus agentes, foi? A minha irmã nunca teria saído assim, sem dizer nada. A minha irmã é muito leal. Devias ter aprendido isso quando treinaste para a substituir. - As palavras enchiam-na de esperança, embora a desmoralizassem muito. - Diz-me uma coisa. Que raio estou ainda a fazer na reabilitação?
- Sofreste um acidente grave, Mark. Eles apenas se querem certificar de que estás cem por cento bom antes de te mandarem para casa.
- Eu estou cem por cento bem. Cento e dez por cento. Cento e quinze. Não te parece que eu serei a melhor pessoa para julgar isso? Porque haveriam eles de acreditar nos testes deles antes de acreditarem em mim?
- Estão apenas a ser cuidadosos.
- A minha irmã não me teria deixado aqui a apodrecer.
Ela começava a interrogar-se. Muito embora qualquer pequena mudança na sua rotina ainda o assustasse, Mark começava cada vez mais a parecer-se consigo mesmo. Falava de forma mais clara, confundindo menos palavras. Obtinha resultados mais elevados nos testes cognitivos. Era capaz de responder a mais perguntas sobre o seu passado, sobre coisas ocorridas antes do acidente. A medida que ele ia ficando mais racional, ela não resistiu à tentação de provar que era quem afirmava ser. Mencionava pormenores fortuitos, coisas que apenas um Schluter poderia saber. Vergá-lo-ia com senso comum, lógica inescapável. Uma cinzenta tarde de Abril, durante um passeio em redor do artificial logo dos patos de Dedham Glen, sob a chuva miudinha, ela mencionou o trabalho do pai como fazedor de chuva, pilotando a sua avioneta de pulverização de pesticidas convertida.
Mark abanou a cabeça.
- Onde raio é que ficaste a saber de tal coisa? Foi a Bonnie que te contou? O Rupp? Eles também acham estranho o quanto te pareces com a Karin. - O rosto dele carregou-se. Ela viu-o pensar: “Ela já deveria estar aqui por esta altura. Eles é que não lhe dizem onde eu estou.” Porém, ele era demasiado desconfiado para verbalizar tal pensamento.
O que significava ser familiar, se ele recusava qualquer parentesco? Ninguém se pode proclamar marido ou mulher de quem quer que seja, a menos que a outra pessoa concorde; vários anos com Karsh tinham-lhe ensinado isso. Não se era amigo de alguém por decreto, caso contrário estaria rodeada deles a apoiarem-na. Uma irmã não era diferente, excepto tecnicamente. Se ele nunca a reconhecesse como do mesmo sangue, que diferença fariam todas as suas objecções?
O pai deles tivera um irmão outrora. Luther Schluter. Souberam da existência dele da noite para o dia, quando Karin tinha apenas 13 anos e Mark quase nove. Cappy Schluter insistiu de repente em levá-los à encosta de uma montanha no Idaho, embora tal significasse perder uma semana inteira de aulas. Vamos visitar o vosso tio. Como se eles devessem ter suspeitado da existência de tal pessoa desde sempre.
Cappy Schluter arrastou os filhos através do Wyoming numa carrinha Rambler cor de vinho e de hortelã com Joan sentada no banco da frente. Nenhuma das crianças conseguia ler num carro em movimento sem vomitar e Cappy proibiu o rádio por causa das mensagens subliminares que manipulavam o ouvinte inconsciente. Por conseguinte, tinham apenas as histórias do pai sobre os jovens irmãos Schluter para os entreter ao longo de 1400 quilómetros da paisagem mais impiedosa da Terra. Conduziu-os de Ogallala até Broadwater com relatos sobre os dias da família nas dunas, primeiro como arrendatários ao abrigo do Kincaid Act, e depois, quando o Governo lhes arrancou as terras de debaixo dos pés, como rancheiros. De Broadwater até à fronteira do Wyoming entreteve-os com histórias sobre as habilidades para a caça do irmão mais velho: quatro dúzias de coelhos pregados à parede ocidental do celeiro, que alimentaram a família durante todo o Inverno de 1938.
Para a travessia do Wyoming, Cappy Schluter recorreu a pormenores sinistros sobre cada adversário que Luther Schluter derrotara a caminho do terceiro lugar no campeonato estatal de luta livre do Nebrasca.
- O vosso tio é um homem poderoso - repetiu, três vezes ao longo de um troço de três quilómetros. - Um homem poderoso capaz de encarar qualquer coisa. Viu três homens morrer antes de ter sequer idade para votar. O primeiro foi um colega de escola que se afogou no cereal enquanto os dois rapazes brincavam num silo. O segundo foi um antigo trabalhador do rancho ao qual rebentou um aneurisma enquanto faziam braço-de-ferro e soltou o último suspiro no braço de Luther. O terceiro foi o seu próprio pai, quando foram os dois salvar 14 cabeças de gado presas num nevão.
- O pai do tio Luther? - perguntou Mark do banco de trás. Karin fez-lhe sinal que se calasse, mas Cappy manteve-se sentado direito como uma vara, a sua postura de veterano da Guerra da Coreia, não escutando nada.
- Três homens antes de ter idade para votar, e uma mulher, não muito tempo depois. - Os miúdos permaneceram sentados no banco de trás, traumatizados. Durante grande parte da viagem, Mark retirou-se para um casulo contra a maçaneta da porta do seu lado e murmurou para o seu amigo secreto, Mr. Thurman. As centenas de quilómetros de murmúrios confidenciais entre rapaz e fantasma enfureciam Karin; ela não conseguia visualizar a sua melhor amiga de carne e osso, a dez horas de distância, quanto mais um amigo imaginário. Perto de Casper, já não parava de o censurar. A mãe começou a vigiá-los do banco da frente, primeiro com o mapa enrolado e depois com a edição de capa dura de Come Judgement. Cappy limitava-se a agarrar o volante e conduzir, aquela grotesca maçã-de-adão projectando-se da sua garganta, fazendo-o parecer uma garça-real. Por fim chegaram a casa do tio, um homem que, até há três semanas, não figurara sequer num retrato de família. Qualquer que tivesse sido o poder que este homem detivera, há muito que desaparecera. Este tio não teria resistido à aragem de uma porta de celeiro a bater. Luther Schluter, um reparador de fornalhas escondido num penhasco solitário perto de Idaho Falls, começou quase de imediato a declamar teorias ainda mais prolíficas do que o pai deles. Washington e Moscovo haviam planeado a Guerra-fria em conjunto para manter as populações de ambos os países na ordem. O mundo estava inundado de petróleo porque as multinacionais mantinham as torneiras abertas para benefício próprio. A Associação Médica Americana sabia que a televisão provocava cancro encefálico, mas mantinha a informação em segredo devido às possíveis repercussões. Como foi a viagem? O carro deu algum problema?
Sobre os anos de afastamento, Cappy e Luther nada disseram. Sentavam-se em lados opostos de um sofá maltrapilho frente ao fogão de pedras do rio da cabana de Luther construída à mão, um deles referindo um nome da sua infância no Nebrasca e o outro identificando-o. Luther contou ao sobrinho e à sobrinha histórias fantásticas sobre o jovem Cappy: como ganhara o golpe na cana do nariz ao deixar cair um pedregulho de granito que levantava sobre a cabeça numa aposta. Que fora casado com uma rapariga antes de Joan. Que cumprira pena devido a um mal-entendido envolvendo um camião de cereal de duas toneladas e 38 fardos de feno.
A cada história, o pai ficava mais estranho. O mais estranho de tudo fora o facto de, ao longo de tudo isto, Cappy Schluter se ter mantido sentado e suportado as recordações, temeroso deste pálido e trémulo velho. As crianças nunca haviam visto o seu pai tão intimidado por ninguém. A mãe também teve de engolir comentários do parente reabilitado que não teria tolerado nem de Satanás.
Partiram ao fim de dois dias. Luther deu a cada criança cinco dólares em prata e uma cópia do Manual de Campo de Sobrevivência ao Ar Livre para partilharem. Karin obrigou-o a prometer que iria ao Nebrasca, fingindo não compreender que o homem estaria morto dentro de quatro meses. Ao saírem, o novo tio de Karin segurou Cappy com duas garras.
- Ela fez o que fez. Nunca foi minha intenção desrespeitar a sua memória.
Cappy mal acenou com a cabeça.
- Eu piorei as coisas - contrapôs. Os dois homens apertaram a mão e despediram-se. Karin não se recordava de nada da viagem de regresso.
Tios vindos de nenhures e irmãos que desapareciam. No lago artificial de Dedham Glen, Karin sentiu a angústia de Mark. Estava a provocá-la ao não ser quem era. A amígdala dele, recordou-se ele. A amígdala não consegue comunicar com o córtex.
- Lembras-te do tio Luther? - perguntou ela puxando por ele, talvez injustamente.
Mark corcovou-se contra o vento no casaco de basebol e barrete de lã azul que começara a usar para esconder as cicatrizes sob o cabelo que voltava a crescer. Caminhava como se executasse acrobacias.
- Quanto a ti não sei, mas eu não tenho tios.
- Vá lá, Mark. Tu lembras-te daquela viagem. Um terço dos Estados Unidos, para visitar um homem sobre o qual nem se preocuparam em falar-nos. - Agarrou-lhe o braço com demasiada força - Tu lembras-te. Sentados no banco traseiro durante centenas de quilómetros, sem sequer parar para fazer chichi, tu e o teu amigo Mr. Thurman cavaqueando como se ambos...
Libertou o braço e estacou. Semicerrou os olhos e ajeitou o barrete.
- Não brinques com o interior da minha cabeça.
Ela pediu desculpa. Mark, abalado, pediu para voltar para dentro. Ela encaminhou-o na direcção do edifício. Mark subia e descia o fecho do casaco, a cabeça a cem à hora. Pareceu por um momento prestes a libertar-se, a conhecê-la. À porta do vestíbulo, murmurou:
- O que será que aconteceu a esse tipo?
- Morreu. Logo depois de termos regressado a casa. Foi esse o objectivo da visita.
Mark tropeçou, o rosto alterado.
- O quê?
- A sério. O pai e ele tinham tido uma zanga qualquer por causa da morte da mãe deles. Cappy votara o irmão ao ostracismo, por assim dizer... Mas assim que soube que Luther estava a morrer...
Mark resfolegou e com um aceno da mão rejeitou mais explicações.
- Não era esse. Esse nunca representou nada para mim. Refiro-me a Mr. Thurman.
Ela ficou de boca aberta, espantada.
Mark limitou-se a rir, em voz baixa e produzindo estalidos.
- Quero dizer, amigos imaginários: será que vão chatear outro miúdo doido quando nos fartamos deles? É verdade! - A cara dele contraiu-se, baralhado. - Quem é que te contou essa viagem? Contaram-ta toda mal.
Jack é o pai dessa pessoa, mas essa pessoa não é o filho de Jack.
Quem é essa pessoa? A pergunta não tem, obviamente, qualquer sentido para qualquer pessoa que pense duas vezes. Quem fez a pergunta é que deveria estar em reabilitação, não ele. Como haveria ele de saber de quem se tratava? Podia ser qualquer um. No entanto, continuam a fazer-lhe perguntas despropositadas como aquela, mesmo quando, educadamente, ele faz notar que talvez tudo aquilo seja assim um bocadinho disparatado. Hoje, o interrogador é uma mulher, acabadinha de sair da universidade em Lincoln, mais ou menos da idade de Mark. Não um cão, mas com um rosnar horrível, vomitando disparates como:
Uma rapariga entra numa loja para se candidatar a um emprego. Preenche os formulários necessários. O gerente da loja olha para os dados dela e diz: “Ontem recebemos um formulário de candidatura de alguém com o mesmo sobrenome que você, os mesmos pais e exactamente a mesma data de nascimento, até o ano.” “Sim”, explica a rapariga. “Foi a minha irmã.” “Ah, então, são gémeas”, conclui o gerente. “Não”, contradiz a rapariga “não somos.”
E Mark deverá descobrir o que raio elas são. Então... o quê? Uma delas é adoptada ou coisa assim?
Mas não, a universitária diz-lhe, com uma boca como duas minhocas enroladas na marmelada. Uma boquinha muito útil, talvez, numa emergência. Mas uma grande chatice naquele momento, com as suas perguntas com armadilha. Ela diz-lhe: duas raparigas como mesmo apelido, os mesmos pais, a mesma data de nascimento. Sim, são irmãs. Mas não, não são gémeas.
Mas são parecidas ou assim?
A Super Questionadora diz que isso não é importante.
É importante, assegura-lhe Mark. Está a dizer-me que se duas raparigas que têm de ser gémeas afirmam não o ser e não consegue perceber se estão ou não a mentir olhando para elas e vendo se parecem idênticas, isso não é importante?
Avancemos para a próxima pergunta, diz a Super Questionadora.
Eu tenho uma ideia melhor, contrapõe Mark. Vamos para aquela despensa e tratamos de nos conhecermos melhor.
Não me parece, dizem as minhocas. Mas contorcem-se um pouco. Porque não? Poderá ser agradável. Eu sou um tipo simpático.
Eu sei. Mas o nosso objectivo aqui é aprendermos mais coisas sobre si.
Ui, e que melhor maneira de aprender tudo o que quiser sobre mim?
Tentemos a próxima pergunta.
Então, está a dizer que se eu acertar a próxima pergunta...?
Bom, não foi isso que eu disse.
Deixe-me fazer-lhe a si uma pergunta sobre irmãs: Onde está a minha? Pode falar com as autoridades, por favor?
Mas ela não falará. Nem sequer lhe dirá a resposta à pergunta sobre as gémeas. Ao invés, diz-lhe que a contacte se entretanto resolver o enigma. Isso irrita-o solenemente. A pergunta é de tal modo tramada que o mantém acordado de noite. Pensa nela no seu pequeno quarto na Casa dos Aleijadinhos.
Fica ali deitado, na cama que fizeram para ele, pensando nas gémeas que afirmam não o ser, pensando em Karin, onde poderá estar, na verdade sobre o que lhe aconteceu, nos factos que ninguém mencionará. Os médicos dizem que ele tem uma síndrome. Os médicos devem estar de conluio.
Talvez seja alguma espécie de enigma sexual. Tipo: Quer conhecer a minha irmã? Coloca-o a Duane e Ruppie. Duane diz: Talvez tenha alguma coisa a ver com o Génesis Parto. Estás familiarizado com o Génesis Parto? Também conhecido como o fenómeno do nascimento virgem.
Rupp censura Cain. Andaste a comer vaca louca? Não tem resposta, declara Rupp. E ele é um tipo esperto. Se Rupp não consegue decifrar o enigma, então é indecifrável.
Talvez tenhas confundido a pergunta, sugere Duane. Existe um fenómeno chamado distorção. É como o jogo do telefone...
Tem lá calma, Senhor Cabeça de Batata, repreende-o Ruppie. Demasiada ingestão de mercúrio, não? Estás um bocadinho desorientado. O jogo do telefone! Jesus.
Eu tenho o Collapse no meu telemóvel, diz Mark. Costumava ser espectacular, mas alguém mexeu nas minhas configurações.
Escuta, prossegue Rupp. É lógica simples. Qual é a definição de gémeos? Duas pessoas nascidas dos mesmos pais e ao mesmo tempo.
Exactamente o que eu lhe disse, afirma Mark. Porque será que não te examinam a ti também?
Rupp fica aborrecido. De que te estás a queixar? Estás aqui na boa vida, meu. Empregada, refeições quentes. Televisão por cabo. Mulheres especializadas a tratarem-te do físico.
Podia ser pior, concorda Duane. Podias ser um daqueles terroristas afegãos em Guantanamo. Nenhum deles irá a lado nenhum tão cedo. E aquele americano que capturaram? O gajo estaria drogado, bêbado, doido, terá sido vítima de uma lavagem cerebral ou quê?
Mark abana a cabeça. O mundo está todo de pernas para o ar. Os terapeutas trabalham 24 horas para levar Mark a pensar que há alguma coisa de errado consigo. A falsa Karin tenta distraí-lo. Rupp e Duane estão tão perdidos quanto ele. A única pessoa em quem confia é na sua amiga Barbara.
Porém, ela trabalha para o inimigo, sendo apenas uma guarda subalterna nesta Sing Sing de segurança mínima.
Rupp está imerso em pensamentos. Talvez sejam dois bebés de um tubo de ensaio, aventa. As tais irmãs. Dois embriões diferentes, implantados...
Lembram-se das gémeas Schellenberger?, pergunta Duane, excitado. Alguém alguma vez foi para a cama com elas?
Rupp franze as sobrancelhas. É claro que alguém foi para a cama com elas, Einstein. Não te lembras que uma delas nem terminou último ano do liceu para ir parir?
Eu sabia que tinha alguma coisa a ver com sexo, afirma Mark. É impossível ter gémeos sem ter havido sexo primeiro, certo?
Referia-me a alguém de nós os três, queixa-se Duane.
Rupp abana a cabeça. Quem me dera que Barbara Gillespie tivesse uma irmã gémea. Consegues imaginar? Seria uma espécie de duas pelo preço de uma!
Duane uiva como um coiote. A tipa já é velha, meu.
E então? Isso só quer dizer que não terás de lhe ensinar nada. A mulher não deve ser fácil, só te digo. É preciso saber que há um enorme turbilhão por baixo daquelas águas paradas.
Ela tem de facto um andar fantástico. Se houvesse um Óscar para o andar, ela teria uma prateleira cheia de homúnculos carecas. Vocês os dois conhecem o conceito de homúnculo?
Então, Mark enraivece-se. Está aos gritos e não consegue impedi-lo. Saiam daqui. Não vos quero aqui.
Assusta-os. Os amigos - se é que são seus amigos - estão com medo dele. Não param de perguntar: O quê? O que é que nós fizemos? Que bicho te mordeu?
Deixem-me em paz. Tenho coisas para pensar e decidir.
Está de pé, a empurrá-los para fora do quarto enquanto eles argumentam e tentam chamá-lo à razão. Porém, ele está farto da razão. Estão os três aos gritos uns com os outros quando Barbara aparece do nada. Que se passa?, pergunta. E ele despeja o saco. Está farto de tudo. Farto de ser mantido neste tanque de retenção. Farto de mentiras, de toda a gente fingir que é tudo normalíssimo. Farto de perguntas com rasteiras e sem resposta e de as pessoas, ainda por cima, fazerem de conta que existe resposta.
Que perguntas?, quer saber Barbara. E só o som da voz dela, vindo daquela cara redonda, é o suficiente para o acalmar um pouco.
Duas irmãs, explica Mark. Nascidas ao mesmo tempo, dos mesmos pais. Mas dizem que não são gémeas.
Barbara senta-o e acaricia-lhe os ombros. Talvez sejam dois terços de trigémeos, sugere.
Rupp dá uma palmada na própria testa. Brilhante. A mulher é brilhante.
Duane acena as mãos no ar, pedindo a palavra. Sabem, eu estava a pensar em trigémeos. Logo desde o início. Mas não disse nada.
É claro que estavas. Estávamos todos a pensar em trigémeos. É óbvio. Enfrenta a verdade. És um idiota. Eu sou um idiota. Toda a raça humana é idiota.
Mark Schluter retesa-se sob o braço de Barbara, combatendo a raiva. Então, porque é que eu sou eu o único que está internado?
Dois dias depois, Barbara Gillespie aparece para o levar para um passeio.
Não preciso de pedir primeiro autorização ao meu agente de liberdade condicional?, pergunta ele.
Muito engraçado, responde ela. Este local não é assim tão mau e tu sabe-lo. Vem daí. Vamos até lá fora.
Lá fora não é exactamente um local de confiança. Muito mais selvagem do que antes do acidente. Dizem que é Abril, mas um Abril muito confuso, a fazer uma imitação muito boa de Janeiro. O vento atravessa-lhe o casaco e o seu crânio congela, mesmo por baixo do barrete. Agora tem sempre frio na cabeça. O cabelo demora uma eternidade a voltar a crescer; algo a ver com a alimentação daqui. Barbara empurra-o praticamente para fora do vestíbulo. Cuidado aí com o degrau, querido. Porém, uma vez lá fora, a única coisa que ela quer é sentar-se no banco perto do parque de estacionamento.
Muito bem, comenta ele. O ar livre. Dou-lhe cinco estrelas. Podemos voltar para dentro?
Mas Barbara mantém-no na rua, troçando. Dá-lhe o braço como se fossem um casal de idosos. O que por ele estaria bem. Numa emergência.
Mais cinco minutos, meu amigo. Nunca se sabe o que poderá aparecer e surpreender-nos, se esperarmos o tempo suficiente.
A quem o diz. Como este terrível acidente que eu aparentemente tive. Barbara aponta com o dedo, entusiasmada. Ora, ora, vejam bem quem aqui está!
Um carro encosta à berma do passeio, como que por acaso. Um Corolla inegavelmente fraco, com a enorme covinha na porta do passageiro. O carro da irmã. A sua irmã, por fim. Como a ressurgir dos mortos. Põe-se de pé de um pulo e começa a gritar.
Depois olha através do pára-brisas e estaca. Já não aguenta mais. Não é Karin, mas a agente nem um pouco secreta que a substituiu. Há um cão no banco do passageiro, colado ao vidro, esgravatando o cimo da janela para a fazer descer. Outro border collie, como o de Mark. A raça mais esperta que existe. O cão vê Mark através da janela e fica frenético para chegar até ele. Emerge pela porta no preciso instante em que Barbara a abre. Antes que Mark tenha tempo sequer de se mexer, o belo animal está em cima dele. De pé sobre as patas traseiras, o focinho apontado para o céu, soltando uns patéticos ganidos e uivos. Os cães são assim mesmo. Não existe um único ser humano no mundo merecedor das boas-vindas seja de que cão for.
A actriz Karin sai pela porta do condutor. Chora e ri ao mesmo tempo. Vejam bem, diz ela. Dir-se-ia que o cão pensava que nunca mais te voltaria a ver!
O cão dá pulos para o ar. Mark estica os braços para se defender do ataque. Barbara ampara-o. Olha só quem aqui está, diz Barbara. Olha bem quem estava mortinho por te ver. Inclina-se e aproxima a cara do cão. Sim, sim, sim, estão de novo juntos! O cão gane para Barbara - aquela ternura tresloucada própria de um border collie - e volta a atacar Mark.
Pára de lamber. Sai-me de cima da cara, sim? Alguém se importa de pôr uma trela nisto?
A irmã de faz-de-conta segura-se à porta do condutor, o seu rosto uma vela de aniversário encharcada. Dir-se-ia que ele lhe dera um murro na barriga ou assim. Começa a repreendê-lo outra vez. Mark! Olha para ela! Que outro animal na terra poderia amar-te assim?
A cadela começa a guinchar, confusa. Barbara avança na direcção da falsa Karin, chamando-lhe querida e dizendo: Está tudo bem. Não tem importância. Fez uma coisa boa. Podemos voltar a tentar mais tarde.
Mais tarde, o quê?, geme Mark. Tentar o quê? Que raio foi isto? Este cão está louco. Deve ter raiva ou coisa que o valha. Alguém que segure neste animal, antes que me morda.
Mark! Olha para ela! É a Blackie.
O cão da agente começa a latir, desorientado. Isso pelo menos o cão percebeu. Blackie? Devem estar a gozar comigo. Para baixo!
Talvez ele faça um movimento qualquer, como se pretendesse bater no cão, pois Barbara coloca-se entre Mark e o animal uivante. Pega no cão e acena à Karin de imitação como se estivesse na hora de se meter no carro.
Mark fica um pouco descontrolado. Devem achar que estou doido! Devem pensar que sou cego. Vai ser preciso bem mais do que isto para me enganar.
Barbara enfia o animal de volta no carro e Karin põe o ridículo motor de quatro cilindros a trabalhar. A infeliz cadela dá voltas no banco do passageiro, lamuriando-se e olhando para a dupla Karin. Mark amaldiçoa tudo o que se mexe. Não me chateiem mais. Não quero voltar a ver aquela coisa nunca mais.
Mais tarde, sozinho de novo, sente-se um pouco mal acerca do que aconteceu. Continua a incomodá-lo no dia seguinte, mesmo depois de ter dormido sobre o assunto. Quando Barbara vem ver como ele está, Mark diz-lhe. Não devia ter gritado com o cão. A culpa não foi do animal. Certos seres humanos estavam apenas a usá-lo.
Karin arrastou Daniel até North Line Road. Evitara o local do acidente durante dois meses, como se a pudesse magoar. Porém, precisava de compreender o que acontecera naquela noite. Quando por fim arranjou coragem para ver o local, resolveu ir protegida.
Daniel saiu da estrada onde Mark se terá despistado. As semanas que entretanto tinham passado haviam apagado a maior parte dos vestígios que a polícia mencionara. Vasculharam a valeta pouco profunda na berma sul da estrada, como se estivessem a tentar localizar um animal. Reduz o teu campo sonoro ao interior do teu campo visual. Rastejaram por cima da junca e outras ervas de Primavera, a tintureira, o cardo e a ervilhaca. A função da natureza era voltar a crescer, transformar o passado no presente.
Daniel encontrou um pedaço de solo coberto de vidro em pó invisível para qualquer outra pessoa que não fosse um naturalista. Os olhos de Karin adaptaram-se. Viu onde a carrinha terá permanecido durante horas, de cabeça para baixo. Voltaram à estrada, atravessaram para o lado norte e caminharam para Leste, em direcção ao local onde Mark perdera o controlo do veículo. A estrada estava deserta no meio da tarde durante a época do degelo. A superfície apresentava várias camadas de marcas. Karin não sabia identificar a idade de determinado rasto ou o que o fizera. Caminhou 200 metros em cada direcção, com Daniel no seu encalço. Os investigadores forenses deveriam ter passado aquele troço a pente fino, recriando aquela noite a partir de umas poucas medições ambíguas.
Daniel foi o primeiro a vislumbrá-las - um par de ténues marcas de queimadura a apontar para Oeste, tudo menos apagadas pelos elementos, que guinavam para a faixa que conduzia a Leste. Os olhos de Karin também as distinguiram; a violenta derrapagem desviava-se para a direita antes de guinar para o lado oposto, o mais aproximado de uma curva à esquerda que uma carrinha a alta velocidade conseguiria fazer. Caminhou ao longo da marca da derrapagem, cabeça inclinada, procurando qualquer coisa. Contra o extenso e baixo horizonte cinzento-baço, com o cabelo ruivo pendido, poderia bem passar por uma imigrante da Boémia, uma rapariga da lavoura, respigando. Girou sobre os calcanhares como um animal assustado, vacilando à medida que o acidente se desenrolava à sua frente. Quando Daniel chegou ao pé dela, estava ainda a tremer. Apontou para o chão, para um segundo conjunto de marcas de pneus a seus pés.
A segunda derrapagem tinha início trinta metros à frente da primeira. Outro veículo, vindo de Oeste, guinara para a faixa contrária, onde derrapara de traseira antes de conseguir regressar à sua faixa. Do início dos vestígios do resvalo do segundo carro, Karin olhou para Leste e para baixo na direcção da vala onde o irmão aterrara, o buraco pelo qual a sua própria solidez desapareceu.
Interpretou as marcas serpenteantes: o carro vindo da cidade, talvez encandeado pelos faróis de Mark, deverá ter perdido o controlo e guinado para a faixa contrária, mesmo à frente dele. Sobressaltado, Mark desviou-se para a direita e depois virou tudo para a esquerda, a única hipótese de sobreviver. A curva foi demasiado brusca e a sua carrinha saiu da estrada.
Ficou com a ponta do pé na marca do pneu, a tremer. Aproximou-se um carro; afastaram-se para a berma sul da estrada. Uma mulher da cidade com cerca de quarenta anos num Ford Explorer, com uma menina de dez anos no banco de trás, encostou para perguntar se estava tudo bem. Karin tentou sorrir e acenou que sim com a cabeça.
A Polícia mencionara um terceiro conjunto de rastos. Atravessou, com Daniel, para o lado norte da estrada. Lado a lado, caminharam de volta em direcção a Leste, como aves forrageiras. O olho experiente de Daniel descobriu mais uma vez as marcas invisíveis, um pedaço de solo esmagado e arenoso, dois vestígios ténues de rodas que não tinham ainda desaparecido com o degelo de Primavera. Karin agarrou o braço de Daniel.
- Devíamos ter trazido uma máquina fotográfica. Por alturas do Verão, cada uma destas marcas já terá desaparecido.
- A Polícia deve ter tirado fotografias.
- Não confio nas fotografias deles - retorquiu, soando tal e qual como o seu irmão. Ele tentou tranquilizá-la de forma carinhosa, coisa que ela rejeitou. Examinou as marcas. - Este carro devia vir atrás do de Mark. O acidente aconteceu mesmo à frente dos olhos de quem quer que viesse neste carro. Teve de sair da estrada aqui para se desviar. Por momentos, deve ter ficado lado a lado com ele, depois regressou à estrada e prosseguiu em direcção a Kearney. Deixaram-no tombado na berma. Nem sequer saíram do carro.
- Talvez se tenham apercebido da gravidade do acidente e tenham decidido que era melhor encontrar um telefone depressa.
Ela carregou o sobrolho.
- Na estação de serviço da Mobil na Second Street, do outro lado da cidade? - Examinou a estrada, desde a modesta elevação para Leste até ao pouco profundo declive na direcção de Kearney. - Quais serão as probabilidades? São cinco da tarde de um belo dia de Primavera e vê bem o tráfego desta estrada. Um carro a cada quatro minutos? Quais serão as probabilidades, depois da meia-noite, no final de Fevereiro...? - Observou Daniel, porém este não estava a fazer contas de cabeça. Tendo-lhe sido pedida uma resposta em número, Daniel devolveu apenas consolo. - Eu digo-te quais são as probabilidades - respondeu ela. - Alguém a guinar por acidente à tua frente numa estrada deserta de província? Zero. Mas há uma coisa que teria feito subir essas probabilidades.
Ele ficou a olhar para ela, como se outro Schluter tivesse acabado de ficar alucinado.
- Jogos de apostas - revelou. - A Polícia tinha razão.
O vento levantou-se, anunciando uma mudança de tempo naquele final de tarde. Daniel arqueou as costas, abanando a cabeça num semicírculo. Andara na escola com os três rapazes; conhecia as suas propensões. Não era difícil de imaginar: uma punitiva noite de Fevereiro, máquinas com demasiada potência, jovens na casa dos vinte anos num país viciado em emoções fortes, desportos, guerra e as suas muitas combinações.
- Que tipo de jogos? - Olhou para baixo, para o oleoso asfalto como se estivesse a meditar. De perfil, o rosto emoldurado pelo cabelo louro pelos ombros, assemelhava-se ainda mais a um arqueiro duende de um jogo de vídeo. Como é que conseguira crescer numa zona rural do Nebrasca sem que os amigos do irmão lhe tivessem feito a vida negra?
Agarrou-o pelo esquálido antebraço e arrastou-o estrada abaixo até ao carro.
- Daniel. - Abanou a cabeça. - Não saberias como jogar mesmo que te amarrassem a um carro de corridas tipo NASCAR e te pusessem um tijolo no acelerador.
Mark ainda coxeava e apresentava contusões no rosto, mas de resto parecia quase curado. Dois meses depois do acidente, qualquer estranho que conversasse com ele talvez o achasse um pouco lento e propenso a estranhas teorias, mas nada muito para além do que era costume num local como aquele. Apenas Karin tinha consciência do quanto ele estava despreparado para cuidar de si mesmo, quanto mais para cuidar do complexo equipamento industrial de embalamento. Os seus dias eram pautados por acessos de paranóia, surtos de prazer e raiva e explicações cada vez mais elaboradas.
Ela trabalhava incansavelmente para o proteger, ao mesmo tempo que ele a torturava.
- A minha irmã já me teria tirado deste lugar por esta altura. A minha irmã sempre me safou de todas as minhas trapalhadas. Esta é a maior trapalhada da minha vida. E tu não me livraste dela. Portanto, não podes ser minha irmã.
- O silogismo fazia uma espécie de sentido demente.
Já escutara esta mesma queixa vezes sem conta, porém, desta vez o copo transbordara e ela perdeu a paciência.
- Pára com isso, Mark. Já estou farta. Estás a fazê-lo sem razão nenhuma. Eu sei que estás a sofrer, mas isto de negares a realidade não está a ajudar em nada. Sou a tua irmã, sim, que raios, e provar-to-ei num tribunal se a isso me vir forçada. Por isso, pára de fazer este jogo comigo e vê se sais dessa. Agora.
Assim que as palavras saíram da sua boca, percebeu que fizera a sua causa regredir várias semanas. E o olhar que ele lhe lançou era o de uma criatura selvagem, encurralada. Parecia quase preparado para a atacar. Ela lera os artigos médicos: a taxa de comportamento violento em doentes com síndrome de Capgras estava bem acima da média. Para provar que o seu pai era um robô, um jovem portador da mesma síndrome, em Inglaterra, abrira o homem para expor os fios. Havia coisas piores do que ser-se apelidado de impostor.
- Esquece - apressou-se a corrigir. - Esquece que eu disse isso.
A expressão dele passou de feroz a desorientada.
- Isso mesmo - disse, um pouco vacilante. - Agora estamos a entender-nos.
Não estava preparado para enfrentar o mundo. Lutou para adiar a alta de Mark, e para manter os tipos das seguradoras ao largo. Manobrava o dr. Hayes, quase ao ponto de o namoriscar, para que ele fosse assinando a papelada necessária.
Porém, mesmo com uma excelente cobertura médica, Mark não poderia ficar em reabilitação por muito mais tempo. Karin, agora desempregada, estava a esgotar as suas poupanças. Começou a recorrer ao seguro de vida da mãe. Faz alguma coisa boa com isto.
- Não sei se isto é o tipo de coisa onde ela pretendia que o dinheiro fosse utilizado - queixou-se a Daniel. - Não é exactamente uma emergência. Não será para mudar o mundo.
- É claro que é uma boa coisa - garantiu-lhe Daniel. - E por favor não te preocupes com o dinheiro. - Quase demasiado educado para proferir a palavra. Lírios do campo, etc. A tranquilidade da confiança de Daniel quase a fez zangar-se. Porém, começou a deixá-lo pagar todas as despesas quotidianas - comida e gasolina - e, de cada vez que ele o fazia, ela sentia-se cada vez mais estranha. Mark, insistia ele, estaria mais ou menos recuperado mais semana menos semana. No entanto, o tempo e a paciência institucional começavam a esgotar-se. E o seu próprio sentido de competência desvanecia-se.
Daniel fazia o que podia para afastar a questão monetária, que a fazia entrar em pânico. Uma tarde, a propósito de nada, ele propôs:
- Podias vir trabalhar para o Refúgio.
- A fazer o quê? - perguntou, quase esperando que isto pudesse ser uma resposta.
Ele desviou o olhar, envergonhado.
- Auxiliar de escritório? Precisamos de um par de mãos competentes e simpáticas. Talvez possas fazer alguma angariação de fundos.
Tentou sorrir, agradecida. É claro: angariação de fundos. O âmago de cada descrição de funções do país, desde um aluno até ao presidente.
- Precisamos de pessoas que sejam capazes de fazer os outros sentirem-se bem com eles mesmos. A experiência que tens no relacionamento com clientes seria perfeita!
- Sim - disse ela, atenciosamente, dando a entender que ele era demasiado bondoso e que ela já dependia dele para demasiadas coisas. Em conjunto com o dinheiro da mãe, um pequeno rendimento fruto de um part-time poderia estabilizar as suas finanças. Porém, não podia abandonar a crença de que em breve Mark se recuperaria por completo e que ela poderia reclamar o seu próprio emprego - o que ela moldara, do nada.
Nenhum fundo de reserva que acumulasse poderia protelar as contas que enfrentaria se as seguradoras fechassem as torneiras. Quando a ansiedade acerca das dívidas e as consultas ao médico lhe levaram a melhor, Karin procurou Barbara Gillespie. Abordava a auxiliar tantas vezes para encorajamento que começava a temer que Barbara começasse a evitá-la. Contudo, a mulher tinha uma paciência sem limites. Escutava os receios de Karin e murmurava em jeito de compreensão ao escutar histórias sobre a burocracia médica:
- Aqui só para nós, isto é um negócio, tão comandado pelas leis do mercado quanto um negócio de venda de carros usados.
- Apenas não tão declarado. Pelo menos podemos confiar num vendedor de carros em segunda-mão.
- Nisso, estou de acordo - disse Barbara. - Não diga é nada ao meu chefe ou não tarda nada também eu estarei a vender excelentes veículos semi-novos.
- Nunca, Barbara. Eles precisam de si.
A auxiliar descartou o elogio com um aceno de mão.
- Toda a gente é substituível. - O mais pequeno movimento circular do seu pulso tinha algo de clássico, a competência urbana a que Karin aspirara durante 15 anos. - Estou apenas a fazer o meu trabalho.
- Mas para si não é apenas um trabalho. Eu observo-a. Ele põe-na à prova.
- Disparate. Você é que é aqui posta à prova.
Estas recusas graciosas apenas alimentavam a admiração de Karin. Sondou Barbara para descobrir na sua experiência profissional qualquer coisa que lhe desse esperança de progressos futuros. Barbara não falava sobre outros doentes. Concentrava-se em Mark, como se ele fosse a essência da sua experiência. Este extremo tacto frustrava Karin. Precisava de uma confidente do sexo feminino, alguém com quem pudesse exprimir o seu pesar. Alguém que lhe recordasse que ela era quem era. Alguém capaz de lhe assegurar que a sua persistência não era uma coisa estúpida.
No entanto, o profissionalismo de Barbara fazia-a dar a volta a todos os tópicos de modo a que voltassem a Mark.
- Quem me dera saber mais sobre as coisas por que realmente ele se interessa. Embalamento de carne. Personalização de veículos. Não são os meus tópicos mais fortes, receio. Mas as coisas de que ele fala... É uma surpresa por dia. Ontem queria a minha séria opinião sobre a guerra.
Karin sentiu uma pontada de ciúmes.
- Que guerra?
Barbara fez uma careta.
- A mais recente, na verdade. Está fascinado com o Afeganistão. Quantas pessoas que sofreram recentemente um trauma deste tipo é que prestam qualquer atenção ao mundo exterior?
- Mark? O Afeganistão?
- É um jovem extraordinariamente atento.
A frase, a sua firmeza seca, incriminou Karin.
- Gostaria que o tivesse conhecido... antes.
Barbara inclinou a cabeça para o lado, ao mesmo tempo preparada e reservada, a sua imagem de marca.
- Porque diz isso?
- Mark era um verdadeiro pratinho. Era capaz de ser incrivelmente sensível. Tinha os seus momentos de estouvadice, é claro, principalmente como forma de se vingar dos nossos pais. E andava sempre com as pessoas erradas. Mas era um rapaz muito gentil, meigo. Instintivamente bom.
- Mas ele é um rapaz gentil agora. O mais gentil de todos! Quando não está desorientado.
- Isto não é ele. Mark não era cruel ou imbecil. Não estava tão zangado a toda a hora.
- Está apenas assustado. Também deve estar. Eu estaria de rastos, se estivesse no seu lugar. - Karin queria fundir-se nesta mulher, entregar tudo, deixar que Barbara tomasse conta de si, da mesma forma que ela tentara tomar conta de Mark.
- Teria gostado dele. Preocupava-se com toda a gente.
- Mas eu gosto dele - asseverou Barbara. - Tal como ele é. - E as suas palavras encheram Karin de vergonha.
Em Maio, Karin estava já fora de si.
- Não estão a fazer nada por ele - queixou-se a Daniel.
- Mas tu dizes que trabalham com ele todo o dia.
- Terapia ocupacional. Coisas imbecis. Daniel, achas que deveria levá-lo para outro lado?
Ele encolheu os ombros. Para onde?
- Mas não disseste que essa tal Barbara era maravilhosa com ele?
- A Barbara, claro. Se fosse ela a médica dele, ele já estaria curado. É verdade que os terapeutas o puseram a atar os atacadores. Mas isso não serve de muito, pois não?
- Sempre ajuda um pouco.
- Pareces mesmo o dr. Hayes a falar. Como foi que aquele homem conseguiu o diploma é o que eu gostaria de saber. Recusa-se a fazer o que quer que seja. “Temos de ter paciência. Isto leva tempo.” Precisamos de fazer alguma coisa de concreto. Cirurgia. Medicamentos.
- Medicamentos? Queres dizer camuflar os sintomas?
- Achas que eu sou apenas um sintoma? A irmã impostora?
- Não é isso que estou a dizer - argumentou Daniel. E por um minuto, foi como se fossem estranhos.
Ela esticou as palmas das mãos, pedindo desculpa e defendendo-se, tudo ao mesmo tempo.
- Escuta. Por favor, não... Por favor, não me abandones nesta situação. Sinto-me tão impotente. Não fiz absolutamente nada por ele. - E à expressão de Daniel de absoluta incredulidade, ela respondeu: - A verdadeira irmã dele teria feito.
Tentando tornar-se útil, Daniel trouxe-lhe mais dois livros. Eram da autoria de um tal de Gerald Weber, aparentemente um afamado neurologista cognitivo de Nova Iorque. Daniel vira o nome do médico nas notícias devido a um muito antecipado novo livro prestes a ser publicado. Pediu desculpa por não o ter encontrado mais cedo. Karin examinou a fotografia do autor, um homem afável, grisalho, na casa dos cinquenta e que parecia um dramaturgo. Os olhos contemplativos olhavam fixamente um pouco ao lado das lentes. Pareciam localizá-la, já suspeitando da sua história.
Devorou os livros em três noites seguidas, pois capítulo a seguir a assombroso capítulo, não conseguia pousar o livro. Os livros do dr. Weber compilavam uma espécie de diário de bordo de cada estado em que a consciência podia entrar, e logo com as primeiras palavras ela sentiu o choque de descobrir um novo continente onde ninguém estivera. Os seus relatos revelavam a desconcertante plasticidade do cérebro e a interminável ignorância da neurologia. Escrevia num tom modesto e num estilo comum que colocava mais fé nas histórias individuais do que na vigente sabedoria médica. “Agora, mais do que nunca”, declarava em Mais Amplo do que o Céu, “em especial nesta era do diagnóstico digital, o bem-estar de todos depende menos do contar do que do escutar.” Ninguém a escutara ainda. E este homem sugeria que talvez valesse a pena ouvi-la.
O dr. Weber escrevia:
O espaço mental é mais vasto do que qualquer pessoa imagina. Os cem mil milhões de células de um único cérebro fazem milhares de ligações cada. A solidez e natureza destas ligações altera-se de cada vez que o uso as desencadeia. Qualquer cérebro se consegue colocar em mais estados sem igual do que o número de partículas elementares existentes no universo (...) Se perguntasse a um grupo aleatório de neurocientistas o quanto sabemos sobre o modo como o cérebro forma o eu, os melhores teriam de responder: “Quase nada.”
Numa sucessão de histórias de casos com os quais lidara, Weber mostrava a interminável surpresa envolta dentro da mais complexa estrutura no universo. Os livros encheram Karin de um fascínio que ela já nem se lembrava que era ainda capaz de sentir. Leu relatos sobre cérebros divididos que lutavam pelos seus absortos donos; sobre um homem que conseguia pronunciar frases, mas não repeti-las; sobre uma mulher que conseguia cheirar a cor roxa e escutar o cor-de-laranja. Muitas das histórias faziam com que se sentisse grata por Mark ter evitado todos os destinos piores do que Capgras. Porém, mesmo quando o dr. Weber escrevia sobre pessoas privadas de palavras, encurraladas no tempo ou presas em estados pré-mamíferos, parecia tratá-los a todos como se fossem um ente querido.
Pela primeira vez desde que Mark se sentara e falara, ela sentia um prudente optimismo. Não estava sozinha; metade da humanidade sofria parcialmente de danos cerebrais. Leu cada palavra de ambos os livros, as suas sinapses a mudar à medida que devorava as páginas. O autor soava como uma magistral inteligência futura. Não tinha a certeza sobre o caminho que o acidente de Mark traçava para si mesma. Mas, de alguma forma, sabia que este se cruzava com o deste homem.
Segundo os seus próprios relatos, o dr. Weber nunca visitara uma terra como aquela em que o seu irmão agora habitava. Karin sentou-se para lhe escrever, imitando conscientemente o seu estilo. Parecia-lhe a mais improvável das probabilidades conseguir, de alguma maneira, conquistar a atenção deste famoso investigador. Mas talvez conseguisse tornar precisamente a impetuosidade da síndrome de Capgras de Mark irresistível para um homem como o dr. Weber.
Escreveu, portanto, com poucas esperanças de que Gerald Weber lhe respondesse. Porém, já imaginava o que aconteceria se o improvável acontecesse. Veria em Mark uma história como estas que os seus livros descreviam. “As pessoas envolvidas nestas vidas alteradas diferem de nós apenas em grau. Cada um de nós habitou estas desconcertantes ilhas, ainda que apenas por breves momentos.” As probabilidades de ele ler sequer a carta eram também ínfimas. Contudo, os seus livros descreviam coisas bem mais estranhas como se fossem comuns.
- Estes livros são incríveis - disse ao seu amante. - O autor é fabuloso. Como é que o descobriste?
Estava novamente em dívida para com Daniel. Para além de tudo o resto, dera-lhe esta réstia de possibilidade. E ela, mais uma vez, não lhe dera nada. Porém, Daniel, como sempre, parecia não precisar de mais nada a não ser da oportunidade de dar. De todos os estranhos estados em que o cérebro se poderia encontrar e que este médico-escritor descrevia, nenhum era tão estranho como a atenção, o cuidado, a preocupação.
PARTE DOIS
MAS ESTA NOITE EM NORTH LINE ROAD
“Conheço um quadro tão evanescente que raramente é visto.”
Aldo Leopold, A Sand County Almanac
Mais rapidamente do que se haviam juntado, as únicas testemunhas desaparecem. Agrupam-se no rio durante algumas semanas, engordando; e depois vão-se embora. A um sinal invisível, o tapete desfia-se em meadas. Aves aos milhares cruzam os céus, levando a memória do Platte com elas. Meio milhão de grous dispersam-se pelo continente. Avançam para Norte, um estado ou mais por dia. As mais robustas cobrirão vários milhares de quilómetros, para além do milhar que as trouxe até este rio.
Grous que se acumulavam em densos grupos dispersam-se agora. Voam em famílias, companheiros de uma vida com a sua prole, um ou dois juvenis que tenham sobrevivido ao ano anterior. Encaminham-se para a tundra, turfeiras e pauis, uma origem recordada. Seguem marcos geográficos - cursos de água, montanhas, florestas —, locais marcados em anos anteriores num mapa dentro da cabeça do grou. Horas antes do início do mau tempo, param e descansam, predizendo tempestades ainda que delas não haja ainda indícios. Por volta de Maio encontram os locais de nidificação que deixaram no ano anterior.
A Primavera alastra pelo Árctico ao som do seu arcaico grulhar. Um casal que pernoitava na beira da estrada na noite do acidente, perto da carrinha capotada, dirige-se para uma remota extensão de área costeira do Alasca, em Kotzebue Sound. Um interruptor sazonal acciona-se no cérebro das aves à medida que se aproximam dos ninhos. Tornam-se ferozmente territoriais. Atacam até as espantadas crias, as mesmas que protegeram todo o caminho até aqui, repelindo-as com golpes de bico e batendo as asas.
O casal cinzento-azulado torna-se castanho, devido à oxidação nestas turfeiras. Cobrem-se de lama e folhas, uma camuflagem sazonal. O seu ninho é um outeiro de plantas e penas com cerca de um metro de largura, e rodeado por um fosso. Chamam-se um ao outro através das suas traqueias espiraladas, ressoando como trombones. Executam danças, fazendo frequentes vénias, pontapeando o ar frio e salino, curvando-se novamente, saltando do solo, girando, arqueando as asas, as gargantas inclinadas para trás num qualquer impulso algures entre a tensão e o prazer: a Primavera ritual na orla setentrional do ser.
Suponhamos que as aves registam, fixam como uma fotografia, os contornos do que têm sido. Este casal comemora o décimo quinto ano. Terão cinco mais. Por volta de Junho, dois novos ovos, com pintas cinzentas, seguir-se-ão a todos os pares já depositados neste ninho, um local que todos os anos anteriores tinham já gravado nas suas memórias.
O casal alterna-se, como sempre o têm feito, no cuidado da ninhada. Os dias setentrionais crescem até que, quando as crias saem dos ovos, a luz é já contínua. Emergem dois machos, já a andar e esfomeados. Os progenitores caçam à vez para as vorazes crias, alimentando-as constantemente - sementes e insectos, pequenos roedores, a encurralada energia sobresselente do Árctico.
Em Julho a cria mais nova sucumbe à fome, morta pelo apetite do irmão mais velho. Já aconteceu antes, na maior parte dos anos: uma vida iniciada com um fratricídio. Sozinha, a ave sobrevivente desenvolve-se rapidamente. Em dois meses está coberta de penas. À medida que os longos dias árcticos se encurtam, os seus pequenos testes de voo alongam-se. A geada começa a acumular-se no ninho da família durante a noite; gelo cobrindo as turfeiras como uma crosta. Por alturas do Outono, a jovem ave está pronta para substituir a despojada cria do ano passado na longa viagem de regresso ao território de Inverno.
Contudo, primeiro as aves mudam de penas, regressando ao cinzento inato. Algo acontece aos seus cérebros de final de Verão, e esta família isolada composta por três membros recupera um movimento mais abrangente. Perdem a necessidade que os levou a viver de forma isolada.
Alimentam-se com as outras aves, dormindo agrupadas à noite. Escutam famílias vizinhas passar por cima das suas cabeças, seguindo o grande funil do vale do rio Tanana. Um dia levantam voo e juntam-se a um V que se forma de moto próprio. Perdem-se na corrente em movimento. As correntes convergem em bandos, os bandos fundem-se em tapetes. Em pouco tempo, cinquenta mil aves por dia descem o sobressaltado vale, a pré-histórica deslocação de ar que provocam brilhante e ensurdecedora, um rio de grous com vários braços e da largura do céu, tributários que fluem durante dias.
Devem existir símbolos nas cabeças das aves, algo que diz outra vez. Percorrem um único e contínuo percurso circular de planícies, montanhas, tundra, montanhas, planícies, deserto, planícies. A um sinal imperceptível, estes bandos ascendem numa lenta espiral, grandes colunas de correntes de ar quente que, com um simples olhar para os progenitores, a nova ave aprende a subir.
Certa vez, há muito tempo, quando os grous se agrupavam para a migração de Outono, passaram por cima de uma menina aleúte que se encontrava sozinha num prado. As aves desceram sobre ela, bateram as asas em conjunto e ergueram a rapariga numa imensa nuvem rodopiante, ocultando-a, guinchando para abafar os seus pedidos de socorro. A rapariga elevou-se nessa espiralada coluna de ar e desapareceu no meio do bando que rumava a Sul. Por isso, os grous continuam a deslocar-se em círculo e a entoar chamamentos quando abandonam o Alasca todos os Outonos, revivendo aquela captura da filha dos humanos.
Muito tempo depois, Weber era ainda capaz de precisar o momento em que a síndrome de Capgras entrara na sua vida. Gravado a tinta na sua agenda: sexta-feira, 31 de Maio de 2002, 13h00, Cavanaugh, Union Square Café. As primeiras cópias de O País da Surpresa tinham acabado de sair da gráfica e o editor de Weber queria que ele fosse à cidade para celebrar a ocasião. Era o seu terceiro livro: a publicação já deixara de ser uma novidade. A esta altura da carreira de Gerald Weber, a viagem de comboio de duas horas desde Stony Brook era mais um dever do que uma emoção. Porém, Bob Cavanaugh estava ansioso que se encontrassem. Excitadíssimo, dissera o jovem editor. A Publishers Weekly descrevera o livro como “uma viagem louca pelo cérebro humano conduzida por um escritor judicioso no auge da sua carreira.”
Viagem louca não cairia nada bem nos círculos neurológicos, os mesmos que nunca lhe tinham perdoado o sucesso dos livros anteriores. E havia qualquer coisa naquela ideia de estar no auge da sua carreira que o deprimia. A partir daí, não havia outro caminho que não fosse descendente.
Weber arrastou-se até Manhattan, caminhando de Penn Station até Union Square a passo apressado o suficiente para dele retirar algum benefício cardiovascular. As sombras estavam todas mal: ainda desorientadoras, mais de oito meses passados. Um pedaço de céu onde não deveria haver nenhum. Weber não vinha aqui desde o início da Primavera, altura em que testemunhara o enervante espectáculo luminoso - dois enormes conjuntos de projectores a apontar para o céu, como qualquer coisa saída do capítulo do seu livro sobre membros espectrais. As imagens inflamavam-se nele de novo, as que se haviam lentamente extinguido ao longo de três quartos de um ano. Aquela impensável manhã era real; tudo o que acontecera desde então fora uma mentira narcoléptica. Caminhou rumo a Sul ao longo das ruas insuportavelmente normais, pensando que passaria muito bem sem voltar a ver esta cidade de novo.
Bob Cavanaugh cumprimentou-o no restaurante com um abraço apertado, que Weber tolerou. O editor tentava não deixar escapar uma risadinha.
- Eu disse-lhe que não era preciso aperaltar-se.
Weber esticou os braços.
- Não estou aperaltado.
- É mais forte do que você, não é? Devíamos mesmo fazer um livro cheio de fotografias de si a sépia, daqueles para colocar na mesa da sala. O elegante neurocientista. O Beau Brummell da pesquisa cerebral.
- Não sou assim tão mau. Sou mesmo assim tão mau?
- Não diria “mau”. Apenas deliciosamente... arcaico.
Durante o almoço, Cavanaugh mostrou-se o mais encantador que sabia ser. Falou-lhe sobre os livros mais recentes que estavam a causar sensação e pô-lo a par do sucesso de O País da Surpresa junto dos agentes europeus.
- De longe, o seu maior êxito, Gerald. Estou certo disso.
- Não há necessidade de estabelecer recordes, Bob.
Falaram um pouco mais sobre os últimos rumores da indústria e, enquanto tomavam um cappuccino inteiramente injustificado, Cavanaugh disse por fim:
- Muito bem, chega de mesuras. Mostre-me lá então a carta que tem escondida na manga.
Tinham-se passado 33 anos desde que Weber jogara a sua última mão de blackjack. Fora no primeiro ano de faculdade, em Columbus, a ensinar o jogo a Sylvie. O objectivo dela era jogar em troca de favores sexuais. Um bom jogo; ninguém saía a perder. Porém, com uma insuficiente profundidade estratégica para que o interesse deles se mantivesse durante muito tempo.
- Não estou a esconder nada de muito surpreendente, Bob. Quero escrever sobre a memória.
Cavanaugh animou-se.
- Sobre a doença de Alzheimer? Esse tipo de coisa? A população idosa. O declínio das capacidades. Um tema bastante actual.
- Não, o meu objectivo não é escrever sobre o esquecimento. Quero escrever sobre o recordar.
- Interessante. Fantástico, na verdade. Cinquenta e Duas Semanas para um Melhor... Não, espere. Quem é que tem esse tempo todo? E que tal Dez Dias para...
- Uma sinopse destinada aos leigos sobre a mais recente investigação. O que se passa no hipocampo.
- Ah! Estou a ver. Os pequenos símbolos de dólar nas minhas íris estão a desvanecer-se?
- Você é um bom tipo, Robert.
- Sou um tipo desprezível. Mas um editor espectacular. - Enquanto pegava na conta, Cavanaugh perguntou: - Pode ao menos incluir um capítulo sobre a potencialização da memória por meio de fármacos?
De volta a Penn Station, enquanto Weber esperava o comboio com destino a Stony Brook sob o quadro que indicava as partidas, um homem de colete de esqui azul já gasto e calças manchadas de gordura acenou-lhe, reconhecendo-o com satisfação.
Talvez tivesse sido um antigo paciente que ele entrevistara; Weber já não os reconhecia a todos. Muito provavelmente, tratava-se de um de muitos leitores que não compreendiam que a fotografia publicitária e a televisão eram um veículo de comunicação de um só sentido.
Viam o seu cabelo grisalho que começava a rarear, o brilho azul por trás dos óculos, a suave e avuncular semicúpula da sua cabeça e a barba grisalha e comprida - um cruzamento entre Charles Darwin e o Pai Natal - e cumprimentavam-no como se fosse o inofensivo avozinho de cada um.
O homem aproximou-se, alisando o untuoso colete, abanando a cabeça e tagarelando. Weber estava demasiado intrigado pelos tiques faciais para se afastar. As palavras saíram-lhe da boca numa torrente balbuciante:
- Olá. Estou muito contente por me cruzar consigo de novo. Lembra-se da nossa pequena aventura para Oeste, só nós os três? Aquela esclarecedora expedição? Escute, importava-se de fazer uma coisa por mim? Não, hoje não é dinheiro, obrigado. Estou bem de massas. Diga apenas à Angela que tudo o que aconteceu por lá foi de primeira ordem, excelente. Por mim, tudo bem, independentemente do que ela queira ser. Toda a gente está muito bem assim como é. Você sabe-lo. Estou certo? Diga-me: Estou certo?
- Está coberto de razão - respondeu Weber. Alguma forma de síndrome de Korsakoff. Confabulação: inventar histórias para colmatar pedaços de memória em falta. Subnutrição devido ao abuso de bebidas alcoólicas; o tecido da realidade reurdido por uma deficiência de vitamina B. Weber passou a viagem de duas horas até Stony Brook a escrevinhar notas sobre a possibilidade de os humanos serem as únicas criaturas capazes de ter memórias de coisas que nunca aconteceram.
Só que não fazia ideia a que se destinavam as notas que tomava. Sofria de alguma coisa, talvez da tristeza da consumação profissional. Durante muito tempo, mais do que merecera, soubera exactamente sobre o que pretendia e desejava escrever a seguir. Agora, tudo lhe parecia já ter sido escrito.
De volta a casa, Sylvie não regressara ainda da Wayfinders. Sentou-se ao computador para abrir a sua caixa de correio electrónico naquele misto de excitação e terror que advém de abrir a pasta de correio a receber ao fim de demasiado tempo. A última pessoa a norte da península do lucatão a ligar-se à Internet sufocava agora de morte sob a pressão da comunicação instantânea. Estremeceu ao ver o número de mensagens que recebera. Teria de passar o resto do serão a escavar o conteúdo da pasta. E, no entanto, a criança de dez anos dentro de si sentia ainda o arrebatamento de mergulhar no saco do correio daquele dia como se pudesse albergar um prémio de um concurso em que se esquecera que entrara.
Várias mensagens acenavam com a promessa de redimensionamento de qualquer das partes corporais de Weber para o tamanho que ele desejasse. Outras ofereciam medicamentos para tratar qualquer distúrbio possível e imaginário. Alteradores do humor e intensificadores da confiança. Valium, Xanax, Zyban, Cialis. O preço mais baixo de qualquer lugar do mundo. Para além disso, a sua quota-parte de vastas fortunas oferecidas por funcionários governamentais de nações turbulentas, aparentemente velhos amigos. Entre estas mensagens havia ainda dois convites para conferências e outro pedido de um conjunto de palestras em vários locais, uma espécie de digressão. Um correspondente ao qual Weber parara de responder meses antes enviava-lhe outra objecção relativamente à forma como tratara os sentimentos religiosos e o lobo temporal em Um Infinito de Mil e Trezentos Gramas. E, é claro, os habituais pedidos de ajuda, que ele reencaminhava para o Centro de Ciências da Saúde de Stony Brook.
Foi para aí que quase enviou a mensagem do Nebrasca, depois de ler a frase de abertura. Caro dr. Gerald Weber, o meu irmão sobreviveu recentemente a um terrível acidente de viação. Weber estava farto de terríveis acidentes. Explorara histórias de dor que chegassem para uma vida inteira. Com o tempo que lhe restava, queria regressar a uma descrição do cérebro em pleno florescimento.
Porém, a linha seguinte impediu-o de carregar no botão de reencaminhar. Desde que começou a falar novamente, o meu irmão tem-se recusado a reconhecer-me. Ele sabe que tem uma irmã. Sabe tudo sobre ela. Diz que ela é tal e qual como eu. Mas que eu não sou ela.
Capgras induzido por um acidente. Inacreditavelmente raro e imensamente ressonante. Uma espécie que ele nunca vira. Porém, já se deixara daquele tipo de etnografia.
Leu a curta mensagem de uma ponta à outra duas vezes. Imprimiu-a, lendo-a mais uma vez na página. Colocou-a de lado e trabalhou nas suas novas linhas gerais. Fazendo poucos progressos, deu uma vista de olhos nos cabeçalhos do dia. Agitado, levantou-se e foi à cozinha, onde retirou às colheradas várias centenas de calorias ilícitas directamente do recipiente de gelado orgânico. Regressou ao escritório e combateu o tempo numa nuvem de preocupação até Sylvie regressar a casa.
Síndrome de Capgras resultante de um traumatismo intracraniano: as probabilidades de tal acontecer eram inimagináveis. Um caso tão definitivo desafiava qualquer explicação psicológica da doença e punha em causa suposições básicas sobre o raciocínio e o reconhecimento. Rejeitar selectivamente um parente chegado, perante todas as evidências... Leu a carta mais uma vez, impelido pelo seu antigo vício. Outra oportunidade de ver de perto, através da lente mais rara imaginável, como a lógica da consciência era traiçoeira.
Sylvie chegou tarde. Entrou como se tivesse sido empurrada da rua, o seu suspiro de alívio fingido incapaz de disfarçar o extenuante e longo dia de trabalho que tivera.
- Olá! Cheguei! - cantarolou do vestíbulo. - Não há nada como a nossa casa. Onde é que eu pus o meu marido?
Estava na cozinha, andando de um lado para o outro, a mensagem impressa presa atrás das costas. Beijaram-se, um beijo mais subtil do que nos tempos de blackjack, um terço de século atrás. Mais histórico.
- O vínculo entre o casal - decretou Sylvie. Enterrou o nariz no esterno dele. - Nomeia uma invenção mais engenhosa.
- O rádio com relógio? - sugeriu Weber.
Ela empurrou-o e deu-lhe uma palmada no peito.
- Marido mau.
- E como é que vai o novo clube? - perguntou ele.
- Ainda um sonho. Devíamos ter mudado de instalações há anos.
Compararam o dia que cada um tivera. Ela estava ainda acelerada do seu. A Wayfinders prosperava, encontrando caminhos e soluções para uma variedade de clientes que nem mesmo Sylvie antecipara quando dera início a esta organização de encaminhamento e serviços sociais, há três anos. Depois de demasiado tempo a vaguear por empregos poucos satisfatórios, descobrira por fim uma vocação que nunca suspeitara que tivesse. Tendo o cuidado de não violar qualquer confidência profissional, delineou os pontos essenciais dos casos mais interessantes enquanto preparavam em conjunto um risotto de abóbora. Quando se sentaram para comer, Weber não se recordava ao certo de nenhuma das histórias dela.
Jantaram lado a lado, em bancos altos sobre o balcão da cozinha, onde tomavam as refeições juntos com uma felicidade quase ininterrupta desde há dez anos, quando a filha única saíra de casa para ir para a faculdade. Contou-lhe o almoço na cidade com Cavanaugh. Descreveu o doente de Korsakoff que vira em Penn Station. Esperou até estarem a lavar a louça para mencionar a mensagem de correio electrónico. Uma atitude insensata, na verdade. Estavam juntos há tanto tempo que qualquer tentativa de fingir um tom fortuito apenas fazia com que a coisa se tornasse mais fora do normal do que o previsto.
Ela suspeitou de imediato.
- Pensei que ias avançar para o livro sobre a memória. Que querias progredir para... - Ela parecia desanimada, ou talvez fosse ele que estivesse a projectar sentimentos.
Ergueu a mão que segurava o pano da louça antes que ela tivesse tempo de repetir todos os seus próprios argumentos mais recentes.
- Syl, tens razão. Na verdade, eu não deveria perder mais...
Ela olhou de soslaio para ele e ensaiou um esgar.
- Não é justo, Marido. Não se trata de eu ter ou não razão.
- Não. Não, isso é verdade. Tens toda a... Quero dizer... - Ela soltou uma gargalhada e abanou a cabeça. Ele colocou o pano da louça em redor do pescoço, um pugilista entre assaltos de um combate. - Trata-se daquilo com que tenho vindo a lutar nos últimos meses. O que deveria estar a fazer a seguir.
- Ora, por amor de Deus. Não é bem como se estivesses a recair num antigo vício de cocaína ou assim.
Ela lá saberia; trabalhara num centro de reabilitação em Brooklyn durante quase uma década antes de sair para se salvar a si mesma e fundar a Wayfinders. Ela lançou-lhe um olhar de confiança céptica, e ele sentiu-se como se sentira ao longo de todos os anos de altos e baixos: o imerecido beneficiário da sua compreensão de assistente social.
- Então, qual é a crise? Ninguém te está a prender a promessas públicas. Se isto é uma coisa que te interessa, onde é que está a culpa? - Inclinou-se para ele e tirou-lhe um bago de arroz da barba. - És só tu e eu, Marido. - Sorriu. - O público não precisa de saber que não te consegues decidir!
Ele suspirou e tirou a mensagem dobrada do bolso das calças ainda vincadas. Sacudiu o ofensivo documento com as unhas da mão direita para o abrir e estendeu-lho, como se a página o ilibasse de culpa.
- Capgras acidental. Consegues imaginar?
Ela limitou-se a sorrir.
- Então, quando é que te encontrarás com ele? Quando é que ele vem até cá?
- Pois, o problema está precisamente aí. Ele está um bocado mal tratado do acidente. E com problemas financeiros, segundo depreendi.
- Eles querem que tu vás lá? Não estou com isto a dizer... Fiquei apenas um pouco surpreendida.
- Bom, eu tenho mesmo de gastar a conta reservada a viagens. E para estudar uma coisa assim, vê-lo in situ é na verdade o melhor. Mas talvez tenhas razão.
Ela rugiu, exasperada.
- Marido! Já falámos sobre isto!
- A sério, não sei. Viajar meio continente para uma consulta pro bono? Estaria longe do laboratório. E viajar tornou-se num aborrecimento tão grande. Temos praticamente de nos despir antes de entrar no avião.
- Ei! O Director de Viagem não costuma tomar conta dessas coisas?
Ele estremeceu e acenou com a cabeça. Director de Viagem: tudo o que restava das suas educações religiosas.
- Com certeza. Só acho que talvez os meus dias de trabalho de campo tenham acabado. Preciso de me reconstituir, Syl. Só quero ficar em casa, escrever um inofensivo livro de jornalismo científico. Manter o laboratório em funcionamento, talvez velejar um pouco. O pacote completo da tranquilidade doméstica.
- O que apelidas de estratégia de saída dos 55 anos?
- Passar mais algum tempo com a esposa...
- A esposa tem-te negligenciado ultimamente, receio. Então, se é isso que queres, fica em casa! - Os olhos dela escarneceram dos dele. - Ah! Logo vi.
Ele abanou a cabeça, assombrado consigo mesmo. Ela esticou o braço e poliu a careca dele, o antigo ritual de boa-sorte que partilhavam.
- Sabes? - continuou ele. - Sempre achei que por esta altura da minha vida já teria conquistado um certo grau de autodomínio.
- “Muito do trabalho do cérebro consiste em esconder o seu trabalho de nós” - citou ela.
- Bonito. Não soa nada mal. De onde é?
- Logo te recordarás.
- Pessoas... - Massajou as fontes.
- Uma espécie muito interessante - concordou Sylvia. - Impossível viver com elas, impossível vivissectá-las. Então, o que há de especial com essas pessoas que te fez ficar novamente viciado? - A sua função, convencê-lo a fazer o que ele já decidira fazer.
- Um homem que reconhece a irmã, mas que não confia nesse reconhecimento. Aparentemente, à parte isso, é racional e não apresenta complicações cognitivas.
Ela assobiou, espantada, mesmo depois de uma vida inteira a escutar as histórias dele.
- Soa-me a uma missão para o Sigmund.
- Pois, é o que parece. Mas ao mesmo tempo é também o resultado claro de uma lesão. É isso que torna a história tão fantástica. É o tipo de caso “ou nenhum ou ambos” que poderá servir de árbitro entre dois paradigmas da mente muito diferentes.
- É é algo que gostarias de ver antes de morrer?
- Ah! Não poderias exprimir isso de forma mesmo terminal? A irmã do paciente tem conhecimento do meu trabalho. Não está segura de que os médicos dele tenham compreendido totalmente o caso.
- Há neurologistas no Nebrasca, não há?
- Se se depararam sequer com a síndrome de Capgras fora dos manuais médicos, terá sido como uma característica da esquizofrenia ou de Alzheimer. - Retirou o pano da louça do pescoço e limpou os dois copos de vinho. - A irmã pede a minha ajuda. - Sylvie observou-o: Essas pessoas são precisamente aquelas das quais juraras manter-te afastado. - Seja como for, as síndromes de identificação errónea poderão revelar muita coisa sobre a memória.
- Como assim? - Ele sempre adorara a forma como ela dizia aquilo.
- Na síndrome de Capgras, a pessoa acredita que os seus entes queridos foram trocados por robôs, duplos ou alienígenas. Identificam correctamente todas as restantes pessoas. O rosto dos familiares mais chegados desencadeia uma memória, mas nenhum sentimento. A falta de ratificação emocional sobrepõe-se à formação racional da memória.
Ou, posto de outra forma: a razão inventa explicações elaboradas e desarrazoadas para explicar um défice de emoção. A lógica depende do sentimento.
Ela soltou uma risada abafada.
- Notícia de última hora: cientistas do sexo masculino confirmam o manifestamente óbvio. Portanto, Marido, faz uma viagem. Vai ver o mundo. Nada te prende.
- Não te importarias que eu fosse até lá? Só por uns dias?
- Bem sabes que agora ando cheia de trabalho. Para mim também seria uma oportunidade de pôr algumas coisas em dia. Na verdade, acho que terei de te dar uma tampa nos planos de ficarmos a ver um filme esta noite. Preciso de preparar a avaliação de uma criança infectada pelo VIH para amanhã.
- Não pensarás mal de mim se eu... recair?
Ela levantou os olhos do lava-louças vazio, surpreendida.
- Oh, meu pobre Marido. Recair? Este é o teu chamamento. É o que tu fazes.
Beijaram-se mais uma vez. Espantoso que o gesto ainda comunicasse tanto, ao fim de três décadas. Segurou uma mecha do seu cabelo castanho-escuro e passou os lábios pela testa dela. O cabelo de Sylvie estava mais fino do que nos tempos de faculdade, quando se tinham conhecido. Era penetrantemente bela nessa altura. Mas para ele era mais encantadora agora, por fim em paz consigo mesma. Mais encantadora porque começava a ficar grisalha.
Ela olhou para ele, curiosa. Sincera.
- Obrigado - disse ele. - Agora só me falta sobreviver ao raio da segurança do aeroporto...
- Deixa isso com o Director de Viagem. É o que ele faz de melhor.
Weber referia-se a eles por nomes ficcionais. Quando os pormenores de uma vida ameaçavam a privacidade de alguém, ele substituí-os por outros. Por vezes criava o relato completo de um caso com um composto de várias pessoas que estudara. Era a habitual prática profissional, para protecção de todos os envolvidos.
Certa vez descrevera uma mulher, bem conhecida dos manuais. Em Um Infinito de Mil e Trezentos Gramas, chamara-lhe “Sarah M.”
Uma lesão extra-estriada bilateral na zona temporal média provocara-lhe acinetopsia, uma rara e quase completa incapacidade de percepção do movimento. O mundo de Sarah ficara sob uma perpétua luz estroboscópica. Não era capaz de ver as coisas a mover-se. A vida desenrolava-se à sua frente numa série de imagens paradas, ligadas apenas por espectrais rastos de movimento.
Ela lavava-se, vestia-se e comia em lapsos temporais. Um movimento da cabeça desencadeava uma série de diapositivos circulares. Era incapaz de servir um café; o líquido pendia do bico da cafeteira em sincelos e de um momento parado para o outro a mesa enchia-se de lagos congelados de café. O gato de estimação aterrorizava-a, desaparecendo e materializando-se noutro local. A televisão apunhalava-lhe os olhos. Uma ave em voo provocava buracos de bala na vidraça do céu.
Como é óbvio, Sarah M. não podia conduzir, não podia estar no meio de multidões, não podia sequer atravessar a estrada. Permanecia na beira do passeio da pacata cidade onde vivia, paralisada, o filme parado, como que encravado. Um camião à distância poderia ceifá-la no preciso instante em que colocasse o pé na berma. Imagens paradas acumulavam-se umas em cima das outras - rastos cubistas, bissectantes e incoerentes. Veículos e pessoas e objectos reapareciam ao acaso.
Até o seu próprio corpo não passava de uma série de poses fixas sequenciais, uma partida de um jogo das estátuas. E no entanto, o mais estranho de tudo: Sarah M. era uma das raras pessoas capaz de percepcionar uma espécie de verdade sobre a visão, oculta do olho comum, normal. Se a visão depende de um discreto clarão dos neurónios, então o movimento contínuo não existe, por mais rápidos que sejam os movimentos de ligado e desligado, excepto por um qualquer truque de serenamento mental.
O seu cérebro era como o de qualquer pessoa, excepto ao perder este último truque. O nome dela não era Sarah. Poderia ter sido qualquer um. Estava lá, na mente estroboscópica de Weber, quando ele avançou para a manga do avião no aeroporto de LaGuardia, e desaparecera quando deu por si, nessa mesma tarde, mesmo no centro da pradaria, sem qualquer transição a não ser um salto na acção.
Ficou num motel mesmo à beira da estrada interestadual. O MotoRest - escolheu-o pelo seu cartaz: BEM-VINDOS AMANTES DOS GROUS. A total estranheza de tudo aquilo: Parece-me que já não estamos em Nova Iorque. Ele e Sylvie tinham deixado o Midwest em 1970 sem nunca olharem para trás. Agora a ondeante vastidão do seu património parecia-lhe tão alienígena como as fotografias de Marte enviadas pela Sojourner. À porta da agência de aluguer de viaturas do aeroporto de Lincoln, entrara em pânico por um momento, dando por si sem passaporte ou moeda local.
Uma vez no interior do vestíbulo do MotoRest, poderia estar em qualquer lugar. Pittsburgh, Santa Fé, Adis Abeba: os reconfortantes tons pastel que quem viaja por todo o mundo encontra tipicamente. Já estivera sobre a mesma carpete acastanhada frente ao mesmo balcão de recepção azul-esverdeado inúmeras vezes. Uma dúzia de maçãs reluzentes embelezavam um cesto na ponta do balcão, todas do mesmo tamanho e formato. Reais ou decorativas, não o saberia dizer até enterrar uma unha numa.
Enquanto a recepcionista processava os dados do seu cartão de crédito, Weber folheou as pilhas de folhetos turísticos. Estavam todos carregados de aves de crista encarnada. Montanhas de aves: não se assemelhava a nada que alguma vez tivesse presenciado.
- Onde é que eu poderei ver isto? - perguntou à funcionária. Ela fez um ar embaraçado, como se o cartão dele tivesse sido rejeitado.
- Já partiram há dois meses. Por esta altura, já devem estar bem a norte. Mas se pretende vê-las, é só ficar mais algum tempo. Regressarão. - Estendeu-lhe o cartão em conjunto com a chave, também em forma de cartão. Subiu a um quarto que fazia de conta que nunca fora habitado por ninguém, um quarto que prometia desaparecer, sem deixar rasto, no instante em que Weber abandonasse o motel.
Cada superfície horizontal do quarto exibia mensagens cartonadas. Os funcionários do motel davam-lhe pessoalmente as boas-vindas, oferecendo-lhe uma vasta gama de bens e serviços. Um rectângulo de cartão na casa de banho informava-o de que, caso fosse do seu interesse salvar a Terra, deveria deixar a toalha pendurada no toalheiro, e, caso não fosse, que a deixasse no chão. As mensagens haviam sido colocadas de fresco naquela manhã e seriam substituídas depois da sua partida. Milhares como elas, de Seattle a Sampetersburgo.
Poderia estar em qualquer quarto de hotel em qualquer local, excepto pelas fotografias de grous sobre a cabeceira da cama.
Falara com Karin Schluter antes de sair de Nova Iorque. Ela soara-lhe extraordinariamente equilibrada e informada. Porém, quando ela lhe telefonou da recepção, meia hora depois de ter chegado ao quarto, era uma pessoa diferente. Pareceu-lhe tímida, nervosa em relação ao convite dele de que subisse até ao quarto. Estava claramente na altura de actualizar a sua fotografia publicitária. A coisa perfeita para arreliar Sylvie, quando ele lhe telefonou nessa noite.
Desceu então ao vestíbulo para conhecer o único parente próximo da vítima. Era uma mulher de trinta e poucos anos, vestida com umas calças castanho-amareladas e blusa de algodão cor-de-rosa, o que Sylvie apelidava de roupas universais de passaporte. O fato escuro de Weber - a sua habitual roupa de viagem - sobressaltou-a e deixou-a a pedir desculpa com os olhos antes mesmo de conseguir cumprimentá-lo. O cabelo liso cor-de-cobre - a sua única característica mais marcante - pendia-lhe livremente até ao fundo das omoplatas. Essa espectacular moldura desviava a atenção do seu rosto que, com alguma generosidade, poderia ser descrito como fresco. O seu corpo, decididamente alimentado a milho, avançava de forma prematura para o imponente. Uma saudável mulher do Midwest que talvez tivesse feito corrida de barreiras na faculdade. Enquanto ele a observava, ela endireitou-se inconscientemente. Porém, quando se levantou e caminhou na direcção dele, de mão estendida, lançou-lhe um valente sorriso de lado, totalmente meritório de ajuda.
Cumprimentaram-se com um aperto de mãos, Karin Schluter agradecendo-lhe demasiado profusamente, como se ele já tivesse curado o seu irmão. Só a visão do médico parecera o suficiente para a animar. Quando ele declinou a gratidão dela, Karin disse:
- Trouxe alguns documentos. - Sentou-se num sofá ao lado da lareira falsa do vestíbulo e abriu um dossiê na mesa em frente: três meses de notas manuscritas em conjunto com cópias de tudo o que o hospital e o centro de reabilitação lhe haviam dado. Entrelaçando os dedos, começou a contar a história do seu irmão.
Weber estava sentado ao lado dela. Ao fim de um momento, ele tocou-lhe no punho.
- Talvez devêssemos informar o dr. Hayes da minha chegada, antes de qualquer outra coisa. Sabe se ele recebeu a minha carta?
- Falei com ele esta manhã. Ele sabe que já cá está. Disse-me que, se quiser, poderá visitar o meu irmão esta tarde. Tenho as notas dele algures. - Os papéis e documentos espalhados frente a Weber, um roteiro para um novo planeta. Obrigou-se a ignorar o dossiê e a escutar a versão de Karin Schluter. Ao longo de três livros sucessivos, arvorara-se defensor de uma ideia: os factos são apenas uma pequena parte da história de qualquer caso. O que importava era o contar dessa história.
Karin disse:
- O meu irmão Mark aceita que houve um acidente, mas não se recorda dele. A sua mente é um grande vazio. Não se recorda de nada 12 horas antes de a carrinha ter capotado.
Weber alisou a barba grisalha.
- Sim, isso pode acontecer. — Vinte anos, e quase que a dominava, a arte de dizer às pessoas que outras tinham já passado pelo mesmo antes delas, sem com isso lhes negar o direito a sofrer a sua tragédia privada. - Soa-me a uma coisa apelidada de amnésia retrógrada. É a lei de Ribot: as memórias mais antigas são mais resilientes do que as mais recentes. O novo perece frente ao antigo.
Os lábios dela espelhavam os dele enquanto falava, esforçando-se por se manter a par. Esticou a palma de uma das mãos sobre a pilha de papéis.
- Amnésia? Mas a memória dele está óptima. Ele sabe quem toda a gente é. Lembra-se de tudo sobre a... irmã dele. Ele apenas se recusa a... - Puxou os lábios contra os dentes e inclinou a cabeça. Os cabelos ruivos espalharam-se por cima dos papéis. Weber era incapaz de imaginar o que uma tal recusa lhe provocava.
- Quer dizer que ele fala sem dificuldade. E soa-lhe diferente?
Ela examinou o ar.
- Mais lento. Mark foi sempre um falante rápido.
- Costuma procurar palavras? Notou alguma diferença no vocabulário dele?
O sorriso assimétrico dela regressou.
- Refere-se a afasia? - Pronunciou mal a palavra. Weber acenou com a cabeça. - O vocabulário nunca foi o forte dele.
Ele fez uma tentativa.
- É a pessoa mais próxima do seu irmão? - Um pré-requisito de Capgras. - Sempre foi?
O pescoço dela deu um sacão para trás, na defensiva.
- Somos o único familiar que resta a cada um de nós. Tentei tomar conta dele, desde sempre. Sou alguns anos mais velha do que ele, mas... Tentei sempre estar por perto, até ter mesmo de me afastar, para manter a minha sanidade. O Mark não está propriamente talhado para este mundo. Sempre dependeu de mim, em parte. Ele e eu passámos por alguns estranhos percalços familiares. - Desconcertada, desviou o olhar para o dossiê. Retirou duas folhas. Virou a cabeça, perscrutando as linhas, os lábios movendo-se de novo. - Veja. É isto que não pára de me causar estranheza. Quando foi trazido para as urgências depois do acidente estava consciente. Não estava sequer... Aqui: Escala de Coma de Glasgow. Não estava sequer na área de perigo. Deixaram-me vê-lo naquela noite, apenas por um minuto. Nessa altura, ele reconheceu-me. Tentou falar comigo. Eu sei que sim. Mas como vê há este pico mais tarde nessa manhã. A pressão intracraniana sobe abruptamente.
Ela bem que podia estar a estudar para se tornar enfermeira. Ele afagou a barba por baixo. Ao longo dos anos, o gesto conseguira acalmar quase toda a gente.
- Sim, isso pode acontecer. O crânio é um volume fixo. Se o inchaço retardado faz o cérebro expandir-se, poderá ser pior do que o impacto original.
- Sim, claro, eu li sobre isso. Mas os médicos dele não deveriam ter monitorizado isso mesmo? Se entendi bem, nas primeiras horas, deveriam ter...
Weber olhou em redor do vestíbulo do MotoRest. Fora um disparate conversar com ela aqui. Ela mostrara-se tão comedida ao telefone. Em pessoa apresentava todas as complicações associadas à necessidade de que Weber quisera afastar-se. Porém, síndrome de Capgras resultante de um acidente: um fenómeno que poderia coroar ou fazer ruir qualquer teoria sobre a consciência. Algo que valia a pena investigar.
- Karin? Falámos sobre isto. Não sou um advogado. Sou um cientista. Prezo o seu convite para vir falar com o seu irmão, mas não estou aqui para avaliar as acções de ninguém.
Ela susteve a respiração. A sua face ruborizou-se. Puxou pelo colarinho da camisa e depois juntou o cabelo e prendeu-o como se fosse um novelo de corda.
- Sim, claro. Peço desculpa. Achei que... Talvez seja melhor levá-lo a ver Mark.
O Centro de Reabilitação e Cuidados de Enfermagem de Dedham Glen pareceu a Weber um liceu suburbano de elite. Cor-de-pêssego, um único piso, modular - algo em que não repararíamos a não ser que um ente querido ali estivesse internado.
- Não ficará aqui durante muito mais tempo - informou Karin. - A terapia tem feito maravilhas, mas a cobertura do seguro está a chegar ao limite e ele está doidinho por ir para casa. Já praticamente recuperou a força muscular. Já se veste e toma banho sozinho, relaciona-se e conversa sem problemas com as pessoas, na maioria das vezes fazendo sentido. Comparado com o que era há algumas semanas, está praticamente normal. Excepto no que me diz respeito.
Levou o carro até aos espaços reservados a visitas perto da entrada.
- Pusemos aqui a nossa mãe, quando ela adoeceu. Faleceu cinco semanas e meia depois. Achei que preferia morrer a pôr aqui também o meu irmão, mas não havia outra solução.
- Acha que ele a considera responsável por isso? - Um hábito antigo: explorar mecanismos psicológicos.
Ela voltou a corar, a pele instantaneamente da cor do tornassol. Apontou para uma janela panorâmica na esquina do edifício. Um rapaz de estatura média, magro, de 27 anos, camisola de algodão preta e um gorro de lã azul-bebé estava junto à janela com um ar absorto, a mão encostada ao vidro.
- Poderá colocar-lhe essa pergunta daqui a um instante.
Mark Schluter encontrou-se com as suas visitas a meio caminho do corredor da enfermaria.
Caminhava como se usasse muletas, pressionando uma mão contra a coxa direita. O rosto exibia ainda cicatrizes meio curadas. Em redor do pescoço, o revelador colar de uma traqueotomia. As calças de ganga pretas estavam grandes e a camisola de algodão e manga comprida - demasiado quente para Junho - pendia-lhe dos ombros, tapando os dedos das mãos.
A camisola exibia um cão a jogar às cartas e a beber cerveja a dizer: Que Raio Sei Eu? Tufos de cabelo emergiam por baixo da aba do gorro. Balançou-se corredor abaixo, fazendo de conta que era um pêndulo. Deteve-se frente a Karin.
- É este o tipo que me vai tirar deste buraco?
As mãos de Karin estenderam-se. O cabelo desprendeu-se.
- Mark, eu disse-te que o dr. Weber vinha hoje. Não podias ter vestido uma camisola decente?
- É a minha preferida.
- Não é a mais apropriada para falar com um médico.
Ele ergueu um braço e apontou para ela.
- Não mandas em mim. Nem sequer sei de onde vieste. Os malditos terroristas árabes podem muito bem ter-te largado aqui de pára-quedas; as forças especiais, quem sabe. - A tempestade desvaneceu-se com a mesma rapidez com que surgira. A indignação desfez-se em suspiros. Sorriu ironicamente para Weber. - Trabalha para o FBI ou assim? - Esticou um dedo e deu um piparote na gravata castanho-avermelhada de Weber. - Já falei com vocês.
Karin estava mortificada.
- É apenas um fato, Mark. Ages como se nunca tivesses visto um fato antes.
- Lamento. Ele parece mesmo “um bófia”. - Desenhou umas aspas no ar com os dedos.
- É um neuropsicólogo. E um escritor famoso.
- Neurologista cognitivo - corrigiu Weber.
Mark Schluter balançou sobre os calcanhares e soltou umas gargalhadas mormacentas.
- E o que é isso? Uma espécie de psiquiatra? - Weber abanou a cabeça. - Um psiquiatra. Então, supostamente, quem é você?
Weber inclinou a cabeça.
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer: já sei quem esta senhora pensa que é. E você?
Karin suspirou.
- Já falámos sobre isto ontem, Mark. O doutor quer apenas falar contigo. Vamos até ao teu quarto para conversarmos.
Mark deu uma volta em redor dela.
- Já te avisei uma vez. Também não és minha mãe. - Voltou de novo a sua atenção para Weber. - Peço desculpa. Isto é penoso para mim. Ela tem estas ideias. É difícil de explicar. - Porém, quando Karin começou a avançar pelo corredor, ele foi a coxear atrás dela, como um cachorrinho pela trela.
O quarto era uma versão modesta do de Weber no MotoRest embora bastante mais dispendioso. Cama, cómoda, secretária, televisor, mesa de café, duas cadeiras. Um par de postais a desejar-lhe rápidas melhoras em cores garridas enfeitavam a cómoda. Ao lado encontrava-se um antigo macaco de peluche ao qual faltava um olho de botão. Sobre a secretária estava uma mini-aparelhagem rodeada por uma pilha de CD e uma revista de automóveis, que exibia demasiados cromados na capa, continuava envolta na sua cobertura plástica. Weber ligou discretamente o gravador digital que trazia no bolso. Podia pedir permissão mais tarde.
- Belo quarto - comentou.
Mark franziu as sobrancelhas e olhou em redor.
- Bom, não fiz grande coisa com ele, mas também não ficarei aqui durante muito mais tempo. Mais depressa pegava fogo a este local do que me mudaria para cá.
- Que tipo de lugar é este? - perguntou Weber.
Mark olhou-o pelo canto do olho.
- Não lhe parece óbvio? - Karin sentou-se aos pés da cama, o cabelo como uma capa em redor dos ombros. O irmão ocupou uma cadeira, batendo com os ténis no chão e apreciando o barulho. Fez sinal a Weber para que se sentasse na cadeira à sua frente. Weber agachou-se na direcção da almofada. Mark deu umas risadinhas. - É suposto fazer o papel de velho ou assim?
- Não é o meu tópico preferido. Afinal, que nome exactamente é que dão a este lugar?
- Bom, doutor - Mark inclinou a cabeça. Olhou na direcção dele com as sobrancelhas franzidas e murmurou: - Algumas pessoas desta zona chamam-lhe Dead Man's Glands.
Weber pestanejou e Mark riu com gosto. Karin desesperava aos pés da cama, alisando as calças.
- Há quanto tempo está aqui?
Mark lançou um olhar ansioso na direcção da cama. Karin evitou olhar para ele, olhando ao invés para Weber. Mark clareou a garganta.
- Eu digo-lhe. Praticamente desde sempre.
- Sabe porque se encontra aqui?
- Quer dizer porque estou aqui e não em casa? Ou porque estou aqui e não morto? A mesma resposta para ambas as perguntas. - Mark esticou a camisola e inclinou-se para a frente. - Leia o que diz a camisola. - O cão a jogar às cartas e a beber, perguntando Que Raio Sei Eu?
- Não é preciso armares um espectáculo para o doutor, Mark.
- Ei! E que te importa isso? Tu é que me queres aqui.
Weber perguntou:
- E o que fazem aqui por si?
O rapaz-homem ficou contemplativo. Afagou o queixo nu. Podiam muito bem estar a falar de política ou de religião.
- Bem, o doutor sabe o que isto é. É um... você sabe: uma casa de repouso. Para onde nos levam quando estamos maltratados e não temos utilidade para ninguém.
- E o Mark foi maltratado?
Virou o rosto para ele, resfolegando.
- Coloquemos a coisa desta forma: os médicos afirmam que não estou exactamente como era antes.
- Acha que eles têm razão?
Mark encolheu os ombros. Foi acometido por um espasmo. Com uma das mãos puxou o gorro na direcção das sobrancelhas e impeliu a outra para a frente.
- Pergunte-lhe a ela. Está sempre a dizer-lhes como eu era antes.
Karin levou os dedos às têmporas e pôs-se de pé.
- Com licença - disse, retirando-se aos tropeções.
Weber persistiu.
- Teve um acidente?
Mark considerou a pergunta: uma de muitas possibilidades. Afundou-se ainda mais na cadeira, batendo com a ponta do pé no chão à sua frente.
- Bem, a minha carrinha capotou. Ficou sem conserto. Pelo menos é o que me dizem. Não é que me tenham mostrado qualquer prova do que quer que seja. As provas não são o forte deles aqui.
- Lamento.
- A sério? - Sentou-se direito e inclinou-se novamente para a frente. - Uma espectacular Dodge Ram de 84, cor de cereja. Bloco do motor reconstruído. Veio de transmissão modificado. Totalmente remodelada, ia adorá-la.
Soava como um típico homem americano de vinte e tal anos de qualquer dos grandes estados com pouca densidade populacional. Weber apontou o dedo na direcção do corredor.
- Fale-me sobre ela.
Mark coçou a cabeça por cima do gorro.
- Bom, meu amigo... Sabe? As coisas ficam muito complicadas, muito depressa.
- Vejo que sim.
- Ela acha que, se fizer uma imitação perfeita, eu a confundo com a minha irmã.
- E não o é?
Mark estalou a língua e abanou o dedo indicador no ar, um limpa-vidros atarracado, cor-de-rosa.
- Nem sequer chega perto! Está bem, concedo que se parece muito com Karin, mas existem algumas diferenças óbvias. A minha irmã é como... um piquenique do Dia do Trabalhador. Este é apenas um almoço de negócios. Está a perceber, sempre com os olhos no relógio. A minha irmã faz uma pessoa sentir-se segura. Descontraída. Esta é totalmente artificial. Para além disso, a Karin é mais pesada. Uma espécie de selha, na verdade. Esta mulher é quase sensual.
- E soa-lhe de alguma forma...?
- E também lhe alteraram um pouco o rosto. Percebe o que estou a dizer? As expressões dela, ou assim. A minha irmã ri-se das minhas piadas. Esta está sempre assustada. Chorosa. É como se tivesse um gatilho de pouca pressão, entende? É muito, muito fácil fazê-la perder a compostura. - Abanou a cabeça. Algo silencioso e extenso o perpassou. - Semelhante. Muito semelhante. Mas com diferenças abismais.
Weber brincou com as antigas armações dos óculos. Acariciou o topo da cabeça, que começava a ficar calva. Mark passou inconscientemente os dedos pelo gorro.
- É ela a única? - perguntou Weber. Mark ficou a olhar para ele. - Quero dizer, há mais alguém que não pareça ser quem é?
- Meu Deus, você é que é o médico, certo? Deveria saber que ninguém é “o que parece”. - Arqueou as costas, espreitando por entre as aspas que com os dedos desenhou ao lado das orelhas. - Mas eu entendo o que quer dizer. Tenho um amigo, o Rupp. Aquele sacana e eu fazemos tudo juntos. Alguma coisa de esquisito aconteceu com ele também. A falsa Karin deve-o ter sujeitado a uma lavagem cerebral ou assim. E trocaram o meu cão. Dá para acreditar numa coisa assim? Uma espectacular border collie, preta e branca com uma mancha dourada em redor dos ombros. Que raio de pessoa destrambelhada haveria de...? - Parou de jogar hóquei com os dedos dos pés. Deixou a mão tombar sobre o colo e inclinou-se para a frente. - Às vezes mais parece um filme de terror. Não consigo perceber o que está a acontecer. - Os olhos dele encheram-se de um medo animal, pronto para pedir ajuda até a este estranho.
- Esta mulher sabe coisas que apenas a sua irmã saberia?
- Bem, sabe, ela poderia ter sabido dessas coisas em qualquer lado. - Mark contorceu-se na almofada da cadeira, os punhos junto ao rosto, como um feto a defender-se dos primeiros golpes do mundo. - Precisamente quando eu mais preciso da minha irmã verdadeira, tenho de engolir esta imitação.
- Porque acha que isto está a acontecer?
Mark endireitou-se e olhou Weber nos olhos.
- É uma pergunta muito boa. A melhor que escuto desde há muito tempo. - Cravou os olhos no vazio. - Deve ter alguma coisa a ver com... aquilo de que estava a falar. - Por um minuto, ficou absorto, debatendo-se com alguma coisa demasiado grande para si. Depois regressou. - Eu digo-lhe o que penso. Alguma coisa me sucedeu depois... do que quer que seja que tenha acontecido. - Estendeu a palma da mão, sem sequer olhar para Weber. - A minha irmã... a minha irmã verdadeira... e o Rupp talvez tenham levado a Ram algures para onde eu não fosse capaz de a ver. Para onde não me perturbasse. Depois arranjaram esta outra mulher que se parece com a Karin para que eu não notasse que ela desaparecera. - Olhou para Weber, esperançoso.
Weber empinou um ombro.
- E há quanto tempo é que ela desapareceu? - Mark lançou ambas as mãos por cima da cabeça e depois desceu-as ao longo do peito.
- Desde que esta outra chegou. - O rosto dele toldou-se de pesar. - Ela não está em casa. Já tentei telefonar para lá. E parece-me que o sítio para onde trabalhava a despediu.
- O que acha que a sua irmã andará a fazer?
- Bem, nem sei. Talvez tenha ido mandar consertar a carrinha, como eu disse? Talvez não queira ficar contactável até a carrinha estar pronta. Para me fazer uma surpresa...
- Durante tantos meses?
Mark enrolou o lábio sarcasticamente.
- Alguma vez consertou uma carrinha? Demora o seu tempo, sabe? Para a pôr como nova.
- A sua irmã sabe arranjar carrinhas?
Mark resfolegou.
- O Papa é católico? Ela provavelmente era capaz de desmontar aquela porcaria de carro japonês de quatro cilindros que conduz e juntar de novo as peças de modo a torná-lo um carro mais ou menos decente, se quisesse.
- Que tipo de carro é que a outra mulher conduz?
- Ah! - Mark olhou de soslaio para Weber, recusando render-se. - Reparou. Sim, ela tem sido bastante cuidadosa na imitação de todos os pormenores. É isso que torna isto tudo tão assustador.
- Recorda-se de alguma coisa sobre o acidente?
A cabeça de Mark girou num semicírculo, encurralado.
- Doutor, vamos só relaxar e reagrupar-nos por um minuto, está bem?
- Claro. É uma boa ideia. - Weber recostou-se na cadeira e cruzou as mãos por trás da cabeça.
Mark observou-o de boca aberta. Aos poucos, o queixo foi subindo e soltou um riso abafado.
- A sério? Você existe? - Uma série de ruídos surdos e repetitivos soltaram-se da sua boca, o riso de alguém preso na puberdade. Esticou as pernas e cruzou também as mãos atrás da cabeça, como uma criança a imitar o pai. - Assim, sim! Isto é que é a boa vida. - Sorriu e piscou o olho a Weber. - Ouviu que a Antárctida se está a derreter?
- Ouvi qualquer coisa desse género - respondeu Weber. - Leu isso no jornal?
- Não. Na televisão. Os jornais hoje em dia estão demasiado cheios de teorias da conspiração. - Após um momento, ficou novamente inquieto. - Escute. Você é psiquiatra. Deixe-me perguntar-lhe uma coisa. Seria assim muito fácil para uma actriz mesmo boa...
Karin regressou, desconcertada por ver os dois estirados nas cadeiras como se estivessem num cruzeiro. Mark sentou-se como que impulsionado por uma mola.
- Falai no diabo. A escutar às portas. Já devia sabê-lo. - Virou a cabeça para Weber. - Quer beber alguma coisa? Uma cervejinha gelada, ou assim?
- Deixam-no ter cervejas aqui?
- Ah! Apanhei-o! Há ali uma máquina de bebidas, com Coca-Cola.
- E que tal se fizéssemos uns quebra-cabeças primeiro?
- Sempre é melhor do que não fazer nada.
Mark parecia ansioso por jogar. Os quebra-cabeças eram cronometrados. Weber pediu a Mark que eliminasse linhas espalhadas numa folha de papel. Mostrou a Mark um cartão e pediu-lhe que desenhasse um círculo em redor do maior número de objectos que encontrasse cujos nomes começassem com a letra O.
- Posso fazer um círculo em redor disto tudo e chamar-lhe “obnóxio”?
Weber pediu-lhe que traçasse percursos num mapa de ruas, seguindo direcções simples. Pediu-lhe que dissesse o nome de todos os animais de duas pernas de que se lembrasse. Mark esfregou a cabeça, enfurecido.
- Muito astucioso da sua parte. Ao colocar o desafio dessa forma, obriga-me a pensar apenas nos de quatro patas.
Weber colocou Mark a riscar todos os numerais de uma folha de papel cheia de letras. Quando Weber deu o tempo por terminado, Mark lançou o lápis para o outro lado da sala, desgostoso, quase acertando em Karin, que se encolheu contra uma parede.
- Chama a isto jogos? São mais marados do que as coisas que os terapeutas me obrigam a fazer.
- Como assim? - quis saber Weber.
- Aqui, veja isto. Vê como pôs tudo muito pequenino? Tentando deliberadamente confundir-me. E repare neste “três”. Parece, sem tirar nem pôr, um B maiúsculo. B de burro. Depois tenta distrair-me ao dizer que apenas me restam dois minutos. - Retorceu os lábios e fechou os olhos para conter a humidade. Weber tocou-lhe no ombro.
- Quer tentar outro? Tenho aqui um com formas...
- Faça-os o doutor. Você é um homem culto. Tenho a certeza de que conseguirá resolvê-los sozinho. - Girou a cabeça, abriu a boca e gemeu.
Convocada pelo som, uma mulher surgiu à porta do quarto. Usava uma saia plissada castanho-avermelhada e uma blusa de seda creme. Weber ficou com a sensação de já a ter visto noutras funções - no aeroporto, na agência de aluguer de viaturas ou na recepção do motel. Uma mulher de quarenta anos, de aparência jovem, constituição média, cerca de um metro e setenta, maçãs do rosto redondas, olhar curioso e cauteloso, cabelo preto até aos ombros: o tipo de rosto que imitava uma pequena celebridade. A mulher pareceu também reconhecer Weber por breves instantes. Não era de estranhar: o seu rosto corria o mundo. Pessoas que nada sabiam acerca da investigação sobre o cérebro recordavam-se por vezes dele de programas de televisão ou de revistas. Porém, com a mesma velocidade que reparou, desviou também o olhar. Empertigou uma sobrancelha para Karin, que ficou radiante.
- Oh, Barbara! Mesmo a tempo, como sempre.
- Alguma dificuldade aqui? - A voz dela era seca, um pouco auto-escarnecedora. Ao escutar o som da voz da sua auxiliar, a tortuosa raiva de Mark desvaneceu-se. Sentou-se direito, radiante. A auxiliar devolveu-lhe o sorriso alegre. - Problemas, amigo?
- Eu não tenho problemas! Este tipo é que está cheio deles.
Barbara concentrou-se em Weber. Observou-o, o seu rosto uma máscara de enfermeira, os lábios um pouco apertados.
- Uma nova admissão?
- O homem é um poço de problemas - gritou Mark. - Veja bem os jogos dele, se quiser ficar destrambelhada.
A mulher caminhou na direcção dele e esticou o braço. Estupidamente, Weber estendeu-lhe a sua bateria de testes como se ela fosse o presidente de uma comissão de avaliação de sujeitos humanos. Ela estudou os documentos. Folheou as páginas e depois olhou-o nos olhos.
- Quanto é que as respostas valem para si? - Olhou de relance para Mark, a sua audiência, que por esta altura sorria de orelha a orelha de satisfação.
Weber ficou grato por ela ter quebrado o gelo. Karin fez as necessárias apresentações. Barbara Gillespie devolveu os testes a Weber, um pouco envergonhada.
- Pergunte-lhe qualquer coisa, doutor. Ela é a única pessoa de confiança por estas bandas. A melhor coisa que actualmente tenho do meu lado.
Barbara avançou na direcção de Mark, abanando a cabeça em jeito de objecção relativamente ao elogio. Weber observou a graciosa mulher relacionar-se com o seu paciente. O par fez-lhe lembrar qualquer coisa - bonobos a catar-se um ao outro, tagarelando numa confiança tranquila e instintiva. Sentiu uma pontada de inveja. Era uma ligação natural e não estudada, mais do que Weber sentira com qualquer dos seus doentes durante muito tempo, se é que alguma vez sentira. Ela encarnava aquela empatia que os seus livros pregavam.
Sussurravam um para o outro, um ansioso e a outra mitigante.
- Acha que posso perguntar-lhe? - inquiriu Mark.
Barbara colocou a mão no ombro de Mark, subitamente uma profissional encartada.
- Com certeza. É um homem distinto e conhecido. Se há alguém com quem possas falar, é com ele. Volto mais tarde para a tua fisioterapia.
- Posso ter essa garantia por escrito? - gritou Mark para ela.
Miss Gillespie acenou adeus a Karin. Karin tocou ao de leve no antebraço da auxiliar. Barbara acenou com a cabeça a Weber ao sair pela porta, despedindo-se do médico. Distinto. Então, ela reconhecera-o. Voltou-se para Karin, que abanou a cabeça em admiração.
- A defensora do meu irmão.
- Quem me dera - ripostou Mark. - Quem me dera que ela me defendesse. De ti. Importavas-te que eu conversasse aqui com o doutor por um momento em privado? De pessoa para pessoa?
Karin cruzou as mãos frente ao corpo e abandonou o quarto mais uma vez. Weber levantou-se, segurando a sua pasta numa das mãos, a outra cofiando a barba. Era a vez de o interrogado fazer as vezes de interrogador. Mark girou sobre os calcanhares para ficar de frente para o médico.
- Escute. Não está a trabalhar para ela, ou assim? Não está, digamos, envolvido com ela, pois não? Fisicamente? Então, posso pedir-lhe que entre em contacto com a minha irmã verdadeira? Posso dar-lhe toda a informação que tenho sobre ela. Estou a ficar verdadeiramente preocupado. É possível que ela não faça a mínima ideia do que me aconteceu. Provavelmente, estão a dar-lhe informações erradas, a encher-lhe a cabeça de mentiras. Se pudesse contactá-la, seria uma grande ajuda.
- Conte-me mais algumas coisas sobre ela. Sobre a personalidade dela. - Como é que um doente de Capgras via a personalidade? Poderia a lógica, despida de sentimentos, ver para além da representação da personalidade? Poderia alguém?
Mark apertou a cabeça e acenou a Weber que se fosse embora.
- E que tal amanhã? Tenho a cabeça à roda. Volte amanhã, se quiser. Não é necessário o fato e a pasta, está bem? Somos todos boas pessoas aqui.
- De acordo - respondeu Weber.
- Assim é que é. - Mark estendeu a mão e Weber apertou-lha.
Weber encontrou Karin na área de recepção, sentada num sofá duro de vinil verde, do tipo que podia ser limpo em caso de emergência. Os olhos dela pareciam alérgicos ao ar. Duas mulheres finas como papel deslizaram frente a ela nos seus andarilhos, uma espécie de corrida em suspensão temporária das funções vitais. Uma delas cumprimentou Weber como se ele fosse seu filho. Karin começou a explicar-se antes mesmo de ele se sentar.
- Lamento. É muito penoso para mim vê-lo assim. Quanto mais ele diz que não me conhece, menos eu sei como ser em relação a ele.
- O que acha ele que há de diferente em si?
Recompôs-se.
- É estranho. Ele agora glorifica-me. Quero dizer, a ela. Na verdade, ele e eu... refiro-me a esta eu... altercamo-nos mais ou menos da mesma forma que sempre fizemos. A nossa juventude não foi propriamente fácil. Tentei sempre impedi-lo de fazer os mesmos disparates que eu fui fazendo ao longo dos anos. Ele precisa que eu seja a voz da razão; nunca teve mais ninguém que preenchesse esse papel. Quanto mais na linha o punha, mais ele detestava que eu o fizesse. Mas agora detesta-me a mim e acha que ela é que era uma espécie de santa.
Deteve-se e sorriu apologeticamente, a boca abrindo-se e fechando-se como a de uma truta. Weber ofereceu-lhe o braço - desajeitado, arcaico, algo que ele nunca fazia. Culpou o Nebrasca, o mês de Junho seco, monótono, cheio de zumbidos. Os sotaques uniformes, os rostos agrários, estólidos, largos - tão poeirentos e secretos - desorientavam-no após décadas no tumulto barulhento e pardo de Nova Iorque. Os rostos aqui partilhavam um conhecimento furtivo - da terra, do tempo atmosférico, de crises iminentes - que os separava dos intrusos. Metade de um dia neste local e já percebia o quanto uma pessoa poderia ficar reservada, rodeada de tanto cereal.
Ela aceitou o braço dele e levantou-se. Weber conduziu-a pelas portas de saída até ao passeio junto ao parque de estacionamento. Sentia-se agitado, transtornado, a inabilitante sensação que o perseguira ao longo de todo o seu estágio em neurologia. Há anos que deixara de dar consultas em favor da investigação e da escrita, em parte, talvez, para se proteger. Nos últimos 18 meses, piorara. Observar alguém a colocar eléctrodos num macaco em breve se revelaria incapacitante.
Karin Schluter apoiou-se no braço dele todo o caminho até ao estacionamento.
- O doutor teve um dia agradável com ele - admitiu ela. - Acho que ele gostou de si. - Olhava directamente em frente enquanto falava. Esperara mais. Weber ainda nem sequer terminara a fase de testes e já a desiludira.
- O seu irmão é uma pessoa espirituosa. Gostei muito dele.
Ela deteve-se no passeio. A sua expressão tornou-se menos complacente.
- Que quer dizer com “espirituosa”? Ele não vai ficar assim, pois não? Consegue ajudá-lo, certo? Como as coisas que experimenta, nos seus livros...
O verdadeiro trabalho nunca era realizado com os lesionados e feridos.
- Karin? Recorde-se da noite do acidente de Mark. Lembra-se de imaginar o que poderia acontecer com ele?
Ficou parada, apertando as mãos, o rosto em chamas. Ele manteve-se à distância. O vento de Junho varreu-lhe o cabelo numa dúzia de cabos de reboque. Ela fechou os olhos com força.
- Ele não é assim. Era perspicaz. Arguto. Um pouco rude. Mas preocupava-se com toda a gente...
Tinha as mãos entrelaçadas frente ao peito, o rosto ruborizado contorcendo-se, os olhos marejando-se de lágrimas. O médico colocou a mão sobre o ombro dela, impulsionando-a na direcção do carro. Um observador fortuito poderia ter visto um arrufo de namorados. Weber virou-se e viu Mark, de pé à janela do quarto. Não está, digamos, envolvido com ela, pois não? Virou-se de novo para a irmã.
- Não - confirmou Weber. - Ele não era assim. E será outra pessoa no espaço de um ano. - Assim que pronunciou estas palavras, arrependeu-se até deste truísmo inofensivo. Demasiado facilmente transformado numa promessa.
O rubor no rosto dela acentuou-se.
- Estou certa de que qualquer coisa que possa fazer por ele será uma ajuda.
Mais certa do que ele estava. Conseguiria ainda regressar a Lincoln a tempo do voo da tarde. Weber pressionou a unha do polegar contra a palma da mão e dominou-se.
- Para fazer o que quer que seja por ele, temos de perceber quem é que ele se tornou. E, para isso, é preciso conquistar a confiança dele.
- Confiar em mim?. Ele detesta-me. Acha que raptei a sua verdadeira irmã, que sou um robô espião governamental.
Chegaram ao carro. Ela ficou imóvel, de chaves na mão, à espera que ele operasse um milagre.
- Diga-me uma coisa - perguntou ele. - Perdeu peso recentemente?
Os lábios dela desenharam um O chocado.
- Como...?
Ele tentou sorrir.
- Peço desculpa. Mark disse que a irmã verdadeira era consideravelmente mais pesada.
- Não consideravelmente. - Endireitou o cinto. - Perdi alguns quilos desde que a nossa mãe faleceu. Tenho... cuidado de mim. Tentei começar de novo.
- Percebe muito de carros?
Ela olhou-o fixamente, como se a lesão cerebral fosse uma coisa endémica. Depois, percebeu do que se tratava e sentiu-se culpada.
- Inacreditável. Tentei que ele me ensinasse, um Verão, há alguns anos. Eu pretendia impressionar... uma certa pessoa. O Mark não me deixava fazer mais nada a não ser passar-lhe as chaves de porcas. Foram apenas uns quantos dias. Mas desde então, ficou convencido de que eu tenho uma paixão secreta por veios de motor, ou lá o que é.
Pressionou a parte posterior da chave e o carro destrancou-se. Ele deu a volta até ao lado do passageiro e entrou.
- E a forma como ele se portou com a enfermeira, com Miss...? - Sabia o nome, mas deixou que fosse ela a pronunciá-lo.
- Barbara. Ela sabe de facto como lidar com ele, não sabe?
- Diria que a forma como ele fala com ela é diferente de como teria falado antes?
Ela olhou para os campos abertos através do vidro do carro. O tom de lima da pradaria de Junho. Abanou a cabeça.
- Não sei dizer. Ele não a conhecia antes.
Telefonou a Sylvie nessa noite, do quarto do MotoRest. Sentia-se nervoso ao marcar o número.
- Olá, sou eu.
- Marido! Tinha esperança de que fosses tu.
- Por oposição aos operadores de telemarketing?
- Não grites, querido. Eu consigo ouvir-te.
- Sabes, detesto solenemente falar para esta coisa ridícula. É como segurar uma bolacha junto ao rosto.
- É suposto serem pequenos, meu amor. É isso que os torna móveis. Presumo que este caso não esteja a correr muito bem.
- Pelo contrário, Mulher. É desconcertante.
- Isso é bom. Desconcertante é bom, certo? Fico contente por ti. Conta-me então o que puderes. Estou a precisar de uma boa história.
- O dia foi complicado?
- Aquele miúdo de Poquott, que estava em liberdade condicional e que estávamos a ajudar a arranjar emprego, confundiu o tipo de entregas da UPS com uma equipa da SWAT.
A voz dela ainda tremia, mesmo após anos deste tipo de desastres. Ele procurou qualquer coisa útil ou apenas simpática para dizer.
- Alguém se magoou?
- Toda a gente sobreviverá. Incluindo eu. Conta-me então o teu caso de Capgras. Reconhecimento comprometido?
- Parece-me o oposto, na verdade. Demasiado atento a pequenas diferenças.
Com excepção desta absurda caixa compacta de maquilhagem que se fazia passar por telefone, podiam muito bem estar de volta à faculdade, trocando histórias até altas horas da noite, muito depois de o sinal de recolher ter prendido cada um no seu dormitório. Apaixonara-se por Sylvie ao telefone. De cada vez que viajava, este facto voltava-lhe à memória. Acabaram por cair numa cadência, conversando como haviam feito quase todas as noites das suas vidas durante um terço de um século.
Weber descreveu o desnorteado doente, a sua aterrorizada irmã, o centro de reabilitação anti-séptico, a estranhamente conhecida auxiliar, a desolada cidade de 25 000 habitantes, o Junho seco, o terreno vago, flutuante, mesmo no centro de nenhures. Não estava a violara ética profissional; a sua mulher era sua colega nestas questões, em todos os aspectos menos nos honorários. Descreveu como lhe parecia insondável observar o reconhecimento atomizar-se em pedaços cada vez mais distintos, exigentes. Aquela mulher ria-se; esta está assustada. As expressões faciais desta não são as correctas. Duplos, estranhos: dividir a individualidade numa centena de partes, preservando distinções demasiado subtis para que a normalidade as visse.
- É como te digo, Mulher. Por mais vezes que o testemunhe, continua a causar-me arrepios.
- Pensei que nunca tinhas visto uma coisa assim.
- Não me refiro a Capgras. Quero dizer o cérebro despido. Lutando por dar sentido a tudo. Incapaz de reconhecer que está a sofrer de um distúrbio.
- Faz sentido. Não se pode dar ao luxo de admitir o que aconteceu. Parece-se em muito com vários dos meus clientes. Comigo, na verdade, às vezes.
Não se apercebera do quanto precisava de falar. A entrevista dessa tarde agitara-o de uma forma que ninguém a não ser Sylvie compreenderia. Ela perguntou-lhe mais pormenores sobre Mark Schluter. Ele leu-lhe algumas notas.
- Ele olha-a nos olhos quando fala com ela? - perguntou Sylvie.
- Para te ser franco, não reparei.
- Ah... É o tipo de coisa que nós aqui em Vénus procuramos em primeiro lugar.
Passaram para os assuntos da actualidade: os fogos florestais no Oeste, o veredicto que dava como culpada a corrupta gigante empresa de contabilidade e, por fim, o pano em tons de índigo que ela vira naquela manhã.
- Não te esqueças de renovar o teu passaporte - recordou ele. - Não tarda, Setembro estará à porta.
- Viva Itália. La dolce vita! Ei, a propósito, quando é que é o teu voo de regresso? Eu apontei e colei o papel ao frigorífico, mas parece-me que perdi o frigorífico.
- Espera um pouco. Deixa-me ir buscar a minha pasta.
Quando ele regressou e pegou no telefone, ela estava às gargalhadas.
- Pousaste o telemóvel para ires de um lado ao outro do quarto?
- E que tem isso?
- O meu sábio. O meu sábio no auge das suas capacidades.
- Mal consigo obrigar-me a usar uma destas calçadeiras. Recuso-me terminantemente a andar de um lado para o outro com uma colada à cara. É esquizofrénico.
Ela não conseguia parar de rir.
- Nem sequer em privado?
- Privado? O que é isso?
Deu-lhe os pormenores do voo. Trocaram ainda mais algumas frases, relutantes em despedirem-se. Ele continuou ainda a falar com ela mentalmente durante um momento depois de desligarem. Tomou banho, pendurando a toalha no toalheiro - Ajude a Salvar o Planeta. Retirou o gravador digital da pasta e enfiou-se entre os lençóis, ásperos e frios, onde escutou a conversa daquele dia gravada às escondidas. Ouviu mais uma vez o rapaz de 27 anos, perdido para si mesmo, ocupado a expor impostores que o mundo era incapaz de distinguir.
Há anos, em Stony Brook, Weber trabalhara com um paciente que sofria de negligência unilateral: o infame “Neil” do primeiro livro de Weber, Mais Amplo do que o Céu. Um acidente vascular cerebral aos 55 anos - a idade que Weber atingira agora incólume - deixara o mecânico de reparações com uma lesão no hemisfério direito que, da noite para o dia, obscurecera metade do seu mundo. Tudo o que se encontrava para a esquerda da linha média de visão de Neil desaparecera. Quando se barbeava, Neil deixava o lado direito do rosto intacto. Quando se sentava para tomar o pequeno-almoço, nunca comia o lado esquerdo da omeleta. Nunca dava pela chegada de pessoas que o abordavam pelo lado esquerdo. Weber pediu a Neil que desenhasse um campo de basebol, que tem a forma de um diamante. A terceira base de Neil descaía para o limite do montículo do lançador. Mesmo na memória de Neil, ao recontar os acontecimentos do dia, a metade esquerda do mundo cedia e desmoronava-se. Fechando os olhos e imaginando-se frente a sua casa, Neil apenas conseguia ver a garagem do lado direito, mas não o alpendre do lado esquerdo. Quando lhe pediam direcções, ele transmitia-as exclusivamente como uma série de curvas à direita.
Este défice estendia-se para além da visão. Neil não se apercebia de que não via. Metade do mapa onde ele armazenava o espaço desaparecera. Weber tentou uma experiência simples, uma cena que dramatizou em Mais Amplo do que o Céu. Segurou um espelho perpendicularmente ao ombro direito de Neil e pediu-lhe que olhasse para o espelho a um determinado ângulo. A área à esquerda do corpo de Neil surgia agora à direita dele. Weber segurou um amuleto de prata por cima do ombro esquerdo de Neil e disse-lhe que esticasse um dos braços e o agarrasse. Era o mesmo que lhe pedir que navegasse em direcção a um local que se desviara da rota. Neil hesitou, depois esticou o braço. A mão chocou contra o espelho. Tacteou o espelho, espreitando até por trás dele. Weber perguntou-lhe o que estava a fazer. Neil insistia que o amuleto estava “dentro do espelho”. Sabia o que era um espelho; o acidente vascular deixara essa capacidade intacta. Sabia que era irracional pensar que o amuleto poderia estar no espelho. Porém, no seu mundo, o espaço estendia-se apenas para a direita. Dentro do espelho era o mais provável de dois locais inatingíveis.
Casos como o de Neil - milhares deles por ano - sugeriam duas verdades sobre cada cérebro normal, ambas esmagadoras. Primeira: o que encarávamos como a apreensão a priori, absoluta do espaço real, dependia na verdade de uma frágil cadeia de processamento perceptual. “Esquerda” era tanto aqui como acolá. Segunda: mesmo um cérebro que achava que era capaz de medir, orientar e habitar um espaço há muito conhecido poderia ter já, sem que disso tivesse a mínima noção, perdido pelo menos metade de um mundo. Nenhum cérebro, como é claro, poderia dar total crédito a isto. Weber gostara de Neil. O homem digerira um golpe avassalador sem amargura ou autocomiseração. Fez os ajustes necessários e avançou - se não para a frente, pelo menos para nordeste - com a sua vida. Contudo, após o último conjunto de exames, Weber não voltou a ver Neil. Não fazia ideia do que lhe acontecera. Outro tipo de negligência fizera-o desaparecer, reduzira-o a uma história. O homem que Weber conhecera e entrevistara durante bastante tempo transformara-se no homem que descreveu nas páginas do seu livro. Deixara “Neil” para trás no espelho da prosa, perdido algures, rumo a um destino imperceptível, a um local inatingível bem dentro do espelho narrativo...
Weber acordou cedo de uma noite mal dormida. Tomou um duche para expulsar a indolência, recordando-se com alguma angústia, enquanto a água quente o despertava, que tomara um duche apenas algumas horas antes. Fez uma chávena de café na máquina de café, cortesia do motel, colocada, por algum motivo, ao lado do lavatório da casa de banho. Depois, sentou-se à secretária, folheando um roteiro rústico e ilustrado à mão, igualmente cortesia do motel.
O nome “Nebrasca” deriva de uma palavra da língua oto que significa água plana. Também os Franceses chamaram “Platte” ao rio que o atravessava.
Precisamente a forma como imaginara o local: uma concavidade larga, horizontal no centro do mapa, tão plana que faria Euclides corar. A verdadeira paisagem ondulante surpreendera-o. Bebeu o café e examinou o mapa apenso ao roteiro. Cidades salpicavam o espaço em branco como um conjunto de carruagens dispostas em círculo. Descobriu Kearney - com 25 000 habitantes, a quinta maior cidade do Estado - no cotovelo mais a sul do rio Platte, retraindo-se da demasiada exposição.
Para Norte e Oeste, a Cangplank, uma enorme tira de sedimentos resultantes de erosão que se estendem pelo que foi outrora, há cem milhões de anos, o leito de um vasto oceano...
A expedição de 1820 do Corpo de Engenharia do Exército, liderada pelo major Stephen Long, baptizou a área de Grande Deserto Americano. No relatório para Washington, o major Long declarou esta crosta de terra “totalmente imprópria para cultivo e obviamente inabitável para populações que dependam da agricultura”. O geólogo e o botânico da expedição concordaram, realçando a “desesperada e inveterada infertilidade” de uma região que deveria “permanecer para sempre o tranquilo covil do caçador nativo, do bisonte e do chacal”.
Manadas de bisontes vagueavam outrora por esta bacia. Rios castanhos de carne fluíam pela pradaria, impedindo a passagem de comboios de carruagens durante dias...
Manadas agora extintas, afirmava o livro. O chacal e o caçador nativo, também: afastados. As cidades dos cães da pradaria, as suas ruas subterrâneas cobrindo vários quilómetros, submersas em veneno. As lontras de água doce, eliminadas até à última. Antilocapras, lobos cinzentos: todos mortos. A página 23 exibia uma ilustração a cores de duas carcaças empalhadas e carcomidas pelo tempo no Museu Estatal, em Lincoln. Hoje em dia, apenas duas espécies de maior porte sobreviviam na região:
Durante seis semanas por ano, os grous nas margens do Platte ultrapassam em muito o número de seres humanos. Migram ao longo de mais de um quarto da circunferência terrestre, fazendo aqui uma breve paragem e alimentando-se de quaisquer restos de cereal que possam encontrar.
Terminou o café e passou a chávena por água. Colocou a gravata e vestiu o casaco mas, recordando-se da promessa que fizera a Mark Schluter, voltou a despi-los. Sentia-se nu em mangas de camisa. No piso térreo, no balcão de entrada, roubou uma maçã esteticamente perfeita, se bem que sensaborona, e apelidou-a de pequeno-almoço.
Seguiu as direcções até ao Good Samaritan Hospital e subiu no elevador até à ala de neurologia. A enfermeira do dr. Hayes convidou de imediato Weber a entrar no consultório do médico, esforçando-se por não olhar fixamente para a famosa personalidade.
O neurologista parecia jovem o suficiente para ser filho de Weber. Ectomorfo, desajeitado, com uma pele irritada que dirigia o seu corpo como um mecanismo ultrapassado.
- Deixe-me que lhe diga que é para mim uma honra tê-lo aqui. Nem acredito que estou a falar consigo! Na faculdade costumava ler os seus livros como se fossem álbuns de banda desenhada. - Weber agradeceu tão graciosamente quanto pôde. O dr. Hayes falava deliberadamente, como se entregasse um atrasado prémio de mérito a um actor de filmes mudos. - Um caso incrível, não é? É como ver o Bigfoot emergir das Rockies e entrar no supermercado do bairro como quem não quer a coisa. Cheguei a pensar nas suas histórias quando o tratámos.
Cópias novas em folha dos últimos dois livros de Weber repousavam sobre a secretária de Hayes. O jovem neurologista pegou nelas.
- Antes que me esqueça, importava-se...? - Estendeu-as a Weber, em conjunto com uma pesada caneta Waterman. - Podia escrever: “Para Chris Hayes, o meu Watson no caso d'O Homem que Duplicou a Irmã.”
Weber perscrutou o rosto do neurologista em busca de algum sinal de ironia, mas descobriu apenas sinceridade.
- Eu ia... Posso apenas...?
- Ou o que quiser escrever - emendou o dr. Hayes, desanimado. Weber escreveu: Para Chris Hayes, com um agradecimento. Nebrasca, Junho de 2002. O homem não era apenas o animal comemorativo; era o animal que insistia em comemorar antecipadamente. Weber devolveu os livros a Hayes, que leu a dedicatória com um sorriso forçado. - Então, conheceu-o ontem. Arrepiante, não é? Ainda fico desconcertado ao falar com ele e já passaram meses. É claro, o nosso grupo irá escrever sobre o caso nas revistas da especialidade.
Tiro certeiro. Weber ergueu as mãos.
- Não quero fazer nada para...
- Não, claro que não. O dr. Weber escreve para um público diferente. - Ataque completo. - Não existe qualquer sobreposição ou incompatibilidade.
Hayes colocou à sua disposição o dossiê completo, incluindo as páginas que ninguém mostrara a Karin Schluter. Mostrou a Weber as notas dos paramédicos, três linhas a esferográfica verde num formulário datado de 20 de Fevereiro de 2002: Dodge Ram de 84, capotada na berma sul de North Line Road, entre 3200 e 3400W. Condutor preso de cabeça para baixo no interior do veículo. Sem cinto, inalcançável e inconsciente. A única porta acessível estava amolgada de uma forma que impedia a sua abertura. Os paramédicos não podiam entrar ou deslocar a carrinha com receio de que acabasse por esmagar a vítima. Apenas podiam esperar por reforços e ver a Polícia tirar fotografias. Weber estudou uma das fotografias.
- Está de cabeça para baixo - disse Hayes.
Weber rodou a folha. Mark Schluter, de cabelo comprido, estava curvado sobre si mesmo, um fio de sangue trepando pela sua cara através do colarinho aberto. A cabeça inclinada contra o tecto da cabina em prece invertida.
Quando os bombeiros chegaram, tiveram de abrir caminho até ele com a ajuda de um maçarico de acetileno. Weber imaginou a cena: as luzes dos carros da Polícia a piscar pelos campos gelados, o brilho das mesmas a englobar a carrinha virada na berma da estrada. Pessoas fardadas, a sua respiração condensando-se, andando de um lado para o outro numa actividade metódica, onírica. Quando os bombeiros conseguiram por fim cortar a carroçaria, os destroços deslocaram-se e a carrinha estabilizou. O corpo dobrou-se sobre si mesmo. Os bombeiros enfiaram-se por baixo dos destroços e soltaram o corpo. Mark Schluter recuperou por breves instantes a consciência na ambulância. Os paramédicos levaram-no para Kearney, onde ficava o único hospital num raio de seis condados com meios para o manter vivo.
Hayes avançou então para os registos médicos. Indivíduo caucasiano do sexo masculino, 27 anos, um metro e setenta e cinco, 72 quilogramas. Perdera uma quantidade considerável de sangue, a maior parte de uma ferida profunda entre as terceira e quarta costelas direitas, local onde se auto-impalara no espigão de um modelo de um capacete prussiano preso à alavanca das velocidades. O escalpe e o rosto estavam bastante feridos por abrasão. O braço direito estava deslocado e o fémur direito fracturado. O resto do corpo apresentava também arranhões e equimoses, mas estava, inacreditavelmente, intacto.
- Usamos a palavra milagre bastantes vezes aqui nos estados das grandes planícies, doutor Weber. Mas não escutamos frequentemente o termo ser pronunciado na ala de traumatismos de Nível II.
Weber observou as imagens que Hayes prendeu à caixa de luz.
- Esta classifica-se como tal - concordou Weber.
- O mais semelhante a um “Levanta-te, Lázaro” que jamais vi, mesmo durante o meu estágio em Chicago. Cento e vinte quilómetros por hora numa estrada rural gelada à noite. O homem deveria estar morto, várias vezes.
- Álcool no sangue?
- Interessante que faça essa pergunta. Vemos muito disso nas urgências de Kearney. Mas ele chegou com ponto zero sete. Abaixo do limite permitido por lei, mesmo no Estado da Desfolhada. Apenas umas cervejas nas três horas antes de ter capotado a carrinha.
Weber acenou com a cabeça.
- E teria mais alguma coisa no sangue?
- Nada que tivéssemos encontrado. O médico das urgências que o atendeu catalogou-o no dez da Escala de Glasgow. Reacção ocular: três, resposta motora: três, resposta verbal: quatro. Os olhos abriam quando falavam com ele. Respondia à dor. Alguma resposta verbal, embora na maior parte das vezes inadequada.
Oito era o número mágico. Ao fim de seis horas, metade dos pacientes com valores na Escala de Coma de Glasgow de oito ou inferior não resistiam e faleciam. Dez era considerado uma lesão moderada.
- Aconteceu-lhe alguma coisa depois de ser admitido?
Weber estava apenas a brincar aos detectives profissionais, mas Hayes ficou na defensiva.
- Foi estabilizado. Todos os protocolos foram seguidos, mesmo antes de se ter determinado se estava abrangido por algum seguro, lemos uma das maiores taxas de indigência médica do país.
Weber vira mais além. Metade do país não podia pagar um seguro, porém murmurou aprovativamente.
- Foi precisa uma hora para localizar o familiar mais próximo.
Weber estudou a papelada. Os bolsos da vítima continham apenas 13 dólares, um canivete suíço, um recibo de gasolina de uma bomba em Minden datado daquela tarde e um preservativo azul numa embalagem transparente.
Provavelmente o seu amuleto da sorte.
- Pelos vistos, a carta de condução rolou para baixo do painel de instrumentos quando a carrinha capotou. A Polícia encontrou-a ao inspeccionar o veículo em busca de drogas. Localizaram a irmã dele em Sioux City e ela deu o seu consentimento pelo telefone para qualquer intervenção que fosse necessária. O serviço de traumatologia deu-lhe manitol, Dilantin... Pode ler tudo. Os procedimentos do costume. A pressão intracraniana manteve-se estável por volta dos 16 milímetros de mercúrio. Obtivemos de imediato algum progresso. A resposta motora aumentou. Houve também alguma melhoria na resposta verbal. Subiu para um 12 na Escala de Glasgow. Cinco horas depois de ser admitido, teria afirmado que caminhávamos para uma evolução satisfatória.
Pediu o processo a Weber e folheou-o, como se tivesse ainda uma oportunidade de impedir o que aconteceu a seguir. Abanou a cabeça.
- Aqui está o relatório da manhã seguinte. A pressão intracraniana subiu para os vinte, depois teve picos mais altos. Sofreu um pequeno AVC. Hemorragia retardada também. Colocámo-lo num ventilador assim que nos foi possível. Decidimo-nos pela intervenção cirúrgica. A traqueotomia estava claramente indicada para esta situação. A irmã dele já cá estava por esta altura. Aprovou tudo. - O dr. Hayes esquadrinhou os papéis, procurando um qualquer fragmento que se recusava a aparecer. - Se me perguntasse, eu diria que apanhámos de tudo à medida que foi surgindo.
- Também me parece que sim - concordou Weber. Só que a pressão intracraniana tinha de ser “apanhada” antes que surgisse. O dr. Hayes pestanejou para ele, talvez ofendendo-se com a celebridade nacional trazida para ajudar os pobres locais. Weber cofiou a barba. - Não imagino que tivesse feito alguma coisa diferente. - Olhou em redor do consultório do dr. Hayes. Todas as revistas certas nas prateleiras, actualizadas e ordenadas. O diploma emoldurado da Rush Medical and Nebrasca Board Certification. Sobre a secretária, uma fotografia de Hayes e de uma modelo elegante e de cabelo cor de mel, lado a lado num teleférico. Um mundo inconcebível para Mark Schluter, antes ou depois do seu acidente.
- Diria que Mark revela alguma tendência para a confabulação?
Hayes seguiu os olhos de Weber até à fotografia, a bela mulher no teleférico.
- Que eu tenha notado, não.
- Fiz-lhe uma bateria dos testes-padrão ontem.
- Fez? Eu já o submeti a todos. Aqui tem. Quaisquer resultados de que possa precisar.
- Sim, claro. Não era minha intenção sugerir... Mas passou algum tempo...
O dr. Hayes mediu-o com o olhar.
- Ele ainda está sob observação. - Estendeu a Weber mais uma vez o processo. - Os dados estão todos aqui, se quiser dar uma vista de olhos.
- Gostaria muito de ver as tomografias - disse Weber.
Hayes apresentou uma série de imagens e prendeu-as à caixa de luz: um corte transversal do cérebro de Mark Schluter. O jovem neurologista apenas via estrutura. Weber vislumbrava ainda a mais rara das borboletas, a mente palpitante, as suas asas aos pares presas à película numa minudência obscena. Hayes traçou com o dedo os contornos desta obra de arte surrealista. Cada tonalidade de cinzento dizia-lhe qualquer coisa em termos de função ou falha. Este subsistema ainda tagarelava; este ficara em silêncio.
- Pode ver aquilo com que estamos a lidar, aqui. - Weber limitou-se a escutar o jovem neurologista a descrever a tragédia. - Algo que se assemelha a uma possível lesão discreta perto do giro fusiforme anterior direito.
Weber inclinou-se na direcção da caixa de luz e aclarou a garganta. Não conseguia ver lesão nenhuma.
- Se for isso que temos aqui - prosseguiu Hayes, - então, enquadrar-se-ia na interpretação que fizemos. Tanto a amígdala quanto o córtex inferotemporal estão intactos, mas há possivelmente uma interrupção da ligação entre os dois.
Weber acenou com a cabeça. A actual hipótese dominante. Eram precisas três partes para completar uma identificação e a mais antiga domina todas.
- Consegue fazer um reconhecimento facial sem problemas e isso gera as adequadas memórias associadas à correspondência. Ele sabe que a irmã se parece exactamente com... a sua irmã. Porem, falta-lhe a ratificação emocional. Faz todas as associações para um rosto sem aquela sensação de familiaridade. Forçado a fazer uma opção, o córtex tem de submeter-se à amígdala.
Weber sorriu sem querer.
- Então, não é o que pensamos que sentimos que triunfa, é o que sentimos que pensamos. - Brincou com as armações dos óculos, sentindo em voz alta. - Chame-me arcaico, mas continuo a ver alguns problemas. Primeiro, Mark não duplica qualquer pessoa por quem nutria sentimentos antes do acidente. Deveria ainda assim ser capaz de recorrer a pistas auditivas, padrões comportamentais: todos os tipos de ferramentas de identificação para além da facial. Poderá uma resposta emocional embotada levar realmente a melhor sobre o reconhecimento cognitivo? Tenho visto lesões bilaterais na amígdala: doentes com respostas emocionais destruídas, e nenhum deles alguma vez relatou que os seus entes queridos haviam sido substituídos por impostores. - Soou demasiado efusivo, até para si mesmo.
Hayes estava preparado:
- Bom, já ouviu falar da emergente teoria dos “dois défices”? Talvez um trauma no córtex frontal direito esteja a dificultar as suas verificações de consistência...
Weber sentiu-se começar a ficar reaccionário. As hipóteses de múltiplas lesões, todas exactamente nos locais certos, tinham de ser mínimas. Porém, as probabilidades a favor do próprio reconhecimento eram ainda mais ínfimas.
- Sabe que ele acha que o cão é um duplo? Eu diria que soa algo mais do que apenas uma ruptura entre a amígdala e o córtex inferotemporal. Não duvido do contributo de lesões. Haverá sem dúvida um trauma no hemisfério direito implicado neste processo. Acho apenas que precisamos de procurar uma explicação mais abrangente.
Os mais pequenos músculos faciais de Hayes indiciaram incredulidade.
- Refere-se a algo mais do que neurónios?
- De modo algum. Mas também existe uma componente de ordem superior em tudo isto. Sejam quais forem as lesões que sofreu, está também a produzir respostas psicodinâmicas ao traumatismo. A síndrome de Capgras poderá ser provocada não tanto pela lesão em si, mas por reacções psicológicas à desorientação.
A irmã dele representa a mais complexa combinação de vectores psicológicos na sua vida. Ele deixa de reconhecer a irmã porque uma parte de si deixou de se reconhecer a si mesma. Sempre achei que vale a pena considerar uma ilusão como ao mesmo tempo uma tentativa de fazer sentido e o resultado de um acontecimento profundamente perturbador.
Após um segundo, Hayes acenou que sim com a cabeça:
- Tenho a certeza de que valerá a pena pensar nisso tudo, se isso desperta o seu interesse, dr. Weber.
Quinze anos antes, Weber teria lançado um contra-ataque. Agora, achava cómico: dois médicos a marcarem o seu território, prontos a fazer marcha-atrás e a investir um contra o outro, como duas cabras-montesas. Weber emanava satisfação, o equilíbrio natural da auto-reflexão. Teve vontade de despentear o cabelo do dr. Hayes, como se faz a um miúdo.
- Quanto tinha a sua idade, a corrente psicoanalítica vigente afirmava que a Capgras resultava de sentimentos de tabu em relação a um ente querido. “Não posso estar a sentir desejo pela minha irmã, logo ela não é a minha irmã.” O modelo termodinâmico do reconhecimento. Muito popular na sua época. - Hayes esfregou o pescoço, embaraçado e, por isso, reduzido ao silêncio. - Face a isso, este caso refutaria por si só essa possibilidade. Como é óbvio, a síndrome de Capgras de Mark Schluter não é primeiramente psiquiátrica. No entanto, o seu cérebro debate-se com interacções complexas. Devemos-lhe mais do que um modelo causal simples, unidireccional e funcionalista. - Surpreendeu-se a si mesmo. Não pela sua crença, mas pela vontade de a exprimir em voz alta a um médico tão jovem como este.
O neurologista bateu com a ponta dos dedos na imagem presa à caixa de luz.
- Tudo o que sei é o que aconteceu ao cérebro dele na madrugada de 20 de Fevereiro.
- Sim - concordou Weber, acenando com a cabeça. A única coisa que a medicina queria saber. - É espantoso que ele tenha ainda algum sentido integrado do eu, não acha?
O dr. Hayes aceitou as tréguas.
- É uma sorte que este circuito em particular seja tão difícil de quebrar. Uma mão-cheia de casos documentados. Se fosse uma disfunção tão comum como, por exemplo, a doença de Parkinson, nunca nos teríamos cruzado. Gostaria de ajudá-lo sob todas as formas que puder. Se precisar de fazer mais exames ou tomografias aqui no hospital...
- Antes disso gostaria ainda de conduzir alguns exames menos tecnológicos. A primeira coisa que quero fazer é testar a resposta electrodérmica.
As sobrancelhas do neurologista ergueram-se.
- Sim, acho que vale a pena tentar isso.
O dr. Hayes acompanhou Weber de volta ao parque de estacionamento. Haviam estado fechados no consultório tempo suficiente para que o regresso ao severo ar livre da pradaria em Junho apanhasse Weber desprevenido. O ar parado expandiu-se nos seus pulmões com o odor de umas férias de Verão passadas. Sugeria-lhe qualquer coisa que experimentara pela última vez no Ohio quando tinha dez anos. Ao virar-se viu o dr. Hayes curvar-se para si com a mão estendida.
- Foi um prazer conhecê-lo, dr. Weber.
- Chame-me Gerald, por favor.
- Gerald. Espero ansiosamente pelo novo livro. Uma óptima pausa no trabalho. E quero que saiba que sou o seu maior fã.
Não disse ainda, mas Weber escutou-o. Permaneceu onde estava com um pé já na estrada.
- Esperava que pudéssemos ainda trocar algumas impressões antes de eu regressar a casa...
Hayes animou-se, pronto para bajular ou combater de novo.
- Ah! É claro, se tiver tempo e interesse nisso.
Tempo e interesse... Durante anos, racionara severamente ambos. Uma cátedra numa universidade, uma longa lista de artigos respeitados sobre o processamento perceptual e a montagem cognitiva e um par de populares livros de neuropsicologia para um público alargado traduzidos numa dúzia de línguas: nunca tivera muito tempo ou interesse para esbanjar. Já vivera mais três anos do que o seu pai e ultrapassara em muito a sua produção. E, no entanto, Weber calhara por acaso encontrar-se em actividade no preciso momento em que a corrida fazia os seus primeiros verdadeiros avanços no enigma primordial que constituía a existência consciente: De que forma é que o cérebro edifica uma mente e como é que a mente edifica tudo o resto? Temos vontade própria? O que é o eu e onde estão os correlativos neurológicos da consciência?
Questões que haviam sido embaraçosamente especulativas desde os inícios da consciência encontravam-se agora à beira de encontrar uma resposta empírica. A crescente e estupefacta suspeita de Weber de que talvez vivesse o tempo suficiente para ver estes indomados fantasmas filosóficos resolvidos, de que talvez contribuísse até para tal resolução, expulsara em grande medida qualquer outro vestígio do que, no linguajar comum, se viera a apelidar de vida real. Alguns dias parecia que qualquer problema que a espécie enfrentava aguardava o discernimento da neurociência. A política, a tecnologia, a sociologia, a arte: todas tinham origem no cérebro. Dominar a combinação neural talvez significasse por fim dominarmo-nos a nós próprios, sermos senhores de nós mesmos.
Weber começara há muito esse alargado retiro do mundo que os homens ambiciosos começam a fazer por volta do quadragésimo aniversário. Tudo o que ele queria era trabalhar. Os seus antigos passatempos - a guitarra, o estojo de pintura, a raqueta de ténis, os cadernos - estavam guardados nos cantos da casa demasiado grande, esperanto o dia em que pudesse ressuscitá-los. Apenas o veleiro lhe concedia agora uma satisfação constante e, mesmo isso, apenas como uma plataforma para mais reflexão cognitiva. Era um suplício permanecer sentado quieto durante um filme inteiro. Temia os periódicos convites para funções sociais, embora, verdade fosse dita, acabasse por até se divertir e os anfitriões pudessem sempre contar com ele para umas conversas emocionantes e bizarras. Contos de arrepiar, chamava-lhes Sylvie: histórias que provavam aos convivas ali reunidos que nada do que pensavam, viam ou sentiam era necessariamente verdade.
Não perdera a capacidade de apreciar os prazeres mundanos. Um passeio pelas margens de um lago ainda o aprazia em qualquer estação, embora agora usasse tais passeios mais para espicaçar pensamentos estagnados do que para admirar os patos ou as árvores. Ainda se entregava ao que Sylvie apelidava de forragear: um petiscar constante, uma fraqueza por doces que acalentava desde a infância. A mulher apaixonara-se por ele quando este lhe dissera, aos 21 anos de idade, que o metabolismo abundante de glucose era essencial para um esforço mental sustentado. Quando, com o dobro dessa idade, o corpo dele começara a mudar tão profundamente que já não o reconhecia, esforçou-se durante pouco tempo por refrear este familiar prazer antes de aceitar a estranha nova forma como sua.
Continuava a apreciar o companheirismo constante da mulher. Ele e Sylvie ainda se tocavam incessantemente. Tipo macacos a catar-se e a pentear-se, diziam. Festas constantes nas mãos quando liam juntos, massagens nos ombros enquanto lavavam a louça.
- Sabes o que tu és? - acusou-o ela, beliscando-o ao mesmo tempo. - Não passas de um velho esfrego-pescoço-fílico baboso. - Ele respondeu com gemidos de satisfação.
A intervalos crescentes, que nenhum deles se preocupava em calcular, ainda brincavam um com o outro. Por mais caprichosa que fosse, a persistência do desejo surpreendia-os aos dois. No ano anterior, no trigésimo aniversário de casamento, ele calculara o número de orgasmos que ele e Sylvie Bolan haviam partilhado desde a sua primeira escapadela no beliche de cima do dormitório dela em Columbus. Um em cada três dias, em média, ao longo de um terço de um século. Quatro mil detonações, unindo-os pela anca. As noites de êxtase animal sempre os haviam divertido, ao regressarem a si mesmos, ao embaraço da fala. Enroscada contra o flanco dele, dando algumas risadinhas, Sylvie poderia dizer: “Obrigada pela maravilhosa sexualidade humana, Marido”, antes de saltitar em bicos de pés até à casa de banho para se lavar. Há um limite para o que qualquer pessoa consegue uivar de abandono. Não é o tempo que nos envelhece; é a memória.
Sim, o corpo em abrandamento, os neurotransmissores do prazer, em gradual esgotamento, haviam-nos arrefecido. Mas outra coisa também: acabamos por nos assemelhar àquilo que amamos muito, Ele e a mulher assemelhavam-se agora tanto um com o outro que não poderia haver qualquer estranheza de desejo entre ambos. Nenhuma a não ser aquela impenetrável estranheza a que ele próprio se entregara também. O reino da perpétua surpresa. O cérebro despido. O enigma primordial, à beira de ser resolvido.
Permaneceu de pé no meio de música latejante, à espera de Karin Schluter. Acima da sua cabeça, alguém resmungou em resposta a uma dor techno, reclamando eutanásia. Uma espécie de restaurante, uma comprida fila de miúdos de calças de ganga deslavadas, Weber hirto no meio deles, tendo renunciado ao fato e à gravata em favor de umas calças cor de caqui e um colete de malha. Karin suprimiu uma risada ao aproximar-se dele.
- Não tem calor assim?
- O meu termostato dispara a temperaturas mais baixas.
- Sim, já reparei - troçou ela. - Isso é tudo por causa da ciência?
Ela escolhera um sítio no campus universitário local chamado Pioneer Pizza. O nervosismo do dia anterior acalmara. Mexia menos no cabelo. Sorriu ao circundante bando de estudantes enquanto a empregada lhes indicava uma mesa.
- Estudei aqui. Naquela altura era ainda a Universidade Estatal de Kearney.
- Quando é que foi isso?
Ela corou.
- Há dez anos. Doze.
- Qual quê! - As palavras soavam ridículas nos lábios dele. Teriam sem dúvida feito Sylvie entrar em convulsões.
Karin ficou radiante.
- Foram dias atribulados. Demasiado perto de casa para mim, mas pronto. Os meus amigos e eu fomos as únicas pessoas entre Berkeley e o Mississipi a protestar contra a Guerra do Golfo. Um bando de jovens republicanos maltratou o meu namorado da altura só porque ele trazia um crachá que dizia “Sangue por Petróleo Não”. Ataram-no com uma fita amarela! - A alegria dela desvaneceu-se com mesma velocidade com que surgira. Lançou um olhar de culpa em redor do restaurante.
- E o seu irmão?
- Refere-se aos estudos? Basicamente, tiveram de dar um diploma honorário de liceu a Mark. Não me interprete mal. Ele não é nenhum idiota. - Esforçou-se por usar o presente do indicativo. - Sempre foi perspicaz. Era capaz de entender o modo de raciocínio de um professor e de perceber qual era o mínimo necessário para passar nos testes dessa disciplina. Não que fosse preciso um génio para superar o corpo docente do liceu de Kearney. Porém, o meu irmão queria apenas consertar automóveis e brincar com jogos de vídeo. Era capaz de ficar de volta de um jogo novo durante 24 horas sem sequer se levantar para ir à casa de banho. Eu disse-lhe que ele devia era arranjar emprego como testador de jogos.
- Como é que ele ganhou a vida depois do liceu?
- Bom... Trabalhou numa hamburgueria até o nosso pai correr com ele de casa. Depois disso trabalhou numa loja de peças de automóveis e viveu como um índio durante bastante tempo. O seu amigo Tom Rupp arranjou-lhe por fim trabalho na fábrica da IBP em Lexington.
- IBP?
Ela franziu a testa, surpreendida com a ignorância dele.
- Inferno dos Bifes em Pacote.
- Inferno... ?
Ela corou. Levou três dedos aos lábios.
- Quero dizer, Iowa Beef Packers. Embora, Iowa, Inferno... Pois, é preciso mesmo semicerrar os olhos para perceber a diferença.
- Ele trabalhava para um matadouro?
- Não matava os animais nem nada disso. Essa é a função de Rupp. O meu irmão conserta o equipamento utilizado no matadouro. - Baixou de novo os olhos. - Acho que queria dizer “consertava”. - Levantou a cabeça e observou-o. Os olhos dela eram da cor de moedas de cêntimo oxidadas. - Ele não voltará para lá tão cedo, pois não?
Weber abanou a cabeça.
- Ao longo dos anos, aprendi a não fazer previsões. O que precisamos, como acontece na maioria das coisas, é de paciência e optimismo cauteloso.
- Sim - disse ela. - Estou a esforçar-me.
- Diga-me o que fez. - Os lábios dela reconstituíram as palavras dele e ficou a olhá-lo sem expressão. - A sua profissão.
- Ah! - Pressionou a franja com a mão direita. - Trabalho no departamento de atendimento ao cliente da... - Deteve-se, surpreendida consigo mesma. - Na verdade, estou entre oportunidades de emprego.
- Os seus empregadores despediram-na? Por causa disto?
Por baixo da mesa, o joelho dela subia e descia como se operasse uma máquina de costura.
- Não tive outra escolha. Tinha de vir para cá. O meu irmão está em primeiro lugar. Somos só nós os dois, entende. - Weber acenou afirmativamente com a cabeça. Começou a balbuciar explicações. - Tenho um pequeno pé-de-meia. A minha mãe deixou-nos algum dinheiro de um seguro de vida. Não há outra coisa a fazer. Poderei começar de novo quando ele... - O tom dela era optimista.
A empregada veio apontar os pedidos. Com um olhar culpado em redor da sala, Karin pediu a Suprema. Weber escolheu ao acaso. Quando a empregada virou costas, Karin olhou-o fixamente.
- Não acredito. Também faz o mesmo.
- Desculpe? Faço o quê?
Ela abanou a cabeça.
- Achava que uma pessoa como o doutor...
Weber sorriu, perplexo.
- Não faço realmente ideia...
Levantou os dedos da mão esquerda.
- Não faça caso. Não é importante. Apenas uma coisa em que reparo nos homens, por vezes.
Weber esperou que Karin se explicasse. Como ela não o fez, ele perguntou:
- Trouxe as fotografias?
Ela acenou que sim. Esticou o braço para a mala, um saco tricotado de padrões garridos feito por algum povo indígena, e do seu interior tirou um envelope.
- Escolhi as que seriam mais significativas para ele.
Weber pegou nas fotos e folheou-as.
- Esse é o nosso pai - explicou Karin. - Que posso eu dizer sobre ele? Cego de um olho devido a um desentendimento com o gado. Pronto para recitar The Face on the Barroom Floor em qualquer ocasião depois do terceiro copo da noite, pelo menos quando éramos miúdos; para o final da vida já não era muito dado à poesia. Começou como agricultor, mas passou a maior parte da sua vida a tentar tornar-se comerciante com uma série de esquemas do tipo “fique rico da noite para o dia”. Digamos que trocava cartões natalícios com todos os oficiais de diligências do tribunal comercial. Perdeu muito dinheiro a vender caixas de que supostamente protegiam a privacidade. Ligavam-se ao televisor e os fornecedores de cabo não conseguiam descobrir o que o cliente via. Teve também a ideia de vender seguros contra o roubo de identidade. Apenas vendia coisas que ele mesmo não podia comprar o suficiente. Foi essa a sua ruína. O homem pensava que o código postal de nove dígitos era uma conspiração do partido democrata para controlar os movimentos dos cidadãos comuns. Até os membros da milícia local achavam que ele era um nadinha alucinado.
- E morreu... ?
- Há quatro anos. Não conseguia dormir. Não conseguia apenas dormir, e depois morreu.
- Lamento - disse Weber, despropositadamente. - Como descreveria o relacionamento deles?
Ela franziu os lábios.
- Um combate mortal contínuo em câmara lenta? Tirando talvez um par de vezes em que fomos acampar e tudo correu bem. Eles gostavam de pescar juntos nessa altura. Ou de trabalhar juntos em motores. Coisas em que não tivessem de conversar. Essa a seguir é a nossa mãe, Joan. No final já não tinha tão bom aspecto. Que foi mais ou menos há um ano. Acho que já lho tinha dito.
- Disse-me que ela era uma mulher religiosa, não foi?
- Uma grande, grande faladora de línguas. Mesmo o seu inglês comum era assaz variado. Mandava exorcizar a casa frequentemente. Estava convencida de que escondia as almas de crianças em tormento. Era uma espécie de: “Alô! Terra chama Mãe! Eu nomeio as almas dessas crianças atormentadas por um cêntimo!” - Karin pediu a fotografia da formosa mulher da lavoura de cabelo cor-de-avelã a Weber e examinou-a, aspirando as bochechas. - No entanto, manteve-nos vivos ao longo de todos os anos dos esquemas de auto-emprego do meu pai. Escriturária-dactilógrafa, aqui na faculdade.
- E como é que Mark se dava com ela?
- Venerava-a. Venerava ambos, na verdade. Simplesmente, por vezes fazia-o aos gritos e brandindo uma arma.
- Ele era violento?
Ela suspirou.
- Não sei. O que é “violento” hoje em dia? Era um rapaz adolescente. Depois um jovem de vinte anos.
- E partilhava da... ? Era religioso?
Karin riu-se até ter de levar as mãos à barriga.
- Não, a não ser que conte o culto do Diabo. Não. Estou a ser injusta. A fase da magia negra foi comigo. Aqui, repare. Karin Schluter, finalista do liceu. O visual de vampira gótica. Bastante assustador, não? Dois anos antes disso, fui líder de claque. Já sei o que está a pensar. Se o meu irmão não tivesse tido um acidente que explicasse esta síndrome de Capgras, estaria à procura de um gene da esquizofrenia. É assim a família Schluter. Deixe ver que mais temos aqui.
Guiou-o através do restante álbum fotográfico. Tinha fotos de família que recuavam a um bisavô, Bartlett Schluter, frente à ancestral cabana de torrões na sua juventude, o cabelo semelhante a barbas de milho. Tinha fotografias da fábrica de carne em Lexington, uma caixa sem janelas com 46 000 metros quadrados e contentores de 12 metros quadrados alinhados a seu lado, à espera de serem transportados por camiões. Tinha retratos dos melhores amigos de Mark, dois rapazes magros de vinte e poucos anos que se divertiam a fumar, a beber e a jogar bilhar, um de t-shirt de camuflado e o segundo com outra onde se lia “Tem metanfetaminas?”. Tinha uma foto de uma mulher pernalta, de cabelo preto numa camisola verde de decote em V tricotada à mão, irradiando um sorriso frágil. - Bonnie Travis. A partenaire do grupo.
- Isto é no hospital?
- Em meados de Março. Isso são os dedos dos pés de Mark, com o servicinho de pedicura. Ela achou que seria giro pintar-lhe as unhas. - As suas palavras turvavam-se com a injustiça do afecto. - Aqui tem: queria imagens que o excitassem.
Um rosto conhecido surgiu frente a Weber. A sua própria pele teria registado uma alteração de condutividade.
- Já conheceu a Barbara. Como deve ter reparado, ele está completamente apanhadinho por ela.
A mulher sorria melancolicamente, perdoando a máquina e o seu operador.
- Sim - respondeu Weber. - Sabe porquê?
- Bom, tenho pensado nisso. Ele reage a qualquer coisa nela. A confiança que ela inspira. Ao respeito. - Um tom diferente apoderou-se da voz dela: uma inveja que podia pender para ambos os lados. Eu dar-lhe-ia o que esta mulher lhe dá, se ele deixasse. Karin afagou a fotografia. - Nem lhe sei dizer o quanto devo a esta mulher. Acredita que ela trabalha bem no fundo da cadeia alimentar? A um pequeno passo de um voluntário. Isto é que são cuidados de saúde a pensar no lucro, não é? Coloque três seres humanos gananciosos juntos e eles não são capazes de distinguir os seus bens dos sovacos.
Weber sorriu sem se comprometer.
- Aqui está a menina dos olhos de Mark. - Apontou para a fotografia de uma casa modular estreita, algo a que a geração de Weber apelidaria de pré-fabricada. - É a Homestar. Na verdade, esse é o nome da empresa que as constrói e vende por catálogo, mas ele chama-lhe assim, como se fosse a única no mundo. O meu irmãozinho rebelde e beligerante, nunca o vi mais orgulhoso do que no dia em que finalmente juntou os seis mil dólares da entrada para a casa, a ascensão ao primeiro degrau da classe média. - Mordeu a ponta da cabeça do dedo indicador. - O que se pode chamar de fugir a uma educação precária.
- É aqui que está a viver, enquanto está por cá? Foi como se lhe tivesse entregue um mandato.
- Para onde hei-de ir? Estou desempregada. Não sei por quanto tempo isto se irá arrastar.
- Claro, faz todo o sentido - declarou ele.
- Não ando propriamente a remexer nas coisas dele. - Fechou os olhos e empalideceu. Ele pegou numa foto de cinco jovens hirsutos com guitarras e uma bateria. Ela voltou a abrir os olhos. - São os Cattle Call. Uma deplorável banda de garagem num bar chamado Silver Bullet, às portas da cidade. Mark adora-os. Estavam a tocar na noite do acidente. Era nesse bar que Mark estava, mesmo antes. Aqui está a carrinha dele. Encontrei uma caixa de sapatos cheia de fotografias da carrinha num armário na Homestar. É provável que fique transtornado ao vê-la.
- Sim. Talvez por enquanto seja melhor guardá-la.
As pizas chegaram. A escolha dele decepcionou-o: ananás e fiambre. Não imaginava que tivesse pedido tal coisa. Karín atacou a sua Suprema com satisfação.
- Não devia estar a comer piza. Sei que podia comer melhor. Ainda assim, não sou grande adepta de carne, excepto quando como fora. Espanta-me que consigam vender carne de vaca nesta zona do país. Devia ouvir o que se passa naquela fábrica. Pergunte ao Mark. Ficará sem vontade de comer carne para sempre. Sabe, têm de lhes cortar as pontas dos cornos para impedir que os tresloucados animais se espetem uns aos outros.
A história não estragou o apetite dela em nada. Weber debicava a sua Havaiana como se estivesse a fazer um estudo etnográfico, por fim, a comida esgotou-se, conjuntamente com as palavras de ambos.
- Está pronto? - perguntou ela hesitantemente, fazendo de conta que estava.
Em Dedham Glen, pediu uma hora a sós com Mark. A presença dela poderia comprometer os resultados do teste electrodérmico.
- O doutor é que manda. - Alisou as sobrancelhas e voltou para trás.
Mark estava sozinho no quarto, lendo uma revista de culturismo. Levantou os olhos e sorriu de orelha a orelha.
- Psi! Voltou. Dê-me aquele para riscar números e letras outra vez. Agora estou preparado para o fazer. Ontem não estava preparado para aquilo.
Cumprimentaram-se com um aperto de mãos. Mark trazia uma t-shirt diferente, esta listando uma dúzia de leis do Nebrasca ainda em vigor. Nenhuma mãe poderá fazer permanentes aos cabelos das filhas sem licença estatal. Se uma criança arrotar na igreja, os seus pais poderão ser detidos. Usava o mesmo gorro tricotado do dia anterior, mesmo naquele quarto, com o calor que fazia.
- Hoje está sozinho, ou...? - Weber limitou-se a erguer as sobrancelhas. - Sente-se. Descanse os pés. Supostamente é um senhor de idade, lembra-se? - Crocitou como um corvo.
Weber sentou-se na mesma cadeira do dia anterior, frente a Mark, que fazia os mesmos grunhidos quando ria.
- Importa-se que eu use um gravador enquanto falamos?
- Isso é um gravador? Está a gozar comigo! Deixe-me ver isso. Mais parece um isqueiro. Tem a certeza de que não é das Operações Especiais...? - Mark levou o gravador à bochecha. - Alô? Alô? Se me conseguir escutar, estou a ser mantido aqui como refém contra a minha vontade. Ei! Não faça essa cara. Estou apenas a brincar consigo, só isso. - Devolveu o minúsculo aparelho ao médico. - Então, porque precisa de um gravador? Tem problemas, ou assim? - Apontou os dedos na direcção de cada orelha.
- Mais ou menos - admitiu Weber.
Já usara o gravador no dia anterior. Não tivera maneira de pedir permissão. No entanto, precisava de ser capaz de reproduzir aquele primeiro contacto verbatim. Apostara em pedir permissão retroactivamente. E agora tinha-a, ou perto disso.
- Uau! Fixe. Gravado ao vivo. Quer que eu cante?
- Vamos a isso. Força.
Mark lançou-se numa monocórdica e nada melodiosa cantiga. Gonna open you up, gonna peel you out... Interrompeu-se.
- Vá lá. Dê-me um dos seus pretensos quebra-cabeças. É melhor do que estar para aqui a definhar.
- Tenho uns novos. Enigmas com imagens. - Puxou o Teste de Retenção Visual de Benton para fora da pasta.
- Enigmas? Toda a minha vida é um enigma.
Mark reconheceu imagens da mesma cara de diferentes ângulos, em poses diferentes, sob vários tipos de iluminação. Mas nem sempre sabia dizer quando um olhar lhe era dirigido. Não se saiu muito mal na identificação de celebridades, embora tenha chamado a Lyndon Johnson “um qualquer rufia empresarial de alto nível” e a Malcolm X “o tipo que faz de dr. Chandler na série sobre hospitais”. Desfrutou de todo o teste. “Este tipo? É supostamente um comediante, se considerarmos que gritar como se tivéssemos esfregado uma pomada à base de cânfora no escroto é engraçado. Nesse caso, sim. Esta miúda auto-apelida-se de cantora, mas isso é só porque lhe tiraram o varão contra o qual ela dançava.” Também obteve bons resultados a separar rostos verdadeiros de formas com o aspecto de rostos em desenhos e fotografias. De uma forma geral, a pontuação obtida estava dentro dos parâmetros normais. Porém, teve algumas dificuldades em identificar as emoções de expressões faciais convencionais. As suas respostas tendiam a resvalar para o medo e a raiva. Dadas as circunstâncias, porém, os resultados obtidos por Mark não mostravam nada que Weber pudesse apelidar de patológico.
- Podemos experimentar mais uma coisa? - perguntou Weber, como se fosse o pedido mais natural do mundo.
- O que quiser. A vontade.
Abriu novamente a pasta e extraiu um pequeno amplificador e leitor de actividade electrodérmica.
- O que acharia se o ligasse a uns fios? - Mostrou a Mark os eléctrodos de prender no dedo. - Isto basicamente mede a condutividade da pele. Se ficar excitado ou se se sentir tenso...
- Uma espécie de detector de mentiras?
- Sim, mais ou menos.
Mark Cacarejou.
- A sério? Agora sim, estamos a entender-nos. Venha ele! Sempre desejei tentar enganar uma dessas máquinas. - Estendeu as mãos. - Ligue-me à corrente, Mister Spock.
Weber deu início ao processo, explicando cada passo à medida que o ia ligando aos condutores.
- A maioria das pessoas revela um aumento na condutividade da pele quando vê uma imagem de uma pessoa que lhe é próxima. Amigos, família...
- Toda a gente começa a suar quando vê a mãe?
- Exactamente! Quem me dera tê-lo descrito dessa forma no meu último livro.
É claro que a metodologia estava toda errada. Deveria ter havido uma outra pessoa para operar o mecanismo de captação e leitura da condutividade e mais um mecanismo. As tentativas de calibração eram primitivas, quando muito. O ensaio não foi randomizado ou sequer duplamente cego. Não houve qualquer tipo de controlo. Nada nas fotos de Karin lhe dava qualquer linha de base. Contudo, Weber não ia enviar os dados obtidos para uma revista conceituada. Estava apenas a obter uma noção tosca deste homem destroçado, das tentativas de Mark de se recontar por meio de uma história contínua.
Mark ergueu a mão livre de fios.
- Prometo dizer a verdade... et cetera, et cetera. Assim Deus me ajude.
Olharam para as fotografias em conjunto. Weber passava as fotos de Karin, observava a oscilante agulha e fazia apontamentos.
- Olha! É a Homestar! Esta é a minha casa. É espectacular. Construíram esta beldade de acordo com as minhas especificações pessoais.
A agulha dançou novamente:
- Este é o Duane. Vejam bem este sacana atarracado. Sabe muita coisa, embora não seja a lâmpada mais brilhante do candeeiro. E esse é o Rupp. Repare na técnica com o taco. Este é o tipo certo a ter ao nosso lado em qualquer... situação. Se o que pretende é divertir-se, é a estes dois que deverá telefonar.
A fotografia da irmã - Karin vestida de vampira gótica - produziu pouca condutância. Mark fechou os olhos e empurrou a fotografia. Weber tentou obter uma resposta.
- Alguém seu conhecido?
Mark olhou de novo para a imagem brilhante de dez por quinze centímetros.
- É... você sabe. A filha da Família Addams. - A agulha estremeceu com a fotografia do seu bisavô. - O patriarca. Este tipo? Estava sentado nessa casa de lama quando era miúdo e entrou-lhe uma vaca pelo telhado. Bons tempos, nessa altura. - As instalações da IBP produziram um pulo ansioso na agulha. - É aqui que eu trabalho. Jesus, já se passaram tantas semanas. Espero por Deus que não tenham dado o meu lugar a outra pessoa. Acha que fariam isso?
A consciencialidade a ultrapassar a sua utilidade: Weber testemunhara-a centenas de vezes. Vinte anos antes, a sua filha de oito anos, Jessica, quase morta em consequência de uma apendicite aguda, recuperara a consciência frenética, temendo que o seu trabalho sobre a dança das abelhas não fosse entregue a tempo.
- Não posso perder aquele emprego, meu. Foi a melhor coisa que me aconteceu desde que o meu pai morreu. Eles precisam de mim para manter aqueles alimentadores em funcionamento. Tenho de entrar em contacto com o chefe o mais brevemente possível.
- Eu verei o que consigo descobrir - prontificou-se Weber.
A agulha dançou de novo com a fotografia da auxiliar de enfermagem de Mark.
- A boneca Barbie! Pronto, está bem, eu sei que Miss Gillespie deve ser mais ou menos da sua idade, mas ainda assim é bestial. Por vezes acho que ela foi a única pessoa verdadeira a ter sobrevivido à Invasão Andróide.
Respondeu também à fotografia de Bonnie Travis. Na verdade, ao observar o mostrador enquanto Mark contemplava a imagem dela, Weber percebeu uma coisa que Karin Schluter não mencionara.
Mark acenou com a cabeça ao ver a foto dos Cattle Call. A agulha não sugeriu, porém, que Mark associasse a banda local à ansiedade da noite do acidente.
- Estes tipos não são maus. Não estão preparados para grandes voos, nem nada que se pareça, mas têm um bom som e uma boa atitude, duas coisas que nem sempre são fáceis de combinar, digo-lhe já. Levo-o a ouvi-los, se quiser.
- É capaz de ser interessante - disse Weber.
Para os pais de Mark, outra linha plana. Mark enfiou a mão sem eléctrodos por baixo do gorro, esticando-o a partir de dentro.
- Eu sei o que pretende que eu diga. Este parece-se com o Harrison Ford, a fazer de conta que é o meu pai. Esta aqui com a ideia que alguém faz da minha mãe num dia bom. Mas nem sequer de longe, de muito, muito longe. Espere lá... - Juntou o molho de fotografias e amachucou-as. - Onde é que arranjou isto?
Estupidamente, Weber não estava preparado para tal pergunta. Pensou nas várias mentiras possíveis. Assentou o rosto no punho, olhou Mark nos olhos e não disse nada.
Mark ficou frenético a enunciar teorias.
- Foi ela quem lhas deu? Não percebe o que se está aqui a passar? Achei que você era um famoso intelectual da Costa Leste. Ela rouba estas fotografias aos meus amigos. Depois contrata actores que se parecem pouco com a minha família. Tira umas quantas fotografias e pronto, de repente tenho um passado completamente novo. E como ninguém conhece o meu passado, tenho de aguentar isto. - Bateu na fotografia dos pais com as costas da mão. Derrubou o monte de fotografias e arrancou os eléctrodos dos dedos.
Weber pegou na foto do pai de Mark.
- Sabe dizer-me o quê ao certo que não lhe parece...?
Mark arrancou a fotografia das mãos do médico. Rasgou-a pelo meio, bissectando a cabeça do pai exactamente pelo centro. Estendeu as duas metades a Weber.
- Um presente para Miss Espaço Sideral... - Ouviu-se um arquejo vindo do corredor. Mark pôs-se de pé de um pulo. - Ei! Se queres espiar-me, vem fazê-lo... - Abriu a porta do quarto preparado para uma perseguição, mas Karin entrou de rompante, quase de mergulho, no quarto.
Passou de raspão por ele e arrebatou os pedaços da fotografia rasgada.
- Que pensas que estás a fazer, a rasgar assim o teu próprio pai? - Ameaçou-o com os pedaços da fotografia. - Quantas destas achas tu que temos?
Ele ficou pregado ao chão. A raiva pura dela desconcertou-o. Dócil, ficou onde estava enquanto ela juntava os pedaços rasgados e inspeccionava o prejuízo.
- Pode ser colada - declarou ela por fim. Dardejou o irmão com o olhar, abanando a cabeça. - Porque fazes isto? - Sentou-se na cama, tremendo. Mark sentou-se outra vez, também moderado por algo demasiado grande para compreender.
Weber limitou-se a observar. A descrição das suas funções: observar e relatar. Durante vinte anos, construíra uma reputação expondo a desadequação de toda a teoria neural face ao grande humilhador, a observação.
- O que está a sentir neste momento? - perguntou.
- Raiva! - gritou Karin, antes de se aperceber de que a pergunta não lhe era dirigida.
Quando emergiu, a voz de Mark era ainda mais mecânica do que a sua estranha linha de base.
- E que lhe importa? - Inclinou a cabeça em direcção ao céu. - Você não compreende isto. Vem de Nova Iorque onde toda a gente é Deus ou coisa que o valha. Por cá, as pessoas... A minha irmã? É estranha, mas é a minha única aliada no mundo. Eu e ela, basicamente, contra toda a gente. Esta mulher? - Apontou e resfolegou. - Viu que ela me tentou atacar. - Sentou-se na mesa e começou a chorar. - Onde está ela? Sinto a falta dela. Gostaria apenas de a voltar a ver por cinco segundos. Tenho medo que lhe possa ter acontecido alguma coisa.
Karin Schluter fez eco do choro. Levantou as palmas das mãos e deu dois passos em direcção à porta, depois deteve-se e sentou-se. O gravador continuava ligado. Uma parte de Weber estava já a descrever este estranho momento. Mark pôs-se a mexericar no amplificador. Os seus olhos lançavam esgares aterrorizados em redor do quarto. Segurou os fios condutores numa das mãos. Depois, como que convulsionado pela corrente, o seu punho cerrou-se e ele pôs-se de pé. - Escute. Acabei de ter uma ideia. Podemos experimentar uma coisa? Posso...?
Mark estendeu os fios a Weber. Weber pensou em recusar, o mais afectuosamente possível, porém, em duas décadas de pesquisa de campo, nunca ninguém recusara ser testado por si.
Sorriu e ligou os contactos às pontas dos dedos.
- Pode disparar.
Mark Schluter deslizou a bacia para a frente. Os seus membros agitaram-se como as lâminas de um moinho de vento de estanho. Do bolso das calças de ganga extraiu um pedaço de papel amarrotado. Ao vê-lo, a irmã soltou um gemido. Mark cravou os olhos no mostrador. Desdobrou o papel e estendeu-o a Weber. Numa caligrafia frenética, corrida, quase ilegível, alguém escrevinhara:
Não sou Ninguém
mas Esta Noite em North Line Road
DEUS conduziu-me até si
para que pudesse VIVER
e trazer de volta outra pessoa.
- Veja! - gritou Mark. - Mexeu-se. A agulha saltou. Subiu até aqui. Que significa isso? Diga-me o que isso significa.
- É preciso calibrar o amplificador - disse Weber.
- Alguma vez viu este bilhete? - Mark mantinha os olhos presos no mostrador. - Sabe quem escreveu isto?
Weber abanou a cabeça.
- Não. - Pura curiosidade.
- Mexeu-se de novo. Por favor, não brinque comigo. Estamos a falar da minha vida.
- Lamento. Quem me dera poder dizer-lho, mas não sei nada sobre isso. - Soou a falso, até para si mesmo.
Desiludido, Mark fez-lhe sinal para que retirasse os contactos dos dedos. Apontou então na direcção da cama.
- Ligue-a.
Karin pôs-se de pé, esbracejando.
- Mark, já te disse tudo o que sei sobre o bilhete uma centena de vezes.
Ele não desistiu até vê-la sentada com os condutores ligados aos dedos. A barragem de perguntas não tardou. Quem escreveu isto? Quem o encontrou? Que significa? Que devo fazer com isto? Ela respondeu a cada acusação com uma crescente impaciência.
- Não está a acontecer nada - gritou Mark. - Isso significa que ela está a dizer a verdade?
Significava que a pele dela não mudava de condutância.
- Não quer dizer nada - afirmou Weber. - É preciso calibrar a máquina.
Antes de se ir embora nessa tarde, explicou tudo a Mark.
- Existe uma disfunção chamada Capgras. Muito raramente, quando o cérebro sofre uma lesão, as pessoas perdem a capacidade de reconhecer...
Um uivo primevo interrompeu-o.
- Bolas. Não comece com isso, meu. Isso é o que o doutor não sei quantos não pára de dizer. Mas ele está envolvido no esquema. Aquela mulher anda a suborná-lo ou coisa pior. - Mark olhou para Weber, os seus olhos mendigando. - Achava que podia confiar em si, Psi.
Weber afagou a barba.
- E pode - respondeu, e ficou em silêncio.
- Para além disso - a voz ténue suplicava, - não é mais científico limitarmo-nos a seguir a explicação mais provável?
As palavras de Sylvie nessa noite, quando ele lhe telefonou do motel, foram como sopa no mel.
- Ah! Eu conheço esta voz. Espera... não me digas. É o homem que costumava andar por aqui.
Ele não se conseguia recordar de tudo o que queria dizer-lhe. Não importava. Ela estava entusiasmada com as suas próprias histórias.
- A tua muito inteligente filha Jessica acabou de ganhar uma subvenção da Fundação Nacional para a Ciência concedida a jovens investigadores. Aparentemente, a caça aos planetas é ainda rentável, este ano. - Citou ainda uma figura garbosa. - A Califórnia terá de retê-la só pelo saque que ela traz consigo.
Jess, a sua Jess. Minha filha, meus ducados.
Sylvie começou a contar a longa aventura do dia, as suas tentativas para apanhar uma família de guaxinins, que organizava reuniões regulares no sótão da família Weber.
Por fim, ela perguntou:
- Então, o que descobriste hoje acerca do teu objecto de estudo? Recostou-se na cama alugada, fechou os olhos e segurou o telefone contra a bochecha.
- Ele tem uma estreita folha de estanho dentro dele a sustentá-lo e está a dissolver-se. Só olhar para ele faz com que tudo aquilo que acho que sei sobre a consciência se dissolva no ar.
A conversa mudou; ele teve alguma dificuldade em seguir o seu rumo. Perguntou pelo tempo em Chickadee Way, como estava o local.
- Conscience Bay estava maravilhosa, Marido. Como um espelho. Como se o tempo tivesse parado.
- Consigo imaginar - respondeu ele. A agulha teria saltado.
Trabalhou até tarde a rever as suas notas. Uma frieza húmida de Junho que troçava da imagem que ele tinha das Grandes Planícies saturou-lhe o quarto. Não conseguia encontrar maneira de desligar o ar condicionado ou abrir uma janela. Deitou-se na cama, imerso no brilho âmbar do relógio, avaliando-se a si mesmo. A meia-noite soou e passou, e os olhos dele teimavam em não se fechar. Já tinha visto o bilhete. Karin Schluter tinha-o fotocopiado e colocado uma cópia no enorme dossiê que lhe mostrara no primeiro dia. Agora, esticado sobre a cama, insone, tentou decidir se mentira sobre o facto de não conhecer o bilhete ou se simplesmente se esquecera da sua existência.
Já testemunhara a verdadeira incapacidade de reconhecer rostos, e aqui não se tratava disso. Todos os seus livros descreviam algum tipo de agnosia - incapacidade de reconhecer objectos, locais, idades, expressões ou olhares. Escrevera sobre pessoas que não eram capazes de distinguir comidas, carros ou moedas, embora uma parte do seu cérebro soubesse ainda como interagir com os desconcertantes objectos. Contara a história de Martha T., uma devota ornitóloga que, da noite para o dia, perdera a capacidade de distinguir uma carriça de um pica-pau, mas que, no entanto, conseguia ainda descrever em pormenor as diferenças entre as duas aves. Descrevera várias vezes nos seus livros a prosopagnosia. Para doenças assaz vertiginosas, o cérebro era interminavelmente obsequioso.
O País da Surpresa retratara Joseph S. Aos vinte e poucos anos, fora baleado na cabeça por um assaltante com uma arma de pequeno calibre, que lhe provocara lesões numa pequena região na área inferotemporal direita - o giro fusiforme. Perdeu a capacidade de reconhecer amigos, conhecidos, familiares, entes queridos ou até celebridades. Podia passar por qualquer pessoa e não a conhecer, por mais vezes que a tivesse visto ou por mais recentemente que se tivessem conhecido. Revelava até dificuldades em distinguir a sua própria imagem reflectida.
- Sei que são rostos - disse Joseph S. a Weber. - Consigo ver as diferenças nas suas feições. Mas não são identificativas. Não significam nada para mim. Pense nas folhas de um enorme bordo. Coloque quaisquer duas ao lado uma da outra e verá como são diferentes, porém, olhe para a árvore toda e tente nomear as folhas.
Não tinha nada a ver com a memória: Joseph era capaz de enumerar em pormenor descrições precisas de características que amigos seus deviam ter. Apenas era incapaz de reconhecer tais características, quando reunidas num rosto.
Apesar da sua incapacitante lesão, Joseph S. conseguiu doutorar-se em Matemática e seguir uma bem-sucedida carreira universitária. Batia a escala em testes de QI padrão, em especial em termos de raciocínio espacial, orientação, memória e rotação mental. Descreveu a Weber os seus elaborados sistemas de compensação: dicas como a voz, a roupa, o tipo corporal e proporções exactas entre a largura dos olhos e o comprimento do nariz e a grossura dos lábios.
- Tornei-me rápido o suficiente para enganar várias pessoas. Rostos apenas: nada mais lhe causava problemas. Na verdade, era melhor do que a maioria das pessoas a perceber as diferenças em objectos quase idênticos: seixos, meias, ovelhas. Porém, a sobrevivência em sociedade dependia da realização constante de espantosos cálculos faciais, como se fossem uma brincadeira de crianças. Joseph S. vivia como um espião por trás de linhas inimigas, fazendo por intermédio de cálculos e algoritmos o que todas as restantes pessoas faziam como se de respirar se tratasse. Todos os momentos em público exigiam vigilância, cautela. Joseph afirmou que o problema contribuíra para o fim do seu primeiro casamento. A sua esposa não suportava que ele tivesse de a observar minuciosamente para a distinguir no meio de uma multidão.
- Também quase me custou o meu actual casamento. - Descreveu ter visto a sua segunda mulher no campus universitário uma tarde e tê-la beijado. Só que não era a sua esposa. Não era ninguém que conhecesse.
“O que encaramos como um processo simples e único”, escreveu Weber, é na verdade uma comprida linha de montagem. A visão requer uma cuidadosa coordenação entre 32 ou mais módulos cerebrais. Reconhecer um rosto envolve pelo menos uma dúzia (...). Estamos ligados a várias conexões para descobrir rostos. Duas bolachas Oreo e uma cenoura podem fazer uma criança berrar ou rir. Unicamente: as inúmeras e delicadas ligações entre módulos podem partir-se em diferentes locais...
Com diversas lesões em várias áreas, uma pessoa poderia perder a capacidade de distinguir o sexo, a idade, a expressão emocional de um rosto, ou a direcção da atenção de alguém. Weber descreveu um paciente totalmente incapaz de decidir se um dado rosto era atraente ou não. No seu próprio laboratório, reuniu dados que sugeriam que alguns sofredores de prosopagnosia comparavam na verdade rostos sem que a sua mente consciente disso se desse conta.
Poucas semanas se passavam sem que recebesse cartas de leitores ansiosos que se debatiam com alguma atenuada versão da incapacidade de reconhecer velhos conhecidos. Alguns encontravam algum consolo na explicação bombástica de Weber: uma simples subtileza neurológica que revelava que toda a gente sofria de uma espécie de prosopagnosia - até o reconhecimento normal falha quando o rosto observado se encontra de cabeça para baixo.
Mark Schluter não sofria de prosopagnosia. Era precisamente o oposto: via diferenças que não existiam. Assemelhava-se mais àquelas pessoas que Weber conhecera e para as quais cada alteração na expressão facial poderia cindir-se numa pessoa nova e diferenciada. Esse pesadelo perpassou por baixo das pálpebras fechadas de Weber mesmo antes de adormecer, olhando para cima para o milhão de folhas de uma árvore que se agigantava à sua frente, cada folha uma vida que ele conhecera, um momento numa vida, até mesmo um aspecto emocional particular desse momento isolado, cada olhar um objecto separado para identificar, único e multiplicando-se em milhares de milhões, para lá da capacidade de qualquer pessoa de simplificar atribuindo nomes...
Na terceira manhã, foi sozinho a Dedham Glen. Precisava de mais dados de psicometria, para testar um leque mais alargado de tendências alucinatórias. Deu com o local com facilidade. Apesar do enredado vale ribeirinho, a cidade era uma folha de papel milimétrico. Dois dias nesta grelha perfeita e - salvo quaisquer lesões que afectassem a orientação espacial - era possível encontrar o que quer que fosse.
Três crianças gigantes estavam acampadas no chão em redor do televisor de Mark. Este, no seu gorro de malha, estava sentado entre um texugo de uniforme prisional e um homem de peito em forma de barril em camuflado e boné de caça. Weber reconheceu-os das fotografias de Karin.
No ecrã, uma estrada cortava uma paisagem ondulante e castanha, serpenteando em direcção ao horizonte. As luzes traseiras de veículos automóveis deslizavam pelo sinuoso asfalto. Os três machos sentados deslocavam-se em harmonia com os faróis, sacudindo-se da mesma forma que a diabética Jessica por vezes fazia, nas fases intermédias do choque insulínico. As imagens pareciam pertencer a um filme caseiro, o verdadeiro desporto motorizado filmado de perto e com uma banda sonora estridente acrescentada por cima. Foi então que Weber viu os fios. Cada um dos membros do trio estava ligado por um cordão umbilical a uma caixa. A corrida - meio filme, meio desenho animado - provinha em parte dos cérebros do trio.
Os fios lembraram a Weber os seus dias de estudante, o ocaso do behaviorismo: antigas experiências laboratoriais com pombos e macacos, criaturas ensinadas a não desejar mais nada a não ser pressionar botões e operar manivelas todo o dia, fundindo-se com a máquina até tombarem de exaustão. Os três homens haviam-se tornado na tortuosa música, na estrada serpenteante, no rugir dos motores. Porém, não mostravam indícios de querer desistir tão cedo. Alterações no ecrã produziam mudanças fisiológicas que eram transmitidas de novo ao mundo no ecrã.
A tira da estrada guinava abruptamente para a direita, flutuando, depois tombando. Os carros levantavam voo, apontando os faróis dianteiros para o ar. Depois o som de metal a amolgar-se quando o carro embatia de volta na terra e os três corpos absorviam o impacto. Os motores gemiam, sufocando no pavimento. O ruído assemelhava-se ao quebrar de ondas à medida que os condutores engrenavam mudanças de mais força. Partículas de terra no fundo da paisagem atingiam outros veículos, que os carros em primeiro plano se esforçavam por ultrapassar. Não havia forma de dizer onde decorria a corrida. Um qualquer local vazio. Algum estado quadrangular com uma maior densidade bovina do que humana, a meio caminho entre a pradaria e o deserto. Alguns condomínios, bombas de gasolina, áreas de comércio - o retrato do coração da América. Durante alguns segundos choveu. A chuva transformou-se em granizo, o granizo em neve. A luz do dia murchou. Dali a pouco, a noite caiu, e absorta a isso a corrida prosseguiu por mais algumas dezenas de quilómetros pela estrada imaginária.
Fosse qual fosse a lesão de que Mark Schluter sofria, os seus polegares e respectivas ligações ainda estavam intactos. Estudos recentes realizados por um colega de Weber sugeriam que enormes áreas do córtex motor das crianças da geração dos jogos electrónicos eram dedicadas aos polegares e que muitos espécimes da emergente espécie Homo ludens favoreciam agora o polegar em detrimento do dedo indicador. Os comandos dos jogos tinham por fim consumado um dos três grandes saltos na evolução dos primatas.
Os membros do trio sentados no chão acotovelavam-se uns aos outros, os seus corpos extensões dos carros que pilotavam. Entraram num troço de terreno aberto onde a estrada parava de serpentear e descrevia uma linha recta através de dunas de areia em direcção a uma indistinta meta. Os corredores aceleraram, empurrando-se mutuamente para chegar à frente. Prepararam-se para uma última curva pronunciada à direita. Um dos carros derrapou na curva e saiu de traseira. O condutor tentou compensar a derrapagem, guinando de volta para a estrada, direito aos veículos dos seus adversários. Os três carros envolveram-se numa espectacular espiral. Tombaram, ceifando um conjuntos de carros mais lentos que avançavam para a linha de chegada. Um dos carros fez ricochete no amontoado de destroços e embateu contra a bancada cheia de público. O ecrã transformou-se numa mancha brilhante. Havia pessoas a fugir em todas as direcções, térmitas de um nicho fumegado. O carro explodiu numa bola de fogo. Um grito lancinante ejectou-se do veículo e aterrou no solo sob a forma de gargalhada. Das chamas emergiu uma figura carbonizada do capacete às botas, dançando loucamente.
- Caramba - comentou o texugo. - Isto é o que eu chamo uma chegada triunfante, Gus.
- I-na-cre-di-tá-vel - confirmou o peito de barril. - A mais deslumbrante bola de fogo de sempre.
Contudo, o terceiro condutor, aquele que Weber viera ver, limitou-se a queixar-se.
- Esperem. Dêem-me o carro de volta. Só mais uma vez.
Com os motores parados, o texugo olhou por cima do ombro e viu Weber encostado à moldura da porta. Deu uma cotovelada a Mark.
- Visita, Gus.
Mark rodou a cabeça, os olhos ao mesmo tempo animados e assustados. Ao ver Weber, resfolegou.
- Não é uma visita. É o Incredible Shrinking Man. Ei, este tipo é famoso. Muito mais famoso do que a maior parte das pessoas pensa.
- Puxe de uma cadeira - convidou o do chapéu de caça. Já estávamos mesmo a terminar, de qualquer maneira.
Weber levou a mão ao bolso e ligou o gravador.
- Não se vão embora por causa de mim - disse o médico. - Façam mais uma volta. Eu fico aqui sentado a ver.
- Ei! Já me estava a esquecer. Onde raio estão as minhas maneiras? - Mark pôs-se apressadamente de pé, pontapeando os praguejantes amigos para que fizessem o mesmo. - Psi, este é o Duane Cain. E este aqui... - apontou para o texugo. - Olha lá, Gus. Diz lá quem é que supostamente és? - O texugo fez-lhe uma obscenidade com o dedo. Mark riu, um cilindro de gás a esvaziar-se. - Como queiras. Este é Tommy Rupp. Um dos melhores condutores do mundo.
Duane Cain bufou:
- Condutor? Um vadio, talvez.
Weber observou o trio a voltar a formar nova linha de partida. Tinha 34 anos quando viu pela primeira vez uma destas caixas de jogos. Tinha ido buscar Jessica, de sete anos, a casa de uma amiga. Deparou-se com as raparigas a ver televisão e repreendeu-as.
- Porque é que duas meninas estão a ver televisão com um dia tão bonito lá fora?
A pergunta lançou as raparigas numa série de gemidos ridículos. Não era televisão, zombaram elas. Era, na verdade, ténis de mesa lobotomizado na vertical. Observou fascinado. Não o jogo: elas. O jogo era atarracado, monótono e repetitivo. Mas as duas raparigas estavam ausentes, perdidas algures nas profundezas do espaço simbólico.
- Achas isto melhor que o verdadeiro pingue-pongue? - perguntou à pequena Jess. Queria saber genuinamente a resposta dela. A mesma questão assombrava o seu trabalho. O que há na nossa espécie que faz com que salvemos o símbolo e coloquemos de parte aquilo que este representa?
A filha de sete anos suspirou.
- Pai - respondeu ela com aquele primeiro indício de desprezo pelos adultos e todos os problemas destes em entender o óbvio, - é simplesmente mais limpo.
Jess na verdade nunca mais olhou para trás. Oito anos mais tarde, montou o seu próprio computador com componentes comprados. Aos 18, usava-o para analisar os traços de luz de um telescópio que montara no quintal das traseiras. Agora, com quase trinta anos, morando no Sul da Califórnia, esse Estado tão abstracto, ganhava subvenções da NSF para descobrir novos planetas, um dos quais pelo menos se acabaria seguramente por revelar mais limpo do que a Terra.
O trio de rapazes conferenciava sem palavras. Executavam voltas de um intrincado bailado para além do alcance de qualquer coreógrafo. Weber observou Mark em busca de sinais de défice. Não havia forma de saber como fora a sua coordenação. Porém, mesmo agora, Mark seria capaz de fazer peões em redor de Weber em qualquer veículo, real ou virtual. Conduzia como louco. A formidável bola de fogo ocasional nada mais extraía dele do que uma gargalhada espessa.
Weber anotava os movimentos oculares de Mark quando um grito encheu o quarto. Parecia apenas mais um dos ensurdecedores efeitos sonoros do jogo. Rodou o pescoço e viu Karin à porta do quarto, vermelha de raiva.
Tinha os braços levantados, segurando a parte de trás da cabeça com as mãos, os cotovelos a apontar para fora.
- Animais! O que pensam que estão a fazer?
Os espécimes do sexo masculino puseram-se de pé num pulo. Tom Rupp foi o primeiro a recuperar.
- Viemos fazer um bocado de companhia ao nosso amigo. Ele precisava de um pouco de diversão.
Com a mão esquerda agarrou o pescoço e com a direita cortou o ar.
- Estão doidos?
Duane Cain reagiu à injustiça.
- Não quererás voltar ao Prozac por um minuto? Viemos apenas proporcionar companhia.
Karin acenou as unhas na direcção do jogo, a estrada ainda a ziguezaguear descuidadamente no meio do ecrã.
- Companhia? É isso que vocês chamam a fazê-lo passar por isto de novo? - Lançou a Weber um olhar de traição.
- Ele não objectou - argumentou Rupp. - Pois não, companheiro?
Mark estava de pé, apertando o comando entre os dedos, uma bochecha erguida como se preparado para rosnar.
- Estávamos apenas a fazer o que sempre fazemos. - Estendeu-lhe o comando do jogo. - Para que foi isso tudo?
- Exactamente. - Cain olhou para Weber, depois de volta para Karin. - Estás a perceber o que estamos a dizer? Isto não é real, é um jogo. Não estamos a fazer ninguém passar por nada.
- Vocês os dois não têm empregos? Ou tornaram-se completamente incapazes?
Rupp avançou na direcção dela e Karin recuou na direcção da porta.
- Este mês levei para casa 3100 dólares. E tu? - Karin cruzou os braços sob o peito e olhou para os sapatos.
Weber sentiu que havia ali uma questão antiga e mal resolvida entre eles.
- Trabalhar? - disse Duane. - É domingo, por amor de Deus.
Mark deixou escapar uma risadinha.
- Nem Deus deu cabo do canastro ao domingo, sargento.
- Vão-se embora - pediu ela. - Vão matar umas vacas.
Rupp fez um pequeno sorriso amarelo e coçou a bochecha com as costas dos dedos.
- Deixa-te disso, Miss Gandhi. Matas uma vaca de cada vez que trincas um hambúrguer. Sabes o que eu acho? O nosso amigo aqui tem razão. Terroristas árabes raptaram Karin Schluter e trocaram-na por um agente estrangeiro.
Duane Cain olhou nervosamente para Weber, mas Mark limitou-se a rir como um badalo de vaca. Karin avançou por entre os homens direita ao irmão. Ao chegar perto dele, tirou-lhe o comando do jogo das mãos e colocou-o sobre a consola. Ejectou o disco da máquina e o ecrã ficou azul. Atravessou o quarto na direcção de Weber e entregou-lhe o ofensivo disco. Tocou-lhe no ombro.
- Pergunte a estes dois o que eles sabem sobre o acidente de Mark.
O irmão soltou um grito.
- Desculpa lá, andas a tomar crack?
- Eles costumavam entreter-se com jogos como este, só que em estradas verdadeiras.
Mark inclinou-se para Weber e sussurrou:
- É a isto que me refiro quando falo dela.
Tom Rupp disse desdenhosamente.
- Isso não passa de difamação. Tens por acaso a mínima prova...?
- Prova! Não fales comigo como se fosses um polícia estúpido. Quem é que pensas que sou? Sou irmã dele. Estás a ouvir? Sangue do seu sangue. Queres provas? Eu estive lá. Três conjuntos de marcas de pneus?
Mark sentou-se na cadeira ao lado de Weber.
- Lá? Que marcas de pneus? - Enroscou-se, agarrando os cotovelos.
Duane Cain fez um T com as mãos.
- É melhor respirarmos fundo. Não seria melhor se todos nos acalmássemos por uns momentos?
- Talvez tenham conseguido enganar a Polícia, mas eu considero-vos pessoalmente responsáveis. Se as coisas nunca melhorarem...
- Ei! - protestou Mark. - Melhor do que isto é impossível.
Tom Rupp abanou a cabeça.
- Há qualquer coisa seriamente errada contigo, Karin. Talvez seja melhor consultares o profissional enquanto ele está por cá.
- E depois ainda o distraem com jogos de corridas, fazendo-o passar por tudo outra vez, como se não tivesse acontecido nada? Perderam o juízo? - Mark levantou-se da cadeira como se tivesse uma mola.
- Quem raio pensas que és? Não tens qualquer poder aqui! - Dirigiu-se a ela, os braços impelidos para a frente. Ela virou-se, instintivamente, para os braços de Rupp, que os abriu para a proteger. Mark deteve-se, levou as mãos ao pescoço e lamentou-se. Não era o que eu tencionava. Não é o que pensam.
Weber observou a desordem, já a relatá-la mentalmente a Sylvie. Ela não mostraria qualquer piedade. Tu é que querias sair do laboratório. Observar isto bem de perto, antes que perdesses a oportunidade de o voltar a ver.
Karin soltou-se dos braços de Rupp.
- Lamento, mas vocês os dois têm de sair.
- Já me fui embora. - Rupp fez-lhe uma continência, que Mark imitou por reflexo.
Duane Cain balançou o polegar e o mindinho estendidos para Mark.
- Força, companheiro. Voltaremos.
Depois de irem embora e de a paz regressar, Weber virou-se para Karin.
- Mark e eu deveríamos provavelmente trabalhar sozinhos por um bocado. - Mark apontou-lhe dois dedos e soltou um riso abafado. Karin ficou desanimada. Não acreditara que Weber fosse capaz de uma semelhante traição. Girou sobre os calcanhares e abandonou o quarto. Weber seguiu-a até ao corredor, chamando-a até ela parar. - Peço desculpa. Precisava de observar Mark com os amigos.
Expirou e esfregou as bochechas.
- Com os amigos dele? Essa parte dele não mudou. Ocorreu algo a Weber pelo facto de ter revisto na noite anterior alguma literatura sobre o assunto.
- Como lhe parece o seu irmão quando fala com ele ao telefone?
- Acho que... há muito tempo que não falamos pelo telefone. Como estou aqui, todos os dias... Odeio telefones.
- Ah! Temos isso em comum.
- Não lhe telefonei desde o acidente. Não vale a pena. Ele de certeza que me desligava o telefone na cara. Isso é, pelo menos, uma coisa que não poderá fazer cara a cara.
- Quer fazer uma experiência? - Ela estava pronta para tentar o que quer que fosse.
Mark Schluter estava sentado a brincar com um dos comandos do jogo, girando-o nas mãos como se fosse um bivalve fechado que não conseguisse abrir. Levantou os olhos para Weber, implorando.
- Está a elaborar algum plano secreto com ela?
- Não exactamente.
- Acha que ela tem razão?
- Em relação a quê?
- Sobre aqueles dois - disse Mark com brusquidão.
- Não faço ideia. O que é que o Mark acha?
Mark hesitou. Aspirou um bocado de ar e segurou-o durante 15 segundos, sentindo a cicatriz da traqueotomia com as pontas dos dedos.
- Você é que supostamente é o chefe Grande Inteligência. Você é que tem de me explicar esta porcaria toda.
Weber recorreu ao seu treino profissional.
- Talvez alguns testes nos ajudem a ambos a entender o que se passou. - Não era exactamente uma mentira, per se. Já vira acontecer coisas mais estranhas. E no mercado da esperança, aquilo qualificava-se como tal.
Mark afagou o rosto cicatrizado e suspirou.
- Está bem. O que quiser. Não se acanhe.
Trabalharam durante bastante tempo. Mark curvou-se sobre os testes, agarrando a caneta tão persistentemente quanto agarrara o comando. A sua concentração não era muita, mas conseguiu completar a maioria das tarefas. Revelou pouca diminuição cognitiva. A sua maturidade emocional ficou abaixo da média, mas não muito mais abaixo, Weber supôs, do que os restantes envolvidos no confronto daquela manhã. Toda a América teria ficado abaixo da média nesse aspecto, hoje em dia. Mark mostrou ainda alguns indícios de depressão. Weber teria ficado espantado se assim não fosse. Sintomas de depressão era um sinal indicador de resposta apropriada, no Verão de 2002.
Outros testes revelaram paranóia. Até meados da década de 1970, muitos clínicos afirmavam que a Capgras era o subproduto de uma doença paranóica. Um quarto de século chegara para inverter a causa e o efeito. Ellis e Young, em finais da década de 1990, sugeriram que os doentes que perdem a resposta afectiva a pessoas familiares tornar-se-iam razoavelmente paranóicos. Era sempre assim, com as ideias: recuamos o suficiente, e as nuvens em movimento provocam o vento. Inversões mais estouvadas estavam a caminho, caso Weber vivesse para as testemunhar. Chegaria o dia em que o último causa e efeito perfeitos desapareceriam num matagal de redes emaranhadas.
Porém, indiscutivelmente, a Capgras e a paranóia correlacionavam-se. Não foi, portanto, nenhuma surpresa quando as pontuações de Mark revelaram ligeiras tendências paranóicas. Ao certo que horror os acessos de perseguição e de palhaçada mantinham ao largo, os testes de Weber não conseguiam determinar.
Mark maravilhava-se com a gíria profissional de Weber.
- Meu! Se eu soubesse falar como você, não havia miúda que me escapasse. - Lançou-se numa psicotagarelice imitativa, quase suficientemente convincente para conseguir um salário confortável algures na Costa Oeste.
Weber declarou:
- Vou ler-lhe uma história e quero que a repita. - Puxou do texto padrão e leu-o a uma velocidade normal. - “Era uma vez um lavrador que ficou doente. Foi ao médico da cidade, mas o médico não o conseguiu curar. O médico disse-lhe: "Só uma cara alegre o fará ficar alegre outra vez." Assim, o lavrador correu a cidade toda em busca de alguém alegre, mas não conseguiu encontrar ninguém. Foi para casa. Porém, mesmo antes de chegar à sua quinta, viu um veado de aparência feliz a correr pelos montes e começou a sentir-se um pouco melhor.” Agora, é a sua vez de me contar a história.
- O que o fizer feliz. Então, havia um tipo - Mark resmungou. - Que sofreu um acidente e estava com uma depressão. Foi ao hospital, mas ninguém o ajudava. Disseram-lhe que fosse procurar alguém mais feliz do que ele. Por isso, ele foi até à baixa, mas não conseguiu encontrar ninguém. Por isso, foi para casa. No entanto, no caminho para casa, viu um animal e pensou: “Aquele tipo é mais feliz do que eu.” Fim. - Encolheu os ombros, esperando a pontuação obtida e rejeitando-a ao mesmo tempo.
Nessa tarde, durante um intervalo dos testes, Mark perguntou:
- Também o construíram?
O gravador estava ainda ligado. Weber fez um ar desinteressado. A criatura que ele caçava descansava numa clareira soalheira, mesmo à sua frente.
- Como assim?
- Também o montaram a partir de várias peças? - O tom de voz simples, o à-vontade corporal: era como se estivesse a cumprimentar um vizinho do seu quintal para o dele. Agradavelmente educado, mas equilibrado sobre o poço sem fundo.
- Não acha que sou humano?
- “Não faço ideia” - imitou Mark. - “O que é que você acha?” - Os seus perscrutantes olhos deslocaram-se ao captar algum movimento por trás de Weber. - Olá, Barbie!
Weber virou-se, sobressaltado. Barbara Gillespie estava mesmo a seu lado, num fato com uma saia cor-de-ocre mais adequada para uma entrevista de emprego. Cumprimentou-o dissimuladamente na fracção de segundo antes de se dirigir a Mark.
- Mister S.! Espera-o uma mudança completa de óleo.
Mark relanceou o olhar na direcção de Weber, cheio de satisfação criminosa.
- Não se preocupe. Não é nem um pouco tão interessante quanto possa soar.
Barbara olhou para Weber.
- Devo regressar mais tarde? Precisa de mais tempo?
Esta aliança tácita irritava Weber.
- Estávamos a terminar, na verdade.
Olhou de relance para ele, quase uma pergunta. Voltou-se para Mark e apontou para a casa de banho.
- Ouviu o que o médico disse?
Mark levantou-se da cadeira e pôs-se de pé. Entrou na casa de banho, depois meteu a cabeça fora da porta outra vez.
- Acho que vou precisar de ajuda!
Barbara abanou a cabeça.
- Boa tentativa, querido. E desta vez não tires a toalha, está bem?
- Ela chamou-me querido! Ouviu-a, não ouviu, Psi? Confirma-me isto em tribunal, não confirma?
Quando a porta se voltou a fechar, Barbara virou-se para Weber. Não desviou o seu olhar do dele: mais uma vez a irritante ligação.
- Pode escrever uma nota de que o impulso sexual dele parece não ter sido afectado?
Weber levou o polegar e o indicador ao lóbulo da orelha.
- Perdoe-me ter de lhe fazer a pergunta mais batida do mundo. Já nos conhecemos antes?
- Quer dizer antes de há dois dias?
Weber não se riu do gracejo. Chegara a uma idade em que toda a gente se encaixava num dos 36 modelos fisionómicos disponíveis. O número de pessoas que ele conhecera outrora e que nunca mais voltara a ver atingira proporções devastadoras. Chegara a um ponto, por volta dos cinquenta anos, em que cada nova pessoa que conhecia o fazia lembrar outra qualquer.
O problema era exacerbado quando completos estranhos o cumprimentavam com familiaridade. Podia passar por alguém nos corredores do centro médico da universidade e depois ver a pessoa seis meses mais tarde numa loja de conveniência, dominado por uma sensação de ligação colegial. As pradarias virgens do Nebrasca eram um sonho em comparação com os campos minados de Long Island e Manhattan. No entanto, tivera dois dias para localizar esta mulher e ainda assim não lhe ocorrera nada.
Barbara tentou não sorrir.
- Acho que me recordaria, se já nos tivéssemos conhecido.
Afinal de contas, ela sabia quem ele era, talvez até já tivesse lido alguma coisa sua. Porque haveria uma auxiliar de enfermagem de quarenta e poucos anos de ler livros como os seus? A ideia era imperdoavelmente intolerante, machista, ignorante, em especial para um homem que outrora dedicara um capítulo inteiro aos erros e preconceitos que assombram os circuitos humanos. Observou-a, impelido pela inverosimilhança dela.
- Há quanto tempo está em Dedham Glen?
Barbara olhou na direcção do tecto e fez um cálculo cómico.
- Há já algum tempo.
- E onde esteve antes? - Era absurdo, tentar alcançar a Lua com algumas pedras dispersas no escuro.
- Oklahoma City.
Cada vez mais frio.
- O mesmo tipo de trabalho?
- Semelhante.
Lá estava numa instituição pública de maiores dimensões.
- O que a fez vir para o Nebrasca?
Ela sorriu e inclinou a cabeça para baixo, como se segurasse uma maçã com o queixo.
- Acho que já não suportava o movimento e o burburinho da metrópole. - Algo distante prendeu o seu interesse. Descoberta, ficou envergonhada. O olhar dela acanhou-o, embora a culpa fosse dele. Desviou os olhos. Foi salvo pelo aparecimento de Mark Schluter à porta da casa de banho. Segurava uma toalha frente ao corpo nu. O gorro desaparecera, expondo o cabelo que retornava. Pueril, sorriu de orelha a orelha para a sua auxiliar.
- Estou pronto para sofrer, minha senhora.
Com duas sobrancelhas arqueadas, Barbara desculpou-se, estranhamente íntima, como se eles os dois tivessem crescido a três casas de distância, tivessem frequentado a escola primária juntos, tivessem trocado centenas de cartas, namoriscado uma tarde para testar algo mais sério, e depois se tivessem afastado e decidido ser irmãos de sangue honorários para o resto da vida.
Weber reuniu os seus papéis e retirou-se para o corredor. Obtivera o que queria, recolhera os dados necessários, vira de perto uma das mais bizarras aberrações de que o eu poderia sofrer. Tinha agora material suficiente, se não para um artigo numa publicação médica, pelo menos para uma inesquecível narrativa de um caso clínico. Pouco mais poderia fazer aqui. Estava na altura de rumar a casa, retomar as rondas de colóquios, as aulas, o trabalho no laboratório e a escrita - a rotina que concedera à sua meia-idade uma certa reflexão produtiva completamente imerecida.
Antes de partir, queria só inquirir Barbara Gillespie acerca das alterações observadas em Mark ao longo das últimas semanas. Tinha as observações do dr. Hayes, é claro, e também as de Karin. Mas apenas esta mulher via Mark constantemente, sem qualquer compromisso que a fizesse vacilar. Sentou-se no vestíbulo numa ponta de um sofá frente a uma mulher ligeiramente mais nova do que ele e paralisada numa luta épica com o fecho do seu desnecessário casaco. Queria ajudá-la, mas sabia o suficiente para não o fazer. Sentia-se estranhamente nervoso, à espera de Barbara como se tivesse 18 anos outra vez e estivesse num baile de finalistas. Olhava para o relógio a cada dois minutos. Quando o consultou pela quarta vez, pôs-se de pé de um pulo, sobressaltando a mulher que sofria de paralisia e que, sem querer, abriu o fecho até ao ponto de partida. Esquecera-se de que pedira a Karin Schluter que telefonasse ao irmão às três horas em ponto, e já faltavam poucos minutos.
Rondou a porta fechada do quarto de Mark, escutando descaradamente o que se passava do outro lado. Ouvia a mulher falar e os grunhidos alegres de Mark. O telefone tocou. O rapaz praguejou e gritou para o telefone.
- Vou já, vou já. Calma nos cavalos.
Por cima do ruído de pancadas na mobília, a apaziguante voz de Barbara:
- Não é preciso pressa. Quem estiver do outro lado espera.
Weber bateu à porta e abriu-a sem que ninguém o mandasse entrar. Surpreendida, Barbara Gillespie levantou os olhos de onde estivera sentada a folhear revistas com Mark. Weber esgueirou-se para dentro do quarto, fechando a porta por trás de si. Mark estava de costas para ele, debatendo-se com o auscultador. Os seus braços tremeram ao gritar:
- Estou? Quem fala? - Um silêncio chocado. - Oh, meu Deus! Onde estás tu? Por onde tens andado?
Weber olhou de relance para Gillespie. A auxiliar olhava-o fixamente, adivinhando não apenas quem estava do outro lado da linha, mas também o papel de Weber naquele telefonema. Os olhos dela questionavam-no. Foi a vez dele de desviar o olhar, embaraçado.
A voz de Mark modificou-se e suavizou-se, dando as boas-vindas a um ente querido que regressava dos mortos.
- Estás aqui? Estás em Kearney? Meu Deus. Graças a Deus! Vem para cá, agora. Não! Não quero escutar nem mais uma palavra. Não vou falar pelo telefone, depois de tudo isto. Não vais acreditar em tudo aquilo por que passei. Nem acredito que não estiveste aqui comigo durante tudo isto. Não estou... Estou apenas a dizer... Vem para cá. Preciso de olhar para ti. Preciso de ter ver. Sabes onde estou? Ah, claro, que disparate o meu. Dá corda aos sapatos. Está bem. Não. Pára. Não vou continuar a falar. Vou já desligar. Estás a ouvir? - Inclinou-se para o telefone, como que a demonstrar-lho.
- Estou a desligar. - Pousou o auscultador. Levantou-o de novo, escutando. Virou-se para os outros, radiante. Aceitou o reaparecimento de Weber sem o questionar. Estava nas nuvens. - Não vão acreditar quem era! Karin S.!
Barbara lançou um olhar a Weber e levantou-se.
- Tenho muito que fazer - anunciou. Esfregou a cabeça calva de Mark Schluter e passou de raspão por Weber.
Weber deixou o extasiado Mark no quarto e seguiu-a até ao corredor.
- Miss Gillespie - chamou, surpreendendo-se até a si mesmo.
- Posso roubar-lhe um minuto?
Ela parou e abanou a cabeça, esperando que ele se dirigisse a si, onde Mark não os escutaria.
- Não é justo.
Ele acenou, de uma forma demasiado clínica. A angústia dela surpreendeu-o. Seguramente que ela lidava com coisas piores, todos os dias.
- É um golpe duro, mas as pessoas são extraordinariamente maleáveis. O cérebro surpreender-nos-á.
Ela arqueou uma sobrancelha.
- Refiro-me ao telefonema.
A acusação irritou-o. Ela nada conhecia acerca da literatura sobre este tipo de casos, sobre diagnósticos diferenciais, sobre as perspectivas cognitivas ou emocionais deste homem. Uma funcionária paga à hora. Acalmou-se. Quando as palavras saíram da sua boca, eram tão uniformes quanto o horizonte das planícies.
- Está relacionado com uma coisa que nós precisamos de determinar.
A palavra formou-se no rosto dela: Nós?
- Desculpe. Sou apenas uma auxiliar. As enfermeiras e terapeutas poderão com certeza informá-lo muito melhor. Com licença, estou muito atrasada. - Bateu à porta e desapareceu no interior do quarto de outro paciente, duas portas mais abaixo.
Agitado, Weber regressou para junto de Mark. Deu com ele a fazer piruetas sobre um calcanhar. Ao ver Weber, lançou ambas as mãos ao ar.
- A minha irmã! Acredita? Não tarda, estará aqui. Vai ter muitas explicações a dar-me, isso é que vai.
Na verdade, Weber não esperara que a experiência fosse bem-sucedida. Parcialidade experimental, chamar-lhe-ia o Dr. Hayes. Redundante: a mera proposta de uma experiência traía uma expectativa. Sim, suspeitava que isto fosse mais do que um simples curto-circuito, pois o facto de uma desconexão entre a amígdala e o córtex infero-temporal espezinhar desta forma toda as formas mais elevadas de cognição era escarnecer de toda a confiança depositada na consciência. Fossem quais fossem as razões que a razão de Weber tinha, uma parte de si esperava que uma emocionante interacção telefónica se pudesse revelar terapêutica. E talvez essa fosse a maior crueldade, o desejo crente que sancionava testes não aprovados em sujeitos vivos.
Mark parou de andar de um lado para o outro quando Karin Schluter apareceu, triunfante, à porta do quarto. Algo mudara: trocara de penteado e ondulara o cabelo. Risco azul-forte nos olhos e lábios cor de pêssego.
Um par de calças de ganga deslavadas e uma t-shirt demasiado colada ao corpo com o desenho de uma pata de animal à frente e por baixo lia-se: Kearney High School, Home of the Bearcats. A Karin líder de claque, a anterior à Karin gótica. Weber concedera-lhe uma terrível réstia de esperança e ela agarrara-a a ela com unhas e dentes. Avançou a passos largos para dentro do quarto, braços estendidos, o rosto radiante de alívio, pronta para os abraçar aos dois. Porém, à medida que a distância entre eles diminuía, Mark recuou.
- Não me toques! Eras tu ao telefone? Não achas que já me torturaste o suficiente? Tinhas de fazer de conta de que ela estava cá? Onde está ela? O que fizeram com a minha irmã?
Ambos os irmãos soltaram um grito. Weber virou-se ao mesmo tempo que o barulho viajava pelo corredor abaixo, era escutado por Barbara Gillespie e confirmava a sua ideia. A experiência escapara ao seu controlo, mas os resultados eram todos obra sua.
Nessa noite, ao telefone com Sylvie, contou-lhe todas as histórias do dia. Que Mark e os amigos haviam jogado às corridas de carros como se isso nada significasse. Que Karin perdera as estribeiras ao vê-los. A forma estranha como Mark se saíra nos testes e as suas explicações para cada desaire. Como ele ficara feliz ao escutar a irmã e depois gritara ao vê-la. Weber não mencionou a auxiliar que quase o acusara de falta de ética.
Por cada história com que presenteou Sylvie, ela contou-lhe outra de volta. No entanto, na manhã seguinte ficou com a sensação de que ela inventara todos os relatos.
Weber trabalhara com vários pacientes que não conseguiam reconhecer as suas próprias partes corporais. Asomatognosia: surgia com uma frequência assombrosa, quase sempre quando acidentes vasculares cerebrais ocorridos no hemisfério direito paralisavam o lado esquerdo da vítima. Combinara os pacientes por escrito sob o nome de Mary H. Uma mulher de sessenta anos, a primeira das Marys, afirmava que o braço paralisado a “importunava”. “- Importunar, como assim?
- Bom, não sei de quem é. E acho isso perturbador, doutor.
- Poderia ser seu?
- Impossível, doutor. Não lhe parece que eu reconheceria a minha própria mão?”
Pediu-lhe que, com a mão direita, percorresse todo o membro esquerdo, desde o ombro até à ponta dos dedos. Estava tudo unido.
- Então, de quem é esta mão?
- Não poderia ser sua, pois não, doutor?
- Mas está unida a si.
- O senhor é médico. Sabe bem que nem sempre podemos acreditar no que vemos.”
Outras Marys subsequentes atribuíram nomes aos seus membros. Uma senhora idosa chamava ao seu “A Dama de Ferro”. Um condutor de ambulâncias na casa dos cinquenta apelidava o seu de “Sr. Chimpanzé Manco”. Atribuíam personalidades aos seus braços, histórias completas. Conversavam, discutiam e tentavam até alimentá-los. “Vá lá, Sr. Chimpanzé Manco. Bem sabe que está com fome.” Faziam tudo, menos possuí-los. Uma mulher afirmava que o pai lhe deixara o braço quando morrera. “Preferia que não o tivesse feito. Está sempre a cair-me em cima. Cai-me em cima do peito quando durmo Por que motivo terá ele querido que eu ficasse com isto? É um verdadeiro fardo que eu carrego.”
Um mecânico de 48 anos relatou a Weber que o braço paralisado a seu lado na cama era o da sua esposa.
“Ela está no hospital agora. Teve uma trombose. Perdeu o controlo do braço, portanto... aqui está ele. Estou a tomar conta dele por ela.
Se esse braço é dela, perguntou-lhe Weber, onde está o seu?
- Então, aqui mesmo, é claro!
- Consegue levantar o seu braço?
- Estou a levantá-lo, doutor.
- É capaz de bater palmas? - A mão direita, não afectada, agitava-se no ar sozinha. - Está a bater palmas?
- Sim.
- Não consigo escutar nada, e você?
- Pois, realmente é um bater de palmas bastante brando. Mas isso é só porque não tenho motivos para bater palmas.”
Confabulação pessoal, chamava-lhe o neurologista Feinberg. Uma história para ligar o eu mutável aos factos sem sentido.
A razão não se encontra aqui comprometida; a lógica continua a funcionar em qualquer outro tópico, menos neste. Apenas o mapa do corpo, a noção que dele temos, é fracturada. E a lógica não era alheia à redistribuição das suas próprias e incontestáveis partes de modo a tornar novamente verdadeiro um sentido obstinado do todo. Deitado no seu quarto de motel às duas da madrugada, Weber conseguia quase sentir esse facto nos membros que deitado numerava: uma ficção única e sólida derrota sempre a verdade da nossa disseminação.
Acordou sobressaltado de um sonho onde o seu trabalho correra terrivelmente mal. Estava ainda hipnopômpico. Pulso acelerado e pele húmida. Qualquer coisa latejava mesmo abaixo do esterno. Algo acontecera em Nova Iorque que precisava de remediar. O seu sonho estivera à beira de o identificar. Algo que arruinava tudo o que fizera nas últimas duas décadas. Alguma alteração no clima, o vento a virar-se contra si, expondo o óbvio, todos os indícios nos quais era o último a reparar. E por um momento antes de ficar totalmente consciente, recordou-se de ter sentido o mesmo terror surdo em noites anteriores.
O espectral brilho encarnado do relógio indicava quatro horas e dez minutos da manhã. Refeições irregulares e um ambiente estranho, a glicemia baixa, o córtex pré-frontal narcotizado pelo sono, antigos ciclos fisiológicos ligados ao movimento rotativo da Terra: o mesmo fluxo químico por trás de qualquer noite escura da alma. Weber fechou de novo os olhos e tentou desacelerar o pulso e aclarar a mente das fantasias tolas daquela noite. Esforçou-se por se acalmar e se concentrar no ritmo da sua respiração, mas voltava sempre a uma lista de indistintas acusações. Foi preciso esperar até às quatro e meia para conseguir nomear aquilo que sentia: vergonha.
Dormira sempre sem esforço, quando queria. Sylvie ficava maravilhada com semelhante capacidade. “Deves ter a consciência de um menino de coro.” Ela mesma perderia uma noite de sono se chegasse cinco minutos atrasada a uma consulta no dentista. O único período pior de insónia por que passara fora nos primeiros meses da faculdade de Medicina, depois de se terem mudado de Columbus para Cambridge. Anos mais tarde, tivera algumas noites difíceis após abdicar da prática clínica. Depois, outra semana insone quando Jessica contou aos dois o segredo que mantivera, uma revelação que perturbou Weber não porque tivesse quaisquer objecções, mas porque Jess sentira a necessidade de esconder o facto deles durante tanto tempo. A culpa era dele: todas as vezes que arreliara a filha acerca de rapazes, comentando a sua abordagem vagarosa na busca de parceiro, matava pequenos pedaços dela.
Tivera alturas - o primeiro ano no seu novo laboratório em Stony Brook; o súbito despertar da sua vocação para a escrita - em que nem sequer precisara de dormir. Trabalhava até depois da meia-noite e acordava passada uma hora ou duas com ideias novas. E a mesma Sylvie que se maravilhara por ele conseguir adormecer segundos depois de a sua cabeça repousar na almofada ficara de boca aberta com esta capacidade de aguentar noite após noite quase sem dormir. “Um camelo, é o que tu és. Um camelo de consciência.”
Não o teria reconhecido agora. Deixou-se ficar quieto e tentou esvaziar a mente. Descansar é tão repousante quanto dormir, a sua mãe sempre afirmara, metade de um século antes. Os investigadores alguma vez desaprovaram realmente a sabedoria do povo? Mas até descansar parecia uma tarefa hercúlea. Por volta das cinco e meia, os mais longos oitentas minutos que há anos vivera, desistiu. Vestiu-se às escuras e desceu ao andar inferior. O vestíbulo estava vazio com excepção de uma jovem mulher hispânica atrás do balcão, que sussurrou bom dia e o informou que só dali a meia hora começariam a servir o pequeno-almoço. Weber acenou-lhe acanhadamente. A rapariga estava a ler um manual escolar: química orgânica.
A madrugada começava a romper. Conseguia distinguir formas na luminosidade cor de índigo, mas ainda não cores. A rua pareceu-lhe encantadora, fresca e sonolenta. Atravessou o estacionamento de asfalto em direcção à atrofiada zona comercial. Um único camião habitava a bomba da Mobil do outro lado da rua. Os seus ouvidos adaptaram-se, sintonizando a completa cacofonia. A sinfonia da aurora: piares e remoques, assobios zombeteiros, chilreios, cigarreares, arpejos e escalas. A esta hora, poucas seriam as probabilidades de ser detido por vagabundagem. Parou no extremo do parque de estacionamento do MotoRest, cerrou os olhos e escutou.
As cantigas surgiram, matemáticas, melodiosas, os seus elaborados padrões mudando lentamente. Algumas eram tão passíveis de serem cantadas quanto qualquer canção humana. Contou-as, tornando-se sensível aos sinais que as desencadeavam, cada qual um solo contra um enorme coro. Perdeu a conta depois de uma dúzia, sem saber onde juntar tudo e onde dividir. Cada pequena frase ritmada era identificável, muito embora Weber não fosse capaz de identificar nenhuma. Mais suave, a meia distância, escutou o silvo de carros ao longo da Interestadual 80, soprando como balões furados.
Abriu os olhos: ainda em Kearney. Uma tímida área comercial marcada por uma floresta de sequóias de metal exibindo sinalética animada e irritante. A habitual gama de ofertas - motel, gasolina, loja de conveniência e restaurantes de fast food - asseguravam ao peregrino acidental que estava num local semelhante a qualquer outro. O progresso tornaria por fim todos os locais familiares. Vagueou até ao entroncamento e farejou o caminho até à cidade.
A árida sequência de lojas ao longo da rua dava lugar, numa mão-cheia de quarteirões, a casas vitorianas prodigamente elaboradas com alpendres em todo o redor. O centro de uma antiga baixa ficava mesmo a seguir. O fantasma de um posto avançado, datado de cerca de 1890, continuava presente nas fachadas altas e quadrangulares de tijolo das lojas. A luz começava a despontar. Conseguia agora ler os cartazes nas montras das lojas: Rally de Celebração da Liberdade; Exibição de Corvettes; Faith In Bloom Garden Tour. Passou por um local chamado The Runza Hut, trancado e escuro, escondendo o seu interior de intrusos forasteiros.
A cidade espreguiçava-se e começava a acordar. Três ou quatro pessoas deslocavam-se ao longo da rua à sua frente. Passou por um monumento aos mortos locais nas duas guerras mundiais. O quadro completo deixou-o inquieto. As ruas eram demasiado largas, as casas e lojas demasiado amplas, demasiado terreno desperdiçado entre elas. Kearney fora concebida numa escala demasiado grandiosa, nos tempos em que se concediam terras em troca de nada, muito antes do verdadeiro destino do local se tornar claro. As suas vias haviam sido traçadas numa grelha de ruas e avenidas numeradas, como se tivesse corrido o perigo de germinar numa Manhattan em tamanho real contra o vazio épico que a rodeava.
Weber sentou-se num banco em frente ao monumento, perscrutando os últimos dois dias em busca do que o perturbara. Pensou em Mark Schluter, na confiança ininterrupta e irreflectida no seu eu despedaçado. Contudo, deter-se a pensar em Mark revelou-se um erro. Ali, na rua demasiado espaçosa, a vertigem voltou a encontrar e assolar Weber. Algo crucial lhe estava a escapar. Deixara-se ficar vulnerável a alguma acusação. O passeio alargava-se e rolava sob os seus pés. Sem qualquer explicação racional.
Levantou-se e avançou mais dois quarteirões, procurando qualquer coisa que já estivesse aberta a esta hora. Um restaurante untuoso materializou-se do outro lado da rua. Empurrou a porta, sacudindo um peixe, símbolo de Jesus, contra o vidro. Encolheu-se e recuou, mesmo depois de um badalo de vaca no interior ter denunciado a sua presença. Numa mesa central, quatro homens curtidos pelo tempo, vestidos de ganga e com bonés que exibiam logótipos de sementes híbridas, viraram-se para olhar para ele. Entrou timidamente e rondou a caixa registadora até uma mulher gritar da cozinha:
- Pode sentar-se, querido!
Avançou aos tropeções até uma mesa afastada dos agricultores. Ao aliviar o seu peso sobre o esponjoso assento encarnado, o ordálioda noite passada voltou-lhe à memória. Exactamente o tipo de agitação pouco intensa que responderia muito bem aos ansiolíticos que os seus colegas agora prescreviam por atacado. Sabendo a facilidade com que o corpo parava de produzir substâncias fornecidas externamente, Weber tentava não tomar nada mais forte do que um complexo multivitamínico. Mas até mesmo isso se esquecera de colocar na mala, por isso não tomara nada nos últimos três dias. Contudo, uma alteração tão ténue não poderia explicar este acesso.
Tamborilou a fórmica cinzenta do tampo da mesa. Observou os seus dedos dactilografar. Uma gargalhada começou a formar-se no seu estômago apertado pela fome e foi-lhe impossível contê-la. Deteve as mãos dactilógrafas e conteve-as uma na outra. O diagnóstico estava mesmo em frente aos seus olhos. Ele, o último cientista vivo a entrar no espaço cibernáutico, estava a sofrer de sintomas de abstinência de correio electrónico.
A empregada apareceu junto à mesa vestida como num filme: metade enfermeira e metade fiscal de parquímetro. Da idade dele, talvez não: trinta anos demasiado velha para servir às mesas. Ele sorriu-lhe, um idiota numa saída precária. A empregada abanou a cabeça.
- Não precisa de permissão para estar tão contente antes de ter tomado o seu café? - Ergueu duas cafeteiras de pirex. Ele apontou para a que não era cor de laranja.
Já se esquecera de como eram as gentes do Midwest. Já não as conseguia entender, a sua própria gente, os residentes do Grande Corredor Aéreo Central. Ou melhor, as suas teorias sobre estas gentes, desenvolvidas ao longo dos seus primeiros vinte anos de vida, tinham morrido por falta de dados longitudinais. Eram, de acordo com várias estimativas, mais amáveis, reservadas, embotadas, perspicazes, mais francas, mais dissimuladas, mais taciturnas, mais circunspectas e mais gregárias do que a média da curva quártica do país. Ou então, elas eram essa média: a parte rechonchuda e intermédia do gráfico que declinava em direcção ao nada em ambas as costas. Haviam-se transformado numa espécie alienígena para ele, embora fosse uma delas, por nascimento e educação.
Esfregou a cabeça onde o cabelo começava a rarear e abanou a cabeça. Num tom mais aguçado, ela perguntou:
- O que vai ser, querido? - Olhou em redor da cabina, confuso.
Ela deixou escapar um pequeno suspiro, o primeiro de um longo dia.
- Precisa de um cardápio? Temos de tudo.
Ele ergueu as sobrancelhas.
- Crepes de espinafre?
Os lábios dela mal se comprimiram.
- Acabaram-se mesmo agora. Mas temos tudo o resto. - Quando ela virou costas com o pedido - dois ovos estrelados e duas salsichas -, ele tirou o absurdo telemóvel do bolso. Era como carregar um daqueles phasers de ficção científica. Metera-o no bolso das calças ao sair do quarto, já contemplando uma dupla descida aos maus hábitos. Consultou o relógio, acrescentando uma hora ao fuso horário do Nebrasca para coincidir com o de Nova Iorque. Era ainda muito cedo. Pôs-se a escutar a conversa da mesa dos agricultores, mas o pouco que diziam era de tal forma encriptado pelo sotaque, que bem podiam ser pawnees. Um dos membros do grupo, um rosto bolboso com uma luxuriante pilosidade nas orelhas e no nariz, cujo boné encarnado dizia IBP, manobrava um palito, talhando-o com a forma de um minúsculo totem com os seus hábeis incisivos.
- Não nos podemos dar a presunções - dizia o homem.
- Aqueles árabes são capazes de atravessar um deserto a pé para se vingarem de uma miragem.
- Bom, é praticamente o que a Bíblia diz - concordou o seu comensal.
Não valia a pena alarmar Sylvie, na verdade. Ela nada lhe poderia dizer. Se alguma coisa tivesse corrido mal, ela tê-lo-ia mencionado na noite anterior. Para além disso, se ela o apanhasse a usar um telemóvel num local público para mitigar um nervosismo, faria com que tal invulgaridade nunca mais fosse esquecida.
A empregada trouxe-lhe as salsichas e os ovos.
- Disse torradas de pão de trigo, não foi, querido? - Ele acenou que sim com a cabeça. Nenhum deles mencionara torradas, segundo se lembrava. Serviu-lhe mais café e encaminhou-se para a mesa dos agricultores. Deteve-se e virou-se de novo para ele.
- Você é aquele médico da cabeça de Nova Iorque? O que veio ver Mark Schluter?
Ele corou.
- Sou, sim. Como é que...?
- Quem me dera poder dizer-lhe que era por ter poderes psíquicos. - Desenhou uma espiral com a cafeteira em redor dos ouvidos. - A minha sobrinha é amiga dos rapazes. Mostrou-me um livro seu. Disse-me que estava por cá. Todos achamos que é uma tragédia o que aconteceu a Mark. Mas há quem diga que, se não fosse este acidente em particular, seria outro muito parecido. A minha sobrinha Bonnie diz que ele agora está muito diferente. Não que já não fosse um bocado “diferente”, antes.
- Ficou bastante magoado, é verdade. Porém, o cérebro é um órgão surpreendente. Ficaria espantada se soubesse as coisas de que o cérebro consegue recuperar.
- É o que eu estou sempre a tentar dizer ao meu marido. Algo fez dique dentro dele. Sentiu a emoção de desenterrar algo demasiado insignificante para merecer ser recordado.
- A sua sobrinha. É magra, de tez clara? Cabelo comprido, liso, preto, abaixo dos ombros? Costuma tricotar a própria roupa?
A empregada colocou uma mão na anca e inclinou a cabeça.
- Ora, mas eu sei de certeza que ela ainda não o conheceu.
Foi a vez dele de desenhar uma espiral com as mãos em redor das orelhas.
- Poderes psíquicos.
- Está bem - concordou ela. - Já ganhou o meu dinheiro. Vou comprar o seu livro.
Foi servir café ao grupo de homens. Estes meteram-se com ela escandalosamente, fazendo graçolas acerca do seu par de cafeteiras redondas e escaldantes. As mesmas piadas que se ouviam nos pequenos restaurantes de Long Island, chalaças que Weber há muito deixara de ouvir na sua terra natal. Ela inclinou-se para o grupo de homens e começaram a falar em sussurros. De certeza que sobre ele. A espécie alienígena.
A empregada regressou ao balcão passando pela mesa dele e acenando as cafeteiras exultantemente.
- Esteve a ver fotografias dela no Pioneer Pizza. Aquele tipo ali... - apontou com a cafeteira do descafeinado. - ... não direi “cavalheiro”, tem uma filha que já o serviu.
Weber pressionou a mão contra a testa.
- Acho que estou em minoria, aqui.
- Uma cidade pequena para si, não é? Toda a gente é familiar de alguém. Quer que lhe leve o prato, querido? Ou ainda não terminou?
- Já, já terminei.
Assim que a empregada se foi embora, foi de novo assolado pelo mesmo terror. O café fora um erro, depois de uma noite como a anterior. Já não bebia café, sem ser descafeinado, há muito tempo. Há cerca de dois anos que Sylvie o mantinha desintoxicado. A salsicha também: um enorme erro de cálculo. Quatro dias no Nebrasca; quatro dias longe do laboratório, do escritório, da escrivaninha. Consultou o relógio; era ainda demasiado cedo para ligar para a costa leste. No entanto, telefonava para o telemóvel de Bob Cavanaugh tão poucas vezes que conquistara o direito de abusar dele agora.
O antecipado “Gerald!” do seu editor surpreendeu Weber. Identificação de chamadas: uma das verdadeiras tecnologias malévolas do mundo. O destinatário não deveria saber quem era o remetente antes de o remetente saber quem o destinatário era. O telemóvel de Weber também identificava as chamadas no ecrã, mas ele desviava sempre os olhos. Cavanaugh soou-lhe satisfeito.
- Já sei porque me está a telefonar!
As palavras rastejaram pela coluna de Weber acima.
- Sabe?
- Ainda não as viu? Enviei-as como anexos, ontem.
- Vi o quê? Estou em viagem. No Nebrasca. Não...
- Deus o ajude. Como é aí, ainda usam sinais de fumo?
- Não, de certeza que têm... Eu é que ainda não...
- Gerald, porque está a sussurrar?
- Bom, é que estou num local público. - Olhou em redor. Ninguém no restaurante estava a olhar para si. Não precisavam.
- Gerald Weber! - Afectuoso mas implacável. - Não me está a telefonar a esta hora para saber como as coisas estão?
- Bem, não totalmente, não. Era apenas...
- Ora, ora, Gerald. Mais três livros e estará a perguntar-me os volumes de vendas. Eu, pelo menos, estou encantado por testemunhar a sua descida à humanidade. Bom, pode ficar descansado. Começámos com o pé direito.
- Um pé direito? A criatura em questão é bípede?
- Ah, humor biológico. A crítica da Kirkus é um pouco mista, mas a da Booklist é um espanto. Espere um pouco. Estou à chuva. Copiei-as para o meu portátil. Leio-lhe as partes mais importantes.
Weber escutou. Não podia ser isso. Não poderia estar preocupado com o livro. O País da Surpresa era a melhor coisa que alguma vez escrevera. Consistia de uma dúzia de relatos de casos de doentes que haviam sofrido o que Weber diligentemente se recusava a apelidar de lesão cerebral. Cada um destes 12 sujeitos fora de forma tão profunda alterado por uma doença ou acidente, que todos levantavam dúvidas em relação à solidez do eu. Não éramos um todo único, contínuo, indivisível, mas antes centenas de subsistemas separados, e qualquer alteração num deles era o suficiente para dispersar a confederação provisória em novos países irreconhecíveis. Quem poderia argumentar contra isso?
Escutou a crítica. Cavanaugh parou de ler. Weber deveria supostamente reagir.
- Ficou satisfeito? - perguntou ao editor.
- Eu? Eu acho fantástica. Vamos usá-la para a promoção.
Weber acenou que sim com a cabeça, para alguém a meio continente de distância.
- Do que é que a Kirkus não gostou?
Novo silêncio do outro lado. Cavanaugh a ser astucioso.
- Qualquer coisa sobre as histórias serem demasiado anedóticas. Demasiada filosofia e poucas perseguições automóveis. Talvez tenham usado a palavra portentoso.
- Portentoso em que sentido?
- Sabe, Gerald, se fosse a si não me preocupava com isto. Já ninguém o consegue descobrir. Tornou-se num alvo demasiado apetitoso; há portanto mais pontos a ganhar por derrubá-lo do que por elogiá-lo. Isto não nos fará qualquer mossa.
- Tem a crítica aí à mão?
Cavanaugh suspirou e abriu o ficheiro. Leu a crítica a Weber.
- Pronto, satisfeito? Você é mesmo masoquista. Agora esqueça o assunto. Que se lixem os campónios. Então, o que está a fazer no Nebrasca? Alguma coisa a ver com o novo projecto, espero?
Weber hesitou.
- Já sabe como eu sou, Bob. Tudo é um novo projecto.
- Está a examinar alguém?
- Um jovem vítima de acidente que acha que a irmã é uma impostora.
- Curioso. É precisamente o que a minha irmã pensa de mim.
Weber riu, respeitosamente, e respondeu:
- Todos desempenhamos o papel de nós mesmos.
- É para o novo livro? Achei que iria comprar os direitos de um livro sobre a memória.
- É isso mesmo que é interessante. A irmã corresponde em todos os aspectos ao que ele se lembra dela, mas ele está preparado para rejeitar a memória em favor do instinto. Nem todas as provas guardadas na sua memória se comparam ao mais básico palpite, pressentimento.
- Que loucura. Qual é o prognóstico?
- Terá de comprar o livro, Robert. Vinte e cinco dólares num escaparate perto de si.
- Por esse preço, espero para ler as críticas primeiro.
Desligaram. Weber regressou ao restaurante, despertado pelo odor a gordura de toucinho. A recepção do seu trabalho era quase irrelevante. Apenas o acto de observação honesta importava. E nesse aspecto, estava bem seguro. A ansiedade daquela manhã fora uma aberração. Não conseguia imaginar o que a desencadeara. Talvez a acusação velada daquela auxiliar. Bebeu o seu café, procurando o fundo da caneca.
Na mesa da ponta, os agricultores trocavam anedotas sobre agentes de desenvolvimento agrícola. Weber escutou-os sem seguir a conversa.
A empregada reapareceu.
- Quer mais alguma coisa, querido?
- Só a conta, obrigado. Já agora, posso fazer-lhe uma pergunta? - Sentia-se moderadamente mal disposto outra vez. Nada. - Disse há pouco que toda a gente aqui é parente de alguém. E os Schluter?
Olhou pela janela, na direcção da rua que se enchia aos poucos de corpos em movimento.
- O pai era uma espécie de solitário. Joan Swanson tinha família em Hastings. Mas sabe, ela era o tipo de pessoa que acreditava que o Reino do Senhor viria amanhã à tarde pelas 16h15. E ninguém que ela conhecesse estava pronto para fazer a viagem. Tendia a afastar até mesmo a família. - Abanou a cabeça com um ar triste e empilhou os pratos vazios. - Não foi uma grande rede de segurança para aqueles dois miúdos.
Regressou ao Good Samaritan para trocar impressões com o Dr. Hayes. Reviram o material que Weber reunira em três dias. Hayes estudou os resultados da actividade electrodérmica, as pontuações nos testes de identificação facial e perfis psicológicos. Fez uma dúzia de perguntas a Weber, que apenas lhe soube responder a um terço. Hayes estava impressionado.
- A coisa mais estranha que poderíamos esperar ver e ainda assim sair intacto! - Bateu com a palma da mão na pilha de notas.
- Bom, doutor, conseguiu elevar a minha estima pelo caso. E o que é que está indicado agora? Como tratamos a doença e não apenas o sintoma?
Weber fez uma careta.
- Não estou certo de saber qual a diferença, neste caso. Não se encontram na literatura quaisquer estudos sistemáticos sobre um tratamento. Não existe uma verdadeira amostra estatística com a qual se possa trabalhar. Os casos com origens psiquiátricas são bastante raros. Casos induzidos por traumatismos, então, são praticamente ficção. Se quer a minha opinião...
O neurologista esticou as mãos: livre de objectos afiados.
- Não existem jurisdições na Medicina. Você sabe disso.
Se Weber aprendera alguma coisa ao longo de uma vida dedicada à pesquisa, fora que a verdade era exactamente o oposto.
- Recomendaria terapia comportamental cognitiva, intensiva e persistente. E um rumo conservador, mas que vale a pena seguir. Deixe-me dar-lhe um artigo recente.
Hayes arqueou uma sobrancelha.
- Suponho - disse - que poderíamos até obter uma melhoria espontânea.
Weber contra-atacou.
- Já aconteceu. A terapia comportamental cognitiva possui um bom historial em casos de delírios. Se não fizer mais nada, pelo menos ajudará a lidar com a raiva e a paranóia.
Tudo em relação a Hayes irradiava uma espécie de cepticismo saudável. Porém, a primeira regra da Medicina era fazer alguma coisa. Proveitosa ou inútil, por mais irrelevante ou improvável que fosse, o importante era agir. Hayes levantou-se e estendeu a mão a Weber.
- Vou então encaminhá-lo para psiquiatria. E espero ansioso pelo seu artigo, onde quer que seja publicado. Não se esqueça de escrever o meu nome com um “e”.
Faltavam apenas as despedidas. Weber chegou a Dedham Glen depois da sessão vespertina de fisioterapia de Mark. Karin estava lá, uma boa oportunidade para juntar ambas as despedidas. Viu-os à distância, nos jardins da frente, Karin esticada na relva a 45 metros de distância, como uma espécie de ama de quarentena, e Mark sentado num banco de metal sob um choupo ao lado de uma mulher que Weber reconheceu imediatamente sem alguma vez a ter conhecido. Bonnie Travis usava uma blusa sem mangas azul-bebé e uma saia de ganga. Tendo tirado o gorro de malha, ela estava a colocar uma grinalda de dentes-de-leão entrelaçados em redor da cabeça de Mark Schluter. Colocou-lhe também um galho nas mãos, o ceptro de um Zeus de jardim. Mark comprazia-se com este tratamento. Levantaram as cabeças ao aperceberem-se da aproximação de Weber, e o rosto de Bonnie iluminou-se com um sorriso que apenas poderia ter ocorrido num estado com menos de 22 pessoas por quilómetro quadrado.
- Ei! Eu conheço-o. É tal e qual como na fotografia.
- Você também - respondeu Weber.
Mark largou a rir às gargalhadas. Teria até caído do banco se não se tivesse amparado a Bonnie.
- O que foi? - inquiriu Bonnie, rindo também. - O que foi que eu disse?
- São ambos malucos. - Mark metralhou ambos com o seu ceptro.
- Explica-te, Markie.
- Bom, em primeiro lugar, uma foto é plana, certo? E é, digamos, deste tamanho.
Bonnie Travis cacarejou como um vilão. Ocorreu a Weber que talvez tivessem estado a fumar qualquer coisa antes da sua chegada, muito embora não lhe tivesse cheirado a nada. Karin levantou-se e caminhou até Weber, o seu rosto espelhando desconfiança.
- Ficamos assim, não é?
Mark titubeou.
- O que está a acontecer? Denunciou-a? Está a detê-la?
Weber virou-se para Karin.
- Já falei com o Dr. Hayes. Ele encaminhá-lo-á para uma terapia comportamental cognitiva, conforme discutimos.
- Ela vai para a prisão? - Mark agarrou o antebraço de Bonnie.
- Estás a ver? Que te disse eu? E tu não acreditaste em mim. Esta mulher tem um problema.
- Será envolvida no processo - acrescentou Weber. No que dizia respeito a promessas, esta era a mais débil.
Os olhos de Karin interrogaram Weber.
- Não voltará?
Respondeu-lhe com o ar de respeito amistoso que lhe conquistara a confiança de centenas de pessoas alteradas e ansiosas - toda a segurança que ele mesmo perdera na noite anterior.
- Vai-se embora? - perguntou Bonnie, fazendo beicinho. Na verdade, não se parecia nada com a fotografia. - Mas acabou de chegar.
Mark deu um pulo.
- Esperem lá... Não, Psi. Não vá. Eu proíbo-o! - Apontou o seu imperial tridente a Weber. - Disse que me tirava deste buraco. Quem é que me vai ajudar a pular daqui para fora, se não for você? - Weber arqueou as sobrancelhas mas nada disse. - Bolas! Eu tenho de ir para casa. Quero regressar ao trabalho. Aquele emprego é a única coisa boa que me resta. Eles dão-me com os pés se ficar por aqui muito mais tempo.
Karin levou as palmas das mãos às têmporas.
- Mark, já falámos sobre isto. Estás de licença por incapacidade. Se os médicos acham que precisas de mais terapia, o seguro da IBP irá...
- Não preciso de terapia; preciso de trabalhar. Se esta gente dos cuidados de saúde me deixasse em paz. Não me refiro a si, Psi. A sua cabeça está no sítio certo, pelo menos.
Mark aceitara Weber tão espontaneamente quanto rejeitara a sua própria irmã. Nada do que Weber fizera era merecedor de tal confiança.
- Continue a esforçar-se, Mark. - Weber encolheu-se ao escutar as suas próprias palavras. - Estará em casa em pouco tempo.
Mark desviou os olhos, abatido e desiludido. Bonnie aproximou-se mais dele e colocou-lhe o braço em redor dos ombros. Emitiu um som semelhante ao de um cão que acabara de levar uma palmada.
- A entregar-me de volta a ela! Depois de eu ter provado...
- Se me dão licença - interrompeu Weber, - preciso ainda de verificar e confirmar umas coisas com o pessoal do centro antes de me ir embora. - Encaminhou-se para o edifício e desapareceu no seu interior. A zona de recepção parecia a linha de partida para uma corrida de cadeiras de roda. Weber aproximou-se do balcão e pediu para falar com Barbara Gillespie. O seu pulso acelerou-se, como se tivesse alguma coisa a temer. A recepcionista ligou a Barbara. Ela surgiu, perturbada ao dar de caras com ele. Os olhos dela, aquele alerta verde: vá-se embora agora. Tentou um tom descontraído.
- Ai, ai. Uma autoridade médica.
Ele deu por si a desejar gracejar de volta. Por isso, não o fez.
- Estive a falar com o departamento de neurologia do Good Samaritan.
- Sim? - Mudou de imediato para um registo profissional.
Algo nela sabia o que ele pretendia.
- Concordaram na realização de TCC. Gostaria de recrutar a sua ajuda. Tem uma relação tão boa com ele. E óbvio que ele a adora.
O tom era agora de cautela.
- TCC?
- Desculpe. Terapia comportamental cognitiva. - Estranhou que ela não soubesse. - Estaria interessada?
Sorriu, mesmo sem querer.
- Algumas vezes, sim. Com certeza.
Ele soltou uma gargalhada curta.
- Concordo consigo. Muitas vezes...
Ela acenou com a cabeça, entendendo-o sem que mais explicações fossem necessárias. Voltou a ocorrer-lhe, o absurdo cargo dela. No entanto, Barbara era excelente no que fazia. Quem era ele para a promover acima dessa vocação? Partilharam um momento de nervosismo, ambos procurando o último pormenor esquecido. Porém, tal pormenor não existia, e ele não iria inventar um.
- Muito obrigada, então - concluiu ela. - Tenha cuidado consigo. - As palavras soaram a Weber tão irremediavelmente típicas do Midwest e, no entanto, a voz dela era tão costeira.
Disse de chofre:
- Posso fazer-lhe uma pergunta? Leu, por acaso, alguma coisa minha?
Ela olhou em redor da recepção em busca de apoio.
- Ai! Isto é um exame?
- Claro que não. - Recuou.
- É que, se for, primeiro preciso de estudar.
Weber acenou em jeito de pedido de desculpas, murmurou um agradecimento e partiu em direcção à rua. Imaginou os olhos dela nas suas costas durante todo o percurso ao longo do passeio. Sentiu-se como raramente se sentia, como se tivesse arruinado uma entrevista. A náusea da manhã apoderou-se dele.
Ladeado pelas duas mulheres, Mark parecia entronado no seu banco enquanto um pequeno número de residentes do centro, encarregados e visitas deambulavam pelo jardim do seu plano Olimpo. Uma grinalda de dentes-de-leão, um ceptro de choupo: a forma como Weber o recordaria. Na breve ausência de Weber, Mark mudara outra vez. A amargura da traição desvanecera-se. Estendeu o seu bastão e acenou-o para Weber numa espécie de bênção.
- Deus o acompanhe, viajante. Enviamo-lo de regresso à sua incansável busca de novos planetas.
Weber estacou a meio de um passo.
- Como é que...? Que coincidência tão bizarra.
- As coincidências não existem - declarou Bonnie, as suas palavras uma auréola.
- Não existe outra coisa a não ser coincidências - contradisse Karin.
Mark soltou umas risadinhas.
- O que estão para aí a dizer? Esperem, esperem! Quero dizer... - Tornou a sua voz mais grave, troçando do tom barítono e assertivo de Weber. - Quero dizer: “Como assim?”
- A minha filha é astrónoma. É esse o trabalho dela, procurar planetas novos.
- Meu - explicou Mark falando vagarosamente, - já mo tinha dito.
O facto espantou-o ainda mais do que a imaginada coincidência. A noite insone, o ar quente e húmido dispersara a sua concentração e arruinara-lhe a memória. Precisava de sair dali. Tinha de entregar o resumo de duas conferências ao longo das próximas três semanas, depois uma viagem a Itália com a mulher antes de as aulas recomeçarem no Outono.
Karin acompanhou-o até ao parque de estacionamento. O seu desapontamento convertera-se num desespero estóico.
- Penso que as minhas expectativas eram demasiado elevadas. Quando me disse que o cérebro era surpreendente...? - Acenou os dedos frente à cara. - Eu sei. Não quero com isto dizer... Pode apenas dizer-me uma coisa? Seja sincero.
Weber preparou-se.
- Ele deve mesmo odiar-me, certo? Algum ressentimento muito profundo deve ter desencadeado isto. Alguma coisa o levou a escolher-me, a apontar-me o dedo. Todas as noites antes de dormir tento imaginar o que lhe terei feito que o leve a querer apagar-me. Não consigo recordar-me de nada que mereça isto. Estarei apenas a reprimir...?
Ele tomou-lhe o braço outra vez, estupidamente, como o fizera há três dias, quando pela primeira vez haviam feito este mesmo percurso.
- Não tem nada a ver consigo. Trata-se provavelmente de uma lesão... - Precisamente o oposto do que argumentara com o Dr. Hayes. Ocultando a dinâmica de maior interesse para si. - Já tínhamos falado sobre isto. É uma característica da síndrome de Capgras. O paciente apenas identifica erroneamente as pessoas que lhe são mais queridas.
Ela resfolegou, amarga:
- Duplicamos sempre aquele que amamos?
- Mais ou menos isso.
- Então, é psicológico.
Um palpite exasperante, na boca de outrem.
- Escute, não foi escolhida ou apontada a dedo.
- Sim, fui. Ele agora já aceita o Rupp.
- Não me refiro a Rupp. Há o cão dele.
Ela soltou o braço, preparada para ser magoada. Depois tranquilizou-se de uma forma que Weber ainda não testemunhara.
- Sim. Tem razão. E ele adora Blackie mais do que qualquer outra coisa que se mexa.
Chegados à beira do passeio, Weber fez tenções de lhe apertar a mão. Com um constrangimento de última hora, Karin abraçou-o. Ele permaneceu imóvel e suportou-o.
- Entre em contacto comigo se houver alguma alteração - recomendou ele.
- Mesmo que não haja - prometeu ela, e deu meia volta.
Acordou cedo mais uma vez, de novo em pânico. O tecto de um quarto estranho materializou-se a poucos centímetros do seu rosto. Inspirou, mas os seus pulmões recusavam-se a expandir. Não eram ainda duas e meia da manhã. Por volta das três e um quarto, continuava a interrogar-se como fora que se esquecera de ter dito a Mark que Jess era astrónoma. Combateu o impulso de se levantar e ir escutar as gravações das sessões. Pelas quatro horas, examinou os seus sinais vitais e pensou que talvez se tratasse de alguma coisa de mais cuidado. Quando não conseguiu mais ficar quieto, levantou-se, tomou banho, vestiu-se, fez a mala, acertou as contas na recepção e, com uma antecipação de várias horas, conduziu o carro alugado de volta ao aeroporto de Lincoln, ao longo da estrada interestadual, incaracterística e recta como a lâmina de uma navalha.
Quando o avião sobrevoou o Ohio, animou-se. Admirou a capital, Columbus, sob o manto de nuvens, imaginando marcos geográficos invisíveis por baixo do esburacado cobertor. Locais de há um terço de um século atrás: o disperso e acéfalo campus universitário.
O delapidado subúrbio estudantil onde ele e Sylvie haviam partilhado um bungalow. A baixa de Columbus, o rio Scioto, a Cerman Village parada no tempo, Short North, com as suas excelentes livrarias em segunda mão onde ele levara Sylvie no seu primeiro encontro. Tinha ainda todo o mapa da zona na sua cabeça, mais nítido ainda com os olhos fechados.
Ao passar pelas montanhas enrugadas da Pensilvânia, o seu interlúdio no Nebrasca começou a parecer-lhe pouco mais do que uma carência fugaz. Quando aterrou em LaGuardia, sentia-se restabelecido. O seu Passat esperava-o no parque de estacionamento de longo prazo. A frágil, cooperativa demência da Long Island Expressway nunca lhe parecera mais familiar ou mais bela. E no seu extremo - o familiar anonimato do lar.
PARTE TRÊS
DEUS CONDUZIU-ME ATÉ SI
“Testemunhei certa vez, num vaso na minha própria sala de estar, os esforços de um rato do campo para construir um campo recordado. Vivi para ver este episódio repetido de mil maneiras, e uma vez que passei uma grande porção da minha vida à sombra de uma árvore inexistente, penso que tenho o direito de falar em nome do rato do campo.”
Loren Eiseley, The Night Country, “The Brown Wasps”
No tempo em que os animais e os seres humanos partilhavam a mesma linguagem, contam os Cree, o Coelho queria ir à Lua. O Coelho pediu às aves mais fortes que o levassem, mas a Águia estava ocupada e o Falcão não conseguia voar tão alto. O Grou ofereceu-se para ajudar. Disse ao Coelho que se segurasse às suas pernas. Voaram então em direcção ao astro. A jornada era longa e o Coelho era pesado. O peso do Coelho esticou as pernas do Grou e ensanguentou as patas do Coelho. Apesar de tudo, o Grou conseguiu chegar à Lua, com o Coelho agarrado a si. O Coelho fez uma festa na cabeça do Grou em agradecimento, com as patas ainda ensanguentadas. É por isso que o Grou tem pernas compridas e uma mancha encarnada na cabeça.
Nessa altura, também, uma mulher cherokee foi cortejada por um Colibri e por um Grou. Ela desejava casar com o Colibri, devido à sua imensa beleza. No entanto, o Grou propôs uma corrida à volta do mundo. A mulher concordou, conhecendo a velocidade do Colibri. Esquecera-se, porém, de que o Grou era capaz de voar à noite. E, ao contrário do Colibri, o Grou nunca se cansava. O Grou voava em linha recta, ao passo que o Colibri voava em todas as direcções. Desta forma, o Grou venceu a corrida com facilidade, mas ainda assim a mulher rejeitou-o.
Todos os humanos reverenciavam o Grou, o grande orador. Onde quer que os grous se reunissem, o seu discurso era escutado a quilómetros de distância. Os astecas auto-apelidavam-se de Povo Grou.
Um dos clãs dos anishinaabe foi apelidado de Grou - Ajijak ou Businassee - os Fazedores de Eco. Os grous eram líderes, vozes que uniam todas as pessoas e povos. Os crow e os cheyenne esculpiam ossos das pernas do Grou em flautas ocas, reproduzindo o fazedor de eco.
Também os grus latinos faziam eco desse gemido. Em África, o grou-coroado dominava palavras e pensamento. O grego Palamedes inventou as letras do alfabeto ao observar ruidosos grous em voo. Em persa, kurti, em arábico, ghurnuq: aves que despertam antes da restante criação para fazerem as suas orações matutinas. Os xian-he chineses, as aves do céu, transportavam mensagens nos seus dorsos entre os reinos do céu.
Há grous dançantes em petróglifos do Sudoeste. O Velho Homem Grou ensinou os tewa a dançar. Os aborígenes australianos contam a história de uma bela e solitária mulher, a dançarina perfeita, transformada em grou por um feiticeiro.
Quando visitava o mundo, Apolo vinha e ia sob a forma de grou. O poeta íbico, no século seis antes de Cristo, espancado até perder os sentidos e abandonado como morto, pediu ajuda a um bando de grous que passava e estes seguiram o atacante até um teatro e pairaram sobre ele até que este confessou à assombrada assistência o que fizera.
Nas Metamorfoses de Ovídio, Hera e Artemis transformam Cerânia num grou como forma de castigar a rainha pela sua vaidade. O herói irlandês Finn caiu de um penhasco e foi agarrado no ar pela sua avó, transformada num grou. Se os grous voassem em círculo sobre os escravos americanos, era sinal de que alguém ia morrer. O Primeiro Guerreiro que combateu para criar o antigo Japão assumiu ao morrer a forma de um grou e voou para longe.
Tecumseh tentou unir as dispersas nações índias sob o estandarte do Poder do Grou, mas o símbolo hopi para a pata do grou tornou-se o símbolo da paz mundial. A pata do grou - pie de grue - tornou-se a marca que o genealogista escolheu como símbolo de descendência, ou pedigree.
Para que um desejo se realize, os japoneses têm de fazer mil grous em papel. Sadako Sasaki, de 12 anos e afligido pela “doença da bomba atómica”, chegou aos 644. Crianças em todo o mundo enviam os milhares que fazem, todos os anos.
Os grous ajudam a transportar uma alma até ao paraíso. Imagens de grous forram as janelas de casas de luto e joalharia com a forma de grous adorna os mortos. Os grous são almas que foram outrora humanos e poderão voltar a sê-lo, daqui a muitas vidas. Ou os humanos são almas que outrora foram grous e sê-lo-ão novamente, quando o bando for reunido.
Algo no grou está preso a meio caminho, algures entre o agora e o quando. Um poeta vietnamita do século XIV descreve as aves para sempre a meio caminho pelos ares:
As nuvens passam à medida que o dia corre;
Os ciprestes são verdes perto do altar,
O coração, um lago gelado sob o luar.
As gotas de chuva nocturnas, lágrimas de flores.
Abaixo do pagode, a erva descreve um caminho.
Entre os pinheiros, os grous recordam
A música e canções de anos passados.
Na imensidão do céu e do mar,
Como reviver o sonho ante a lanterna daquela noite?
No tempo em que os animais e as pessoas falavam a mesma linguagem, os chamamentos dos grous diziam exactamente o que pretendiam. Agora, vivemos no meio de ecos indistintos. A rola, a andorinha e o grou pressentem o tempo da sua migração, diz Jeremias. Só as pessoas não reconhecem a lei do Senhor.
No momento em que Karin telefonou para o seu quarto de hotel sentiu que havia algo de errado. A voz não condizia com a fotografia nas badanas dos seus livros. O seu tom sociável anunciava compaixão, mas as suas palavras eram tal e qual as de um profissional de saúde. Em carne e osso, assemelhava-se a um daqueles peritos sérios e a encalvecer que se sentam em baloiços de alpendre em Nova Inglaterra, em pleno Outono, a responder a perguntas em programas televisivos numa voz exasperante e presumida. O homem que veio ao Nebrasca não era o autor daqueles livros acalentadores e férteis. Quando ela tentara apresentar a história de Mark, Gerald Weber não honrou o que afirmava encontrar-se no âmago de toda a boa prática médica.
Não a escutou. Era como se tivesse tido a mesma conversa com o seu ex-patrão, com Robert Karsh, ou até mesmo com o seu próprio pai.
Quatro dias mais tarde, o perito nacional desapareceu. Não fez mais nada para além de alguns testes e de gravar algumas conversas, reunindo material para os seus próprios fins. Incapaz de tratar o problema em si, apenas receitou um programa vago de terapia comportamental cognitiva. Chegou à cidade, brincou com as esperanças de toda a gente, tirou mesmo partido da amizade de Mark. Depois foi-se embora, sugerindo que todos os envolvidos se limitassem a aprender a viver com a síndrome. Ela confiara nele e ele nada lhe dera em troca a não ser filosofia.
Contudo, fiel a si mesma, nem uma única vez o confrontou. Até ao momento em que ele lhes virara as costas, ela lisonjeara as referências do homem, certa de que, se fosse educada na medida certa, este especialista grisalho, barbado e bem-falante derrotaria a Capgras e restabeleceria tanto o seu irmão quanto a si mesma. Daniel pedira várias vezes para conhecer o médico. Ela adiara sempre o encontro. Daniel nunca lhe pediu explicações, mas nem foi preciso. Uma semana depois de Weber partir, o óbvio bateu-lhe à porta: ela envaidecera-se, aperaltara-se para este homem de idade. Qualquer coisa para conseguir a ajuda dele.
Três semanas depois de o neurologista os ter abandonado, Karin estava a jogar pingue-pongue com Mark, na sala recreativa. Mark gostava do jogo o suficiente para jogar até com ela, desde que Karin nunca ganhasse. Barbara entrou a correr, excitada.
- O doutor Weber vai aparecer no programa Book TV amanhã. Vai ler excertos do seu novo trabalho.
- O Psi na televisão? Na televisão verdadeira? Tipo canal nacional? Eu bem te disse que o homem era famoso, mas tu não acreditavas em mim. Ele ainda se há-de tornar numa palavra familiar.
- Book TV? - perguntou Karin. - Como é que soube disso?
A auxiliar encolheu os ombros.
- Por pura sorte.
- Estava atenta a isso? - quis saber Karin. - Ou foi ele que lhe disse...?
Barbara corou.
- Eu costumo estar atenta àquele programa. Um mau hábito antigo. Estou reduzida a apenas alguns programas a que posso assistir sem perigo. Aqueles em que nada explode e onde não nos dizem em que partes nos devemos rir.
Mark arremessou a raqueta para o ar e quase a apanhou.
- O Psi na caixa que mudou o mundo. Não podemos perder tal coisa, pois não?
No dia seguinte, juntaram-se os três em redor do televisor no quarto de Mark. Karin roeu as cutículas mesmo antes de terem anunciado o médico. Humilhante, ver alguém que conhecemos desempenhar o papel de si mesmo frente às câmaras. Barbara também estava inquieta. Cavaqueou mais durante os seis minutos da apresentação de Gerald Weber do que nas seis semanas ao longo das quais cuidara de Mark. Karin teve por fim de a mandar calar.
Apenas Mark parecia estar a gostar dos procedimentos.
- O favorito da equipa da casa está prestes a entrar em campo para a posição de lançador. A multidão está nervosa. Estão à espera de uma bola comprida. - Porém, quando o Dr. Weber finalmente avançou para o palco frente à comedida audiência do programa, Mark gritou:
- Que raio se está a passar aqui? Mas isto é alguma piada, ou quê?
Ambas as mulheres tentaram acalmá-lo. Mark pôs-se de pé muito direito, um pilar de rectidão.
- Que raio de brincadeira é esta? Aquele é que é supostamente o Psi? Nem de longe.
Sob as luzes da televisão, distorcido pela difusão e pela tensão da aparição em público, o homem estava de facto mudado. Karin olhou para Barbara, que lhe devolveu o olhar, as suas espessas sobrancelhas enrugadas. O cabelo de Weber estava estranhamente penteado para trás, cobrindo o encalvecimento do topo da cabeça. A barba fora cardada para fora, dando-lhe um ar ornamentado, quase francês. E o fato escuro desaparecera em favor de uma camisa sem colarinho cor de vinho que parecia ser de seda. Parecia mais alto no ecrã, e os ombros mais largos, quase combativos. Quando começou a ler, a prosa fluiu dos seus lábios em cadências que faziam lembrar o Antigo Testamento. As próprias palavras eram tão sábias, tão em sintonia com as subtis gradações da natureza humana, que pareciam ter sido escritas por alguém já falecido. Este era o verdadeiro Gerald Weber que, por razões obscuras, na sua curta excursão recreativa ao Nebrasca se escondera atrás de uma saca de trigo.
Injuriado, Mark andava de um lado para o outro, pisando o chão com força.
- Quem raio é que este tipo é? Billy Graham, ou quê? - Karin acenava com a cabeça para cima e para baixo como se fosse uma boneca. Barbara não conseguia tirar os olhos da imagem falante. - Aquela gente está toda a cair como uns patinhos. Nenhum deles viu o verdadeiro Psi, ao vivo e de perto. E ninguém sabe que nos pode perguntar como ele é!
Karin agarrou o irmão pelo braço e escutou. Weber leu:
A consciência funciona por meio do relato de uma história, uma narrativa completa, contínua e estável. Quando o fio condutor dessa história se quebra, a consciência reescreve-a. Cada rascunho revisto afirma ser o original. Desta forma, quando uma doença ou um acidente nos interrompe, somos frequentemente os últimos a saber.
As palavras do médico insinuaram-se a Karin Schluter, seduzindo-a outra vez.
- Tens razão - disse ela a Mark. - Tens toda a razão.
Ninguém vira o verdadeiro Weber. Nem a audiência sentada naquele estúdio em Nova Iorque, nem eles os três.
Mark parou de andar de um lado para o outro para a observar.
- E que raio sabes tu? Provavelmente tiveste alguma coisa a ver com isto. Tu é que o trouxeste para cá. Se calhar aquele é que é o verdadeiro Psi, e o que nos impingiste é uma fraude.
Barbara levantou-se para massajar os ombros de Mark. Ele imobilizou-se, como um gatinho afagado entre os olhos. Sereno, Mark voltou a sentar-se e a olhar para a televisão.
“Assemelhamo-nos mais a recifes de coral”, lia o dr. Weber. “Ecossistemas complexos mas frágeis...” Barbara, Karin e Mark observavam espantados a atuação daquele estranho de camisa de seda. Weber contou a história de uma mulher de quarenta anos chamada Maria que sofria de um distúrbio apelidado de síndrome de Anton.
Conversei com ela na sua casa impecavelmente mobilada em Hartford. Era uma mulher cheia de vida e atraente que durante muitos anos fora uma advogada de sucesso. Parecia feliz e intacta sob todos os aspetos, excepto no facto de acreditar que via. Quando lhe sugeri que, na verdade, talvez fosse cega, ela riu-se de semelhante disparate e esforçou-se por refutar a minha insinuação. Fê-lo com uma extraordinária perseverança e habilidade, apresentando longas e pormenorizadas descrições do que naquele preciso momento estava a acontecer do lado de fora da janela. Estas cenas apresentavam de facto uma grande consistência e detalhe; simplesmente, ela não se dava conta de que tais imagens não lhe chegavam ao cérebro por intermédio dos olhos...
A leitura não durou mais de 15 minutos, mas os três contorciam-se há uma eternidade quando Weber terminou de ler a passagem e se seguiram os costumeiros aplausos educados. Um cortês estudante perguntou a diferença entre a escrita científica e a escrita para o público em geral. Uma mulher reformada queria falar do escândalo em que se haviam tornado os cuidados de saúde do país. Depois, alguém perguntou se Weber tinha alguns remorsos em violar a privacidade dos pacientes.
As câmaras captaram a surpresa do escritor. Hesitando, respondeu:
- Espero não fazê-lo. Existem protocolos. Oculto sempre os nomes verdadeiros e muitas vezes os pormenores biográficos, quando são importantes. Por vezes, o mesmo caso combina na verdade duas ou mais histórias, para salientar as características mais proeminentes de um distúrbio.
- Quer então dizer que são ficção? - inquiriu outro.
Weber fez uma pausa para pensar, e a câmara ficou mais inquieta. Karin voltou a roer as cutículas e Barbara manteve-se sentada direita, como que aprumada, uma estatueta perfeita.
Mark foi o primeiro a falar, por todos eles.
- Isto é uma chachada completa. Podemos antes ver o Jerry Springer?
Na noite em que Weber voou das planícies desertas de regresso a Leste, não largou Sylvie. Finais de Junho, mas fresco em Setauket, mais semelhante a um Outono quente em North Shore do que ao começo do Verão. Foi buscar o carro ao parque de estacionamento de LaGuardia e foi a escutar quartetos para piano de Brahms no caminho para casa ao longo da absurdamente apinhada Long Island Express-way. Durante todo o percurso, imaginou a sua mulher, e as mudanças ocorridas no rosto dela ao longo de trinta anos. Recordou o dia, depois de cerca de uma década de casamento, em que lhe perguntara, surpreendido:
- O teu cabelo vai ficando mais liso à medida que ficamos mais velhos?
- O que estás para aí a dizer? O meu cabelo? Costumava fazer permanentes. Não sabias? Vocês, cientistas...
- Bom, se não estiver numa tomografia, não poderá ser fiável. - Ela socou-lhe a barriga flácida em resposta.
Mas naquele dia em que regressara do Nebrasca, reparou. Mulher. Talvez fosse o facto de estar toda aperaltada. Tinham um compromisso nessa noite, uma angariação de fundos em Huntington. Uma espécie de refúgio que a Wayfinders estava a apadrinhar. Ela estava já vestida quando ele chegou.
- Gerald! Cá estás tu. Já estava a ficar inquieta. Devias ter-me telefonado, a dizer que vinhas a caminho.
- Telefonado? Eu vinha no carro, Mulher.
Ela soltou a sua habitual risada, incapaz de outra coisa a não ser perdoar-lhe.
- Sabes aquele pequeno dispositivo com que tens andado? Funciona enquanto te deslocas. Uma das suas vantagens e argumento de venda. Deixa lá. Estou muito satisfeita que o Diretor de Viagem te tenha trazido para casa são e salvo.
Ela vestia uma blusa de seda italiana, nova, de um lilás pálido e tímido, a cor dos primeiros rebentos. Em redor do pescoço, ainda acetinado, exibia um colar entrançado de pérolas de água doce, e nas orelhas duas minúsculas conchas. Quem era esta mulher?
- Marido. Não fiques aqui especado! Filantropos de todos os quadrantes pagaram caro para te ver vestido de pinguim.
Despiu-a nessa noite, pela primeira vez em vários anos. Depois contemplou-a com olhos de ver.
- Mmmmm - murmurou ela, pronta para folgar também, embora um pouco envergonhada por ambos. Riu-se quando ele lhe tocou. - Ora, ora? De onde é que surgiu isto, assim de repente? Puseram-te alguma coisa na água, lá no Nebrasca? - Brincaram um com o outro, sem nada mais para aprender. Depois, ela ficou deitada de costas ao lado dele, ainda a respirar com força, segurando-lhe a mão como se estivessem a namorar. Foi a primeira a recuperar a fala.
- Como o behaviorista disse: “Foi claramente maravilhoso para ti. Foi bom para mim?”
Ele queixou-se das costas ao rolar sobre si mesmo e resfolegou ao observar o outeiro que a sua barriga formava.
- Suponho que já se passou algum tempo. Desculpa lá, Mulher. Não sou o homem que fui, antigamente.
Ela deitou-se de lado e esfregou-lhe o ombro, o mesmo que ele lesionara há dez anos, aos quarenta e tal anos, e que nunca conseguira que recuperasse totalmente.
- Gosto desta parte da vida - declarou ela. - Mais lenta, plena. Gosto do facto de não fazermos amor a toda a hora. - Sylvie no seu melhor. O que ela queria dizer era: quase nunca. - Torna cada experiência... Não sei, de alguma maneira, mais nova, quando há tempo suficiente de permeio para redescobrir...
- Engenhoso. Absolutamente inspirado. “Redescobrir.” A maioria das pessoas vê o copo nove décimos vazio. A minha mulher vê-o um décimo cheio.
- Foi por isso que casaste comigo.
- Ah! Mas quando eu casei contigo...
Ela murmurou:
- O copo estava um décimo acima da borda.
Ele virou-se de novo, para cima do ombro magoado, e olhou para ela, alarmado.
- A sério? Nessa altura fazíamos amor demasiadas vezes?
As gargalhadas dela faziam o seu corpo estremecer, buggies sobre bandas sonoras. Pressionou a cara contra a almofada, contente e corada.
- Acho que deve ser a primeira vez na história que alguém faz essa pergunta ansiosamente. - Ele viu-o no rosto dela, o pensamento a atravessar-lhe a mente antes mesmo de ele o poder dizer em voz alta. - A inexorabilidade do casamento. - Ele soltou um riso. O antigo eufemismo que costumavam usar, copiado de uma saga familiar clássica que tinham lido em voz alta um para o outro na faculdade. Mais tarde, depois de Jess ter nascido, divertiam-se um ao outro chamando-lhe sexualidade. Simulação. Preliminares: Estás de alguma forma inclinado para a sexualidade? E no final: Uma sexualidade da mais elevada categoria, aquilo. Neuropsicologia - a versão caseira.
Nessa noite, o olhar dela descobriu-o por entre as pregas do lençol, profundamente divertida pelo seu amor de estimação, confiante no facto de o conhecer, constantemente renovada.
- Alguém me ama - trauteou ela, meio abafada pela almofada. - Quem será?
Ela adormeceu no espaço de minutos. Ele ficou deitado às escuras, ouvindo-a ressonar e, ao fim de algum tempo, o ressonar afastou-se, pela primeiríssima vez aos seus ouvidos, de um ruído áspero e inanimado, como o ranger da cama, e assemelhou-se ao ruído de um animal, algo preso mas preservado no corpo, vestigial, libertado durante o sono pela força de atração da Lua.
Com uma tiragem de cem mil cópias e, de uma forma geral, boas críticas de pré-publicação, O País da Surpresa foi editado para um público sedento de entender o alienígena dentro de si. O livro pareceu-lhe o culminar de uma longa segunda carreira, uma que Weber nunca esperara ter. Não dissera nada a ninguém, com exceção de Cavanaugh e Sylvie, mas este livro seria a sua última incursão neste género. O próximo livro, se lhe dessem tempo suficiente para o escrever, seria para um público muito diferente.
Detestava a fase de promoção, ter de desempenhar o papel de si mesmo em público. Conseguira fazê-lo até então, graças a colegas especializados e motivados alunos de doutoramento que mantinham o laboratório em funcionamento. Contudo, não podia dar-se ao luxo de passar mais tempo longe da investigação, agora que o cérebro fora aberto de par em par. As modernas técnicas e instrumentos de visualização, bem como os fármacos, estavam a desvendar o mistério da mente. A década que passara desde a publicação do primeiro livro de Weber produzira mais conhecimento sobre a última fronteira do que as anteriores cinco mil. Objetivos inimagináveis quando Weber começara O País da Surpresa eram agora discutidos casualmente nas mais conceituadas conferências profissionais. Investigadores afamados atreviam-se a falar sobre completar um modelo mecânico da memória, encontrando as estruturas por trás dos qualia, produzindo até uma descrição completamente funcional da consciência. Nenhuma antologia popular que Weber compilasse poderia igualar-se a semelhantes recompensas.
A arte do relato meditativo de casos pertencia às horas pós-laborais. De alguma forma, imiscuíra-se e tornara-se no seu expediente diário. Demasiado cedo para isso. Ramon y Cabal, o Crono do panteão de Weber, afirmava que os problemas científicos nunca se esgotavam; apenas os cientistas. Weber não estava esgotado ainda. O melhor ainda estava por vir.
Porém, interrompera o trabalho para viajar milhares de quilómetros até às planícies centrais para observar um caso de Capgras. Era certo que o seu atual projeto de investigação abordava a orquestração de sistemas de crenças que o hemisfério esquerdo realiza e a alteração de memórias de forma a adequarem-se a eles. Contudo, tudo o que descobrira nas conversas com o paciente de Capgras do Nebrasca era, quando muito, anedótico. Ao fim de alguns dias após o regresso a Stony Brook começou a ver a viagem como o último de uma longa série de estudos que dariam agora lugar a uma pesquisa mais sólida, mais sistemática.
No entanto, algo em si não estava satisfeito com o rumo que o conhecimento estava a tomar.
A rápida convergência da neurociência em redor de certas suposições funcionalistas começava a alienar Weber. O seu campo estava a sucumbir a um daqueles antigos impulsos sobre os quais deveria lançar luz: a mentalidade de rebanho. À medida que a neurociência se comprazia no seu crescente poder instrumental, os pensamentos de Weber fluíam perseverantemente para longe de mapas cognitivos e de mecanismos determinísticos ao nível do neurónio em direção a processos psicológicos emergentes e de nível mais elevado que podiam, nos seus piores dias, soar quase a élan vital. Porém, na eterna divisão entre mente e cérebro, psicologia e neurologia, necessidades e neurotransmissores, símbolos e mudança sináptica, a única ilusão residia em acreditar que os dois domínios permaneceriam separados por muito mais tempo.
No liceu Chaminade, em Dayton, Weber encetara a sua vida intelectual como um convicto freudiano - o cérebro como um cano hidráulico para os espetaculares jogos de água da mente -, qualquer coisa para confundir os seus professores sacerdotes. Por alturas do doutoramento passara a perseguir os freudianos, embora tivesse tentado evitar os piores excessos behavioristas. Quando a contra-revolução cognitiva estalou, uma pequena parte de si, operantemente condicionada, retraiu-se, desejando insistir, Ainda não é a história completa. Enquanto clínico, tivera de abraçar a investida da farmacologia. Contudo, sentira uma verdadeira tristeza - a tristeza da consumação - ao escutar um paciente que durante anos lutara contra a ansiedade, culpa suicida e fervor religioso dizer-lhe, após a regulação bem-sucedida das suas doses de fármacos: “Doutor, já nem sei ao certo o que me perturbava tanto, durante todo aquele tempo.”
Ele sabia muito bem como era: ao longo da história o cérebro fora comparado ao mais elevado nível vigente de tecnologia: o motor a vapor, a central telefónica, o computador. Agora, à medida que Weber se aproximava do seu próprio zénite profissional, o cérebro tornava-se na Internet, uma rede distribuída, mais de 200 módulos, comunicação mutuamente modificante com outros módulos. Alguns dos subsistemas emaranhados de Weber engoliram o modelo; outros queriam mais. Agora que a teoria modular conquistara ascendência sobre grande parte do pensamento sobre o cérebro, Weber recuava às suas origens. No que seria seguramente a etapa final do seu desenvolvimento intelectual, esperava agora encontrar, na mais recente e sólida neurociência, processos que se assemelhavam a uma antiga e profunda psicologia: repressão, sublimação, negação, transferência. Encontrá-los em algum nível acima do módulo.
Em resumo, começava agora a ocorrer a Weber que talvez tivesse viajado até ao Nebrasca e estudado Mark Schluter com o objetivo de provar, a si mesmo pelo menos, que mesmo que a síndrome de Capgras fosse inteiramente compreensível em termos modulares, como uma questão de lesões e ligações partidas entre regiões numa rede distribuída, ainda assim se manifestava através de processos psicodinâmicos - resposta individual, história pessoal, repressão, sublimação, e realização de desejo que não podiam ser totalmente reduzidos a fenómenos de nível inferior. A teoria poderia estar à beira de descrever o cérebro, mas a teoria por si só não podia ainda esgotar este cérebro, pressionado pelos factos e frenético com a sobrevivência: Mark Schluter e a sua irmã impostora. O livro que Weber escreveria a seguir à ronda de promoção do atual.
Levaram Mark para casa: não havia outro lugar para onde o levar.
Quando o famoso cientista do cérebro partiu, deixando apenas uma breve recomendação, o Dr. Hayes não pôde manter Mark sob observação em Dedham Glen. Karin lutou contra a decisão com unhas e dentes. Mark, por seu lado, estava mais do que pronto para sair dali.
Para que ele se pudesse mudar para a Homestar, Karin teve de abandonar o local. Vivera na casa modular durante vários meses, mantendo Blackie viva e fazendo alguns trabalhos de manutenção de rotina. Deitara fora o contrabando de Mark e declarara guerra aos invasores: plantas e animais. Agora, teria de eliminar todos os vestígios de alguma vez ter ocupado aquele lugar.
- E para onde irás agora? - perguntou Daniel.
Estavam deitados lado a lado, de barriga para cima no seu colchão sobre o chão de carvalho despido. Seis da manhã, quarta-feira, finais de Junho. Nas últimas semanas, ela passara mais noites na sua cela de monge. Tomara-lhe a cozinha de assalto e fumava às escondidas na casa de banho, abrindo as torneiras e soprando o fumo pela janela aberta para o ar cúmplice. No entanto, nunca manteve nem sequer um par de meias sobresselente na gaveta vazia que ele preparou para ela.
Virou-se de lado para se aninhar nele. Era mais fácil falar daquela forma. A voz dela soava desencarnada.
- Não sei. Não posso suportar dois arrendamentos. Nem um sequer. Eu... Coloquei o meu apartamento em South Sioux à venda. Não quis dizer-to. Não queria... Que faço eu aqui? Quanto mais tempo poderei...? De volta à estaca zero, depois de tudo o que consegui... Mas não posso deixá-lo. Bem sabes como ele é agora. Sabes o que lhe aconteceria, se o abandonasse à sua sorte.
- Ele não ficaria sozinho.
Virou-se para o outro lado e olhou-o nos olhos sob a luz que começava a despontar. De que lado estás?
- Se o deixo ao cuidado dos amigos, estará morto antes do final do ano. Dão-lhe um tiro em algum acidente de caça. Põem-no de novo com a mania das corridas.
- Há outras pessoas em redor dele que podem ajudar a olhar por ele. Eu estou aqui.
Ela inclinou-se para ele e passou-lhe a mão pelo cabelo.
- Oh, Daniel. Não te compreendo. Porque és tão bom? Que ganhas tu com isso?
Ele colocou-lhe a mão no tronco e acariciou-a, como acariciaria um veado acabado de nascer.
- Sou contra o lucro.
Karin passou-lhe o dedo ao longo do pescoço. Ele era como as aves. Uma vez que o caminho lhe fosse ensinado, mantinha-se sempre nele, regressando, desde que ainda aí tivesse lugar, voltando sempre a casa.
- Vocês os dois juntos despedaçam-me o coração. Olharam um para o outro, nenhum deles se comprometendo.
Ele acenou com a cabeça de forma quase imperceptível: completamente ambíguo.
- Passo a passo - disse ele.
Ela inclinou a cabeça, a sua queda-de-água cor-de-cobre.
- Não sei o que isso significa.
- É simples. Podes estar cá. Podes ficar aqui, comigo.
Não o poderia ter dito de melhor forma. Não era nem uma concessão nem uma ordem. Apenas uma afirmação, a melhor possibilidade para ambos.
- Passo a passo - repetiu ela. Apenas por algum tempo. Só até Mark... - Não me julgarás mal se...?
Uma dor reflexa atravessou o rosto de Daniel. O que é que ela alguma vez o deixara julgar mal? Abanou a cabeça, o pudor prevalecendo sobre a memória.
- Se não me culpares por isso.
- Não será por muito tempo - prometeu-lhe ela. - Não há muito mais que eu possa fazer. Ou ele melhora em breve ou... - Interrompeu-se ao ver a expressão de Daniel. A sua intenção fora dar-lhe garantias de que não invadiria o território dele. Mas só ao dizer as palavras é que as escutou como uma bofetada.
Voltou a inclinar-se para ele, os membros entrelaçados, frágeis, a primeira vez em anos que se deixavam ficar assim um ao lado do outro em plena luz do dia. Ela sentiu-o na paleta do peito dele, provou-o na felicidade beliscada da sua boca.
Com o objetivo de emendar o que estava errado, ele era capaz de lhe perdoar qualquer coisa. Tudo menos a segurança e a dissimulação.
Karin esvaziou então a Homestar, apagando os seus vestígios. Daniel, o batedor treinado, capaz de ficar muito quieto e desaparecer no meio do nada, ajudou-a. Devolveu então à casa o caos em que Mark a deixara, segundo o que ainda se lembrava. Espalhou os CD, comprou outro poster para substituir o que estragara: uma loura num vestido de guingão ligeiramente rasgado, segurando uma enorme chave-inglesa nas mãos besuntadas de óleo e inclinada sobre uma carrinha encarnada. Não fazia ideia do que haveria de fazer com Blackie. Pensou em levar o cão para casa de Daniel também, pelo menos até verem como Mark ficaria uma vez em casa. No seu presente estado, porém, Mark poderia até atacar o animal, não o deixar entrar em casa, dar-lhe laxantes para se livrar dele. Daniel não se teria incomodado nem um pouco com mais uma criatura a partilhar o seu santuário. Contudo, Karin não era capaz de fazer isso ao animal.
O Dr. Hayes assinou a alta e Dedham Glen deixou Mark Schluter sair do centro aos cuidados do único familiar que o reconhecia, ainda que ele não retribuísse tal favor. Barbara perguntou se podia ajudar.
- Agradeço muito - respondeu-lhe Karin. - Acho que tenho tudo controlado e previsto para o Dia da Mudança. É com a semana a seguir que estou preocupada. E com a semana a seguir a essa. Barbara, que outra coisa posso eu fazer? O seguro não cobre mais cuidados de enfermagem e eu terei de começar a trabalhar.
- Eu continuarei aqui. Ele terá as suas consultas regulares com o terapeuta cognitivo. E eu posso vir ver como ele está, se isso ajudar.
- Como? Já nos deu demasiado. Nem posso sequer pensar em recompensá-la...
A auxiliar irradiava uma estranha calma. A sua mão sobre o ombro de Karin transmitia uma certeza absoluta.
- As coisas resolvem-se. Toda a gente é recompensada, de uma forma ou de outra. Veremos como as coisas correm.
Karin pediu a Bonnie Travis que a ajudasse a levar Mark para casa. Mark fez as últimas rondas pelo centro, despedindo-se dos colegas internados.
- Estão a ver? - dizia-lhes. - Não é uma sentença de morte. Mais cedo ou mais tarde, deixam-nos sair. Se não deixarem, telefonem-me que eu venho tirar-vos de cá.
Porém, quando Karin apareceu no seu carro, ele recusou-se a entrar nele. Ficou imóvel no passeio, cercado pelas malas. Já não trazia o gorro, o cabelo uma espécie de couro fininho. O seu rosto ensombrou-se, lembrando-se.
- Queres fazer despistar esta carripana japonesa algures a meio do caminho comigo lá dentro. É esse o plano? Queres terminar o que deveria ter acontecido da primeira vez?
- Mark, entra no carro. Se quisesse magoar-te, achas que arriscaria a minha vida também para o conseguir?
- Ouviram isto? Escutaram o que esta mulher disse?
- Mark, por favor. Não vai acontecer nada. Entra no carro.
- Deixa-me conduzir. Eu entro se me deixares conduzir. Estão a ver? Ela recusa-se a dar-me as chaves. Eu levo sempre a minha irmã para todo o lado. Ela nunca conduz quando estamos juntos.
- Vem comigo - aventou Bonnie.
Ele tomou em consideração a sugestão.
- Não é má ideia - concordou. - Mas esta mulher tem de esperar aqui dez minutos depois de nós partirmos. Não quero que ela tente alguma gracinha.
O ar tresandava a estrume e pesticida. Os campos - carreiros de soja, milho que já chegava às canelas, pastagens salpicadas de vacas resignadas com o seu destino - desenrolavam-se em todas as direções. Quando Karin chegou à Homestar, Mark encontrava-se no terraço da frente, a cabeça no colo de Bonnie, a chorar. Bonnie afagava-lhe a penugem no seu couro cabeludo, fazendo o melhor que sabia para o consolar. Ao ver Karin aproximar-se, Mark sentou-se e berrou:
- Diz-me lá afinal o que se passa! Primeiro a minha carrinha, depois a minha irmã. Agora ficaram-me com a casa.
Lançou os cotovelos para cima, ao mesmo tempo que o seu corpo parecia encolher-se. Moveu o pescoço em três direções, como se o próximo ataque pudesse vir de qualquer lado. Karin olhou para trás de si, e pelos olhos dele, viu a tremeluzente e familiar vizinhança tornar-se estranha. Virou-se de novo para ele, sentado nos degraus da frente com as unhas cravadas no cimento de que os degraus eram feitos.
Ele olhava-a fixamente, procurando alguém, aquela que ela fora outrora mas já não era. A única pessoa que o poderia ajudar. A necessidade que ele sentia dela despedaçava-a, mais do que a sua própria impotência.
As mulheres consolaram-no durante bastante tempo. Chamaram-lhe a atenção para as ruas, as casas, o solitário ácer que ele plantara no deserto de relva, o entalhe que ele fizera na extremidade esquerda da garagem oito meses antes. Karin fez figas para que um dos vizinhos aparecesse e dissesse olá. Mas todos os seres vivos se escondiam face a esta epidemia.
Karin ainda considerou voltar a metê-lo no carro de Bonnie e regressar a Dedham Glen. Contudo, os seus queixumes deram gradualmente lugar a risadas espantadas.
- Fizeram um trabalho extraordinário. Acertaram quase em tudo. Meu Deus! Quanto é que isto custou? É como um filme de vários milhões de dólares da minha vida. A História de Harry Truman.
Entrou, por fim. Colocou-se ao lado de Bonnie na sala da frente, a cabeça girando de espanto e estalando a língua.
- O meu pai costumava dizer-me que a chegada à Lua fora feita num estúdio na Califórnia. Sempre achei que ele era pírulas.
Karin resfolegou.
- Ele era pírulas, Mark. Lembras-te de quando ele achava que a Marinha era capaz de mexer nas moléculas de um navio de guerra para o fazer desaparecer?
Mark observou-a.
- Sabes lá tu se não são capazes? - Olhou para Bonnie em busca de confirmação, mas esta limitou-se a encolher os ombros, por isso devolveu o olhar à imagem em tamanho real da sua casa, abanando a cabeça de incredulidade.
Karin sentou-se no sofá falso, grandes porções de si mesma sucumbindo. Este nevoeiro nunca levantaria. Em breve, o irmão estaria certo: toda a vida deles, uma cópia de si mesma. Enquanto Bonnie descarregava as coisas de Mark do carro, Karin tentou recobrar forças. Conduziu Mark numa visita pela casa. Mostrou-lhe a rachadura no canto do espelho do armário dos medicamentos. Mostrou-lhe o interior do roupeiro, todas as t-shirts e calças cortadas para servirem de calções ali penduradas à sua espera. Abriu a gaveta cheia de fotos soltas, incluindo dezenas dos dois juntos. Apontou para a prateleira das revistas, com as três edições da Truckin' Magazine que Mark não folheara ainda.
No meio desta confusão, os olhos dele aterraram no póster de substituição. O seu rosto ensombrou-se.
- Aquele não é o póster que eu tinha ali!
Karin murmurou:
- Pois não, deixa-me explicar.
- Aquilo não é meu. Eu nunca tocaria numa coisa que se parecesse com aquilo. É o trabalho mais ranhoso que alguma vez vi.
Karin pestanejou duas vezes antes de perceber que ele se referia à carrinha.
- A culpa foi minha, Mark. Rasguei o que tinhas antes. Sem querer. Aquele é um substituto que eu coloquei ali. - Ele deteve-se e olhou para ela de soslaio.
- Exatamente o tipo de coisa que a minha irmã costumava fazer.
Por um momento, ela foi capaz de respirar. Os seus braços esticaram-se para ele, hesitante mas desesperada.
- Oh, Mark! Mark... ? Peço desculpa por qualquer coisa que eu alguma vez tenha dito ou feito...
- Mas a minha irmã saberia que não deveria substituir um Chevy Cameo Carrier clássico de 1957 por uma porcaria de um Mazda de 1990. - Ela sucumbiu. As suas lágrimas silenciosas e espessas desorientaram-no o suficiente para o levar a tocar-lhe no antebraço. O gesto entusiasmou-a mais do que qualquer outra coisa desde que ele voltara a falar. Karin recompôs-se, riu-se das suas fungadelas e com um aceno de mão subestimou o sucedido.
- Escuta, Mark. Tenho de confessar uma coisa. Nunca soube tanto sobre carrinhas e afins quanto provavelmente te levei a acreditar.
- Exatamente o que acabei de dizer. Mas obrigada por o admitires. Simplifica um pouco a vida.
Mark assumiu o controlo da visita, fazendo notar cada base para copos que fora mudada de lugar desde a noite do acidente. Abanava a cabeça enquanto avançavam e repetia:
- Não, não, não. Esta casa não é nenhuma Homestar.
Bonnie trouxe os sacos dele para dentro. Começou a segui-lo pela casa.
- Nós compomos as coisas, Marker. Pomos tudo como tu quiseres.
Karin sentou-se na cama, a cabeça apoiada nas mãos, a escutar Mark repudiar a sua adorada casa de encomenda. Porém, a tenacidade da memória dele relativamente aos mais pequenos pormenores concedia-lhe uma esperança proibida. Ela mesma já não reconhecia o seu próprio apartamento, nas breves viagens que fizera a South Sioux City para o preparar para a venda.
- Esperem - disse ele de repente. - Já sei como fazer para perceber de uma vez por todas se esta casa é a verdadeira ou não. Vocês as duas fiquem aqui. Nada de olhar! Que não vos apanhe a espiar-me.
Encaminhou-se para a cozinha. Bonnie inquiriu Karin com um olhar. Karin desanimou-se, sabendo o que Mark procurava. Escutou-o ajoelhar-se e revistar o armário por baixo do lava-louças. Uma vergonha antiga e herdada impediu-a de o chamar, antigos segredos de família que os isolavam um do outro.
Mark regressou triunfante.
- Eu bem vos disse que esta casa era uma fraude. Falta uma coisa que eu tinha. Algo que eles não duplicariam. - Olhou para Bonnie, expressivamente.
Bonnie, encostada a um banco alto de bar, olhou de relance para Karin. Karin apenas precisava de dizer: Mark, deitei o que escondias na sanita. Mas não era capaz. Não podia dizer que sabia que ele tomava aquilo, talvez até na noite do acidente. De qualquer forma, não faria qualquer diferença. Ele limitar-se-ia a arranjar outra teoria, imperturbado por algo tão trivial quanto os factos.
Mark veio sentar-se ao lado dela no sofá. Parecia prestes a pôr-lhe um braço em redor dos ombros.
- Sei que tens de fazer de conta que não sabes de nada. É essa a tua função. Mas diz-me apenas se corro perigo. Ficámos a conhecer-nos suficientemente bem ao longo dos últimos meses para me concederes ao menos isso. Dizias-me se eles se preparassem para me magoar outra vez, não dizias?
Karin acenou com as mãos, um chimpanzé a tentar comunicar por linguagem gestual. Bonnie respondeu por ela:
- Ninguém te vai fazer mal, Mark. Não enquanto estivermos por perto.
- Quero dizer, caramba, não se dariam a todo este trabalho e despesa se a intenção deles fosse apenas terminar o servicinho que não completaram a 20 de Fevereiro de 2002! Não é assim? Vá lá. Vamos dar uma vista de olhos lá fora.
Abandonou a casa e subiu Carson Street. As mulheres seguiram-no. As 12 casas deste quarteirão eram todas variações da Homestar. A subdivisão recentemente terminada continha as primeiras novas estruturas que seriam adicionadas à isolada cidade de Farview desde a crise que atingira as grandes quintas. Cortinados agitavam-se em todas as janelas da rua, mas ninguém veio cá fora para trocar sequer dois dedos de conversa com um mecânico de matadouro com lesões cerebrais.
Mark deambulou rua acima, espantado.
- Isto deve ter custado uma fortuna. Devo mesmo estar sob apertada vigilância. Só gostava de saber por que motivo me tornei tão importante.
Bonnie deu-lhe o braço. Karin ficou à espera de a ouvir dizer qualquer coisa de cariz religioso sobre, por exemplo, a forma como Deus mantinha até os pardais sob apertada vigilância. Porém, surpreendeu Karin com a sua inteligência ao permanecer em silêncio.
Mark deu uma volta completa sobre si mesmo.
- Gostaria de saber onde nos encontramos exatamente. Karin pressionou as têmporas com os dedos.
- Viste o caminho que tomámos desde a cidade.
- Bom, digamos que vim o tempo todo de olho no espelho retrovisor. - Sorriu, um pouco acanhado.
- Rumo a Sul em County, depois sempre em frente em direcção a Oeste, 12 quilómetros depois de Creyser. O mesmo caminho de sempre. Viste as quintas de toda a gente.
Mark agarrou-a, estacando.
- Espera lá. Estás a dizer-me que toda a cidade...?
Karin soltou uma risada nervosa. Sentiu que começava a perder a razão. A tensão da vida quotidiana na terra recentemente descoberta do seu irmão começava a apoderar-se dela. Kearney, Nebrasca: uma fraude colossal, uma réplica oca em tamanho real. Ela própria pensara o mesmo durante todo o tempo em que aqui crescera. E de novo de cada vez que regressara durante a doença que pusera fim à vida da mãe de ambos. O Mundo da Pradaria. Os seus risinhos tornaram-se mais fortes. Girou sobre os calcanhares e olhou para Bonnie, um esgar suspenso e ridículo de um lado ao outro do seu rosto.
A rapariga olhou de volta para ela, assustada, mas não por Mark.
- Ajuda-me - conseguiu Karin dizer antes de se desmanchar em mais risadinhas incontroláveis.
Algo na outra mulher emergiu e se mostrou à altura do desafio. Bonnie guiou Mark de volta à Homestar, encostando-se a ele e desenhando grandes formas ovais nas suas costas, como se praticasse caligrafia.
- Não é isso que ela está a dizer, Marker. Ela quer dizer que esta é a tua terra. Aqui mesmo. O lugar onde vives na verdade. E eu estou a garantir-te que irei tratar de colocarmos o teu ninho exatamente da forma como o quiseres.
- A sério? E isso incluiria tu mudares-te para cá? Sim, um toque feminino. As coisas requintadas da vida. Ah, já me estava a esquecer: provavelmente ainda te queres guardar para toda a cena da papelada. Tudo legal e com festa incluída? Nada de brincar às casinhas, não é?
Bonnie corou e conduziu-o em direção a casa. Todo o caminho rua abaixo, Mark foi apontando pequenas anomalias: uma árvore em falta, o carro errado frente a uma garagem. Cada feito desesperado da memória alimentava um pouco os seus argumentos. O alpendre das ferramentas de um vizinho quatro metros mais para Oeste deixou-o exultante. A memória visual dele desorientava e derrotava Karin. A lesão desobstruíra-o, de alguma forma, derrubando as categorias mentais que interferiam com a verdadeira visão. A suposição já não retocava a observação. Cada vislumbre produzia agora a sua própria e nova paisagem.
De volta a casa, Blackie soltara-se da corrente que a prendia no quintal das traseiras e andava de um lado para o outro no alpendre da frente, arfando descontroladamente. Encolheu-se, latindo, ao recordar-se do tratamento que recebera às mãos do dono no último encontro. Porém, memórias mais antigas levaram a melhor sobre a cadela. A medida que os humanos se aproximavam, ela correu para o relvado, alegre e padecente, saltando para a frente, mas fazendo fintas de lado, preparada para fugir aos primeiros sinais de confusão. Mark ficou quieto, o que encorajou o animal, que correu para o dono, saltando para ele até quase o derrubar com as patas. Quanto menos desenvolvido o cérebro, mais lento o desvanecimento.
O amor, numa minhoca, talvez nunca sequer se extinguisse.
Mark pegou no seu animal de estimação pelas patas e dançou com ele, uma valsa com pouca convicção.
- Olha para isto, tão patético! Nem sequer sabe quem não é. Alguém a treinou para ser o meu cão e agora nem tão-pouco sabe ser outra coisa. Suponho que terei de tomar conta de ti, não é verdade, minha linda? Quem mais o fará, se não for eu?
Quando entraram os quatro em casa, Mark emitia uma série de comandos autoritários ao extático animal.
- Então, que raio te devo supostamente chamar? Hã? Que nome te vou eu dar? E que tal Blackie Dois?
O ignorante animal ladrou, como que concordando.
Andam atrás do couro de Mark Schluter: isso pelo menos é óbvio. Um homem teria de ser um vegetal para não perceber sequer isso. E colocarem-no assim numa espécie de experiência, em parte tão óbvia de que até mesmo uma criança ainda crente no Pai Natal se riria, mas por outro lado tão complexa que ele nem sequer conseguia imaginar tal coisa.
Era verdade: algo acontecera no hospital, naquela noite em que o tinham operado. Algum erro que tiveram de dissimular. Ou não: a estranheza deve ter começado horas antes disso. Com o acidente. Que obviamente não poderá ter sido um acidente. Condutor espetacular capota um veículo de condução fantástica numa estrada reta como uma régua no meio de nenhures? Claro; é possível acreditar em tal coisa, se estivermos em morte cerebral.
Mas fora aí que tudo começara, as trocas e os impostores, toda a ficção médica para fazer Mark Schluter acreditar que não é quem pensa que é. Precisa de uma testemunha, mas não estava lá ninguém. Rupp, Cain: juram que não estavam em parte nenhuma. E os médicos retiraram-lhe cirurgicamente a memória daquela noite enquanto ele estava inconsciente sobre a mesa de operações. O segredo está algures lá, nos campos vazios. Porém, os campos estão a renovar-se, as colheitas deste Verão cobrindo quaisquer vestígios. Precisa de uma testemunha, mas ninguém viu o que aconteceu naquela noite, excepto as aves. Apanhem um daqueles grous, um dos que ali estava, ao longo do rio.
Encontrem uma das aves e ajuramentem-na. Perscrutem o seu cérebro.
Porque tudo começou com o acidente. Agora ninguém fala de outra coisa que não seja de Mark, Mark está diferente, está a perder o juízo. Como se a questão fosse essa. Como se tivesse sido ele quem mudou. A verdadeira questão está escondida por trás de duplos. Ele apenas tem uma pista. Algo inabalável para lá de qualquer dúvida: o bilhete. As palavras da pessoa que o encontrou, o espectador dos acontecimentos daquela noite, antes de a estranheza se ter instalado. O bilhete que lhe haviam tentado ocultar.
A sua única pista, por isso tem de ser cauteloso. Não, pode agir de forma demasiado evidente. Encarar os dias como eles se apresentam. Rupp e Cain prometem levá-lo a comprar uma carrinha. A fábrica envia-lhe cheques embora ele não tenha ainda trabalhado um único dia. Mas isso não durará para sempre; terá de regressar, mais cedo ou mais tarde. Por agora, porém, deixa-se ficar quieto e elabora o seu plano. Pede a Bonnie Travis que o leve à igreja. A rapariga pertence a uma daquelas seitas protestantes apóstatas chamada Os que Esperam na Sala Alta, uma suposta religião que, por mais estranho que parecesse, tinha o estatuto de organização sem fins lucrativos. Encontram-se no domingo de manhã cedo para uma maratona de duas horas de serviço religioso, no escritório convertido de uma imobiliária por cima da loja de materiais para modelismo chamada Second Life. Há anos que Bonnie lhe pedia para ir com ela a um serviço religioso, para compensar o sortido de mandamentos que juntos quebravam aos sábados à noite.
Ele mesmo renunciara à religião no instante em que completara 16 anos e o pai o pronunciara apto para enfrentar a danação que ele próprio escolhesse. Ninguém se sentirá à vontade com a questão do ser Deixado para Trás depois de crescer com uma mãe que tratava o Grande Castigador pelo primeiro nome. Bonnie fica verdadeiramente aborrecida quando Mark faz comentários irónicos acerca de Jesus, por isso, ao longo dos anos, foram aperfeiçoando cada vez mais a arte de ignorar o tópico. Poderia estar a chover sapos e sangue e de ambos apenas se ouviria: Trouxeste o chapéu-de-chuva? É por esse motivo que, quando Mark lhe pede para o levar à Sala Alta, a mulher age como se todos os sete selos se estivessem naquele instante a quebrar.
- É claro, Mark! É só dizeres quando.
- E quando devo dizer “quando”?
Ela ri-se, pelo menos.
Está bem, podemos ir em qualquer altura. Este domingo! E durante toda a conversa, o rosto dela parece dizer: Será uma piada? Há anos que rezo por isto.
No domingo de manhã ela vem buscá-lo no seu carro. Está toda aperaltada com um vestido curto azul-celeste com um colarinho branco, como uma cantora num vídeo da MTV sobre a primeira comunhão de uma rapariga do campo dos anos 50. A sério: era capaz de se encher de suores só de olhar para ela, embora tal não fosse talvez o mais apropriado tendo em conta as circunstâncias. Pelo olhar que ela lhe lança, ele fez algum cálculo errado. Não pode ser a roupa dele: as suas melhores calças - as calças do casamento, como Rupp lhes chama -, uma camisa de ganga lavada e bem engomada e a sua melhor gravata. É qualquer outra coisa que ele não consegue perceber. Bonnie conduz até à Sala Alta em silêncio todo o caminho. E permanece assim durante todo o espetáculo de duas horas, rodando a cabeça de um lado para o outro e olhando para ele, como se Mark tivesse uma aranha a sair-lhe pelo nariz. No final, já no carro, puxando pela bainha do vestido como se de repente não quisesse que fosse assim tão curto, está furiosa.
- Mal escutaste uma única palavra do que o reverendo Billy tinha para dizer.
- Eu ouvi. Todo aquele pedaço sobre o repovoamento da Palestina e o cumprimento da profecia e assim.
- E recusaste-te a comungar connosco.
- Bem, nunca se sabe onde é que aquilo andou.
- Porque te deste então ao trabalho de vir? Passaste o tempo todo a mirar a congregação e a acenar esse bilhetinho como se fosse uma espécie de intimação.
Como podia ele dizer-lhe? Se houvesse na verdade uma espécie de Anjo da Guarda escondido, recusando identificar-se, afirmando Deus conduziu-me até si, estaria provavelmente algures num local como a Sala Alta.
Bonnie regressa depois nessa tarde com a impostora da sua irmã, enquanto ele faz uma busca por igrejas nas Páginas Amarelas de Kearney. Olhar para as letras e números miudinhos da lista provoca-lhe dores de cabeça, e talvez esteja também a embirrar um bocado.
- Meu Deus! Vejam bem, tantas. Multiplicam-se como coelhos. Para que raio uma cidade deste tamanho necessita de tantas igrejas? Temos mais destas seitas religiosas do que pessoas.
Bonnie coloca-se atrás dele e esfrega-lhe as costas. Isto poderia tornar-se reconfortante e íntimo. Porém, a falsa Karin senta-se a seu lado e imiscui-se no assunto, irritando-o.
- O que é, Mark? O que queres? Nós podemos ajudar-te.
Ele torna-se numa pedra. Diz-lhes:
- Posso visitar um par delas cada domingo.
- Posso ir contigo - diz Bonnie, massajando-lhe os ombros.
- Mas... como? Não são igrejas da tua denominação.
Ela dá um passo atrás e ri-se, como se ele tivesse dito uma piada.
- Também não são da tua, Mark!
Ele passa a mão pela página da lista telefónica.
- Tu percebes o que eu quero dizer. Estas coisas são todas... baptistas, metodistas e por aí fora. Tu és uma conviva da Sala Alta.
- E então? Não vão com certeza deter-me à porta.
- É possível que o fizessem. O Homo sapiens consegue ser bastante territorial. Se me detêm a mim, porque não fariam o mesmo contigo?
- Porque eu não sou nada. Ninguém impede o nada de entrar onde quer que seja. Podem sempre tentar chegar a um ninguém; e convertê-lo.
A pseudo-irmã estica o braço para lhe tocar, mas estaca.
- Mark. Querido. Queres saber quem escreveu aquele bilhete? - Como se agora fosse capaz de ler mentes. - Talvez possamos colocar um anúncio no jornal ou assim.
- Nada de anúncios! - Ele provavelmente grita um pouco. Perde o controlo, um pouco. Mas é só porque quem quer que tenha escrito o bilhete poderá também saber o que aconteceu à sua irmã. E se as pessoas que apanharam a sua irmã apanham o autor do bilhete primeiro...
Isto aborrece a irmã substituta. Por algum motivo, é mais do que um fingimento. Puxando o cabelo, como Karin faz sempre. Tal irrita-o bastante.
- Que posso eu fazer, Mark? Muito bem, então quem quer que te tenha deixado o bilhete acredita em Deus. Em anjos da guarda, Toda a gente no Nebrasca acredita em anjos da guarda! Eu mesma acreditaria neles se... - Detém-se, como se quase se tivesse descaído.
- Se o quê? - inquire ele. - Se o quê?
Ela não responde, por isso ele pega num pedaço de papel e começa a anotar endereços: Igreja de Jesus Cristo Alfa e Ómega. Bíblia de Antioquia...
- Mark, estou a dizer-te. Isto é uma loucura. É um tiro no escuro, totalmente improvável.
- Não tão improvável quanto este anjo da guarda encontrar-me no meio da escuridão, fora da estrada. Em pleno Inverno. No meio de nenhures. Quais são as probabilidades de tal acontecer?
Bonnie, pelo menos é uma pessoa credível. Acredita que vai salvar a alma de Mark. E talvez vá. Aperaltam-se todos os domingos e vão à igreja, como um casal de namorados de um qualquer manual escolar dos pioneiros. Sexo a seguir a isso e ele ficaria no céu. Porém, o melhor que ele pode esperar depois do serviço religioso é uma boa refeição. Vão ao PhiTs ou ao Hearth Stone, locais frequentados por bastantes pessoas de idade. Deverá ser uma pessoa de idade, tendo em conta a caligrafia tão rendada. Em ambas as igrejas e restaurantes, ele mantém o bilhete bem à vista. Chega até a passear-se com ele, acenando-o por baixo do nariz de estranhos. Mas ninguém mordisca sequer o isco. E não estão a fingir ignorância. Ele reconheceria o fingimento, vendado.
Escuta sem ser visto a Agente Especial Irmã a falar com Bonnie, quando regressam a casa. Ela quer todos os pormenores. O que ganhará Bonnie por preencher relatórios acerca dele? É bem possível que ela seja a trela dele, que esteja a ajudar a montar toda a charada. Contudo, ele não pode confrontá-la. Não para já.
A Mulher-que-se-Faz-Passar-por-Karin não pára de aparecer lá por casa, praticamente todos os dias. Traz-lhe mercearias e não quer dinheiro por elas. Tudo muito suspeito, mas a comida vem na sua maioria fechada e sabe muito bem. Por vezes, ela cozinha para ele. Quem é que há-de entender isso? No entanto, parece-lhe um bom negócio, pelo menos até ele perceber o que isso lhe irá custar.
Ela encurrala-o uma tarde em que ele está sozinho em casa a cavar um buraco para a caixa do correio. Não tem recebido mais nada a não ser publicidade desde que deixou Dead Man's Glands.
Colocaram a caixa do correio no sítio errado. Induz o carteiro em erro. A irmã poderia ter-lhe mandado cartas este tempo todo, e ninguém saberia.
- Não está onde estava antes - diz ele.
Ela finge estar horrorizada.
- Onde estava antes?
- Difícil de dizer, ao certo. Não dá para medir por comparado com nada. O que podes usar como linha de partida? Está tudo alguns centímetros deslocado.
Ele olha para as poucas árvores espalhadas que ladeiam a urbanização de River Run. Para lá do grupo de casas, um único campo de milho verde ondula até ao horizonte. Por um minuto, o chão liquefaz-se, como ele e a sua verdadeira irmã costumavam obrigá-lo a fazer quando eram miúdos, rodopiando como piões e depois estacando de repente. Olha para a substituta de Karin; também ela parece vacilante.
- Mark, precisamos de conversar. Sobre o bilhete.
Todo o corpo dele parece elevar-se como uma onda do buraco para a caixa do correio.
- Sabes de alguma coisa?
- Quem me dera que sim. Olha, Mark. Mark! Pára com isso. Escuta o que quero dizer-te. Se quem quer que escreveu este bilhete não entrou em contacto contigo até agora, é porque a pessoa quer permanecer... desinteressada. Anónima. Não pretende ser um herói ou assumir qualquer responsabilidade. Não quer que saibas quem é. Quer apenas que vivas a tua vida.
Pega na pá e crava-a na terra ressequida.
- Então, para que raio serve deixar um bilhete? Porquê dar-se ao trabalho de o escrever?
- A pessoa devia querer que te sentisses protegido. Ligado.
- Ligado? Ligado a quê? - Volta a cravar a pá no chão e dá-lhe um pontapé, os seus braços torcendo-se como cobras. - O senhor Anjo Invisível Anónimo? Isso deverá supostamente fazer-me sentir seguro? Ligado? Porque haveria de...? - Quase lhe dá uma estocada com a pá. - Quem quer que tenha escrito este bilhete, salvou-me a vida. Se pudesse encontrar essa pessoa, então talvez descobrisse o que...
Apercebe-se então: estúpido, estúpido. Mas nem sequer se preocupa que ela o veja verter umas lágrimas, digamos. Junta-se a ele, Como queira. Macaquinho de imitação.
- Eu compreendo. Sei o que estás a sentir - garante ela. E é quase como se na verdade soubesse. Ela diz: - Precisas mesmo de associar um rosto a este bilhete? Faria alguma diferença se descobrisses que essa pessoa... ? Mark, pára. Não! Diz-me apenas o que estás a pensar. Queres apenas agradecer-lhe? Queres... sei lá. Estás a pensar que poderias travar amizade com essa pessoa?
É como se ela se tivesse acabado de materializar vinda de nenhures. De repente tentando ser a pessoa que estava mesmo agora a imitar.
- Estou-me perfeitamente borrifando para quem a pessoa possa ser. Podia até ser um depravado lituano de noventa anos.
- Então, porque te esforças tanto para o encontrar?
Mark Schluter agarra na sua cabeça com ambas as mãos e abana-a. Demónios da guarda, por todo o lado. As suas enlameadas botas de trabalho pontapeiam a terra, tentando destruir o buraco acabado de abrir.
- Lê o bilhete. Lê a porcaria do bilhete. - Enfia dois dedos no bolso do seu fato-macaco e puxa o papel dobrado. Anda sempre consigo, agora, perto do seu corpo. Ela não aceita o papel. Recusa-se a tocar nele. - “Para que pudesse viver” - recita ele, segurando o papel na frente da cara dela. - “E trazer de volta outra pessoa”.
Ela senta-se no chão ao lado dele, a um centímetro de distância. Uma estranha calma envolve-os a ambos.
- Trazer de volta outra pessoa? - pergunta ela. Como se ela mesma o quisesse fazer. Ele dá um sacão para a frente. Ela cai para trás, os braços erguidos para o deter. No entanto, tudo o que ele quer é segurar o rosto dela entre as suas mãos.
- Tens de me ajudar. Suplico-te. Farei tudo o que quiseres. Tenho de encontrar esta pessoa.
- Mas porquê, Mark? Que pode essa pessoa dar-te que eu...?
- Essa pessoa sabe. Sabe por que motivo ainda estou vivo. Algo que eu gostaria de saber.
Karin escreveu a Gerald Weber. Ele dissera-lhe que escrevesse, se o estado de Mark se alterasse. Não mencionou tê-lo visto na televisão. Nada disse sobre ter comprado o seu novo livro ou tê-lo achado frio e aborrecido, cheio de afirmações recicladas sobre o cérebro humano e desprovido da alma humana. Escreveu: “Mark está claramente a piorar.”
Descreveu os novos sintomas: as teorias obsessivas de Mark em relação ao bilhete. O facto de agora também duplicar locais, para além de pessoas. A rejeição da casa, da vizinhança e quiçá de toda a cidade. O facto de estar a deixar-se levar para um território tão estranho que a deixava duvidosa. Perguntou ao dr. Weber se o acidente poderia ter dado a Mark memórias falsas. Poderia alguma coisa ter acontecido ao seu mapa interno generalizador? Cada pequena mudança fazia com que Mark separasse cada momento num mundo único e independente.
Mencionou um caso do primeiro livro de Weber, uma senhora idosa chamada Adele que garantia ao dr. Weber que não estava numa cama de hospital em Stony Brook, mas antes na sua acolhedora casa de telhado de duas águas em Old Field. Quando o dr. Weber lhe apontou todos os dispendiosos aparelhos médicos no quarto, Adele soltara uma gargalhada: “Oh, são apenas adereços, para me fazer sentir melhor. Eu nunca teria meios para sustentar máquinas verdadeiras.”
Paramnésia reduplicativa. Copiou as palavras do livro dele para a sua mensagem de correio electrónico. Seria provável que Mark estivesse a sofrer deste mesmo transtorno? Poderia estar a ver pormenores que nunca antes vira? Seria possível uma lesão cerebral melhorar a memória? Citou então o segundo livro do dr. Weber, página 287: o homem referido como Nathan. Lesões nos lobos frontais deste homem tinham de alguma forma destruído o seu censor interno e libertado recordações há muito reprimidas. Aos 56 anos, Nathan apercebera-se de repente de que aos 19 matara outro homem. Poderia Mark estar a recordar coisas antigas sobre si mesmo - ou mesmo em relação a ela - que não poderia aceitar?
Karin sabia que as suas teorias eram um pouco disparatadas; tinha consciência disso mesmo enquanto as punha por escrito. Porém, não eram mais despropositadas do que a sugestão da síndrome de Capgras.
Os próprios livros de Weber afirmavam que o cérebro humano era não apenas mais estouvado do que o pensamento, mas mais estouvado do que o pensamento podia pensar. Citou ainda o seu último livro, O País da Surpresa: “Mesmo a normalidade comum contém em si algo de alucinatório.” Nada nos exames que o dr. Weber realizara a Mark antecipara estes novos sintomas. Ou Mark precisava de um diagnóstico completamente novo ou ela estava a alucinar.
Recebeu uma resposta bem-disposta da secretária de Weber. O novo livro do doutor exigia que viajasse para 17 cidades diferentes em quatro países ao longo dos próximos três meses. Estaria, portanto, em grande medida incontactável por correio eletrónico, excepto em caso de emergência, até ao Outono. A secretária prometia, porém, alertar o dr. Weber para a mensagem de Karin na primeira oportunidade que surgisse e encorajava Karin a entrar em contacto com o doutor por aquele endereço caso a situação do irmão se agravasse.
A resposta enfureceu Karin.
- O homem anda a fugir de mim - disse a Daniel. - Veio até cá, recolheu a informação que pretendia e agora descarta-se de nós.
Daniel tentou esconder o seu embaraço.
- Duvido que ele tenha tempo sequer para fugir de ti. As coisas devem estar bem frenéticas para ele neste momento. Televisão, rádio e jornais todos os dias.
- Eu sabia, todo o tempo que ele esteve por cá. Ele acha que sou um paciente problemático. Um familiar problemático. Ele leu a minha mensagem e disse aos seus funcionários que mentissem por ele. Se calhar nem sequer era a secretária dele. Provavelmente "era ele mesmo, fingindo...
- Karin? K. ? - Daniel ficara subitamente mais velho do que o neurocientista. - Não sabemos...
- Não sejas paternalista! Estou-me borrifando para o que sabemos ou não sabemos.
- Chiu. Pronto, está tudo bem. Estás revoltada. Tens motivos para isso. Com tantos profissionais de saúde, cada um a dar o seu palpite em relação a toda esta questão. Talvez estejas até zangada com o teu irmão.
- Agora estás a analisar-me?
- Não estou a analisar. Apenas vejo que...
- Quem raio... ? Pensas tu que és?
As palavras, ainda que reprimidas, atordoaram ambos e remeteram-nos ao silêncio. As mãos dela começaram a tremer e ela sentou-se, entorpecida.
- Meu Deus, Daniel. O que está a acontecer? As coisas que eu digo. Estou a ficar como ele. Pior do que ele.
Ele avançou para ela e esfregou-lhe o antebraço, desentorpecendo-lho.
- A raiva que sentes é natural - disse ele. - Toda a gente se zanga.
Toda a gente excepto o santo com quem ela vivia.
Marcou uma consulta para falar com o dr. Hayes. Entrando no estacionamento do Good Samaritan para a consulta, recordou a noite do acidente. Tivera de ficar sentada dentro do carro, naquele mesmo estacionamento, durante dez minutos até que as pernas ganhassem força suficiente para suportar o seu peso.
Cumprimentou o dr. Hayes de forma profissional. O cronómetro da consulta fazia tiquetaque. Enumerou os novos sintomas de Mark, que o neurologista copiou para a ficha de Mark.
- Porque não o traz cá? Talvez seja melhor observá-lo outra vez.
- Ele não virá - explicou Karin. - Não me dará ouvidos, agora que está de novo a viver sozinho.
- Já considerou tomar medidas para assumir a guarda legal dele?
- Como é que... O que é que isso envolve? Teria de o declarar mentalmente inapto?
Hayes deu-lhe um contacto. Karin tomou nota dele, uma vil esperança apoderando-se de si. Usar a lei contra o seu próprio irmão. Protegê-lo de si mesmo.
- O seu irmão tem assim tanta certeza de que a sua própria casa é uma falsificação? - perguntou Hayes, fascinado.
- Numa escala de zero a dez? Eu diria que um sete.
- E como é que ele explica a troca?
- Ele acha que está sob vigilância desde o acidente
- Bom, até certo ponto ele tem razão, não é verdade? É uma pena que o nosso autor não esteja aqui para ver isto. Isto parece saído diretamente de um dos casos dele.
- Mas não saiu - ripostou ela, num tom seco.
- Não. Peço desculpa. Claro que não. - Pousou a caneta e passou os dedos por um manual de Medicina de lombada verde e espessa na prateleira por trás de si. Porém, não o retirou. - Os estudos indicam uma elevada incidência de sobreposição das várias síndromes de identificação errónea. Na verdade, podem não ser distúrbios inteiramente distintos. Um quarto ou mais dos doentes de Capgras desenvolvem outros sintomas psicóticos. Quando tomamos em consideração as diferentes causas para a síndrome de Capgras...
- Está a dizer que ele pode ficar pior? Que poderá começar a acreditar no que quer que seja? Porque é que ninguém me disse isto antes?
Ele lançou-lhe um olhar exasperantemente calmo e composto.
- Porque ainda não acontecera antes.
O dr. Hayes queria uma observação mais atenta de Mark. A primeira sessão de terapia comportamental cognitiva como doente ambulatório estava marcada para dali a uma semana. A terapeuta, a Drª Jill Tower, tinha já estudado o processo de Mark. O dr. Hayes faria a sua própria avaliação de acompanhamento. Entretanto, nem o diagnóstico nem o tratamento indicado sofreriam qualquer alteração.
Atingiram o minuto 17; Karin já estava esgotada.
- Queria também saber a sua opinião - começou ela. - Bem sei que o dr. Weber é um especialista reconhecido, mas li algumas coisas sobre este tipo de terapia. E parece-me que... Não sei. Soa-me a condicionamento sancionado. Tentam atenuar a ilusão apenas por meio de treino e... modificação. Considera que tal terapia é a mais apropriada na situação em que Mark se encontra? A tomografia revela lesão. De que serve uma mudança de hábitos mental quando o que ele tem é uma lesão física?
Ela tocou num ponto sensível, tornado claro pela forma como o neurologista começou a contornar o assunto de forma vaga.
- Temos de explorar uma variedade de abordagens. A terapia comportamental cognitiva seguramente que não prejudicará em nada o seu irmão ao mesmo tempo que ele aprende a adaptar-se ao seu novo eu. Confusão, raiva, ansiedade...
Ela fez uma careta.
- E há alguma probabilidade de isso vir a melhorar a síndrome de Capgras de que padece?
O médico voltou a virar-se para a prateleira de livros, e mais uma vez não retirou nenhum.
- Um pequeno conjunto de bibliografia aponta para alguma melhoria das ilusões de identificação errónea em distúrbios psiquiátricos. Se a terapia comportamental cognitiva terá ou não algum efeito sobre a síndrome de Capgras provocada por um traumatismo encefálico, teremos de esperar para ver.
- Somos as cobaias?
- A Medicina envolve muitas vezes alguma experimentação.
- De cada vez que tentou mostrar a Mark como está a ser insensível ele inventa outra teoria mais elaborada para se explicar. De que forma é que um terapeuta o conseguirá fazer raciocinar de outra forma?
- A terapia comportamental cognitiva não tem a ver com o raciocínio. Tem a ver com a adaptação emocional, com treinar os pacientes para explorarem os seus sistemas de crenças. Ajudá-los a trabalhar a noção que têm do seu eu, dar-lhes exercícios para mudar...
- Ajudar Mark a explorar por que motivo acha que eu não sou quem sou? - Quem quer que essa pessoa fosse.
- Precisamos de determinar o nível do seu delírio. Poderá não ser mais resistente à modificação do que qualquer crença. Algumas pessoas mudam de partido político. As pessoas apaixonam-se e desapaixonam-se. Opressores religiosos são convertidos. Não sabemos o que acontece numa síndrome de identificação errónea. Não podemos provocá-la e não podemos fazê-la desaparecer. Mas talvez sejamos capazes de fazer com que seja mais fácil viver com ela.
- Mais fácil para...? - Modificou. - Então, “mais fácil” é o melhor que podemos esperar?
- Só isso poderá já ser bastante.
- O doutor Weber receita terapia cognitiva a todos os seus casos intratáveis?
Os olhos de Hayes tremeluziram, um pequeno brilho que quase traiu o seu código de ética. Uma centelha que admitia: Bom, como sabe, os médicos receitam muitas vezes antibióticos para constipações.
- Não recomendaríamos esta sugestão se não apresentasse qualquer hipótese de sucesso.
Os profissionais, a cerrar fileiras. Mas ela talvez o obrigasse a vir à superfície.
- Teria feito a mesma sugestão se o dr. Weber não nos tivesse feito esta visita?
O sorriso dele ensombrou-se.
- Não tenho qualquer problema em apoiar a recomendação dele.
- Mas terapia comportamental para uma lesão? É como persuadir uma pessoa para não ficar cega.
- Uma pessoa recentemente cega poderá necessitar de ajuda para se adaptar à sua nova condição.
- Então, trata-se apenas de ajudar a adaptar? Não há nada, então? Nada em termos médicos? Ainda que claramente ele esteja a piorar?
O dr. Hayes levou os dedos indicadores aos lábios.
- Mais nada aconselhável. Lembre-se, isto não é para nós. É para o seu irmão.
Karin levantou-se e despediu-se do neurologista com um aperto de mão, pensando, Irmão de quem? À saída confirmou o plano das sessões de terapia com a enfermeira da Drª Tower.
Combinou uma trégua com Rupp e Cain. Quaisquer que fossem os pecados deles contra o seu irmão, não podia dar-se ainda ao trabalho de estar em guerra com eles. Não tinha mais ninguém a quem recorrer. Alguém tinha de ajudar a manter Mark debaixo de olho, em especial à noite, quando as coisas se complicavam. Ela perdera o direito de ir e vir. Uma noite menos boa ela voluntariara-se para ficar no quarto de hóspedes. Ele examinara-a de forma tão aterradora que a enxotara de volta para casa de Daniel. No dia seguinte, Karin telefonou a Tommy Rupp, o cérebro, à falta de melhor termo, dos Mosqueteiros. Era capaz de lidar com Rupp pelo telefone. Qualquer coisa, menos ter de olhar para a cara dele.
Este demonstrou-se surpreendentemente correto, improvisando um revezamento que manteria Mark em constante vigília. A perspectiva de poder cuidar de alguém agradara-lhe.
- Tal como nos bons velhos tempos - disse ele. - Ele nem pensará duas vezes em relação a ficarmos lá de um dia para o outro.
- É isso mesmo que eu temo. Por favor, não o obriguem a tomar quaisquer drogas. Não com ele assim.
Tommy soltou uma gargalhada.
- Obrigar? Por quem nos tomas? Não somos uns monstros.
- De acordo com a actual teoria neurológica, toda a gente é um monstro.
Uma memória humilhante residia no meio deles, intacta. Há alguns anos, Karin e Rupp haviam dormido um com o outro, só pela piada, numa noite de Setembro já tarde no alpendre da frente da casa da família Schluter, enquanto Mark, Joan e Cappy dormiam no andar de cima. Era o último ano de faculdade dela e Rupp tinha acabado de sair do liceu. Era quase como corromper um menor. E de facto ela corrompeu-o nessa noite, arrancando do rapaz guinchos abafados de descrença que ameaçavam acordar toda a gente e fazer com que ambos fossem apanhados. Karin nunca percebeu por que razão dera início a este entretenimento de sessão única. Curiosidade. Emoção pura: a pior transgressão possível. Talvez lhe concedesse alguma influência, vantagem, arrastar o amigo do irmão para trás do balouço do alpendre numa noite de Setembro seca, cintilante e escura como breu e fazer o que os animais faziam às claras. Tom Rupp exercia uma influência antinatural sobre Mark. Mesmo aos 18 anos: demasiado sereno para mostrar o mínimo desejo. Apenas cooperara pela experiência. E ela garantira que fora boa. Só depois é que Karin se apercebeu da vantagem, do poder que concedera ao rapaz.
Porém, nunca contou nada a Mark. Sabia o que aconteceria; Mark renegaria-a, nove anos mais cedo. Rupp nunca mais voltou a mencionar a ocasião. Teria de muito bom grado repetido a experiência, em qualquer altura, mas nunca se rebaixaria a sugeri-lo. Ela conseguia sentir a pergunta de Rupp na forma como este a rodeava furtivamente, a mesma pergunta enervante molestando-a de cada vez que atravessava o caminho de Tom Rupp: Aquela rapariga ainda aí está?
Nessa altura ela tivera uma inclinação para o perigo. E nesse departamento, Tom Rupp era a Grande Esperança dos Bearcats do liceu de Kearney. Aos 13 anos, viajara à boleia os 200 quilómetros que separavam Kearney de Lincoln e entrara clandestinamente no espetáculo de beneficência Farm Aid III, trazendo de volta para os seus boquiabertos amigos as impressões digitais de John Mellencamp numa garrafa de rum. Aos 15, roubou as quatro bandeiras hasteadas à porta do edifício municipal na Twenty-second Street - a da cidade, a do estado, a da nação e a do POWMIA - e usou-as para decorar o quarto.
Toda a gente na cidade sabia quem as levara, excepto a Polícia. Rupp fora também um lutador de luta livre, classificando-se em quinto lugar do campeonato estatal na categoria dos 70 quilogramas no segundo ano da universidade, desistindo dos desportos organizados e proclamando-os “um campo de treino para futuros homossexuais”. Mark, que durante anos se esforçara por ganhar fama como guarda-costas energético mas com pé-chato e uma farda medíocre, desistiu com ele de boa vontade.
Rupp treinou Mark, citando ominosamente os clássicos que devorava estritamente em regime autodidacta.
- Acautela-te contra os bons e os justos! Crucificariam de bom grado aqueles que idealizam a sua própria virtude. Odeiam os solitários. - Mark nem sempre conseguia seguir o raciocínio do amigo, mas a dicção entusiasmava-o a todo o tempo.
Escolheram Duane Cain como companheiro para todos os propósitos no último ano. Cain conseguira já uma pena suspensa de 18 meses por acreditar que era a primeira pessoa a inventar um esquema de fraude envolvendo seguros. Tornaram-se inseparáveis. Passavam semanas a reconstruir qualquer motor de combustão interna que permanecesse quieto o tempo suficiente para eles o desmancharem. Estavam em guerra perpétua com qualquer outro grupo da escola. Duane liderava-os em incursões noturnas envolvendo aquele antigo gesto de desprezo nativo norte-americano, deixando um cartão de visita quente e em espiral em proeminente exibição no quintal da frente do inimigo.
Matricularam-se em conjunto na Universidade do Nebrasca em Kearney, Rupp terminando em quatro anos, Mark e Duane conseguindo um total de quatro entre os dois. Rupp aceitou um cargo no “sector das telecomunicações” em Omaha, abandonando Duane e Mark a uma vida de mudar mobília e ler contadores do gás. Oito meses mais tarde, Rupp estava de volta à cidade, sem qualquer explicação, mas com um plano de longo prazo para fazer progredir os três nos seus destinos profissionais.
Conseguiu trabalho na fábrica de embalamento de carne de Lexington, onde deixou o pós-processamento e passou para o matadouro, um cargo que lhe garantia mais três dólares por hora. Assim que conseguiu reunir alguma antiguidade, arranjou trabalho para os dois amigos. Duane juntou-se a Rupp no matadouro, mas Mark não tinha estômago para aquilo, quanto mais nariz. Por isso ficou de boa vontade para trás na manutenção e reparação da maquinaria, poupando dinheiro suficiente ao longo de três anos para a entrada da sua Homestar.
Do trio, Tommy Rupp era o único com ambição. A Guarda Nacional do Nebrasca ofereceu-lhe um salário suplementar e até prometeu pagar-lhe três quartos da propina se ele regressasse à escola. Tudo isso por apenas um fim-de-semana por mês. Era um trabalho simples, que não exigia grande cérebro. Tentou que os outros Mosqueteiros fossem incorporados em conjunto com ele. Dinheiro fácil e serviço patriótico misto: o melhor negócio legal que qualquer entidade alguma vez proporia a tipos como eles. Porém, Duane e Mark preferiram esperar para ver.
Rupp alistou-se em Julho de 2001 como MOS 63B: Mecânico de Veículos Ligeiros, o mesmo tipo de coisa que, de qualquer maneira, ele adorava fazer todos os fins-de-semana. A 167ª Cavalaria. Tentaram envenená-lo, basicamente, e ele tinha a cassete de vídeo de recordação para o provar: a sair aos tropeções da câmara de gás de teste, rastejando para fora da sala fechada cheia de clorobenzalmalononi-trilo onde ele e 25 outros recrutas tinham sido enfiados e ordenados que retirassem as máscaras de gás. Duane Cain visionou uma vez a cassete - Rupp, o Homem de Ferro, caindo de joelhos no chão, sufocando e a vomitar - e decidiu que o serviço militar não se encontrava no seu futuro mais próximo. O vídeo também assustou Mark. Nunca fora especialmente bom a inalar venenos.
Chegou Setembro, e depois os ataques. Conjuntamente com o resto do mundo, o trio seguiu de perto a interminável, lenta e cinemática loucura. Observada das planícies centrais, Nova Iorque era uma pluma negra no horizonte mais longínquo. Havia tropas a garantir a segurança de Golden Gate Bridge. O antraz começou a surgir nos açucareiros da nação. Depois as bombas começaram a cair no Afeganistão. Um locutor de rádio em Omaha declarou, Está na hora da vingança, e rio abaixo correu uma aquiescência unânime e empedernida.
Rupp chamou-lhe autodefesa pura. Logo desde o início, e frequentemente, explicou que a América não se podia dar ao luxo de esperar que outro operativo fanático com sonhos de 72 virgens espalhasse a varíola pelo país enquanto este dormia. Os terroristas não iriam parar até que toda a gente se parecesse exatamente com eles. Duane inquietava-se com o futuro de Tommy. Porém, Rupp mostrava-se filosófico. A liberdade não era de borla. Para além disso, o Exército não tinha alvos em busca dos quais tivesse de enviar a Guarda.
Por alturas do Inverno, a América pegou em armas e atacou alvos em todo o lado. O tempo de serviço de Rupp aumentou e alguns dos tipos com os quais ele servira foram transferidos para Fort Riley, no Kansas. A 3 de Fevereiro, logo depois de o presidente ter proferido o discurso do Estado da Nação em que basicamente afirmava “vamos lá caçá-los” e de Washington ter perdido o rasto a Bin Laden, Mark veio ter com Rupp e disse-lhe que mudara de ideias. Queria servir o país, apesar do clorobenzalmalononitrilo. Rupp recebeu as notícias como um distribuidor da Amway prestes a receber uma fatia dos ganhos de alguém abaixo de si na pirâmide. Foram ao centro de recrutamento juntos e Mark percorreu a lista com o dedo em busca de um cargo. MOS 63G: Reparador de Sistemas Elétricos e de Combustível. Não tinha a certeza de conseguir passar no teste de qualificação, mas partiu do pressuposto de que não seria mais difícil do que o que fizera para a IBP. Assinou uma carta de intenção e foi comemorar com Rupp com uma sessão de duas horas de tiro ao alvo a latas de cerveja dispostas sobre uma vedação. Tarde nessa noite telefonou a Karin e participou-lhe a sua decisão num discurso ébrio e entaramelado. Contou-lhe tudo. Soou-lhe diferente, a voz mais orgulhosa, mais serena, e há muito tempo que ela não o escutava desta forma. Como se fosse já um soldado. Uma honra para o país.
Ela disse-lhe que não fosse para a frente com isso. Ele riu-se dos receios dela.
- Quem é que irá proteger o teu modo de vida, se não for eu? Só desejava ter-me decidido mais cedo. É tão óbvio. Eu posso fazer isto. Lembras-te da mãe e do pai? - Ela respondeu que sim. - Faleceram ambos convencidos de que eu era um preguiçoso. Tu não achas que eu seja um preguiçoso, pois não?
Alistara-se por ela. Karin disse-lhe para desistir, para invocar uma qualquer cláusula de renúncia. Porém, ao dar-se conta de que estava a destruir a tentativa do irmão de conquistar alguma auto-estima, retrocedeu. E talvez ele tivesse razão. Talvez também ela precisasse de pagar pelo privilégio. Duas semanas mais tarde, ele estava de cabeça para baixo na berma gelada de uma estrada, a sua incursão no serviço à pátria terminada antes de começar.
Karin tratara de tudo com os funcionários de recrutamento da Guarda Nacional enquanto Mark estava ainda no Good Samaritan. Tentou isentar Mark por completo do acordo, mas o melhor que conseguiu foi uma dispensa médica temporária, sujeita a revisão. Mais uma incerteza que pendia sobre a sua cabeça. Ao fim de algum tempo, toda a ideia de segurança começou a parecer um golpe inesperado. A Guarda reclamaria Mark, se o declarasse apto para o serviço. Entretanto, Rupp fazia instrução militar por todos eles. Duane garantiu o seu apoio moral exibindo uma t-shirt onde se lia, Os Marines Procuram umas Quantas Boas Mulheres, com uma apropriada ilustração.
Contudo, Duane ajudou Rupp e Bonnie a montar guarda à Homestar. Karin observava, de tão perto quanto Mark permitia. Este desfrutava da companhia dos amigos, nunca questionando por que razão as comemorações do seu regresso a casa prosseguiam durante semanas. Enquanto os convidados permanecessem por ali e o frigorífico aparecesse cheio, ele parecia pronto para viver o momento, o presente.
Karin ia controlando tudo das linhas laterais, apelando ao peculiar sentido de dever de Rupp.
- Dás um olhinho por ele quando ele fumar? Há meses que não fuma. Tenho um medo terrível de que se esqueça do que está a fazer e acabe por pegar fogo à casa.
- Ei, tem calma. Com exceção de algumas teorias bizarras, ele voltou basicamente ao normal.
Ela não podia argumentar contra isso. Já não sabia ao certo o que normal significava.
- Podes ao menos moderar a cerveja?
- Isto? Esta porcaria não faz mal a ninguém. Tem poucos hidratos de carbono.
Quando passava de carro à noite pela Homestar, as luzes estavam sempre acesas. Isso significava maratonas de filmes de artes marciais seguidas de outras maratonas de jogos de vídeo. Ela agora já os tolerava.
Nem mesmo o insano jogo de corridas de NASCAR poderia ser muito pior do que a terapia cognitiva, no que dizia respeito a devolvê-lo à vida. O ecrã era o único lugar onde ele agora podia ser feliz, correndo sem pensar, livre da suspeita de que as coisas não faziam sentido. Contudo, o jogo também o enlouquecia. Antes do acidente, os seus polegares haviam sido mais rápidos que os olhos. Agora, recordava tudo o que outrora era capaz de fazer, mas não como o fazer. E isso enfurecia-o. Era nessas alturas que ela agradecia a presença de Rupp e Cain. Mais ninguém a podia proteger dos acessos dele. Agora que o corpo dele sarara, ele seria capaz de a estropiar antes mesmo de se dar conta do que estava a fazer. Ela era uma agente do Governo, um robô, e ele era perfeitamente capaz de lhe arrancar a cabeça num instante só para encontrar os fios e cabos de ligação. Uma crise de fúria desnorteada e ela iria desta para melhor.
Cain e Rupp continham-lhe os acessos de raiva. Aprenderam a lidar com ele quando ficava assim: deixavam-no extravasar a fúria e depois voltavam a enfiar-lhe o comando do jogo nas mãos. A rotina tornou-se parte das festividades.
No Dia da Independência, toda a gente se juntou para ver o fogo-de-artifício. Os rapazes deram início aos festejos mais cedo, enchendo um bidão de óleo com gelo e cervejas e grelhando um quarto de uma vitela trazida da fábrica sobre uma fogueira. Quando Karin apareceu, estavam a ouvir o Coro do Tabernáculo Mórmon entoar versos patrióticos adaptados a marchas de John Phillip Sousa. As ondas de som atingiram-na ao mesmo tempo que se aproximava da Homestar. Duane tentava domar uma máquina de fazer gelados, discutindo com o insubmisso mecanismo. Mark ria-se dele, de uma forma mais natural do que alguma vez rira desde o acidente.
- A tua máquina está com diarreia.
- Eu dobro este estupor. E a seguir conserto o leitor de cassetes. Mostrem-me uma máquina que eu não consiga derrotar. Penso que é um problema de polaridade. Sabes o que isso é?
O espetáculo estava a divertir tanto Mark que nem sequer contestou a chegada de Karin.
- Vejam quem chegou! Tudo bem, também és uma cidadã. Um pormenor interessante, de qualquer maneira. O 4 de Julho é o feriado preferido da minha irmã. Dediquemo-lo a ela, onde quer que esteja. A ela e a todos os americanos desaparecidos.
Karin não tivera uma única coisa boa a dizer acerca do feriado desde os dez anos. Mas talvez ele se estivesse a referir à Karin de dez anos. Aquelas duas crianças pequenas, os seus olhos tremeluzindo como ouro, cheias de medo e de excitação quando o pai detonou uma barragem de artilharia de fogo-de-artifício ilegal na quinta.
- Ela deve estar no estrangeiro - afirmou Mark, uma nuvem passando por cima da sua cabeça. - No estrangeiro ou na prisão. Já teria tido notícias dela se estivesse nos Estados Unidos. Logo num dia como o de hoje. É como vos digo: talvez a vida dela tenha outras facetas que eu desconhecia.
Bonnie apareceu vinda diretamente do seu trabalho na River Road Archway, ainda com a sua touca da época dos pioneiros e vestido de algodão até ao tornozelo. Preparava-se para ir à casa de banho de Mark mudar de roupa quando este a deteve.
- Ei! Porque não ficas assim? Gosto de te ver com essa roupa. - Acenou na direção do seu corpete estampado de algodão. - Já ninguém faz esse tipo de coisa. Sinto falta de tudo isso.
Ela ficou onde estava, um diorama de risadinhas.
- Que quer dizer com isso, Miss?
- Os tempos antigos. Os artefactos da nossa cultura. Acho-os mais ou menos sensuais. Acalmam-me. - Apesar dos comentários salazes que teve de suportar de Rupp e Cain, permaneceu com o seu traje, atarefando-se na cozinha para preparar o festim improvisado ao lado de Karin, de calções e diafragma descoberto. Ganga, camuflado, t-shirts estampadas e uma touca de calico: a América com dois séculos e um quarto.
- Onde está o teu amigo? - perguntou Bonnie a Karin.
- Que amigo? - gritou Mark do quintal.
Karin ainda pensou em apertar aquele pescoço pregueado de calico.
- Está em casa. Ele... - Acenou a mão vagamente na direção do sistema de som, as marchas corais de Sousa. - Ele detesta exibições militares. Não aguenta as explosões.
- Convida-o de qualquer maneira - sugeriu Bonnie. - Pode sempre ir-se embora quando a diversão começar.
- Que amigo? - insistiu Mark, do lado de fora da janela da cozinha com o nariz pressionado contra o resguardo de rede. - De quem é que estão a falar?
- Andas enrolada com alguém? - inquiriu Rupp, com um interesse muito cortês.
Duane desfrutou da rara vantagem informativa de que gozava.
- Já não é novidade, Gus. Anda metida com o Riegel. Em que terra é que vocês os dois têm vivido?
- Danny Riegel? O Rapaz Pássaro? Outra vez? - Rupp fez um brinde a Karin com uma lata de cerveja enfiada num invólucro de neopreno. - É inestimável. Porque não me terá ocorrido que isso aconteceria? Quero dizer, voltaria a acontecer? A migração anual.
Duane deu uma gargalhada.
- Aquele tipo um dia ainda vai salvar o planeta.
- Mais do que tu alguma vez farás - censurou Bonnie.
Karin observou Mark através do resguardo da janela da cozinha. Sentou-se na cadeira do quintal segurando um pedaço degelo contra a testa. Debateu-se com o nome, encaixando o longo passado nos cinco segundos de presente fugaz onde agora vivia. Alguém que se fazia passar pela sua irmã andava enrolada com um rapaz que, numa outra vida, fora o seu companheiro inseparável. E que outrora se enrolara com a sua verdadeira irmã. Impossível de conceber. Quantas vidas é que uma pessoa tinha de entender nesta vida?
Durante o churrasco ao ar livre os rapazes decidiram onde a América atacaria a seguir. Duane e Mark propuseram vários países e Tommy avaliou a maior ou menor dificuldade com que cada um deles seria derrotado. Bonnie - um daguerreótipo colorido com um bife de 250 gramas num prato de papel equilibrado sobre os joelhos - escutava-os, como se estivesse a ouvir um discurso que tinha de decorar para o seu trabalho no Archway.
- Não ficam com pena deles, às vezes? Dos estrangeiros? -perguntou ela.
- Bom - respondeu Rupp hesitantemente. - Não é que estejam apenas a ser ingénuos.
- O reverendo Billy diz que esta coisa com o Iraque vem profetizada na Bíblia - acrescentou ainda Bonnie. - Algo que tem de acontecer, antes do fim.
Karin sugeriu que cada bomba lançada poderia talvez estar a criar mais terroristas.
- Meu Deus! - Mark abanou a cabeça. - És uma traidora ainda maior do que a minha irmã. Começo a pensar que não tens sequer qualquer filiação ao Governo!
O Coro do Tabernáculo Mórmon sucumbiu de cansaço e foi substituído por country rock cristão profundamente optimista. Grupos de vizinhos, reunidos em torno dos seus próprios churrascos, trocavam saudações próprias da data. O Sol pôs-se, os insectos fizeram a sua aparição e os primeiros rastos de fogo-de-artifício testaram a escuridão. A primeira celebração do Dia da Independência desde os ataques, e os mísseis coloridos explodindo indolentemente pareciam ao mesmo tempo impotentes e desafiadores. Tommy Rupp disparou uma dúzia de “Cabeças Terroristas Explosivas” que comprara numa tenda de beira de estrada perto de Plattsmouth: imagens coloridas de Saddam Hussein e Bin Laden subiram ao céu num sibilo e rebentaram em serpentinas.
Karin observou o irmão sob a luz irradiante. Os olhos giravam na direção do céu, estremeciam a cada explosão e depois sorriam a cada estremecimento. O seu rosto, agora verde, agora azul, agora encarnado, espelhava o mesmo assombro de toda a gente de Farview com esta barragem de luz à qual não se podiam dar ao luxo, mas que também não podiam passar sem. Ela viu-o olhar em redor, tentando captar a atenção dos amigos, procurando confirmação, que nenhum deles poderia conceder. Sob a explosão de um enorme crisântemo, ele virou-se e apanhou-a a olhar fixamente para si. E por um instante, tão fugaz quanto o brilho do fogo, o olhar dele cruzando o dela, o mais débil sinal de afinidade emanou dele: Também te sentes perdida aqui, não sentes?
A vida de Weber começou a mudar de rumo nos finais de Julho.
Quando escutou um chilreio queixoso provindo de uma pilha de roupa sua, achou que fosse um animal. Primeiro os esforços de Sylvie para desalojar a família de guaxinins do sótão, agora uma praga de gafanhotos dentro de casa. Só a regularidade do chilreio o fez recordar-se do telemóvel. Desenterrou-o da toca onde se escondia e colou-o à cara.
- Weber.
- Pai. Estou a telefonar-te para te desejar um dia feliz.
- Olá, Jess. És tu!
A filha, no seu ninho astronómico no Sul da Califórnia, a desejar-lhe um feliz quinquagésimo sexto aniversário. Independentemente da inépcia entre eles, Jessica observava sempre as datas importantes. Regressava a Nova Iorque por três ou quatro dias todos os natais. Enviava-lhes lembranças no Dia da Mãe e do Pai - filmes e música, tentativas vãs de educar os pais na cultura popular. Lembrava-se até do aniversário de casamento dos pais, algo que nenhuma criança com amor-próprio alguma vez faria. E telefonava-lhes sem falta nos dias dos anos, por mais embaraçoso que fosse o telefonema.
- Pareces surpreendido. Sabes que o teu telefone identifica as chamadas no visor, não sabes?
- Para trás, Satanás! Para além disso, como sabes em que telefone estou?
- Pai? Acorda!
- Oh, sim, claro. Já me esquecia. Então, afinal, qual é o motivo do telefonema? - O pé errado, como de costume.
- Achei que talvez apreciasses que a tua filha te desejasse um feliz aniversário.
- Acho que não me habituei ainda a este toque.
- Não usas o telefone? Preferias que não to tivesse comprado?
- Tenho-o usado. Uso-o para telefonar à tua mãe quando ando em viagem.
- Se não gostas dele, pai, podes devolvê-lo.
- Quem disse que não gosto dele?
- Pede à mãe que o devolva por ti. Ela sabe como movimentar-se livremente no mundo da venda a retalho.
- Eu gosto dele. É prático.
- Pronto, está bem. Escuta, vou dizer-te isto já para que não te passes quando acontecer. Estou a pensar comprar-te um leitor de DVD para o Natal.
- Que mal têm as cassetes?
A filha soltou um riso abafado.
- Então, quantos anos são, ao certo?
- Lamento. Parámos de contar. - O mero som da voz um do outro fê-lo recuar até aos trinta e ela até aos 13.
Jess nunca fora uma rapariga de muitas palavras. Preferia números. Porém, gostava do telefone, uma tecnologia incontestavelmente limpa.
Como adolescente, passara pelos obrigatórios telefonemas de longa duração e quase mudos com a sua amiga Gayle, enquanto Jess jogava Tetris e Gayle via televisão por cabo, um intruso ao qual os Weber haviam conseguido esquivar-se. As raparigas escutavam as respirações uma da outra durante horas, pontuadas apenas pelos ocasionais relatos de Jess sobre uma nova pontuação recordista ou as interrogações de Gayle sobre as sinopses dos enredos: “Ele está a beijá-la? Onde? Porquê?” Sylvie fazia rondas a cada meia hora, insistindo: “Comecem a falar ou então desistam e desliguem o telefone.” O comportamento telefónico dela era agora basicamente o mesmo, só o Tetris dera lugar a telescópios. Weber conseguia escutá-la ao computador do outro lado da linha; o furtivo matraquear de teclas. Candidatando-se a bolsas ou fazendo pesquisas em gigantescas bases de dados astronómicas on-line. Ela não disse nada durante alguns segundos. Por fim, ele perguntou:
- Como tem corrido a caça ao planeta?
- Bem - disse ela. - Consegui algum tempo no observatório de Keck em Agosto. Queremos complementar o método da velocidade radial com... Isto não tem grande interesse para ti, pois não?
- É claro que tem. Já encontraste alguma coisa pequena, quente e aquífera?
- Nada. Mas prometo que serás o primeiro a saber assim que descobrir alguma.
- Tens preenchido todos os formulários de promoção necessários?
Ela suspirou.
- Sim, Unidade Parental. - Uma das estrelas em ascensão entre os mais jovens cosmólogos, e ele preocupava-se com a papelada de que ela tinha de tratar.
- E que tal se tem portado a nova bomba de insulina?
- Oh, nem me digas. Foram os melhores dois meses de salário que alguma vez gastei. Alterou por completo a minha vida. Sinto-me uma pessoa nova.
- A sério? Isso é fantástico. Então, impede-te de te ires abaixo?
- Não totalmente. O monstro ainda se apodera de mim de tempos a tempos. Diabinho caprichoso. Apareceu e tomou conta de mim a meio da noite na semana passada. A primeira vez há muito tempo. Apanhámos um susto e tanto, nós as duas.
Diz o nome dela, tentou Weber sugestionar Jess. Mas ela não o fez.
- Então, como está a... Cleo?
- Pai! - Ela soava quase divertida. Ele abençoou os monitores cheios de dados distractivos no outro extremo da linha. - Não te parece estranho que perguntes pelo meu cão antes de perguntares pela minha namorada?
- Bom - retratou-se ele, - como está... a tua namorada? Um silêncio sepulcral na Califórnia.
- Esqueceste-te do nome dela, não foi?
- Não foi propriamente “esquecer”. Digamos que o perdi por um momento. Pergunta-me o que quiseres sobre ela. Brookline, Massachusetts. Holy Cross, Stanford, dissertação sobre a aventura colonial francesa na África subsariana...
- Isso chama-se “bloqueio”, pai. Acontece quando estamos ansiosos ou constrangidos. Nunca conseguiste habituar-te a isto, pois não?
- Habituar-me ao quê? - Tentando, estupidamente, ganhar tempo.
Jessica parou de mexer no computador. Estava a gostar da conversa.
- Tu sabes. Nunca te habituaste ao facto de a tua filha dormir com alguém da área das humanidades.
- Alguns dos meus melhores amigos são humanistas.
- Diz lá o nome de um.
- A tua mãe é uma humanista.
- A minha mãe é a última das santas pagãs. Tens sido uma verdadeira inspiração e um grande apoio para ela, todos estes anos.
- Sabes, Jess. Isto já começa seriamente a preocupar-me. Já não é só com nomes comuns. Sou surpreendido por entradas que desconhecia na minha agenda, feitas com a minha própria letra.
- Paizinho, lembra-te do que disseste num dos teus livros. “Se esqueceu onde colocou as chaves do carro, não se preocupe. Se esqueceu o que são chaves do carro, vá ao médico.”
- Eu disse isso?
Jess riu, o mesmo riso pateta, descontraído e de dentes salientes que tinha aos oito anos de idade. Sentiu o coração apertar-se.
- Para além disso, se vires que piora muito, podes sempre deitar a mão às mais recentes e potentes drogas. Vocês devem ter todo o tipo de químicos sobre os quais ainda nada revelaram ao público, não é? Memória, concentração, velocidade, inteligência: um comprimido para tudo, aposto. Irrita-me sobremaneira que não partilhes estas coisas com quem é sangue do teu sangue.
- Trata-me bem - disse ele a brincar -, nunca se sabe.
- Em relação ao teu livro, a Shawna mostrou-me a crítica da Harper's. - Shawna. Não admirava que ele nunca se lembrasse do nome. - Sabes o que eu te digo? O crítico que vá para o diabo! Está obviamente despeitado, sem margem para dúvida. Se fosse a ti não pensaria duas vezes em relação a isso.
Um instante de desconcertação. Harper's! Tinham saltado a data de publicação. Os seus editores já deviam saber da crítica com alguma antecedência. Ninguém lhe dissera o que quer que fosse.
- É que farei - concordou ele.
- E passa um aniversário muito feliz. Podes fazer isso por mim?
- Claro, fica descansada.
- O que, presumo bem, significa escrever quatro mil palavras e descobrir uma mão-cheia de estados previamente desconhecidos de consciência alterada. Quero dizer, noutras pessoas.
Weber despediu-se, dobrou e embolsou o grilo, depois montou-se na bicicleta e pedalou até Setauket e à Clark Library. Passou os olhos pelos cabeçalhos das revistas informativas: Bombas Americanas Obliteram Casamento Afegão. Reunião de Emergência do Departamento de Segurança. Onde estivera ele enquanto tudo isto acontecia? Manuseando a nova Harper's Magazine na pasta dura de plástico encarnado, sentiu-se vagamente criminoso. Obsceno, ir à procura de uma crítica ao seu trabalho. Era como pesquisar o seu próprio nome no Google. Perscrutando o índice, sentiu-se ridículo. Há anos que escrevia, com um sucesso maior do que alguma vez se atrevera a imaginar. Escrevia pela compreensão da expressão, para localizar, em alguma estranha cadeia, a sua verdade surpresa. A forma como um leitor recebia as histórias que ele escrevia dizia tanto sobre a história do leitor quanto sobre a história em si. Na verdade, os seus livros exploravam esse mesmo facto: não havia uma história em si mesma. Nenhum julgamento final. Qualquer coisa que este crítico pudesse dizer fazia apenas parte da rede distribuída, sinais caindo em cascata pelo frágil ecossistema. Que lhe importava uma crítica severa ou um elogio? Apenas lhe interessava o que a filha pensava. A namorada e companheira da filha.
Shawna. Shawna. Haviam lido esta crítica, mas não tinham ainda visto o livro. Se Jess alguma vez tivesse oportunidade de ler O País da Surpresa - e ele imaginava que ela o fizesse, um dia -, leria, inevitavelmente, o livro que esta crítica criara na sua mente. Era melhor saber que outros livros inundavam agora o mercado, afastar-se do que ele escrevera.
O título da crítica saltava da página com um frémito revoltante: “Neurologista numa Dorna.” O nome do crítico não lhe dizia nada. O artigo começava de forma bastante cortês, mas ao fim de um parágrafo o tom azedava. Começou a perscrutar melhor o seu conteúdo. A tese, no final do segundo parágrafo, era mais condenatória do que Jess dera a entender:
Impelida por tecnologias médicas de visualização e novas técnicas experimentais ao nível molecular, a investigação sobre o cérebro progrediu fenomenalmente nos últimos anos; infelizmente, a abordagem cada vez mais limitada e anedótica de Gerald Weber não seguiu o mesmo rumo. Regressa aqui com as suas habituais e quase caricaturais histórias, ocultando-se por trás de um apelo, inteiramente previsível ainda que irrefutável, à tolerância relativamente aos diversos distúrbios mentais, se bem que as suas histórias toquem as raias da violação da privacidade e da exploração... Ver uma figura tão respeitada tirar proveito de investigação não reconhecida e do sofrimento não sentido roça o embaraçoso.
Weber continuou a ler, desde citações fora do contexto a generalizações grosseiras, desde erros factuais a ataques ad hominem. Como poderia Jess ter sido tão prosaica em relação a isto? O artigo retratava o seu livro como sendo ao mesmo tempo um exemplo de ciência inexacta e de jornalismo irresponsável, o equivalente pseudo-empírico de reality TV, tirando proveito da última moda do sofrimento. Ele negociava em generalidades sem particularidades, factos sem qualquer discernimento, casos sem qualquer sentimento.
Não leu a crítica até ao fim. Segurou a revista aberta à sua frente, uma partitura para ser executada sem ensaio. A sua volta na resplandecente e pouco espaçosa biblioteca estavam quatro ou cinco pensionistas e o mesmo número de estudantes. Nenhum deles olhou para ele.
266
Os olhares começariam amanhã, quando aparecesse na universidade: o olhar indiferente de colegas, a fazer de conta que nada se passava por trás do entusiasmo ocultado.
Pensou pesquisar o crítico, conseguir um retrato robô do assassino. Não fazia sentido. Como Jess dissera: que fosse para o diabo. Qualquer explicação que Weber pudesse elaborar para o ataque seria apenas uma história contra a história dele. Ciúme, conflito ideológico, promoção pessoal: as explicações possíveis eram intermináveis. No campo da crítica a figuras públicas, marcava-se um ponto por estimar uma figura já apreciada. Com um alvo da grandeza de Gerald Weber, só se ganhavam pontos por tiros certeiros e fatais.
Mesmo enquanto ensaiava estas racionalizações, elas repugnavam-no. Não havia nada da crítica que ultrapassasse os limites. O seu livro era um alvo legítimo. Um outro escritor público achara-o exploratório: uma opinião válida. Ele próprio muitas vezes se interrogara acerca dessa possibilidade. Weber olhou pela enorme janela para as duas igrejas de arquitectura colonial, a sua beleza severa e credível. Ler o pior deixou-o quase aliviado. A má imprensa não existe, escutou Bob Cavanaugh sussurrar.
O livro era o que era; mais nenhuma avaliação alteraria o seu conteúdo. Uma dezena de pessoas em mundos estilhaçados a tentarem recompor-se - o que havia num tal projeto que merecesse o ataque do público? Se ele não tivesse sido o autor do livro, a Harper's nem sequer teria publicado uma recensão crítica sobre ele. A crítica denunciava-se a si mesma: o seu objetivo não era destruir o livro. O alvo era ele. Qualquer pessoa que lesse a crítica se aperceberia disso. E no entanto, se Weber aprendera alguma coisa sobre a espécie humana, após uma vida inteira de estudo, essa coisa era que as pessoas se juntavam em bandos. O núcleo da intelligentsia, os dedos indicadores molhados no ar, determinavam já a mudança nos ventos dominantes. A ciência da consciência precisava agora de proteção da abordagem exploratória, anedótica e limitada de Gerald Weber. E estranhamente, ao mesmo tempo que voltava a colocar a edição encadernada a plástico de volta na prateleira, sentiu-se justificado. Algo dentro de si estivera meio à espera deste momento, logo desde que começara a tornar-se famoso.
Passou pelo balcão de acolhimento, virou à esquerda depois de passadas as portas de entrada e seguiu o familiar caminho de pedra durante cerca de cem passos pela encosta abaixo.
Permaneceu na extremidade do caminho, a intersecção de três avenidas: Bates, Main e Dyke. Telefonaria a Cavanaugh, pelo telemóvel no seu bolso, mesmo estando em casa, no domingo, para lhe perguntar com que desplante escondera este ataque de si. Tirou o aparelho prateado do bolso. Parecia um detonador remoto de um filme policial.
Estava a exagerar. O primeiro sinal de objecção fundamentada e ele queria logo dar a volta às carroças. Gozara do respeito do público durante tanto tempo - 12 anos -, que o tomara como garantido; já não sabia esperar outra coisa. O livro permaneceria de pé face a quaisquer acusações. Ainda assim, fez as contas. Por cada vinte pessoas que lessem a crítica, uma, com sorte, talvez lesse o livro, ao passo que as outras o descreveriam aos amigos em termos menosprezantes, sem o inconveniente de terem de olhar para o seu interior.
Colocou o telefone no bolso, deu meia volta e voltou a subir o caminho na direção do parque das bicicletas. Contaria a Sylvie, quando chegasse a casa. Ela mostrar-se-ia impassível, ligeiramente divertida. Sorriria e perguntar-lhe-ia: O que faria o Famoso Gerald nesta situação?
O percurso de bicicleta de volta até Strong's Neck era sempre a descer. A maré estava baixa e o ar de Julho deixava-lhe um travo salobro nos pulmões. Quisera regressar à ciência pura, longe do mundo confuso e massificado da popularização da ciência. Aqui estava mais um motivo. A curva apertada à esquerda de Dyke Road desembocava paralela ao juncal do estuário. A gravidade lançou-o ao longo do regato onde a rede de espiões de Setauket de George Washington pendurara as suas lanternas à noite, fazendo sinais através do estreito até ao Connecticut, numa altura em que os terroristas eram os heróis. A bicicleta acelerou perigosamente pelo molhe abaixo. Em que mundo é que o livro que ele escrevera podia ser tão malévolo quanto o livro sobre o qual acabara de ler?
Olhou para trás por cima do ombro direito. O porto de Setauket brilhava, resplandecente sob o sol do meio-dia. Ao longo da enseada azul-esverdeada, as asas estendidas de pequenos veleiros que deslizavam pela água. Em dias como este, qualquer coisa podia acontecer. O ferry de Bridgeport-Port Jefferson apitava à distância, uma enorme espécie migratória na viagem de regresso ao porto. Weber adorava a sua vida aqui. Um dia de anos feliz. Conseguia ainda pelo menos isso.
O Diretor de Viagem levou-os até Itália. Na Ponte Vecchio, Weber perscrutou as lojas que haviam ladeado a ponte durante séculos. Uma breve história do capitalismo: talhos que davam lugar a ferreiros e curtidores, que davam lugar a ourives, que davam lugar a lojas de joalharia de coral e gravatas que custavam várias semanas de salário. No meio de um grupo de pessoas que conversavam numa imensa variedade de línguas, observou Sylvie, estonteada com os novos euros e o sol florentino, o nariz pregado a uma montra cheia de relógios Nardin, apenas por brincadeira. Só a fazer de conta, feliz por estar longe, algures num local completamente imaginário.
Tinham visitado a Catedral de Florença no dia anterior e Weber não conseguia já formar uma imagem detalhada do interior da igreja na sua cabeça. Nessa manhã, ela escolhera o programa para a noite, uma récita de Il ritorno d'Ulisse in pátria, de Monteverdi.
- A sério? - perguntara-lhe ele.
- Estás a brincar? Eu adoro a ópera do Renascimento. Tu bem sabes.
Weber não lhe perguntou há quanto tempo ela era apreciadora. Não podia dar-se ao luxo de saber a resposta. Observava-a agora, na multidão flutuante. Quando a luz incidia da forma certa, a alguma distância, ela poderia passar por uma turista japonesa. Umas férias neste país, o local preferido dela na Terra, tiravam-lhe décadas de cima. Tinha o mesmo ar de antes do casamento, a rapariga para a qual, há um milhão de anos, ele cantara um exótico hino de Schubert, letra da responsabilidade daquele poetastro Willie the Shake, acompanhado dos amigos e pelo telefone, como surpresa do Dia dos Namorados:
Quem é Sílvia? Quem é ela, Que os jovens todos cativa? É sábia, divina, bela; Entre os deuses, vera diva, De compostura singela.
A jovem Sylvie, depois de parar de rir da atuação, repreendeu-os por terem cantado sem ela. “Ei! Comecem outra vez. Dêem-me uma parte.”
Ainda ela, ainda a sua companheira de viagem, apesar dos anos. Porém, o modo como haviam passado daquele ano para este, Weber não sabia dizer. Era ainda capaz de nomear a maioria das cidades onde...
O melhor da literatura para todos os gostos e idades