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Novembro de 2003; St. Andrews, Escócia
Ele sempre gostou do cemitério ao amanhecer. Não que a aurora oferecesse alguma promessa de recomeço, e sim porque era cedo demais para haver alguém por perto. Mesmo no período mais rigoroso do inverno, quando a pálida luz da manhã demorava mais para aparecer, ele podia garantir ali a sua solidão. Não havia olhares intrometidos tentando descobrir quem ele era e por que estava lá, de cabeça baixa, diante daquela sepultura específica. Não havia intrometidos questionando o seu direito de estar lá.
A jornada até ali fora longa e problemática. Mas ele era bom em levantar informações. Obsessivo, diriam alguns. Ele preferia ser chamado de persistente. Aprendera a pesquisar fontes oficiais e não oficiais e, finalmente, após meses de busca, encontrou as respostas que estava procurando. Ainda que insatisfatórias, elas ao menos lhe forneceram um ponto de partida. Para algumas pessoas, uma sepultura representa o fim. Não para ele. Para ele, era uma espécie de começo.
Sempre soubera que a sepultura não bastaria por si só. Então ele esperou, aguardando um sinal que lhe mostrasse um caminho a seguir. E o sinal finalmente apareceu. À medida que o céu mudava de cor com a aurora, tirou do bolso e desdobrou um recorte que havia extraído do jornal local.
POLÍCIA DE FIFE REABRE CASOS NÃO RESOLVIDOS
Assassinatos não solucionados em Fife, de até trinta anos atrás, serão reexaminados em uma revisão completa de casos não resolvidos, anunciou a polícia local esta semana.
O chefe de polícia, Sam Haig, afirmou que novas descobertas forenses permitem que casos que foram arquivados há anos sejam reabertos, com alguma chance de serem resolvidos com sucesso. Provas antigas, guardadas nos arquivos da polícia durante décadas, serão submetidas a métodos como análise de DNA, na esperança de novos progressos.
James Lawson, subchefe de polícia, assumirá a revisão dos casos. Ele explicou ao Courier que "casos de assassinato nunca são encerrados. Devemos às vítimas e às suas famílias o prosseguimento das investigações. Em alguns casos, tivemos fortes suspeitos na época, embora não dispuséssemos de provas suficientes para ligá-los aos crimes. Mas, com as técnicas forenses modernas, um único fio de cabelo, uma mancha de sangue ou um vestígio de sêmen podem nos fornecer tudo o que precisamos para obter uma condenação. Tivemos vários exemplos recentes na Inglaterra de casos que foram levados a julgamento, com sucesso, após vinte anos ou mais. Uma equipe de detetives veteranos fará destes casos a sua prioridade número um".
Lawson não quis revelar quais casos específicos estarão no topo da lista para os seus detetives.
Mas o trágico assassinato da adolescente Rosie Duff sem dúvida estará entre eles.
A moça de Strathkinness, de 19 anos, foi estuprada, esfaqueada e abandonada à morte em Hallow Hill, há quase 25 anos. Ninguém foi preso pelo seu brutal assassinato.
O seu irmão Brian, de 46 anos, que ainda mora na propriedade da família, Caberfeidh Cottage, e trabalha em uma fábrica de papel em Guardbridge, declarou ontem à noite: "Nunca perdemos a esperança de que o assassino de Rosie um dia fosse a julgamento. Havia suspeitos na época, mas a polícia nunca conseguiu encontrar provas suficientes para incriminá-los. Infelizmente, os meus pais morreram sem saber quem cometeu aquela atrocidade com Rosie. Mas talvez agora possamos encontrar a resposta que eles mereciam ter obtido em vida."
Podia recitar o artigo de cor, mas gostava de contemplá-lo. Era como um talismã, lembrando que a sua vida não era mais sem sentido. Durante muito tempo quisera pôr a culpa em alguém. Não ousara sequer desejar vingança. Mas agora, finalmente, era a hora de se vingar.
Parte Um
1
1978; St. Andrews, Escócia
Quatro da manhã, na época mais fria de dezembro. Quatro silhuetas imprecisas vacilavam no vai e vem da nevasca que pairava no ar, à mercê do vento nordeste, que vinha dos Urais e castigava o mar do Norte. Os oito pés cambaleantes daqueles que se autodenominavam os "Garotos de Kirkcaldy" trilhavam o caminho familiar do atalho de Hallow Hill até o Fife Park, a mais moderna das residências estudantis da Universidade de St. Andrews. Lá, as suas camas perpetuamente desfeitas os esperavam em um bocejo, lençóis e cobertores arrastando-se pelo chão, como uma língua pendurada para fora da boca.
A conversa dos rapazes repetia um tema tão habitual quanto o percurso que faziam.
- Eu estou te dizendo, Bowie é o maior - anunciava Sigmund Malkiewicz em voz alta, embaralhando as palavras, o seu rosto, normalmente impassível, desanuviado pela bebida. Um pouco atrás dele, Alex Gilbey puxava o capuz do seu agasalho para mais perto do rosto e sufocava o riso, antecipando silenciosamente a resposta que estava prestes a ouvir.
- Bobagem - retrucou Davey Kerr. - Bowie não passa de um maricas. O Pink Floyd dá de dez a zero em David Bowie. Dark Side of the Moon, isso sim é um clássico. Bowie não fez nada à altura até hoje. - Sob o peso da neve derretida, longos cachos negros caíam sobre o seu rosto delicado e ele os empurrava para trás, impaciente.
E lá iam eles. Como magos conjurando magias de combate um contra o outro, Sigmund e Davey lançavam títulos de música, letras e riffs de guitarra em um duelo que já durava uns seis ou sete anos. Pouco importava se, naquela época, era mais provável que as músicas que chacoalhavam as janelas dos seus aposentos fossem as do Clash, do Jam ou do Skids. Até mesmo os seus apelidos homenageavam as suas antigas paixões. Desde a primeira tarde em que se reuniram no quarto de Alex após as aulas para ouvir a sua nova aquisição, Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, foi inevitável que o carismático Sigmund passasse a ser Ziggy, o messias leproso, para toda a eternidade. E os outros teriam de se contentar em ser as suas Aranhas. Alex passara a ser Gilly, apesar dos seus protestos de que aquele era um apelido afeminado demais para alguém que aspirava à compleição robusta de um jogador de rúgbi. Mas era inútil discutir com o acaso do seu sobrenome. E nenhum deles teve a menor dúvida quanto a batizar o quarto membro do quarteto de Esquisito. Porque Tom Mackie era esquisito, com toda certeza. Era o mais alto dos alunos que cursavam o mesmo ano que ele e os seus membros espichados e desengonçados pareciam o resultado de uma mutação, desenvolvida para combinar com uma personalidade que gostava de ser perversa.
Sobrara apenas Davey, fiel à causa do Pink Floyd, que recusava firmemente qualquer apelido oriundo do cânone de Bowie. Durante um tempo, foi conhecido sem nenhum entusiasmo como Rosado, mas desde que os quatro ouviram pela primeira vez a música "Shine On, You Crazy Diamond", a discussão foi encerrada; Davey era um diamante louco, sem a menor sombra de dúvida, lançando fogo em direções imprevisíveis, impaciente e pouco à vontade fora do seu habitat. Diamond logo virou Mondo, e Mondo ele continuou sendo no último ano da escola e durante todo o curso universitário.
Alex balançou a cabeça, pasmo. Mesmo bêbado, ele se admirava com a cola que mantivera os quatro grudados durante todos aqueles anos. O mero pensamento provocava um bem-estar que o protegia do frio glacial, quando tropeçou em uma raiz proeminente, escondida debaixo de uma macia camada de neve. "Droga", resmungou ele, colidindo com Esquisito, que lhe deu um empurrão camarada, deixando-o estatelado no chão. Lutando para manter o equilíbrio, Alex deixou que o seu impulso o carregasse adiante e acabou dando um passo em falso e caindo declive abaixo, subitamente eufórico com a sensação da neve contra o seu rosto afogueado. Quando tentava subir de volta, sofreu uma queda tão inesperada que o chão sumiu debaixo dos seus pés. Caiu de pernas para o ar.
A sua queda foi amparada por algo macio. Alex se esforçava para se erguer, empurrando aquilo que o amparara. Cuspindo neve, esfregou os olhos com os dedos entorpecidos pelo frio, forçando o ar pelas narinas na tentativa de expelir o líquido gelado. Assim que olhou em volta para ver sobre o que havia aterrissado, os seus três companheiros surgiram na encosta para tripudiar da sua cômica desgraça.
Mesmo na lúgubre e indistinta claridade da neve, ele pôde ver que o que o amparara estava longe de ser do reino vegetal. A silhueta era, inconfundivelmente, a de um corpo humano. Os pesados flocos de neve começavam a derreter assim que aterrissavam no chão, permitindo que Alex percebesse uma figura de mulher, os cachos molhados do seu cabelo negro espalhados sobre a neve, como os de uma Medusa. A sua saia estava suspensa até a cintura e as botas negras que cobriam até os joelhos pareciam ainda mais destoantes em contraste com as suas pernas lívidas. Estranhas manchas escuras maculavam a pele da moça e a blusa que estava colada no seu peito. Alex contemplou a cena sem a compreender por um bom tempo, até olhar para as suas próprias mãos e ver as mesmas manchas escuras contaminando a sua pele.
Sangue. Aquela constatação lhe ocorreu no exato momento em que a neve que bloqueava os seus ouvidos derreteu e ele pôde ouvir a respiração ofegante da moça, fraca mas ruidosa.
- Meu Deus do Céu - gaguejou Alex, tentando afastar-se do horror com o qual havia se deparado. Mas, à medida que recuava, ia batendo no que pareciam ser pequenos muros de pedra. - Meu Deus. - Olhou para cima, desesperado, como se a mera visão dos seus companheiros pudesse quebrar aquele feitiço e fazer com que tudo desaparecesse. Voltou a olhar para aquela visão de pesadelo sobre a neve. Não era uma alucinação etílica: era real. Olhou novamente para os seus amigos. - Tem uma garota aqui embaixo - gritou ele.
A voz de Mackie Esquisito ecoou, sinistra:
- Que desgraçado sortudo.
- Para com isso, ela está sangrando.
A risada de Esquisito cortou a noite.
- Não tão sortudo assim afinal, né, Gilly?
Alex sentiu a raiva crescendo dentro dele.
- Não estou brincando, porra. Venham aqui. Ziggy, vem logo, cara.
Só então eles puderam ouvir a urgência na voz de Alex. Ziggy tomou a dianteira, como sempre, e eles o seguiram, caminhando com dificuldade pela neve até o topo da colina. Ziggy alcançou o declive correndo aos saltos, Esquisito mergulhou de cabeça na direção de Alex e Mondo veio por último, colocando um pé na frente do outro, cuidadosamente.
Esquisito acabou caindo de pernas para o ar, em cima de Alex, e os dois rolaram para cima do corpo da mulher. Debateram-se, tentando se desvencilhar um do outro, enquanto Esquisito ria como um doido.
- Ei, Gilly, isso deve ser o mais perto que você já chegou de uma mulher.
- Você fumou demais, cara - disse Ziggy, irritado, empurrando Esquisito para longe e agachando-se ao lado da mulher, buscando batimentos cardíacos no seu pescoço. Podia ouvi-los, mas eles estavam assustadoramente fracos. O medo o deixou sóbrio na mesma hora em que pôde distinguir, mesmo naquela luminosidade precária, o que tinha diante de si. Era apenas um estudante de medicina do último ano, mas sabia reconhecer um ferimento fatal.
Esquisito ficou de cócoras e franziu as sobrancelhas.
- Cara, sabe o que é isso aqui?
Ninguém estava prestando atenção, mas ele continuou assim mesmo:
- É o cemitério picto.[1] Tá vendo esses montinhos na neve, tipo uns muros pequenos? São as pedras que eles usavam como caixões. Cacete, Alex encontrou um cadáver em um cemitério. - E ele começou a rir novamente, produzindo um som estranho no ar abafado pela neve.
- Cala a porra da boca, Esquisito. - Ziggy continuava a deslizar as mãos sobre o peito da mulher, sentindo, sob os seus dedos perscrutadores, o resultado desalentador de uma ferida profunda. Jogou a cabeça para o lado, tentando examiná-la melhor. - Mondo, você está com o seu isqueiro aí?
Mondo avançou, relutante, e apanhou o seu Zippo. Acendeu o isqueiro e estendeu a luz fraca sobre o corpo da mulher, até o seu rosto. Com a mão livre cobriu a boca, tentando sem sucesso sufocar um gemido. Os seus olhos azuis se arregalaram, horrorizados, e a chama do isqueiro tremelicou em sua mão.
Ziggy respirou fundo. Os ângulos do seu rosto pareciam fantasmagóricos naquela luz trêmula.
- Merda - disse ele, ofegante. - É a Rosie, do Pub Lammas.
Alex não imaginava que fosse possível se sentir ainda pior. Mas as palavras de Ziggy foram como um soco no seu coração. Com um gemido sussurrante, ele virou de costas e vomitou na neve uma mistura de cerveja, batata chips e pão de alho.
- Nós temos que buscar ajuda - declarou Ziggy, com firmeza. - Ela ainda está viva, mas, no estado em que está, não vai continuar assim por muito tempo. Esquisito, Mondo, me deem os seus casacos. - Enquanto falava, Ziggy tirava a sua jaqueta de lã de carneiro e a colocava gentilmente em volta dos ombros de Rosie. - Gilly, você é o mais rápido. Vai buscar ajuda. Procura um telefone. Tira alguém da cama, se for preciso. Mas traz alguém aqui, ouviu? Alex?
Atordoado, Alex fez força para ficar de pé. Desceu o declive aos trancos e barrancos, sacudindo a neve abaixo dos pés, lutando para encontrar um apoio. Saiu do emaranhado das árvores e deparou-se com os postes que distinguiam o mais recente beco sem saída do alojamento novo, construído uns seis anos antes. Refazer o caminho por onde tinham vindo era o itinerário mais rápido.
Alex cobriu a cabeça e saiu em disparada, em uma corrida escorregadia até o meio da rua, tentando esquecer o que tinha visto. O que era tão impossível quanto manter o passo firme naquela neve fresca. Como aquela visão atroz entre as sepulturas pictas podia ser Rosie, do Pub Lammas? Naquela noite mesmo estiveram lá bebendo, animados e barulhentos sob o cálido brilho amarelado do bar, enchendo a cara de cerveja e aproveitando ao máximo a folga da universidade, antes que tivessem de retornar à repressão sufocante dos Natais em família, a quilômetros dali.
Ele próprio estivera conversando com Rosie, flertando com ela, daquela maneira desajeitada típica dos rapazes de vinte e um anos, incertos se ainda são garotos bobos ou homens maduros e experientes. Quis saber, não pela primeira vez, a que horas ela saía do pub. Chegou até a comentar sobre a festa para onde iam depois. Rabiscou o endereço atrás de um descanso de copo e o empurrou até ela pela mesa úmida de madeira do bar. Ela lhe deu um sorriso compassivo e apanhou o descanso de copo. Deve ter ido direto para o lixo, suspeitou Alex. O que uma mulher como Rosie iria querer com um garoto imaturo como ele, afinal? Com a sua beleza e aparência, ela podia escolher quem bem entendesse, alguém que pudesse lhe proporcionar alguma diversão, e não um estudante sem dinheiro, tentando fazer com que o pouco que tinha no bolso durasse até o seu emprego de férias, como arrumador de prateleiras no supermercado.
Então como aquela podia ser Rosie, estirada sobre a neve em Hallow Hill, banhada em sangue? Ziggy deve ter visto errado, insistia Alex para si mesmo enquanto pegava a esquerda, em direção à rua principal. Qualquer um podia se confundir sob a luz trêmula do isqueiro de Mondo. E Ziggy sequer prestara atenção na moça de cabelos negros do bar. Deixara isso para Alex e para Mondo. Devia ser alguma pobre mulher parecida com Rosie. Era isso, ele se convencia. Um engano, tudo não passava de um engano.
Alex hesitou por um momento, recuperando o fôlego e se perguntando para onde correr. Havia diversas casas nas redondezas, mas em nenhuma delas ele via alguma luz acesa. Mesmo que conseguisse acordar alguém, duvidava que fossem estar dispostos a abrir a porta para um jovem suado e cheirando a bebida no meio de uma tempestade de neve.
Foi então que ele se lembrou. Naquela hora da noite, havia sempre um carro de polícia estacionado perto da entrada principal do Jardim Botânico, a uns quinhentos metros de distância. Eles costumavam vê-los com frequência, quando voltavam cambaleantes pela madrugada, cientes do olhar enviesado do único ocupante do carro, tentando parecer sóbrios por causa dele. Era uma visão que sempre provocava um dos discursos do Esquisito sobre como a polícia era corrupta e preguiçosa. "Deviam era estar caçando os bandidos de verdade, prendendo os sujeitos de terno e gravata que roubam o nosso dinheiro, e não sentados aí, a noite inteira, com um cantil de chá e um saquinho de biscoito, torcendo para pôr as mãos em um bêbado mijando em uma cerca ou em algum idiota dirigindo em alta velocidade de volta para casa. Babacas preguiçosos." Bom, talvez hoje o desejo de Esquisito fosse realizado, em parte. Porque naquela noite o babaca preguiçoso dentro do carro iria receber mais do que merecia.
Alex virou-se na direção do Canongate e começou a correr novamente, a neve fresca estalando sobre as suas botas. Desejou ter dado continuidade aos seus treinos de rúgbi, quando uma pontada de dor tomou conta do seu flanco, transformando o seu ritmo em uma corrida torta e desengonçada, enquanto ele lutava para encher os pulmões de ar. Só mais uns dez metros, dizia para si mesmo. Não podia parar agora, quando a vida de Rosie talvez estivesse dependendo da sua velocidade. Olhou adiante, mas a neve estava caindo ainda mais pesada e ele mal podia enxergar o que tinha diante de si.
Estava perto do carro da polícia quando percebeu. Mesmo quando o alívio inundou o seu corpo suado, a apreensão apertou o seu peito. Sóbrio pelo choque e pelo esforço, Alex constatou que ele não se parecia em nada com o cidadão respeitável que normalmente denuncia um crime. Estava desgrenhado, suado, manchado de sangue e tremendo feito vara verde. De algum modo, tinha de convencer o policial, que já estava com metade do corpo para fora da patrulha, que ele não estava nem imaginando coisas, nem pregando uma peça. Estacou a alguns passos do carro, tentando não parecer uma ameaça, esperando que o motorista aparecesse.
O policial endireitou o quepe sobre o cabelo negro, bem curto. Inclinou a cabeça para um lado e examinou Alex, desconfiado. Mesmo camuflada pelo pesado casaco do uniforme, Alex podia ver a tensão no seu corpo.
- O que está acontecendo, filho? - perguntou ele. Apesar da abordagem paternal, o policial não parecia ser muito mais velho do que o próprio Alex, e possuía um ar de desconforto que não combinava nem um pouco com o seu uniforme.
Alex tentou controlar a respiração, mas não conseguiu.
- Tem uma moça lá em Hallow Hill - ele deixou escapar. - Ela foi atacada, está sangrando muito, precisa de ajuda.
O policial apertou os olhos diante da neve, franzindo a testa.
- Foi atacada? Como é que você sabe?
- Ela está ensopada em sangue. E... - Alex fez uma pausa para organizar as palavras. - Não está vestida de acordo com o clima. Está sem casaco. Escuta, será que você pode arrumar uma ambulância, um médico, qualquer coisa? Ela está muito ferida, cara.
- E você simplesmente topou com ela, no meio de uma nevasca, hein? Você andou bebendo, filho? - As palavras eram condescendentes, mas a voz o traía, deixando transparecer a sua ansiedade.
Alex sabia que aquele não era o tipo de coisa que acontecia com frequência no meio da noite, na pacata e suburbana St. Andrews. De algum jeito, precisava convencer o policial de que estava falando sério.
- É claro que eu estava bebendo - respondeu Alex, extravasando a sua frustração. - Por que eu estaria na rua numa hora dessas? Veja bem, eu e os meus amigos estávamos pegando um atalho, voltando para o nosso alojamento. Estávamos de bobeira e aí eu subi até o topo da colina, escorreguei e caí justo em cima dela. - Ele aumentou a voz, suplicante. - Por favor. Você precisa me ajudar. Ela pode morrer lá.
O policial estudou Alex pelo que pareceu uma eternidade. Então, debruçou no carro e desandou a falar pelo rádio. Enfiou a cabeça para fora da porta.
- Entre aí. Vamos até Trinity Place. É bom você não estar brincando - ele ameaçou, carrancudo.
O carro seguiu deslizando pela rua; os pneus não era adequados para a neve. Os poucos carros que passaram por ali mais cedo deixaram marcas que agora não passavam de leves depressões na branca superfície fofa da neve, testemunhas do peso dos seus flocos. O policial xingava baixinho, evitando derrapar nos postes a cada curva. Quando chegaram em Trinity Place, virou-se para Alex:
- Vamos lá, mostre-me onde está a moça.
Alex saiu em disparada, seguindo as suas pegadas que desapareciam rapidamente na neve. Ficava olhando para trás toda hora, para verificar se o policial estava atrás dele. Quase caiu de cabeça em um certo momento, os olhos demorando um pouco para se ajustarem à escuridão tremenda, onde as luzes da rua eram encobertas pelos troncos das árvores. A neve parecia lançar a sua própria luz sinistra sobre a paisagem, exagerando o tamanho dos arbustos e estreitando a trilha por onde eles avançavam.
- É por aqui - instruiu Alex, desviando para a esquerda. Uma rápida olhadela sobre os ombros confirmou que a sua companhia estava bem atrás dele.
O policial hesitou:
- Você não está mesmo drogado, filho? - perguntou, desconfiado.
- Vamos logo! - gritou Alex, com urgência, assim que viu as sombras negras acima dele. Sem esperar para ver se o policial continuava no seu encalço, Alex correu ladeira acima. Estava quase chegando quando o jovem policial o alcançou, passando na sua frente e parando a alguns passos do pequeno grupo.
Ziggy ainda estava agachado ao lado do corpo da mulher, a camisa grudada no seu tronco esguio em uma mistura de neve e suor. Esquisito e Mondo estavam ao seu lado, os braços cruzados sobre o peito, as mãos enfiadas nas axilas e as cabeças abaixadas entre os ombros levantados. Estavam apenas tentando se esquentar, na falta de um casaco, mas passavam uma infeliz imagem de arrogância.
- O que está acontecendo aqui, rapazes? - perguntou o policial. A sua voz era uma tentativa agressiva de impor autoridade, apesar de estar em desvantagem diante do grupo.
Ziggy levantou-se com dificuldade e afastou o cabelo encharcado dos olhos.
- Tarde demais. Ela está morta.
2
Nada em seus vinte e um anos de vida havia preparado Alex para um interrogatório policial no meio da noite. Os seriados de tevê e os filmes policiais sempre dão a impressão de que tudo é organizado. Mas a própria bagunça do processo era, de algum modo, ainda mais angustiante do que o rigor militar. Os quatro rapazes chegaram à delegacia em uma agitação caótica. Haviam sido escoltados às pressas do local do crime, banhados pelo pisca-pisca azulado das luzes das patrulhas e ambulâncias, e ninguém parecia saber direito o que fazer com eles.
Ficaram parados sob um poste pelo que pareceu uma eternidade, tiritando de frio, expostos ao olhar de reprovação do policial que Alex havia trazido e do seu colega, um homem grisalho de uniforme, corcunda e carrancudo. Nenhum dos dois lhes dirigiu a palavra, embora não tivessem desviado o olhar dos quatro nem por um segundo.
Finalmente, um homem com uma aparência cansada, encolhido dentro de um sobretudo que parecia uns dois números maior do que ele, deslizou até eles. Os seus sapatos tinham um solado muito fino, impróprio para o terreno.
- Lawson, Mackenzie, levem esses rapazes para a delegacia e não deixem que fiquem juntos quando chegarem lá. Daqui a pouco vamos falar com eles. - O homem se virou e pisou em falso, a caminho da terrível descoberta. Ela agora estava protegida por biombos de lona, através dos quais uma sinistra luz esverdeada se espalhava, manchando a neve.
O policial mais jovem olhou para o colega, preocupado.
- Como é que vamos levá-los para lá?
O homem deu de ombros.
- Sei lá, acho que você vai ter que espremê-los no seu carro. Eu vim com o camburão.
- Será que não dá para levar no camburão? Aí você fica vigiando enquanto eu dirijo.
O homem balançou a cabeça, prendendo os lábios.
- Você é quem sabe, Lawson. - Fez um gesto para os Garotos de Kirkcaldy. - Vocês aí, vamos. Pra dentro do camburão. E sem bagunça, entenderam? - Ele os conduziu até o carro, gritando para Lawson, por cima do ombro: - Pega as chaves com Tam Watt.
Lawson saiu em direção ao declive, deixando os rapazes com Mackenzie.
- Eu é que não queria estar na pele de vocês quando o pessoal do DIC[2] descer daquela colina - disse ele, puxando conversa despretensiosamente, enquanto andava logo atrás deles. Alex tremeu, mas não de frio. Estava começando a perceber que a polícia estava tomando ele e os seus amigos como potenciais suspeitos, e não como testemunhas. Eles ainda não tinham tido nenhuma oportunidade para trocar ideias sobre o assunto, para combinar o que iriam dizer. Trocaram olhares apreensivos. Até Esquisito já havia se aprumado e percebido que aquilo não era uma brincadeira boba.
Na hora em que Mackenzie os apressou para dentro do camburão, ficaram sozinhos por alguns segundos. Ziggy pôde então sussurrar, alto o bastante para que os outros três pudessem ouvir: "Nenhuma palavra sobre a Land Rover." Eles compreenderam imediatamente.
- Putz - suspirou Esquisito, jogando a cabeça para trás, apavorado com a lembrança. Mondo roía a pele em volta da unha do polegar, mudo. Alex apenas concordou com a cabeça.
A delegacia não parecia um ambiente mais tranquilo do que a cena do crime. O policial de plantão reclamou amargamente quando os dois policiais apareceram com quatro elementos que não deveriam se comunicar entre si. Não havia salas de interrogatório suficientes para mantê-los separados. Esquisito e Mondo tiveram de esperar em celas destrancadas, enquanto Alex e Ziggy foram deixados sozinhos nas duas únicas salas de interrogatório da delegacia.
O cômodo onde Alex fora colocado era pequeno, claustrofóbico. Era um quadrado onde não era possível dar mais do que três passos, conforme ele concluiu em poucos minutos, após ter sido trancado lá dentro para ficar esperando. Não havia janelas e o teto baixo, revestido com azulejos pardacentos de poliestireno, o tornava ainda mais opressivo. Os móveis se resumiam a uma mesa lascada de madeira e quatro cadeiras sortidas, tão desconfortáveis quanto aparentavam ser. Alex tentou todas elas, uma por uma, optando finalmente pela que menos maltratava as suas coxas.
Perguntava-se se podia fumar. A julgar pelo cheiro no ar abafado, ele não seria o primeiro. Mas era um rapaz educado e a ausência de um cinzeiro fez com que hesitasse. Revirou os bolsos e encontrou um papel amassado de bala de hortelã. Desdobrou o papel com cuidado, dobrando as pontas para formar um cinzeiro improvisado. Então, apanhou o maço e conferiu. Ainda tinha nove cigarros. "Vai dar", calculou ele.
Alex acendeu o cigarro e parou para pensar sobre a sua situação pela primeira vez desde que chegara à delegacia. Era óbvio, agora que pensava a respeito. Eles haviam encontrado o corpo. Tinham de ser suspeitos. Todo mundo sabe que os principais candidatos a serem detidos em uma investigação de homicídio são as últimas pessoas que estiveram com a vítima enquanto ela ainda estava viva ou aqueles que encontram o corpo. E eles se enquadravam duplamente.
Sacudiu a cabeça. O corpo. Estava começando a pensar como eles. Não era apenas um corpo, era Rosie. Alguém que ele conhecia, ainda que superficialmente. Imaginou que isso tornava tudo ainda mais suspeito. Mas não queria pensar nisso agora. Queria expulsar o horror da sua mente. Sempre que fechava os olhos, revia a colina em flashback, como em um filme. A bela e sexy Rosie, machucada e sangrando na neve. "Pense em outra coisa", disse ele em voz alta.
Imaginava como os outros reagiriam ao interrogatório. Esquisito estava fora de si, não havia a menor dúvida. Tomara mais do que alguns drinques naquela noite. Alex o vira com um baseado na mão mais cedo mas, em se tratando de Esquisito, era impossível saber o que mais ele havia consumido. Alex tinha visto pastilhas de ácido circulando, ele próprio as recusara algumas vezes. Não fazia nenhuma objeção às drogas, mas preferia não fritar o cérebro. Mas Esquisito estava definitivamente disposto a experimentar qualquer coisa que prometesse expandir a sua consciência. Alex esperava fervorosamente que fosse lá o que ele tivesse engolido, inalado ou cheirado, já tivesse perdido o efeito até a hora em que fosse interrogado. Caso contrário, era possível que ele deixasse os policiais realmente furiosos. E qualquer idiota sabia que isso seria uma péssima ideia em uma investigação de homicídio.
Com Mondo, eram outros quinhentos. Aquilo o deixaria transtornado de uma maneira completamente diferente. Depois que você passava a conhecê-lo melhor, via que a sua sensibilidade acentuada só o metia em encrencas. Ele sempre fora o mais perseguido na escola, chamado de maricas, em parte por causa da sua aparência, e em parte porque nunca revidava. O cabelo cacheado, as feições élficas, os olhos de safira sempre arregalados, em um susto, como um rato acuado. As garotas gostavam, disso ele tinha certeza. Alex uma vez ouvira por acaso duas meninas dando risadinhas, dizendo que Davey Kerr parecia com o vocalista do T. Rex. Mas em uma escola como Kirkcaldy High, o que rendia pontos com as meninas podia, na mesma medida, render uma surra no vestiário. Se Mondo não tivesse tido os outros três para lhe dar cobertura, teria passado por maus bocados. Para o seu mérito, ele sabia disso e recompensava o serviço dos amigos como podia. Alex jamais teria passado em Francês Avançado sem a ajuda dele.
Mas Mondo ficaria por conta própria com a polícia. Não teria ninguém atrás de quem se esconder. Alex podia imaginá-lo naquele momento, de cabeça baixa, lançando o seu típico olhar estranho por baixo das sobrancelhas, mordiscando o dedão ou abrindo e fechando o seu isqueiro Zippo. Os policiais iam ficar frustrados com ele, iam pensar que ele tinha algo a esconder. O que jamais iriam descobrir, nem em um milhão de anos, é que o grande segredo de Mondo era que, noventa e nove por cento das vezes, não havia segredo algum. Não havia nenhum mistério, oculto por um enigma. Apenas um garoto que gostava de Pink Floyd, de peixe regado a vinagre nas refeições, cerveja e sexo. E que, por mais bizarro que isso pudesse ser, falava francês como se tivesse aprendido desde o berço.
Mas naquela noite, é claro, havia um segredo. E se alguém tivesse que estragar tudo, esse alguém era Mondo. Meu Deus, por favor, faça com que ele não mencione a Land Rover, pedia Alex mentalmente. No mínimo, seriam autuados por terem pegado e dirigido o carro sem o consentimento do dono. Na pior das hipóteses, os policiais perceberiam que um, ou todos eles, dispunham do veículo perfeito para transportar o corpo da moça até uma colina sossegada.
Esquisito não contaria nada; tinha mais a perder do que os outros. Fora ele quem aparecera no Lammas, sorrindo de orelha a orelha, balançando o chaveiro de Henry Cavendish no dedo, como alguém que acabou de se dar bem em uma troca de casais.
Alex não diria nada, sabia disso. Guardar segredos era uma das coisas que ele fazia melhor. Se o preço para evitar suspeita era ficar calado, estava certo de que não teriam problemas.
Ziggy também ficaria quieto. Com ele, a segurança vinha sempre em primeiro lugar. Afinal, fora ele quem saíra de fininho da festa para remover a Land Rover, quando percebeu o quanto Esquisito estava descontrolado. Chamou Alex em um canto e disse:
- Peguei as chaves no bolso do Esquisito. Vou tirar a Land Rover daqui, pra ninguém cair em tentação. Ele já andou dando voltas no quarteirão com algumas pessoas, está mais do que na hora de dar um fim nessa história, antes que ele se mate ou mate alguém.
Alex não fazia a menor ideia de quanto tempo ele esteve fora, mas, quando voltou, Ziggy avisou que escondera o carro atrás de uma das unidades industriais de Largo Road.
- A gente pode ir buscar de manhã.
Alex deu um sorriso largo.
- Ou então a gente podia deixar lá. Um pequeno enigma para o nosso amigo Henry quando ele voltar no semestre que vem.
- Melhor não. Assim que ele perceber que o seu precioso carrinho não está estacionado onde ele deixou, é capaz de ir dar queixa na polícia e entregar a gente. E as nossas impressões digitais estão no carro todo.
Ziggy tinha razão, pensou Alex. Os Garotos de Kirkcaldy e os dois ingleses com quem dividiam a casa de seis cômodos no campus não se davam muito bem. Henry jamais acharia graça se soubesse que Esquisito apanhara o carro na sua ausência. Henry não achava graça em quase nada que os seus companheiros de alojamento achavam. Então Ziggy não contaria nada. Disso ele tinha certeza.
Mas Mondo era bem capaz de contar. Alex esperava que a advertência de Ziggy tivesse conseguido penetrar o bastante no casulo de Mondo para que ele pensasse nas consequências. Dizer aos policiais que Esquisito pegara o carro de alguém sem o seu consentimento não ia livrar a sua cara. Só prejudicaria os quatro. Além do mais, ele próprio havia dirigido o carro, para levar uma garota em casa em Guardbridge. Pelo menos uma vez na vida, pense direito, Mondo.
Agora, se alguém precisava de uma cabeça pensante, Ziggy era a pessoa mais indicada. Por trás da aparente sinceridade, o charme natural e a inteligência perspicaz, havia muito mais do que se podia imaginar. Alex e ele eram amigos havia quase dez anos e ele sentia que ainda havia muito para descobrir. Ziggy era do tipo que o surpreendia com um insight, desconcertava-o com uma pergunta e fazia com que você visse algo por um prisma totalmente novo, porque ele havia torcido o mundo como um Cubo Mágico e o visto de formas diferentes. Alex sabia uma ou duas coisas sobre Ziggy que Mondo e Esquisito ainda não sabiam. E isso porque Ziggy quis que ele soubesse, e porque Ziggy tinha certeza de que os seus segredos estariam sempre bem guardados com Alex.
Imaginou como Ziggy agiria com os seus interrogadores. Na certa estaria relaxado, calmo, à vontade. Se havia alguém capaz de convencer os policiais que o envolvimento deles com o corpo em Hallow Hill era completamente inocente, esse alguém era Ziggy.
O detetive-inspetor Barney Maclennan jogou o seu casaco úmido na primeira cadeira que viu no Departamento de Investigação Criminal. Era mais ou menos do tamanho de uma sala de aula de escola primária, maior do que eles costumavam precisar. St. Andrews não estava no topo da lista de zonas perigosas da polícia de Fife e o nível dos seus funcionários refletia isso. Maclennan era o chefe do DIC, à margem da organização, não por falta de ambição e sim porque era um fiel entusiasta daqueles recrutas, o tipo de policial metódico do qual os veteranos preferiam manter distância. Ele costumava reclamar da falta de algo interessante para mantê-lo ocupado, mas isso não significava que fosse receber de bom grado o assassinato de uma jovem na sua circunscrição.
Eles a identificaram de cara. O pub onde Rosie trabalhava era uma parada ocasional para alguns dos guardas, e o policial Jimmy Lawson, o primeiro a chegar ao local, a reconheceu imediatamente. Como a maioria dos homens presentes na cena do crime, ele parecia estar em estado de choque e nauseado. Maclennan não conseguia lembrar da última vez em que haviam tido um assassinato naquelas bandas que não tivesse sido estritamente doméstico; os policiais não haviam visto o suficiente para deixá-los acostumados à visão com a qual se depararam na colina coberta de neve. Para falar a verdade, ele próprio só havia visto duas vítimas de assassinato, mas nada tão lamentável quanto o corpo maltratado de Rosie Duff.
De acordo com o legista, tudo indicava que ela fora estuprada e esfaqueada no abdômen inferior. Um único e violento golpe, abrindo o seu caminho letal até o intestino. E ela deve ter demorado a morrer. Só de pensar nisso, Maclennan já ficava ansioso para pegar o homem responsável por aquilo tudo e encher de porrada. Nessas horas, a lei parecia mais um obstáculo para se alcançar a justiça do que uma ajuda.
Maclennan suspirou e acendeu um cigarro. Sentado à mesa, anotava o pouco de informação que conseguira levantar até o momento. Rosemary Duff. Dezenove anos. Trabalhava no Pub Lammas. Morava em Strathkinness com os pais e os dois irmãos mais velhos. Os irmãos trabalhavam em uma fábrica de papel em Guardbridge, o pai era zelador no Craigtoun Park. Maclennan não queria estar na pele do detetive Iain Shaw e da policial que fora junto com ele até a cidade para dar a notícia à família. Ele próprio teria que conversar com eles mais tarde, sabia disso. Mas por ora estava mais ocupado tentando dar prosseguimento à investigação. E não se podia dizer que tivessem detetives de sobra com experiência para conduzir uma investigação daquele porte. Se eles pretendiam lutar para não serem deixados de fora pelos peixes grandes do quartel-general, Maclennan tinha de mostrar serviço o quanto antes.
Olhou impaciente para o relógio. Precisava de um outro policial presente antes de começar a interrogar os quatro estudantes que diziam ter encontrado o corpo. Tinha pedido ao detetive Allan Burnside que voltasse para a delegacia o mais rápido possível, mas ainda não havia sinal dele. Maclennan suspirou. Estava cercado de incompetentes.
Deslizou os pés para fora dos sapatos úmidos e virou para poder apoiá-los no aquecedor. Deus, aquela era uma noite e tanto para dar início a uma investigação de homicídio. A neve transformara a cena do crime em um pesadelo, mascarando as provas, tornando tudo cem vezes mais difícil. Quem poderia distinguir os vestígios deixados pelo assassino dos deixados pelas testemunhas? Isso supondo, é claro, que não se tratava da mesma pessoa. Esfregando os olhos para tentar manter-se acordado, Maclennan considerava qual estratégia iria adotar nos interrogatórios.
Tendo em vista o que apurara até ali, tudo indicava que ele devia conversar primeiro com o rapaz que havia encontrado o corpo. Fortão, ombros largos, era difícil conseguir ver o seu rosto direito dentro do enorme capuz do casaco. Maclennan inclinou-se para trás para conferir as suas anotações. Alex Gilbey, sim, era esse mesmo. Mas ele estava com uma intuição esquisita a respeito dele. Não que tivesse se mostrado exatamente evasivo; apenas não havia olhado Maclennan com o tipo de sinceridade piedosa que a maioria dos rapazes na sua situação teria demonstrado. E ele certamente aparentava ser forte o bastante para carregar o corpo sem vida de Rosie até a sossegada colina em Hallow Hill. Talvez a coisa fosse mais complicada do que ele supunha. E não seria a primeira vez que um assassino forjava a descoberta do corpo da vítima para justificar a sua presença no local. Estava decidido a deixar o jovem Sr. Gilbey mofando um pouquinho mais.
O plantonista havia lhe dito que a outra sala de interrogatório estava sendo ocupada pelo estudante de medicina com nome polonês. Ele era o tal que afirmara categoricamente que Rosie ainda estava viva quando eles a encontraram. Alegara ter feito tudo o que podia para mantê-la com vida. Ele parecia estar bastante calmo diante das circunstâncias, mais calmo do que Maclennan teria estado. Pensou que poderia começar com ele. Assim que Burnside desse as caras.
A sala de interrogatório que abrigava Ziggy era o dobro da de Alex. De algum modo, Ziggy parecia confortável lá dentro. Estava largado na cadeira, meio encostado na parede, o olhar fixo no meio da sala. Estava tão exausto que poderia ter caído no sono facilmente, mas, cada vez que fechava os olhos, a imagem do corpo de Rosie voltava bem nítida à sua mente. Nenhum estudo teórico de medicina poderia ter preparado Ziggy para a realidade brutal de um ser humano tão gratuitamente destruído. Ele simplesmente não soubera o bastante para ajudar Rosie quando ela mais precisara, e isso o deixava mortificado. Sabia que devia ter compaixão pela moça assassinada, mas a frustração não deixava espaço para mais nenhum sentimento. Nem mesmo o medo.
Mas Ziggy era esperto o suficiente para saber que deveria ter medo. O sangue de Rosie Duff manchara toda a sua roupa, acumulara-se debaixo das unhas. Talvez até mesmo no cabelo; lembrou-se de ter jogado a franja molhada para trás enquanto tentava desesperadamente descobrir de onde vinha o sangramento. Tudo poderia ser explicado, desde que a polícia acreditasse na sua história. Mas também não tinha nenhum álibi, graças às noções distorcidas de Esquisito do que era diversão. Não poderia deixar que a polícia encontrasse o melhor veículo possível para se dirigir em uma nevasca com as suas impressões digitais por toda parte. Ziggy costumava ser muito cauteloso, mas agora a sua vida poderia ser destruída por causa de uma única palavra descuidada. Era melhor nem pensar nisso.
Sentiu uma espécie de alívio quando a porta abriu e os dois policiais entraram na cela. Ele reconheceu o sujeito que dera a ordem de trazê-los para a delegacia. Despido do gigantesco sobretudo, ele era um fiapo de homem, com o cabelo pardacento um pouco mais comprido do que estava na moda. A barba por fazer indicava que ele fora tirado da cama no meio da noite, embora a camisa branca impecável e o terno elegante dessem a impressão de terem saído direto do cabide da tinturaria. Sentou na cadeira à frente de Ziggy e disse:
- Eu sou o detetive-inspetor Maclennan e este é o detetive de polícia Burnside. Precisamos ter uma conversinha com você sobre o que aconteceu esta noite. - Ele fez um gesto na direção de Burnside. - O meu colega aqui irá fazer algumas anotações e depois vamos preparar um depoimento para você assinar.
Ziggy concordou.
- Tudo bem. Pode perguntar. - Endireitou-se na cadeira. - Seria possível me arrumar uma xícara de chá?
Maclennan virou-se para Burnside e fez um gesto afirmativo. Burnside levantou-se e saiu da sala. Maclennan encostou-se na cadeira e observou a sua testemunha. Curioso como os cortes de cabelo típicos da década de 60 estavam novamente na moda. O rapaz de cabelo escuro sentado à sua frente passaria tranquilamente por um dos integrantes da banda Small Faces, uns dez anos antes. Ele não parecia polonês para Maclennan. Tinha a pele clara e as bochechas avermelhadas típicas de um escocês nascido em Fife, embora os olhos castanhos não fossem muito comuns entre eles. Maçãs do rosto bem largas davam ao seu rosto um ar bem-acabado e exótico. Um pouco parecido com o daquele bailarino russo, Rudolph Nãoseiquê, ou seja lá qual for o seu nome.
Burnside voltou quase imediatamente.
- Já está vindo - avisou ele, sentando-se e pegando a sua caneta.
Maclennan apoiou os antebraços na mesa e entrelaçou os dedos.
- Vamos começar com os dados pessoais.
Avançaram rapidamente pelas preliminares e então o detetive disse:
- Uma verdadeira tragédia. Você deve estar muito abalado.
Ziggy começou a sentir-se preso na terra dos clichês.
- Podes crer.
- Quero que me conte, com as suas próprias palavras, o que aconteceu hoje à noite.
Ziggy limpou a garganta.
- Estávamos voltando para o Fife Park...
Maclennan o interrompeu, levantando a mão aberta no ar.
- Vamos retroceder um pouco mais. Quero a história desde o começo da noite, ok?
Ziggy sentiu um aperto no peito. Tinha a esperança de não ter de mencionar a parada que haviam feito no Lammas no início da noite.
- Ok. Nós quatro moramos no mesmo alojamento no Fife Park, então normalmente jantamos juntos. Hoje era a minha vez de cozinhar. Comemos ovo, batata e feijão e lá pelas nove horas fomos para a cidade. Íamos a uma festa mais tarde e estávamos a fim de tomar umas cervejas antes. - Ele fez uma pausa para se assegurar de que Burnside estava conseguindo anotar tudo.
- Aonde foram beber?
- No Lammas. - As palavras pairaram no ar entre eles.
Maclennan não teve nenhuma reação, embora tivesse sentido o coração acelerar.
- Vocês costumam beber lá?
- Quase sempre. A cerveja é barata e eles não têm nada contra os estudantes, ao contrário de uns outros lugares por aí.
- Então você viu Rosie Duff? A moça assassinada?
Ziggy deu de ombros.
- Não prestei muita atenção nela, não.
- O quê? Uma garota bonita como aquela e você não prestou atenção?
- Não foi ela quem me serviu quando estava na minha vez de buscar as cervejas.
- Mas você já deve ter falado com ela antes, não?
Ziggy respirou fundo.
- Como eu disse, nunca prestei atenção nela. Passar cantadas em garçonetes não é a minha praia.
- Não está à sua altura, não é? - Maclennan disse, carrancudo.
- Não sou nenhum esnobe, inspetor. A minha família mora em uma casa popular. Só não curto essa de ficar bancando o machão pelos bares da vida, ok? Eu a conhecia de vista, sim, mas o meu papo com ela nunca foi além de "Quatro chopes, por favor".
- Algum dos seus amigos estava de olho nela?
- Não que eu tenha notado. - A indiferença de Ziggy ocultava uma súbita cautela com o rumo que o interrogatório estava tomando.
- Bom, então vocês tomaram umas cervejas no Lammas. E aí?
- Como eu disse, fomos para uma festa, na casa de um aluno de Matemática do terceiro ano, chamado Pete, conhecido do Tom Mackie. Ele mora em St. Andrews, em Learmonth Gardens. Não sei o número da casa. Os pais estavam viajando e ele resolveu dar uma festa. Chegamos por volta de meia-noite e já eram quase quatro da manhã quando saímos de lá.
- Vocês ficaram juntos na festa?
Ziggy achou graça.
- O senhor já foi a uma festa dessas, inspetor? Então sabe como a coisa funciona. Você chega com o pessoal, pega uma cerveja e todo mundo some. Então, quando a festa já deu o que tinha que dar, você vê quem ainda está de pé, recolhe todo mundo e vai embora trocando as pernas. O bom pastor, esse sou eu. - Ele deu um sorriso irônico.
- Quer dizer então que vocês quatro chegaram juntos e foram embora juntos, mas você não tem ideia do que os outros fizeram nesse meio-tempo?
- É mais ou menos por aí.
- Você pode garantir que nenhum deles saiu e voltou depois?
Se Maclennan esperava alarmar Ziggy, ficou decepcionado. Ele apenas entortou a cabeça para o lado, pensativo.
- Provavelmente não, acho que não - admitiu ele. - Eu passei a maior parte do tempo na estufa, nos fundos da casa. Eu e uns ingleses. Sinto muito, não me lembro dos nomes. Estávamos conversando sobre música, política, coisas assim. A coisa ficou feia quando começamos a falar sobre a independência da Escócia, como vocês podem imaginar. Circulei algumas vezes, para buscar cerveja, fui até a sala de jantar arrumar alguma coisa para comer, mas não, não estava sendo o guardião dos meus irmãos.
- Vocês costumam voltar sempre juntos? - Maclennan não sabia direito aonde queria chegar com aquilo, mas sentia que aquela era a pergunta certa.
- Depende de alguém conseguir se dar bem.
Ele está definitivamente na defensiva agora, pensou o policial.
- E isso acontece com frequência?
- Às vezes. - Ziggy deu um sorriso um pouco forçado. - Somos rapazes saudáveis, cheios de vigor, sabe?
- E acabam sempre voltando para casa juntinhos? Muito aconchegante.
- Não sei se você sabe, inspetor, mas nem todos os estudantes são obcecados por sexo. Alguns de nós têm consciência do quanto temos sorte de estarmos aqui e não queremos colocar tudo a perder.
- Por isso vocês preferem a companhia uns dos outros? Lá na minha terra, as pessoas iam achar que vocês são bichas.
Ziggy perdeu a compostura por um momento.
- E se fôssemos? Não é contra a lei.
- Depende do que você está fazendo e com quem está fazendo - respondeu Maclennan, desistindo de qualquer pretensão de amabilidade.
- Vem cá, o que isso tudo tem a ver com o fato de termos encontrado o corpo de uma garota? - perguntou Ziggy, inclinando-se para a frente. - O que o senhor está tentando dizer? Que nós somos gays, por isso estupramos e matamos a moça?
- Você é quem está dizendo. Todo mundo sabe que alguns homossexuais odeiam as mulheres.
Ziggy balançou a cabeça, custando a acreditar.
- Todo mundo quem? Os preconceituosos e os ignorantes? Escuta aqui, só porque Alex, Tom e Davey saíram da festa comigo não quer dizer que eles são gays, entendeu? Eles poderiam te dar uma lista com o nome de garotas que provariam como o senhor está enganado.
- E você, Sigmund? Poderia fazer o mesmo?
Ziggy tentou ficar imóvel, desejando que o seu corpo não o traísse. Havia uma diferença enorme, do tamanho da Escócia, entre não ser contra a lei e ser aceito. Havia chegado a um ponto no qual a verdade não seria sua amiga.
- Será que dá para voltar ao que interessa aqui, inspetor? Eu saí da festa por volta das quatro da manhã com os meus três amigos. Descemos a Learmonth Place, viramos à esquerda na Canongate e seguimos pela Trinity Place. Hallow Hill é um atalho para o Fife Park...
- Você viu alguém no caminho até a colina? - interrompeu Maclennan.
- Não. Mas a visibilidade não estava lá essas coisas, por causa da neve. Enfim, estávamos andando pela trilha de pedestres lá embaixo, quando Alex começou a correr colina acima. Sei lá por quê, eu estava na frente e não vi o que deu nele. Quando ele chegou lá em cima, tropeçou e caiu em um buraco. Aí ele começou a gritar para que a gente fosse até lá, que tinha uma moça ensanguentada lá embaixo. - Ziggy fechou os olhos, mas tornou a abri-los imediatamente, assim que a imagem da moça morta surgiu mais uma vez diante dele. - Subimos até lá e vimos Rosie caída na neve. Senti o pulso dela, pra checar os batimentos cardíacos. Estavam muito fracos, mas estavam lá. O sangramento parecia vir do abdômen, um corte bem profundo, me pareceu. Talvez uns oito ou dez centímetros. Pedi pro Alex ir buscar ajuda, para chamar a polícia. Cobrimos a moça com os nossos casacos e eu tentei estancar a hemorragia. Mas já era tarde demais. Os órgãos internos já estavam comprometidos, muita perda de sangue. Ela morreu alguns minutos depois. - Ziggy exalou longamente. - Eu não pude fazer nada.
Até mesmo Maclennan ficou momentaneamente em silêncio com a intensidade das palavras de Ziggy. Ele olhou de soslaio para Burnside, que escrevia freneticamente.
- Por que pediu a Alex Gilbey que fosse buscar ajuda?
- Porque ele estava mais sóbrio do que Tom. E Davey costuma se descontrolar em momentos de crise.
Fazia todo o sentido. Era quase perfeito demais. Maclennan arrastou a cadeira para trás.
- Um dos meus oficiais irá levá-lo para casa, Sr. Malkiewicz. Vamos precisar das roupas que está usando, para a análise forense. E das suas digitais, para fins eliminatórios. E vamos ter de conversar novamente depois.
Havia outras coisas que Maclennan desejava saber sobre Sigmund Malkiewicz. Mas isso podia esperar. A sua sensação de desconforto em relação àqueles quatro rapazes crescia a cada minuto. Precisava começar a pressioná-los. E tinha a impressão de que o tal que se descontrolava em momentos de crise ia ser o primeiro a ceder.
3
A poesia de Baudelaire parecia estar funcionando. Encolhido em posição fetal sobre um colchão tão duro que mal merecia o nome, Mondo recitava As Flores do Mal mentalmente. Os poemas pareciam ironicamente adequados diante dos acontecimentos daquela noite. O fluxo musical do francês o acalmava, dissipando a realidade da morte de Rosie Duff e da cela de polícia para a qual o haviam trazido. Era algo transcendental, que o elevava acima do seu próprio corpo e o conduzia para um lugar onde a sequência serena de sílabas era tudo o que cabia na sua consciência. Ele não queria ter de lidar com morte, culpa, medo ou suspeita.
O seu esconderijo foi pelos ares abruptamente quando a porta da cela se abriu em um solavanco. O policial Jimmy Lawson agigantou-se diante dele.
- De pé, filho. Eles querem falar com você.
Mondo deu um passo hesitante para trás, afastando-se do jovem policial que de salvador se tornara carrasco.
O sorriso de Lawson estava longe de ser confortante.
- Não vá se borrar todo aqui. Vamos lá, coragem. O inspetor Maclennan não gosta que o deixem esperando.
Mondo se levantou lentamente e seguiu Lawson para fora da cela, que dava para um corredor extremamente iluminado. Era tudo claro demais, exposto demais para o seu gosto. Ele realmente não gostava daquele lugar.
Lawson dobrou o corredor e abriu uma porta. Mondo hesitou no umbral. Sentado à mesa estava o homem que já havia visto em Hallow Hill. Ele parecia franzino demais para ser um policial, pensou Mondo.
- Sr. Kerr, certo? - perguntou ele.
Mondo concordou com a cabeça.
- Sim - disse ele. O som da sua própria voz deixou-o surpreso.
- Pode entrar e sentar aí. Eu sou o detetive-inspetor Maclennan, e esse é o detetive Burnside.
Mondo sentou-se diante dos dois homens, olhando fixamente para o tampo da mesa. Burnside executou os procedimentos de praxe com uma educação que surpreendeu Mondo, que estava esperando algo na linha dos seriados de tevê: gritaria e arrogância, policiais bancando os machões.
Quando Maclennan assumiu o interrogatório, um tom de rispidez passou a fazer parte da conversa.
- Então você conhecia Rosie Duff - afirmou ele.
- Conhecia. - Mondo ainda não conseguia levantar os olhos. - Quer dizer, eu sabia que ela era garçonete do Lammas - ele acrescentou, quebrando o silêncio que se instalara entre eles.
- Era uma moça bonita - comentou Maclennan. Mondo não respondeu. - Você deve pelo menos ter reparado isso.
Mondo deu de ombros.
- Nunca parei pra pensar nela.
- Não era o seu tipo?
Mondo levantou a cabeça, os lábios suspensos em um meio sorriso no canto da boca.
- Acho que eu não era o tipo dela. Ela nunca prestou atenção em mim. Estava sempre mais interessada em outros caras. Eu sempre mofava até ser atendido no Lammas.
- Isso deve ter te deixado chateado.
Os olhos de Mondo encheram-se de pânico. Começava a perceber que Maclennan era mais astuto do que ele imaginava que um policial pudesse ser. Ele ia ter que ficar esperto, teria de ser sagaz.
- Pra falar a verdade, não. Quando a gente estava com pressa, eu costumava mandar o Gilly no meu lugar.
- Gilly? Você está falando do Alex Gilbey, certo?
Mondo concordou, abaixando novamente os olhos. Não queria que aquele homem percebesse nenhuma das emoções que se agitavam dentro dele. Morte, culpa, medo, suspeita. Queria desesperadamente ir embora, sair daquela delegacia, se desligar daquele caso. Não queria prejudicar ninguém, mas não aguentava mais aquilo. Sabia que não aguentava mais aquilo e não queria acabar agindo de uma maneira que o fizesse parecer suspeito ou culpado aos olhos dos policiais. Porque não era dele que deveriam estar desconfiando. Nunca passara uma cantada em Rosie Duff, por mais que tivesse tido vontade. Não tinha roubado a Land Rover. Tudo o que fez foi levar uma garota pra casa até Guardbridge. Não tinha encontrado nenhum corpo na neve. Isso era responsabilidade de Alex. Graças aos outros três, estava no meio daquela merda toda. Se para garantir a sua proteção ele tivesse de desviar o olhar dos policiais para outro lugar, bem, Alex jamais ficaria sabendo. E mesmo que soubesse, Mondo tinha certeza de que ele o perdoaria.
- Então ela gostava do Gilly, hein? - Maclennan era implacável.
- Não faço ideia. Pelo que sei, ele era apenas mais um freguês pra ela.
- Mas um freguês que ela notava mais do que a você.
- Sim, mas isso não o torna exatamente especial.
- Você está dizendo que Rosie era chegada a um flerte?
Mondo balançou a cabeça, impaciente consigo mesmo.
- Não. De jeito nenhum. Era o trabalho dela, só isso. Ela atendia no pub, tinha que ser simpática com as pessoas.
- Mas não era simpática com você.
Mondo puxava nervosamente os cachos que caíam em volta das suas orelhas.
- O senhor está distorcendo tudo. Ela não significava nada pra mim, nem eu pra ela. Agora, será que posso ir embora, por favor?
- Ainda não, Sr. Kerr. De quem foi a ideia de voltar por Hallow Hill?
Mondo franziu a testa.
- Não foi ideia de ninguém. Esse é o caminho mais rápido de onde a gente estava até o Fife Park. Sempre voltamos por esse caminho. Não paramos pra pensar sobre isso.
- E alguma vez sentiram-se tentados a subir até o cemitério picto?
Mondo fez que não com a cabeça.
- Sabíamos que ele existia, fomos dar uma olhada na época em que estavam escavando. Assim como a metade da população de St. Andrews. Não quer dizer que somos desequilibrados.
- Eu não disse isso. Mas nunca fizeram uma parada lá, voltando para o alojamento?
- Por que faríamos isso?
Maclennan deu de ombros.
- Sei lá. Brincadeiras bobas de moleques. Talvez vocês tenham assistido Carrie, a Estranha muitas vezes.
Mondo puxou uma mecha do cabelo. Morte, culpa, medo, suspeita.
- Não curto filmes de terror. Olha, inspetor, o senhor está entendendo tudo errado. Somos apenas quatro caras comuns que tiveram o azar de encontrar algo incomum. Nada mais, nada menos. - Abriu os braços em um gesto amplo, torcendo para estar convincente. - Eu sinto muito pelo que aconteceu com a garota, mas não tenho nada a ver com isso.
Maclennan encostou-se na cadeira.
- Isso é o que você diz.
Mondo ficou quieto, apenas soltando o ar em um longo suspiro de frustração.
- E quanto à festa? Conte exatamente o que você fez por lá.
Mondo contorceu-se na cadeira, o seu desejo de ir embora óbvio em cada músculo do seu corpo. Será que a garota ia abrir o bico? Duvidava muito. Ela teve que entrar em casa de fininho, o seu horário de voltar já havia passado há horas. E não era aluna da universidade, não conhecia quase ninguém de lá. Com um pouco de sorte, jamais seria citada, jamais seria interrogada.
- Escuta, qual o seu interesse nisso? Acabamos de encontrar um corpo, sabia?
- Temos que considerar todas as possibilidades.
Mondo deu um sorriso debochado.
- Apenas fazendo o seu trabalho, né? Bem, está perdendo tempo se acha que estamos envolvidos com o que aconteceu com ela.
Maclennan deu de ombros.
- Mesmo assim, gostaria de saber sobre a festa.
Com o estômago revirando, Mondo produziu uma versão editada da festa, torcendo para que colasse.
- Não sei. É difícil lembrar de todos os detalhes. Um pouco depois de termos chegado na festa, comecei a dar em cima de uma garota. O nome dela era Marg. Morava em Elgin. Dançamos um pouco e eu achei que ia rolar, sabe? - Mondo ficou subitamente triste. - Aí o namorado dela apareceu. Ela não tinha falado nada de namorado pra mim. Fiquei um pouco chateado, aí tomei mais umas cervejas e fui lá pra cima. Lá em cima tinha um cômodo bem pequeno, tipo uma despensa, com uma escrivaninha e uma cadeira. Fiquei sentado lá um pouco, meio triste. Não muito, foi só o tempo de beber uma latinha. Aí desci de novo e fiquei de bobeira, perambulando pela casa. Ziggy estava na estufa, fazendo o seu discurso sobre a Declaração de Independência pra uns ingleses, então eu saí fora. Já ouvi isso umas mil vezes. Não notei mais ninguém que valesse a pena. A festa estava meio fraca em termos de mulheres bonitas e as únicas que apareceram por lá já estavam acompanhadas, então fiquei só de bobeira. Pra falar a verdade, eu já estava na pilha de ir embora muito antes de a gente resolver voltar pra casa.
- Mas você não sugeriu isso?
- Não.
- Por que não? Não tem opinião própria?
Mondo lançou um olhar de ódio. Não era a primeira vez que era acusado de seguir os outros, como um carneirinho idiota.
- Claro que tenho. Só estava sem saco, ok?
- Tudo bem - disse Maclennan. - Vamos verificar a sua história. Você pode ir para casa agora. Mas vamos precisar das roupas que você está vestindo. Vou mandar um policial te acompanhar até em casa e recolher as suas roupas. - Quando ele se levantou, as pernas da cadeira arranhando o chão produziram um som estridente que deu nos nervos de Mondo. - Voltaremos a nos encontrar, Sr. Kerr.
A policial Janice Hogg fechou a porta do carro tentando fazer o mínimo de barulho possível. Não era preciso acordar toda a vizinhança, eles ficariam sabendo em breve mesmo. Encolheu-se num susto quando o detetive Iain Shaw bateu a porta do lado do motorista sem pensar duas vezes, lançando um olhar feroz para a parte de trás da sua cabeça calva. Ele tinha apenas vinte e cinco anos e já estava ficando careca, constatou ela com uma pontada de prazer convencido. E ainda se considerava um partidão.
Como se o teor dos pensamentos de Janice tivesse penetrado o seu cérebro, Shaw virou para trás e fez uma cara feia.
- Vamos logo, anda. Vamos nos livrar logo disso.
Janice deu uma olhada no chalé enquanto Shaw abria o portão de madeira e avançou rapidamente pela pequena trilha que os separava da casa. Era típica daquela área; uma construção baixa com duas janelas de mansarda inseridas acima do teto e abaixo do telhado curvo com espigões salientes cobertos de neve. Uma pequena varanda encaixada entre as janelas do primeiro andar, o revestimento pintado com uma cor escura difícil de ser identificada apenas com a luz precária oriunda dos postes de luz. Parecia bem-cuidada, concluiu ela, imaginando qual daqueles quartos havia sido o de Rosie.
Expulsou aquele pensamento da sua mente enquanto se preparava para a penosa tarefa que estava prestes a cumprir. Era mandada para dar as más notícias mais vezes do que merecia. Devia ser porque era mulher. Ficou de prontidão, enquanto Shaw batia na porta com a pesada argola de ferro. A princípio, nenhum sinal de resposta. Então uma luz fraca se acendeu por trás das cortinas na janela à direita do andar de baixo. Eles viram a mão de alguém puxando a cortina para o lado e depois um rosto, iluminado pela metade. Um homem de meia-idade com o cabelo grisalho despenteado olhava para eles, pasmo e boquiaberto.
Shaw apanhou o seu distintivo e mostrou a ele. Aquele gesto era inconfundível. A cortina voltou a se fechar. Alguns segundos depois, a porta da frente se abriu e o homem apareceu, amarrando na cintura a faixa de um grosso robe de lã. A barra da calça do pijama encobria quase totalmente os seus chinelos de xadrez escocês desbotado.
- O que está acontecendo aqui? - perguntou ele, disfarçando mal a sua apreensão por trás da agressividade.
- Sr. Duff? - confirmou Shaw.
- Sim, sou eu. O que vocês estão fazendo na minha porta a esta hora?
- Eu sou o detetive de polícia Shaw e esta é a policial Hogg. Podemos entrar, Sr. Duff? Precisamos conversar com o senhor.
- O que aqueles dois aprontaram? - Ele abriu espaço e fez sinal para que eles entrassem. A porta interna dava para a sala de estar. Um conjunto de três sofás estofados de camurça marrom formava uma espécie de fortaleza para abrigar o maior aparelho de tevê que Janice já tinha visto na vida. - Sentem-se - disse ele.
Quando se encaminhavam para o sofá, Eileen Duff surgiu na soleira da porta, do outro lado da sala.
- O que está acontecendo, Archie? - quis saber ela. O seu rosto estava limpo, sem maquiagem e untado de creme, a cabeça coberta por um lenço bege de chiffon para proteger o cabelo recém-arrumado no salão. O seu quimono acolchoado de náilon estava abotoado errado.
- É a polícia - explicou o marido.
Os olhos dela arregalaram-se de ansiedade.
- O que aconteceu?
- A senhora pode vir sentar-se conosco, Sra. Duff? - perguntou Janice, indo na direção da mulher e dando-lhe o braço. Ela a conduziu até o sofá e fez um gesto para que o marido sentasse ao seu lado.
- É notícia ruim, aposto - sentenciou a mulher, aflita, agarrando o braço do marido. Archie Duff mantinha o seu olhar fixo e impassível na tela desligada da tevê, os lábios contraídos.
- Sinto muito, Sra. Duff. Mas receio que a senhora esteja certa. Temos péssimas notícias para vocês. - Shaw estava parado, sem jeito, a cabeça um pouco baixa e os olhos fixos nos redemoinhos multicoloridos do carpete.
A Sra. Duff deu um empurrão no marido.
- Eu te disse pra não deixar Brian comprar aquela moto! Eu disse!
Shaw lançou um olhar suplicante para Janice. Ela se aproximou do casal e disse gentilmente:
- Não foi o Brian. Foi a Rosie.
A Sra. Duff choramingou.
- Não pode ser - protestou ela.
Janice lutou para continuar.
- Hoje à noite, um pouco mais cedo, o corpo de uma jovem foi encontrado em Hallow Hill.
- Deve ser algum engano - contemporizou Archie Duff, teimoso.
- Infelizmente, não. Alguns dos policiais presentes na cena do crime reconheceram Rosie. Eles a conheciam do Lammas. Sinto muitíssimo em ter de lhes dizer que a filha de vocês está morta.
Janice já havia soltado essa bomba muitas vezes e sabia que das duas uma: ou a pessoa negava o acontecido, como Archie Duff, ou uma dor pungente atingia os familiares como uma poderosa força da natureza. Eileen Duff jogou a cabeça para trás e urrou aos céus a sua dor, as mãos crispadas contorcendo-se no seu colo, o corpo inteiro possuído pela angústia. O marido olhava para ela como se não a reconhecesse, as sobrancelhas cerradas, recusando-se firmemente a aceitar o que estava acontecendo.
Janice ficou parada, deixando a primeira onda quebrar sobre ela, pronta para um eventual resgate. Shaw trocava o peso do corpo de uma perna para a outra, sem saber o que dizer.
De repente, ouviram passos pesados na escada que desembocava no canto da sala. Surgiram pernas cobertas por uma calça de pijama, seguidas por um peito nu e finalmente um rosto de sono, coroado por um topete negro de cabelos despenteados. O rapaz parou a alguns passos do chão e examinou a cena.
- Que diabos está acontecendo aqui? - resmungou ele.
Sem virar a cabeça, Archie disse:
- A sua irmã está morta, Colin.
Colin Duff estava boquiaberto.
- O quê?
Janice acudiu novamente.
- Sinto muito, Colin. Mas o corpo da sua irmã foi encontrado ainda há pouco.
- Onde? O que aconteceu? Como assim, o corpo dela foi encontrado? - À medida que ia atropelando as palavras, as suas pernas iam cedendo e ele desmoronou nos últimos degraus da escada.
- Ela foi encontrada em Hallow Hill. - Janice suspirou fundo. - Achamos que Rosie foi assassinada.
Colin afundou a cabeça entre as mãos.
- Oh, Deus! Deus! - murmurava ele sem parar.
Shaw inclinou-se diante deles.
- Vamos ter de lhe fazer algumas perguntas, Sr. Duff. Será que podemos ir até a cozinha?
O primeiro ataque de desespero de Eileen estava passando. Ela parou de chorar e voltou o seu rosto marcado pelas lágrimas para Archie.
- Espera aí. Eu não sou nenhuma criança que precisa ser preservada da verdade - arquejou ela.
- Vocês têm um conhaque? - perguntou Janice. Archie não teve nenhuma reação. - Ou um uísque?
Colin levantou-se aos tropeções.
- Temos uma garrafa na copa. Eu vou buscar.
Eileen voltou os olhos inchados para Janice.
- O que aconteceu com a minha filhinha?
- Ainda não sabemos direito. Parece que ela foi esfaqueada. Mas vamos ter de esperar o médico-legista examiná-la, até termos certeza.
Enquanto ela falava, Eileen se encolheu, como se ela própria tivesse sido golpeada.
- Quem faria uma coisa dessas com Rosie? Logo ela, que não fazia mal a uma mosca.
- Ainda não sabemos - acudiu Shaw. - Mas vamos encontrá-lo, Sra. Duff. Eu sei que este é o pior momento do mundo para fazer perguntas, mas quanto mais rápido obtivermos as informações necessárias, mais rápido vai ser o nosso progresso.
- Posso vê-la? - perguntou Eileen.
- Vamos providenciar isso mais tarde - disse Janice. Ela agachou-se ao lado de Eileen e colocou a mão no seu braço. - Rosie costumava voltar para casa a que horas?
Colin saiu da cozinha trazendo uma garrafa de uísque e três copos.
- O Lammas só aceita pedidos até as dez e meia. Ela normalmente chegava lá pras onze e quinze. - Ele colocou os copos na mesa de centro e serviu três porções generosas.
- Mas às vezes ela chegava mais tarde? - perguntou Shaw.
Colin entregou os copos de uísque aos pais. Archie bebeu metade, de um gole só. Eileen segurou o copo, mas não o levou aos lábios.
- Chegava, se tivesse uma festa pra ir ou algo assim.
- E ontem à noite?
Colin bebeu mais um pouco.
- Não sei. Mãe, ela disse alguma coisa pra você?
Eileen olhou para ele, confusa e perdida.
- Ela me disse que ia encontrar uns amigos. Não disse quem, e eu não perguntei. Ela tem direito a privacidade. - Havia um tom defensivo na sua voz e Janice deduziu que aquilo deve ter sido um motivo de discórdia, provavelmente com Archie.
- Como ela costumava voltar para casa? - perguntou Janice.
- Se eu ou Brian estivéssemos na cidade, a gente passava no pub e dava uma carona pra ela. Tinha uma outra garçonete que trabalhava no mesmo turno, a Maureen, que às vezes a trazia pra casa. Quando ela não conseguia nenhuma carona, pegava um táxi.
- Cadê Brian? - perguntou Eileen, de repente, querendo reunir os filhos debaixo da sua asa.
Colin deu de ombros.
- Ele ainda não chegou, não. Deve ter ficado lá na cidade.
- Ele tinha que estar aqui. Não quero que ele receba a notícia por estranhos.
- Ele vai voltar pro café da manhã. - Archie respondeu, áspero. - Precisa se arrumar pra ir trabalhar.
- Rosie estava saindo com alguém? Tinha algum namorado? - Shaw estava tão ansioso para ir embora que foi direto ao assunto.
Archie franziu o cenho.
- Pretendentes não faltavam pra Rosie.
- Alguém em particular?
Eileen bebericou o seu uísque.
- Ela estava saindo com alguém ultimamente, mas não queria me contar quem era. Eu perguntei, mas ela disse que me contaria quando fosse a hora.
Colin bufou.
- Algum homem casado, pelo visto.
Archie lançou um olhar de fúria para o filho.
- Mais respeito quando falar da sua irmã, ouviu?
- Ué, então por que ela ia guardar segredo? - O rapaz projetou a mandíbula para a frente, desafiante.
- Vai ver que ela não queria você e o seu irmão se metendo de novo nos assuntos dela - retrucou Archie. Virou-se para Janice. - Uma vez eles deram uma surra num rapaz porque cismaram que ele não estava tratando Rosie direito.
- Quem era o rapaz?
Archie arregalou os olhos, surpreso.
- Isso foi anos atrás. Não tem nada a ver com o que aconteceu agora. O rapaz nem mora mais aqui. Se mudou pra Inglaterra, logo depois.
- Ainda assim, queremos saber quem é - insistiu Shaw.
- John Stobie - Colin respondeu irritado. - O pai dele trabalha como jardineiro no Old Course. Mas como o meu pai disse, ele não ousaria chegar perto de Rosie.
- Não era um homem casado - continuou Eileen. - Eu perguntei a ela. Ela disse que jamais traria um problema desses pra dentro de casa.
Colin balançou a cabeça e olhou para o outro lado, girando o copo de uísque na mão.
- Não vi Rosie com ninguém ultimamente. Mas ela tinha lá os seus segredos.
- Vamos precisar dar uma olhada no quarto dela - disse Shaw. - Mas não agora, mais tarde. Então, se vocês puderem evitar mexer em qualquer coisa lá, eu agradeço. - Ele limpou a garganta. - Se vocês quiserem, a policial Hogg pode ficar aqui com vocês.
Archie fez que não com a cabeça.
- Vamos ficar bem.
- É possível que apareçam alguns repórteres por aqui. Seria mais fácil se um policial estivesse aqui para ajudá-los.
- Meu pai já disse. Vamos ficar melhor sozinhos - respondeu Colin.
- Quando vou poder ver a Rosie? - quis saber Eileen.
- Vamos mandar um carro buscar a senhora mais tarde. Vou providenciar para alguém ligar para cá e combinar um horário com vocês. E se vocês se lembrarem de qualquer coisa que Rosie tenha dito sobre onde poderia estar hoje à noite ou sobre alguém com quem estivesse saindo, por favor entrem em contato. Seria útil se vocês pudessem fazer uma lista com os nomes dos amigos dela. Especialmente alguém que possa saber onde ela estava ontem e com quem. É possível? - Shaw ficou mais gentil quando percebeu que estava prestes a dar no pé dali.
Archie concordou e levantou-se do sofá.
- Mais tarde. Vamos fazer isso depois.
Janice levantou-se, os joelhos reclamando por ela ter ficado muito tempo naquela posição desconfortável.
- Podem ficar à vontade, sabemos o caminho.
Ela seguiu Shaw até a porta. A tristeza naquela casa parecia uma substância tangível, tomando conta do ar e dificultando a respiração. Era sempre a mesma coisa. A melancolia parecia aumentar num crescendo nas primeiras horas após a notícia.
Mas aquilo ia mudar. Em breve, viria a raiva.
4
Esquisito olhava fixamente para Maclennan, os braços magérrimos cruzados sobre o peito franzino.
- Preciso de um cigarro - disse ele. O ácido que havia tomado mais cedo já perdera o efeito, deixando-o irrequieto e rebelde. Não queria estar ali e estava determinado a cair fora o mais rápido possível. O que não queria dizer que estava disposto a cooperar.
Maclennan balançou a cabeça.
- Sinto muito, filho. Não permitimos cigarro aqui.
Esquisito virou a cabeça e olhou para a porta.
- Você sabe que não pode torturar ninguém, né?
Maclennan se recusava a morder a isca.
- Precisamos fazer umas perguntas sobre o que aconteceu hoje à noite.
- Sem um advogado, sem chance. - Esquisito sorriu para si mesmo.
- Por que precisa de um advogado, se não tem nada a esconder?
- Porque você é o Todo-Poderoso. E está com uma garota assassinada nas costas, precisando arrumar alguém pra pôr a culpa. E eu não vou assinar nenhuma confissão falsa, não importa o quanto você me deixe mofando aqui dentro.
Maclennan suspirou. Era deprimente constatar que os métodos duvidosos de uma meia dúzia de policiais davam munição para espertinhos como aquele atacarem todo o resto. Apostava uma semana do seu salário como aquele adolescente hipócrita tinha um pôster de Che Guevara na parede do quarto. E que achava que era o primeiro na fila para herói da classe operária. O que não queria dizer que não podia ter assassinado Rosie Duff.
- Você tem uma ideia muito estranha dos métodos policiais.
- Diga isso aos seis de Birmingham e aos quatro de Guildford[3] - rebateu Esquisito, como se aquilo fosse um trunfo.
- Se você não quer terminar como eles, filho, sugiro que comece a colaborar. Podemos fazer isso dentro dos conformes: eu faço algumas perguntas e você responde ou eu posso te deixar trancado aqui por algumas horas até conseguirmos achar um advogado que esteja assim tão desesperado para trabalhar.
- Você está me negando o direito de representação legal? - Havia um tom de imponência na voz de Esquisito que teria deixado os seus amigos desesperados se pudessem ouvi-lo.
Mas Maclennan sabia que estava mais do que à altura de um estudantezinho convencido.
- Faça como quiser. - Ele se afastou da mesa.
- Vou fazer mesmo - disse Esquisito, teimoso. - Não tenho nada para falar com você sem um advogado presente. - Maclennan caminhou até a porta, com Burnside logo atrás. - Então trate de me arrumar um, ok?
A porta já estava aberta. Maclennan olhou para trás.
- Não tenho nada a ver com isso, filho. Você quer um advogado, você dá o telefonema.
Esquisito parou para pensar. Não conhecia nenhum advogado. Diabos, não tinha nem dinheiro para pagar um advogado, mesmo que conhecesse algum. Podia imaginar o que o seu pai diria se ele ligasse para casa e pedisse ajuda. Esse não era um pensamento particularmente agradável. Além do mais, teria de contar a história toda para o advogado, e qualquer advogado pago pelo seu pai seria obrigado a lhe dar um relatório completo. Existiam coisas, pensou ele, bem piores do que ser preso por ter roubado uma Land Rover.
- Pois bem - disse ele de má vontade. - Você faz aí as suas perguntas. Se elas forem tão inocentes quanto você pensa que são, eu respondo. Mas, se eu achar que você está tentando me incriminar, não abro mais a boca.
Maclennan fechou a porta e sentou-se novamente. Manteve o olhar fixo em Esquisito, observando com calma os seus olhos inteligentes, o nariz adunco e os lábios incongruentemente carnudos. Não achava que Rosie Duff pudesse ter visto aquele rapaz como um partido desejável. Provavelmente teria rido na cara dele, caso tivesse recebido uma cantada. Uma reação como essa poderia ter provocado um ressentimento crescente. Que pode ter resultado em assassinato.
- Você conhecia Rosie Duff bem? - perguntou ele.
- Não a ponto de saber o seu sobrenome.
- Alguma vez a convidou para sair?
Esquisito assumiu uma expressão de deboche.
- Você só pode estar curtindo com a minha cara. Sou um pouquinho mais ambicioso do que isso. Garotas provincianas, com sonhos pequenos; não é a minha praia.
- E os seus amigos?
- Acho que não. Estamos aqui exatamente porque queremos mais do que isso.
Maclennan levantou as sobrancelhas.
- Como é que é? Vieram lá de Kirkcaldy até St. Andrews para ampliar os seus horizontes? Uau, o mundo não sabe o que está perdendo. Escuta aqui, rapaz, Rosie Duff foi assassinada. Sejam lá quais tenham sido os sonhos dela, eles morreram também. Então, pense duas vezes antes de depreciá-la.
Esquisito sustentou o olhar de Maclennan.
- Eu só estou tentando explicar que as nossas vidas não tinham nada a ver com a dela. Se não tivéssemos dado de cara com o corpo, você sequer saberia da nossa existência nessa investigação. E francamente, se nós somos o melhor que vocês podem arrumar em termos de suspeitos, não merecem ser chamados de detetives.
A tensão entre eles produzia eletricidade. Normalmente, Maclennan gostava quando o clima ficava pesado. Era um método eficaz para manipular as pessoas e fazer com que elas falassem mais do que pretendiam. E a sua intuição lhe dizia que aquele rapaz estava escondendo alguma coisa por trás daquela aparente arrogância. Podia não ser nada importante, mas podia ser algo fundamental. Mesmo que o máximo que aquela pressão lhe rendesse fosse uma bela dor de cabeça, Maclennan não conseguia resistir. Por menor que fosse a probabilidade.
- Conte-me sobre a festa - pediu ele.
Esquisito revirou os olhos.
- Tá legal, você não deve ser convidado pra muitas festas mesmo. A coisa funciona assim. Homens e mulheres se reúnem em uma casa ou um apartamento, bebem, dançam. Às vezes rolam uns amassos, às vezes até mesmo sexo. E depois, as pessoas voltam pra casa. Foi assim esta noite.
- E às vezes, se drogam - completou Maclennan docilmente, recusando-se a deixar que o sarcasmo do rapaz o tirasse do sério.
- Não quando você está presente, aposto - respondeu Esquisito, com um sorriso debochado.
- Você se drogou hoje à noite?
- Viu? Lá vem você, tentando me incriminar.
- Com quem você estava?
Esquisito parou para pensar.
- Sabe que nem me lembro direito? Cheguei com os caras, fui embora com eles. No meio-tempo, não me lembro de nada, não. Mas se você está insinuando que eu dei uma escapada para cometer assassinato, está muito enganado. Me pergunte onde eu estava e eu posso te responder na boa. Eu estava na sala de estar durante toda a noite, tirando a hora que eu subi para dar uma mijada.
- E o resto dos seus amigos? Onde estavam eles?
- Não faço a menor ideia. Não sou o guardião dos meus irmãos.
Maclennan reconheceu imediatamente o eco das palavras de Sigmund Malkiewicz.
- Mas vocês costumam cuidar uns dos outros, não?
- Sem chances de você saber que é isso que os amigos fazem, né? - zombou ele.
- Então quer dizer que vocês seriam capazes de mentir, um pelo outro?
- Ah, a pergunta capciosa. "Quando foi que você parou de bater na sua mulher?" Não temos o que mentir no que diz respeito a Rosie Duff. Porque não fizemos nada que precise ser acobertado. - Esquisito esfregou as têmporas. Precisava desesperadamente da sua cama, estava impaciente até os ossos. - Tivemos azar, nada mais.
- Conte-me como foi que aconteceu.
- Alex e eu estávamos de sacanagem, um empurrando o outro na neve. Ele meio que se desequilibrou e foi catando cavaco até a colina. Acho que a neve estava deixando ele meio eufórico, sei lá. Aí ele tropeçou e caiu, e quando eu vi, ele já estava gritando, pedindo pra gente correr até lá. - Por um momento, a arrogância de Esquisito desapareceu e ele pareceu mais jovem. - E aí a gente encontrou a garota. Ziggy tentou... mas não tinha nada que ele pudesse fazer para salvá-la. - Esquisito esfregou uma mancha em uma das pernas da sua calça. - Posso ir embora agora?
- Vocês não viram ninguém lá em cima? Ou no caminho?
Esquisito balançou a cabeça em sinal negativo.
- Não. Jack, o Estripador deve ter feito um caminho alternativo. - Estava novamente na defensiva e Maclennan sabia que continuar tentando arrancar informação dele seria uma tarefa inglória. Mas teria outra oportunidade para isso. E deveria haver uma maneira de driblar as defesas de Tom Mackie. Ele tinha apenas de descobrir qual era.
Janice Hogg tentava alcançar Iain Shaw pelo estacionamento. Estiveram mais ou menos calados no percurso de volta à delegacia, cada um associando o encontro com os Duffs com as suas próprias vidas, em níveis variáveis de alívio. Quando Shaw empurrou a porta que abrigava o ambiente aquecido da delegacia, Janice já estava logo atrás dele.
- Fico me perguntando por que será que ela não contou para a mãe com quem estava saindo - disse ela.
Shaw deu de ombros.
- Talvez o irmão esteja certo. Vai ver era um homem casado.
- Mas e se ela estivesse falando a verdade? E se ele não fosse casado? Que tipo de homem faria com que ela preferisse manter segredo sobre a sua identidade?
- A mulher aqui é você, Janice. O que você acha? - Shaw se dirigiu até a minúscula sala onde o policial encarregado de fornecer e manter atualizadas as informações secretas guardava os seus arquivos. A sala ficava vazia durante a noite, mas os gabinetes com as fichas de arquivo organizadas em ordem alfabética ficavam destrancados e disponíveis para consulta.
- Bem, se os irmãos tinham um histórico de espantar homens que consideravam inadequados, acho que tenho que descobrir que tipo de homem Colin e Brian considerariam inadequado - refletiu ela.
- E que tipo seria esse? - perguntou Shaw, abrindo a gaveta com a letra "D". Os seus dedos, surpreendentemente longos e finos, começaram a correr pelos arquivos.
- Pensando alto, eu diria que, a julgar pela família, com aquele senso de respeitabilidade típico de Fife, toda certinha... Acho que alguém que eles considerassem ou acima ou abaixo dela.
Shaw virou-se para ela.
- Nossa, você realmente conseguiu fazer uma bela triagem.
- Eu falei que estava pensando alto - resmungou ela. - Se fosse um pé-rapado qualquer, ela provavelmente acharia que ele seria capaz de se defender dos seus irmãos. Mas se fosse alguém um pouquinho mais rebuscado...
- Rebuscado? Mas que palavra mais sofisticada para uma policial, Janice.
- Usar um uniforme não me impede de ter um cérebro, detetive Shaw. E não se esqueça que até bem pouco tempo atrás o senhor também estava usando um.
- Tá bem, tá bem. Vamos voltar ao rebuscado. Como assim, tipo um estudante? - perguntou Shaw.
- Exatamente.
- Tipo os que encontraram o corpo? - Ele virou-se novamente para o arquivo.
- Eu não descartaria essa possibilidade - Janice encostou-se no alizar da porta. - Ela com certeza pôde conhecer vários estudantes no seu trabalho.
- Aqui está - anunciou Shaw, tirando algumas fichas da gaveta. - Sabia que Colin Duff não me era estranho. - Ele leu a primeira ficha e depois passou para Janice. Estava anotado, em uma caligrafia bonita: Colin James Duff. Data de nascimento: 05/03/55. Último endereço conhecido: Caberfeidh Cottage, Strathkinness. Trabalha na fábrica de papel em Guardbridge, como motorista de empilhadeira. 09/74 Bebedeira e má conduta, multado 25 libras. 05/76 Perturbação da paz, detido. 06/78 Velocidade, multado 37 libras. Companheiros conhecidos: Brian Stuart Duff, irmão. Donald Angus Thomson. Janice virou a ficha. No verso, escrito com a mesma caligrafia, só que a lápis para poder ser apagado se fosse preciso, ela pôde ler: Duff gosta de criar caso quando bebe. É bom de briga e tem um talento para se safar. Um pouco metido a valentão. Não é desonesto, só meio rebelde.
- Não é o tipo de sujeito que você quer que se misture com o seu namorado acadêmico sensível - comentou Janice enquanto pegava a segunda ficha de arquivo das mãos de Shaw. Brian Stuart Duff. Data de nascimento: 27/05/57. Último endereço conhecido: Caberfeidh Cottage, Strathkinness. Trabalha na fábrica de papel em Guardbridge como encarregado do armazém. 06/75 Agressão, multado 50 libras. 05/76 Agressão, três meses de detenção, cumpriu em Perth. 03/78 Perturbação da paz, detido. Companheiros conhecidos: Colin James Duff, irmão. Donald Angus Thomson. Ela virou a ficha e leu no verso: O Duff caçula é um vândalo que pensa que é valentão. A sua ficha seria bem mais longa se o irmão mais velho não tivesse o hábito de levá-lo embora antes da coisa ficar preta. Ele começou cedo - John Stobie e as suas costelas e braço quebrado em 1975, possivelmente de sua autoria. Stobie se recusou a prestar depoimento, disse que sofreu um acidente de bicicleta. Há suspeitas de que Duff também esteve envolvido no arrombamento não solucionado de uma loja de bebidas em West Port 08/78. Um dia vai acabar indo em cana por um bom tempo. Janice apreciava as observações pessoais que o encarregado local de manter as fichas acrescentava às informações oficiais. Quando se estava indo prender alguém, era sempre de grande valia saber de antemão se a coisa terminaria mal. E, ao que parecia, os irmãos Duff poderiam fazer com que as coisas terminassem mal. Uma pena, pensou ela. Colin Duff era bem bonitinho.
- O que você acha? - perguntou Shaw, pegando Janice de surpresa duplamente, por causa do seu pensamento sobre Colin e porque não estava acostumada a um membro do DIC imaginando que ela fosse capaz de raciocínio em conjunto.
- Acho que Rosie estava guardando segredo sobre o seu namorado porque sabia que o relacionamento ia provocar a ira dos irmãos. Eles me pareceram uma família unida. Vai ver ela estava protegendo ambos, a família e o namorado.
Shaw franziu a testa.
- Como assim?
- Ela não queria que eles arrumassem mais problemas. Com a ficha de Brian, especialmente, mais uma agressão séria e eles iam acabar na cadeia por um bom tempo. Então, ela preferiu ficar calada. - Janice guardou as fichas de volta no arquivo.
- Bom trabalho. Escuta, eu vou lá na sala do DIC escrever o relatório. Você vai até o necrotério ver se consegue agendar a visita da família. Essa história de só marcar para amanhã vai deixá-los meio chateados, mas é bom dar uma satisfação desde agora.
Janice fez uma cara desanimada.
- Por que será que eu sempre fico com as melhores tarefas?
Shaw levantou as sobrancelhas.
- Quer que eu responda?
Janice não disse mais nada. Deixou Shaw e foi para o vestiário feminino, bocejando. Tinham uma chaleira lá dentro, mas os homens não sabiam. O seu corpo pedia uma boa dose de cafeína, e se ela tinha de ir ao necrotério, merecia aquele regalo. Afinal de contas, Rosie Duff não ia a lugar algum.
Alex já estava no quinto cigarro, se perguntando se o maço ia durar mesmo, quando a porta da sala de interrogatório onde ele estava finalmente se abriu. Ele reconheceu o detetive de rosto delgado que havia visto em Hallow Hill. O homem parecia bem mais disposto do que Alex se sentia. O que não era de admirar, uma vez que a hora do café da manhã já havia passado para a maioria das pessoas. E ele duvidava muito que o inspetor estivesse sofrendo com aquela dorzinha chata causada pela ressaca, que atacava o seu cérebro. Deu a volta e sentou-se diante de Alex, nunca desviando o seu olhar. Alex fez um esforço para encará-lo de volta, determinado a não deixar que o cansaço fizesse com que ele parecesse evasivo.
- Eu sou o detetive-inspetor Maclennan - disse ele, com a voz entrecortada e enérgica.
Alex não sabia ao certo qual era a etiqueta adequada para a situação.
- Eu sou Alex Gilbey - tentou ele.
- Eu sei disso, meu filho. E também sei que você gostava de Rosie Duff.
Alex sentiu o calor queimando as suas bochechas.
- Isso não é crime - respondeu. De nada adiantaria negar o que Maclennan parecia saber com tanta certeza. Especulou qual dos seus amigos teria traído o seu interesse pela garçonete morta. Mondo, tinha quase certeza. Sob pressão, ele entregaria a própria avó, e depois tentaria se convencer de que aquele havia sido o melhor destino para a velha.
- Não, não é. Mas o que aconteceu com ela essa noite foi o pior de todos os crimes. E o meu trabalho é descobrir quem foi o responsável. Até agora, a única pessoa ligada à moça assassinada e à descoberta do corpo é você, Sr. Gilbey. Ora, você na certa é um rapaz inteligente. Então não preciso explicar isso para você, não é?
Alex bateu o cigarro nervosamente, embora não houvesse nenhuma cinza para ser descartada.
- Coincidências acontecem.
- Com muito menos frequência do que você pode imaginar.
- Bem, essa foi uma delas. - O olhar fixo de Maclennan dava a sensação de que havia insetos se movendo por dentro da pele de Alex. - Eu só tive um baita azar, encontrando Rosie daquele jeito.
- É o que você diz. Mas se eu tivesse abandonado Rosie à morte em uma colina incrivelmente gelada, estivesse preocupado se havia ficado algum vestígio de sangue em mim e fosse um rapaz inteligente, eu ia armar a coisa de modo que eu fosse a primeira pessoa a encontrar o corpo. Assim, eu teria a desculpa perfeita para estar coberto com o sangue dela. - Maclennan fez um gesto na direção da camisa de Alex, manchada de sangue coagulado.
- Tenho certeza de que o senhor agiria assim. Mas eu, não. Eu não saí da festa em momento algum. - Alex estava começando a ficar realmente com medo. Ele já estava esperando alguns momentos desagradáveis durante a conversa com a polícia, mas não havia imaginado que Maclennan ia pegar tão pesado, logo de início. Um suor frio e úmido começou a cobrir as suas palmas e ele precisou conter o impulso de secá-las no jeans.
- Você pode fornecer testemunhas que confirmem isso?
Alex cerrou os olhos, tentando silenciar a algazarra dentro da sua cabeça para poder recordar seus passos durante a festa.
- Logo que chegamos, eu fiquei conversando com uma garota da minha sala por um tempo. Penny Jamieson é o nome dela. Ela saiu para dançar e eu fiquei fazendo hora na sala de jantar, beliscando aqui e ali. Várias pessoas entraram e saíram, não prestei muita atenção. Eu estava meio bêbado e mais tarde fui até o jardim lá nos fundos para vomitar.
- Sozinho? - Maclennan inclinou-se levemente para a frente.
Alex teve um súbito flash de memória que trouxe consigo uma pontada de alívio.
- Sim. Mas vocês provavelmente vão conseguir identificar o canteiro de rosas perto de onde eu vomitei.
- Você pode ter vomitado a qualquer hora - salientou Maclennan. - Se tivesse acabado de estuprar e esfaquear uma garota e a tivesse abandonado para morrer, por exemplo. Isso poderia ter deixado você enjoado.
O momento de esperança de Alex foi por água abaixo.
- Pode até ser, mas não foi o que aconteceu - respondeu ele, em um tom desafiador. - Se eu estava coberto de sangue, você não acha que alguém teria percebido isso na festa? Eu me senti melhor depois de ter colocado tudo pra fora. Entrei novamente e resolvi dançar um pouco, na sala de estar. Várias pessoas devem ter me visto nessa hora.
- E nós fazemos questão de conversar com cada uma delas. Queremos uma lista com o nome de todo mundo que estava nessa festa. Vamos ter de conversar com o anfitrião. Com todos que conseguirmos localizar. E se Rosie Duff apareceu por lá, mesmo que só por um segundo, nós dois vamos ter uma conversinha bem menos amigável, Sr. Gilbey.
Alex sentiu o seu rosto o trair novamente e desviou o olhar depressa. Não tão depressa quanto gostaria. Maclennan aproveitou a brecha.
- Ela estava lá?
Alex negou com a cabeça.
- Eu não a vi mais, depois do Lammas. - Ele podia ver alguma coisa começando a fazer sentido por trás do olhar fixo de Maclennan.
- Mas você a convidou para a festa? - As mãos do detetive agarraram a quina da mesa e ele se inclinou para a frente, tão próximo que Alex pôde sentir o cheiro do seu xampu.
Alex fez que sim, estava agoniado demais para negar.
- Eu dei o endereço. Quando estávamos no pub. Mas ela não apareceu na festa, não. Nem eu esperava que ela fosse aparecer. - A voz de Alex rompera em um soluço. O seu frágil controle começou a desaparecer, à medida que lembrava de Rosie atrás do balcão, animada, provocante, afetuosa. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, encarando o detetive.
- Isso deixou você com raiva? O fato de ela não ter aparecido?
Alex sacudiu a cabeça.
- Não. Não cheguei a acreditar que ela fosse. Olha, eu não queria que ela estivesse morta. Nem queria ter encontrado o corpo. Mas o senhor tem que acreditar em mim. Eu não tive nada a ver com isso.
- Isso é o que você diz, filho. O que você diz. - Maclennan não moveu um músculo e continuou cara a cara com o rapaz. Todos os seus instintos lhe diziam que havia algo espreitando por trás da superfície naqueles interrogatórios. E, de uma maneira ou de outra, ele acabaria descobrindo o que era.
5
A policial Janice Hogg deu uma espiada no seu relógio, enquanto se dirigia até o balcão principal. Mais uma hora e ela estaria de folga, pelo menos na teoria. Com uma investigação de homicídio a pleno vapor, provavelmente ela teria de fazer hora extra, especialmente porque não havia muitas policiais femininas em St. Andrews. Estava passando pela porta da recepção justo na hora em que a porta da rua se abriu, num solavanco tão violento que chegou a quicar na parede.
A potência por trás da porta era um jovem com os ombros quase tão largos quanto o alizar. O seu cabelo negro e ondulado estava coberto de neve e o seu rosto encharcado - de lágrimas, de suor ou de flocos de neve derretidos. Ele avançou em direção ao balcão, rosnando de raiva. O policial em serviço recuou, assustado, quase caindo do banco.
- Onde estão os desgraçados? - rosnou ele.
Para fazer justiça ao policial, vale dizer que ele conseguiu desencavar algum sang froid dos recantos mais profundos do seu treinamento.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele, desviando-se dos punhos que se chocavam contra a superfície do balcão. Janice não avançara e não fora sequer notada. Se a coisa degringolasse, como parecia que ia acontecer, ela poderia se valer do elemento surpresa.
- Eu quero saber onde estão os filhos da puta que mataram a minha irmã! - gritou ele.
Logo vi, pensou Janice. As notícias haviam chegado até Brian Duff.
- Eu não sei do que o senhor está falando - respondeu o policial, gentil.
- A minha irmã, Rosie! Ela foi assassinada! E vocês estão com eles aqui. Os desgraçados que mataram ela! - Parecia que Duff ia escalar o balcão no seu desejo desesperado de vingança.
- Eu acho que o senhor recebeu a informação errada.
- Não vem com essa, seu babaca! - gritou Duff. - A minha irmã está morta e alguém vai ter que pagar!
Janice julgou aquele o momento certo para entrar em ação.
- Sr. Duff? - perguntou ela calmamente, aproximando-se dele.
Ele rodopiou e encarou Janice fixamente com os olhos arregalados, a saliva espumando nos cantos da boca.
- Cadê eles? - rosnou ele.
- Sinto muito pelo que aconteceu com a sua irmã. Mas ninguém foi preso em relação ao crime. Ainda estamos nos estágios iniciais da nossa investigação, interrogando as testemunhas. Não suspeitos, testemunhas. - Ela pousou a mão com cuidado no braço dele. - Você deveria estar em casa. A sua mãe está precisando dos filhos.
Brian sacudiu o braço, desvencilhando-se da mão de Janice.
- Me disseram que vocês prenderam eles. Os desgraçados que fizeram isso.
- Disseram errado. Estamos todos ansiosos para encontrar quem cometeu esse crime terrível e às vezes isso faz com que as pessoas tirem conclusões precipitadas. Pode acreditar em mim, Sr. Duff. Se tivéssemos um suspeito preso, eu diria a você. - Janice manteve os olhos fixos nos de Duff, torcendo para que a sua abordagem calma e direta funcionasse. Do contrário, ele poderia partir a sua mandíbula com um único soco. - Quando prendermos alguém, a sua família será a primeira a saber. Eu prometo isso a você.
Brian parecia estar atordoado e com raiva. Então, de repente, os seus olhos encheram-se de lágrimas e ele desmoronou em uma das cadeiras da recepção. Envolveu a cabeça com os braços e sacudiu-se em um violento ataque de choro. Janice trocou um olhar impotente com o policial que estava atrás do balcão. Ele simulou um gesto de aplicação de algemas, mas ela descartou a hipótese balançando a cabeça e sentou-se ao lado de Brian.
Aos poucos, ele se recompôs. Deixou que as mãos caíssem como pedras no colo e voltou o rosto crispado de lágrimas para Janice.
- Mas vocês vão encontrar ele, não vão? O desgraçado que fez isso?
- Vamos fazer de tudo, Sr. Duff. Agora, posso levar você para casa? A sua mãe estava preocupada com você hoje cedo. Ela precisa ter certeza de que você e o seu irmão estão bem. - Ela levantou-se e olhou para ele, na expectativa.
Por ora, a ira de Brian havia se dissipado. Ele se levantou docilmente e concordou.
- Tá bem.
Janice virou-se para o policial de plantão e avisou:
- Diga ao detetive Shaw que eu fui levar o Sr. Duff em casa. Quando voltar, faço o que deveria estar fazendo agora. - Ninguém ia reclamar por ela ter tomado a iniciativa uma vez na vida. Qualquer coisa que pudessem apurar sobre Rosie Duff e sua família era de grande valia e aquele era o momento perfeito, pois Brian não estava na defensiva. - Ela era um amor de menina, a Rosie - disse ela, puxando conversa enquanto conduzia Brian para fora da entrada principal, até o estacionamento.
- Você a conhecia?
- Eu bebo no Lammas às vezes. - Era uma pequena mentira, oportuna diante das circunstâncias. Janice considerava o Lammas tão atraente quanto um prato de mingau frio. Com gosto de queimado, ainda por cima.
- Não dá pra acreditar - disse Brian. - Esse é o tipo de coisa que a gente vê na tevê. Não o tipo de coisa que acontece com a gente.
- Como foi que você ficou sabendo? - Janice estava genuinamente curiosa. As notícias costumavam viajar na velocidade do som em uma cidade pequena como St. Andrews, mas não no meio da noite.
- Por um camarada meu, ontem à noite. A namorada dele trabalha no turno da manhã em um pé-sujo na South Street. Ela ficou sabendo quando chegou no serviço, às seis da manhã, e correu pro telefone. Porra - explodiu ele -, primeiro eu achei que fosse alguma piada de mau gosto. Você também pensaria, é ou não é?
Janice abriu o carro, pensando, Não, para falar a verdade os meus amigos não iam brincar com uma coisa dessas. Ela disse:
- A gente não quer pensar, nem por um segundo, que aquilo é verdade.
- Exatamente! - concordou Brian, sentando-se ao lado dela no carona. - Quem faria uma coisa dessas com a Rosie? Ela era uma boa pessoa, sabe? Uma garota certinha. Não era uma vagabunda.
- Você e o seu irmão ficavam de olho nela. Você chegou a ver alguém rondando a sua irmã, alguém com quem você não fosse muito com a cara? - Janice deu partida no motor, sentindo um calafrio quando uma rajada de vento gelado entrou no carro. A manhã estava de lascar.
- Sempre tinha uns vagabundos cercando a minha irmã. Mas todo mundo sabia que iam ter que se ver comigo e com Colin se mexessem com ela. Então, ficavam pianinho. Sempre ficamos de olho nela. - De repente ele acertou um soco na palma da mão. - É por isso que eu fico me perguntando: onde é que a gente estava ontem, quando ela realmente precisou da gente?
- Você não pode se culpar, Brian. - Janice manobrou a viatura para fora do estacionamento e deslizou sobre a superfície lisa e coberta de neve prensada da estrada principal. As luzes de Natal pareciam pálidas contra o painel cinza-amarelado do céu; o glamouroso laser fornecido pelo departamento de física da universidade não passava de um rabisco mortiço e despercebido contra as nuvens baixas.
- Eu não me culpo. Eu culpo o canalha que fez isso. Só queria ter estado lá para impedir que acontecesse. É foda, agora é tarde demais, é sempre tarde demais - ele resmungou baixinho.
- Então você não sabe com quem ela pode ter se encontrado?
- Ela mentiu para mim. Disse que ia para uma festa com a Dorothy, que trabalha com ela. Mas a Dorothy apareceu na festa onde eu estava. Ela disse que a Rosie tinha saído pra encontrar um cara. Eu ia dar a maior bronca nela quando ela voltasse. Pô, uma coisa é deixar meu pai e minha mãe de fora. Mas eu e Colin, a gente sempre estava do lado dela. - Ele esfregou os olhos com as costas da mão. - Não dá pra suportar isso. A última coisa que ela me disse foi uma mentira.
- Quando foi que vocês se viram pela última vez? - Janice fez uma curva súbita em West Port e avançou pela estrada para Strathkinness.
- Ontem, depois que eu saí do trabalho. Encontrei com ela no centro, fomos comprar um presente de Natal pra mamãe. Nós três fizemos uma vaquinha pra comprar um secador de cabelo novo pra ela. Aí a gente foi na drogaria para comprar um sabonete bacana pra ela. Fui andando com a Rosie até o Lammas e aí ela disse que ia sair com a Dorothy. - Ele balançou a cabeça. - Ela mentiu. E agora, está morta.
- Talvez ela não tenha mentido, Brian. Vai ver que ela até estava planejando ir pra essa tal festa, mas apareceu algum outro programa mais tarde. - Isso devia ser tão verdadeiro quanto a história que Rosie havia contado, mas Janice sabia por experiência própria que as pessoas que acabam de perder alguém se agarram a qualquer coisa que mantenha intacta a imagem do falecido.
Brian não foi exceção. A esperança acendeu o seu rosto.
- Sabe que deve ter sido isso mesmo? Porque Rosie não era mentirosa.
- Mas tinha lá os seus segredos, não é? Como toda moça.
Ele fechou a cara.
- Segredo é confusão. Ela devia saber disso. - Alguma coisa lhe ocorreu e subitamente Brian retesou o corpo no banco. - Você sabe se ela foi...? Se se aproveitaram dela?
Nada que Janice pudesse dizer o confortaria. Para que a confiança que ela aparentemente estabelecera com Brian pudesse sobreviver, ela não podia se arriscar e deixar que ele pensasse que ela também estava mentindo para ele.
- Só vamos saber com certeza depois da autópsia, mas parece que sim.
Brian esmagou o punho no painel do carro.
- Filho da puta! - grunhiu ele. À medida que o carro subia em ziguezague a colina em direção a Strathkinness, ele se revirava no assento. - Seja lá quem foi que fez isso, é melhor que vocês peguem ele antes de mim. Juro por Deus que eu mato o sujeito. Eu mato!
A casa parecia violada, pensou Alex ao abrir a porta da unidade autônoma que os Garotos de Kirkcaldy haviam transformado em seu feudo particular. Cavendish e Greenhalgh, os dois ingleses aristocratas que dividiam o espaço com eles, passavam o mínimo tempo possível em casa, um acordo perfeitamente conveniente para todos. Eles já haviam partido para a Inglaterra, para passar as férias, mas naquele dia o sotaque exagerado deles, que soava tão ostensivamente metido para Alex, seria muito mais convidativo do que a presença da polícia, que parecia imiscuir-se no próprio ar que ele respirava.
Com Maclennan nos seus calcanhares, Alex correu até o quarto onde dormia, no segundo andar.
- Não se esqueça, queremos tudo que você está usando. Inclusive a roupa de baixo - Maclennan lembrou a Alex, que abria a porta do quarto. O detetive ficou parado na soleira, visivelmente intrigado diante da visão de duas camas no quarto minúsculo, que obviamente fora projetado para apenas uma. - Quem dorme aqui com você? - quis saber ele.
Antes que Alex pudesse responder, a voz ponderada de Ziggy acudiu:
- Ele acha que nós somos todos gays - disse ele, sarcástico. - E que, é claro, foi por isso que matamos Rosie. Independente da total ausência de lógica, é isso o que está passando pela cabeça dele. Na verdade, Sr. Maclennan, a explicação é muito mais simples. - Ziggy apontou por cima do ombro do detetive para uma porta do outro lado do corredor. - Vem cá ver - disse ele.
Curioso, Maclennan aceitou o convite de Ziggy. Alex aproveitou que ele estava de costas e despiu-se às pressas, agarrando um roupão para cobrir a sua vergonha. Ele foi atrás dos dois e não pôde conter um sorriso convencido quando viu a expressão bestificada de Maclennan.
- Viu só? - perguntou Ziggy. - Simplesmente não tem espaço para uma bateria completa, um órgão Farfisa, duas guitarras e uma cama nessas tocas de coelho. Então Esquisito e Gilly foram sorteados e passaram a dormir no mesmo quarto.
- Vocês têm uma banda, então? - Maclennan parecia o seu pai falando, pensou Alex, com uma pontada de afeto que o surpreendeu.
- Tocamos juntos há quase cinco anos - respondeu Ziggy.
- Sério? Quer dizer que vão ser os próximos Beatles? - Maclennan não pôde se conter.
Ziggy revirou os olhos.
- Não, não vamos ser os próximos Beatles, por dois motivos. Primeiro, porque tocamos estritamente para nosso próprio prazer. Ao contrário dos Rezillos, não temos nenhuma vontade de constar entre os 10 Mais. E segundo, por causa do talento. Somos músicos absolutamente competentes, mas não temos um único pensamento musical original entre nós. O nome da nossa banda antes era Muse, até percebermos que não tínhamos nenhuma musa. Agora, somos os Combine.[4]
- Combine? - repetiu Maclennan debilmente, surpreso com o súbito acesso de intimidade de Ziggy.
- Novamente, por dois motivos. Quem tem uma ceifadeira colhe na plantação de todo mundo. Como nós. E também por causa da música do Jam que tem o mesmo nome. Nós não somos melhores que ninguém.
Maclennan virou as costas, balançando a cabeça.
- Vamos ter que dar uma olhada aí dentro também, você sabe.
Ziggy bufou.
- A única infração de que vocês vão encontrar provas é de violação de copyright - disse ele. - Olha, nós colaboramos com vocês. Quando é que vão nos deixar em paz?
- Assim que recolhermos as roupas. Também queremos diários, agendas, cadernos de endereços...
- Alex, dá logo o que ele quer. Todos nós já entregamos tudo. Quanto mais rápido recuperarmos o nosso espaço, mais fácil será colocarmos a cabeça no lugar. - Ziggy virou-se para Maclennan. - Sabe, o que o senhor e os seus subordinados parecem não perceber é que acabamos de passar por uma experiência terrível. Nos deparamos com o corpo moribundo e ensanguentado de uma garota que conhecíamos, ainda que superficialmente. - A voz dele ficou embargada, revelando a fragilidade do seu aparente autocontrole. - Se parecemos estranhos aos seus olhos, Sr. Maclennan, lembre-se que isso pode ter a ver com o fato de estarmos com a cabeça fodida por causa de tudo o que passamos hoje.
Ziggy passou voando pelo policial e desceu as escadas correndo, cruzando a cozinha e batendo a porta ao sair. Maclennan torceu a boca.
- Ele tem razão - disse Alex, dócil.
- Tem uma família lá em Strathkinness que passou uma noite bem pior do que a de vocês, filho. E o meu trabalho é encontrar respostas para eles. Se para isso eu precisar pisar no calo de vocês, sinto muito. Agora, vamos lá, me dê logo as roupas. E o resto também.
Ele ficou esperando na soleira da porta enquanto Alex empilhava as suas roupas sujas em um saco de lixo.
- O senhor vai precisar dos meus sapatos também? - perguntou Alex, segurando-os na altura do peito, visivelmente preocupado.
- Vou precisar de tudo - respondeu Maclennan, registrando mentalmente que teria de pedir ao pessoal da perícia para tomar um cuidado especial com os sapatos de Gilbey.
- É que eu não tenho nenhum outro par decente. Só botas de beisebol, e elas não servem nem para enfeite em um tempo como esse.
- Que pena. Vamos logo, para dentro do saco, filho.
Alex jogou os sapatos por cima das roupas.
- O senhor está perdendo o seu tempo aqui, sabe? Cada minuto que dedica a nós é um minuto perdido. Não temos nada a esconder. Não matamos Rosie.
- Que me conste, ninguém os acusou disso. Mas vocês insistem tanto no assunto que estou começando a ficar desconfiado. - Maclennan apanhou a sacola da mão de Alex e o diário caindo aos pedaços que ele lhe ofereceu. - Vamos voltar, Sr. Gilbey. Não vá a lugar nenhum.
- Temos que voltar para casa hoje - protestou Alex.
Maclennan estacou, dois degraus escada abaixo.
- Ninguém me disse isso - ele disse, desconfiado.
- O senhor não perguntou, não é? Temos que pegar o ônibus hoje à tarde. Todos nós começamos os nossos trabalhos de férias amanhã. Quer dizer, todos menos Ziggy - Alex acrescentou, com um sorriso meio irônico. - O pai dele acha que acadêmicos devem passar as férias estudando e não arrumando prateleiras de mercado.
Maclennan ponderou. Suspeitas baseadas essencialmente no seu instinto não justificavam exigir que os rapazes permanecessem em St. Andrews. E eles não iam nem sair da jurisdição. Kirkcaldy ficava logo ali, afinal.
- Podem ir para casa - sentenciou ele. - Desde que vocês não se incomodem em me ver, com a minha equipe, batendo na porta da casa dos seus pais.
Alex ficou parado, vendo Maclennan ir embora. O desânimo o arrastava para uma depressão ainda mais profunda. As festas de fim de ano iam ser realmente fantásticas.
6
Os acontecimentos da noite finalmente atingiram Esquisito em cheio. Quando Alex subiu após ter tomado um lúgubre café com Ziggy, Esquisito estava na sua posição habitual. De barriga para cima, com as pernas e os braços pendurados para fora das cobertas, ele rompia a relativa paz daquela manhã com o seu ruidoso ronco, que se transformava às vezes em um assovio agudo. Alex normalmente não tinha problemas para dormir ao som dessa trilha sonora estridente. O quarto onde dormia na casa dos seus pais dava para os trilhos da ferrovia, então silêncio noturno era uma espécie de novidade para ele.
Mas naquela manhã, Alex não precisou nem tentar para saber que não conseguiria pregar o olho com os barulhos de Esquisito atrapalhando os pensamentos que corriam em sua mente. Mesmo estando meio tonto por causa da falta de sono, não estava nem um pouco sonolento. Pegou uma leva de roupas da sua cadeira, caçou as botas de beisebol debaixo da cama e saiu de fininho do quarto. Vestiu-se no banheiro e desceu sem fazer barulho, para não acordar nem Esquisito, nem Mondo. Para falar a verdade, não queria nem mesmo a companhia de Ziggy. Parou diante dos ganchos de pendurar casacos na sala. A sua parca havia sido recolhida pela polícia. O que lhe deixara apenas com uma jaqueta jeans e um casaco leve com capuz. Ele pegou os dois e saiu.
Não estava mais nevando, mas as nuvens ainda estavam baixas e carregadas. A cidade parecia coberta de algodão. O mundo estava monocromático. Se ele espremesse os olhos, os prédios brancos do Fife Park desapareceriam, a pureza da vista conspurcada apenas pelos retângulos negros das janelas. O som também havia desaparecido, coberto pelo peso do clima. Alex seguiu pelo que uma vez já fora grama em direção à estrada principal. Hoje ela parecia uma trilha no Cairngorms, com rastros na neve indicando onde veículos ocasionais haviam passado. Só quem estava dirigindo naquelas condições eram aqueles que precisavam, obrigatoriamente. Quando ele chegou ao campo desportivo, os seus pés estavam molhados e gelados e isso, de alguma forma, pareceu-lhe apropriado. Caminhou até as quadras de hóquei. No meio daquela imensidão branca, ele espanou a neve de uma tabela de pontos e sentou sobre ela. E assim ele ficou, cotovelos nos joelhos, apoiando o queixo com as mãos, sentado sobre a tábua intacta, até que pequenas luzes começaram a dançar diante dos seus olhos.
Por mais que se esforçasse, Alex não conseguia fazer com que a sua mente ficasse tão vazia quanto a paisagem. Imagens de Rosie Duff não saíam da sua cabeça. Rosie tirando um chope, séria e concentrada. Rosie de lado, rindo da tirada de um freguês. Rosie levantando as sobrancelhas, caçoando de alguma coisa que ele lhe dissera. Essas eram lembranças com as quais ele podia lidar, sem problemas. Mas elas não permaneciam em sua mente. Eram constantemente expulsas pela outra Rosie. O rosto retorcido em um esgar de dor. Sangrando na neve. Lutando pelos seus últimos suspiros.
Alex se inclinou e agarrou um punhado de neve, apertando-o com força em suas mãos até que elas começassem a ficar arroxeadas de frio, até que a água escorresse pelos pulsos. O frio transformou-se em dor, a dor em entorpecimento. Ele queria poder fazer algo parecido com a sua mente. Desligá-la, desligá-la completamente. Deixá-la tão vazia quanto aquele campo coberto de neve, branco reluzente.
Quando sentiu alguém tocar no seu ombro, quase fez xixi nas calças. Cambaleou para a frente e não caiu estatelado por pouco. Virou-se com as mãos em punho, armadas na direção do peito.
- Ziggy! - gritou ele. - Meu Deus, você quase me mata de susto.
- Desculpe. - Ziggy parecia estar à beira das lágrimas. - Eu te chamei, mas você não olhou.
- Eu não ouvi! Meu Deus, avançando assim pela retaguarda você vai ficar mal falado, cara - Alex disse com uma risada trêmula, tentando fazer piada com o seu medo.
Ziggy riscou a neve com o bico da galocha.
- Sei que provavelmente você está querendo ficar sozinho, mas quando vi você saindo, resolvi vir atrás.
- Tudo bem, Zig. - Alex inclinou-se para a frente e removeu mais um pouco de neve da tábua. - Junte-se a mim no meu suntuoso sofá, onde as garotas do harém virão nos servir refrescos e água de rosas.
Ziggy deu um sorriso sem graça.
- Vou abrir mão dos refrescos. Eles congelam a ponta da minha língua. Você se importa?
- Não, por mim tudo bem.
- Fiquei preocupado com você, foi isso. De todos nós, você é o que a conhecia melhor. Eu não sabia se você estava querendo conversar, longe dos outros.
Alex se encolheu dentro da jaqueta e fez que não com a cabeça.
- Não tenho muito o que dizer. Eu só não consigo parar de ver o rosto dela. Achei que não ia conseguir dormir. - Ele suspirou. - Não, eu estava assustado demais para tentar. Quando eu era pequeno, um amigo do meu pai sofreu um acidente em um estaleiro. Uma explosão, sei lá, não sei exatamente o que foi. Enfim, depois do acidente, ele ficou só com uma metade do rosto. A outra metade era uma máscara de plástico, que ele tinha que usar sobre o tecido queimado. Você provavelmente deve lembrar dele, na rua ou no futebol. Era difícil não notar o cara. O meu pai me levou ao hospital para visitá-lo, eu só tinha cinco anos. E fiquei completamente apavorado. Eu ficava imaginando o que tinha por trás da máscara. À noite, quando ia dormir, acordava gritando, porque ele sempre aparecia nos meus sonhos. Às vezes, tinha vermes por trás da máscara. Às vezes, era uma bagunça cheia de sangue, tipo aquelas ilustrações dos seus livros de anatomia. Mas o pior era quando ele tirava a máscara e não havia nada por trás, apenas a pele com os vestígios do que deveria estar lá. - Ele tossiu. - É por isso que eu estou com medo de dormir.
Ziggy passou o braço pelo ombro de Alex.
- Eu sei que é difícil, Alex. Mas o fato é que você agora está mais velho. E o que nós vimos ontem, bem, a coisa não fica pior do que aquilo. A sua imaginação não tem muito o que fazer para piorar o quadro. Seja lá o que você sonhar agora, não vai chegar nem perto de ter visto Rosie daquele jeito.
Alex gostaria que as palavras de Ziggy pudessem confortá-lo um pouco mais. Mas ele sentia que elas não eram totalmente verdadeiras.
- Acho que todos nós vamos ter que lidar com os nossos demônios depois do que aconteceu ontem - disse ele.
- Alguns mais práticos do que os outros - respondeu Ziggy, recolhendo o braço de trás das costas de Alex e apertando as mãos uma contra a outra. - Não sei como, mas Maclennan descobriu que eu sou gay. - Ziggy mordeu o lábio.
- Putzgrila! - exclamou Alex.
- Eu só contei para você, você sabe, né? - A boca de Ziggy se contorceu em um sorriso irônico. - Quer dizer, além dos caras com quem eu estive, é claro.
- É claro. Como foi que ele descobriu? - perguntou Alex.
- Eu estava com tanto cuidado para não mentir que ele sacou a verdade nas entrelinhas. E agora eu estou com medo da coisa se espalhar.
- E por que haveria de se espalhar?
- Você sabe que as pessoas adoram uma fofoca. E eu acho que os policiais não são muito diferentes do resto, nesse sentido. Eles vão acabar falando com a universidade. Se quiserem pressionar a gente, essa seria uma boa estratégia. E se eles resolverem aparecer nas nossas casas, em Kirkcaldy? E se Maclennan achar que é uma jogada de mestre contar a verdade para os meus pais?
- Ele não vai fazer isso, Ziggy. Nós somos testemunhas. Não vejo o que ele pode ganhar se indispondo com a gente.
Ziggy suspirou.
- Queria acreditar em você. Na minha opinião, Maclennan está nos tratando mais como suspeitos do que como testemunhas. E isso significa que ele vai fazer qualquer coisa para nos pressionar, não é?
- Acho que você está muito paranoico.
- Pode até ser. Mas e se ele disser alguma coisa para o Esquisito ou o Mondo?
- Eles são seus amigos. Não vão virar as costas para você por causa disso.
Ziggy bufou.
- Eu vou te dizer o que eu acho que vai acontecer se Maclennan soltar que o melhor amigo deles é bicha. Eu acho que Esquisito vai querer me encher de porrada e que Mondo nunca mais vai querer entrar num banheiro comigo pro resto da vida. Eles são homofóbicos, Alex. Você sabe muito bem disso.
- Eles conhecem você desde pequeno. Isso vai contar muito mais do que um preconceito idiota. Eu não fiz um escândalo quando você me contou.
- E eu te contei exatamente porque sabia que você não ia fazer um escândalo. Você não é um homem das cavernas impulsivo.
Alex assumiu uma expressão modesta.
- Também era uma aposta garantida, né, contar para alguém que é fã de Caravaggio. Mas eles também não são dinossauros, Ziggy. Eles vão entender. Vão repensar as suas visões de mundo à luz do que sabem a seu respeito. Eu realmente acho que você não devia perder o sono por causa disso.
Ziggy deu de ombros.
- Pode ser, talvez você tenha razão. Mas, ainda assim, eu prefiro não arriscar. E mesmo que eles encarem numa boa, já pensou se a coisa se espalha? Quantos gays assumidos você conhece aqui na universidade? Todos esses ingleses riquinhos de escola particular, que passaram a adolescência inteira tendo experiências homossexuais, eles não saíram do armário, saíram? Estão todos aí, desfilando de braço dado com uma mulherzinha, garantindo a sua descendência. Vê só o Jeremy Thorpe. Ele está sendo julgado por ter conspirado para matar o seu ex-amante, só para manter a sua homossexualidade em segredo. Isso aqui não é San Francisco, Alex. É St. Andrews. Eu ainda tenho uns bons anos pela frente até poder atuar como médico, e eu te digo uma coisa, se Maclennan abrir a boca, a minha carreira vai para o espaço.
- Isso não vai acontecer, Ziggy. Você está exagerando. Você está cansado e, como você mesmo disse, estamos todos com a cabeça fodida por causa do que aconteceu ontem. Vou te dizer o que está me preocupando de verdade.
- O quê?
- A Land Rover. Que diabos vamos fazer a respeito?
- A gente tem que trazer de volta. Não temos nenhuma outra opção. Senão, dão queixa de furto e estamos perdidos.
- Pois é, eu sei disso. Mas quando? Não dá para fazer isso hoje. Seja lá quem foi que largou Rosie naquele lugar, deve ter um veículo qualquer e uma das coisas que nos deixa menos suspeitos é que nenhum de nós tem carro. Mas se formos vistos desfilando por aí na neve com uma Land Rover, vamos direto para o topo da lista de Maclennan.
- Vai acontecer a mesma coisa se uma Land Rover for descoberta exatamente na porta da nossa casa.
- Então o que a gente faz?
Ziggy chutou a neve entre os pés.
- Acho que vamos ter que esperar a poeira baixar, aí eu vou lá e busco o carro. Ainda bem que eu me lembrei das chaves a tempo de enfiar dentro da cueca. Senão a gente teria se dado mal na hora em que Maclennan pediu pra gente esvaziar os bolsos.
- Você está falando sério? Tem certeza que você quer ir buscar o carro?
- Vocês todos têm trabalho agora nas férias. Eu posso sair tranquilamente. Só preciso inventar alguma desculpa, dizer que tenho que ir até a biblioteca da universidade, sei lá.
Alex agitou-se desconfortável no seu assento improvisado.
- Você já parou para pensar que ao omitir a Land Rover a gente pode estar livrando a cara do assassino?
Ziggy ficou chocado.
- Você não está realmente sugerindo que...?
- O quê? Que um de nós pode ter cometido o crime? - Alex mal podia acreditar que tinha conseguido verbalizar as suspeitas insidiosas que haviam se infiltrado na sua consciência. Ele tentou consertar, depressa. - Não. Mas as chaves ficaram rolando lá na festa. Talvez alguém tenha manjado a oportunidade e aproveitado para pegar... - A sua voz foi morrendo.
- Você sabe que isso não aconteceu. E, lá no fundo, você também sabe que não acredita de verdade que um de nós possa ter matado Rosie - disse Ziggy, confiante.
Alex queria estar assim tão certo. Quem poderia dizer o que se passava pela cabeça de Esquisito, quando ele estava drogado até não poder mais? E Mondo? Ele foi levar a tal garota para casa, crente que ia rolar alguma coisa. Mas e se ela deu um fora nele? Ele estava furioso e frustrado, e talvez estivesse bêbado o suficiente para querer descontar em qualquer outra garota que tivesse dado o fora nele antes, como Rosie fizera, mais de uma vez no Lammas. E se tivesse encontrado com ela no caminho? Balançou a cabeça. Não queria nem pensar naquilo.
Como se pressentindo os pensamentos de Alex, Ziggy disse, calmamente:
- Se você está pensando em Esquisito e em Mondo, vai ter que me incluir na lista. Eu tive tanta oportunidade quanto eles. E espero que você saiba o quão ridícula é essa ideia.
- Isso é absurdo. Você jamais faria mal a alguém.
- O mesmo vale para os outros dois. A suspeita é como um vírus, Alex. Você pegou do Maclennan. Mas é bom você se livrar dela rapidinho, antes que contamine a sua mente e o seu coração. Lembre-se do que você sabe sobre nós. Nenhum de nós tem o perfil de um assassino frio e calculista.
As palavras de Ziggy não dissiparam a inquietude de Alex, mas ele não queria mais discutir a respeito. Em vez disso, abraçou o amigo, colocando a mão no seu ombro.
- Você é um amigão, Ziggy. Vamos até o centro. Eu te pago uma panqueca.
Ziggy sorriu.
- O último dos perdulários, hein? Vou fazer desfeita, se você não se importar. Não sei por quê, mas estou sem fome. E não se esqueça: um por todos e todos por um. Isso não significa ficar cego para os defeitos dos amigos e sim aprender a confiar neles. É uma confiança baseada em anos de amizade sólida. Não deixe Maclennan destruir isso.
Barney Maclennan olhou em volta da sala do DIC excepcionalmente cheia. Desacostumado a estar entre os detetives à paisana, Maclennan era a favor da convocação dos policiais uniformizados para ouvir as suas ordens em casos importantes. Fazia com que eles se sentissem pessoalmente envolvidos na investigação. Além do mais, eles faziam mais trabalho de campo e podiam perceber coisas que os detetives talvez deixassem passar. Fazer com que se sentissem parte do time tornava-os mais dispostos a seguir essas observações até o fim e não descartá-las como irrelevantes.
Ele estava parado de pé, do outro lado da sala, entre Burnside e Shaw. Com uma das mãos encoberta, revirava obsessivamente moedas dentro do bolso da calça. Sentia-se enfraquecido pelo cansaço e pelo esforço, mas sabia que a adrenalina o manteria aceso por várias horas. Era sempre assim quando estava seguindo o seu instinto.
- Vocês sabem por que estamos aqui - disse ele assim que todos se acomodaram. - O corpo de uma jovem foi encontrado hoje bem cedo, em Hallow Hill. Rosie Duff foi assassinada com uma única facada no estômago. Ainda é muito cedo para mais detalhes, mas provavelmente ela também foi estuprada. Não temos casos como esse por aqui, mas isso não quer dizer que não somos capazes de solucioná-lo. E rápido. A família da vítima merece respostas.
"Até agora, não temos muito para começar. Rosie foi encontrada por quatro estudantes, quando estavam voltando de uma festa em Learmonth Gardens para o Fife Park. Bem, eles podem ser testemunhas inocentes, mas também podem ser muito mais do que isso. Até onde sabemos, eles eram os únicos que estavam andando por aí no meio da noite, cobertos de sangue. Quero uma equipe verificando a tal festa. Quem estava lá? O que eles viram? Os nossos rapazes realmente têm álibis? Existem lacunas nos períodos de tempo? Como foi que eles se comportaram lá? O detetive Shaw vai conduzir essa equipe e eu gostaria de alguns oficiais uniformizados trabalhando com ele. Vamos colocar pressão nos convidados dessa festa.
"Rosie trabalhava no Pub Lammas, muitos aqui sabem disso, não é? - Ele olhou em volta, conferindo vários gestos afirmativos, incluindo o do policial Jimmy Lawson, o primeiro na cena do crime. Ele conhecia Lawson; jovem e ambicioso, responderia bem a um pouco de responsabilidade. - Os quatro estudantes andaram bebendo por lá ontem. Então quero que o detetive Burnside conduza uma outra equipe e converse com todo mundo que esteve lá ontem, todo mundo que for possível localizar. Tinha alguém de olho em Rosie? O que os quatro rapazes estavam fazendo? Como estavam se comportando? Lawson, você costuma beber lá. Quero que você se junte ao detetive Burnside e dê toda a ajuda possível para localizarmos os fregueses habituais e arrancarmos o máximo deles."
Maclennan fez uma pausa, olhando em torno.
- Também vamos precisar bater de porta em porta em Trinity Place. Rosie não foi a pé para Hallow Hill. O assassino tinha alguma espécie de transporte. Talvez a gente dê sorte e localize o insone local. Ou pelo menos alguém que tenha levantado de noite para fazer xixi. Quero informações sobre qualquer veículo que tenha passado por ali hoje cedo.
Maclennan tornou a dar uma olhada geral no recinto.
- É bem provável que Rosie conhecesse o assassino. Um estranho que a tivesse agarrado no meio da rua não perderia tempo removendo o corpo. Então, vamos ter que investigar a vida dela também. A família e os amigos não vão ficar contentes com isso, então precisamos respeitar a dor deles. Mas isso não significa que vamos nos contentar com histórias pela metade. Tem alguém solto por aí, alguém que cometeu homicídio ontem à noite. E eu quero pegá-lo, antes que ele tenha a oportunidade de fazer outra vítima. - Houve um burburinho no recinto; estavam todos de acordo. - Alguma pergunta?
Para sua surpresa, Lawson levantou a mão, aparentando estar um pouco constrangido.
- Senhor, será que existe algum significado na escolha do lugar onde o corpo foi abandonado?
- Como assim? - perguntou Maclennan.
- Pelo fato de ser um cemitério picto. Será que foi um ritual satânico, algo assim? Nesse caso, será que não foi simplesmente um estranho que pegou Rosie porque ela servia como o que ele estava precisando para um sacrifício humano?
Maclennan enrugou o rosto diante da possibilidade. No que ele estava pensando, para não ter considerado aquela hipótese? Se ela ocorrera a Jimmy Lawson, ocorreria à imprensa. E a última coisa que ele queria agora eram manchetes proclamando que havia um assassino satanista à solta.
- É uma hipótese interessante. E todos nós devemos tê-la em mente. Mas não devemos mencioná-la fora daqui. Por enquanto, vamos nos concentrar no que sabemos com certeza. Os estudantes, o Lammas, a investigação porta a porta. Mas isso não quer dizer que vamos fechar os olhos para outras possibilidades. E agora, vamos trabalhar.
Terminada a reunião, Maclennan perambulou pela sala, parando para dar uma palavra de incentivo aqui e ali enquanto os policiais se reuniam em volta das mesas, organizando as suas tarefas. Não podia evitar o seu desejo de que os estudantes estivessem envolvidos. Assim, conseguiriam um resultado rápido, que era o que contava para o público em casos como aquele. E, o que era ainda melhor, não deixaria a cidade com gosto de suspeita na boca. Era sempre mais fácil quando os bandidos vinham de fora. Mesmo que de fora, nesse caso, fosse apenas a cinquenta quilômetros de distância.
Ziggy e Alex voltaram para o alojamento com uma hora de antecedência, antes de terem que partir para a rodoviária. Tinham ido lá para verificar e o funcionário garantiu que os ônibus estavam passando, embora o horário não estivesse sendo cumprido.
- Vocês podem arriscar - disse o funcionário. - Não posso garantir o horário, mas os ônibus vão passar, sim.
Encontraram Esquisito e Mondo debruçados sobre xícaras de café na cozinha, ambos desanimados e com a barba por fazer.
- Pensei que vocês fossem estar no décimo sono - disse Alex, enchendo a chaleira para ferver mais água.
- Sem chance - resmungou Esquisito.
- Esquecemos dos abutres - disse Mondo. - Os jornalistas. Eles não param de bater na porta e a gente fica mandando eles irem embora. Mas não funciona. Dá uns dez minutos e eles voltam, tudo de novo.
- É a brincadeira do "bate, bate". Eu disse pro último que se ele não parasse de bater na porta, eu ia bater a porta na cara dele.
- Hmm - murmurou Alex. - E o vencedor deste ano do Prêmio Agradável na categoria Tato e Diplomacia é...
- Como assim? Você preferia que eu tivesse deixado eles entrarem aqui? - explodiu Esquisito. - Esses babacas, a gente tem mesmo é que falar com eles na única língua que eles entendem. Eles não aceitam não como resposta, você sabe.
Ziggy lavou duas xícaras e colocou café em pó nelas.
- Nós não vimos ninguém lá fora, não é, Alex?
- Não. Esquisito deve ter realmente colocado eles para correr. Mas se eles voltarem, vocês não acham que deveríamos dar logo uma declaração? Afinal, não temos nada a esconder.
- Só assim eles iam nos deixar em paz - concordou Mondo, mas daquele jeito como sempre concordava. Ele se especializara em um tom de voz que era capaz de sugerir dúvida, sempre oferecendo uma saída caso ele se encontrasse acidentalmente nadando contra a corrente. A sua necessidade de ser amado coloria tudo o que ele dizia e fazia. Isso e a necessidade de se proteger.
- Se você acha que eu vou falar com esses escravos do imperialismo capitalista, pode tirar o seu cavalinho da chuva. - Esquisito, por outro lado, não era homem de meias palavras. - Eles são a escória. Você já leu alguma reportagem sobre uma partida que tivesse alguma semelhança com o jogo que você assistiu? Vê só a sacanagem que eles fizeram com Ally McLeod. Antes de irmos para a Argentina, o cara era um deus, o herói que ia ganhar a Copa do Mundo. E agora? Ele não serve mais para porra nenhuma. Se eles não conseguem acertar com uma coisa tão simples quanto o futebol, que chance nós temos de não termos o nosso depoimento distorcido?
- Adoro quando Esquisito acorda de bom humor - disse Ziggy. - Mas ele está certo, Alex. Melhor ficarmos na nossa. Daqui a pouco, eles passam para outra. - Ele mexeu o seu café e foi andando em direção à porta. - Vou terminar de fazer as minhas malas. É melhor calcularmos uma margem de segurança e sairmos mais cedo do que o normal. Vai ser difícil andar até lá na raça e, graças a Maclennan, nenhum de nós tem sapatos decentes. Eu nem acredito que estou desfilando por aí de galochas.
- Cuidado, hein, a patrulha da moda vai te pegar - Esquisito gritou para ele, enquanto Ziggy saía. Ele bocejou e se espreguiçou. - Cara, eu estou muito cansado. Alguém tem uma bolinha aí?
- Se tivéssemos, já teria ido privada abaixo há muito tempo - respondeu Mondo. - Esqueceu que os tiras reviraram tudo?
Esquisito parecia envergonhado.
- Foi mal, não estou conseguindo pensar direito. Sabe, quando eu acordei, quase consegui acreditar que ontem tudo aquilo não tinha passado de uma bad trip. O que faria com que eu largasse o ácido pro resto da vida, vou te contar. - Ele balançou a cabeça. - Coitada da garota.
Alex aproveitou a deixa para desaparecer escada acima e terminar de guardar os livros na mala. Não estava triste por estar voltando para casa. Pela primeira vez, desde que começara a morar com os outros três, sentia uma espécie de claustrofobia. Sonhava com o seu quarto, só para ele; uma porta que ele pudesse fechar e que ninguém ousaria abrir sem permissão.
Estava na hora de partir. As três malas e a mochila enorme de Ziggy já estavam empilhadas na sala. Os Garotos de Kirkcaldy estavam prontos para voltar para casa. Colocaram as bolsas no ombro e abriram a porta, Ziggy na frente. Mas, para a desgraça de todos, aparentemente o efeito das palavras duríssimas de Esquisito havia passado. Assim que puseram os pés para fora, cinco homens se materializaram, do nada. Três deles carregavam máquinas fotográficas e antes que os quatro percebessem o que estava acontecendo, o som de máquinas Nikon tirando fotos sem parar tornou-se ensurdecedor.
Os dois jornalistas davam cotoveladas nos fotógrafos, gritando perguntas. Eles pareciam estar numa entrevista coletiva, metralhando perguntas em uma velocidade espantosa. "Como vocês encontraram a moça?", "Qual de vocês fez a descoberta?", "O que estavam fazendo em Hallow Hill no meio da noite?", "Foi uma espécie de ritual satânico?" e, é claro, a inevitável "Como vocês estão se sentindo?".
- Fora daqui! - berrou Esquisito, protegendo-se com a sua bolsa pesada, como se fosse uma foice. - Não temos nada a declarar!
- Meu Deus, meu Deus, meu Deus - sussurrava Mondo, como se tivesse engolido um disco.
- Para dentro - gritou Ziggy. - Vamos entrar de novo.
Alex, que estava por último, deu meia-volta. Mondo entrou aos tropeções, quase caindo por cima de Alex na sua pressa de fugir da tortura dos flashes. Esquisito e Ziggy vieram logo atrás dele, fechando a porta depressa. Entreolharam-se, acossados e assustados.
- E agora? O que é que a gente vai fazer? - perguntou Mondo, fazendo a pergunta que estava na cabeça de todos eles. Estavam perplexos. As suas experiências de vida eram limitadas; aquela era uma situação que ultrapassava esse limite.
- Não podemos ficar aqui - continuou Mondo, impaciente. - Temos que voltar para Kirkcaldy. Começo a trabalhar no mercado amanhã às seis da manhã.
- Eu e Alex também - disse Esquisito. Todos olhavam para Ziggy, esperando uma solução.
- Certo. E se saíssemos pelos fundos?
- Não temos fundos, Ziggy. Só temos a porta da frente - apontou Esquisito.
- Tem a janela do banheiro. Vocês podem sair por lá e eu fico aqui. Vou ficar andando pela casa, acendendo umas luzes, coisas assim, para eles pensarem que ainda estamos aqui. Posso voltar pra casa amanhã, quando a poeira baixar.
Os outros três se entreolharam. Não era uma má ideia.
- Você vai ficar bem, sozinho? - perguntou Alex.
- Vou. Mas algum de vocês precisa avisar os meus pais, explicar por que eu ainda estou aqui. Não quero que eles fiquem sabendo pelos jornais.
- Eu ligo, pode deixar - ofereceu Alex. - Valeu, Ziggy.
Ziggy levantou o braço e os três repetiram o gesto. Eles entrelaçaram as mãos em um cumprimento familiar.
- Um por todos - disse Esquisito.
- E todos por um - repetiram os outros. Era sincero, como era há nove anos, quando o fizeram pela primeira vez. Desde que tropeçara sobre o corpo morto de Rosie Duff na neve, aquela era a primeira vez que Alex sentia uma espécie de consolo.
7
Alex caminhou penosamente pela ponte da estrada de ferro, virando à direita na Balsusney Road. Era como se Kirkcaldy fosse um país diferente. À medida que o ônibus foi abrindo o seu caminho sinuoso pela costa de Fife, a neve começou a derreter aos poucos. Agora, não passava de uma umidade gélida e pardacenta. O vento nordeste, ao chegar finalmente tão longe, já havia descarregado toda a sua neve e, àquelas alturas, já não tinha mais nada a oferecer às cidades mais protegidas acima do estuário, a não ser friorentas pancadas de chuva. Alex sentia-se como um daqueles camponeses infelizes de Breughel, arrastando-se exausto para casa.
Alex levantou o trinco do familiar portão de ferro retorcido e caminhou até a casa de pedra onde havia crescido. Tateou o bolso da calça, procurando as chaves, e entrou em casa. Uma onda de calor o envolveu. Haviam instalado o aquecedor central durante o verão e aquela era a primeira vez que Alex podia conferir a diferença que o aparelho fazia. Deixou cair a bolsa no chão, ao lado da porta, e gritou:
- Cheguei!
Sua mãe saiu da cozinha, enxugando as mãos em um pano de prato.
- Alex, que bom ter você de volta. Vem aqui na cozinha, tem sopa e cozido. Já tomamos chá, eu pensei que você fosse chegar mais cedo. Foi por causa do tempo? Eu vi na televisão que a coisa está feia por lá.
Ele deixou que as palavras dela o inundassem, o tom e a conversa familiares eram como um cobertor, protegendo-o. Tirou o casaco e cruzou a sala para lhe dar um abraço.
- Parece cansado, filho - disse ela, com um tom de preocupação na voz.
- Tive uma noite terrível, mãe - respondeu ele, seguindo-a de volta até a minúscula cozinha.
Da sala de estar, veio a voz do pai:
- É você, Alex?
- Sou eu, pai - gritou ele de volta. - Já vou até aí.
A mãe já estava providenciando um prato de sopa, entregando para ele a tigela e uma colher. Enquanto havia comida a ser servida, Mary Gilbey não podia prestar atenção a detalhes mais insignificantes como tristeza profunda.
- Vai lá e senta com o teu pai. Vou esquentar o cozido. Tem batata assada no forno.
Alex foi até a sala de estar, onde o pai estava sentado em uma poltrona, vidrado na televisão. Havia um lugar preparado para ele na mesa de jantar no canto da sala e Alex sentou-se com a sua sopa.
- Tudo bem, filho? - perguntou o pai, sem tirar os olhos do programa na televisão.
- Para falar a verdade, não.
Aquilo chamou a atenção do seu pai. Jock Gilbey virou-se e lançou um olhar perscrutador sobre o filho, do tipo que os professores gostam tanto de usar.
- Você não parece nada bem. O que está acontecendo?
Alex tomou uma colherada da sopa. Não estava com fome, mas assim que sentiu o gosto daquele autêntico caldo caseiro escocês, descobriu que estava faminto. A última vez que comera alguma coisa havia sido na festa, sendo que vomitara duas vezes. Tudo o que ele queria era encher a barriga, mas agora que tinha começado, teria que ir até o fim.
- Aconteceu uma coisa horrível ontem - disse ele, entre uma colherada e outra. - Assassinaram uma garota. E nós a encontramos. Quer dizer, fui eu, mas Ziggy, Esquisito e Mondo estavam comigo.
O pai olhava para ele, boquiaberto. A mãe tinha entrado na sala durante a parte final da revelação de Alex e pusera instantaneamente as mãos no rosto, os olhos arregalados, horrorizados.
- Oh, Alex, que coisa... Ah, pobrezinho - disse ela, apressando-se ao seu encontro e segurando a sua mão.
- Foi horrível. Ela foi esfaqueada. E ainda estava viva quando a encontramos. - Ele piscou com força. - Acabamos tendo que passar o resto da noite na delegacia. Eles levaram todas as nossas roupas e todo o resto, como se estivessem achando que temos alguma coisa a ver com o crime. Porque a gente conhecia a garota, sabe. Quer dizer, não conhecia de verdade. Ela era garçonete de um dos pubs aonde a gente sempre vai. - Lembrando de tudo, perdeu o apetite e deitou a colher no prato, abaixando a cabeça. As lágrimas se formaram no canto dos seus olhos e escorreram pelo seu rosto.
- Eu sinto muito, filho - acudiu o pai, na falta de algo mais adequado para dizer. - Deve ter sido um choque terrível.
Alex tentou engolir o bolo em sua garganta.
- Antes que eu me esqueça - disse ele, empurrando a cadeira para trás -, preciso ligar para o Sr. Malkiewicz e dizer a ele que Ziggy não vai chegar hoje.
Jock Gilbey arregalou os olhos, em choque.
- Prenderam ele na delegacia?
- Não, não foi nada disso - respondeu Alex, enxugando os olhos com as costas da mão. - Apareceram uns jornalistas na nossa porta lá em Fife Park, atrás de fotos e entrevistas. E a gente não queria falar com eles. Então eu, Esquisito e Mondo subimos até a janela do banheiro e saímos pelos fundos. Temos que começar a trabalhar amanhã no mercado, né? Mas como Ziggy não tem emprego, ele se ofereceu para ficar lá e vir só amanhã. Não queríamos deixar a janela aberta, entende? Então tenho que ligar para o pai dele e explicar.
Alex desvencilhou-se gentilmente do toque de sua mãe e foi até a sala. Pegou o fone e discou o número de Ziggy de cabeça. Tocou uma vez e, em seguida, ouviu o familiar sotaque polonês de Karel Malkiewicz. Lá vou eu de novo, pensou Alex. Ia ter que explicar a noite passada novamente. E tinha a impressão de que aquela não seria a última vez.
- É isso o que acontece quando você desperdiça as suas noites bebendo e fazendo sabe Deus o que mais - disse Frank Mackie amargamente. - Você acaba se metendo com a polícia. Eu sou um homem respeitado nesta cidade, você sabe disso. A polícia nunca bateu na minha porta. Mas basta um desmiolado como você para cairmos na boca do povo.
- Se nós não estivéssemos na rua até tarde, ela teria ficado lá até o dia clarear. Teria morrido abandonada - protestou Esquisito.
- Eu não tenho nada a ver com isso - respondeu o pai, atravessando a sala para servir-se de um copo de uísque. Havia instalado um bar na sala para impressionar os clientes que julgava respeitáveis o bastante para serem convidados até a sua casa. Ele achava de bom-tom para um contador exibir os frutos do seu sucesso. Tudo o que queria era que o filho mostrasse alguns sinais de ambição, mas, ao invés, havia colocado no mundo um inútil que passava as noites em pubs. O pior é que Tom tinha um dom para números. Mas em vez de direcioná-lo de maneira prática, escolhendo a contabilidade, ele havia preferido o inconsistente mundo da matemática pura. Como se esse pudesse ser o primeiro passo para o caminho da prosperidade e da decência. - Está decidido. Nada de sair à noite, rapaz. Nada de festas, nem pubs durante as férias. Você está preso no quartel. É do trabalho para casa e de casa para o trabalho.
- Mas, pai, é Natal! - protestou Esquisito. - Todo mundo vai sair, e eu quero encontrar os meus amigos.
- Você devia ter pensado nisso antes de ter arrumado problema com a polícia. Você vai ter provas esse ano. Aproveite para estudar. Um dia você ainda vai me agradecer por isso, sabia?
- Mas, pai...
- Essa é a minha última palavra sobre o assunto. Enquanto você morar debaixo do meu teto, enquanto eu estiver pagando a sua universidade, você vai fazer as coisas do meu jeito. Quando você começar a ganhar o seu dinheiro, aí então você pode criar as suas próprias regras. Até lá, vai fazer o que eu mandar. E agora, fora daqui!
Enfurecido, Esquisito saiu da sala bufando e subiu correndo as escadas. Meu Deus, pensou ele, como eu odeio essa família. E como odiava aquela casa. Raith Estate, onde moravam, era para ser a última palavra em modernidade, mas ele achava que aquela era outra ilusão criada pelos sujeitos de terno e gravata. Não precisava ser um gênio para perceber que aquele lugar não tinha nem comparação com a casa onde moravam antes. Paredes de pedra, portas de madeira maciça com revestimentos e molduras, vitral no patamar da escada. Aquilo sim era uma casa. Realmente, aquele caixote tinha mais quartos, mas eram minúsculos, o teto e as portas tão baixos que Esquisito tinha a impressão que teria de andar constantemente abaixado para acomodar o seu um metro e oitenta e três centímetros. As paredes também eram finas como papel. Dava para ouvir alguém soltando um pum no quarto do lado. O que, parando para pensar, era bem engraçado. Os seus pais eram tão reprimidos que seriam incapazes de conhecer uma emoção, mesmo que ela os mordesse no calcanhar. E, ainda assim, haviam gastado uma fortuna em uma casa que desnudava a privacidade de todos. Dividir um quarto com Alex era mais confortável do que viver debaixo do teto dos seus pais.
Por que nunca haviam feito o menor esforço para compreendê-lo? Sentia como se tivesse passado a vida se rebelando. Nenhum dos seus êxitos servia para quebrar o gelo, pois eles nunca se encaixavam nos limites estreitos dos sonhos dos seus pais. Quando foi campeão de xadrez da escola, o pai fez um muxoxo, insinuando que ele deveria ter se juntado ao time de bridge. Quando pediu para aprender a tocar um instrumento musical, o pai recusou sem rodeios, oferecendo-se para comprar um conjunto de tacos de golfe. Todo ano, quando ele ganhava o prêmio de matemática na escola, a reação do pai era comprar livros de contabilidade para ele, entendendo tudo errado. A matemática para Esquisito não tinha nada a ver com adição e subtração de números; era a beleza da curva de uma equação quadrática, a elegância do cálculo, a linguagem misteriosa da álgebra. Se não fosse pelos seus amigos, ele se sentiria um completo anormal. Eles lhe deram um espaço para desabafar com segurança, uma chance de abrir as suas asas e levantar voo, sem medo de se espatifar no chão.
E ele havia retribuído da pior maneira possível. A culpa o atingia em cheio quando recordava a sua última loucura. Daquela vez, tinha ido longe demais. Tudo começara como uma brincadeira, furtando o carro de Henry Cavendish. Ele não fazia ideia do que aconteceria depois. Sabia muito bem que nenhum dos outros três poderia salvar a sua pele se alguém descobrisse sobre o carro. Só esperava não prejudicar ninguém, caso isso acontecesse.
Colocou a sua nova fita cassete do Clash no toca-fitas e atirou-se na cama. Ia ouvir o lado A e depois se preparar para dormir. Tinha que estar de pé às cinco da manhã para encontrar Alex e Mondo e pegar no batente no supermercado. Normalmente, teria ficado deprimido com a perspectiva de ter de se levantar tão cedo. Mas do jeito que as coisas estavam, seria um alívio sair de casa, uma bênção poder fazer algo que fizesse com que a sua mente parasse de girar em círculos. Nossa, pensou ele, eu daria tudo por um baseado.
Pelo menos a brutalidade emocional do pai havia deixado as lembranças de Rosie Duff de lado. Quando Joe Strummer começou a cantar "Julie’s in the Drug Squad", ele já estava dormindo profundamente, mergulhado em um sono sem sonhos.
Karel Malkiewicz dirigia como um velho, na melhor das hipóteses. Hesitante, devagar e totalmente imprevisível nos entroncamentos. Também só dirigia quando o tempo estava bom. Em circunstâncias normais, ao primeiro sinal de neblina ou geada, ele guardava o carro e descia a pé a ladeira íngreme da Massareene Road até Bennochy, onde tomava o ônibus até a Factory Road, onde ficava o seu local de trabalho. Trabalhava como eletricista no setor de revestimento de pisos. Já fazia um bom tempo desde o desaparecimento da nuvem de óleo de linhaça que rendera à cidade a reputação de ter um "cheiro esquisito", mas embora o linóleo tivesse saído de moda, o que era produzido na fábrica de Nairn ainda revestia o piso de milhares de cozinhas, banheiros e ambientes híbridos. E ele proporcionara a Karel Malkiewicz uma vida decente desde que saíra da Força Aérea Britânica após a guerra, e por isso ele era bastante grato.
O que não significava que ele havia esquecido os motivos pelos quais deixara Cracóvia. Ninguém podia sobreviver à atmosfera tóxica de desconfiança e perfídia sem cicatrizes, muito menos um judeu polonês que tivera a sorte de escapar antes do massacre que o deixou sem família.
Ele teve de reconstruir a vida, criar uma nova família. Seus pais não haviam sido especialmente ortodoxos, de modo que ele não se sentiu órfão da sua antiga religião. Não havia judeus em Kirkcaldy, lembrava que alguém lhe dissera isso alguns dias depois da sua chegada na cidade. A mensagem era clara: "É assim que preferimos." E ele dançou conforme a música, chegando ao extremo de se casar na Igreja Católica. Aprendera a sentir-se em casa naquela terra insular que o acolhera. Surpreendera-se com o arrebatado orgulho possessivo que sentira quando da recente escolha do papa polonês. Raramente sentia-se polonês.
Estava beirando os quarenta quando o filho que tanto sonhara finalmente veio ao mundo. Era motivo de alegria, mas também uma renovação do seu medo. Agora tinha muito mais a perder. Aquele era um país civilizado, os fascistas jamais fariam carreira ali. Pelo menos, era isso o que todos pensavam. Mas a Alemanha também fora um país civilizado. Era impossível prever o que poderia acontecer a qualquer país onde o número de desabrigados alcançasse uma massa crítica. Qualquer um que prometesse salvação encontraria seguidores.
E, ultimamente, havia bons motivos para o medo. A Frente Nacional avançava furtivamente na moita política. Greves e tumultos industriais estavam irritando o governo. A campanha de bombardeios do IRA dava aos políticos todas as desculpas de que precisavam para a introdução de medidas repressoras. E ainda havia aquela vaca insensível que comandava o partido conservador, falando que os imigrantes afundavam a cultura nativa. De fato, as sementes estavam todas presentes.
Então, quando Alex Gilbey ligou e contou a ele que o seu filho passara a noite em uma delegacia, Karel Malkiewicz não teve outra escolha. Queria o filho debaixo do seu teto, debaixo da sua asa. Ninguém tinha o direito de levá-lo embora no meio da noite. Agasalhou-se e instruiu a mulher para que ela preparasse um cantil com uma sopa bem quente e um embrulho com sanduíches. E partiu estrada afora para buscar o filho e trazê-lo de volta para casa.
Demorou quase duas horas, em uma viagem penosa até St. Andrews no seu velho Vauxhall. Mas ficou aliviado ao ver as luzes acesas na casa que Sigmund dividia com os amigos. Estacionou o carro, apanhou o seu farnel e caminhou até a entrada.
Bateu na porta e, a princípio, não houve resposta. Andando com cuidado sobre a neve, olhou pela janela para dentro da cozinha acesa. Estava vazia. Bateu na janela e gritou:
- Sigmund! Abra a porta, meu filho. Sou eu, o seu pai!
Ouviu então um barulho de pés descendo em tropel pela escada abaixo. A porta se abriu para revelar o seu belo filho, sorrindo de orelha a orelha, os braços abertos em acolhida.
- Pai! - exclamou ele, pisando descalço para fora de casa para abraçá-lo. - Não esperava o senhor aqui!
- Alex me ligou. E eu não queria que você ficasse aqui sozinho. Então, vim te buscar. - Karel apertou o filho contra si, sentindo a borboleta do medo batendo as asas dentro do seu peito. O amor, pensou ele, era uma coisa terrível.
Mondo estava sentado de pernas cruzadas na cama, convenientemente perto do seu toca-discos. Estava ouvindo, sem parar, o seu tema pessoal, "Shine On, You Crazy Diamond". As guitarras arrebatadoras, a dolorosa angústia na voz de Roger Waters, os sintetizadores dolentes e o saxofone ofegante forneciam a trilha sonora perfeita para abstrair a realidade.
E isso era exatamente o que ele queria fazer. Havia escapado da preocupação sufocante da mãe, que o asfixiara assim que ele explicou o que havia acontecido. Até que fora agradável no início, o casulo familiar de preocupação girando à sua volta. Mas, aos poucos, aquilo começou a sufocar e ele pediu licença, alegando que precisava ficar sozinho. A estratégia Greta Garbo sempre funcionava com sua mãe, que o julgava um intelectual porque ele lia livros em francês. Ela parecia não notar que aquilo era o que qualquer um que estava estudando a matéria com fins de graduação fazia.
Ainda bem, para falar a verdade. Ele não sabia nem como começar a explicar o turbilhão de emoções que ameaçava engoli-lo. A violência era algo desconhecido para ele, uma língua estrangeira da qual não conhecia nem a gramática, nem o vocabulário. Ter se confrontado recentemente com ela havia deixado Mondo sentindo-se abalado e estranho. Não podia dizer sinceramente que lamentava a morte de Rosie; ela o humilhara mais de uma vez na frente dos seus amigos quando ele tentou lhe passar cantadas que haviam funcionado com outras garotas. O que lamentava era o fato de sua morte ter feito com que ele despencasse em um lugar desconfortável, ao qual não pertencia.
Estava precisando mesmo era de sexo. Isso apagaria os horrores da noite anterior da sua mente. Funcionaria como uma espécie de terapia. Seria como voltar aos eixos. Infelizmente, não dispunha de uma namorada em Kirkcaldy. Talvez devesse dar alguns telefonemas. Uma ou duas das suas ex-namoradas ficariam mais do que satisfeitas em renovar os laços com ele. Elas poderiam oferecer um ombro amigo para ele chorar as suas mágoas e o ajudariam a superar os seus problemas, pelo menos até o final das férias. Talvez a Judith. Ou a Liz. É, provavelmente a Liz. As gordinhas ficavam sempre pateticamente agradecidas diante da possibilidade de um encontro, elas cediam sem o menor esforço. Só de pensar, já tinha uma ereção.
Justo quando estava prestes a levantar-se da cama e descer para fazer a ligação, bateram na sua porta.
- Pode entrar - disse ele, suspirando exausto, perguntando-se o que a mãe ainda queria. Mudou de posição para esconder a sua ereção em estágio inicial.
Mas não era a mãe. Era a sua irmã de quinze anos, Lynn.
- Mamãe achou que você podia estar querendo uma Coca - disse ela, estendendo um copo para ele.
- Na verdade, estou querendo outras coisas - respondeu ele.
- Você deve estar arrasado mesmo - disse Lynn. - Não consigo nem imaginar como deve ter sido.
Na ausência de uma namorada, tinha de se contentar em impressionar a sua irmã mesmo.
- Foi muito difícil - disse ele. - Não gostaria de ter que passar por isso de novo tão cedo. E os policiais eram uns homens da caverna imbecis. Por que sentiram necessidade de nos interrogar como se fôssemos do esquadrão de bombas do IRA, eu nunca vou saber. Foi preciso muita coragem para encarar, podes crer.
Por algum motivo, Lynn não estava lhe dando a adoração e apoio estouvados que ele merecia. Ela encostou na parede, com cara de quem estava esperando uma pausa na conversa para colocar para fora o que estava passando na sua cabeça.
- É, imagino como foi - disse ela, mecanicamente.
- É provável que sejamos interrogados mais vezes - acrescentou ele.
- Deve ter sido barra para o Alex. Como ele está?
- Gilly? Bem, ele está longe de ser o Senhor Indefeso. Ele vai superar.
- Alex é muito mais sensível do que você imagina - defendeu ela, veemente. - Só porque ele jogava rúgbi, vocês acham que ele é só músculos e que não tem coração. Ele deve estar realmente arrasado, principalmente porque conhecia a garota.
Mondo xingou por dentro. Por um momento, havia esquecido da paixonite de sua irmã por Alex. Ela não estava ali para lhe oferecer Coca-Cola simpatia, estava ali para ter um pretexto para falar sobre Alex.
- Sorte dele não ter conhecido a garota como gostaria.
- Como assim?
- Ele era gamadão nela. Chegou até a chamá-la pra sair. Se ela tivesse aceitado, pode apostar que Alex ia ser o suspeito número um.
Lynn ficou ruborizada.
- Você está inventando. Alex não ia sair por aí caçando garçonetes.
Mondo deu um sorrisinho cruel.
- Ah não, é? Acho que você não conhece o seu querido Alex tão bem quanto pensa.
- Você é um monstro, sabia? Por que está falando desse jeito horrível do Alex? Ele é um dos seus melhores amigos!
Ela bateu a porta com força, deixando a pergunta no ar. Por que estava falando daquele jeito horrível de Alex, quando normalmente não abriria a boca para falar mal dele?
Aos poucos, começou a perceber que, lá no fundo, culpava Alex por toda aquela confusão. Se tivessem seguido reto pelo caminho, outra pessoa teria encontrado o corpo de Rosie Duff. Outra pessoa teria ficado lá, ouvindo os seus últimos suspiros prolongando-se exaustivamente. Outra pessoa estaria marcada pelas horas passadas numa cela na delegacia.
Se ele agora era suspeito em uma investigação de homicídio, a culpa era de Alex, com certeza. Mondo contorceu-se desconfortavelmente diante daquele pensamento. Tentou evitá-lo, mas sabia que não conseguiria fechar a caixa de Pandora. Uma vez plantada a ideia, não poderia ser arrancada pela raiz e deixada de lado, até murchar. Não era a hora de dar vazão a ideias como aquela, que acabariam criando um abismo entre eles. Eles agora precisavam um do outro mais do que nunca. Mas era um fato inegável. Não estaria naquela enrascada se não fosse por Alex.
E se a coisa piorasse? Não havia como negar que Esquisito andara passeando com a Land Rover durante boa parte da noite. Ele levara várias garotas para dar uma voltinha, tentando impressioná-las. E não tinha um álibi decente, assim como Ziggy, que saíra de fininho e escondera o carro em um local onde Esquisito não pudesse encontrar. Assim como o próprio Mondo. O que dera nele, pegando a Land Rover emprestada para levar a garota para casa em Guardbridge? Uma rapidinha no banco de trás não valeria o transtorno, caso alguém lembrasse dela na festa. Se a polícia começasse a fazer perguntas para os outros convidados, alguém ia acabar entregando eles. Por mais que os estudantes professassem desprezo às autoridades, alguém ia amarelar e abrir o bico. E começariam as acusações.
De repente, culpar Alex parecia uma das suas menores preocupações. À medida que recordava os acontecimentos dos últimos dias, Mondo lembrou-se de algo que vira, tarde da noite. Algo que podia ajudá-lo a livrar a sua cara. Algo que, por ora, haveria de guardar consigo mesmo. Não queria mais saber de um por todos e todos por um. Tinha mais era que salvar a própria pele. Os outros que cuidassem dos seus próprios interesses.
8
Maclennan entrou e fechou a porta. Com a policial Janice Hogg lá dentro com ele, o quarto parecia claustrofóbico, a inclinação do teto enclausurando-os. Aquele era o elemento mais lamentável da morte súbita, pensou ele. Ninguém tem a oportunidade de voltar e fazer uma limpeza, de apresentar ao mundo a imagem que gostaria de deixar. Eles têm de se contentar com o que deixaram para trás na última vez em que fecharam a porta. Ele já vira alguns quadros tristes, mas poucos comoventes como aquele.
Alguém havia se dado ao trabalho de tornar aquele quarto iluminado e alegre, apesar da parca luminosidade que penetrava pela janela estreita da mansarda, que dava para a rua. Podia ver St. Andrews a distância, ainda parecendo esbranquiçada por causa da neve da véspera, embora ele soubesse que a verdade era outra. As calçadas já estavam imundas com a neve derretida e lamacenta, e as estradas, um atoleiro escorregadio de areia e água. Para além da cidade, a mancha acinzentada do mar derretia-se imperceptivelmente no céu. Devia ser uma bela vista no verão, pensou ele, voltando-se para o papel de parede com textura granular e desenhos de magnólia e a colcha bordada, onde o lugar no qual Rosie havia se sentado ainda estava amarfanhado. Havia somente um pôster na parede. Um grupo chamado Blondie, com uma cantora peituda fazendo beicinho, usando uma saia incrivelmente curta. Seria aquele o sonho de Rosie?, ele se perguntava.
- Por onde devo começar, senhor? - perguntou Janice, olhando para o armário e a penteadeira da década de 50, que haviam sido pintados de branco numa tentativa de deixá-los mais modernos. Havia uma pequena mesa de cabeceira, com apenas uma gaveta. Fora isso, o único lugar onde poderiam encontrar algo escondido era em um cesto de roupa suja atrás da porta, ou na lixeirinha de metal debaixo da penteadeira.
- Comece pela penteadeira - disse ele. Assim, não precisaria lidar com a maquiagem que jamais seria usada novamente, o sutiã e as calcinhas velhas enfiadas lá no fundo da gaveta, para emergências de lavanderia que nunca haviam ocorrido. Maclennan conhecia os seus pontos fracos e preferia não atiçá-los, sempre que possível.
Janice sentou-se ao pé da cama, onde Rosie deveria ter se sentado para ver-se no espelho e aplicar a sua maquiagem. Maclennan foi até a penteadeira e abriu uma gaveta. Lá dentro havia um livro bem grosso, chamado O Último Refúgio, e Maclennan lembrou que aquele era exatamente o tipo de livro que a sua ex-mulher usava para mantê-lo afastado na cama. "Estou lendo, Barney", ela dizia em um tom de sofrimento resignado, sacudindo um livro que mais parecia um peso de porta no seu nariz. Não conseguia compreender a relação entre as mulheres e os livros. Levantou o romance, tentando não observar Janice explorando sistematicamente as outras gavetas. Embaixo do livro, havia um diário. Recusando-se a um otimismo precipitado, Maclennan o apanhou.
Se estivesse esperando confissões, teria ficado decepcionado. Rosie Duff não era uma garota do tipo "Querido Diário". As páginas listavam os seus turnos no Lammas, aniversários da família e dos amigos e eventos sociais como "Festa do Bob", "Farra da Julie". Algumas datas estavam marcadas com hora e local e a palavra "Ele", seguida por um número. Havia passado pelo 14, 15 e 16 no último ano; 16 sendo, obviamente, o mais recente. "Ele" apareceu em fevereiro e logo se tornou um habitué, duas ou três vezes por semana. Sempre depois do trabalho, pensou Maclennan. Teria de voltar ao Lammas e perguntar se alguém havia visto Rosie encontrando um sujeito depois do expediente. Perguntava-se por que se encontravam nesse horário, em vez de nas folgas de Rosie ou durante o dia, quando ela não estava trabalhando. Um dos dois parecia determinado a manter em segredo a sua identidade.
Olhou para Janice.
- Alguma coisa?
- Nada especial. Coisas que mulheres compram para si mesmas. Nada daquelas coisas cafonas compradas pelos homens.
- Homens compram coisas cafonas?
- Receio que sim, senhor. Renda que pinica, náilon que faz a gente suar. O que os homens querem que as mulheres usem, mas que jamais escolheriam para eles próprios.
- Deve ser aí que eu venho errando, todos esses anos. Eu realmente deveria estar comprando calçolas na Marks and Spencer.
Janice sorriu.
- A gratidão vai longe, senhor.
- Algum sinal de que ela estava tomando pílula anticoncepcional?
- Nada, até agora. Talvez Brian estivesse falando sério quando disse que ela era uma garota certinha.
- Nem tanto. De acordo com o legista, ela não era virgem.
- Existem outras maneiras de se perder a virgindade, senhor - salientou Janice, sem muita coragem para colocar em dúvida um legista que todo mundo sabia estar mais interessado no próximo drinque e na aposentadoria do que em quem ia parar na sua maca.
- É verdade. E as pílulas devem estar na bolsa dela, que ainda não foi encontrada. - Maclennan suspirou e fechou a gaveta que continha o livro e o diário. - Vou dar uma olhada no armário.
Meia hora depois, teve de admitir que Rosie Duff não era do tipo que escondia o ouro. O seu armário continha roupas e sapatos, todos em estilos modernos. Em um canto, havia uma pilha de livros baratos, gordos tijolos de papel que prometiam, na mesma medida, uma vida glamourosa, rica e plena de amor.
- Estamos perdendo o nosso tempo aqui - disse ele.
- Ainda falta uma gaveta. Por que o senhor não dá uma olhada no porta-joias? - Janice entregou a ele uma caixinha em formato de baú de tesouro, revestida de napa branca. Ele suspendeu o fecho de metal e abriu a tampa. A parte superior continha uma seleção de brincos, de diversas cores. A maioria era grande e chamativa, mas não pareciam caros. Na bandeja inferior, havia um relógio Timex infantil, algumas correntes de prata barata e alguns broches de fantasia; um imitava um trabalho de tricô, com agulhas de miniatura; o outro, um peixe voador; e o terceiro, uma criatura esmaltada e lustrosa que parecia ser um gato de outro planeta. Era difícil apurar algo significativo a partir daquele conteúdo.
- Ela gostava de brincos - concluiu ele, fechando a caixa. - Seja lá quem estivesse saindo com ela, não era do tipo que dá joias caras de presente.
Janice alcançou o fundo da gaveta e sacou lá de trás um maço de fotografias. Ao que parecia, Rosie havia atacado o álbum de família e feito a sua própria seleção. Era um típico apanhado de fotos familiares: uma foto do casamento dos pais, Rosie e os irmãos crescendo, fotos sortidas que cobriam as últimas três décadas, algumas fotos de bebês e alguns instantâneos de Rosie com colegas de escola, fazendo careta para a câmera com os seus uniformes de madras. Nada de fotos instantâneas de cabine com os seus namorados. Para falar a verdade, nada de namorados. Maclennan folheou-as rapidamente e depois as colocou de volta no maço.
- Janice, vamos ver se achamos alguma coisa um pouquinho mais produtiva para fazer. - Deu uma última olhada ao redor do quarto que havia lhe contado bem menos do que ele esperava sobre Rosie Duff. Uma garota que sonhava com uma realidade mais glamourosa. Uma garota introspectiva, discreta. Uma garota que levara os seus segredos para o túmulo, provavelmente protegendo o seu assassino no processo.
Quando estavam voltando de carro para St. Andrews, o rádio de Maclennan estalou. Ele mexeu nos botões, tentando encontrar sinal. Alguns segundos depois, a voz de Burnside surgiu, alta e clara. Ele parecia animado:
- Senhor, acho que encontramos uma coisa.
Alex, Mondo e Esquisito haviam cumprido o seu turno empilhando produtos nas prateleiras do mercado de cabeça baixa, torcendo para que ninguém os reconhecesse da primeira página do jornal Daily Record. Compraram uma pilha de jornais e caminharam pela High Street até o café que costumavam frequentar quando eram adolescentes.
- Sabia que um a cada dois adultos na Escócia lê o Record? - comentou Alex, melancólico.
- E o outro não sabe ler - respondeu Esquisito, olhando para a foto surpresa dos quatro na porta de casa. - Meu Deus, olha só a nossa cara. Dava no mesmo se tivessem colocado em letras garrafais "Canalhas mentirosos suspeitos de estupro e assassinato". Qualquer pessoa que vir essa foto vai achar que somos culpados.
- É, realmente não posso dizer que essa é a minha melhor foto - disse Alex.
- Mas você se deu bem, você estava lá trás, a gente mal vê a sua cara. E Ziggy está virado de costas. Eu e Esquisito é que ficamos de frente - reclamou Mondo. - Vamos ver o que saiu nos outros jornais.
Uma foto parecida apareceu no Scotsman, no Glasgow Herald e no Courier, mas, por sorte, nas páginas internas. O crime saiu na primeira página de todos, com exceção do Courier. Nada tão insignificante quanto um assassinato poderia tomar o lugar dos preços das ações e dos anúncios na página principal.
Ficaram sentados, bebericando os seus cafés espumosos, lendo as matérias em silêncio.
- Acho que podia ser pior - comentou Alex.
Esquisito fez uma expressão de incredulidade.
- Pior, como?
- Pelo menos eles escreveram os nossos nomes direito. Até mesmo o de Ziggy.
- Grandes merdas. Admito que eles se seguraram para não nos chamar de suspeitos. Mas é só isso o que a gente pode dizer a favor deles. Isso aqui passa uma péssima imagem da gente, Alex. Você sabe disso.
- Todo mundo que a gente conhece vai ver esses jornais - disse Mondo. - Todo mundo vai nos encher o saco por causa disso. Se esses são os meus quinze minutos de fama, podem ir para o inferno.
- Todo mundo ia ficar sabendo mesmo, de qualquer jeito - disse Alex. - Você sabe como é essa cidade, conhece a mentalidade provinciana das pessoas. Ninguém tem mais o que fazer, a não ser ficar fofocando sobre os vizinhos. Não precisa de jornal para espalhar as notícias por aqui. O lado bom é que metade da universidade mora na Inglaterra, então não vão nem ficar sabendo a respeito. E quando voltarmos para lá, depois do Ano-Novo, a história já vai ter morrido.
- Você acha? - Esquisito fechou o Scotsman com um ar de conclusão. - Vou te dizer uma coisa, a gente tem mais é que rezar para Maclennan descobrir logo quem fez isso e prender o sujeito.
- Por quê? - perguntou Mondo.
- Porque senão vamos ficar conhecidos pro resto da vida como os caras que conseguiram se safar de um assassinato.
Mondo tinha a expressão de um homem que havia acabado de saber que tinha um câncer terminal.
- Você está falando sério?
- Nunca falei tão sério na minha vida - disse Esquisito. - Se eles não prenderem ninguém pelo assassinato de Rosie, as pessoas só vão lembrar que fomos nós quatro que passamos a noite na delegacia. É óbvio, cara. Vamos receber um veredicto que não pode ser provado, sem irmos a julgamento. "Todo mundo sabe que foram eles, a polícia só não conseguiu provar" - acrescentou ele, imitando uma voz de mulher. - Acorda, Mondo, você nunca mais vai conseguir trepar novamente. - Ele riu, perverso, sabendo que havia atingido o calcanhar de aquiles do amigo.
- Vá se foder, Esquisito. Pelo menos, vou ter do que me lembrar - rebateu Mondo.
Antes que algum deles pudesse dizer mais alguma coisa, foram interrompidos por uma chegada inesperada. Ziggy surgiu diante deles, sacudindo o cabelo molhado de chuva.
- Achei que encontraria vocês aqui - disse ele.
- Ziggy, Esquisito está falando que... - começou Mondo.
- Deixe isso pra lá. Maclennan está aqui. Quer conversar com nós quatro de novo.
Alex ergueu as sobrancelhas.
- Ele quer levar a gente de volta pra St. Andrews?
Ziggy fez um gesto negativo com a cabeça.
- Não. Está aqui em Kirkcaldy. Quer que a gente encontre com ele na delegacia local.
- Merda - disse Esquisito. - O meu pai vai enlouquecer. Era para eu estar de castigo. Ele vai achar que eu estou mandando um foda-se para ele. Não dá pra dizer que fui parar na delegacia.
- Agradeçam ao meu pai por não termos que voltar para St. Andrews - disse Ziggy. - Ele ficou furioso quando Maclennan apareceu lá em casa. Fez um escândalo, acusou de estar nos tratando como criminosos, quando na verdade fizemos o possível para salvar Rosie. Teve uma hora que eu cheguei a achar que o meu pai ia bater nele com o jornal. - Ele sorriu. - Fiquei orgulhoso dele.
- Mandou bem - disse Alex. - Então, onde está Maclennan?
- Lá fora, no carro dele. Com o carro do meu pai estacionado do lado. - Ziggy sacudiu os ombros em uma gargalhada. - Acho que Maclennan nunca se deparou com alguém como o meu velho.
- Então temos que ir pra delegacia agora? - perguntou Alex.
Ziggy assentiu com a cabeça.
- Maclennan está nos esperando. Ele disse que o meu pai pode nos levar até lá, mas que não está a fim de perder tempo por aqui.
Dez minutos depois, Ziggy estava sentado a sós em uma sala de interrogatório. Quando chegaram à delegacia, Alex, Esquisito e Mondo foram levados para uma outra sala de interrogatório, sob o olhar atento de um guarda. Karel Malkiewicz havia sido abandonado sem cerimônia na recepção e Maclennan havia lhe dito, abruptamente, que esperasse por lá. E Ziggy havia sido levado para dentro, escoltado por Maclennan e Burnside, que o deixara mofando na sala, esperando.
Eles sabem o que estão fazendo, pensou ele, pesaroso. Deixá-lo isolado daquele jeito era a melhor receita para torná-lo inquieto. E estava funcionando. Embora não demonstrasse nenhum sinal aparente de tensão, Ziggy sentia-se tenso como uma corda de piano, vibrando de ansiedade. Os cinco minutos mais longos da sua vida chegaram ao fim quando os dois detetives reapareceram e sentaram-se diante dele.
Os olhos de Maclennan queimavam os seus, o seu rosto delgado enrijecido em um esgar de emoção reprimida.
- Mentir para a polícia é coisa séria - disse ele, sem preâmbulos, a voz entrecortada e rude. - Não é crime, mas também nos faz pensar o que exatamente você tem a esconder. Você teve uma noite toda para pensar direitinho. Gostaria de revisar o seu depoimento anterior?
Ziggy sentiu no peito o choque de um gélido espasmo de medo. Eles sabiam de alguma coisa. Estava na cara. Mas o quê? Não disse nada, esperando que Maclennan prosseguisse.
Maclennan abriu a sua pasta e retirou a folha com impressões digitais que Ziggy assinara na véspera.
- Essas são as suas impressões digitais?
Ziggy fez um gesto afirmativo com a cabeça. Sabia o que estava por vir.
- Você pode nos explicar como elas apareceram no volante e na marcha de uma Land Rover, registrada em nome de um Sr. Henry Cavendish, encontrada abandonada essa manhã no estacionamento de uma unidade industrial em Largo Road, St. Andrews?
Ziggy fechou os olhos por um momento.
- Sim, eu posso. - Fez uma pausa, tentando organizar os seus pensamentos. Havia ensaiado aquela conversa na cama pela manhã, mas todas as suas falas o abandonaram diante daquela realidade assustadora.
- Estou esperando, Sr. Malkiewicz.
- A Land Rover pertence a um dos estudantes que dividem a casa conosco. Nós a pegamos emprestada ontem à noite, para irmos à festa.
- Pegaram emprestada? Quer dizer que o Sr. Cavendish lhes deu permissão para sair por aí com a Land Rover dele? - avançou Maclennan, recusando-se a deixar Ziggy alcançá-lo.
- Não, não exatamente - Ziggy desviou o olhar de Maclennan, incapaz de encará-lo. - Olha, eu sei que não fizemos bem em pegar o carro, mas não foi nada de mais. - Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy soube que tinha falado uma besteira.
- Isso é crime. E tenho certeza de que você está ciente disso. Então, vocês furtaram a Land Rover e a levaram para a festa. Isso não explica como ela foi parar onde nós a encontramos.
A respiração de Ziggy agitava-se no peito, como uma mariposa enclausurada.
- Eu a levei até lá, por segurança. Estávamos bebendo e eu não queria que nenhum de nós se sentisse tentado a dirigi-la bêbado.
- Quando foi exatamente que você a levou para lá?
- Não sei ao certo. Provavelmente, entre uma e duas horas da manhã.
- Você já devia ter bebido bastante também, a essas alturas. - Maclennan ia de vento em popa, os ombros projetados para a frente, conforme avançava no interrogatório.
- Provavelmente já tinha passado do meu limite, sim. Mas...
- Outro crime. Então você mentiu quando disse que não havia saído da festa? - Os olhos de Maclennan eram como sondas cirúrgicas.
- Estive fora apenas tempo suficiente para levar a Land Rover e voltar a pé. Talvez uns vinte minutos.
- Isso é o que você diz. Conversamos com algumas pessoas que estavam na festa e parece que você não foi muito visto, não. Acho que esteve fora bem mais do que isso. Acho que você encontrou Rosie Duff no caminho e lhe ofereceu uma carona.
- Não!
Maclennan prosseguiu, implacável.
- E aconteceu alguma coisa que deixou você irritado e você a estuprou. Aí percebeu que ela poderia destruir a sua vida se procurasse a polícia. Você entrou em pânico e matou a moça. Sabia que teria que se livrar do corpo, mas como estava com a Land Rover, isso não seria nada de mais. Aí você removeu todos os vestígios de sangue e voltou para a festa. Não foi isso o que aconteceu?
Ziggy balançou a cabeça.
- Não. O senhor entendeu tudo errado. Não encontrei com ela, não encostei nela. Só me livrei do carro antes que alguém sofresse um acidente.
- O que aconteceu com Rosie Duff não foi um acidente. E você foi o responsável.
O medo produzira um rubor em sua face. Passou as mãos no cabelo.
- Olha, o senhor precisa acreditar em mim. Não tive nada a ver com a morte dela.
- E por que eu deveria acreditar em você?
- Porque estou dizendo a verdade.
- Não. O que você está me contando é uma nova versão dos fatos, que cobre o que você acha que eu sei. Isso não tem nada a ver com a verdade.
Fez-se um longo silêncio. Ziggy trincou a mandíbula, sentindo os músculos protuberantes nas suas bochechas.
Maclennan tornou a falar. Dessa vez, o seu tom de voz era mais suave.
- Vamos descobrir o que aconteceu. Você sabe disso. Enquanto conversamos, uma equipe de peritos experientes está analisando cada centímetro daquele carro. Se encontrarmos um pinguinho de sangue, um fio de cabelo de Rosie ou uma única fibra das suas roupas, você vai ficar um bom tempo sem dormir na sua cama. Você poderia poupar o seu sofrimento e o de seu pai agora, contando tudo de uma vez.
Ziggy quase deu uma gargalhada. Era uma jogada tão transparente que deixava flagrante a falta de trunfos na mão de Maclennan.
- Não tenho mais nada a dizer.
- Faça como quiser, filho. Vou prender você por se apoderar e dirigir um veículo sem o consentimento do dono. Você será solto sob fiança e terá que se apresentar na delegacia em uma semana. Sugiro que arrume um advogado, Sr. Malkiewicz.
Esquisito seria o próximo, inevitavelmente. Só podia ser a Land Rover, concluiu ele enquanto esperava, sentado em silêncio na sala de interrogatório. Tudo bem, disse a si mesmo. Contaria a verdade, assumiria a culpa. Não deixaria que os outros se prejudicassem por causa da sua inconsequência. Não o mandariam para a cadeia, não por causa de algo assim tão insignificante. Teria de pagar uma multa e ele daria um jeito de pagar. Poderia arrumar um trabalho de meio expediente. E depois, não havia muito problema em ser um matemático com ficha criminal.
Estava sentado diante de Maclennan e Burnside, com uma postura desleixada e um cigarro pendurado no canto da boca, tentando parecer descontraído.
- Como posso ajudar os senhores? - perguntou ele.
- A verdade seria um bom começo - disse Maclennan. - De alguma maneira, você parece ter esquecido que andou saracoteando por aí em uma Land Rover, quando, supostamente, estava numa festa.
Esquisito abriu as mãos com um gesto.
- Aí você me pegou. Foi apenas o ato de um jovem bem-humorado, senhor.
Maclennan bateu com as mãos na mesa.
- Isso aqui não é brincadeira, rapaz! Houve um assassinato! Então pare de bancar o engraçadinho.
- Mas é verdade, sério. Veja bem, o tempo estava uma merda. Os caras tinham ido na frente para o Lammas enquanto eu terminava de lavar os pratos. Eu estava parado na cozinha, olhando para a Land Rover lá fora e pensei assim: por que não? Henry tinha voltado para a Inglaterra mesmo e não ia fazer mal a ninguém se eu pegasse o carro emprestado por algumas horas. Então, eu peguei e fui até o pub. Os caras ficaram putos comigo, mas quando viram que a neve estava braba, reconheceram que não era uma má ideia, afinal. Então fomos pra festa. Mais tarde, Ziggy levou o carro embora, para impedir que eu fizesse alguma besteira. - Ele deu de ombros. - Sério. Não falamos nada antes porque não queríamos que o senhor perdesse o seu tempo com uma bobagem.
Maclennan olhava fixamente para ele.
- Estou perdendo o meu tempo com você agora. - Ele abriu a sua pasta. - Temos aqui o depoimento de Helen Walker, dizendo que você a convenceu a dar uma volta de carro. Segundo ela, você estava tentando agarrá-la enquanto dirigia. A sua direção tornou-se tão caótica que a Land Rover derrapou e atolou na calçada. Ela pulou para fora do carro e correu de volta para a festa. Ela disse, e estou lendo agora, "ele estava descontrolado".
Esquisito fez uma careta, batendo a cinza de cigarro que caíra no seu blusão.
- Que garota idiota - disse ele, a voz menos confiante do que as palavras.
- O quão descontrolado você estava, filho?
Esquisito ensaiou um riso.
- Mais uma das suas perguntas capciosas. Olha, tudo bem, eu assumo que estava meio empolgado demais, sim. Mas existe uma grande diferença entre se divertir com um carro emprestado e matar uma pessoa.
Maclennan olhou para ele com desprezo.
- Essa é a sua ideia de diversão? Molestar uma moça e assustá-la a ponto de ela preferir correr pela nevasca a ficar sentada em um carro com você? - Esquisito desviou o olhar, suspirando. - Você deve ter ficado furioso. Leva uma mulher para dentro do seu carro furtado, acha que vai impressioná-la e conseguir algo com ela, mas, ao invés, ela sai correndo. Aí, o que acontece? Você vê Rosie na neve e acha que a sua mágica vai funcionar com ela. Só que ela não quer saber disso, repele você o quanto pode, mas você a subjuga. E aí você perde o controle, porque sabe que ela pode destruir a sua vida.
Esquisito levantou-se, de supetão.
- Eu não sou obrigado a ficar aqui ouvindo essa palhaçada! Você fica aí cheio de merda, mas não tem nada concreto contra mim e sabe disso!
Burnside ficou de pé, obstruindo a passagem de Esquisito até a porta enquanto Maclennan se recostou na cadeira.
- Devagar, filho - disse Maclennan. - Você está preso.
Mondo encolheu os ombros em uma frágil defesa contra o que sabia que estava por vir. Maclennan olhou longa e duramente para ele.
- Digitais - disse ele. - As suas digitais no volante de uma Land Rover furtada. Você tem algo a dizer sobre isso?
- Não foi furtada. Apenas emprestada. Furtada é quando você não planeja devolver, não é? - Mondo soou petulante.
- Estou esperando - disse Maclennan, ignorando a resposta.
- Dei carona para uma pessoa, tá legal?
Maclennan curvou-se para a frente, como um cão farejando a presa.
- Quem?
- Uma garota que estava lá na festa. Ela precisava voltar para Guardbridge e eu me ofereci para levá-la em casa. - Mondo enfiou a mão dentro da jaqueta e sacou um pedaço de papel. Havia anotado todos os detalhes sobre a garota enquanto esperava, prevendo aquele momento. De algum modo, evitar dizer o seu nome em voz alta tornava a coisa menos real, menos importante. E depois, chegara à conclusão de que se fizesse a coisa direitinho, pareceria menos culpado. Dane-se se, para isso, tivesse de deixar uma garota mal com os seus pais. - Aqui está, podem perguntar, ela vai confirmar.
- A que horas foi isso?
Ele deu de ombros.
- Não sei. Talvez por volta das duas.
Maclennan olhou para o nome e o endereço no papel. Nenhum dos dois lhe parecia familiar.
- O que aconteceu então?
Mondo deu um sorrisinho convencido, em um momento mundano de cumplicidade masculina.
- Levei ela pra casa. Fizemos sexo. Aí nos despedimos. Então, inspetor, como o senhor vê, eu não tinha nenhum motivo para estar interessado em Rosie Duff, mesmo que encontrasse com ela. O que não aconteceu. Eu tinha acabado de transar. Estava me sentindo bem satisfeito comigo mesmo.
- Você disse que fizeram sexo. Onde, exatamente?
- No banco de trás da Land Rover.
- Você usou preservativo?
- Eu nunca acredito quando elas dizem que estão tomando pílula. O senhor acredita? É claro que usei preservativo. - Agora Mondo sentia-se mais relaxado. Aquele era um território que compreendia, um território no qual os machos se uniam em conluio em uma conspiração de entendimento mútuo.
- O que você fez com ele depois?
- Joguei pra fora pela janela. Ter deixado no carro daria a maior bandeira com o Henry, sabe? - Podia ver Maclennan lutando para descobrir uma nova direção para as suas perguntas. Mondo estava certo. A sua confissão havia bagunçado a linha do interrogatório. Ele não estivera rodando de carro pela neve, frustrado e desesperado por sexo. Então que motivo teria para estuprar e matar Rosie Duff?
Maclennan deu um sorriso intimidador, recusando-se a fazer parte da camaradagem que Mondo supunha estar compartilhando com ele.
- Verificaremos a sua história, Sr. Kerr. Vamos ver se essa moça vai confirmar o que você contou. Porque se ela não confirmar, aí a coisa fica bem diferente, não é mesmo?
9
Nem parecia véspera de Natal. Andando até a padaria para comprar uma torta na hora do almoço, Barry Maclennan experimentou a sensação de ter sido transportado para um universo paralelo. As vitrines das lojas floresciam com decorações espalhafatosas de Natal, luzes artificiais piscavam no crepúsculo e as ruas estavam abarrotadas de pessoas caminhando com dificuldade devido ao peso de gordas sacolas de compras. Tudo aquilo parecia estranho aos seus olhos. As preocupações daquelas pessoas nada tinham a ver com as dele; elas podiam se dar ao luxo de esperar algo mais do que uma ceia de Natal conspurcada pelo amargo gosto da derrota. Já haviam se passado oito dias desde o assassinato de Rosie, e até agora, nenhuma perspectiva de prisão.
Estivera confiante de que a descoberta da Land Rover seria a pedra fundamental que sustentaria o caso contra um ou mais dos quatro estudantes. Principalmente depois dos interrogatórios em Kirkcaldy. As histórias deles eram bastante plausíveis, mas tinham tido um dia para aperfeiçoá-las. E ele ainda estava com a sensação de que não tinham contado toda a verdade, embora fosse difícil precisar onde exatamente estavam mentindo. Não acreditava em quase nada do que Tom Mackie dissera, mas Maclennan era honesto o suficiente para reconhecer que a sua incredulidade poderia estar relacionada à antipatia profunda que nutria pelo estudante de matemática.
Ziggy Malkiewicz era astuto, disso ele estava ciente. Se ele fosse o assassino, Maclennan sabia que não chegaria a lugar algum até obter provas concretas; o estudante de medicina não ia entregar os pontos. Julgara ter colocado a história de Davey Kerr abaixo quando a moça em Guardbridge negou ter feito sexo com ele. Mas Janice Hogg, que o acompanhou por uma questão de decoro, saíra de lá convencida de que a moça estava mentindo, tentando equivocadamente proteger a sua reputação. De fato, quando ele mandou Janice novamente até lá para conversar com a moça a sós, ela reconsiderou e admitiu ter deixado Kerr fazer sexo com ela. Não parecia ter sido uma experiência que ela estava ansiosa para repetir. O que, Maclennan pensou, era algo interessante. Talvez Davey Kerr não estivesse assim tão satisfeito e animado quanto fingira estar.
Alex Gilbey era um possível candidato, o problema é que não havia nenhuma evidência de que dirigira a Land Rover. As suas digitais estavam por toda parte no interior do veículo, mas não chegavam nem perto do lugar do motorista. O que não livrava a sua cara, entretanto. Se Gilbey tivesse assassinado Rosie, possivelmente teria pedido a ajuda dos outros, e era bem provável que eles tivessem ajudado; Maclennan não duvidava da força do elo que os unia. E se Gilbey tivesse conseguido um encontro com Rosie, que tivesse terminado muito mal, Maclennan tinha certeza absoluta de que Malkiewicz não teria pensado duas vezes antes de fazer tudo o que pudesse para proteger o amigo. Gilbey sabendo disso ou não, Malkiewicz estava apaixonado por ele, concluíra Maclennan, baseando-se estritamente no seu instinto.
Mas havia algo mais do que o seu instinto em jogo. Após a frustrante série de interrogatórios, estava prestes a voltar para St. Andrews quando uma voz familiar o chamou.
- Ei, Barney, ouvi dizer que você estava na área - ecoou a voz no breu do estacionamento.
Maclennan virou-se para trás.
- Robin? É você?
Uma figura elegante em um uniforme de polícia surgiu em uma poça de luz. Robin Maclennan era quinze anos mais novo do que o irmão, mas a semelhança era impressionante.
- Achou que ia sair de fininho, sem dar ao menos um olá?
- Eles me informaram que você estava fazendo a ronda.
Robin alcançou o irmão e o cumprimentou com um aperto de mão.
- Acabei de voltar para um lanchinho. Pensei ter visto você quando estacionamos. Venha tomar um café comigo antes de ir embora. - Ele sorriu e deu um soco camarada no ombro de Maclennan. - Tenho algumas informações e acho que você vai gostar.
Maclennan franziu as sobrancelhas, vendo o irmão bater em retirada. Robin, sempre confiante no seu charme, não havia sequer esperado a reação do irmão e já estava a caminho do prédio que abrigava a cantina. Maclennan o alcançou na porta.
- Como assim, informações? - perguntou ele.
- Sobre os tais estudantes que você está investigando, em relação ao assassinato de Rosie Duff. Resolvi fazer umas pesquisas, sondar por aí, ver o que as pessoas tinham para dizer.
- Você não devia estar se envolvendo com isso, Robin. O caso não é seu. - Maclennan protestou enquanto seguia o irmão pelo corredor.
- Um crime como esse é caso de todo mundo.
- Mesmo assim. - Se não chegasse a lugar algum com aquele caso, não queria que o seu fracasso respingasse no seu irmão brilhante e carismático. Robin gostava de agradar; ia alcançar um posto bem mais alto do que o seu na polícia, e ele merecia. - Nenhum deles tem ficha criminal. Eu já verifiquei.
Robin virou-se quando entraram na cantina e acendeu novamente o seu sorriso de cem watts.
- Escuta, essa aqui é a minha área. Consigo fazer com que as pessoas me digam coisas que não vão dizer pra você.
Intrigado, Maclennan seguiu o irmão até uma mesa de canto e esperou pacientemente enquanto Robin buscava os cafés.
- Então, o que você sabe?
- Bem, os seus rapazes não são exatamente inocentes por essas bandas. Quando tinham uns treze anos, foram pegos furtando numa loja.
Maclennan deu de ombros.
- Quem nunca furtou uma coisinha aqui ou ali quando era criança?
- É, mas não foram apenas algumas barras de chocolate ou um maço de cigarros. Foi o que podemos chamar de Furto Desafio Fórmula 1. Parece que apostaram para ver quem conseguia furtar coisas realmente difíceis, só pela diversão. Quase sempre em lojas pequenas. Nada que estivessem querendo ou precisando em especial. Valia tudo, desde podadeiras de jardim até perfumes. Quem foi pego foi o Kerr, com um vaso chinês em uma mercearia. Os outros três foram surpreendidos esperando por ele na rua. Abriram o jogo em dois tempos quando chegaram à delegacia. Até nos levaram ao galpão no jardim de Gilbey, onde escondiam os produtos roubados. Tudo dentro da embalagem. - Robin balançou a cabeça, intrigado. - O sujeito que efetuou a prisão disse que parecia a caverna de Aladim.
- E o que aconteceu?
- Alguém mexeu os pauzinhos. O pai de Gilbey é diretor de escola, o pai de Mackie joga golfe com o chefe superintendente. Saíram com uma advertência e morrendo de medo.
- Interessante. Mas está longe de ser o Assalto ao Trem Pagador.
Robin concordou com a cabeça.
- Mas tem mais. Há alguns anos, tivemos uma série de brincadeiras com carros estacionados. Os donos voltavam e encontravam o vidro do carro rabiscado por dentro, com batom. Mas os carros estavam trancados. A coisa parou de acontecer de repente, assim como começou, mais ou menos na época em que um carro furtado pegou fogo. Nunca tivemos nada de concreto contra eles, mas o nosso oficial local do serviço secreto acha que eles estavam por trás das brincadeiras. Ao que parece, eles têm um dom para sacanear os outros.
Maclennan assentiu.
- Não posso discordar disso. - Estava intrigado com a história dos carros. Talvez a Land Rover não fosse o único veículo na estrada naquela noite com um dos suspeitos atrás do volante.
Robin estava ansioso para saber mais detalhes sobre a investigação, mas Maclennan fugiu do assunto direitinho. A conversa descambou para amenidades - família, futebol, o que comprar para os pais no Natal - até Maclennan conseguir ir embora. As informações de Robin não eram lá grande coisa, era verdade, mas fizeram com que Maclennan sentisse que havia um padrão nas atividades dos Garotos de Kirkcaldy: a atração pelo perigo. Era o tipo de comportamento que podia facilmente evoluir para algo mais arriscado.
Intuições eram ótimas, mas não valiam nada sem provas concretas. E ele não tinha nenhuma prova concreta. A Land Rover tornara-se um beco sem saída para a perícia. Haviam praticamente desmontado todo o seu interior e não encontraram nada que acusasse a presença de Rosie Duff lá dentro. Tiveram um momento de alegria fugaz quando os oficiais presentes na cena do crime descobriram vestígios de sangue, mas um exame mais minucioso revelou que o sangue não só não pertencia a Rosie Duff, como não era sequer humano.
A única vaga esperança no horizonte surgira na véspera. O dono de uma casa em Trinity Place estava fazendo uma limpeza no jardim quando encontrou uma trouxa de tecido encharcada escondida na sebe. A Sra. Duff a identificara como sendo de Rosie. Agora, a peça estava no laboratório sendo examinada, mas Maclennan sabia que, apesar do pedido de urgência, não teria nenhuma resposta antes do Ano-Novo. Mais uma frustração para engrossar a sua lista.
Não conseguia sequer decidir se autuava Mackie, Kerr e Malkiewicz por terem pegado e dirigido um veículo sem autorização do dono. Todos três haviam cumprido os requisitos da fiança religiosamente e ele estava prestes a autuá-los quando ouviu sem querer uma conversa no clube da polícia. Estava protegido dos olhares dos policiais que conversavam por uma banqueta, mas reconheceu as vozes de Jimmy Lawson e Iain Shaw. Shaw era a favor de imputarem quantas acusações pudessem contra os estudantes. Mas, para a surpresa de Maclennan, Lawson era contra.
- Isso só pega mal pra gente - disse o policial. - Dá a impressão de que somos mesquinhos e vingativos. É como colocar um anúncio dizendo: Olha, não conseguimos pegá-los por assassinato, mas vamos infernizar a vida deles de qualquer jeito.
- E o que há de errado nisso? - quis saber Shaw. - Se são culpados, têm mais é que sofrer.
- E se não forem? - respondeu Lawson, insistente. - Temos que fazer justiça, não temos? E isso não é só sair por aí prendendo os culpados. Temos que proteger os inocentes também. Tudo bem, eles mentiram para Maclennan sobre a Land Rover. Mas isso não os torna assassinos.
- Mas se não foi nenhum deles, quem foi? - desafiou Shaw.
- Ainda acho que tem algo a ver com Hallow Hill. Algum ritual pagão ou algo assim. Você sabe tão bem quanto eu que todo ano recebemos denúncias sobre animais que parecem ter sido vítimas de matança ritualista na floresta Tentsmuir. E nunca damos bola, porque parece algo insignificante diante de preocupações mais sérias. Mas e se um maluco já estava preparando isso, há anos? Afinal de contas, o crime ocorreu bem perto da Saturnália.
- Saturnália?
- Os romanos celebravam o solstício de inverno no dia 17 de dezembro. Mas o feriado não caía sempre no mesmo dia.
Shaw bufou, incrédulo.
- Cruzes, Jimmy, você andou pesquisando mesmo, hein?
- Não, só perguntei lá na biblioteca. Você sabe que eu quero entrar para o DIC. Estou apenas querendo mostrar empenho.
- Então você acha que foi um lunático satanista que matou Rosie?
- Não sei. É só uma teoria. Mas vamos ficar com a cara no chão se apontarmos os quatro estudantes como culpados e acontecer outro sacrifício humano próximo do Beltane.
- Beltane? - perguntou Shaw, perdido.
- Final de abril, início de maio. Megafestival pagão. Por isso, eu acho que devíamos pensar duas vezes antes de partir para cima dos garotos, até termos algo mais concreto contra eles. Afinal, se eles não tivessem encontrado o corpo de Rosie, teriam devolvido o carro e ninguém teria ficado sabendo, ninguém teria sido prejudicado. Eles tiveram azar, só isso.
Terminaram as suas bebidas e saíram. Mas Maclennan não conseguia tirar as palavras de Lawson da cabeça. Ele era um homem justo e não podia deixar de dar razão ao policial. Se tivessem apurado desde o início a identidade do homem misterioso que andava se encontrando com Rosie, mal teriam prestado atenção ao quarteto de Kirkcaldy. Talvez estivesse sendo duro com eles simplesmente porque não tinha para onde desviar o seu foco. Por mais desconfortável que fosse ter de ser lembrado das suas obrigações por um garoto de uniforme, Lawson convencera Maclennan que devia desistir de autuar Malkiewicz e Mackie.
Por enquanto, pelo menos.
Nesse ínterim, ia aproveitar para sondar mais um pouco, colher informações. Tentar descobrir se alguém estava sabendo de rituais satânicos naquela área. O problema é que não fazia nem ideia de por onde começar. Talvez mandasse Burnside conversar com alguns dos padres locais. Não pôde evitar um sorriso ao pensar que essa conversa de rituais satânicos em pleno Natal certamente ia desviar a atenção dos padres do Jesus recém-nascido.
Esquisito se despediu de Alex e de Mondo no fim do expediente e seguiu em direção ao passeio. Encolhendo os ombros por causa do vento gelado, enterrou o queixo no cachecol. Tinha de terminar de fazer as suas compras de Natal, mas precisava de um tempo sozinho antes de encarar a incansável euforia festiva da High Street.
A maré estava baixa, então ele desceu pelos degraus escorregadiços do passeio até a praia. A areia molhada estava da cor de cimento na luz acinzentada do crepúsculo e grudava nos seus sapatos enquanto ele andava. O que combinava perfeitamente com o seu humor. Nunca estivera tão deprimido na vida.
O clima na sua casa estava mais beligerante do que o normal. Tivera de contar ao pai que havia sido preso e a sua revelação provocara uma saraivada constante de críticas e alfinetadas sobre o seu fracasso como bom filho. Tinha de justificar cada minuto passado fora de casa, como se tivesse dez anos de idade novamente. E o pior de tudo era que Esquisito não conseguia sequer sentir-se por cima. Sabia que tinha feito besteira. Chegava quase a achar que merecia o desprezo do pai e isso era o que o deixava ainda mais deprimido. Sempre conseguira consolar-se acreditando que tinha razão. Mas dessa vez, ultrapassara todos os limites.
O trabalho também não estava grande coisa. Chato, repetitivo e humilhante. Em outros tempos, teria transformado tudo em uma grande piada, uma oportunidade para criar confusões e pregar peças. A pessoa que teria adorado perturbar os seus supervisores com o aval de Alex e Mondo em uma série de brincadeiras parecia um estranho distante para Esquisito agora. O que acontecera a Rosie Duff e o seu envolvimento no caso o forçaram a reconhecer que ele era mesmo o inútil que seu pai acreditava que ele fosse. E essa não era uma descoberta confortável.
Também não conseguia encontrar consolo nos amigos. Pela primeira vez, estar com os outros não lhe dava a sensação de ter sido absorvido em um sistema de apoio. Pelo contrário: era como um lembrete de todos os seus defeitos. Não conseguia deixar de se sentir culpado quando estava com eles, pois havia prejudicado a todos com as suas atitudes, ainda que nenhum deles o culpasse por isso.
Não conseguia nem imaginar como enfrentaria o próximo semestre. Algas surgiam e escorregavam sob os seus pés enquanto caminhava até o final da praia e começava a subir os degraus largos em direção a Port Brae. Assim como as algas, ele também se sentia coberto de lodo e inconstante.
À medida que a noite caía e a luz apagava-se no poente, Esquisito seguia rumo às lojas. Hora de fingir que voltava a ser parte do mundo novamente.
10
Ano-Novo, 1978; Kirkcaldy, Escócia
Haviam feito um pacto, quando tinham quinze anos, na primeira vez que os pais os deixaram participar do first footing.[5] Na véspera do Ano-Novo, à meia-noite, os quatro Garotos de Kirkcaldy se encontrariam na Town Square e virariam o ano juntos. Até então, haviam cumprido a promessa todo ano, lado a lado aos solavancos enquanto os ponteiros do relógio da praça aproximavam-se das doze badaladas. Ziggy trazia o seu rádio transistor para assegurar-se de que ouviriam o badalar dos sinos e eles passavam adiante um para o outro a bebida que conseguiam trazer consigo. Comemoraram o seu primeiro Ano-Novo juntos com uma garrafa de xerez doce e quatro latas de cerveja. Atualmente, preferiam uma garrafa de uísque.
Não havia uma comemoração oficial na praça mas, nos últimos anos, grupos de jovens passaram a gostar de se reunir lá. Não era um lugar particularmente atraente, em grande parte porque a Town House lembrava um dos produtos menos atraentes da arquitetura soviética, com a sua torre do relógio esverdeada. Mas aquele era o único espaço ao ar livre no centro da cidade, tirando a rodoviária, que era ainda mais sem graça. A praça, pelo menos, ostentava uma árvore de Natal, o que a tornava ligeiramente mais festiva do que a rodoviária.
Naquele ano, Alex e Ziggy chegaram juntos. Ziggy o buscara em casa e convencera Mary Gilbey com o seu charme a lhes dar uma dose de uísque, por causa do frio. Com os bolsos cheios de biscoitos caseiros amanteigados, pãezinhos que ninguém ia comer e bolo com passas brancas, passaram pela estação de trem e pela biblioteca, pelo Adam Smith Centre, com os seus cartazes anunciando o espetáculo Babes in the Wood com Russell Hunter e os Patton Brothers, e pelo cemitério onde repousavam os heróis de guerra. Começaram a conversar, especulando se Esquisito ia conseguir convencer o pai a sair do castigo no Hogmanay.
- Ele está muito estranho ultimamente - disse Alex.
- Gilly, ele é estranho. É por isso que o chamamos de Esquisito.
- Eu sei, mas ele anda diferente. Eu percebi, trabalhando junto com ele. Ele está meio submisso. E muito calado.
- Vai ver que é porque não está podendo ter acesso a álcool e drogas - disse Ziggy, debochado.
- Mas ele não está nem rebelde. Aí é que está. Você conhece a peça. Na hora em que ele percebe que tem alguém disposto a sacanear, é com ele mesmo. Mas ele tem abaixado a cabeça, não tem nem respondido aos supervisores quando eles enchem o saco. Ele fica parado, ouvindo, e aí faz o que eles querem que ele faça. Você acha que tem a ver com essa história da Rosie?
Ziggy deu de ombros.
- Pode ser. Na hora, ele levou numa boa, mas depois ficou fora de si. Para falar a verdade, eu mal falei com ele depois do dia em que Maclennan apareceu por aqui.
- Eu também só encontrei com ele no trabalho. Assim que dá a hora de ir embora, ele se manda. Não tem nem topado ir tomar um café comigo e com Mondo.
Ziggy fez uma careta.
- É de se admirar que Mondo tenha tempo para tomar café.
- Pega leve com ele. Foi a maneira que ele encontrou para lidar com a situação. Quando está indo até os finalmentes com uma garota, esquece o assassinato. Daqui a pouco, vai bater o seu próprio recorde - acrescentou Alex com um sorriso.
Atravessaram a rua e desceram a Wemyssfield, a pequena rua que dava para a praça. Tinham o andar confiante dos que se sentem em casa, em um lugar tão familiar que lhes conferia uma espécie de propriedade. Faltavam dez minutos para a meia-noite quando desceram os degraus largos e baixos que davam para a área asfaltada fora da Town House. Já havia vários grupos passando garrafas de mão em mão. Alex olhou à sua volta, para ver se conseguia localizar os outros.
- Ali, perto do Correio - disse Ziggy. - Mondo trouxe a sua última conquista. E, ah, Lynn também está lá com eles. - Ele apontou para a esquerda e eles avançaram para encontrar com os outros.
Após os cumprimentos e a constatação geral de que provavelmente Esquisito não ia aparecer, Alex se viu ao lado de Lynn. Ela estava crescendo, pensou ele. Não era mais uma criança. Com as suas feições élficas e os seus cachos negros, era uma versão feminina de Mondo. Mas, por mais paradoxal que fosse, os elementos que enfraqueciam o rosto dele tinham o efeito oposto no de Lynn. Não havia absolutamente nada de frágil nela.
- E aí, como é que tá? - perguntou Alex. Não era a melhor das abordagens, mas ele também não queria que pensassem que ele estava cantando uma garota de quinze anos.
- Tudo ótimo. Passou um bom Natal?
- Nada mal. - Ele franziu o rosto. - Foi meio difícil não pensar na... você sabe.
- Sei. Eu também não consegui parar de pensar nela. Fiquei imaginando como a família deve estar. Quando ela morreu, eles provavelmente já tinham comprado os presentes de Natal e tudo. Deve ter sido uma lembrança horrível, ficar com os presentes dentro de casa.
- Eu acho que tudo deve ser uma lembrança horrível. Bom, vamos mudar de assunto, né? Como vai a escola?
Lynn murchou. Ela não queria ser lembrada da diferença de idade entre eles, percebeu Alex.
- Tudo bem. Termino o primeiro grau esse ano. E depois, o segundo. Não vejo a hora de me livrar da escola e começar a minha vida.
- Você já sabe o que vai querer fazer? - perguntou Alex.
- Escola de Arte de Edimburgo. Quero me formar em Belas-Artes e depois ir para o Instituto de Arte Courtauld, em Londres, aprender a restaurar quadros.
A sua confiança era bonita de se ver, pensou Alex. Algum dia tivera tanta certeza? Ele foi parar em História da Arte porque jamais tivera confiança no seu talento como artista. Ele assobiou:
- Sete anos de estudo? É um compromisso e tanto.
- É o que é preciso para o que eu quero fazer.
- Por que quer restaurar quadros? - Estava sinceramente curioso.
- A restauração me fascina. Primeiro a pesquisa, depois a ciência e finalmente o salto no escuro quando você tem que entrar em sintonia com o que o artista realmente queria que nós víssemos. É empolgante, Alex.
Antes que ele pudesse responder, os outros gritaram:
- Ele veio!
Alex virou-se para ver Esquisito, a sua silhueta destacando-se contra o imponente e cinzento Tribunal de Justiça. Ele balançava os braços como um espantalho desconjuntado, correndo aos gritos. Alex olhou para o relógio na torre. Faltava apenas um minuto.
Logo Esquisito juntou-se a eles, abraçando a todos e sorrindo.
- Eu pensei, isso é ridículo. Eu sou um adulto e o meu pai está me impedindo de virar o ano com os meus amigos. O que é que há? - Ele balançou a cabeça. - Se ele me colocar pra fora, posso dormir na sua casa, Alex?
Alex lhe deu um murro no ombro.
- Por que não? Já estou acostumado com o seu ronco nojento mesmo.
- Silêncio, pessoal. - A voz de Ziggy abafou a gritaria. - Os sinos.
Um silêncio profundo desceu sobre eles enquanto tentavam ouvir a muito custo o longínquo repique do Big Ben pelo rádio de Ziggy. Ao soar meia-noite, os Garotos de Kirkcaldy entreolharam-se. Suspenderam os braços como se movidos por um único barbante e deram as mãos na última badalada.
- Feliz Ano-Novo - disseram em uníssono. Alex percebeu que os amigos estavam tão comovidos quanto ele.
Separaram-se e o momento se foi. Ele virou-se para Lynn e a beijou castamente nos lábios.
- Feliz Ano-Novo - disse ele.
- Eu acho que vai ser, sim - respondeu ela, ficando com o rosto corado.
Ziggy abriu a garrafa de uísque e passou de mão em mão. Os grupos na praça comemoravam, todo mundo se abraçando e desejando um feliz ano-novo a estranhos, com bafo de uísque e abraços generosos. Algumas pessoas que os conheciam da escola compadeceram-se da falta de sorte dos quatro, ao encontrarem o corpo da moça morta na neve. Não havia malícia em suas palavras, mas Alex pôde ver nos olhos dos amigos que eles detestavam aquilo tanto quanto ele. Um grupo de garotas estava improvisando uma dança típica escocesa para oito pessoas em volta da árvore de Natal. Alex olhou à sua volta, incapaz de articular as emoções que cresciam no seu peito.
Lynn tomou a sua mão, discretamente.
- Em que você está pensando, Alex?
Ele olhou para ela e forçou um sorriso cansado.
- Estava pensando em como as coisas seriam mais fáceis se eu pudesse congelar o tempo agora. Se eu nunca mais tivesse que voltar para St. Andrews.
- Não vai ser tão ruim quanto você pensa. São só seis meses e depois você vai ficar livre.
- Eu poderia vir nos finais de semana. - As palavras saíram de sua boca antes mesmo de Alex saber que ia dizê-las. Ambos sabiam o que elas significavam.
- Eu ia gostar muito - respondeu ela. - Só não vamos contar nada pro chato do meu irmão, ok?
Novo ano, novo pacto.
No clube social da polícia em St. Andrews, a bebida já estava rolando há algumas horas. O badalar dos sinos quase passou despercebido graças à barulhenta animação da dança de Hogmanay. O único senão no alegre tumulto daqueles que não podiam se dar ao luxo de serem sempre assim por causa da profissão era a presença das esposas, noivas e qualquer outra mulher que conseguiam convencer a participar da festa, para quebrar o galho dos solteiros.
Ruborizado pelo esforço físico, Jimmy Lawson estava ladeado por duas senhoras de meia-idade que trabalhavam como telefonistas na delegacia em uma dança típica. A bonita recepcionista de consultório de dentista que havia vindo com ele fugira para o toalete, exausta com o seu entusiasmo, aparentemente sem limites, pela dança escocesa. Ele não estava ligando muito: sempre havia mulheres interessadas em dançar um pouco no Ano-Novo e Lawson gostava de descarregar a tensão dançando. Ajudava a compensar a intensidade que ele empregava no trabalho.
Barney Maclennan estava encostado no bar, entre Iain Shaw e Allan Burnside, cada um segurando uma dose generosa de uísque.
- Meu Deus, olhe só para eles - resmungou Maclennan. - O pior é que essa provavelmente não é a última dança.
- Em noites assim, vale a pena ser solteiro - disse Burnside. - Já pensou ter alguém te arrastando para o salão? Fazendo com que abandone uma boa dose de uísque?
Maclennan não respondeu. Perdera a conta das vezes que tentara se convencer de que estava melhor sem Elaine. Só conseguia por algumas horas. Ainda estavam juntos no último Ano-Novo, mas só para constar. Aguentavam-se com menos determinação do que os dançarinos aguentavam girar sem cessar com os seus pares no salão. Algumas semanas após o Ano-Novo, ela foi embora. Estava cansada de estar sempre abaixo do trabalho na escala de prioridades dele.
Percebendo a ironia da lembrança, Maclennan recordou-se de uma de suas queixas: "Eu não ia nem ficar tão chateada assim se você estivesse trabalhando em casos importantes, como um estupro, um assassinato. Mas você fica até tarde perdendo tempo com assaltantes baratos e furtos de carro. Como é que você acha que eu me sinto, sendo trocada pelo carro de um velho babaca?" Bom, o desejo dela virara realidade. Ali estava ele, um ano depois, envolvido no maior caso da sua carreira. E, até agora, todos os seus esforços haviam sido em vão.
Todos os caminhos davam em becos sem saída. Não haviam encontrado uma testemunha sequer que tivesse visto Rosie com um homem no início de novembro. Para a sorte do homem misterioso, aquele havia sido um inverno cruel e as pessoas estavam mais interessadas no palmo de chão diante de si do que em quem estava saindo com quem não devia. Sorte do assassino, azar da polícia. Localizaram os dois últimos namorados de Rosie. Um havia terminado com ela para ficar com uma garota, com quem ainda estava namorando. Não tinha muito o que dizer sobre a garçonete assassinada. Rosie havia dispensado o outro no início de novembro e, a princípio, ele parecia um suspeito promissor. Havia relutado um pouco em aceitar o término e fora visto algumas vezes criando problemas no pub. Mas tinha um bom álibi para aquela noite em questão. Estivera na festa de Natal do escritório onde trabalhava até depois de meia-noite, depois fora para casa com a secretária do chefe e passara a noite com ela. Ele admitiu que havia ficado magoado quando Rosie terminou o namoro na época, mas que, para ser sincero, estava se divertindo muito mais com uma mulher um pouco mais generosa em termos de favores sexuais.
Quando Maclennan o pressionou para que explicasse melhor o que queria dizer com aquele comentário, ele foi tomado por orgulho masculino e não quis responder. Mas, sob pressão, admitiu que ele e Rosie jamais fizeram sexo. Faziam outras coisas; Rosie não era uma puritana. Mas recusava-se a ir até o fim. Ele mencionou sexo oral e masturbações, mas afirmou que nunca foram além disso.
Então Brian tinha razão, em parte, quando disse que a irmã era certinha. Maclennan compreendia que, na hierarquia daquelas coisas, Rosie estava longe de ser uma doidivanas. Mas um conhecimento íntimo das suas tendências sexuais não o ajudava a encontrar o seu assassino. Lá no fundo, ele sabia que era bem provável que o homem com quem ela se encontrou na noite do crime havia sido o homem que a estuprara e assassinara. Poderia ser Alex Gilbey ou qualquer um dos seus amigos. Ou não.
Os seus colegas detetives argumentaram que devia haver um bom motivo para o namorado misterioso não ter aparecido até agora. "Talvez ele seja casado", dissera Burnside. "Talvez esteja com medo de colocarmos a culpa nele", acrescentara Shaw, cínico. Eram explicações razoáveis, Maclennan sabia disso. Mas não alteravam a sua convicção pessoal. As teorias de Jimmy Lawson sobre rituais satânicos eram besteira. Os padres com quem Burnside conversara jamais haviam ouvido um rumor sequer sobre algo assim acontecendo por aquelas bandas. E Maclennan achava que eles eram as pessoas mais indicadas para possuir esse tipo de informação. Estava aliviado, de certo modo: o que menos precisava no momento era de pistas falsas. Tinha certeza de que Rosie conhecia o assassino e que caminhara noite afora com ele, confiante.
Assim como milhares de mulheres no país fariam naquela noite de Ano-Novo. Maclennan esperava fervorosamente que todas elas voltassem para casa sãs e salvas.
A aproximadamente cinco quilômetros dali, em Strathkinness, o Ano-Novo começara em um clima bem diferente. Lá, não havia decorações natalinas. Os cartões de Natal empilhados haviam sido esquecidos em uma prateleira. A televisão, que normalmente era a primeira a aclamar o primeiro dia de janeiro, estava desligada e silenciosa em um canto. Eileen e Archie Duff estavam aninhados cada qual em uma cadeira, com copos de uísque intactos ao seu lado. A calmaria opressiva suportava o peso da dor e da depressão. A família Duff sabia, no fundo do coração, que jamais teria um feliz Ano-Novo dali para frente. As festas de fim de ano estariam para sempre maculadas pela morte da filha. Os outros que comemorassem; eles podiam apenas lamentar.
Na copa, Brian e Colin estavam sentados de cabeça baixa em cadeiras revestidas de plástico. Ao contrário dos pais, não estavam tendo muita dificuldade em beber ao ano que chegava. Desde a morte de Rosie, ficara fácil para eles enfiar bebida goela abaixo até não conseguirem mais levar o gargalo aos lábios. A reação dos irmãos à tragédia não fora o recolhimento; estavam mais expansivos do que nunca. Os donos dos pubs em St. Andrews já haviam se acostumado ao ritual de bebedeira dos irmãos Duff. Não tinham outra saída, já que não estavam dispostos a enfrentar a ira da sua volátil clientela, que achava que Colin e Brian mereciam toda solidariedade possível.
Naquela noite, a garrafa de uísque estava mais vazia do que cheia. Colin conferiu as horas no seu relógio.
- Perdemos a meia-noite - disse ele.
Brian olhou para ele, cansado.
- Que se dane. Rosie vai perder todos os anos.
- É. Mas em algum lugar aí fora, quem a matou provavelmente está brindando por ter se safado dessa.
- Foram eles. Tenho certeza de que foram eles. Você viu a foto no jornal? Já viu uns sujeitos com mais cara de culpados do que eles?
Colin esvaziou o copo e apanhou a garrafa, concordando com um gesto de cabeça.
- Não tinha mais ninguém por perto. E eles disseram que ela ainda estava respirando. Então, se não foram eles, como é que o assassino desapareceu? Ele não pode ter evaporado no ar.
- Devíamos tomar uma decisão de Ano-Novo.
- Tipo o quê? Você não vai tentar parar de fumar de novo, vai?
- Estou falando sério. Devíamos fazer uma promessa de verdade. É o mínimo que podemos fazer por Rosie.
- Como assim? Que tipo de promessa?
- Na verdade, é bem simples, Col - Brian levantou o seu copo no ar. Ele o manteve assim, na expectativa. - Se os tiras não conseguirem uma confissão, a gente consegue.
Colin pensou um pouco. Então, levantou o copo e o bateu levemente contra o do seu irmão.
- Se os tiras não conseguirem uma confissão, a gente consegue.
11
As consideráveis ruínas do Castelo Ravenscraig estão localizadas em um promontório rochoso entre duas baías arenosas, oferecendo uma vista magistral do estuário do rio Forth e seus arredores. A leste, um enorme muro de pedra o protege do mar e de possíveis saqueadores. Ele se estende até o porto de Dysart, que está praticamente assoreado, mas que um dia já foi próspero. Na ponta da baía que contorna o castelo, um pouco adiante do pombal que ainda abriga pombos e pássaros marinhos, onde o muro de pedra chega a um ponto em forma de V, há um pequeno mirante, com o teto íngreme bem inclinado e marcas de flechas cravadas na parede.
Desde a pré-adolescência, os Garotos de Kirkcaldy haviam-se apropriado do local como sendo o seu domínio particular. Uma das melhores maneiras de escapar da vigilância dos adultos era saindo para dar uma caminhada. As caminhadas eram tidas como saudáveis e inofensivas. Por isso, quando prometiam passar o dia todo explorando a costa e as florestas, eram sempre agraciados com generosos farnéis para piquenique.
Às vezes, tomavam a direção contrária, passando por Invertiel e indo para longe da feia mina de Seafield, em direção a Kinghorn. Mas, na maioria das vezes, iam para Ravenscraig, inclusive porque o castelo não ficava muito longe da praça onde a carrocinha de sorvete ficava estacionada. Nos dias mais quentes, deitavam-se na grama e davam-se ao luxo de fantasiar como seriam as suas vidas, tanto no futuro próximo como no distante. Recontavam histórias das aventuras do semestre, embelezando-as e cogitando outros desenlaces. Jogavam cartas, em partidas intermináveis de vinte e um. Foi ali que fumaram o seu primeiro cigarro e viram Ziggy mudar de cor e vomitar em um arbusto.
Às vezes, escalavam o muro e ficavam observando os navios no estuário, o vento esfriando o seu corpo e fazendo com que se sentissem na proa de um navio em alto-mar, sentindo a trepidação sob os pés. E quando chovia, abrigavam-se dentro do mirante. Ziggy tinha uma esteira e eles a estendiam sobre o chão lamacento. Mesmo agora, que já se consideravam adultos, ainda gostavam de descer os degraus de pedra que conduziam do castelo até a praia, vagando por entre cascalhos e conchas até o mirante.
Na véspera do retorno a St. Andrews, os quatro se encontraram no bar do porto para tomar um chope na hora do almoço. Com dinheiro no bolso, graças ao emprego temporário de Natal, Alex, Mondo e Esquisito teriam bebido além da conta alegremente. Mas Ziggy os convenceu a sair para dar um passeio. O dia estava quente e claro e o sol se dissolvia em um céu discretamente azul. Caminharam pelo porto, abrindo caminho pelos altos silos do moinho e indo em direção ao lado oeste da praia. Esquisito caminhava um pouco atrás dos outros três e mantinha os olhos no horizonte distante, como quem busca inspiração.
Quando estavam quase chegando ao castelo, Alex se afastou do grupo e subiu no afloramento rochoso que ficava praticamente submerso quando a maré estava alta.
- Conta de novo, quanto foi que ele ganhou?
Mondo não precisava nem parar para pensar antes de responder.
- O ilustre senhor David Boys, mestre pedreiro, recebeu por ordem da rainha Mary de Gueldres, viúva de James II da Escócia, a quantia de seiscentas libras escocesas para a construção de um castelo em Ravenscraig. E ele teve que comprar os materiais com esse dinheiro.
- Que não eram baratos. Em 1461, quatorze vigas de madeira foram cortadas das margens do rio Allan e transportadas até Stirling por sete xelins. E então pagaram a um tal de Andrew Balfour duas libras e dez xelins para cortar, esculpir e transportar essas vigas até Ravenscraig - recitou Ziggy.
- Ainda bem que eu peguei o emprego no mercado - debochou Alex. - Eles pagam bem melhor lá. - Alex jogou a cabeça para trás e olhou para o penhasco do castelo. - Eu acho que os Sinclairs o fizeram bem mais bonito do que teria sido se a nossa cara rainha Mary não tivesse chutado o balde antes de o castelo estar pronto.
- Castelos não precisam ser bonitos - comentou Esquisito, entrando na conversa. - Eles têm que ser um refúgio, uma fortaleza.
- Extremamente utilitários - reclamou Alex, pulando de volta para a areia. Os outros o seguiram, arrastando os pés nos destroços que jaziam à beira da praia, dentro do limite gravado na areia pela marca do alcance da água.
Na metade do caminho, Esquisito falou no tom mais sério que eles já tinham ouvido na vida:
- Eu tenho uma coisa para contar pra vocês - disse ele.
Alex virou-se para olhar para ele e recuou alguns passos. Os outros olharam para trás.
- Aí vem coisa ruim - disse Mondo.
- Eu sei que vocês não vão gostar, mas espero que possam pelo menos respeitar.
Alex pôde ver a ansiedade nos olhos de Ziggy. Mas achava que o amigo não tinha motivos para se preocupar. Fosse lá o que Esquisito estivesse prestes a contar, tinha mais a ver consigo do que com a necessidade de expor alguém.
- Vamos lá, Esquisito. Manda ver - disse Alex, tentando soar encorajador.
Esquisito enterrou as mãos nos bolsos da calça jeans.
- Virei cristão - disse ele, asperamente. Alex o encarava, boquiaberto. Chegou a pensar que ficaria menos surpreso se Esquisito anunciasse que havia matado Rosie Duff.
Ziggy estava urrando de tanto rir.
- Meu Deus, Esquisito, eu estava pensando em uma revelação terrível. Cristão?
Esquisito enrijeceu o maxilar.
- Foi uma revelação. E eu aceitei Jesus na minha vida, como o meu salvador. E eu agradeceria muito se você não ficasse debochando.
Ziggy estava curvado de tanto rir, apertando a barriga.
- Essa é a coisa mais engraçada que eu já ouvi na minha vida... Ai, Deus, acho que vou mijar nas calças. - Ele se apoiou em Mondo, que estava sorrindo de orelha a orelha.
- E eu agradeceria se você não usasse o nome do Senhor em vão - completou Esquisito.
Ziggy renovou as gargalhadas.
- Ai, ai. Como é mesmo que eles dizem? Que o céu entra em festa quando um pecador se arrepende? Eu vou te dizer uma coisa, eles devem estar dançando pelas ruas no paraíso, comemorando por terem arrebanhado um pecador como você.
Esquisito parecia ofendido.
- Eu não estou tentando negar que fiz coisas lamentáveis no passado. Mas tudo isso ficou para trás agora. Eu nasci de novo e a minha ficha está limpa.
- Devem ter precisado de uma borracha bem grande e resistente para apagar a sua ficha. Quando foi que isso aconteceu? - perguntou Mondo.
- Fui no culto, na véspera do Natal - contou Esquisito. - E alguma coisa se iluminou em mim. Então percebi que queria ser lavado no sangue do Cordeiro. Queria ficar limpo.
- Sinistro - comentou Mondo.
- Mas você não disse nada no Ano-Novo - disse Alex.
- Eu queria que vocês estivessem sóbrios quando eu contasse. É uma coisa muito séria, entregar a sua vida a Cristo.
- Desculpa - disse Ziggy, se recompondo. - Mas você é a última pessoa do planeta que eu imaginava dizendo essas palavras.
- Eu sei disso - disse Esquisito. - Mas estou falando sério.
- Vamos continuar a ser seus amigos - disse Ziggy, tentando conter um sorriso pretensioso.
- Desde que você não queira nos converter - disse Mondo. - Você sabe que eu te amo como a um irmão, Esquisito, mas não o bastante para abrir mão de sexo e das bebidas.
- Amar a Jesus não tem nada a ver com isso, Mondo.
- Vamos, gente - interrompeu Ziggy. - Estou congelando, parado aqui. Vamos até o mirante. - Ele foi andando, com Mondo ao seu lado. Alex deixou-se ficar para trás, para acompanhar Esquisito. Estava com muita pena do amigo. Deve ter sido uma coisa horrível, vivenciar uma solidão tão profunda a ponto de ter de recorrer aos crentes para algum consolo. Eu deveria ter dado mais apoio a ele, pensou Alex, sentindo uma pontada de culpa. Talvez não fosse tarde demais.
- Você deve ter se sentido muito estranho, né? - comentou ele.
Esquisito fez um gesto negativo com a cabeça.
- Pelo contrário. Me senti em paz. Foi como se eu finalmente deixasse de ser um estranho no ninho e encontrasse o meu verdadeiro lar. Essa é a melhor maneira de explicar o que senti. Só fui ao culto para fazer companhia à minha mãe. Fiquei sentado lá na igreja Abbotshall, com as velas acesas à minha volta, como costumam ficar no culto do dia 24. Ruby Christie estava cantando Noite Feliz a capela, sem nenhum acompanhamento. Fiquei com o corpo todo arrepiado e, de repente, tudo fez sentido. Eu entendi que Deus deu o seu filho único para expiar os pecados do mundo. E eu estava incluído. Os meus pecados poderiam ser redimidos.
- Legal. - Alex estava constrangido com aquela sinceridade emocionada. Durante todos aqueles anos de amizade, nunca tivera uma conversa daquele gênero com Esquisito. Esquisito, logo ele, cuja única religião, aparentemente, era consumir o maior número de substâncias alucinógenas que pudesse ingerir antes de morrer. - E aí, o que você fez? - Alex teve uma visão fugaz de Esquisito correndo até ao altar e implorando para que os seus pecados fossem perdoados. Aquilo seria realmente constrangedor, pensou ele. O tipo de coisa que faria você suar frio quando já tivesse passado da fase do vamos-louvar-a-Deus e voltado à sua vida normal.
- Nada. Fiquei lá sentado, até o culto acabar, e voltei para casa. Pensei que fosse só naquele dia, uma espécie de experiência mística bizarra. Talvez relacionada com tudo o que a morte de Rosie trouxe à tona. Talvez até algum flashback de ácido. Mas quando acordei, no dia seguinte, senti a mesma coisa. Aí pesquisei no jornal para ver onde haveria cultos de Natal e acabei numa apresentação musical evangélica, lá nos Links.
Oh-oh.
- Devia estar bem vazio na manhã de Natal, né?
Esquisito riu.
- Que nada! O lugar estava lotado. Foi maravilhoso. A música era ótima, as pessoas me trataram como se fôssemos amigos há anos. E, depois do culto, eu fui falar com o pastor. - Esquisito abaixou a cabeça. - Foi um encontro muito emocionante. Enfim, o resultado é que ele acabou me batizando na semana passada. E me deu o nome de uma congregação irmã em St. Andrews. - Olhou para Alex com um sorriso beatificado. - Por isso eu queria contar isso pra vocês hoje. É que eu já vou começar a frequentar a igreja amanhã, quando voltarmos para Fife Park.
A primeira oportunidade que os outros tiveram para discutir a conversão milagrosa de Esquisito foi no dia seguinte, quando ele colocou a sua guitarra elétrica no estojo e saiu, disposto a cruzar a cidade até o culto evangélico próximo ao porto. Ficaram sentados na cozinha e o viram partir noite adentro.
- Bem, esse é o fim da nossa banda - disse Mondo, decisivo. - Eu não vou ficar cantando essas merdas de igreja e "Jesus Me Ama" para qualquer um.
- Já era, meus amigos - concordou Ziggy. - Vou te contar, ele perdeu completamente a noção das coisas, se é que tinha alguma.
- Ele está falando sério, pessoal - disse Alex.
- E isso é bom? Se preparem, porque a coisa agora não vai ser fácil, não - disse Ziggy. - Ele vai começar a trazer os malucos pra cá. E eles vão colocar na cabeça que nós temos de ser salvos, querendo ou não. Perder a banda vai ser o de menos. Vai ser o fim do "Um por todos e todos por um".
- Estou me sentindo meio culpado por tudo isso - disse Alex.
- Por quê? - perguntou Mondo. - Você por acaso o arrastou até lá e o obrigou a ouvir Ruby Christie cantando?
- Ele não teria pirado assim se não estivesse na merda. Eu sei que ele parece, de nós todos, o que encarou melhor essa história do assassinato de Rosie, mas acho que, lá no fundo, a coisa afetou ele pra caramba. E nós estávamos tão voltados para as nossas próprias reações que nem sacamos isso.
- Talvez a coisa não seja assim tão simples - disse Mondo.
- Como assim? - perguntou Ziggy.
Mondo arranhou o bico da bota no chão.
- Na boa, gente. Ninguém aqui sabe que merda Esquisito estava fazendo pra lá e pra cá com aquela Land Rover na noite do crime. Ele disse que não a viu naquela noite, mas só temos a palavra dele como testemunho.
Alex sentiu o chão desabar sob os seus pés. Desde que insinuara uma suspeita para Ziggy, havia se forçado a suprimir pensamentos tão traiçoeiros. Mas agora, Mondo havia dado uma nova forma para o inimaginável.
- Que horror - reclamou Alex.
- É, mas aposto que você pensou a mesma coisa - replicou Mondo, desafiadoramente.
- Esquisito nunca seria capaz de estuprar alguém, muito menos matar - protestou Alex.
- Ele estava doidão naquela noite. Não dá pra saber do que ele é ou não é capaz quando está naquele estado - disse Mondo.
- Chega! - A voz de Ziggy cortou a atmosfera de desconfiança e desconforto como uma navalha. - Você começa a pensar assim e vai parar onde? Eu também estava lá naquela noite. Alex chegou até mesmo a convidar Rosie para a festa. E, no que lhe diz respeito, você demorou pra cacete quando foi levar aquela garota em Guardbridge. O que o atrasou tanto, Mondo? - Ele lançou um olhar feroz para o amigo. - É esse tipo de merda que você quer ouvir?
- Eu não estava me referindo a vocês dois. Não tem a menor necessidade de você partir para cima de mim desse jeito.
- Mas você pode criticar Esquisito, né, sabendo que ele nem está aqui pra se defender. Que belo amigo você é.
- É, mas agora ele é amiguinho de Jesus - debochou Mondo. - O que, se você parar para pensar, é uma reação bem exagerada pro meu gosto. Isso me cheira a culpa.
- Para! - gritou Alex. - Olha só o que vocês estão falando. Já vai ter muita gente disposta a espalhar o veneno entre nós, sem que a gente precise se virar um contra o outro. Precisamos ficar unidos, ou já era.
- Alex tem razão - disse Ziggy, cansado. - Chega de acusações aqui em casa, ok? Maclennan está louco para criar um abismo entre nós. Ele não está nem aí pra quem consegue prender por esse crime, desde que pegue alguém. Precisamos convencê-lo de que não fomos nós. Mondo, no futuro, guarde as suas ideias perniciosas para si mesmo - Ziggy levantou-se. - Eu vou comprar leite e pão, para ver se a gente ao menos consegue tomar uma xícara de café antes daqueles inglesinhos escrotos voltarem e tumultuarem a casa toda com os seus sotaques.
- Eu vou com você. Preciso comprar cigarro - disse Alex.
Quando voltaram, meia hora depois, o mundo tinha virado do avesso. A polícia tinha voltado, em massa, e os seus colegas ingleses estavam parados na porta, com as malas, exibindo expressões de pura incredulidade no rosto.
- Boa-noite, Henry, boa-noite, Eddie - cumprimentou Ziggy, afável, examinando o corredor por cima dos seus ombros, onde Mondo estava sendo intratável com uma policial. - Ainda bem que eu trouxe duas cervejas.
- Que diabos está acontecendo aqui? - quis saber Henry Cavendish. - Não vai me dizer que o cretino do Mackie foi preso com drogas.
- Nada tão prosaico - respondeu Ziggy. - Pelo visto, o assassinato não chegou à imprensa inglesa.
Cavendish resmungou.
- Pelo amor de Deus, não seja tão patético. Pensei que você já tivesse superado essa palhaçada de herói da classe operária.
- Mais respeito, agora temos um cristão entre nós.
- Do que você está falando? Assassinato? Cristãos? - perguntou Edward Greenhalgh.
- Esquisito aceitou Jesus - resumiu Alex. - Nada do tipo da sua igreja anglicana, ele está mais para os pandeiros e para o "Louvemos ao Senhor". Vamos ter grupos de oração na cozinha. - Alex sabia que não havia nada mais divertido do que implicar com aqueles que se julgavam privilegiados. E St. Andrews oferecia constantes oportunidades para tal.
- O que isso tem a ver com o fato de a casa estar cheia de homens da polícia? - perguntou Cavendish.
- Aquela ali no corredor é uma mulher - retrucou Ziggy. - A não ser, é claro, que a polícia de Fife tenha resolvido recrutar travestis particularmente atraentes.
Cavendish cerrou os dentes. Odiava a maneira como os Garotos de Kirkcaldy insistiam em tratá-lo como uma caricatura. Aquele era o motivo principal dele passar tão pouco tempo em casa.
- Por que a polícia está aqui? - perguntou ele.
Ziggy sorriu candidamente para Cavendish.
- A polícia está aqui porque somos suspeitos de assassinato.
- O que ele quer dizer - acudiu Alex prontamente - é que somos testemunhas. Uma das garçonetes do Lammas foi assassinada antes do Natal. E nós encontramos o corpo.
- Estou estarrecido - disse Cavendish. - Não estava sabendo de nada. Coitada da família. E deve ter sido horrível para vocês também, imagino.
- É, não foi nada legal - disse Alex.
Cavendish lançou um olhar para dentro da casa novamente, desconcertado.
- Olha, essa não é uma boa hora para vocês. Vai ser melhor se nós encontrarmos um outro lugar por enquanto. Vamos, Ed. Podemos ficar com Tony e Simon hoje à noite. A gente pode tentar transferência para outro lugar amanhã de manhã. - Ele se afastou e depois olhou para trás, franzindo o cenho. - Cadê a minha Land Rover?
- Bem - disse Ziggy. - É um pouco complicado. Veja bem, a gente pegou ela emprestada e...
- Pegaram emprestado? - Cavendish estava ultrajado.
- Foi mal. Mas o tempo estava péssimo. Não achamos que você fosse ficar chateado.
- Tá, e onde é que ela está agora?
Ziggy estava constrangido.
- Isso você vai ter que perguntar para a polícia. Nós a pegamos emprestada na noite do crime.
A solidariedade de Cavendish evaporou imediatamente.
- Não acredito nisso - grunhiu ele. - A minha Land Rover é parte de uma investigação de assassinato?
- Receio que sim. Eu sinto muito.
Cavendish estava furioso.
- Vocês vão me pagar por isso.
Alex e Ziggy ficaram observando em silêncio, enquanto os outros dois iam embora, carregando as malas com dificuldade. Antes que pudessem falar alguma coisa, precisaram sair da porta para deixar a polícia passar. Havia quatro oficiais uniformizados e alguns homens à paisana. Ignoraram Alex e Ziggy e seguiram para os seus carros.
- O que eles vieram fazer aqui? - perguntou Alex quando finalmente entraram em casa.
Mondo deu de ombros.
- Não disseram nada. Estavam pegando amostras de tinta nas paredes, nos tetos e nos acabamentos em madeira - disse ele. - Escutei um deles falar algo sobre um cardigã, mas não pareciam estar procurando nada nas nossas roupas. Eles fuçaram tudo e perguntaram se nós mudamos a decoração recentemente.
Ziggy achou graça.
- Até parece. Depois eles não sabem por que têm fama de lesados.
- Não estou gostando nada disso - disse Alex. - Pensei que eles tivessem desistido da gente. E aqui estão eles novamente, revirando a casa de cabeça para baixo. Devem ter descoberto uma pista nova.
- Bom, seja lá o que for, a gente não tem motivo pra se preocupar - disse Ziggy.
- Já que você diz - respondeu Mondo, sarcástico. - Mas eu vou continuar me preocupando por enquanto. Como disse Alex, eles tinham deixado a gente em paz, e agora apareceram de novo. Não creio que isso possa ser facilmente ignorado.
- Mondo, nós somos inocentes, esqueceu? Isso quer dizer que a gente não tem motivo pra se preocupar.
- Tá, tudo bem. Mas e Henry e Eddie? - perguntou ele.
- Eles não querem viver com assassinos tresloucados - respondeu Ziggy, dirigindo-se à cozinha.
Alex o seguiu.
- Não queria que você tivesse dito isso - disse ele.
- O quê? Assassinos tresloucados?
- Não. Não queria que você tivesse dito a Henry e Eddie que somos suspeitos de assassinato.
Ziggy deu de ombros.
- Foi uma piada. Henry está mais interessado na sua preciosa Land Rover do que em qualquer outra coisa que possamos ter feito. Isso lhe deu apenas a desculpa perfeita para sair daqui. Além do mais, você foi o que mais saiu ganhando. Com dois quartos sobrando, não vai mais precisar dormir com Esquisito.
Alex pegou a chaleira.
- Mesmo assim. Preferia que você não tivesse plantado a semente. Estou com uma sensação terrível de que todos nós vamos acabar colhendo o que você acabou de plantar.
12
A profecia de Alex tornou-se real muito antes do que ele imaginava. Alguns dias depois, descendo a North Street a caminho do Departamento de História da Arte, ele viu Henry Cavendish e os seus companheiros se aproximando, desfilando altivos com seus uniformes de flanela vermelha, como se fossem os donos do lugar. Viu Cavendish cutucar um deles e, cochichar alguma coisa. Quando ficaram face a face, Alex viu-se subitamente cercado por rapazes vestidos com o tradicional uniforme de jaquetas de tweed e calças de sarja olhando para ele.
- É incrível ver que você teve a coragem de aparecer por aqui, Gilbey - disse Cavendish, sarcástico.
- Acho que tenho mais direito de andar nessas ruas do que você e os seus amiguinhos - disse Alex, suavemente. - Este é o meu país, não o de vocês.
- Belo país esse, onde as pessoas roubam carros e não são punidas. Não consigo acreditar que você e a sua corja não estão sendo julgados pelo que fizeram - disse Cavendish. - Se vocês usaram a minha Land Rover para encobrir um assassinato, não é só com a polícia que vão ter que se preocupar.
Alex tentou avançar, mas estava encurralado, aprisionado pelos solavancos dos cotovelos e das mãos do bando.
- Cai fora, tá, Henry? Não tivemos nada a ver com o assassinato de Rosie Duff. Fomos buscar ajuda, isso sim. Tentamos salvar a vida dela.
- E a polícia caiu nessa? - perguntou Cavendish. - Devem ser mais burros do que eu imaginava. - Um punho surgiu do nada e atingiu Alex violentamente sob as costelas. - Roubando o meu carro, né?
- Eu não sabia que você era capaz de pensar - sussurrou Alex, incapaz de se conter para não irritar mais ainda o seu agressor.
- É lamentável que você ainda seja um membro dessa universidade - gritou alguém, pressionando um dedo ossudo no peito de Alex. - Na melhor das hipóteses, você não passa de um ladrãozinho de merda.
- Meu Deus, ouçam o que estão dizendo. Vocês mais parecem um péssimo esquete cômico - disse Alex, subitamente irado. Ele abaixou a cabeça e se lançou para a frente, o corpo relembrando inúmeros ataques no campo de rúgbi. - Agora, saiam da minha frente! - berrou ele. Ofegante, emergiu do outro lado do grupo e virou-se para trás, o lábio retorcido em um sorriso pretensioso. - Eu tenho uma palestra para assistir.
Surpresos com o seu acesso de fúria, deixaram-no partir. Enquanto ele se afastava, Cavendish disse:
- Pensei que fosse ao enterro, não a uma palestra. Afinal, não é isso o que os assassinos fazem?
Alex virou para trás.
- O quê?
- Você não está sabendo? Vão enterrar Rosie Duff hoje.
Alex subiu a rua, tomado por uma violenta agitação, tremendo de raiva. Teve medo, tinha que admitir. Por um momento, teve medo. Não conseguia acreditar que Cavendish havia usado o enterro de Rosie para insultá-lo. Nem que ninguém tivesse dito a ele que o enterro era naquele dia. Não que quisesse ir. Mas poderia ao menos ter sido informado.
Imaginava como os outros estariam se virando e desejou novamente que Ziggy não tivesse aberto a boca.
Assim que Ziggy pisou na sala para uma aula de anatomia, foi imediatamente saudado com gritos de "Lá vem o ladrão de corpos!".
Ele pôs as mãos para cima, aceitando a gozação dos seus colegas médicos. Se alguém era capaz de ver humor negro na morte de Rosie, eram eles.
- Qual o problema com os cadáveres que eles nos dão para prática? - gritou alguém do fundo da sala.
- São muito velhos e feios para Ziggy - alguém respondeu. - Ele teve que sair por aí em busca de carne nova.
- Chega, pessoal - disse Ziggy. - Vocês só estão com inveja porque eu pude começar a praticar antes de vocês.
Um grupo de colegas se reuniu à sua volta.
- Como é que foi, Ziggy? Disseram que ela ainda estava viva quando vocês a encontraram. Você ficou com medo?
- Fiquei. Fiquei com medo, sim. Mas fiquei mais foi frustrado, porque não pude evitar que ela morresse.
- Qual é, cara, você fez o melhor que pôde - assegurou um colega.
- O meu melhor foi uma merda. A gente passa anos entupindo a cabeça de estudo mas, na hora H, eu não sabia nem por onde começar. Qualquer motorista de ambulância teria mais chance de salvar a vida de Rosie do que eu. - Ziggy tirou o casaco e o deixou cair no espaldar de uma cadeira. - Eu me senti inútil. E foi aí que percebi que a gente não é médico coisa nenhuma, não até sairmos daqui e começarmos a tratar pacientes de verdade.
Uma voz atrás deles disse:
- Essa é uma lição muito valiosa, Sr. Malkiewicz. - Sem que ninguém percebesse, o professor havia se aproximado do grupo e escutado a conversa. - Eu sei que isso não é consolo, mas o legista me disse que quando vocês encontraram a moça, não havia mais nada a ser feito. Ela já havia perdido sangue demais. - Ele deu um tapinha no ombro de Ziggy. - Receio que não podemos fazer milagres. Agora, senhoras e senhores, voltem para os seus lugares. Temos trabalhos importantes a fazer nesse semestre.
Ziggy voltou para o seu lugar, mas a sua cabeça estava voando. Podia sentir o sangue manchando as suas mãos, os batimentos cardíacos fracos e irregulares, o toque gelado da sua pele. Podia ouvir a sua respiração arquejante. Podia sentir o gosto de metal do sangue em sua boca. Perguntava-se se algum dia poderia se livrar dessas lembranças. Perguntava-se se seria capaz de ser um médico, sabendo que o fracasso seria sempre o resultado final das suas ações.
A alguns quilômetros dali, os pais de Rosie estavam se preparando para velar a filha. A polícia havia finalmente liberado o corpo e a família podia enfim dar o seu primeiro passo oficial em sua longa jornada de dor. Olhando-se no espelho, Eileen ajeitou o chapéu, sem se preocupar com o seu rosto, murcho e despido de artifícios. Não perdia mais tempo com maquiagem ultimamente. Maquiagem para quê? Os seus olhos estavam apáticos e carregados. Os comprimidos que o médico receitara não diminuíam a sua dor; apenas a tiravam do seu alcance, transformando o sofrimento em algo que ela mais contemplava do que sentia.
Archie estava na janela, esperando o carro fúnebre. A igreja de Strathkinness não ficava muito longe dali. Decidiram que a família ia caminhar atrás do caixão, acompanhando Rosie em sua última viagem. Os seus ombros estavam encurvados. Envelhecera nas últimas semanas e agora era apenas um velho que havia perdido a vontade de interagir com o mundo.
Brian e Colin, alinhados como ninguém jamais havia visto antes, estavam na copa, procurando coragem em doses de uísque.
- Eu só espero que aqueles quatro tenham o bom senso de não dar as caras - disse Colin.
- Que venham. Estou pronto para eles - respondeu Brian, o seu belo rosto inflexível em sua raiva.
- Hoje não, né? Porra, Brian. Mais dignidade, tá? - Colin esvaziou o copo e o colocou com raiva no escorredor de louça.
- Chegaram - disse o pai lá da sala.
Colin e Brian entreolharam-se, prometendo em silêncio aguentar até o fim sem fazer nada que os envergonhasse ou envergonhasse a memória da irmã. Empinaram os ombros, respiraram fundo e foram.
O carro fúnebre estava parado do lado de fora da casa. A família Duff foi caminhando até ele, de cabeça baixa. Eileen apoiava-se pesadamente no braço do marido. Posicionaram-se atrás do caixão. Atrás deles, amigos e parentes reuniam-se em melancólicos grupos. E mais atrás, vinha a polícia. Maclennan encabeçava o destacamento, orgulhoso ao ver que vários oficiais haviam comparecido, mesmo estando de folga. A imprensa, em uma rara amostra de discrição, concordara com uma cobertura em pool.
Moradores alinhavam-se nas calçadas no caminho até a igreja, muitos decidindo acompanhar o cortejo, que caminhava devagar até a sólida construção cinzenta sob a colina, que contemplava St. Andrews lá embaixo. Depois que todos entraram, a pequena igreja ficou lotada. Algumas pessoas tiveram que ficar nas naves laterais e outras no fundo.
Foi uma cerimônia rápida e formal. Eileen não tivera cabeça para pensar nos detalhes e Archie pedira apenas o mínimo. "É algo que somos obrigados a fazer, e não algo que vamos guardar como lembrança da nossa filha", explicou ele ao pastor.
Para Maclennan, as palavras simples do funeral soaram insuportavelmente pungentes. Aquelas eram palavras que deveriam ser ditas para pessoas que viveram plenamente, e não para uma moça que mal começara a planejar a sua vida. Abaixou a cabeça durante as orações, sabendo que aquilo não traria nenhum consolo para aqueles que haviam conhecido Rosie. Eles não teriam paz até que ele, Maclennan, fizesse o seu trabalho.
E parecia, cada vez mais, que ele não conseguiria lhes dar o que precisavam. A investigação estava praticamente parada. A única prova recente era o cardigã que não oferecera nada além de alguns fragmentos de tinta. Mas nenhuma das amostras coletadas na casa dos estudantes em Fife Park era compatível. Os seus superiores mandaram um superintendente para avaliar o trabalho que ele e a sua equipe haviam feito, sugerindo que eles poderiam ter deixado a desejar. Mas o sujeito teve de reconhecer que Maclennan havia feito um bom trabalho. E não conseguiu oferecer uma única sugestão para novos progressos.
Maclennan via-se voltando sempre para os quatro estudantes. Os seus álibis eram tão inconsistentes que mal mereciam o nome. Gilbey e Kerr estavam interessados nela. Dorothy, uma das garçonetes, mencionara esse detalhe mais de uma vez durante o seu depoimento. "O altão, que parece um Ryan O’Neal moreno", dissera ela. Não que ele fosse descrever Gilbey assim, mas sabia de quem ela estava falando. "Ele era gamadão nela", acrescentara ela. "E o baixinho, que parece um dos T. Rex. Estava sempre sonhando acordado com Rosie. Não que ela lhe desse confiança, veja bem. Ela dizia que ele era muito convencido para o gosto dela. Já o outro, o altão, ela dizia que não se importaria em sair com ele, se fosse uns cinco anos mais velho."
Então, ali estava a sombra de um motivo. E, é claro, eles tiveram acesso ao veículo perfeito para transportar o corpo da moça. Só porque não foram encontradas provas, não significava que eles não haviam usado a Land Rover. Uma lona, uma esteira, até mesmo um pedaço mais grosso de plástico poderia ter limpado o sangue do interior do carro. Não havia a menor dúvida de que o assassino de Rosie estava de carro.
Ou isso, ou ele era um dos respeitáveis moradores de Trinity Place. O problema é que todos os moradores do sexo masculino, entre quatorze e setenta anos, pareciam ter um álibi. Na noite do crime, ou não estavam em casa, ou estavam dormindo, completamente inocentes. Chegaram a dar maior atenção a alguns estudantes, mas não encontraram nada que os ligasse a Rosie, ou ao crime.
Um detalhe da perícia havia feito com que Gilbey parecesse menos culpado: o esperma encontrado nas roupas de Rosie fora depositado por um secretor, alguém cujo tipo sanguíneo está presente em outros fluidos corporais. O estuprador, que possivelmente era o assassino também, tinha sangue do grupo O. Alex Gilbey era AB, o que significava que ele não poderia ter estuprado Rosie, a não ser que estivesse usando um preservativo. Mas Malkiewicz, Kerr e Mackie eram todos tipo O. Então, teoricamente, poderia ser qualquer um dos três.
Não achava que Kerr fosse capaz de cometer algum crime. Mas Mackie, sim, com certeza. Maclennan ficara sabendo da súbita conversão do rapaz ao cristianismo. Para ele, aquilo parecia um ato de desespero, gerado pela culpa. E com Malkiewicz, eram outros quinhentos. Maclennan esbarrara acidentalmente na questão da sexualidade do rapaz, mas se ele estava apaixonado por Gilbey, era possível que quisesse se livrar da concorrência. Não era de todo impossível.
Maclennan estava tão imerso em seus pensamentos que levou um susto ao perceber que a cerimônia havia chegado ao fim e que os fiéis já estavam de pé. O caixão estava sendo removido do altar e Colin e Brian Duff eram os primeiros do pequeno grupo que o carregava. Era possível ver as marcas das lágrimas no rosto de Brian, e Colin parecia estar reunindo todas as suas forças para não chorar.
Maclennan olhou para a sua equipe, fazendo sinal para que se retirassem da igreja enquanto o caixão desaparecia. A família ia ser levada até o cemitério para um enterro particular. Ele saiu da igreja e ficou parado na porta, observando as pessoas se dispersando. Não acreditava que o assassino estivesse ali, entre os fiéis; aquela era uma conclusão muito fácil para que ele pudesse se contentar com ela. Os policiais reuniram-se atrás dele, trocando comentários discretos entre si.
Escondida em um canto, Janice Hogg acendeu um cigarro. Não estava de serviço, afinal de contas, e precisava de uma dose de nicotina após todo aquele sofrimento. Havia dado apenas algumas tragadas quando Jimmy Lawson apareceu.
- Bem que eu achei que estava sentindo cheiro de cigarro - disse ele. - Posso te acompanhar?
Ele acendeu um cigarro, encostando-se na parede, o cabelo caindo na testa, obscurecendo os seus olhos. Janice percebeu que ele estava mais magro ultimamente, e que ficara mais bonito assim, com o rosto mais delgado e o maxilar mais definido.
- Eu não tenho pressa nenhuma de passar por isso de novo tão cedo - disse ele.
- Nem eu. Parece que todo mundo estava olhando para a gente, buscando a resposta que não temos.
- E não estamos nem próximos de ter. O DIC não arrumou um suspeito decente até agora - disse Lawson. A sua voz era tão amarga quanto o vento leste que carregava a fumaça dos seus lábios.
- Não é como Starsky & Hutch, né?
- Ainda bem que não. Quer dizer, você ia querer usar aquele uniforme?
Janice não pôde conter uma risadinha.
- Pensando bem...
Lawson inalou o ar profundamente.
- Janice... você gostaria de tomar um drinque comigo, um dia desses?
Janice olhou para ele, surpresa. Jamais passara pela sua cabeça que Jimmy Lawson percebia que ela era uma mulher, a não ser quando se tratava de preparar um chá, ou dar notícias ruins aos outros.
- Você está me convidando para sair?
- É o que parece, né? E então? O que você me diz?
- Não sei, Jimmy. Não sei se é uma boa ideia se envolver com alguém do trabalho.
- E quando é que a gente tem oportunidade de encontrar outras pessoas, a não ser quando estamos prendendo alguém? Vamos lá, Janice. Só um drinquezinho. Descobrir se a gente combina, que tal? - O seu sorriso lhe conferiu um charme que ela jamais havia percebido.
Olhou para ele, analisando a proposta. Ele não era exatamente um deus grego, mas também não era feio. Tinha fama de ser meio conquistador, alguém que geralmente conseguia o que queria sem fazer muito esforço. Mas sempre a tratara com gentileza, ao contrário de alguns colegas que faziam questão de mostrar o quanto a desprezavam. E fazia muito tempo que ela não saía com alguém interessante.
- Está bem - disse ela.
- Vou checar o quadro de funcionários hoje à noite. Ver quando nós dois vamos estar de folga. - Ele jogou a guimba do cigarro no chão e pisou nela com a ponta do pé. Ela o observou enquanto ele se afastava, indo juntar-se aos outros no outro canto. Ao que parece, tinha acabado de descolar um encontro.
Era a última coisa que imaginava possível de acontecer no funeral de Rosie Duff. Talvez o pastor tivesse razão. Era hora de olhar para o futuro, e não só para o passado.
13
Nenhum dos seus três amigos descreveria Esquisito como sensato, mesmo antes de se converter. Ele sempre fora uma mistura instável de cinismo e ingenuidade. Infelizmente, a sua recém-descoberta espiritualidade o havia despido do cinismo, sem oferecer um bom senso complementar. Então, quando os seus novos amigos crentes anunciaram que não havia ocasião mais oportuna para pregar do que o dia do funeral de Rosie, Esquisito deixou-se levar pela sugestão. A lógica era: as pessoas vão parar para refletir sobre a sua própria mortalidade. E aquele era o melhor momento para lembrá-las de que Jesus oferecera o único caminho para o reino dos céus. A ideia de dar o seu testemunho para estranhos faria com que ele rolasse no chão às gargalhadas algumas semanas antes, mas agora parecia a coisa mais natural do mundo.
Reuniram-se na casa do pastor, um animado jovem galês cujo entusiasmo era quase patológico. Mesmo na febre inicial da sua conversão, Esquisito o achava meio exagerado. Lloyd acreditava piamente que o resto da cidade não aceitara Jesus devido a um único motivo: ele e o seu rebanho não estavam trabalhando direito nas suas pregações. Era óbvio que ele não conhecia Ziggy, o ateu dos ateus. Quase todas as refeições que Esquisito fizera em Fife Park desde que voltaram para lá haviam incluído discussões passionais sobre fé e religião. Esquisito já estava cansado daquilo. Ainda não possuía conhecimento suficiente para rebater todos os argumentos e sabia, instintivamente, que responder com "Este é o mistério da fé" não era o bastante. O estudo da Bíblia ia resolver isso com o tempo, tinha certeza. E até lá, estava rezando para ter paciência e boas respostas.
Lloyd colocou uns panfletos na sua mão.
- Esses aqui dão uma boa introdução sobre o Senhor, junto com uma pequena seleção de passagens da Bíblia - explicou ele. - Tente puxar assunto com as pessoas e depois pergunte se elas podem perder cinco minutinhos do seu tempo para se livrarem da degradação. Aí você entrega o panfleto e pede para elas não deixarem de ler. E explica que se quiserem tirar alguma dúvida, podem encontrar você no culto de domingo. - Lloyd fez um gesto amplo com as mãos, como se querendo dizer que a coisa era simples.
- Ok - disse Esquisito. Olhou para o pequeno grupo à sua volta. Deviam ser uns seis. Tirando Lloyd, tinha apenas mais um homem. Ele havia trazido um violão e parecia empolgado. Infelizmente, a sua empolgação não era proporcional ao seu talento. Esquisito sabia que não devia julgar as pessoas, mas achava que, mesmo em um dia ruim, conseguia tocar muito melhor do que aquele nerd. Mas ele ainda não tinha aprendido as músicas, então não ia poder sair cantando para Jesus naquela noite.
- O pessoal da música vai ficar na North Street. Ali sempre tem movimento. O resto pode rodar pelos pubs. Não precisa entrar. É só abordar as pessoas que estiverem entrando ou saindo. Agora, vamos só fazer uma pequena oração antes de partirmos para a missão do Senhor. - Deram-se as mãos e abaixaram a cabeça. Esquisito experimentou mais uma vez aquela nova sensação familiar de paz o invadir, enquanto se colocava nas mãos do seu Salvador.
Era engraçado ver como as coisas haviam mudado, pensou ele mais tarde, enquanto caminhava sem pressa de um pub para outro. Antigamente, jamais lhe passaria pela cabeça abordar estranhos, a não ser para pedir informações. Mas a verdade é que estava realmente gostando daquilo. A maioria das pessoas lhe dava um fora, mas várias haviam aceitado o panfleto e ele estava confiante de que veria algumas novamente. Estava convencido de que aquelas pessoas tinham notado a tranquilidade e a alegria que ele certamente estava emanando.
Eram quase dez horas da noite quando ele cruzou o maciço arco de pedra da West Port em direção ao Lammas. Ficava chocado ao lembrar quanto tempo havia perdido lá dentro. Não tinha vergonha do seu passado; Lloyd o ensinara que aquilo não era bom. O seu passado era um parâmetro de comparação que servia para mostrar o quão gloriosa era a sua vida atual. Mas lamentava não ter encontrado aquela paz e abrigo antes.
Atravessou a rua e ficou parado na porta do Lammas. Nos primeiros dez minutos, entregou apenas um panfleto para um dos frequentadores habituais do pub, que lançou um olhar curioso para Esquisito enquanto ele abria a porta. Um pouco depois, a porta se abriu novamente, violenta. Brian e Colin Duff surgiram na rua, acompanhados por alguns outros rapazes. Estavam possessos e calibrados de bebida.
- O que é que você está fazendo aqui, porra? - grunhiu Brian, agarrando Esquisito pelo casaco. Ele o empurrou violentamente contra a parede.
- Eu só estava...
- Cala a boca, seu merda - gritou Colin. - Enterramos a minha irmã hoje, graças a você e aos seus amiguinhos desalmados. E você ainda tem a coragem de aparecer por aqui, para pregar?
- E você ainda se diz cristão? Você matou a minha irmã, seu babaca. - Brian estava atirando o corpo de Esquisito contra a parede sem parar. Esquisito tentou se esquivar das suas garras, mas ele era muito mais forte.
- Nunca encostei um dedo nela - gemeu ele. - Não fomos nós.
- Então quem foi? Vocês eram os únicos que estavam lá - esbravejou Brian. Ele largou o casaco de Esquisito e levantou a mão, fechada em punho. - Vamos ver se você vai gostar disso aqui, babaca. - Entrou com um gancho de direita no maxilar de Esquisito, e depois com um de esquerda no rosto. Esquisito caiu de joelhos no chão. Parecia que a parte inferior do seu rosto ia despencar em suas mãos.
E aquilo era só o começo. Pés e punhos surgiram de repente, golpeando cruelmente o seu corpo. Sangue, lágrimas e muco escorriam pelo seu rosto. O tempo parecia estar parado, distorcendo as palavras e intensificando cada golpe agonizante. Nunca participara de uma briga de gente grande e toda aquela violência explícita o aterrorizava.
- Meu Deus, meu Deus - soluçava ele.
- Ele não vai te ajudar agora, seu merda! - gritou um dos agressores.
Então, como por milagre, a surra chegou ao fim. E tão logo o último golpe foi desferido, ficaram todos em silêncio.
- O que é que está acontecendo aqui? - perguntou uma voz de mulher. Esquisito, encolhido na posição fetal que adotara durante a surra, levantou a cabeça. Uma policial estava diante dele. Atrás dela, ele pôde ver o policial que acompanhara Alex na noite do crime. Os agressores estavam parados no mesmo lugar, carrancudos, com as mãos nos bolsos.
- A gente só estava se divertindo um pouquinho - disse Brian.
- Não me parece nada divertido, Brian. A sorte dele é que o dono do pub decidiu chamar a polícia - disse ela, agachando-se para examinar o rosto de Esquisito. Ele ficou sentado e tossiu, expelindo muco e sangue. - Você é Tom Mackie, não é? - perguntou ela, compreendendo tudo.
- Sou - gemeu ele.
- Eu vou pedir uma ambulância - disse ela.
- Não - acudiu Esquisito, conseguindo se levantar com muito esforço. - Eu vou ficar bem. A gente só estava se divertindo mesmo. - Falar, percebeu ele, não estava sendo nada fácil. Era como se tivesse feito um transplante de maxilar que não estava funcionando muito bem.
- Acho que o seu nariz está quebrado, filho - disse o policial. Qual era mesmo o nome dele? Morton? Lawton? Lawson, isso.
- Está tudo bem. Eu moro com um médico.
- Ele era um estudante de medicina na última vez que ouvi falar dele - disse Lawson.
- Vamos te levar para casa na viatura - disse a mulher. - Eu sou a policial Hogg e este é o policial Lawson. Jimmy, cuida dele um instantinho, eu preciso ter uma palavra com esses idiotas. Colin, Brian? Venham cá. E vocês aí, caiam fora. - Ela levou Colin e Brian para um canto. Teve o cuidado de permanecer perto de Lawson, para que ele pudesse acudir, caso as coisas saíssem do controle. - Que diabos foi isso? - perguntou ela. - Vejam só o estado do garoto.
Boquiaberto, com os olhos vidrados e encharcado de suor, Brian deu um sorriso bêbado de escárnio.
- Foi menos do que ele merece. E você sabe muito bem o que foi isso. Estamos fazendo o seu trabalho, porque vocês são um bando de incompetentes que não conseguem descobrir porra nenhuma.
- Cala a boca, Brian! - implorou Colin. Ele estava apenas um pouco mais sóbrio do que o irmão, mas sempre tivera uma espécie de instinto para evitar problemas. - Olha, foi mal, tá? As coisas saíram um pouco do controle por aqui.
- E como, né? Vocês quase mataram o garoto.
- Pode até ser, mas ele e os amiguinhos fizeram o serviço completo com a minha irmã - disse Brian, doido para começar outra briga. De repente, o seu rosto ficou enrugado e lágrimas correram pela bochecha. - A minha irmãzinha. A minha Rosie. O que eles fizeram com ela não se faz nem com um cachorro.
- Você está enganado, Brian. Eles são testemunhas, não suspeitos - disse Janice, exausta. - Eu já te expliquei isso, na noite do crime.
- Vocês são os únicos que pensam assim por aqui - disse Brian.
- Fica quieto! - pediu Colin. Ele se virou para Janice. - Você vai prender a gente, ou o quê?
Janice suspirou.
- Eu sei que o enterro de Rosie foi hoje. Eu estive lá e vi o quanto os pais de vocês estão arrasados. Em consideração a eles, eu vou deixar passar desta vez. Acho que o Sr. Mackie não vai querer prestar queixa. - Colin fez menção de falar alguma coisa, mas ela prontamente ameaçou, com o dedo em riste: - Mas você e o Cassius Clay aqui vão ter que me prometer que não vão mais sair por aí fazendo esse tipo de coisa, ok? Esse é o trabalho da polícia.
Ele concordou com um gesto de cabeça.
- Ok, Janice.
Brian fez uma cara de espanto.
- Desde quando você chama ela de Janice? Ela não está do nosso lado, não, entendeu?
- Cala a porra dessa boca, Brian! - disse Colin, sílaba por sílaba. - Peço desculpas pelo meu irmão. Ele bebeu um pouco demais.
- Tudo bem. Mas você não é burro, Colin. Você sabe que eu não estou brincando. Deixem Mackie e os amigos dele em paz. Entendeu?
Brian deu um riso debochado.
- Acho que ela está a fim de você, hein, Colin?
A ideia obviamente acionou a parte bêbada do cérebro de Colin Duff.
- Sério? Ué, o que você acha, Janice? Por que você não me coloca na linha, hein? Topa sair comigo? Aposto que você ia se divertir.
Janice percebeu um movimento com o canto dos olhos e virou-se a tempo de ver Jimmy Lawson sacando o cassetete e avançando em direção a Colin Duff. Ela levantou a mão para mantê-lo afastado, mas a ameaça já fora o bastante para que Colin recuasse, com os olhos arregalados e assustados.
- Ei! - protestou ele.
- Limpa essa boca, seu escrotinho de merda! - bradou Lawson, sério e irado. - Nunca, nunca mais na sua vida se dirija a um policial assim! E agora, suma da minha frente antes que eu convença a oficial Hogg a mudar de ideia e mandar vocês dois para cumprir uma boa pena na cadeia! - As palavras que saíram dos seus lábios contraídos refletiam a sua animosidade. Janice estava passada. Detestava quando os policiais homens achavam que podiam demonstrar a sua masculinidade com o pretexto de defender a sua honra.
Colin agarrou Brian pelo braço.
- Vamos. Tem uma cerveja esperando a gente lá dentro. - Ele levou o seu irmão desconfiado embora, antes que ele causasse mais alguma encrenca.
Janice virou-se para Lawson.
- Não tinha necessidade disso, Jimmy.
- O quê? Ele estava te passando uma cantada! E ele não serve nem para engraxar os seus sapatos. - A voz dele era só desprezo.
- Eu sei me cuidar muito bem, Jimmy. Já tive que aturar coisas muito piores do que Colin Duff sem ter você ao meu lado bancando o herói. Agora, vamos levar o garoto pra casa.
Ajudaram Esquisito a entrar no carro e o acomodaram no banco de trás. Quando Lawson se dirigia para o banco do motorista, Janice disse:
- E Jimmy... Sobre o nosso encontro. Acho que não vai dar, não.
Lawson olhou para ela longa e fixamente.
- Você é que sabe.
Foram até Fife Park em um silêncio sepulcral. Ajudaram Esquisito até a porta de casa e depois voltaram para o carro.
- Janice, desculpa se peguei pesado. Mas Duff passou dos limites. Não se pode falar com um policial daquele jeito - disse Lawson.
Janice se inclinou sobre o teto do carro.
- Ele passou dos limites, sim. Mas você não reagiu daquele jeito porque ele estava insultando o cargo. Você sacou o seu cassetete porque, na sua cabeça, você achou que eu era propriedade sua, só porque topei sair para tomar um drinque com você. E ele estava invadindo o seu território. Sinto muito, Jimmy. Mas o que eu menos preciso na minha vida agora é isso.
- Não foi nada disso, Janice - protestou Lawson.
- Deixa pra lá, Jimmy. Sem ressentimentos, ok?
Ele deu de ombros, petulante.
- Você é que vai sair perdendo mesmo. Companhia feminina é o que não me falta. - Ele entrou no carro e sentou-se no banco do motorista.
Janice sacudiu a cabeça, incapaz de conter um sorriso. Como os homens eram previsíveis. Bastava sentir um cheiro de feminismo no ar para darem no pé imediatamente.
Dentro de casa, em Fife Park, Ziggy estava examinando Esquisito.
- Eu disse que isso ia acabar em lágrimas - disse ele, pressionando delicadamente os dedos no tecido inchado em volta das costelas e do abdômen de Esquisito. - Você sai para uma pregaçãozinha light e volta parecendo um figurante de filme de guerra. Avante, soldados cristãos!
- Não teve nada a ver com o meu testemunho - disse Esquisito, franzindo o rosto de dor por causa do esforço. - Foram os irmãos de Rosie.
Ziggy parou imediatamente.
- Os irmãos de Rosie fizeram isso com você? - perguntou, visivelmente preocupado.
- Eu estava na porta do Lammas. Alguém deve ter contado a eles. Eles saíram e me deram uma surra.
- Puta que pariu. - Ziggy foi até a porta. - Gilly! - gritou ele. Mondo tinha saído, como fazia quase toda noite, desde que haviam voltado das férias. Às vezes aparecia para o café da manhã, às vezes, nem isso.
Alex desceu as escadas correndo, estacando diante da visão do rosto destruído de Esquisito.
- O que aconteceu com você, porra?
- Os irmãos de Rosie - resumiu Ziggy. Encheu uma tigela com água morna e começou a limpar o rosto de Esquisito delicadamente, com bolas de algodão.
- Eles te deram uma surra? - Alex mal conseguia compreender o que estava acontecendo.
- É o que parece - disse Esquisito. - Ai! Dá pra ir com mais cuidado?
- O seu nariz está quebrado. Você devia ir pro hospital - disse Ziggy.
- Detesto hospitais. Conserta aí pra mim.
Ziggy suspendeu as sobrancelhas.
- Tenho medo de não ficar bom e você acabar igual a um boxeador frustrado.
- Vou arriscar.
- Pelo menos, o maxilar está inteiro - disse ele, inclinando-se diante do rosto de Esquisito. Segurou o nariz dele com as duas mãos e girou, tentando não ficar enjoado com a crepitação triturante da cartilagem. Esquisito gritava, mas Ziggy seguiu em frente. Tinha suor sobre os lábios. - Pronto - disse ele. - Isso é o melhor que eu posso fazer.
- O funeral de Rosie foi hoje - disse Alex.
- Ninguém avisou a gente - reclamou Ziggy. - Isso explica por que os ânimos estavam tão exaltados.
- Você acha que eles vão vir atrás da gente, então? - perguntou Alex.
- A polícia os ameaçou - disse Esquisito. Falar estava ficando cada vez mais difícil, à medida que o maxilar enrijecia.
Ziggy observou o seu paciente.
- Bom, Esquisito, vendo o seu estado, Deus queira que eles tenham se sentido ameaçados mesmo.
14
Qualquer esperança que pudessem ter acalentado sobre a morte de Rosie ter sido uma comoção passageira foi por água abaixo diante da cobertura jornalística do funeral. Lá estava o crime na primeira página novamente e qualquer pessoa que tivesse perdido a cobertura inicial dificilmente conseguiria ignorar a reprise.
E Alex, novamente, foi a primeira vítima. Voltando do supermercado para casa alguns dias depois, estava pegando um atalho no fundo do Jardim Botânico quando Henry Cavendish e os seus amigos surgiram em um bando desorganizado, com roupas de rúgbi. Assim que avistaram Alex, começaram a assoviar, depois o cercaram e começaram a empurrá-lo. Formando um círculo à sua volta, arrastaram-no para fora da grama e o atiraram no chão lamacento de neve derretida. Alex rolava no chão, tentando se esquivar dos chutes. Não corria o risco de se confrontar com uma violência real como a que Esquisito experimentara e estava mais irritado do que com medo. Uma bota acertou o seu nariz e ele sentiu o sangue esguichar.
- Sumam daqui! - gritou ele, limpando a mistura de lama, sangue e neve derretida do rosto. - Por que vocês não me deixam em paz, porra?
- Vocês é que deviam sumir, matador - gritou Cavendish. - Ninguém quer vocês por perto.
Uma voz tranquila acudiu.
- E quem quer vocês por perto?
Alex esfregou os olhos e viu Jimmy Lawson parado, à margem do grupo. Demorou um pouco para reconhecê-lo sem o uniforme, mas o seu coração acelerou quando percebeu quem era.
- Cai fora - disse Edward Greenhalgh. - Você não tem nada a ver com isso.
Lawson meteu a mão dentro do casaco e puxou o seu distintivo da polícia. Abrindo-a de modo displicente, ele disse:
- Acho que tenho, sim, senhor. Pois bem, quero saber o nome de cada um de vocês. Creio que é um assunto que terá de ser levado para as autoridades acadêmicas.
Súbito, eram crianças novamente. Mexeram-se para lá e para cá, inquietos, olhando fixamente para o chão, resmungando os detalhes para Lawson, que anotava tudo no seu caderninho. Enquanto isso, Alex levantou-se, encharcado e imundo, contemplando os destroços das suas compras. Uma garrafa de leite estourara sobre a sua calça, uma jarra plástica de iogurte de limão entornara sobre uma das mangas do seu casaco.
Lawson dispensou os vândalos e ficou parado olhando para Alex, sorrindo.
- Você está péssimo - disse ele. - Sorte sua eu estar passando por aqui.
- Você não está trabalhando? - perguntou Alex.
- Não. Eu moro ali na esquina. Dei uma saída rápida para pegar a correspondência. Vamos, vamos até lá em casa, dar um jeito nessa sua roupa.
- Eu agradeço a sua gentileza, mas não precisa, não.
Lawson sorriu.
- Você não pode andar por St. Andrews desse jeito. Vai acabar sendo preso por assustar os jogadores de golfe. E, além do mais, você está tremendo. Precisa de uma xícara de chá.
Alex não ia discutir. A temperatura estava caindo vertiginosamente e a ideia de voltar para casa a pé, encharcado daquele jeito, não era nada agradável.
- Obrigado - aceitou ele.
Dobraram a esquina e entraram em uma rua novinha em folha, tão nova que ainda não estava nem asfaltada. As primeiras casas já estavam prontas mas, não muito adiante, havia apenas terrenos vazios para futuras construções. Lawson passou direto pelas casas prontas e parou mais à frente, diante de um trailer estacionado no que, um dia, poderia ser um jardim. Atrás do trailer, quatro paredes e vigas de madeira cobertas de lona ofereciam a promessa de algo mais suntuoso do que um veículo com quatro cabines.
- Estou construindo uma casa. A rua toda está fazendo a mesma coisa. Cada um ajuda o outro, com trabalho braçal e habilidades específicas. Assim, eu vou conseguir ter uma casa de chefe com um salário de policial. - Ele subiu os degraus do trailer. - Mas, por enquanto, é aqui que eu moro.
Alex entrou atrás dele. O trailer era aconchegante, com um aquecedor a gás portátil exalando calor no limitado recinto. Alex ficou impressionado com a arrumação. A maioria dos homens solteiros que ele conhecia vivia em chiqueiros, mas a casa de Lawson era impecável. Todos os metais brilhavam. A pintura estava limpa e era recente. As cortinas de cor viva estavam amarradas com capricho. Não havia nada bagunçado. Estava tudo no lugar, organizado; livros na estante, xícaras penduradas pela alça no gancho no armário, fitas cassetes em uma caixa, plantas de arquiteto emolduradas no tabique. O único sinal de que alguém de fato morava ali era uma panela fervendo no fogão. O cheiro da sopa de lentilhas atingiu Alex em cheio.
- Muito bom - comentou ele, dando uma olhada geral.
- É um pouco apertado, mas mantendo arrumado não fica tão claustrofóbico. Tira a jaqueta, a gente pode colocar ali em cima do aquecedor. Agora, você precisa lavar o rosto e as mãos. O banheiro fica ali, logo depois do fogão.
Alex entrou no minúsculo cubículo. Olhou-se no espelho, sobre a pia de casa de bonecas. Estava realmente péssimo. Sangue coagulado, lama. E iogurte de limão grudado no cabelo. Não era de admirar que Lawson tivesse insistido para que ele fosse até o trailer se ajeitar. Deixou a água correr na pia e se esfregou até ficar limpo. Quando saiu do banheiro, Lawson estava inclinado no fogão.
- Agora, sim! Senta aí do lado do aquecedor, você vai se secar rapidinho. Quer um chá? Ou então, acabei de fazer uma sopa, se você preferir.
- Vou aceitar a sopa. - Alex sentou-se ao lado do aquecedor enquanto Lawson servia às colheradas uma tigela generosa da sopa amarelo-dourada com pedaços de pernil de porco. Colocou a tigela diante de Alex e lhe deu uma colher. - Não quero parecer rude, mas por que o senhor está sendo tão gentil comigo? - perguntou ele.
Lawson sentou à sua frente e acendeu um cigarro.
- Porque tenho pena de você, e dos seus amigos. Tudo o que vocês fizeram foi agir como cidadãos responsáveis, mas ganharam fama de bandidos. E eu me considero parcialmente responsável. Se eu estivesse fazendo a minha ronda, em vez de estar prostrado dentro do meu carro, poderia ter pegado o assassino em flagrante. - Ele inclinou a cabeça para trás e exalou um suspiro de fumaça no ar. - É por isso que eu acho que não foi alguém daqui. Qualquer um que conhecesse aquela região à noite saberia que sempre tem uma viatura de polícia parada ali. - Lawson fez uma careta. - Não temos ajuda de custo de gasolina suficiente para dirigirmos por aí a noite toda, então somos obrigados a estacionar em algum lugar.
- Maclennan ainda acha que fomos nós? - perguntou Alex.
- Não sei o que ele acha, filho. Vou ser franco com você. Voltamos à estaca zero. E por isso vocês acabaram na linha de fogo. E os irmãos Duff estão soltos por aí, caçando vocês, e pelo que eu vi hoje, os seus amigos também se voltaram contra você.
Alex bufou.
- Eles não são meus amigos. O senhor realmente vai dar queixa deles?
- Você quer que eu faça isso?
- Para falar a verdade, não. Eles vão acabar arrumando um jeito de se vingar. Mas não acho que vão nos perseguir mais depois dessa. Vão ficar com medo da mamãe e do papai ouvirem a respeito e cortar a mesada deles. Estou mais preocupado com os Duff.
- Acho que eles também vão deixar vocês em paz. A minha colega pegou pesado com eles. O seu amigo Mackie teve o desprazer de topar com eles em um péssimo dia. Eles estavam arrasados depois do funeral.
- Com certeza. Só espero não receber um tratamento como o que Esquisito ganhou.
- Esquisito? Você está falando do Sr. Mackie? - Lawson franziu a testa.
- A-ham. É um apelido dos tempos de colégio. De uma música do David Bowie.
Lawson sorriu.
- Mas é claro! Ziggy Stardust e as Aranhas de Marte. Então você é o Gilly, não é? E Sigmund, o Ziggy.
- Exatamente.
- Eu não sou tão mais velho do que vocês assim. E o que sobrou para o Sr. Kerr?
- Ele não é muito fã de David Bowie, não. Ele gosta do Pink Floyd. Então, ficou sendo Mondo. Crazy Diamond? Lembra?
Lawson fez que sim com a cabeça.
- Ótima sopa, por sinal.
- Receita da minha mãe. Vocês se conhecem há um tempão, então?
- Nos conhecemos no primeiro dia de aula. Somos melhores amigos desde então.
- Todo mundo precisa de amigos. É como no meu trabalho. Você trabalha com as mesmas pessoas durante um tempo e elas são como os seus irmãos. Você dá a vida por elas, se for necessário.
Alex deu um sorriso compreensivo.
- Sei o que você quer dizer. Com a gente também é assim. - Ou era assim, pensou ele, sentindo uma pontada no peito. Naquele semestre, as coisas estavam bem diferentes. Esquisito passava mais tempo com o Esquadrão de Deus do que com eles. E só Deus sabia onde Mondo se metia na maior parte do tempo. Os Duff não eram os únicos pagando um alto preço emocional pela morte de Rosie, percebeu Alex subitamente.
- Então vocês seriam capazes de mentir pelo outro se fosse preciso, né?
Alex parou com a colher no ar, a caminho da boca. Então era isso. Empurrou a tigela e se levantou, apanhando a jaqueta.
- Obrigado pela sopa - disse ele. - Estou bem agora.
Ziggy raramente se sentia solitário. Por ser filho único, estava acostumado com a sua própria companhia e nunca deixou de se divertir. Sua mãe sempre olhava para os outros pais como se eles fossem malucos quando reclamavam que os filhos se sentiam entediados durante as férias. Tédio jamais fora problema naquela família.
Mas naquela noite, a solidão infiltrara-se em sua casa em Fife Park. Ele estava cheio de trabalho para mantê-lo ocupado, mas pela primeira vez precisava de companhia. Esquisito saíra com o seu violão, tentando aprender como louvar o Senhor em três acordes. Alex chegara em casa de mau humor após uma briga com a Direita e um encontro com o tira Lawson, que havia terminado mal. Mudara de roupa e partira para uma palestra com slides sobre pintores venezianos. E Mondo estava fora, provavelmente trepando.
E essa até que não era uma má ideia. A última vez que fizera sexo foi bem antes de se depararem com Rosie Duff. Passara a noite em Edimburgo, no único pub que conhecia onde gays eram bem recebidos. Ficara parado no bar, bebericando o seu chope, olhando furtivamente para os lados, evitando olhar fixamente para alguém. Passada meia hora, um jovem de uns vinte e poucos anos parou ao seu lado. Usava jeans, camiseta e jaqueta. Era bonito, tinha aparência de durão. Puxou um papo e eles acabaram fazendo sexo, rápido mas satisfatório, contra a parede do banheiro. Terminaram muito antes do horário do último trem, que levaria Ziggy de volta para casa.
Ziggy ansiava por algo mais do que aqueles encontros anônimos com estranhos, que constituíam a sua única experiência com sexo. Queria o que os seus amigos heterossexuais pareciam ter com tanta facilidade. Queria galanteios e romance. Alguém com quem pudesse compartilhar uma intimidade que fosse além da troca de fluidos corporais. Queria um namorado, um amante, um parceiro. E não fazia a menor ideia de como encontrá-lo.
Havia um grupo gay na universidade, ele sabia. Mas eram uns gatos pingados que pareciam adorar a polêmica de serem reconhecidos como gays. A política da Liberação Gay interessava Ziggy, mas os caras que ele via posando pelo campus não tinham nenhum compromisso político sério. Só gostavam de ser populares. Ziggy não tinha vergonha de ser gay, mas não queria que aquilo fosse a única coisa que as pessoas soubessem a seu respeito. Além disso, queria ser médico e suspeitava, sabiamente, que uma carreira como ativista gay não ajudaria muito na sua ambição.
Então, por enquanto, a única saída para extravasar os seus sentimentos eram os encontros casuais. Pelo que sabia, não havia nenhum pub em St. Andrews onde pudesse encontrar o que estava procurando. Mas havia alguns lugares para onde os homens iam, prontos para fazer sexo anônimo com estranhos. O problema é que esses lugares eram ao ar livre, e naquele tempo poucos iriam enfrentar o frio. Mas, mesmo assim, ele não devia ser o único rapaz em St. Andrews a fim de transar naquela noite.
Ziggy vestiu a sua jaqueta de pelo de carneiro, amarrou o cadarço das botas e saiu de encontro ao ar gelado da noite. Depois de uma caminhada vigorosa de quinze minutos, lá estava ele, nos fundos da catedral em ruínas. Atravessou o pátio, alcançando o que restara da igreja de Santa Maria. Espreitando nas sombras das paredes arruinadas, era comum ver homens por lá tentando fingir que haviam saído para dar uma voltinha que incluía um tour pela herança arquitetônica do lugar. Ziggy ergueu os ombros e tentou parecer casual.
No porto, Brian Duff estava bebendo com os amigos. Estavam entediados. E bêbados o bastante para fazer algo a respeito.
- Isso aqui está um saco - reclamou Donny, seu melhor amigo. - E a gente não tem nem grana pra ir a um lugar onde se possa passar uma noite decente.
A reclamação correu o grupo. Então Kenny teve uma ideia.
- Já sei o que a gente pode fazer. Diversão e dinheiro. E sem o risco de sermos denunciados.
- O quê? - quis saber Brian.
- Vamos roubar uns viados.
Olharam para ele como se estivesse falando grego.
- Hein? - perguntou Donny.
- Vai ser engraçado. E eles estão sempre com dinheiro. Não vão querer criar caso com a gente, né? São um bando de maricas mesmo.
- Você está sugerindo sair por aí e assaltar os outros? - perguntou Donny, deixando a preocupação transparecer em sua voz.
Kenny deu de ombros.
- Estou falando dos viados. Eles não contam. Nem vão sair correndo para a polícia, né? Porque aí vão ter que explicar o que estavam fazendo nos fundos da igreja de Santa Maria, no escuro.
- Pode ser engraçado - disse Brian, com a voz arrastada. - Fazer as bonecas se borrarem de medo. - Ele riu. - Se borrarem de medo. Isso pode ser uma má notícia para alguém. - Ele esvaziou a garrafa de cerveja e ficou de pé. - Vamos lá, então. O que vocês estão esperando?
Saíram sorrateiros pela noite, se acotovelando e rindo alto. Não precisaram caminhar muito até as ruínas da igreja. A meia-lua espreitava entre nuvens inconstantes, tornando o mar prateado e iluminando o caminho dos rapazes. À medida que se aproximavam, iam ficando em silêncio, pisando na ponta dos pés. Circularam a igreja. Nada. Esgueirando-se contra a parede, cruzaram os vestígios de uma soleira. E lá, em plena alcova, encontraram o que estavam procurando.
Um homem encostado na parede, com a cabeça jogada para trás, deixando gemidos de prazer escaparem dos seus lábios entreabertos. Diante dele, um outro homem ajoelhado, com a cabeça movimentando-se para frente e para trás.
- Ora, ora - disse Donny. - O que temos aqui?
Assustado, Ziggy levantou a cabeça e olhou, aterrorizado, para o seu pior pesadelo.
Brian Duff deu um passo à frente.
- Isso realmente vai ser divertido.
CONTINUA
Novembro de 2003; St. Andrews, Escócia
Ele sempre gostou do cemitério ao amanhecer. Não que a aurora oferecesse alguma promessa de recomeço, e sim porque era cedo demais para haver alguém por perto. Mesmo no período mais rigoroso do inverno, quando a pálida luz da manhã demorava mais para aparecer, ele podia garantir ali a sua solidão. Não havia olhares intrometidos tentando descobrir quem ele era e por que estava lá, de cabeça baixa, diante daquela sepultura específica. Não havia intrometidos questionando o seu direito de estar lá.
A jornada até ali fora longa e problemática. Mas ele era bom em levantar informações. Obsessivo, diriam alguns. Ele preferia ser chamado de persistente. Aprendera a pesquisar fontes oficiais e não oficiais e, finalmente, após meses de busca, encontrou as respostas que estava procurando. Ainda que insatisfatórias, elas ao menos lhe forneceram um ponto de partida. Para algumas pessoas, uma sepultura representa o fim. Não para ele. Para ele, era uma espécie de começo.
Sempre soubera que a sepultura não bastaria por si só. Então ele esperou, aguardando um sinal que lhe mostrasse um caminho a seguir. E o sinal finalmente apareceu. À medida que o céu mudava de cor com a aurora, tirou do bolso e desdobrou um recorte que havia extraído do jornal local.
POLÍCIA DE FIFE REABRE CASOS NÃO RESOLVIDOS
Assassinatos não solucionados em Fife, de até trinta anos atrás, serão reexaminados em uma revisão completa de casos não resolvidos, anunciou a polícia local esta semana.
O chefe de polícia, Sam Haig, afirmou que novas descobertas forenses permitem que casos que foram arquivados há anos sejam reabertos, com alguma chance de serem resolvidos com sucesso. Provas antigas, guardadas nos arquivos da polícia durante décadas, serão submetidas a métodos como análise de DNA, na esperança de novos progressos.
James Lawson, subchefe de polícia, assumirá a revisão dos casos. Ele explicou ao Courier que "casos de assassinato nunca são encerrados. Devemos às vítimas e às suas famílias o prosseguimento das investigações. Em alguns casos, tivemos fortes suspeitos na época, embora não dispuséssemos de provas suficientes para ligá-los aos crimes. Mas, com as técnicas forenses modernas, um único fio de cabelo, uma mancha de sangue ou um vestígio de sêmen podem nos fornecer tudo o que precisamos para obter uma condenação. Tivemos vários exemplos recentes na Inglaterra de casos que foram levados a julgamento, com sucesso, após vinte anos ou mais. Uma equipe de detetives veteranos fará destes casos a sua prioridade número um".
Lawson não quis revelar quais casos específicos estarão no topo da lista para os seus detetives.
Mas o trágico assassinato da adolescente Rosie Duff sem dúvida estará entre eles.
A moça de Strathkinness, de 19 anos, foi estuprada, esfaqueada e abandonada à morte em Hallow Hill, há quase 25 anos. Ninguém foi preso pelo seu brutal assassinato.
O seu irmão Brian, de 46 anos, que ainda mora na propriedade da família, Caberfeidh Cottage, e trabalha em uma fábrica de papel em Guardbridge, declarou ontem à noite: "Nunca perdemos a esperança de que o assassino de Rosie um dia fosse a julgamento. Havia suspeitos na época, mas a polícia nunca conseguiu encontrar provas suficientes para incriminá-los. Infelizmente, os meus pais morreram sem saber quem cometeu aquela atrocidade com Rosie. Mas talvez agora possamos encontrar a resposta que eles mereciam ter obtido em vida."
Podia recitar o artigo de cor, mas gostava de contemplá-lo. Era como um talismã, lembrando que a sua vida não era mais sem sentido. Durante muito tempo quisera pôr a culpa em alguém. Não ousara sequer desejar vingança. Mas agora, finalmente, era a hora de se vingar.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_ECO_DISTANTE.jpg
Parte Um
1
1978; St. Andrews, Escócia
Quatro da manhã, na época mais fria de dezembro. Quatro silhuetas imprecisas vacilavam no vai e vem da nevasca que pairava no ar, à mercê do vento nordeste, que vinha dos Urais e castigava o mar do Norte. Os oito pés cambaleantes daqueles que se autodenominavam os "Garotos de Kirkcaldy" trilhavam o caminho familiar do atalho de Hallow Hill até o Fife Park, a mais moderna das residências estudantis da Universidade de St. Andrews. Lá, as suas camas perpetuamente desfeitas os esperavam em um bocejo, lençóis e cobertores arrastando-se pelo chão, como uma língua pendurada para fora da boca.
A conversa dos rapazes repetia um tema tão habitual quanto o percurso que faziam.
- Eu estou te dizendo, Bowie é o maior - anunciava Sigmund Malkiewicz em voz alta, embaralhando as palavras, o seu rosto, normalmente impassível, desanuviado pela bebida. Um pouco atrás dele, Alex Gilbey puxava o capuz do seu agasalho para mais perto do rosto e sufocava o riso, antecipando silenciosamente a resposta que estava prestes a ouvir.
- Bobagem - retrucou Davey Kerr. - Bowie não passa de um maricas. O Pink Floyd dá de dez a zero em David Bowie. Dark Side of the Moon, isso sim é um clássico. Bowie não fez nada à altura até hoje. - Sob o peso da neve derretida, longos cachos negros caíam sobre o seu rosto delicado e ele os empurrava para trás, impaciente.
E lá iam eles. Como magos conjurando magias de combate um contra o outro, Sigmund e Davey lançavam títulos de música, letras e riffs de guitarra em um duelo que já durava uns seis ou sete anos. Pouco importava se, naquela época, era mais provável que as músicas que chacoalhavam as janelas dos seus aposentos fossem as do Clash, do Jam ou do Skids. Até mesmo os seus apelidos homenageavam as suas antigas paixões. Desde a primeira tarde em que se reuniram no quarto de Alex após as aulas para ouvir a sua nova aquisição, Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, foi inevitável que o carismático Sigmund passasse a ser Ziggy, o messias leproso, para toda a eternidade. E os outros teriam de se contentar em ser as suas Aranhas. Alex passara a ser Gilly, apesar dos seus protestos de que aquele era um apelido afeminado demais para alguém que aspirava à compleição robusta de um jogador de rúgbi. Mas era inútil discutir com o acaso do seu sobrenome. E nenhum deles teve a menor dúvida quanto a batizar o quarto membro do quarteto de Esquisito. Porque Tom Mackie era esquisito, com toda certeza. Era o mais alto dos alunos que cursavam o mesmo ano que ele e os seus membros espichados e desengonçados pareciam o resultado de uma mutação, desenvolvida para combinar com uma personalidade que gostava de ser perversa.
Sobrara apenas Davey, fiel à causa do Pink Floyd, que recusava firmemente qualquer apelido oriundo do cânone de Bowie. Durante um tempo, foi conhecido sem nenhum entusiasmo como Rosado, mas desde que os quatro ouviram pela primeira vez a música "Shine On, You Crazy Diamond", a discussão foi encerrada; Davey era um diamante louco, sem a menor sombra de dúvida, lançando fogo em direções imprevisíveis, impaciente e pouco à vontade fora do seu habitat. Diamond logo virou Mondo, e Mondo ele continuou sendo no último ano da escola e durante todo o curso universitário.
Alex balançou a cabeça, pasmo. Mesmo bêbado, ele se admirava com a cola que mantivera os quatro grudados durante todos aqueles anos. O mero pensamento provocava um bem-estar que o protegia do frio glacial, quando tropeçou em uma raiz proeminente, escondida debaixo de uma macia camada de neve. "Droga", resmungou ele, colidindo com Esquisito, que lhe deu um empurrão camarada, deixando-o estatelado no chão. Lutando para manter o equilíbrio, Alex deixou que o seu impulso o carregasse adiante e acabou dando um passo em falso e caindo declive abaixo, subitamente eufórico com a sensação da neve contra o seu rosto afogueado. Quando tentava subir de volta, sofreu uma queda tão inesperada que o chão sumiu debaixo dos seus pés. Caiu de pernas para o ar.
A sua queda foi amparada por algo macio. Alex se esforçava para se erguer, empurrando aquilo que o amparara. Cuspindo neve, esfregou os olhos com os dedos entorpecidos pelo frio, forçando o ar pelas narinas na tentativa de expelir o líquido gelado. Assim que olhou em volta para ver sobre o que havia aterrissado, os seus três companheiros surgiram na encosta para tripudiar da sua cômica desgraça.
Mesmo na lúgubre e indistinta claridade da neve, ele pôde ver que o que o amparara estava longe de ser do reino vegetal. A silhueta era, inconfundivelmente, a de um corpo humano. Os pesados flocos de neve começavam a derreter assim que aterrissavam no chão, permitindo que Alex percebesse uma figura de mulher, os cachos molhados do seu cabelo negro espalhados sobre a neve, como os de uma Medusa. A sua saia estava suspensa até a cintura e as botas negras que cobriam até os joelhos pareciam ainda mais destoantes em contraste com as suas pernas lívidas. Estranhas manchas escuras maculavam a pele da moça e a blusa que estava colada no seu peito. Alex contemplou a cena sem a compreender por um bom tempo, até olhar para as suas próprias mãos e ver as mesmas manchas escuras contaminando a sua pele.
Sangue. Aquela constatação lhe ocorreu no exato momento em que a neve que bloqueava os seus ouvidos derreteu e ele pôde ouvir a respiração ofegante da moça, fraca mas ruidosa.
- Meu Deus do Céu - gaguejou Alex, tentando afastar-se do horror com o qual havia se deparado. Mas, à medida que recuava, ia batendo no que pareciam ser pequenos muros de pedra. - Meu Deus. - Olhou para cima, desesperado, como se a mera visão dos seus companheiros pudesse quebrar aquele feitiço e fazer com que tudo desaparecesse. Voltou a olhar para aquela visão de pesadelo sobre a neve. Não era uma alucinação etílica: era real. Olhou novamente para os seus amigos. - Tem uma garota aqui embaixo - gritou ele.
A voz de Mackie Esquisito ecoou, sinistra:
- Que desgraçado sortudo.
- Para com isso, ela está sangrando.
A risada de Esquisito cortou a noite.
- Não tão sortudo assim afinal, né, Gilly?
Alex sentiu a raiva crescendo dentro dele.
- Não estou brincando, porra. Venham aqui. Ziggy, vem logo, cara.
Só então eles puderam ouvir a urgência na voz de Alex. Ziggy tomou a dianteira, como sempre, e eles o seguiram, caminhando com dificuldade pela neve até o topo da colina. Ziggy alcançou o declive correndo aos saltos, Esquisito mergulhou de cabeça na direção de Alex e Mondo veio por último, colocando um pé na frente do outro, cuidadosamente.
Esquisito acabou caindo de pernas para o ar, em cima de Alex, e os dois rolaram para cima do corpo da mulher. Debateram-se, tentando se desvencilhar um do outro, enquanto Esquisito ria como um doido.
- Ei, Gilly, isso deve ser o mais perto que você já chegou de uma mulher.
- Você fumou demais, cara - disse Ziggy, irritado, empurrando Esquisito para longe e agachando-se ao lado da mulher, buscando batimentos cardíacos no seu pescoço. Podia ouvi-los, mas eles estavam assustadoramente fracos. O medo o deixou sóbrio na mesma hora em que pôde distinguir, mesmo naquela luminosidade precária, o que tinha diante de si. Era apenas um estudante de medicina do último ano, mas sabia reconhecer um ferimento fatal.
Esquisito ficou de cócoras e franziu as sobrancelhas.
- Cara, sabe o que é isso aqui?
Ninguém estava prestando atenção, mas ele continuou assim mesmo:
- É o cemitério picto.[1] Tá vendo esses montinhos na neve, tipo uns muros pequenos? São as pedras que eles usavam como caixões. Cacete, Alex encontrou um cadáver em um cemitério. - E ele começou a rir novamente, produzindo um som estranho no ar abafado pela neve.
- Cala a porra da boca, Esquisito. - Ziggy continuava a deslizar as mãos sobre o peito da mulher, sentindo, sob os seus dedos perscrutadores, o resultado desalentador de uma ferida profunda. Jogou a cabeça para o lado, tentando examiná-la melhor. - Mondo, você está com o seu isqueiro aí?
Mondo avançou, relutante, e apanhou o seu Zippo. Acendeu o isqueiro e estendeu a luz fraca sobre o corpo da mulher, até o seu rosto. Com a mão livre cobriu a boca, tentando sem sucesso sufocar um gemido. Os seus olhos azuis se arregalaram, horrorizados, e a chama do isqueiro tremelicou em sua mão.
Ziggy respirou fundo. Os ângulos do seu rosto pareciam fantasmagóricos naquela luz trêmula.
- Merda - disse ele, ofegante. - É a Rosie, do Pub Lammas.
Alex não imaginava que fosse possível se sentir ainda pior. Mas as palavras de Ziggy foram como um soco no seu coração. Com um gemido sussurrante, ele virou de costas e vomitou na neve uma mistura de cerveja, batata chips e pão de alho.
- Nós temos que buscar ajuda - declarou Ziggy, com firmeza. - Ela ainda está viva, mas, no estado em que está, não vai continuar assim por muito tempo. Esquisito, Mondo, me deem os seus casacos. - Enquanto falava, Ziggy tirava a sua jaqueta de lã de carneiro e a colocava gentilmente em volta dos ombros de Rosie. - Gilly, você é o mais rápido. Vai buscar ajuda. Procura um telefone. Tira alguém da cama, se for preciso. Mas traz alguém aqui, ouviu? Alex?
Atordoado, Alex fez força para ficar de pé. Desceu o declive aos trancos e barrancos, sacudindo a neve abaixo dos pés, lutando para encontrar um apoio. Saiu do emaranhado das árvores e deparou-se com os postes que distinguiam o mais recente beco sem saída do alojamento novo, construído uns seis anos antes. Refazer o caminho por onde tinham vindo era o itinerário mais rápido.
Alex cobriu a cabeça e saiu em disparada, em uma corrida escorregadia até o meio da rua, tentando esquecer o que tinha visto. O que era tão impossível quanto manter o passo firme naquela neve fresca. Como aquela visão atroz entre as sepulturas pictas podia ser Rosie, do Pub Lammas? Naquela noite mesmo estiveram lá bebendo, animados e barulhentos sob o cálido brilho amarelado do bar, enchendo a cara de cerveja e aproveitando ao máximo a folga da universidade, antes que tivessem de retornar à repressão sufocante dos Natais em família, a quilômetros dali.
Ele próprio estivera conversando com Rosie, flertando com ela, daquela maneira desajeitada típica dos rapazes de vinte e um anos, incertos se ainda são garotos bobos ou homens maduros e experientes. Quis saber, não pela primeira vez, a que horas ela saía do pub. Chegou até a comentar sobre a festa para onde iam depois. Rabiscou o endereço atrás de um descanso de copo e o empurrou até ela pela mesa úmida de madeira do bar. Ela lhe deu um sorriso compassivo e apanhou o descanso de copo. Deve ter ido direto para o lixo, suspeitou Alex. O que uma mulher como Rosie iria querer com um garoto imaturo como ele, afinal? Com a sua beleza e aparência, ela podia escolher quem bem entendesse, alguém que pudesse lhe proporcionar alguma diversão, e não um estudante sem dinheiro, tentando fazer com que o pouco que tinha no bolso durasse até o seu emprego de férias, como arrumador de prateleiras no supermercado.
Então como aquela podia ser Rosie, estirada sobre a neve em Hallow Hill, banhada em sangue? Ziggy deve ter visto errado, insistia Alex para si mesmo enquanto pegava a esquerda, em direção à rua principal. Qualquer um podia se confundir sob a luz trêmula do isqueiro de Mondo. E Ziggy sequer prestara atenção na moça de cabelos negros do bar. Deixara isso para Alex e para Mondo. Devia ser alguma pobre mulher parecida com Rosie. Era isso, ele se convencia. Um engano, tudo não passava de um engano.
Alex hesitou por um momento, recuperando o fôlego e se perguntando para onde correr. Havia diversas casas nas redondezas, mas em nenhuma delas ele via alguma luz acesa. Mesmo que conseguisse acordar alguém, duvidava que fossem estar dispostos a abrir a porta para um jovem suado e cheirando a bebida no meio de uma tempestade de neve.
Foi então que ele se lembrou. Naquela hora da noite, havia sempre um carro de polícia estacionado perto da entrada principal do Jardim Botânico, a uns quinhentos metros de distância. Eles costumavam vê-los com frequência, quando voltavam cambaleantes pela madrugada, cientes do olhar enviesado do único ocupante do carro, tentando parecer sóbrios por causa dele. Era uma visão que sempre provocava um dos discursos do Esquisito sobre como a polícia era corrupta e preguiçosa. "Deviam era estar caçando os bandidos de verdade, prendendo os sujeitos de terno e gravata que roubam o nosso dinheiro, e não sentados aí, a noite inteira, com um cantil de chá e um saquinho de biscoito, torcendo para pôr as mãos em um bêbado mijando em uma cerca ou em algum idiota dirigindo em alta velocidade de volta para casa. Babacas preguiçosos." Bom, talvez hoje o desejo de Esquisito fosse realizado, em parte. Porque naquela noite o babaca preguiçoso dentro do carro iria receber mais do que merecia.
Alex virou-se na direção do Canongate e começou a correr novamente, a neve fresca estalando sobre as suas botas. Desejou ter dado continuidade aos seus treinos de rúgbi, quando uma pontada de dor tomou conta do seu flanco, transformando o seu ritmo em uma corrida torta e desengonçada, enquanto ele lutava para encher os pulmões de ar. Só mais uns dez metros, dizia para si mesmo. Não podia parar agora, quando a vida de Rosie talvez estivesse dependendo da sua velocidade. Olhou adiante, mas a neve estava caindo ainda mais pesada e ele mal podia enxergar o que tinha diante de si.
Estava perto do carro da polícia quando percebeu. Mesmo quando o alívio inundou o seu corpo suado, a apreensão apertou o seu peito. Sóbrio pelo choque e pelo esforço, Alex constatou que ele não se parecia em nada com o cidadão respeitável que normalmente denuncia um crime. Estava desgrenhado, suado, manchado de sangue e tremendo feito vara verde. De algum modo, tinha de convencer o policial, que já estava com metade do corpo para fora da patrulha, que ele não estava nem imaginando coisas, nem pregando uma peça. Estacou a alguns passos do carro, tentando não parecer uma ameaça, esperando que o motorista aparecesse.
O policial endireitou o quepe sobre o cabelo negro, bem curto. Inclinou a cabeça para um lado e examinou Alex, desconfiado. Mesmo camuflada pelo pesado casaco do uniforme, Alex podia ver a tensão no seu corpo.
- O que está acontecendo, filho? - perguntou ele. Apesar da abordagem paternal, o policial não parecia ser muito mais velho do que o próprio Alex, e possuía um ar de desconforto que não combinava nem um pouco com o seu uniforme.
Alex tentou controlar a respiração, mas não conseguiu.
- Tem uma moça lá em Hallow Hill - ele deixou escapar. - Ela foi atacada, está sangrando muito, precisa de ajuda.
O policial apertou os olhos diante da neve, franzindo a testa.
- Foi atacada? Como é que você sabe?
- Ela está ensopada em sangue. E... - Alex fez uma pausa para organizar as palavras. - Não está vestida de acordo com o clima. Está sem casaco. Escuta, será que você pode arrumar uma ambulância, um médico, qualquer coisa? Ela está muito ferida, cara.
- E você simplesmente topou com ela, no meio de uma nevasca, hein? Você andou bebendo, filho? - As palavras eram condescendentes, mas a voz o traía, deixando transparecer a sua ansiedade.
Alex sabia que aquele não era o tipo de coisa que acontecia com frequência no meio da noite, na pacata e suburbana St. Andrews. De algum jeito, precisava convencer o policial de que estava falando sério.
- É claro que eu estava bebendo - respondeu Alex, extravasando a sua frustração. - Por que eu estaria na rua numa hora dessas? Veja bem, eu e os meus amigos estávamos pegando um atalho, voltando para o nosso alojamento. Estávamos de bobeira e aí eu subi até o topo da colina, escorreguei e caí justo em cima dela. - Ele aumentou a voz, suplicante. - Por favor. Você precisa me ajudar. Ela pode morrer lá.
O policial estudou Alex pelo que pareceu uma eternidade. Então, debruçou no carro e desandou a falar pelo rádio. Enfiou a cabeça para fora da porta.
- Entre aí. Vamos até Trinity Place. É bom você não estar brincando - ele ameaçou, carrancudo.
O carro seguiu deslizando pela rua; os pneus não era adequados para a neve. Os poucos carros que passaram por ali mais cedo deixaram marcas que agora não passavam de leves depressões na branca superfície fofa da neve, testemunhas do peso dos seus flocos. O policial xingava baixinho, evitando derrapar nos postes a cada curva. Quando chegaram em Trinity Place, virou-se para Alex:
- Vamos lá, mostre-me onde está a moça.
Alex saiu em disparada, seguindo as suas pegadas que desapareciam rapidamente na neve. Ficava olhando para trás toda hora, para verificar se o policial estava atrás dele. Quase caiu de cabeça em um certo momento, os olhos demorando um pouco para se ajustarem à escuridão tremenda, onde as luzes da rua eram encobertas pelos troncos das árvores. A neve parecia lançar a sua própria luz sinistra sobre a paisagem, exagerando o tamanho dos arbustos e estreitando a trilha por onde eles avançavam.
- É por aqui - instruiu Alex, desviando para a esquerda. Uma rápida olhadela sobre os ombros confirmou que a sua companhia estava bem atrás dele.
O policial hesitou:
- Você não está mesmo drogado, filho? - perguntou, desconfiado.
- Vamos logo! - gritou Alex, com urgência, assim que viu as sombras negras acima dele. Sem esperar para ver se o policial continuava no seu encalço, Alex correu ladeira acima. Estava quase chegando quando o jovem policial o alcançou, passando na sua frente e parando a alguns passos do pequeno grupo.
Ziggy ainda estava agachado ao lado do corpo da mulher, a camisa grudada no seu tronco esguio em uma mistura de neve e suor. Esquisito e Mondo estavam ao seu lado, os braços cruzados sobre o peito, as mãos enfiadas nas axilas e as cabeças abaixadas entre os ombros levantados. Estavam apenas tentando se esquentar, na falta de um casaco, mas passavam uma infeliz imagem de arrogância.
- O que está acontecendo aqui, rapazes? - perguntou o policial. A sua voz era uma tentativa agressiva de impor autoridade, apesar de estar em desvantagem diante do grupo.
Ziggy levantou-se com dificuldade e afastou o cabelo encharcado dos olhos.
- Tarde demais. Ela está morta.
2
Nada em seus vinte e um anos de vida havia preparado Alex para um interrogatório policial no meio da noite. Os seriados de tevê e os filmes policiais sempre dão a impressão de que tudo é organizado. Mas a própria bagunça do processo era, de algum modo, ainda mais angustiante do que o rigor militar. Os quatro rapazes chegaram à delegacia em uma agitação caótica. Haviam sido escoltados às pressas do local do crime, banhados pelo pisca-pisca azulado das luzes das patrulhas e ambulâncias, e ninguém parecia saber direito o que fazer com eles.
Ficaram parados sob um poste pelo que pareceu uma eternidade, tiritando de frio, expostos ao olhar de reprovação do policial que Alex havia trazido e do seu colega, um homem grisalho de uniforme, corcunda e carrancudo. Nenhum dos dois lhes dirigiu a palavra, embora não tivessem desviado o olhar dos quatro nem por um segundo.
Finalmente, um homem com uma aparência cansada, encolhido dentro de um sobretudo que parecia uns dois números maior do que ele, deslizou até eles. Os seus sapatos tinham um solado muito fino, impróprio para o terreno.
- Lawson, Mackenzie, levem esses rapazes para a delegacia e não deixem que fiquem juntos quando chegarem lá. Daqui a pouco vamos falar com eles. - O homem se virou e pisou em falso, a caminho da terrível descoberta. Ela agora estava protegida por biombos de lona, através dos quais uma sinistra luz esverdeada se espalhava, manchando a neve.
O policial mais jovem olhou para o colega, preocupado.
- Como é que vamos levá-los para lá?
O homem deu de ombros.
- Sei lá, acho que você vai ter que espremê-los no seu carro. Eu vim com o camburão.
- Será que não dá para levar no camburão? Aí você fica vigiando enquanto eu dirijo.
O homem balançou a cabeça, prendendo os lábios.
- Você é quem sabe, Lawson. - Fez um gesto para os Garotos de Kirkcaldy. - Vocês aí, vamos. Pra dentro do camburão. E sem bagunça, entenderam? - Ele os conduziu até o carro, gritando para Lawson, por cima do ombro: - Pega as chaves com Tam Watt.
Lawson saiu em direção ao declive, deixando os rapazes com Mackenzie.
- Eu é que não queria estar na pele de vocês quando o pessoal do DIC[2] descer daquela colina - disse ele, puxando conversa despretensiosamente, enquanto andava logo atrás deles. Alex tremeu, mas não de frio. Estava começando a perceber que a polícia estava tomando ele e os seus amigos como potenciais suspeitos, e não como testemunhas. Eles ainda não tinham tido nenhuma oportunidade para trocar ideias sobre o assunto, para combinar o que iriam dizer. Trocaram olhares apreensivos. Até Esquisito já havia se aprumado e percebido que aquilo não era uma brincadeira boba.
Na hora em que Mackenzie os apressou para dentro do camburão, ficaram sozinhos por alguns segundos. Ziggy pôde então sussurrar, alto o bastante para que os outros três pudessem ouvir: "Nenhuma palavra sobre a Land Rover." Eles compreenderam imediatamente.
- Putz - suspirou Esquisito, jogando a cabeça para trás, apavorado com a lembrança. Mondo roía a pele em volta da unha do polegar, mudo. Alex apenas concordou com a cabeça.
A delegacia não parecia um ambiente mais tranquilo do que a cena do crime. O policial de plantão reclamou amargamente quando os dois policiais apareceram com quatro elementos que não deveriam se comunicar entre si. Não havia salas de interrogatório suficientes para mantê-los separados. Esquisito e Mondo tiveram de esperar em celas destrancadas, enquanto Alex e Ziggy foram deixados sozinhos nas duas únicas salas de interrogatório da delegacia.
O cômodo onde Alex fora colocado era pequeno, claustrofóbico. Era um quadrado onde não era possível dar mais do que três passos, conforme ele concluiu em poucos minutos, após ter sido trancado lá dentro para ficar esperando. Não havia janelas e o teto baixo, revestido com azulejos pardacentos de poliestireno, o tornava ainda mais opressivo. Os móveis se resumiam a uma mesa lascada de madeira e quatro cadeiras sortidas, tão desconfortáveis quanto aparentavam ser. Alex tentou todas elas, uma por uma, optando finalmente pela que menos maltratava as suas coxas.
Perguntava-se se podia fumar. A julgar pelo cheiro no ar abafado, ele não seria o primeiro. Mas era um rapaz educado e a ausência de um cinzeiro fez com que hesitasse. Revirou os bolsos e encontrou um papel amassado de bala de hortelã. Desdobrou o papel com cuidado, dobrando as pontas para formar um cinzeiro improvisado. Então, apanhou o maço e conferiu. Ainda tinha nove cigarros. "Vai dar", calculou ele.
Alex acendeu o cigarro e parou para pensar sobre a sua situação pela primeira vez desde que chegara à delegacia. Era óbvio, agora que pensava a respeito. Eles haviam encontrado o corpo. Tinham de ser suspeitos. Todo mundo sabe que os principais candidatos a serem detidos em uma investigação de homicídio são as últimas pessoas que estiveram com a vítima enquanto ela ainda estava viva ou aqueles que encontram o corpo. E eles se enquadravam duplamente.
Sacudiu a cabeça. O corpo. Estava começando a pensar como eles. Não era apenas um corpo, era Rosie. Alguém que ele conhecia, ainda que superficialmente. Imaginou que isso tornava tudo ainda mais suspeito. Mas não queria pensar nisso agora. Queria expulsar o horror da sua mente. Sempre que fechava os olhos, revia a colina em flashback, como em um filme. A bela e sexy Rosie, machucada e sangrando na neve. "Pense em outra coisa", disse ele em voz alta.
Imaginava como os outros reagiriam ao interrogatório. Esquisito estava fora de si, não havia a menor dúvida. Tomara mais do que alguns drinques naquela noite. Alex o vira com um baseado na mão mais cedo mas, em se tratando de Esquisito, era impossível saber o que mais ele havia consumido. Alex tinha visto pastilhas de ácido circulando, ele próprio as recusara algumas vezes. Não fazia nenhuma objeção às drogas, mas preferia não fritar o cérebro. Mas Esquisito estava definitivamente disposto a experimentar qualquer coisa que prometesse expandir a sua consciência. Alex esperava fervorosamente que fosse lá o que ele tivesse engolido, inalado ou cheirado, já tivesse perdido o efeito até a hora em que fosse interrogado. Caso contrário, era possível que ele deixasse os policiais realmente furiosos. E qualquer idiota sabia que isso seria uma péssima ideia em uma investigação de homicídio.
Com Mondo, eram outros quinhentos. Aquilo o deixaria transtornado de uma maneira completamente diferente. Depois que você passava a conhecê-lo melhor, via que a sua sensibilidade acentuada só o metia em encrencas. Ele sempre fora o mais perseguido na escola, chamado de maricas, em parte por causa da sua aparência, e em parte porque nunca revidava. O cabelo cacheado, as feições élficas, os olhos de safira sempre arregalados, em um susto, como um rato acuado. As garotas gostavam, disso ele tinha certeza. Alex uma vez ouvira por acaso duas meninas dando risadinhas, dizendo que Davey Kerr parecia com o vocalista do T. Rex. Mas em uma escola como Kirkcaldy High, o que rendia pontos com as meninas podia, na mesma medida, render uma surra no vestiário. Se Mondo não tivesse tido os outros três para lhe dar cobertura, teria passado por maus bocados. Para o seu mérito, ele sabia disso e recompensava o serviço dos amigos como podia. Alex jamais teria passado em Francês Avançado sem a ajuda dele.
Mas Mondo ficaria por conta própria com a polícia. Não teria ninguém atrás de quem se esconder. Alex podia imaginá-lo naquele momento, de cabeça baixa, lançando o seu típico olhar estranho por baixo das sobrancelhas, mordiscando o dedão ou abrindo e fechando o seu isqueiro Zippo. Os policiais iam ficar frustrados com ele, iam pensar que ele tinha algo a esconder. O que jamais iriam descobrir, nem em um milhão de anos, é que o grande segredo de Mondo era que, noventa e nove por cento das vezes, não havia segredo algum. Não havia nenhum mistério, oculto por um enigma. Apenas um garoto que gostava de Pink Floyd, de peixe regado a vinagre nas refeições, cerveja e sexo. E que, por mais bizarro que isso pudesse ser, falava francês como se tivesse aprendido desde o berço.
Mas naquela noite, é claro, havia um segredo. E se alguém tivesse que estragar tudo, esse alguém era Mondo. Meu Deus, por favor, faça com que ele não mencione a Land Rover, pedia Alex mentalmente. No mínimo, seriam autuados por terem pegado e dirigido o carro sem o consentimento do dono. Na pior das hipóteses, os policiais perceberiam que um, ou todos eles, dispunham do veículo perfeito para transportar o corpo da moça até uma colina sossegada.
Esquisito não contaria nada; tinha mais a perder do que os outros. Fora ele quem aparecera no Lammas, sorrindo de orelha a orelha, balançando o chaveiro de Henry Cavendish no dedo, como alguém que acabou de se dar bem em uma troca de casais.
Alex não diria nada, sabia disso. Guardar segredos era uma das coisas que ele fazia melhor. Se o preço para evitar suspeita era ficar calado, estava certo de que não teriam problemas.
Ziggy também ficaria quieto. Com ele, a segurança vinha sempre em primeiro lugar. Afinal, fora ele quem saíra de fininho da festa para remover a Land Rover, quando percebeu o quanto Esquisito estava descontrolado. Chamou Alex em um canto e disse:
- Peguei as chaves no bolso do Esquisito. Vou tirar a Land Rover daqui, pra ninguém cair em tentação. Ele já andou dando voltas no quarteirão com algumas pessoas, está mais do que na hora de dar um fim nessa história, antes que ele se mate ou mate alguém.
Alex não fazia a menor ideia de quanto tempo ele esteve fora, mas, quando voltou, Ziggy avisou que escondera o carro atrás de uma das unidades industriais de Largo Road.
- A gente pode ir buscar de manhã.
Alex deu um sorriso largo.
- Ou então a gente podia deixar lá. Um pequeno enigma para o nosso amigo Henry quando ele voltar no semestre que vem.
- Melhor não. Assim que ele perceber que o seu precioso carrinho não está estacionado onde ele deixou, é capaz de ir dar queixa na polícia e entregar a gente. E as nossas impressões digitais estão no carro todo.
Ziggy tinha razão, pensou Alex. Os Garotos de Kirkcaldy e os dois ingleses com quem dividiam a casa de seis cômodos no campus não se davam muito bem. Henry jamais acharia graça se soubesse que Esquisito apanhara o carro na sua ausência. Henry não achava graça em quase nada que os seus companheiros de alojamento achavam. Então Ziggy não contaria nada. Disso ele tinha certeza.
Mas Mondo era bem capaz de contar. Alex esperava que a advertência de Ziggy tivesse conseguido penetrar o bastante no casulo de Mondo para que ele pensasse nas consequências. Dizer aos policiais que Esquisito pegara o carro de alguém sem o seu consentimento não ia livrar a sua cara. Só prejudicaria os quatro. Além do mais, ele próprio havia dirigido o carro, para levar uma garota em casa em Guardbridge. Pelo menos uma vez na vida, pense direito, Mondo.
Agora, se alguém precisava de uma cabeça pensante, Ziggy era a pessoa mais indicada. Por trás da aparente sinceridade, o charme natural e a inteligência perspicaz, havia muito mais do que se podia imaginar. Alex e ele eram amigos havia quase dez anos e ele sentia que ainda havia muito para descobrir. Ziggy era do tipo que o surpreendia com um insight, desconcertava-o com uma pergunta e fazia com que você visse algo por um prisma totalmente novo, porque ele havia torcido o mundo como um Cubo Mágico e o visto de formas diferentes. Alex sabia uma ou duas coisas sobre Ziggy que Mondo e Esquisito ainda não sabiam. E isso porque Ziggy quis que ele soubesse, e porque Ziggy tinha certeza de que os seus segredos estariam sempre bem guardados com Alex.
Imaginou como Ziggy agiria com os seus interrogadores. Na certa estaria relaxado, calmo, à vontade. Se havia alguém capaz de convencer os policiais que o envolvimento deles com o corpo em Hallow Hill era completamente inocente, esse alguém era Ziggy.
O detetive-inspetor Barney Maclennan jogou o seu casaco úmido na primeira cadeira que viu no Departamento de Investigação Criminal. Era mais ou menos do tamanho de uma sala de aula de escola primária, maior do que eles costumavam precisar. St. Andrews não estava no topo da lista de zonas perigosas da polícia de Fife e o nível dos seus funcionários refletia isso. Maclennan era o chefe do DIC, à margem da organização, não por falta de ambição e sim porque era um fiel entusiasta daqueles recrutas, o tipo de policial metódico do qual os veteranos preferiam manter distância. Ele costumava reclamar da falta de algo interessante para mantê-lo ocupado, mas isso não significava que fosse receber de bom grado o assassinato de uma jovem na sua circunscrição.
Eles a identificaram de cara. O pub onde Rosie trabalhava era uma parada ocasional para alguns dos guardas, e o policial Jimmy Lawson, o primeiro a chegar ao local, a reconheceu imediatamente. Como a maioria dos homens presentes na cena do crime, ele parecia estar em estado de choque e nauseado. Maclennan não conseguia lembrar da última vez em que haviam tido um assassinato naquelas bandas que não tivesse sido estritamente doméstico; os policiais não haviam visto o suficiente para deixá-los acostumados à visão com a qual se depararam na colina coberta de neve. Para falar a verdade, ele próprio só havia visto duas vítimas de assassinato, mas nada tão lamentável quanto o corpo maltratado de Rosie Duff.
De acordo com o legista, tudo indicava que ela fora estuprada e esfaqueada no abdômen inferior. Um único e violento golpe, abrindo o seu caminho letal até o intestino. E ela deve ter demorado a morrer. Só de pensar nisso, Maclennan já ficava ansioso para pegar o homem responsável por aquilo tudo e encher de porrada. Nessas horas, a lei parecia mais um obstáculo para se alcançar a justiça do que uma ajuda.
Maclennan suspirou e acendeu um cigarro. Sentado à mesa, anotava o pouco de informação que conseguira levantar até o momento. Rosemary Duff. Dezenove anos. Trabalhava no Pub Lammas. Morava em Strathkinness com os pais e os dois irmãos mais velhos. Os irmãos trabalhavam em uma fábrica de papel em Guardbridge, o pai era zelador no Craigtoun Park. Maclennan não queria estar na pele do detetive Iain Shaw e da policial que fora junto com ele até a cidade para dar a notícia à família. Ele próprio teria que conversar com eles mais tarde, sabia disso. Mas por ora estava mais ocupado tentando dar prosseguimento à investigação. E não se podia dizer que tivessem detetives de sobra com experiência para conduzir uma investigação daquele porte. Se eles pretendiam lutar para não serem deixados de fora pelos peixes grandes do quartel-general, Maclennan tinha de mostrar serviço o quanto antes.
Olhou impaciente para o relógio. Precisava de um outro policial presente antes de começar a interrogar os quatro estudantes que diziam ter encontrado o corpo. Tinha pedido ao detetive Allan Burnside que voltasse para a delegacia o mais rápido possível, mas ainda não havia sinal dele. Maclennan suspirou. Estava cercado de incompetentes.
Deslizou os pés para fora dos sapatos úmidos e virou para poder apoiá-los no aquecedor. Deus, aquela era uma noite e tanto para dar início a uma investigação de homicídio. A neve transformara a cena do crime em um pesadelo, mascarando as provas, tornando tudo cem vezes mais difícil. Quem poderia distinguir os vestígios deixados pelo assassino dos deixados pelas testemunhas? Isso supondo, é claro, que não se tratava da mesma pessoa. Esfregando os olhos para tentar manter-se acordado, Maclennan considerava qual estratégia iria adotar nos interrogatórios.
Tendo em vista o que apurara até ali, tudo indicava que ele devia conversar primeiro com o rapaz que havia encontrado o corpo. Fortão, ombros largos, era difícil conseguir ver o seu rosto direito dentro do enorme capuz do casaco. Maclennan inclinou-se para trás para conferir as suas anotações. Alex Gilbey, sim, era esse mesmo. Mas ele estava com uma intuição esquisita a respeito dele. Não que tivesse se mostrado exatamente evasivo; apenas não havia olhado Maclennan com o tipo de sinceridade piedosa que a maioria dos rapazes na sua situação teria demonstrado. E ele certamente aparentava ser forte o bastante para carregar o corpo sem vida de Rosie até a sossegada colina em Hallow Hill. Talvez a coisa fosse mais complicada do que ele supunha. E não seria a primeira vez que um assassino forjava a descoberta do corpo da vítima para justificar a sua presença no local. Estava decidido a deixar o jovem Sr. Gilbey mofando um pouquinho mais.
O plantonista havia lhe dito que a outra sala de interrogatório estava sendo ocupada pelo estudante de medicina com nome polonês. Ele era o tal que afirmara categoricamente que Rosie ainda estava viva quando eles a encontraram. Alegara ter feito tudo o que podia para mantê-la com vida. Ele parecia estar bastante calmo diante das circunstâncias, mais calmo do que Maclennan teria estado. Pensou que poderia começar com ele. Assim que Burnside desse as caras.
A sala de interrogatório que abrigava Ziggy era o dobro da de Alex. De algum modo, Ziggy parecia confortável lá dentro. Estava largado na cadeira, meio encostado na parede, o olhar fixo no meio da sala. Estava tão exausto que poderia ter caído no sono facilmente, mas, cada vez que fechava os olhos, a imagem do corpo de Rosie voltava bem nítida à sua mente. Nenhum estudo teórico de medicina poderia ter preparado Ziggy para a realidade brutal de um ser humano tão gratuitamente destruído. Ele simplesmente não soubera o bastante para ajudar Rosie quando ela mais precisara, e isso o deixava mortificado. Sabia que devia ter compaixão pela moça assassinada, mas a frustração não deixava espaço para mais nenhum sentimento. Nem mesmo o medo.
Mas Ziggy era esperto o suficiente para saber que deveria ter medo. O sangue de Rosie Duff manchara toda a sua roupa, acumulara-se debaixo das unhas. Talvez até mesmo no cabelo; lembrou-se de ter jogado a franja molhada para trás enquanto tentava desesperadamente descobrir de onde vinha o sangramento. Tudo poderia ser explicado, desde que a polícia acreditasse na sua história. Mas também não tinha nenhum álibi, graças às noções distorcidas de Esquisito do que era diversão. Não poderia deixar que a polícia encontrasse o melhor veículo possível para se dirigir em uma nevasca com as suas impressões digitais por toda parte. Ziggy costumava ser muito cauteloso, mas agora a sua vida poderia ser destruída por causa de uma única palavra descuidada. Era melhor nem pensar nisso.
Sentiu uma espécie de alívio quando a porta abriu e os dois policiais entraram na cela. Ele reconheceu o sujeito que dera a ordem de trazê-los para a delegacia. Despido do gigantesco sobretudo, ele era um fiapo de homem, com o cabelo pardacento um pouco mais comprido do que estava na moda. A barba por fazer indicava que ele fora tirado da cama no meio da noite, embora a camisa branca impecável e o terno elegante dessem a impressão de terem saído direto do cabide da tinturaria. Sentou na cadeira à frente de Ziggy e disse:
- Eu sou o detetive-inspetor Maclennan e este é o detetive de polícia Burnside. Precisamos ter uma conversinha com você sobre o que aconteceu esta noite. - Ele fez um gesto na direção de Burnside. - O meu colega aqui irá fazer algumas anotações e depois vamos preparar um depoimento para você assinar.
Ziggy concordou.
- Tudo bem. Pode perguntar. - Endireitou-se na cadeira. - Seria possível me arrumar uma xícara de chá?
Maclennan virou-se para Burnside e fez um gesto afirmativo. Burnside levantou-se e saiu da sala. Maclennan encostou-se na cadeira e observou a sua testemunha. Curioso como os cortes de cabelo típicos da década de 60 estavam novamente na moda. O rapaz de cabelo escuro sentado à sua frente passaria tranquilamente por um dos integrantes da banda Small Faces, uns dez anos antes. Ele não parecia polonês para Maclennan. Tinha a pele clara e as bochechas avermelhadas típicas de um escocês nascido em Fife, embora os olhos castanhos não fossem muito comuns entre eles. Maçãs do rosto bem largas davam ao seu rosto um ar bem-acabado e exótico. Um pouco parecido com o daquele bailarino russo, Rudolph Nãoseiquê, ou seja lá qual for o seu nome.
Burnside voltou quase imediatamente.
- Já está vindo - avisou ele, sentando-se e pegando a sua caneta.
Maclennan apoiou os antebraços na mesa e entrelaçou os dedos.
- Vamos começar com os dados pessoais.
Avançaram rapidamente pelas preliminares e então o detetive disse:
- Uma verdadeira tragédia. Você deve estar muito abalado.
Ziggy começou a sentir-se preso na terra dos clichês.
- Podes crer.
- Quero que me conte, com as suas próprias palavras, o que aconteceu hoje à noite.
Ziggy limpou a garganta.
- Estávamos voltando para o Fife Park...
Maclennan o interrompeu, levantando a mão aberta no ar.
- Vamos retroceder um pouco mais. Quero a história desde o começo da noite, ok?
Ziggy sentiu um aperto no peito. Tinha a esperança de não ter de mencionar a parada que haviam feito no Lammas no início da noite.
- Ok. Nós quatro moramos no mesmo alojamento no Fife Park, então normalmente jantamos juntos. Hoje era a minha vez de cozinhar. Comemos ovo, batata e feijão e lá pelas nove horas fomos para a cidade. Íamos a uma festa mais tarde e estávamos a fim de tomar umas cervejas antes. - Ele fez uma pausa para se assegurar de que Burnside estava conseguindo anotar tudo.
- Aonde foram beber?
- No Lammas. - As palavras pairaram no ar entre eles.
Maclennan não teve nenhuma reação, embora tivesse sentido o coração acelerar.
- Vocês costumam beber lá?
- Quase sempre. A cerveja é barata e eles não têm nada contra os estudantes, ao contrário de uns outros lugares por aí.
- Então você viu Rosie Duff? A moça assassinada?
Ziggy deu de ombros.
- Não prestei muita atenção nela, não.
- O quê? Uma garota bonita como aquela e você não prestou atenção?
- Não foi ela quem me serviu quando estava na minha vez de buscar as cervejas.
- Mas você já deve ter falado com ela antes, não?
Ziggy respirou fundo.
- Como eu disse, nunca prestei atenção nela. Passar cantadas em garçonetes não é a minha praia.
- Não está à sua altura, não é? - Maclennan disse, carrancudo.
- Não sou nenhum esnobe, inspetor. A minha família mora em uma casa popular. Só não curto essa de ficar bancando o machão pelos bares da vida, ok? Eu a conhecia de vista, sim, mas o meu papo com ela nunca foi além de "Quatro chopes, por favor".
- Algum dos seus amigos estava de olho nela?
- Não que eu tenha notado. - A indiferença de Ziggy ocultava uma súbita cautela com o rumo que o interrogatório estava tomando.
- Bom, então vocês tomaram umas cervejas no Lammas. E aí?
- Como eu disse, fomos para uma festa, na casa de um aluno de Matemática do terceiro ano, chamado Pete, conhecido do Tom Mackie. Ele mora em St. Andrews, em Learmonth Gardens. Não sei o número da casa. Os pais estavam viajando e ele resolveu dar uma festa. Chegamos por volta de meia-noite e já eram quase quatro da manhã quando saímos de lá.
- Vocês ficaram juntos na festa?
Ziggy achou graça.
- O senhor já foi a uma festa dessas, inspetor? Então sabe como a coisa funciona. Você chega com o pessoal, pega uma cerveja e todo mundo some. Então, quando a festa já deu o que tinha que dar, você vê quem ainda está de pé, recolhe todo mundo e vai embora trocando as pernas. O bom pastor, esse sou eu. - Ele deu um sorriso irônico.
- Quer dizer então que vocês quatro chegaram juntos e foram embora juntos, mas você não tem ideia do que os outros fizeram nesse meio-tempo?
- É mais ou menos por aí.
- Você pode garantir que nenhum deles saiu e voltou depois?
Se Maclennan esperava alarmar Ziggy, ficou decepcionado. Ele apenas entortou a cabeça para o lado, pensativo.
- Provavelmente não, acho que não - admitiu ele. - Eu passei a maior parte do tempo na estufa, nos fundos da casa. Eu e uns ingleses. Sinto muito, não me lembro dos nomes. Estávamos conversando sobre música, política, coisas assim. A coisa ficou feia quando começamos a falar sobre a independência da Escócia, como vocês podem imaginar. Circulei algumas vezes, para buscar cerveja, fui até a sala de jantar arrumar alguma coisa para comer, mas não, não estava sendo o guardião dos meus irmãos.
- Vocês costumam voltar sempre juntos? - Maclennan não sabia direito aonde queria chegar com aquilo, mas sentia que aquela era a pergunta certa.
- Depende de alguém conseguir se dar bem.
Ele está definitivamente na defensiva agora, pensou o policial.
- E isso acontece com frequência?
- Às vezes. - Ziggy deu um sorriso um pouco forçado. - Somos rapazes saudáveis, cheios de vigor, sabe?
- E acabam sempre voltando para casa juntinhos? Muito aconchegante.
- Não sei se você sabe, inspetor, mas nem todos os estudantes são obcecados por sexo. Alguns de nós têm consciência do quanto temos sorte de estarmos aqui e não queremos colocar tudo a perder.
- Por isso vocês preferem a companhia uns dos outros? Lá na minha terra, as pessoas iam achar que vocês são bichas.
Ziggy perdeu a compostura por um momento.
- E se fôssemos? Não é contra a lei.
- Depende do que você está fazendo e com quem está fazendo - respondeu Maclennan, desistindo de qualquer pretensão de amabilidade.
- Vem cá, o que isso tudo tem a ver com o fato de termos encontrado o corpo de uma garota? - perguntou Ziggy, inclinando-se para a frente. - O que o senhor está tentando dizer? Que nós somos gays, por isso estupramos e matamos a moça?
- Você é quem está dizendo. Todo mundo sabe que alguns homossexuais odeiam as mulheres.
Ziggy balançou a cabeça, custando a acreditar.
- Todo mundo quem? Os preconceituosos e os ignorantes? Escuta aqui, só porque Alex, Tom e Davey saíram da festa comigo não quer dizer que eles são gays, entendeu? Eles poderiam te dar uma lista com o nome de garotas que provariam como o senhor está enganado.
- E você, Sigmund? Poderia fazer o mesmo?
Ziggy tentou ficar imóvel, desejando que o seu corpo não o traísse. Havia uma diferença enorme, do tamanho da Escócia, entre não ser contra a lei e ser aceito. Havia chegado a um ponto no qual a verdade não seria sua amiga.
- Será que dá para voltar ao que interessa aqui, inspetor? Eu saí da festa por volta das quatro da manhã com os meus três amigos. Descemos a Learmonth Place, viramos à esquerda na Canongate e seguimos pela Trinity Place. Hallow Hill é um atalho para o Fife Park...
- Você viu alguém no caminho até a colina? - interrompeu Maclennan.
- Não. Mas a visibilidade não estava lá essas coisas, por causa da neve. Enfim, estávamos andando pela trilha de pedestres lá embaixo, quando Alex começou a correr colina acima. Sei lá por quê, eu estava na frente e não vi o que deu nele. Quando ele chegou lá em cima, tropeçou e caiu em um buraco. Aí ele começou a gritar para que a gente fosse até lá, que tinha uma moça ensanguentada lá embaixo. - Ziggy fechou os olhos, mas tornou a abri-los imediatamente, assim que a imagem da moça morta surgiu mais uma vez diante dele. - Subimos até lá e vimos Rosie caída na neve. Senti o pulso dela, pra checar os batimentos cardíacos. Estavam muito fracos, mas estavam lá. O sangramento parecia vir do abdômen, um corte bem profundo, me pareceu. Talvez uns oito ou dez centímetros. Pedi pro Alex ir buscar ajuda, para chamar a polícia. Cobrimos a moça com os nossos casacos e eu tentei estancar a hemorragia. Mas já era tarde demais. Os órgãos internos já estavam comprometidos, muita perda de sangue. Ela morreu alguns minutos depois. - Ziggy exalou longamente. - Eu não pude fazer nada.
Até mesmo Maclennan ficou momentaneamente em silêncio com a intensidade das palavras de Ziggy. Ele olhou de soslaio para Burnside, que escrevia freneticamente.
- Por que pediu a Alex Gilbey que fosse buscar ajuda?
- Porque ele estava mais sóbrio do que Tom. E Davey costuma se descontrolar em momentos de crise.
Fazia todo o sentido. Era quase perfeito demais. Maclennan arrastou a cadeira para trás.
- Um dos meus oficiais irá levá-lo para casa, Sr. Malkiewicz. Vamos precisar das roupas que está usando, para a análise forense. E das suas digitais, para fins eliminatórios. E vamos ter de conversar novamente depois.
Havia outras coisas que Maclennan desejava saber sobre Sigmund Malkiewicz. Mas isso podia esperar. A sua sensação de desconforto em relação àqueles quatro rapazes crescia a cada minuto. Precisava começar a pressioná-los. E tinha a impressão de que o tal que se descontrolava em momentos de crise ia ser o primeiro a ceder.
3
A poesia de Baudelaire parecia estar funcionando. Encolhido em posição fetal sobre um colchão tão duro que mal merecia o nome, Mondo recitava As Flores do Mal mentalmente. Os poemas pareciam ironicamente adequados diante dos acontecimentos daquela noite. O fluxo musical do francês o acalmava, dissipando a realidade da morte de Rosie Duff e da cela de polícia para a qual o haviam trazido. Era algo transcendental, que o elevava acima do seu próprio corpo e o conduzia para um lugar onde a sequência serena de sílabas era tudo o que cabia na sua consciência. Ele não queria ter de lidar com morte, culpa, medo ou suspeita.
O seu esconderijo foi pelos ares abruptamente quando a porta da cela se abriu em um solavanco. O policial Jimmy Lawson agigantou-se diante dele.
- De pé, filho. Eles querem falar com você.
Mondo deu um passo hesitante para trás, afastando-se do jovem policial que de salvador se tornara carrasco.
O sorriso de Lawson estava longe de ser confortante.
- Não vá se borrar todo aqui. Vamos lá, coragem. O inspetor Maclennan não gosta que o deixem esperando.
Mondo se levantou lentamente e seguiu Lawson para fora da cela, que dava para um corredor extremamente iluminado. Era tudo claro demais, exposto demais para o seu gosto. Ele realmente não gostava daquele lugar.
Lawson dobrou o corredor e abriu uma porta. Mondo hesitou no umbral. Sentado à mesa estava o homem que já havia visto em Hallow Hill. Ele parecia franzino demais para ser um policial, pensou Mondo.
- Sr. Kerr, certo? - perguntou ele.
Mondo concordou com a cabeça.
- Sim - disse ele. O som da sua própria voz deixou-o surpreso.
- Pode entrar e sentar aí. Eu sou o detetive-inspetor Maclennan, e esse é o detetive Burnside.
Mondo sentou-se diante dos dois homens, olhando fixamente para o tampo da mesa. Burnside executou os procedimentos de praxe com uma educação que surpreendeu Mondo, que estava esperando algo na linha dos seriados de tevê: gritaria e arrogância, policiais bancando os machões.
Quando Maclennan assumiu o interrogatório, um tom de rispidez passou a fazer parte da conversa.
- Então você conhecia Rosie Duff - afirmou ele.
- Conhecia. - Mondo ainda não conseguia levantar os olhos. - Quer dizer, eu sabia que ela era garçonete do Lammas - ele acrescentou, quebrando o silêncio que se instalara entre eles.
- Era uma moça bonita - comentou Maclennan. Mondo não respondeu. - Você deve pelo menos ter reparado isso.
Mondo deu de ombros.
- Nunca parei pra pensar nela.
- Não era o seu tipo?
Mondo levantou a cabeça, os lábios suspensos em um meio sorriso no canto da boca.
- Acho que eu não era o tipo dela. Ela nunca prestou atenção em mim. Estava sempre mais interessada em outros caras. Eu sempre mofava até ser atendido no Lammas.
- Isso deve ter te deixado chateado.
Os olhos de Mondo encheram-se de pânico. Começava a perceber que Maclennan era mais astuto do que ele imaginava que um policial pudesse ser. Ele ia ter que ficar esperto, teria de ser sagaz.
- Pra falar a verdade, não. Quando a gente estava com pressa, eu costumava mandar o Gilly no meu lugar.
- Gilly? Você está falando do Alex Gilbey, certo?
Mondo concordou, abaixando novamente os olhos. Não queria que aquele homem percebesse nenhuma das emoções que se agitavam dentro dele. Morte, culpa, medo, suspeita. Queria desesperadamente ir embora, sair daquela delegacia, se desligar daquele caso. Não queria prejudicar ninguém, mas não aguentava mais aquilo. Sabia que não aguentava mais aquilo e não queria acabar agindo de uma maneira que o fizesse parecer suspeito ou culpado aos olhos dos policiais. Porque não era dele que deveriam estar desconfiando. Nunca passara uma cantada em Rosie Duff, por mais que tivesse tido vontade. Não tinha roubado a Land Rover. Tudo o que fez foi levar uma garota pra casa até Guardbridge. Não tinha encontrado nenhum corpo na neve. Isso era responsabilidade de Alex. Graças aos outros três, estava no meio daquela merda toda. Se para garantir a sua proteção ele tivesse de desviar o olhar dos policiais para outro lugar, bem, Alex jamais ficaria sabendo. E mesmo que soubesse, Mondo tinha certeza de que ele o perdoaria.
- Então ela gostava do Gilly, hein? - Maclennan era implacável.
- Não faço ideia. Pelo que sei, ele era apenas mais um freguês pra ela.
- Mas um freguês que ela notava mais do que a você.
- Sim, mas isso não o torna exatamente especial.
- Você está dizendo que Rosie era chegada a um flerte?
Mondo balançou a cabeça, impaciente consigo mesmo.
- Não. De jeito nenhum. Era o trabalho dela, só isso. Ela atendia no pub, tinha que ser simpática com as pessoas.
- Mas não era simpática com você.
Mondo puxava nervosamente os cachos que caíam em volta das suas orelhas.
- O senhor está distorcendo tudo. Ela não significava nada pra mim, nem eu pra ela. Agora, será que posso ir embora, por favor?
- Ainda não, Sr. Kerr. De quem foi a ideia de voltar por Hallow Hill?
Mondo franziu a testa.
- Não foi ideia de ninguém. Esse é o caminho mais rápido de onde a gente estava até o Fife Park. Sempre voltamos por esse caminho. Não paramos pra pensar sobre isso.
- E alguma vez sentiram-se tentados a subir até o cemitério picto?
Mondo fez que não com a cabeça.
- Sabíamos que ele existia, fomos dar uma olhada na época em que estavam escavando. Assim como a metade da população de St. Andrews. Não quer dizer que somos desequilibrados.
- Eu não disse isso. Mas nunca fizeram uma parada lá, voltando para o alojamento?
- Por que faríamos isso?
Maclennan deu de ombros.
- Sei lá. Brincadeiras bobas de moleques. Talvez vocês tenham assistido Carrie, a Estranha muitas vezes.
Mondo puxou uma mecha do cabelo. Morte, culpa, medo, suspeita.
- Não curto filmes de terror. Olha, inspetor, o senhor está entendendo tudo errado. Somos apenas quatro caras comuns que tiveram o azar de encontrar algo incomum. Nada mais, nada menos. - Abriu os braços em um gesto amplo, torcendo para estar convincente. - Eu sinto muito pelo que aconteceu com a garota, mas não tenho nada a ver com isso.
Maclennan encostou-se na cadeira.
- Isso é o que você diz.
Mondo ficou quieto, apenas soltando o ar em um longo suspiro de frustração.
- E quanto à festa? Conte exatamente o que você fez por lá.
Mondo contorceu-se na cadeira, o seu desejo de ir embora óbvio em cada músculo do seu corpo. Será que a garota ia abrir o bico? Duvidava muito. Ela teve que entrar em casa de fininho, o seu horário de voltar já havia passado há horas. E não era aluna da universidade, não conhecia quase ninguém de lá. Com um pouco de sorte, jamais seria citada, jamais seria interrogada.
- Escuta, qual o seu interesse nisso? Acabamos de encontrar um corpo, sabia?
- Temos que considerar todas as possibilidades.
Mondo deu um sorriso debochado.
- Apenas fazendo o seu trabalho, né? Bem, está perdendo tempo se acha que estamos envolvidos com o que aconteceu com ela.
Maclennan deu de ombros.
- Mesmo assim, gostaria de saber sobre a festa.
Com o estômago revirando, Mondo produziu uma versão editada da festa, torcendo para que colasse.
- Não sei. É difícil lembrar de todos os detalhes. Um pouco depois de termos chegado na festa, comecei a dar em cima de uma garota. O nome dela era Marg. Morava em Elgin. Dançamos um pouco e eu achei que ia rolar, sabe? - Mondo ficou subitamente triste. - Aí o namorado dela apareceu. Ela não tinha falado nada de namorado pra mim. Fiquei um pouco chateado, aí tomei mais umas cervejas e fui lá pra cima. Lá em cima tinha um cômodo bem pequeno, tipo uma despensa, com uma escrivaninha e uma cadeira. Fiquei sentado lá um pouco, meio triste. Não muito, foi só o tempo de beber uma latinha. Aí desci de novo e fiquei de bobeira, perambulando pela casa. Ziggy estava na estufa, fazendo o seu discurso sobre a Declaração de Independência pra uns ingleses, então eu saí fora. Já ouvi isso umas mil vezes. Não notei mais ninguém que valesse a pena. A festa estava meio fraca em termos de mulheres bonitas e as únicas que apareceram por lá já estavam acompanhadas, então fiquei só de bobeira. Pra falar a verdade, eu já estava na pilha de ir embora muito antes de a gente resolver voltar pra casa.
- Mas você não sugeriu isso?
- Não.
- Por que não? Não tem opinião própria?
Mondo lançou um olhar de ódio. Não era a primeira vez que era acusado de seguir os outros, como um carneirinho idiota.
- Claro que tenho. Só estava sem saco, ok?
- Tudo bem - disse Maclennan. - Vamos verificar a sua história. Você pode ir para casa agora. Mas vamos precisar das roupas que você está vestindo. Vou mandar um policial te acompanhar até em casa e recolher as suas roupas. - Quando ele se levantou, as pernas da cadeira arranhando o chão produziram um som estridente que deu nos nervos de Mondo. - Voltaremos a nos encontrar, Sr. Kerr.
A policial Janice Hogg fechou a porta do carro tentando fazer o mínimo de barulho possível. Não era preciso acordar toda a vizinhança, eles ficariam sabendo em breve mesmo. Encolheu-se num susto quando o detetive Iain Shaw bateu a porta do lado do motorista sem pensar duas vezes, lançando um olhar feroz para a parte de trás da sua cabeça calva. Ele tinha apenas vinte e cinco anos e já estava ficando careca, constatou ela com uma pontada de prazer convencido. E ainda se considerava um partidão.
Como se o teor dos pensamentos de Janice tivesse penetrado o seu cérebro, Shaw virou para trás e fez uma cara feia.
- Vamos logo, anda. Vamos nos livrar logo disso.
Janice deu uma olhada no chalé enquanto Shaw abria o portão de madeira e avançou rapidamente pela pequena trilha que os separava da casa. Era típica daquela área; uma construção baixa com duas janelas de mansarda inseridas acima do teto e abaixo do telhado curvo com espigões salientes cobertos de neve. Uma pequena varanda encaixada entre as janelas do primeiro andar, o revestimento pintado com uma cor escura difícil de ser identificada apenas com a luz precária oriunda dos postes de luz. Parecia bem-cuidada, concluiu ela, imaginando qual daqueles quartos havia sido o de Rosie.
Expulsou aquele pensamento da sua mente enquanto se preparava para a penosa tarefa que estava prestes a cumprir. Era mandada para dar as más notícias mais vezes do que merecia. Devia ser porque era mulher. Ficou de prontidão, enquanto Shaw batia na porta com a pesada argola de ferro. A princípio, nenhum sinal de resposta. Então uma luz fraca se acendeu por trás das cortinas na janela à direita do andar de baixo. Eles viram a mão de alguém puxando a cortina para o lado e depois um rosto, iluminado pela metade. Um homem de meia-idade com o cabelo grisalho despenteado olhava para eles, pasmo e boquiaberto.
Shaw apanhou o seu distintivo e mostrou a ele. Aquele gesto era inconfundível. A cortina voltou a se fechar. Alguns segundos depois, a porta da frente se abriu e o homem apareceu, amarrando na cintura a faixa de um grosso robe de lã. A barra da calça do pijama encobria quase totalmente os seus chinelos de xadrez escocês desbotado.
- O que está acontecendo aqui? - perguntou ele, disfarçando mal a sua apreensão por trás da agressividade.
- Sr. Duff? - confirmou Shaw.
- Sim, sou eu. O que vocês estão fazendo na minha porta a esta hora?
- Eu sou o detetive de polícia Shaw e esta é a policial Hogg. Podemos entrar, Sr. Duff? Precisamos conversar com o senhor.
- O que aqueles dois aprontaram? - Ele abriu espaço e fez sinal para que eles entrassem. A porta interna dava para a sala de estar. Um conjunto de três sofás estofados de camurça marrom formava uma espécie de fortaleza para abrigar o maior aparelho de tevê que Janice já tinha visto na vida. - Sentem-se - disse ele.
Quando se encaminhavam para o sofá, Eileen Duff surgiu na soleira da porta, do outro lado da sala.
- O que está acontecendo, Archie? - quis saber ela. O seu rosto estava limpo, sem maquiagem e untado de creme, a cabeça coberta por um lenço bege de chiffon para proteger o cabelo recém-arrumado no salão. O seu quimono acolchoado de náilon estava abotoado errado.
- É a polícia - explicou o marido.
Os olhos dela arregalaram-se de ansiedade.
- O que aconteceu?
- A senhora pode vir sentar-se conosco, Sra. Duff? - perguntou Janice, indo na direção da mulher e dando-lhe o braço. Ela a conduziu até o sofá e fez um gesto para que o marido sentasse ao seu lado.
- É notícia ruim, aposto - sentenciou a mulher, aflita, agarrando o braço do marido. Archie Duff mantinha o seu olhar fixo e impassível na tela desligada da tevê, os lábios contraídos.
- Sinto muito, Sra. Duff. Mas receio que a senhora esteja certa. Temos péssimas notícias para vocês. - Shaw estava parado, sem jeito, a cabeça um pouco baixa e os olhos fixos nos redemoinhos multicoloridos do carpete.
A Sra. Duff deu um empurrão no marido.
- Eu te disse pra não deixar Brian comprar aquela moto! Eu disse!
Shaw lançou um olhar suplicante para Janice. Ela se aproximou do casal e disse gentilmente:
- Não foi o Brian. Foi a Rosie.
A Sra. Duff choramingou.
- Não pode ser - protestou ela.
Janice lutou para continuar.
- Hoje à noite, um pouco mais cedo, o corpo de uma jovem foi encontrado em Hallow Hill.
- Deve ser algum engano - contemporizou Archie Duff, teimoso.
- Infelizmente, não. Alguns dos policiais presentes na cena do crime reconheceram Rosie. Eles a conheciam do Lammas. Sinto muitíssimo em ter de lhes dizer que a filha de vocês está morta.
Janice já havia soltado essa bomba muitas vezes e sabia que das duas uma: ou a pessoa negava o acontecido, como Archie Duff, ou uma dor pungente atingia os familiares como uma poderosa força da natureza. Eileen Duff jogou a cabeça para trás e urrou aos céus a sua dor, as mãos crispadas contorcendo-se no seu colo, o corpo inteiro possuído pela angústia. O marido olhava para ela como se não a reconhecesse, as sobrancelhas cerradas, recusando-se firmemente a aceitar o que estava acontecendo.
Janice ficou parada, deixando a primeira onda quebrar sobre ela, pronta para um eventual resgate. Shaw trocava o peso do corpo de uma perna para a outra, sem saber o que dizer.
De repente, ouviram passos pesados na escada que desembocava no canto da sala. Surgiram pernas cobertas por uma calça de pijama, seguidas por um peito nu e finalmente um rosto de sono, coroado por um topete negro de cabelos despenteados. O rapaz parou a alguns passos do chão e examinou a cena.
- Que diabos está acontecendo aqui? - resmungou ele.
Sem virar a cabeça, Archie disse:
- A sua irmã está morta, Colin.
Colin Duff estava boquiaberto.
- O quê?
Janice acudiu novamente.
- Sinto muito, Colin. Mas o corpo da sua irmã foi encontrado ainda há pouco.
- Onde? O que aconteceu? Como assim, o corpo dela foi encontrado? - À medida que ia atropelando as palavras, as suas pernas iam cedendo e ele desmoronou nos últimos degraus da escada.
- Ela foi encontrada em Hallow Hill. - Janice suspirou fundo. - Achamos que Rosie foi assassinada.
Colin afundou a cabeça entre as mãos.
- Oh, Deus! Deus! - murmurava ele sem parar.
Shaw inclinou-se diante deles.
- Vamos ter de lhe fazer algumas perguntas, Sr. Duff. Será que podemos ir até a cozinha?
O primeiro ataque de desespero de Eileen estava passando. Ela parou de chorar e voltou o seu rosto marcado pelas lágrimas para Archie.
- Espera aí. Eu não sou nenhuma criança que precisa ser preservada da verdade - arquejou ela.
- Vocês têm um conhaque? - perguntou Janice. Archie não teve nenhuma reação. - Ou um uísque?
Colin levantou-se aos tropeções.
- Temos uma garrafa na copa. Eu vou buscar.
Eileen voltou os olhos inchados para Janice.
- O que aconteceu com a minha filhinha?
- Ainda não sabemos direito. Parece que ela foi esfaqueada. Mas vamos ter de esperar o médico-legista examiná-la, até termos certeza.
Enquanto ela falava, Eileen se encolheu, como se ela própria tivesse sido golpeada.
- Quem faria uma coisa dessas com Rosie? Logo ela, que não fazia mal a uma mosca.
- Ainda não sabemos - acudiu Shaw. - Mas vamos encontrá-lo, Sra. Duff. Eu sei que este é o pior momento do mundo para fazer perguntas, mas quanto mais rápido obtivermos as informações necessárias, mais rápido vai ser o nosso progresso.
- Posso vê-la? - perguntou Eileen.
- Vamos providenciar isso mais tarde - disse Janice. Ela agachou-se ao lado de Eileen e colocou a mão no seu braço. - Rosie costumava voltar para casa a que horas?
Colin saiu da cozinha trazendo uma garrafa de uísque e três copos.
- O Lammas só aceita pedidos até as dez e meia. Ela normalmente chegava lá pras onze e quinze. - Ele colocou os copos na mesa de centro e serviu três porções generosas.
- Mas às vezes ela chegava mais tarde? - perguntou Shaw.
Colin entregou os copos de uísque aos pais. Archie bebeu metade, de um gole só. Eileen segurou o copo, mas não o levou aos lábios.
- Chegava, se tivesse uma festa pra ir ou algo assim.
- E ontem à noite?
Colin bebeu mais um pouco.
- Não sei. Mãe, ela disse alguma coisa pra você?
Eileen olhou para ele, confusa e perdida.
- Ela me disse que ia encontrar uns amigos. Não disse quem, e eu não perguntei. Ela tem direito a privacidade. - Havia um tom defensivo na sua voz e Janice deduziu que aquilo deve ter sido um motivo de discórdia, provavelmente com Archie.
- Como ela costumava voltar para casa? - perguntou Janice.
- Se eu ou Brian estivéssemos na cidade, a gente passava no pub e dava uma carona pra ela. Tinha uma outra garçonete que trabalhava no mesmo turno, a Maureen, que às vezes a trazia pra casa. Quando ela não conseguia nenhuma carona, pegava um táxi.
- Cadê Brian? - perguntou Eileen, de repente, querendo reunir os filhos debaixo da sua asa.
Colin deu de ombros.
- Ele ainda não chegou, não. Deve ter ficado lá na cidade.
- Ele tinha que estar aqui. Não quero que ele receba a notícia por estranhos.
- Ele vai voltar pro café da manhã. - Archie respondeu, áspero. - Precisa se arrumar pra ir trabalhar.
- Rosie estava saindo com alguém? Tinha algum namorado? - Shaw estava tão ansioso para ir embora que foi direto ao assunto.
Archie franziu o cenho.
- Pretendentes não faltavam pra Rosie.
- Alguém em particular?
Eileen bebericou o seu uísque.
- Ela estava saindo com alguém ultimamente, mas não queria me contar quem era. Eu perguntei, mas ela disse que me contaria quando fosse a hora.
Colin bufou.
- Algum homem casado, pelo visto.
Archie lançou um olhar de fúria para o filho.
- Mais respeito quando falar da sua irmã, ouviu?
- Ué, então por que ela ia guardar segredo? - O rapaz projetou a mandíbula para a frente, desafiante.
- Vai ver que ela não queria você e o seu irmão se metendo de novo nos assuntos dela - retrucou Archie. Virou-se para Janice. - Uma vez eles deram uma surra num rapaz porque cismaram que ele não estava tratando Rosie direito.
- Quem era o rapaz?
Archie arregalou os olhos, surpreso.
- Isso foi anos atrás. Não tem nada a ver com o que aconteceu agora. O rapaz nem mora mais aqui. Se mudou pra Inglaterra, logo depois.
- Ainda assim, queremos saber quem é - insistiu Shaw.
- John Stobie - Colin respondeu irritado. - O pai dele trabalha como jardineiro no Old Course. Mas como o meu pai disse, ele não ousaria chegar perto de Rosie.
- Não era um homem casado - continuou Eileen. - Eu perguntei a ela. Ela disse que jamais traria um problema desses pra dentro de casa.
Colin balançou a cabeça e olhou para o outro lado, girando o copo de uísque na mão.
- Não vi Rosie com ninguém ultimamente. Mas ela tinha lá os seus segredos.
- Vamos precisar dar uma olhada no quarto dela - disse Shaw. - Mas não agora, mais tarde. Então, se vocês puderem evitar mexer em qualquer coisa lá, eu agradeço. - Ele limpou a garganta. - Se vocês quiserem, a policial Hogg pode ficar aqui com vocês.
Archie fez que não com a cabeça.
- Vamos ficar bem.
- É possível que apareçam alguns repórteres por aqui. Seria mais fácil se um policial estivesse aqui para ajudá-los.
- Meu pai já disse. Vamos ficar melhor sozinhos - respondeu Colin.
- Quando vou poder ver a Rosie? - quis saber Eileen.
- Vamos mandar um carro buscar a senhora mais tarde. Vou providenciar para alguém ligar para cá e combinar um horário com vocês. E se vocês se lembrarem de qualquer coisa que Rosie tenha dito sobre onde poderia estar hoje à noite ou sobre alguém com quem estivesse saindo, por favor entrem em contato. Seria útil se vocês pudessem fazer uma lista com os nomes dos amigos dela. Especialmente alguém que possa saber onde ela estava ontem e com quem. É possível? - Shaw ficou mais gentil quando percebeu que estava prestes a dar no pé dali.
Archie concordou e levantou-se do sofá.
- Mais tarde. Vamos fazer isso depois.
Janice levantou-se, os joelhos reclamando por ela ter ficado muito tempo naquela posição desconfortável.
- Podem ficar à vontade, sabemos o caminho.
Ela seguiu Shaw até a porta. A tristeza naquela casa parecia uma substância tangível, tomando conta do ar e dificultando a respiração. Era sempre a mesma coisa. A melancolia parecia aumentar num crescendo nas primeiras horas após a notícia.
Mas aquilo ia mudar. Em breve, viria a raiva.
4
Esquisito olhava fixamente para Maclennan, os braços magérrimos cruzados sobre o peito franzino.
- Preciso de um cigarro - disse ele. O ácido que havia tomado mais cedo já perdera o efeito, deixando-o irrequieto e rebelde. Não queria estar ali e estava determinado a cair fora o mais rápido possível. O que não queria dizer que estava disposto a cooperar.
Maclennan balançou a cabeça.
- Sinto muito, filho. Não permitimos cigarro aqui.
Esquisito virou a cabeça e olhou para a porta.
- Você sabe que não pode torturar ninguém, né?
Maclennan se recusava a morder a isca.
- Precisamos fazer umas perguntas sobre o que aconteceu hoje à noite.
- Sem um advogado, sem chance. - Esquisito sorriu para si mesmo.
- Por que precisa de um advogado, se não tem nada a esconder?
- Porque você é o Todo-Poderoso. E está com uma garota assassinada nas costas, precisando arrumar alguém pra pôr a culpa. E eu não vou assinar nenhuma confissão falsa, não importa o quanto você me deixe mofando aqui dentro.
Maclennan suspirou. Era deprimente constatar que os métodos duvidosos de uma meia dúzia de policiais davam munição para espertinhos como aquele atacarem todo o resto. Apostava uma semana do seu salário como aquele adolescente hipócrita tinha um pôster de Che Guevara na parede do quarto. E que achava que era o primeiro na fila para herói da classe operária. O que não queria dizer que não podia ter assassinado Rosie Duff.
- Você tem uma ideia muito estranha dos métodos policiais.
- Diga isso aos seis de Birmingham e aos quatro de Guildford[3] - rebateu Esquisito, como se aquilo fosse um trunfo.
- Se você não quer terminar como eles, filho, sugiro que comece a colaborar. Podemos fazer isso dentro dos conformes: eu faço algumas perguntas e você responde ou eu posso te deixar trancado aqui por algumas horas até conseguirmos achar um advogado que esteja assim tão desesperado para trabalhar.
- Você está me negando o direito de representação legal? - Havia um tom de imponência na voz de Esquisito que teria deixado os seus amigos desesperados se pudessem ouvi-lo.
Mas Maclennan sabia que estava mais do que à altura de um estudantezinho convencido.
- Faça como quiser. - Ele se afastou da mesa.
- Vou fazer mesmo - disse Esquisito, teimoso. - Não tenho nada para falar com você sem um advogado presente. - Maclennan caminhou até a porta, com Burnside logo atrás. - Então trate de me arrumar um, ok?
A porta já estava aberta. Maclennan olhou para trás.
- Não tenho nada a ver com isso, filho. Você quer um advogado, você dá o telefonema.
Esquisito parou para pensar. Não conhecia nenhum advogado. Diabos, não tinha nem dinheiro para pagar um advogado, mesmo que conhecesse algum. Podia imaginar o que o seu pai diria se ele ligasse para casa e pedisse ajuda. Esse não era um pensamento particularmente agradável. Além do mais, teria de contar a história toda para o advogado, e qualquer advogado pago pelo seu pai seria obrigado a lhe dar um relatório completo. Existiam coisas, pensou ele, bem piores do que ser preso por ter roubado uma Land Rover.
- Pois bem - disse ele de má vontade. - Você faz aí as suas perguntas. Se elas forem tão inocentes quanto você pensa que são, eu respondo. Mas, se eu achar que você está tentando me incriminar, não abro mais a boca.
Maclennan fechou a porta e sentou-se novamente. Manteve o olhar fixo em Esquisito, observando com calma os seus olhos inteligentes, o nariz adunco e os lábios incongruentemente carnudos. Não achava que Rosie Duff pudesse ter visto aquele rapaz como um partido desejável. Provavelmente teria rido na cara dele, caso tivesse recebido uma cantada. Uma reação como essa poderia ter provocado um ressentimento crescente. Que pode ter resultado em assassinato.
- Você conhecia Rosie Duff bem? - perguntou ele.
- Não a ponto de saber o seu sobrenome.
- Alguma vez a convidou para sair?
Esquisito assumiu uma expressão de deboche.
- Você só pode estar curtindo com a minha cara. Sou um pouquinho mais ambicioso do que isso. Garotas provincianas, com sonhos pequenos; não é a minha praia.
- E os seus amigos?
- Acho que não. Estamos aqui exatamente porque queremos mais do que isso.
Maclennan levantou as sobrancelhas.
- Como é que é? Vieram lá de Kirkcaldy até St. Andrews para ampliar os seus horizontes? Uau, o mundo não sabe o que está perdendo. Escuta aqui, rapaz, Rosie Duff foi assassinada. Sejam lá quais tenham sido os sonhos dela, eles morreram também. Então, pense duas vezes antes de depreciá-la.
Esquisito sustentou o olhar de Maclennan.
- Eu só estou tentando explicar que as nossas vidas não tinham nada a ver com a dela. Se não tivéssemos dado de cara com o corpo, você sequer saberia da nossa existência nessa investigação. E francamente, se nós somos o melhor que vocês podem arrumar em termos de suspeitos, não merecem ser chamados de detetives.
A tensão entre eles produzia eletricidade. Normalmente, Maclennan gostava quando o clima ficava pesado. Era um método eficaz para manipular as pessoas e fazer com que elas falassem mais do que pretendiam. E a sua intuição lhe dizia que aquele rapaz estava escondendo alguma coisa por trás daquela aparente arrogância. Podia não ser nada importante, mas podia ser algo fundamental. Mesmo que o máximo que aquela pressão lhe rendesse fosse uma bela dor de cabeça, Maclennan não conseguia resistir. Por menor que fosse a probabilidade.
- Conte-me sobre a festa - pediu ele.
Esquisito revirou os olhos.
- Tá legal, você não deve ser convidado pra muitas festas mesmo. A coisa funciona assim. Homens e mulheres se reúnem em uma casa ou um apartamento, bebem, dançam. Às vezes rolam uns amassos, às vezes até mesmo sexo. E depois, as pessoas voltam pra casa. Foi assim esta noite.
- E às vezes, se drogam - completou Maclennan docilmente, recusando-se a deixar que o sarcasmo do rapaz o tirasse do sério.
- Não quando você está presente, aposto - respondeu Esquisito, com um sorriso debochado.
- Você se drogou hoje à noite?
- Viu? Lá vem você, tentando me incriminar.
- Com quem você estava?
Esquisito parou para pensar.
- Sabe que nem me lembro direito? Cheguei com os caras, fui embora com eles. No meio-tempo, não me lembro de nada, não. Mas se você está insinuando que eu dei uma escapada para cometer assassinato, está muito enganado. Me pergunte onde eu estava e eu posso te responder na boa. Eu estava na sala de estar durante toda a noite, tirando a hora que eu subi para dar uma mijada.
- E o resto dos seus amigos? Onde estavam eles?
- Não faço a menor ideia. Não sou o guardião dos meus irmãos.
Maclennan reconheceu imediatamente o eco das palavras de Sigmund Malkiewicz.
- Mas vocês costumam cuidar uns dos outros, não?
- Sem chances de você saber que é isso que os amigos fazem, né? - zombou ele.
- Então quer dizer que vocês seriam capazes de mentir, um pelo outro?
- Ah, a pergunta capciosa. "Quando foi que você parou de bater na sua mulher?" Não temos o que mentir no que diz respeito a Rosie Duff. Porque não fizemos nada que precise ser acobertado. - Esquisito esfregou as têmporas. Precisava desesperadamente da sua cama, estava impaciente até os ossos. - Tivemos azar, nada mais.
- Conte-me como foi que aconteceu.
- Alex e eu estávamos de sacanagem, um empurrando o outro na neve. Ele meio que se desequilibrou e foi catando cavaco até a colina. Acho que a neve estava deixando ele meio eufórico, sei lá. Aí ele tropeçou e caiu, e quando eu vi, ele já estava gritando, pedindo pra gente correr até lá. - Por um momento, a arrogância de Esquisito desapareceu e ele pareceu mais jovem. - E aí a gente encontrou a garota. Ziggy tentou... mas não tinha nada que ele pudesse fazer para salvá-la. - Esquisito esfregou uma mancha em uma das pernas da sua calça. - Posso ir embora agora?
- Vocês não viram ninguém lá em cima? Ou no caminho?
Esquisito balançou a cabeça em sinal negativo.
- Não. Jack, o Estripador deve ter feito um caminho alternativo. - Estava novamente na defensiva e Maclennan sabia que continuar tentando arrancar informação dele seria uma tarefa inglória. Mas teria outra oportunidade para isso. E deveria haver uma maneira de driblar as defesas de Tom Mackie. Ele tinha apenas de descobrir qual era.
Janice Hogg tentava alcançar Iain Shaw pelo estacionamento. Estiveram mais ou menos calados no percurso de volta à delegacia, cada um associando o encontro com os Duffs com as suas próprias vidas, em níveis variáveis de alívio. Quando Shaw empurrou a porta que abrigava o ambiente aquecido da delegacia, Janice já estava logo atrás dele.
- Fico me perguntando por que será que ela não contou para a mãe com quem estava saindo - disse ela.
Shaw deu de ombros.
- Talvez o irmão esteja certo. Vai ver era um homem casado.
- Mas e se ela estivesse falando a verdade? E se ele não fosse casado? Que tipo de homem faria com que ela preferisse manter segredo sobre a sua identidade?
- A mulher aqui é você, Janice. O que você acha? - Shaw se dirigiu até a minúscula sala onde o policial encarregado de fornecer e manter atualizadas as informações secretas guardava os seus arquivos. A sala ficava vazia durante a noite, mas os gabinetes com as fichas de arquivo organizadas em ordem alfabética ficavam destrancados e disponíveis para consulta.
- Bem, se os irmãos tinham um histórico de espantar homens que consideravam inadequados, acho que tenho que descobrir que tipo de homem Colin e Brian considerariam inadequado - refletiu ela.
- E que tipo seria esse? - perguntou Shaw, abrindo a gaveta com a letra "D". Os seus dedos, surpreendentemente longos e finos, começaram a correr pelos arquivos.
- Pensando alto, eu diria que, a julgar pela família, com aquele senso de respeitabilidade típico de Fife, toda certinha... Acho que alguém que eles considerassem ou acima ou abaixo dela.
Shaw virou-se para ela.
- Nossa, você realmente conseguiu fazer uma bela triagem.
- Eu falei que estava pensando alto - resmungou ela. - Se fosse um pé-rapado qualquer, ela provavelmente acharia que ele seria capaz de se defender dos seus irmãos. Mas se fosse alguém um pouquinho mais rebuscado...
- Rebuscado? Mas que palavra mais sofisticada para uma policial, Janice.
- Usar um uniforme não me impede de ter um cérebro, detetive Shaw. E não se esqueça que até bem pouco tempo atrás o senhor também estava usando um.
- Tá bem, tá bem. Vamos voltar ao rebuscado. Como assim, tipo um estudante? - perguntou Shaw.
- Exatamente.
- Tipo os que encontraram o corpo? - Ele virou-se novamente para o arquivo.
- Eu não descartaria essa possibilidade - Janice encostou-se no alizar da porta. - Ela com certeza pôde conhecer vários estudantes no seu trabalho.
- Aqui está - anunciou Shaw, tirando algumas fichas da gaveta. - Sabia que Colin Duff não me era estranho. - Ele leu a primeira ficha e depois passou para Janice. Estava anotado, em uma caligrafia bonita: Colin James Duff. Data de nascimento: 05/03/55. Último endereço conhecido: Caberfeidh Cottage, Strathkinness. Trabalha na fábrica de papel em Guardbridge, como motorista de empilhadeira. 09/74 Bebedeira e má conduta, multado 25 libras. 05/76 Perturbação da paz, detido. 06/78 Velocidade, multado 37 libras. Companheiros conhecidos: Brian Stuart Duff, irmão. Donald Angus Thomson. Janice virou a ficha. No verso, escrito com a mesma caligrafia, só que a lápis para poder ser apagado se fosse preciso, ela pôde ler: Duff gosta de criar caso quando bebe. É bom de briga e tem um talento para se safar. Um pouco metido a valentão. Não é desonesto, só meio rebelde.
- Não é o tipo de sujeito que você quer que se misture com o seu namorado acadêmico sensível - comentou Janice enquanto pegava a segunda ficha de arquivo das mãos de Shaw. Brian Stuart Duff. Data de nascimento: 27/05/57. Último endereço conhecido: Caberfeidh Cottage, Strathkinness. Trabalha na fábrica de papel em Guardbridge como encarregado do armazém. 06/75 Agressão, multado 50 libras. 05/76 Agressão, três meses de detenção, cumpriu em Perth. 03/78 Perturbação da paz, detido. Companheiros conhecidos: Colin James Duff, irmão. Donald Angus Thomson. Ela virou a ficha e leu no verso: O Duff caçula é um vândalo que pensa que é valentão. A sua ficha seria bem mais longa se o irmão mais velho não tivesse o hábito de levá-lo embora antes da coisa ficar preta. Ele começou cedo - John Stobie e as suas costelas e braço quebrado em 1975, possivelmente de sua autoria. Stobie se recusou a prestar depoimento, disse que sofreu um acidente de bicicleta. Há suspeitas de que Duff também esteve envolvido no arrombamento não solucionado de uma loja de bebidas em West Port 08/78. Um dia vai acabar indo em cana por um bom tempo. Janice apreciava as observações pessoais que o encarregado local de manter as fichas acrescentava às informações oficiais. Quando se estava indo prender alguém, era sempre de grande valia saber de antemão se a coisa terminaria mal. E, ao que parecia, os irmãos Duff poderiam fazer com que as coisas terminassem mal. Uma pena, pensou ela. Colin Duff era bem bonitinho.
- O que você acha? - perguntou Shaw, pegando Janice de surpresa duplamente, por causa do seu pensamento sobre Colin e porque não estava acostumada a um membro do DIC imaginando que ela fosse capaz de raciocínio em conjunto.
- Acho que Rosie estava guardando segredo sobre o seu namorado porque sabia que o relacionamento ia provocar a ira dos irmãos. Eles me pareceram uma família unida. Vai ver ela estava protegendo ambos, a família e o namorado.
Shaw franziu a testa.
- Como assim?
- Ela não queria que eles arrumassem mais problemas. Com a ficha de Brian, especialmente, mais uma agressão séria e eles iam acabar na cadeia por um bom tempo. Então, ela preferiu ficar calada. - Janice guardou as fichas de volta no arquivo.
- Bom trabalho. Escuta, eu vou lá na sala do DIC escrever o relatório. Você vai até o necrotério ver se consegue agendar a visita da família. Essa história de só marcar para amanhã vai deixá-los meio chateados, mas é bom dar uma satisfação desde agora.
Janice fez uma cara desanimada.
- Por que será que eu sempre fico com as melhores tarefas?
Shaw levantou as sobrancelhas.
- Quer que eu responda?
Janice não disse mais nada. Deixou Shaw e foi para o vestiário feminino, bocejando. Tinham uma chaleira lá dentro, mas os homens não sabiam. O seu corpo pedia uma boa dose de cafeína, e se ela tinha de ir ao necrotério, merecia aquele regalo. Afinal de contas, Rosie Duff não ia a lugar algum.
Alex já estava no quinto cigarro, se perguntando se o maço ia durar mesmo, quando a porta da sala de interrogatório onde ele estava finalmente se abriu. Ele reconheceu o detetive de rosto delgado que havia visto em Hallow Hill. O homem parecia bem mais disposto do que Alex se sentia. O que não era de admirar, uma vez que a hora do café da manhã já havia passado para a maioria das pessoas. E ele duvidava muito que o inspetor estivesse sofrendo com aquela dorzinha chata causada pela ressaca, que atacava o seu cérebro. Deu a volta e sentou-se diante de Alex, nunca desviando o seu olhar. Alex fez um esforço para encará-lo de volta, determinado a não deixar que o cansaço fizesse com que ele parecesse evasivo.
- Eu sou o detetive-inspetor Maclennan - disse ele, com a voz entrecortada e enérgica.
Alex não sabia ao certo qual era a etiqueta adequada para a situação.
- Eu sou Alex Gilbey - tentou ele.
- Eu sei disso, meu filho. E também sei que você gostava de Rosie Duff.
Alex sentiu o calor queimando as suas bochechas.
- Isso não é crime - respondeu. De nada adiantaria negar o que Maclennan parecia saber com tanta certeza. Especulou qual dos seus amigos teria traído o seu interesse pela garçonete morta. Mondo, tinha quase certeza. Sob pressão, ele entregaria a própria avó, e depois tentaria se convencer de que aquele havia sido o melhor destino para a velha.
- Não, não é. Mas o que aconteceu com ela essa noite foi o pior de todos os crimes. E o meu trabalho é descobrir quem foi o responsável. Até agora, a única pessoa ligada à moça assassinada e à descoberta do corpo é você, Sr. Gilbey. Ora, você na certa é um rapaz inteligente. Então não preciso explicar isso para você, não é?
Alex bateu o cigarro nervosamente, embora não houvesse nenhuma cinza para ser descartada.
- Coincidências acontecem.
- Com muito menos frequência do que você pode imaginar.
- Bem, essa foi uma delas. - O olhar fixo de Maclennan dava a sensação de que havia insetos se movendo por dentro da pele de Alex. - Eu só tive um baita azar, encontrando Rosie daquele jeito.
- É o que você diz. Mas se eu tivesse abandonado Rosie à morte em uma colina incrivelmente gelada, estivesse preocupado se havia ficado algum vestígio de sangue em mim e fosse um rapaz inteligente, eu ia armar a coisa de modo que eu fosse a primeira pessoa a encontrar o corpo. Assim, eu teria a desculpa perfeita para estar coberto com o sangue dela. - Maclennan fez um gesto na direção da camisa de Alex, manchada de sangue coagulado.
- Tenho certeza de que o senhor agiria assim. Mas eu, não. Eu não saí da festa em momento algum. - Alex estava começando a ficar realmente com medo. Ele já estava esperando alguns momentos desagradáveis durante a conversa com a polícia, mas não havia imaginado que Maclennan ia pegar tão pesado, logo de início. Um suor frio e úmido começou a cobrir as suas palmas e ele precisou conter o impulso de secá-las no jeans.
- Você pode fornecer testemunhas que confirmem isso?
Alex cerrou os olhos, tentando silenciar a algazarra dentro da sua cabeça para poder recordar seus passos durante a festa.
- Logo que chegamos, eu fiquei conversando com uma garota da minha sala por um tempo. Penny Jamieson é o nome dela. Ela saiu para dançar e eu fiquei fazendo hora na sala de jantar, beliscando aqui e ali. Várias pessoas entraram e saíram, não prestei muita atenção. Eu estava meio bêbado e mais tarde fui até o jardim lá nos fundos para vomitar.
- Sozinho? - Maclennan inclinou-se levemente para a frente.
Alex teve um súbito flash de memória que trouxe consigo uma pontada de alívio.
- Sim. Mas vocês provavelmente vão conseguir identificar o canteiro de rosas perto de onde eu vomitei.
- Você pode ter vomitado a qualquer hora - salientou Maclennan. - Se tivesse acabado de estuprar e esfaquear uma garota e a tivesse abandonado para morrer, por exemplo. Isso poderia ter deixado você enjoado.
O momento de esperança de Alex foi por água abaixo.
- Pode até ser, mas não foi o que aconteceu - respondeu ele, em um tom desafiador. - Se eu estava coberto de sangue, você não acha que alguém teria percebido isso na festa? Eu me senti melhor depois de ter colocado tudo pra fora. Entrei novamente e resolvi dançar um pouco, na sala de estar. Várias pessoas devem ter me visto nessa hora.
- E nós fazemos questão de conversar com cada uma delas. Queremos uma lista com o nome de todo mundo que estava nessa festa. Vamos ter de conversar com o anfitrião. Com todos que conseguirmos localizar. E se Rosie Duff apareceu por lá, mesmo que só por um segundo, nós dois vamos ter uma conversinha bem menos amigável, Sr. Gilbey.
Alex sentiu o seu rosto o trair novamente e desviou o olhar depressa. Não tão depressa quanto gostaria. Maclennan aproveitou a brecha.
- Ela estava lá?
Alex negou com a cabeça.
- Eu não a vi mais, depois do Lammas. - Ele podia ver alguma coisa começando a fazer sentido por trás do olhar fixo de Maclennan.
- Mas você a convidou para a festa? - As mãos do detetive agarraram a quina da mesa e ele se inclinou para a frente, tão próximo que Alex pôde sentir o cheiro do seu xampu.
Alex fez que sim, estava agoniado demais para negar.
- Eu dei o endereço. Quando estávamos no pub. Mas ela não apareceu na festa, não. Nem eu esperava que ela fosse aparecer. - A voz de Alex rompera em um soluço. O seu frágil controle começou a desaparecer, à medida que lembrava de Rosie atrás do balcão, animada, provocante, afetuosa. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, encarando o detetive.
- Isso deixou você com raiva? O fato de ela não ter aparecido?
Alex sacudiu a cabeça.
- Não. Não cheguei a acreditar que ela fosse. Olha, eu não queria que ela estivesse morta. Nem queria ter encontrado o corpo. Mas o senhor tem que acreditar em mim. Eu não tive nada a ver com isso.
- Isso é o que você diz, filho. O que você diz. - Maclennan não moveu um músculo e continuou cara a cara com o rapaz. Todos os seus instintos lhe diziam que havia algo espreitando por trás da superfície naqueles interrogatórios. E, de uma maneira ou de outra, ele acabaria descobrindo o que era.
5
A policial Janice Hogg deu uma espiada no seu relógio, enquanto se dirigia até o balcão principal. Mais uma hora e ela estaria de folga, pelo menos na teoria. Com uma investigação de homicídio a pleno vapor, provavelmente ela teria de fazer hora extra, especialmente porque não havia muitas policiais femininas em St. Andrews. Estava passando pela porta da recepção justo na hora em que a porta da rua se abriu, num solavanco tão violento que chegou a quicar na parede.
A potência por trás da porta era um jovem com os ombros quase tão largos quanto o alizar. O seu cabelo negro e ondulado estava coberto de neve e o seu rosto encharcado - de lágrimas, de suor ou de flocos de neve derretidos. Ele avançou em direção ao balcão, rosnando de raiva. O policial em serviço recuou, assustado, quase caindo do banco.
- Onde estão os desgraçados? - rosnou ele.
Para fazer justiça ao policial, vale dizer que ele conseguiu desencavar algum sang froid dos recantos mais profundos do seu treinamento.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele, desviando-se dos punhos que se chocavam contra a superfície do balcão. Janice não avançara e não fora sequer notada. Se a coisa degringolasse, como parecia que ia acontecer, ela poderia se valer do elemento surpresa.
- Eu quero saber onde estão os filhos da puta que mataram a minha irmã! - gritou ele.
Logo vi, pensou Janice. As notícias haviam chegado até Brian Duff.
- Eu não sei do que o senhor está falando - respondeu o policial, gentil.
- A minha irmã, Rosie! Ela foi assassinada! E vocês estão com eles aqui. Os desgraçados que mataram ela! - Parecia que Duff ia escalar o balcão no seu desejo desesperado de vingança.
- Eu acho que o senhor recebeu a informação errada.
- Não vem com essa, seu babaca! - gritou Duff. - A minha irmã está morta e alguém vai ter que pagar!
Janice julgou aquele o momento certo para entrar em ação.
- Sr. Duff? - perguntou ela calmamente, aproximando-se dele.
Ele rodopiou e encarou Janice fixamente com os olhos arregalados, a saliva espumando nos cantos da boca.
- Cadê eles? - rosnou ele.
- Sinto muito pelo que aconteceu com a sua irmã. Mas ninguém foi preso em relação ao crime. Ainda estamos nos estágios iniciais da nossa investigação, interrogando as testemunhas. Não suspeitos, testemunhas. - Ela pousou a mão com cuidado no braço dele. - Você deveria estar em casa. A sua mãe está precisando dos filhos.
Brian sacudiu o braço, desvencilhando-se da mão de Janice.
- Me disseram que vocês prenderam eles. Os desgraçados que fizeram isso.
- Disseram errado. Estamos todos ansiosos para encontrar quem cometeu esse crime terrível e às vezes isso faz com que as pessoas tirem conclusões precipitadas. Pode acreditar em mim, Sr. Duff. Se tivéssemos um suspeito preso, eu diria a você. - Janice manteve os olhos fixos nos de Duff, torcendo para que a sua abordagem calma e direta funcionasse. Do contrário, ele poderia partir a sua mandíbula com um único soco. - Quando prendermos alguém, a sua família será a primeira a saber. Eu prometo isso a você.
Brian parecia estar atordoado e com raiva. Então, de repente, os seus olhos encheram-se de lágrimas e ele desmoronou em uma das cadeiras da recepção. Envolveu a cabeça com os braços e sacudiu-se em um violento ataque de choro. Janice trocou um olhar impotente com o policial que estava atrás do balcão. Ele simulou um gesto de aplicação de algemas, mas ela descartou a hipótese balançando a cabeça e sentou-se ao lado de Brian.
Aos poucos, ele se recompôs. Deixou que as mãos caíssem como pedras no colo e voltou o rosto crispado de lágrimas para Janice.
- Mas vocês vão encontrar ele, não vão? O desgraçado que fez isso?
- Vamos fazer de tudo, Sr. Duff. Agora, posso levar você para casa? A sua mãe estava preocupada com você hoje cedo. Ela precisa ter certeza de que você e o seu irmão estão bem. - Ela levantou-se e olhou para ele, na expectativa.
Por ora, a ira de Brian havia se dissipado. Ele se levantou docilmente e concordou.
- Tá bem.
Janice virou-se para o policial de plantão e avisou:
- Diga ao detetive Shaw que eu fui levar o Sr. Duff em casa. Quando voltar, faço o que deveria estar fazendo agora. - Ninguém ia reclamar por ela ter tomado a iniciativa uma vez na vida. Qualquer coisa que pudessem apurar sobre Rosie Duff e sua família era de grande valia e aquele era o momento perfeito, pois Brian não estava na defensiva. - Ela era um amor de menina, a Rosie - disse ela, puxando conversa enquanto conduzia Brian para fora da entrada principal, até o estacionamento.
- Você a conhecia?
- Eu bebo no Lammas às vezes. - Era uma pequena mentira, oportuna diante das circunstâncias. Janice considerava o Lammas tão atraente quanto um prato de mingau frio. Com gosto de queimado, ainda por cima.
- Não dá pra acreditar - disse Brian. - Esse é o tipo de coisa que a gente vê na tevê. Não o tipo de coisa que acontece com a gente.
- Como foi que você ficou sabendo? - Janice estava genuinamente curiosa. As notícias costumavam viajar na velocidade do som em uma cidade pequena como St. Andrews, mas não no meio da noite.
- Por um camarada meu, ontem à noite. A namorada dele trabalha no turno da manhã em um pé-sujo na South Street. Ela ficou sabendo quando chegou no serviço, às seis da manhã, e correu pro telefone. Porra - explodiu ele -, primeiro eu achei que fosse alguma piada de mau gosto. Você também pensaria, é ou não é?
Janice abriu o carro, pensando, Não, para falar a verdade os meus amigos não iam brincar com uma coisa dessas. Ela disse:
- A gente não quer pensar, nem por um segundo, que aquilo é verdade.
- Exatamente! - concordou Brian, sentando-se ao lado dela no carona. - Quem faria uma coisa dessas com a Rosie? Ela era uma boa pessoa, sabe? Uma garota certinha. Não era uma vagabunda.
- Você e o seu irmão ficavam de olho nela. Você chegou a ver alguém rondando a sua irmã, alguém com quem você não fosse muito com a cara? - Janice deu partida no motor, sentindo um calafrio quando uma rajada de vento gelado entrou no carro. A manhã estava de lascar.
- Sempre tinha uns vagabundos cercando a minha irmã. Mas todo mundo sabia que iam ter que se ver comigo e com Colin se mexessem com ela. Então, ficavam pianinho. Sempre ficamos de olho nela. - De repente ele acertou um soco na palma da mão. - É por isso que eu fico me perguntando: onde é que a gente estava ontem, quando ela realmente precisou da gente?
- Você não pode se culpar, Brian. - Janice manobrou a viatura para fora do estacionamento e deslizou sobre a superfície lisa e coberta de neve prensada da estrada principal. As luzes de Natal pareciam pálidas contra o painel cinza-amarelado do céu; o glamouroso laser fornecido pelo departamento de física da universidade não passava de um rabisco mortiço e despercebido contra as nuvens baixas.
- Eu não me culpo. Eu culpo o canalha que fez isso. Só queria ter estado lá para impedir que acontecesse. É foda, agora é tarde demais, é sempre tarde demais - ele resmungou baixinho.
- Então você não sabe com quem ela pode ter se encontrado?
- Ela mentiu para mim. Disse que ia para uma festa com a Dorothy, que trabalha com ela. Mas a Dorothy apareceu na festa onde eu estava. Ela disse que a Rosie tinha saído pra encontrar um cara. Eu ia dar a maior bronca nela quando ela voltasse. Pô, uma coisa é deixar meu pai e minha mãe de fora. Mas eu e Colin, a gente sempre estava do lado dela. - Ele esfregou os olhos com as costas da mão. - Não dá pra suportar isso. A última coisa que ela me disse foi uma mentira.
- Quando foi que vocês se viram pela última vez? - Janice fez uma curva súbita em West Port e avançou pela estrada para Strathkinness.
- Ontem, depois que eu saí do trabalho. Encontrei com ela no centro, fomos comprar um presente de Natal pra mamãe. Nós três fizemos uma vaquinha pra comprar um secador de cabelo novo pra ela. Aí a gente foi na drogaria para comprar um sabonete bacana pra ela. Fui andando com a Rosie até o Lammas e aí ela disse que ia sair com a Dorothy. - Ele balançou a cabeça. - Ela mentiu. E agora, está morta.
- Talvez ela não tenha mentido, Brian. Vai ver que ela até estava planejando ir pra essa tal festa, mas apareceu algum outro programa mais tarde. - Isso devia ser tão verdadeiro quanto a história que Rosie havia contado, mas Janice sabia por experiência própria que as pessoas que acabam de perder alguém se agarram a qualquer coisa que mantenha intacta a imagem do falecido.
Brian não foi exceção. A esperança acendeu o seu rosto.
- Sabe que deve ter sido isso mesmo? Porque Rosie não era mentirosa.
- Mas tinha lá os seus segredos, não é? Como toda moça.
Ele fechou a cara.
- Segredo é confusão. Ela devia saber disso. - Alguma coisa lhe ocorreu e subitamente Brian retesou o corpo no banco. - Você sabe se ela foi...? Se se aproveitaram dela?
Nada que Janice pudesse dizer o confortaria. Para que a confiança que ela aparentemente estabelecera com Brian pudesse sobreviver, ela não podia se arriscar e deixar que ele pensasse que ela também estava mentindo para ele.
- Só vamos saber com certeza depois da autópsia, mas parece que sim.
Brian esmagou o punho no painel do carro.
- Filho da puta! - grunhiu ele. À medida que o carro subia em ziguezague a colina em direção a Strathkinness, ele se revirava no assento. - Seja lá quem foi que fez isso, é melhor que vocês peguem ele antes de mim. Juro por Deus que eu mato o sujeito. Eu mato!
A casa parecia violada, pensou Alex ao abrir a porta da unidade autônoma que os Garotos de Kirkcaldy haviam transformado em seu feudo particular. Cavendish e Greenhalgh, os dois ingleses aristocratas que dividiam o espaço com eles, passavam o mínimo tempo possível em casa, um acordo perfeitamente conveniente para todos. Eles já haviam partido para a Inglaterra, para passar as férias, mas naquele dia o sotaque exagerado deles, que soava tão ostensivamente metido para Alex, seria muito mais convidativo do que a presença da polícia, que parecia imiscuir-se no próprio ar que ele respirava.
Com Maclennan nos seus calcanhares, Alex correu até o quarto onde dormia, no segundo andar.
- Não se esqueça, queremos tudo que você está usando. Inclusive a roupa de baixo - Maclennan lembrou a Alex, que abria a porta do quarto. O detetive ficou parado na soleira, visivelmente intrigado diante da visão de duas camas no quarto minúsculo, que obviamente fora projetado para apenas uma. - Quem dorme aqui com você? - quis saber ele.
Antes que Alex pudesse responder, a voz ponderada de Ziggy acudiu:
- Ele acha que nós somos todos gays - disse ele, sarcástico. - E que, é claro, foi por isso que matamos Rosie. Independente da total ausência de lógica, é isso o que está passando pela cabeça dele. Na verdade, Sr. Maclennan, a explicação é muito mais simples. - Ziggy apontou por cima do ombro do detetive para uma porta do outro lado do corredor. - Vem cá ver - disse ele.
Curioso, Maclennan aceitou o convite de Ziggy. Alex aproveitou que ele estava de costas e despiu-se às pressas, agarrando um roupão para cobrir a sua vergonha. Ele foi atrás dos dois e não pôde conter um sorriso convencido quando viu a expressão bestificada de Maclennan.
- Viu só? - perguntou Ziggy. - Simplesmente não tem espaço para uma bateria completa, um órgão Farfisa, duas guitarras e uma cama nessas tocas de coelho. Então Esquisito e Gilly foram sorteados e passaram a dormir no mesmo quarto.
- Vocês têm uma banda, então? - Maclennan parecia o seu pai falando, pensou Alex, com uma pontada de afeto que o surpreendeu.
- Tocamos juntos há quase cinco anos - respondeu Ziggy.
- Sério? Quer dizer que vão ser os próximos Beatles? - Maclennan não pôde se conter.
Ziggy revirou os olhos.
- Não, não vamos ser os próximos Beatles, por dois motivos. Primeiro, porque tocamos estritamente para nosso próprio prazer. Ao contrário dos Rezillos, não temos nenhuma vontade de constar entre os 10 Mais. E segundo, por causa do talento. Somos músicos absolutamente competentes, mas não temos um único pensamento musical original entre nós. O nome da nossa banda antes era Muse, até percebermos que não tínhamos nenhuma musa. Agora, somos os Combine.[4]
- Combine? - repetiu Maclennan debilmente, surpreso com o súbito acesso de intimidade de Ziggy.
- Novamente, por dois motivos. Quem tem uma ceifadeira colhe na plantação de todo mundo. Como nós. E também por causa da música do Jam que tem o mesmo nome. Nós não somos melhores que ninguém.
Maclennan virou as costas, balançando a cabeça.
- Vamos ter que dar uma olhada aí dentro também, você sabe.
Ziggy bufou.
- A única infração de que vocês vão encontrar provas é de violação de copyright - disse ele. - Olha, nós colaboramos com vocês. Quando é que vão nos deixar em paz?
- Assim que recolhermos as roupas. Também queremos diários, agendas, cadernos de endereços...
- Alex, dá logo o que ele quer. Todos nós já entregamos tudo. Quanto mais rápido recuperarmos o nosso espaço, mais fácil será colocarmos a cabeça no lugar. - Ziggy virou-se para Maclennan. - Sabe, o que o senhor e os seus subordinados parecem não perceber é que acabamos de passar por uma experiência terrível. Nos deparamos com o corpo moribundo e ensanguentado de uma garota que conhecíamos, ainda que superficialmente. - A voz dele ficou embargada, revelando a fragilidade do seu aparente autocontrole. - Se parecemos estranhos aos seus olhos, Sr. Maclennan, lembre-se que isso pode ter a ver com o fato de estarmos com a cabeça fodida por causa de tudo o que passamos hoje.
Ziggy passou voando pelo policial e desceu as escadas correndo, cruzando a cozinha e batendo a porta ao sair. Maclennan torceu a boca.
- Ele tem razão - disse Alex, dócil.
- Tem uma família lá em Strathkinness que passou uma noite bem pior do que a de vocês, filho. E o meu trabalho é encontrar respostas para eles. Se para isso eu precisar pisar no calo de vocês, sinto muito. Agora, vamos lá, me dê logo as roupas. E o resto também.
Ele ficou esperando na soleira da porta enquanto Alex empilhava as suas roupas sujas em um saco de lixo.
- O senhor vai precisar dos meus sapatos também? - perguntou Alex, segurando-os na altura do peito, visivelmente preocupado.
- Vou precisar de tudo - respondeu Maclennan, registrando mentalmente que teria de pedir ao pessoal da perícia para tomar um cuidado especial com os sapatos de Gilbey.
- É que eu não tenho nenhum outro par decente. Só botas de beisebol, e elas não servem nem para enfeite em um tempo como esse.
- Que pena. Vamos logo, para dentro do saco, filho.
Alex jogou os sapatos por cima das roupas.
- O senhor está perdendo o seu tempo aqui, sabe? Cada minuto que dedica a nós é um minuto perdido. Não temos nada a esconder. Não matamos Rosie.
- Que me conste, ninguém os acusou disso. Mas vocês insistem tanto no assunto que estou começando a ficar desconfiado. - Maclennan apanhou a sacola da mão de Alex e o diário caindo aos pedaços que ele lhe ofereceu. - Vamos voltar, Sr. Gilbey. Não vá a lugar nenhum.
- Temos que voltar para casa hoje - protestou Alex.
Maclennan estacou, dois degraus escada abaixo.
- Ninguém me disse isso - ele disse, desconfiado.
- O senhor não perguntou, não é? Temos que pegar o ônibus hoje à tarde. Todos nós começamos os nossos trabalhos de férias amanhã. Quer dizer, todos menos Ziggy - Alex acrescentou, com um sorriso meio irônico. - O pai dele acha que acadêmicos devem passar as férias estudando e não arrumando prateleiras de mercado.
Maclennan ponderou. Suspeitas baseadas essencialmente no seu instinto não justificavam exigir que os rapazes permanecessem em St. Andrews. E eles não iam nem sair da jurisdição. Kirkcaldy ficava logo ali, afinal.
- Podem ir para casa - sentenciou ele. - Desde que vocês não se incomodem em me ver, com a minha equipe, batendo na porta da casa dos seus pais.
Alex ficou parado, vendo Maclennan ir embora. O desânimo o arrastava para uma depressão ainda mais profunda. As festas de fim de ano iam ser realmente fantásticas.
6
Os acontecimentos da noite finalmente atingiram Esquisito em cheio. Quando Alex subiu após ter tomado um lúgubre café com Ziggy, Esquisito estava na sua posição habitual. De barriga para cima, com as pernas e os braços pendurados para fora das cobertas, ele rompia a relativa paz daquela manhã com o seu ruidoso ronco, que se transformava às vezes em um assovio agudo. Alex normalmente não tinha problemas para dormir ao som dessa trilha sonora estridente. O quarto onde dormia na casa dos seus pais dava para os trilhos da ferrovia, então silêncio noturno era uma espécie de novidade para ele.
Mas naquela manhã, Alex não precisou nem tentar para saber que não conseguiria pregar o olho com os barulhos de Esquisito atrapalhando os pensamentos que corriam em sua mente. Mesmo estando meio tonto por causa da falta de sono, não estava nem um pouco sonolento. Pegou uma leva de roupas da sua cadeira, caçou as botas de beisebol debaixo da cama e saiu de fininho do quarto. Vestiu-se no banheiro e desceu sem fazer barulho, para não acordar nem Esquisito, nem Mondo. Para falar a verdade, não queria nem mesmo a companhia de Ziggy. Parou diante dos ganchos de pendurar casacos na sala. A sua parca havia sido recolhida pela polícia. O que lhe deixara apenas com uma jaqueta jeans e um casaco leve com capuz. Ele pegou os dois e saiu.
Não estava mais nevando, mas as nuvens ainda estavam baixas e carregadas. A cidade parecia coberta de algodão. O mundo estava monocromático. Se ele espremesse os olhos, os prédios brancos do Fife Park desapareceriam, a pureza da vista conspurcada apenas pelos retângulos negros das janelas. O som também havia desaparecido, coberto pelo peso do clima. Alex seguiu pelo que uma vez já fora grama em direção à estrada principal. Hoje ela parecia uma trilha no Cairngorms, com rastros na neve indicando onde veículos ocasionais haviam passado. Só quem estava dirigindo naquelas condições eram aqueles que precisavam, obrigatoriamente. Quando ele chegou ao campo desportivo, os seus pés estavam molhados e gelados e isso, de alguma forma, pareceu-lhe apropriado. Caminhou até as quadras de hóquei. No meio daquela imensidão branca, ele espanou a neve de uma tabela de pontos e sentou sobre ela. E assim ele ficou, cotovelos nos joelhos, apoiando o queixo com as mãos, sentado sobre a tábua intacta, até que pequenas luzes começaram a dançar diante dos seus olhos.
Por mais que se esforçasse, Alex não conseguia fazer com que a sua mente ficasse tão vazia quanto a paisagem. Imagens de Rosie Duff não saíam da sua cabeça. Rosie tirando um chope, séria e concentrada. Rosie de lado, rindo da tirada de um freguês. Rosie levantando as sobrancelhas, caçoando de alguma coisa que ele lhe dissera. Essas eram lembranças com as quais ele podia lidar, sem problemas. Mas elas não permaneciam em sua mente. Eram constantemente expulsas pela outra Rosie. O rosto retorcido em um esgar de dor. Sangrando na neve. Lutando pelos seus últimos suspiros.
Alex se inclinou e agarrou um punhado de neve, apertando-o com força em suas mãos até que elas começassem a ficar arroxeadas de frio, até que a água escorresse pelos pulsos. O frio transformou-se em dor, a dor em entorpecimento. Ele queria poder fazer algo parecido com a sua mente. Desligá-la, desligá-la completamente. Deixá-la tão vazia quanto aquele campo coberto de neve, branco reluzente.
Quando sentiu alguém tocar no seu ombro, quase fez xixi nas calças. Cambaleou para a frente e não caiu estatelado por pouco. Virou-se com as mãos em punho, armadas na direção do peito.
- Ziggy! - gritou ele. - Meu Deus, você quase me mata de susto.
- Desculpe. - Ziggy parecia estar à beira das lágrimas. - Eu te chamei, mas você não olhou.
- Eu não ouvi! Meu Deus, avançando assim pela retaguarda você vai ficar mal falado, cara - Alex disse com uma risada trêmula, tentando fazer piada com o seu medo.
Ziggy riscou a neve com o bico da galocha.
- Sei que provavelmente você está querendo ficar sozinho, mas quando vi você saindo, resolvi vir atrás.
- Tudo bem, Zig. - Alex inclinou-se para a frente e removeu mais um pouco de neve da tábua. - Junte-se a mim no meu suntuoso sofá, onde as garotas do harém virão nos servir refrescos e água de rosas.
Ziggy deu um sorriso sem graça.
- Vou abrir mão dos refrescos. Eles congelam a ponta da minha língua. Você se importa?
- Não, por mim tudo bem.
- Fiquei preocupado com você, foi isso. De todos nós, você é o que a conhecia melhor. Eu não sabia se você estava querendo conversar, longe dos outros.
Alex se encolheu dentro da jaqueta e fez que não com a cabeça.
- Não tenho muito o que dizer. Eu só não consigo parar de ver o rosto dela. Achei que não ia conseguir dormir. - Ele suspirou. - Não, eu estava assustado demais para tentar. Quando eu era pequeno, um amigo do meu pai sofreu um acidente em um estaleiro. Uma explosão, sei lá, não sei exatamente o que foi. Enfim, depois do acidente, ele ficou só com uma metade do rosto. A outra metade era uma máscara de plástico, que ele tinha que usar sobre o tecido queimado. Você provavelmente deve lembrar dele, na rua ou no futebol. Era difícil não notar o cara. O meu pai me levou ao hospital para visitá-lo, eu só tinha cinco anos. E fiquei completamente apavorado. Eu ficava imaginando o que tinha por trás da máscara. À noite, quando ia dormir, acordava gritando, porque ele sempre aparecia nos meus sonhos. Às vezes, tinha vermes por trás da máscara. Às vezes, era uma bagunça cheia de sangue, tipo aquelas ilustrações dos seus livros de anatomia. Mas o pior era quando ele tirava a máscara e não havia nada por trás, apenas a pele com os vestígios do que deveria estar lá. - Ele tossiu. - É por isso que eu estou com medo de dormir.
Ziggy passou o braço pelo ombro de Alex.
- Eu sei que é difícil, Alex. Mas o fato é que você agora está mais velho. E o que nós vimos ontem, bem, a coisa não fica pior do que aquilo. A sua imaginação não tem muito o que fazer para piorar o quadro. Seja lá o que você sonhar agora, não vai chegar nem perto de ter visto Rosie daquele jeito.
Alex gostaria que as palavras de Ziggy pudessem confortá-lo um pouco mais. Mas ele sentia que elas não eram totalmente verdadeiras.
- Acho que todos nós vamos ter que lidar com os nossos demônios depois do que aconteceu ontem - disse ele.
- Alguns mais práticos do que os outros - respondeu Ziggy, recolhendo o braço de trás das costas de Alex e apertando as mãos uma contra a outra. - Não sei como, mas Maclennan descobriu que eu sou gay. - Ziggy mordeu o lábio.
- Putzgrila! - exclamou Alex.
- Eu só contei para você, você sabe, né? - A boca de Ziggy se contorceu em um sorriso irônico. - Quer dizer, além dos caras com quem eu estive, é claro.
- É claro. Como foi que ele descobriu? - perguntou Alex.
- Eu estava com tanto cuidado para não mentir que ele sacou a verdade nas entrelinhas. E agora eu estou com medo da coisa se espalhar.
- E por que haveria de se espalhar?
- Você sabe que as pessoas adoram uma fofoca. E eu acho que os policiais não são muito diferentes do resto, nesse sentido. Eles vão acabar falando com a universidade. Se quiserem pressionar a gente, essa seria uma boa estratégia. E se eles resolverem aparecer nas nossas casas, em Kirkcaldy? E se Maclennan achar que é uma jogada de mestre contar a verdade para os meus pais?
- Ele não vai fazer isso, Ziggy. Nós somos testemunhas. Não vejo o que ele pode ganhar se indispondo com a gente.
Ziggy suspirou.
- Queria acreditar em você. Na minha opinião, Maclennan está nos tratando mais como suspeitos do que como testemunhas. E isso significa que ele vai fazer qualquer coisa para nos pressionar, não é?
- Acho que você está muito paranoico.
- Pode até ser. Mas e se ele disser alguma coisa para o Esquisito ou o Mondo?
- Eles são seus amigos. Não vão virar as costas para você por causa disso.
Ziggy bufou.
- Eu vou te dizer o que eu acho que vai acontecer se Maclennan soltar que o melhor amigo deles é bicha. Eu acho que Esquisito vai querer me encher de porrada e que Mondo nunca mais vai querer entrar num banheiro comigo pro resto da vida. Eles são homofóbicos, Alex. Você sabe muito bem disso.
- Eles conhecem você desde pequeno. Isso vai contar muito mais do que um preconceito idiota. Eu não fiz um escândalo quando você me contou.
- E eu te contei exatamente porque sabia que você não ia fazer um escândalo. Você não é um homem das cavernas impulsivo.
Alex assumiu uma expressão modesta.
- Também era uma aposta garantida, né, contar para alguém que é fã de Caravaggio. Mas eles também não são dinossauros, Ziggy. Eles vão entender. Vão repensar as suas visões de mundo à luz do que sabem a seu respeito. Eu realmente acho que você não devia perder o sono por causa disso.
Ziggy deu de ombros.
- Pode ser, talvez você tenha razão. Mas, ainda assim, eu prefiro não arriscar. E mesmo que eles encarem numa boa, já pensou se a coisa se espalha? Quantos gays assumidos você conhece aqui na universidade? Todos esses ingleses riquinhos de escola particular, que passaram a adolescência inteira tendo experiências homossexuais, eles não saíram do armário, saíram? Estão todos aí, desfilando de braço dado com uma mulherzinha, garantindo a sua descendência. Vê só o Jeremy Thorpe. Ele está sendo julgado por ter conspirado para matar o seu ex-amante, só para manter a sua homossexualidade em segredo. Isso aqui não é San Francisco, Alex. É St. Andrews. Eu ainda tenho uns bons anos pela frente até poder atuar como médico, e eu te digo uma coisa, se Maclennan abrir a boca, a minha carreira vai para o espaço.
- Isso não vai acontecer, Ziggy. Você está exagerando. Você está cansado e, como você mesmo disse, estamos todos com a cabeça fodida por causa do que aconteceu ontem. Vou te dizer o que está me preocupando de verdade.
- O quê?
- A Land Rover. Que diabos vamos fazer a respeito?
- A gente tem que trazer de volta. Não temos nenhuma outra opção. Senão, dão queixa de furto e estamos perdidos.
- Pois é, eu sei disso. Mas quando? Não dá para fazer isso hoje. Seja lá quem foi que largou Rosie naquele lugar, deve ter um veículo qualquer e uma das coisas que nos deixa menos suspeitos é que nenhum de nós tem carro. Mas se formos vistos desfilando por aí na neve com uma Land Rover, vamos direto para o topo da lista de Maclennan.
- Vai acontecer a mesma coisa se uma Land Rover for descoberta exatamente na porta da nossa casa.
- Então o que a gente faz?
Ziggy chutou a neve entre os pés.
- Acho que vamos ter que esperar a poeira baixar, aí eu vou lá e busco o carro. Ainda bem que eu me lembrei das chaves a tempo de enfiar dentro da cueca. Senão a gente teria se dado mal na hora em que Maclennan pediu pra gente esvaziar os bolsos.
- Você está falando sério? Tem certeza que você quer ir buscar o carro?
- Vocês todos têm trabalho agora nas férias. Eu posso sair tranquilamente. Só preciso inventar alguma desculpa, dizer que tenho que ir até a biblioteca da universidade, sei lá.
Alex agitou-se desconfortável no seu assento improvisado.
- Você já parou para pensar que ao omitir a Land Rover a gente pode estar livrando a cara do assassino?
Ziggy ficou chocado.
- Você não está realmente sugerindo que...?
- O quê? Que um de nós pode ter cometido o crime? - Alex mal podia acreditar que tinha conseguido verbalizar as suspeitas insidiosas que haviam se infiltrado na sua consciência. Ele tentou consertar, depressa. - Não. Mas as chaves ficaram rolando lá na festa. Talvez alguém tenha manjado a oportunidade e aproveitado para pegar... - A sua voz foi morrendo.
- Você sabe que isso não aconteceu. E, lá no fundo, você também sabe que não acredita de verdade que um de nós possa ter matado Rosie - disse Ziggy, confiante.
Alex queria estar assim tão certo. Quem poderia dizer o que se passava pela cabeça de Esquisito, quando ele estava drogado até não poder mais? E Mondo? Ele foi levar a tal garota para casa, crente que ia rolar alguma coisa. Mas e se ela deu um fora nele? Ele estava furioso e frustrado, e talvez estivesse bêbado o suficiente para querer descontar em qualquer outra garota que tivesse dado o fora nele antes, como Rosie fizera, mais de uma vez no Lammas. E se tivesse encontrado com ela no caminho? Balançou a cabeça. Não queria nem pensar naquilo.
Como se pressentindo os pensamentos de Alex, Ziggy disse, calmamente:
- Se você está pensando em Esquisito e em Mondo, vai ter que me incluir na lista. Eu tive tanta oportunidade quanto eles. E espero que você saiba o quão ridícula é essa ideia.
- Isso é absurdo. Você jamais faria mal a alguém.
- O mesmo vale para os outros dois. A suspeita é como um vírus, Alex. Você pegou do Maclennan. Mas é bom você se livrar dela rapidinho, antes que contamine a sua mente e o seu coração. Lembre-se do que você sabe sobre nós. Nenhum de nós tem o perfil de um assassino frio e calculista.
As palavras de Ziggy não dissiparam a inquietude de Alex, mas ele não queria mais discutir a respeito. Em vez disso, abraçou o amigo, colocando a mão no seu ombro.
- Você é um amigão, Ziggy. Vamos até o centro. Eu te pago uma panqueca.
Ziggy sorriu.
- O último dos perdulários, hein? Vou fazer desfeita, se você não se importar. Não sei por quê, mas estou sem fome. E não se esqueça: um por todos e todos por um. Isso não significa ficar cego para os defeitos dos amigos e sim aprender a confiar neles. É uma confiança baseada em anos de amizade sólida. Não deixe Maclennan destruir isso.
Barney Maclennan olhou em volta da sala do DIC excepcionalmente cheia. Desacostumado a estar entre os detetives à paisana, Maclennan era a favor da convocação dos policiais uniformizados para ouvir as suas ordens em casos importantes. Fazia com que eles se sentissem pessoalmente envolvidos na investigação. Além do mais, eles faziam mais trabalho de campo e podiam perceber coisas que os detetives talvez deixassem passar. Fazer com que se sentissem parte do time tornava-os mais dispostos a seguir essas observações até o fim e não descartá-las como irrelevantes.
Ele estava parado de pé, do outro lado da sala, entre Burnside e Shaw. Com uma das mãos encoberta, revirava obsessivamente moedas dentro do bolso da calça. Sentia-se enfraquecido pelo cansaço e pelo esforço, mas sabia que a adrenalina o manteria aceso por várias horas. Era sempre assim quando estava seguindo o seu instinto.
- Vocês sabem por que estamos aqui - disse ele assim que todos se acomodaram. - O corpo de uma jovem foi encontrado hoje bem cedo, em Hallow Hill. Rosie Duff foi assassinada com uma única facada no estômago. Ainda é muito cedo para mais detalhes, mas provavelmente ela também foi estuprada. Não temos casos como esse por aqui, mas isso não quer dizer que não somos capazes de solucioná-lo. E rápido. A família da vítima merece respostas.
"Até agora, não temos muito para começar. Rosie foi encontrada por quatro estudantes, quando estavam voltando de uma festa em Learmonth Gardens para o Fife Park. Bem, eles podem ser testemunhas inocentes, mas também podem ser muito mais do que isso. Até onde sabemos, eles eram os únicos que estavam andando por aí no meio da noite, cobertos de sangue. Quero uma equipe verificando a tal festa. Quem estava lá? O que eles viram? Os nossos rapazes realmente têm álibis? Existem lacunas nos períodos de tempo? Como foi que eles se comportaram lá? O detetive Shaw vai conduzir essa equipe e eu gostaria de alguns oficiais uniformizados trabalhando com ele. Vamos colocar pressão nos convidados dessa festa.
"Rosie trabalhava no Pub Lammas, muitos aqui sabem disso, não é? - Ele olhou em volta, conferindo vários gestos afirmativos, incluindo o do policial Jimmy Lawson, o primeiro na cena do crime. Ele conhecia Lawson; jovem e ambicioso, responderia bem a um pouco de responsabilidade. - Os quatro estudantes andaram bebendo por lá ontem. Então quero que o detetive Burnside conduza uma outra equipe e converse com todo mundo que esteve lá ontem, todo mundo que for possível localizar. Tinha alguém de olho em Rosie? O que os quatro rapazes estavam fazendo? Como estavam se comportando? Lawson, você costuma beber lá. Quero que você se junte ao detetive Burnside e dê toda a ajuda possível para localizarmos os fregueses habituais e arrancarmos o máximo deles."
Maclennan fez uma pausa, olhando em torno.
- Também vamos precisar bater de porta em porta em Trinity Place. Rosie não foi a pé para Hallow Hill. O assassino tinha alguma espécie de transporte. Talvez a gente dê sorte e localize o insone local. Ou pelo menos alguém que tenha levantado de noite para fazer xixi. Quero informações sobre qualquer veículo que tenha passado por ali hoje cedo.
Maclennan tornou a dar uma olhada geral no recinto.
- É bem provável que Rosie conhecesse o assassino. Um estranho que a tivesse agarrado no meio da rua não perderia tempo removendo o corpo. Então, vamos ter que investigar a vida dela também. A família e os amigos não vão ficar contentes com isso, então precisamos respeitar a dor deles. Mas isso não significa que vamos nos contentar com histórias pela metade. Tem alguém solto por aí, alguém que cometeu homicídio ontem à noite. E eu quero pegá-lo, antes que ele tenha a oportunidade de fazer outra vítima. - Houve um burburinho no recinto; estavam todos de acordo. - Alguma pergunta?
Para sua surpresa, Lawson levantou a mão, aparentando estar um pouco constrangido.
- Senhor, será que existe algum significado na escolha do lugar onde o corpo foi abandonado?
- Como assim? - perguntou Maclennan.
- Pelo fato de ser um cemitério picto. Será que foi um ritual satânico, algo assim? Nesse caso, será que não foi simplesmente um estranho que pegou Rosie porque ela servia como o que ele estava precisando para um sacrifício humano?
Maclennan enrugou o rosto diante da possibilidade. No que ele estava pensando, para não ter considerado aquela hipótese? Se ela ocorrera a Jimmy Lawson, ocorreria à imprensa. E a última coisa que ele queria agora eram manchetes proclamando que havia um assassino satanista à solta.
- É uma hipótese interessante. E todos nós devemos tê-la em mente. Mas não devemos mencioná-la fora daqui. Por enquanto, vamos nos concentrar no que sabemos com certeza. Os estudantes, o Lammas, a investigação porta a porta. Mas isso não quer dizer que vamos fechar os olhos para outras possibilidades. E agora, vamos trabalhar.
Terminada a reunião, Maclennan perambulou pela sala, parando para dar uma palavra de incentivo aqui e ali enquanto os policiais se reuniam em volta das mesas, organizando as suas tarefas. Não podia evitar o seu desejo de que os estudantes estivessem envolvidos. Assim, conseguiriam um resultado rápido, que era o que contava para o público em casos como aquele. E, o que era ainda melhor, não deixaria a cidade com gosto de suspeita na boca. Era sempre mais fácil quando os bandidos vinham de fora. Mesmo que de fora, nesse caso, fosse apenas a cinquenta quilômetros de distância.
Ziggy e Alex voltaram para o alojamento com uma hora de antecedência, antes de terem que partir para a rodoviária. Tinham ido lá para verificar e o funcionário garantiu que os ônibus estavam passando, embora o horário não estivesse sendo cumprido.
- Vocês podem arriscar - disse o funcionário. - Não posso garantir o horário, mas os ônibus vão passar, sim.
Encontraram Esquisito e Mondo debruçados sobre xícaras de café na cozinha, ambos desanimados e com a barba por fazer.
- Pensei que vocês fossem estar no décimo sono - disse Alex, enchendo a chaleira para ferver mais água.
- Sem chance - resmungou Esquisito.
- Esquecemos dos abutres - disse Mondo. - Os jornalistas. Eles não param de bater na porta e a gente fica mandando eles irem embora. Mas não funciona. Dá uns dez minutos e eles voltam, tudo de novo.
- É a brincadeira do "bate, bate". Eu disse pro último que se ele não parasse de bater na porta, eu ia bater a porta na cara dele.
- Hmm - murmurou Alex. - E o vencedor deste ano do Prêmio Agradável na categoria Tato e Diplomacia é...
- Como assim? Você preferia que eu tivesse deixado eles entrarem aqui? - explodiu Esquisito. - Esses babacas, a gente tem mesmo é que falar com eles na única língua que eles entendem. Eles não aceitam não como resposta, você sabe.
Ziggy lavou duas xícaras e colocou café em pó nelas.
- Nós não vimos ninguém lá fora, não é, Alex?
- Não. Esquisito deve ter realmente colocado eles para correr. Mas se eles voltarem, vocês não acham que deveríamos dar logo uma declaração? Afinal, não temos nada a esconder.
- Só assim eles iam nos deixar em paz - concordou Mondo, mas daquele jeito como sempre concordava. Ele se especializara em um tom de voz que era capaz de sugerir dúvida, sempre oferecendo uma saída caso ele se encontrasse acidentalmente nadando contra a corrente. A sua necessidade de ser amado coloria tudo o que ele dizia e fazia. Isso e a necessidade de se proteger.
- Se você acha que eu vou falar com esses escravos do imperialismo capitalista, pode tirar o seu cavalinho da chuva. - Esquisito, por outro lado, não era homem de meias palavras. - Eles são a escória. Você já leu alguma reportagem sobre uma partida que tivesse alguma semelhança com o jogo que você assistiu? Vê só a sacanagem que eles fizeram com Ally McLeod. Antes de irmos para a Argentina, o cara era um deus, o herói que ia ganhar a Copa do Mundo. E agora? Ele não serve mais para porra nenhuma. Se eles não conseguem acertar com uma coisa tão simples quanto o futebol, que chance nós temos de não termos o nosso depoimento distorcido?
- Adoro quando Esquisito acorda de bom humor - disse Ziggy. - Mas ele está certo, Alex. Melhor ficarmos na nossa. Daqui a pouco, eles passam para outra. - Ele mexeu o seu café e foi andando em direção à porta. - Vou terminar de fazer as minhas malas. É melhor calcularmos uma margem de segurança e sairmos mais cedo do que o normal. Vai ser difícil andar até lá na raça e, graças a Maclennan, nenhum de nós tem sapatos decentes. Eu nem acredito que estou desfilando por aí de galochas.
- Cuidado, hein, a patrulha da moda vai te pegar - Esquisito gritou para ele, enquanto Ziggy saía. Ele bocejou e se espreguiçou. - Cara, eu estou muito cansado. Alguém tem uma bolinha aí?
- Se tivéssemos, já teria ido privada abaixo há muito tempo - respondeu Mondo. - Esqueceu que os tiras reviraram tudo?
Esquisito parecia envergonhado.
- Foi mal, não estou conseguindo pensar direito. Sabe, quando eu acordei, quase consegui acreditar que ontem tudo aquilo não tinha passado de uma bad trip. O que faria com que eu largasse o ácido pro resto da vida, vou te contar. - Ele balançou a cabeça. - Coitada da garota.
Alex aproveitou a deixa para desaparecer escada acima e terminar de guardar os livros na mala. Não estava triste por estar voltando para casa. Pela primeira vez, desde que começara a morar com os outros três, sentia uma espécie de claustrofobia. Sonhava com o seu quarto, só para ele; uma porta que ele pudesse fechar e que ninguém ousaria abrir sem permissão.
Estava na hora de partir. As três malas e a mochila enorme de Ziggy já estavam empilhadas na sala. Os Garotos de Kirkcaldy estavam prontos para voltar para casa. Colocaram as bolsas no ombro e abriram a porta, Ziggy na frente. Mas, para a desgraça de todos, aparentemente o efeito das palavras duríssimas de Esquisito havia passado. Assim que puseram os pés para fora, cinco homens se materializaram, do nada. Três deles carregavam máquinas fotográficas e antes que os quatro percebessem o que estava acontecendo, o som de máquinas Nikon tirando fotos sem parar tornou-se ensurdecedor.
Os dois jornalistas davam cotoveladas nos fotógrafos, gritando perguntas. Eles pareciam estar numa entrevista coletiva, metralhando perguntas em uma velocidade espantosa. "Como vocês encontraram a moça?", "Qual de vocês fez a descoberta?", "O que estavam fazendo em Hallow Hill no meio da noite?", "Foi uma espécie de ritual satânico?" e, é claro, a inevitável "Como vocês estão se sentindo?".
- Fora daqui! - berrou Esquisito, protegendo-se com a sua bolsa pesada, como se fosse uma foice. - Não temos nada a declarar!
- Meu Deus, meu Deus, meu Deus - sussurrava Mondo, como se tivesse engolido um disco.
- Para dentro - gritou Ziggy. - Vamos entrar de novo.
Alex, que estava por último, deu meia-volta. Mondo entrou aos tropeções, quase caindo por cima de Alex na sua pressa de fugir da tortura dos flashes. Esquisito e Ziggy vieram logo atrás dele, fechando a porta depressa. Entreolharam-se, acossados e assustados.
- E agora? O que é que a gente vai fazer? - perguntou Mondo, fazendo a pergunta que estava na cabeça de todos eles. Estavam perplexos. As suas experiências de vida eram limitadas; aquela era uma situação que ultrapassava esse limite.
- Não podemos ficar aqui - continuou Mondo, impaciente. - Temos que voltar para Kirkcaldy. Começo a trabalhar no mercado amanhã às seis da manhã.
- Eu e Alex também - disse Esquisito. Todos olhavam para Ziggy, esperando uma solução.
- Certo. E se saíssemos pelos fundos?
- Não temos fundos, Ziggy. Só temos a porta da frente - apontou Esquisito.
- Tem a janela do banheiro. Vocês podem sair por lá e eu fico aqui. Vou ficar andando pela casa, acendendo umas luzes, coisas assim, para eles pensarem que ainda estamos aqui. Posso voltar pra casa amanhã, quando a poeira baixar.
Os outros três se entreolharam. Não era uma má ideia.
- Você vai ficar bem, sozinho? - perguntou Alex.
- Vou. Mas algum de vocês precisa avisar os meus pais, explicar por que eu ainda estou aqui. Não quero que eles fiquem sabendo pelos jornais.
- Eu ligo, pode deixar - ofereceu Alex. - Valeu, Ziggy.
Ziggy levantou o braço e os três repetiram o gesto. Eles entrelaçaram as mãos em um cumprimento familiar.
- Um por todos - disse Esquisito.
- E todos por um - repetiram os outros. Era sincero, como era há nove anos, quando o fizeram pela primeira vez. Desde que tropeçara sobre o corpo morto de Rosie Duff na neve, aquela era a primeira vez que Alex sentia uma espécie de consolo.
7
Alex caminhou penosamente pela ponte da estrada de ferro, virando à direita na Balsusney Road. Era como se Kirkcaldy fosse um país diferente. À medida que o ônibus foi abrindo o seu caminho sinuoso pela costa de Fife, a neve começou a derreter aos poucos. Agora, não passava de uma umidade gélida e pardacenta. O vento nordeste, ao chegar finalmente tão longe, já havia descarregado toda a sua neve e, àquelas alturas, já não tinha mais nada a oferecer às cidades mais protegidas acima do estuário, a não ser friorentas pancadas de chuva. Alex sentia-se como um daqueles camponeses infelizes de Breughel, arrastando-se exausto para casa.
Alex levantou o trinco do familiar portão de ferro retorcido e caminhou até a casa de pedra onde havia crescido. Tateou o bolso da calça, procurando as chaves, e entrou em casa. Uma onda de calor o envolveu. Haviam instalado o aquecedor central durante o verão e aquela era a primeira vez que Alex podia conferir a diferença que o aparelho fazia. Deixou cair a bolsa no chão, ao lado da porta, e gritou:
- Cheguei!
Sua mãe saiu da cozinha, enxugando as mãos em um pano de prato.
- Alex, que bom ter você de volta. Vem aqui na cozinha, tem sopa e cozido. Já tomamos chá, eu pensei que você fosse chegar mais cedo. Foi por causa do tempo? Eu vi na televisão que a coisa está feia por lá.
Ele deixou que as palavras dela o inundassem, o tom e a conversa familiares eram como um cobertor, protegendo-o. Tirou o casaco e cruzou a sala para lhe dar um abraço.
- Parece cansado, filho - disse ela, com um tom de preocupação na voz.
- Tive uma noite terrível, mãe - respondeu ele, seguindo-a de volta até a minúscula cozinha.
Da sala de estar, veio a voz do pai:
- É você, Alex?
- Sou eu, pai - gritou ele de volta. - Já vou até aí.
A mãe já estava providenciando um prato de sopa, entregando para ele a tigela e uma colher. Enquanto havia comida a ser servida, Mary Gilbey não podia prestar atenção a detalhes mais insignificantes como tristeza profunda.
- Vai lá e senta com o teu pai. Vou esquentar o cozido. Tem batata assada no forno.
Alex foi até a sala de estar, onde o pai estava sentado em uma poltrona, vidrado na televisão. Havia um lugar preparado para ele na mesa de jantar no canto da sala e Alex sentou-se com a sua sopa.
- Tudo bem, filho? - perguntou o pai, sem tirar os olhos do programa na televisão.
- Para falar a verdade, não.
Aquilo chamou a atenção do seu pai. Jock Gilbey virou-se e lançou um olhar perscrutador sobre o filho, do tipo que os professores gostam tanto de usar.
- Você não parece nada bem. O que está acontecendo?
Alex tomou uma colherada da sopa. Não estava com fome, mas assim que sentiu o gosto daquele autêntico caldo caseiro escocês, descobriu que estava faminto. A última vez que comera alguma coisa havia sido na festa, sendo que vomitara duas vezes. Tudo o que ele queria era encher a barriga, mas agora que tinha começado, teria que ir até o fim.
- Aconteceu uma coisa horrível ontem - disse ele, entre uma colherada e outra. - Assassinaram uma garota. E nós a encontramos. Quer dizer, fui eu, mas Ziggy, Esquisito e Mondo estavam comigo.
O pai olhava para ele, boquiaberto. A mãe tinha entrado na sala durante a parte final da revelação de Alex e pusera instantaneamente as mãos no rosto, os olhos arregalados, horrorizados.
- Oh, Alex, que coisa... Ah, pobrezinho - disse ela, apressando-se ao seu encontro e segurando a sua mão.
- Foi horrível. Ela foi esfaqueada. E ainda estava viva quando a encontramos. - Ele piscou com força. - Acabamos tendo que passar o resto da noite na delegacia. Eles levaram todas as nossas roupas e todo o resto, como se estivessem achando que temos alguma coisa a ver com o crime. Porque a gente conhecia a garota, sabe. Quer dizer, não conhecia de verdade. Ela era garçonete de um dos pubs aonde a gente sempre vai. - Lembrando de tudo, perdeu o apetite e deitou a colher no prato, abaixando a cabeça. As lágrimas se formaram no canto dos seus olhos e escorreram pelo seu rosto.
- Eu sinto muito, filho - acudiu o pai, na falta de algo mais adequado para dizer. - Deve ter sido um choque terrível.
Alex tentou engolir o bolo em sua garganta.
- Antes que eu me esqueça - disse ele, empurrando a cadeira para trás -, preciso ligar para o Sr. Malkiewicz e dizer a ele que Ziggy não vai chegar hoje.
Jock Gilbey arregalou os olhos, em choque.
- Prenderam ele na delegacia?
- Não, não foi nada disso - respondeu Alex, enxugando os olhos com as costas da mão. - Apareceram uns jornalistas na nossa porta lá em Fife Park, atrás de fotos e entrevistas. E a gente não queria falar com eles. Então eu, Esquisito e Mondo subimos até a janela do banheiro e saímos pelos fundos. Temos que começar a trabalhar amanhã no mercado, né? Mas como Ziggy não tem emprego, ele se ofereceu para ficar lá e vir só amanhã. Não queríamos deixar a janela aberta, entende? Então tenho que ligar para o pai dele e explicar.
Alex desvencilhou-se gentilmente do toque de sua mãe e foi até a sala. Pegou o fone e discou o número de Ziggy de cabeça. Tocou uma vez e, em seguida, ouviu o familiar sotaque polonês de Karel Malkiewicz. Lá vou eu de novo, pensou Alex. Ia ter que explicar a noite passada novamente. E tinha a impressão de que aquela não seria a última vez.
- É isso o que acontece quando você desperdiça as suas noites bebendo e fazendo sabe Deus o que mais - disse Frank Mackie amargamente. - Você acaba se metendo com a polícia. Eu sou um homem respeitado nesta cidade, você sabe disso. A polícia nunca bateu na minha porta. Mas basta um desmiolado como você para cairmos na boca do povo.
- Se nós não estivéssemos na rua até tarde, ela teria ficado lá até o dia clarear. Teria morrido abandonada - protestou Esquisito.
- Eu não tenho nada a ver com isso - respondeu o pai, atravessando a sala para servir-se de um copo de uísque. Havia instalado um bar na sala para impressionar os clientes que julgava respeitáveis o bastante para serem convidados até a sua casa. Ele achava de bom-tom para um contador exibir os frutos do seu sucesso. Tudo o que queria era que o filho mostrasse alguns sinais de ambição, mas, ao invés, havia colocado no mundo um inútil que passava as noites em pubs. O pior é que Tom tinha um dom para números. Mas em vez de direcioná-lo de maneira prática, escolhendo a contabilidade, ele havia preferido o inconsistente mundo da matemática pura. Como se esse pudesse ser o primeiro passo para o caminho da prosperidade e da decência. - Está decidido. Nada de sair à noite, rapaz. Nada de festas, nem pubs durante as férias. Você está preso no quartel. É do trabalho para casa e de casa para o trabalho.
- Mas, pai, é Natal! - protestou Esquisito. - Todo mundo vai sair, e eu quero encontrar os meus amigos.
- Você devia ter pensado nisso antes de ter arrumado problema com a polícia. Você vai ter provas esse ano. Aproveite para estudar. Um dia você ainda vai me agradecer por isso, sabia?
- Mas, pai...
- Essa é a minha última palavra sobre o assunto. Enquanto você morar debaixo do meu teto, enquanto eu estiver pagando a sua universidade, você vai fazer as coisas do meu jeito. Quando você começar a ganhar o seu dinheiro, aí então você pode criar as suas próprias regras. Até lá, vai fazer o que eu mandar. E agora, fora daqui!
Enfurecido, Esquisito saiu da sala bufando e subiu correndo as escadas. Meu Deus, pensou ele, como eu odeio essa família. E como odiava aquela casa. Raith Estate, onde moravam, era para ser a última palavra em modernidade, mas ele achava que aquela era outra ilusão criada pelos sujeitos de terno e gravata. Não precisava ser um gênio para perceber que aquele lugar não tinha nem comparação com a casa onde moravam antes. Paredes de pedra, portas de madeira maciça com revestimentos e molduras, vitral no patamar da escada. Aquilo sim era uma casa. Realmente, aquele caixote tinha mais quartos, mas eram minúsculos, o teto e as portas tão baixos que Esquisito tinha a impressão que teria de andar constantemente abaixado para acomodar o seu um metro e oitenta e três centímetros. As paredes também eram finas como papel. Dava para ouvir alguém soltando um pum no quarto do lado. O que, parando para pensar, era bem engraçado. Os seus pais eram tão reprimidos que seriam incapazes de conhecer uma emoção, mesmo que ela os mordesse no calcanhar. E, ainda assim, haviam gastado uma fortuna em uma casa que desnudava a privacidade de todos. Dividir um quarto com Alex era mais confortável do que viver debaixo do teto dos seus pais.
Por que nunca haviam feito o menor esforço para compreendê-lo? Sentia como se tivesse passado a vida se rebelando. Nenhum dos seus êxitos servia para quebrar o gelo, pois eles nunca se encaixavam nos limites estreitos dos sonhos dos seus pais. Quando foi campeão de xadrez da escola, o pai fez um muxoxo, insinuando que ele deveria ter se juntado ao time de bridge. Quando pediu para aprender a tocar um instrumento musical, o pai recusou sem rodeios, oferecendo-se para comprar um conjunto de tacos de golfe. Todo ano, quando ele ganhava o prêmio de matemática na escola, a reação do pai era comprar livros de contabilidade para ele, entendendo tudo errado. A matemática para Esquisito não tinha nada a ver com adição e subtração de números; era a beleza da curva de uma equação quadrática, a elegância do cálculo, a linguagem misteriosa da álgebra. Se não fosse pelos seus amigos, ele se sentiria um completo anormal. Eles lhe deram um espaço para desabafar com segurança, uma chance de abrir as suas asas e levantar voo, sem medo de se espatifar no chão.
E ele havia retribuído da pior maneira possível. A culpa o atingia em cheio quando recordava a sua última loucura. Daquela vez, tinha ido longe demais. Tudo começara como uma brincadeira, furtando o carro de Henry Cavendish. Ele não fazia ideia do que aconteceria depois. Sabia muito bem que nenhum dos outros três poderia salvar a sua pele se alguém descobrisse sobre o carro. Só esperava não prejudicar ninguém, caso isso acontecesse.
Colocou a sua nova fita cassete do Clash no toca-fitas e atirou-se na cama. Ia ouvir o lado A e depois se preparar para dormir. Tinha que estar de pé às cinco da manhã para encontrar Alex e Mondo e pegar no batente no supermercado. Normalmente, teria ficado deprimido com a perspectiva de ter de se levantar tão cedo. Mas do jeito que as coisas estavam, seria um alívio sair de casa, uma bênção poder fazer algo que fizesse com que a sua mente parasse de girar em círculos. Nossa, pensou ele, eu daria tudo por um baseado.
Pelo menos a brutalidade emocional do pai havia deixado as lembranças de Rosie Duff de lado. Quando Joe Strummer começou a cantar "Julie’s in the Drug Squad", ele já estava dormindo profundamente, mergulhado em um sono sem sonhos.
Karel Malkiewicz dirigia como um velho, na melhor das hipóteses. Hesitante, devagar e totalmente imprevisível nos entroncamentos. Também só dirigia quando o tempo estava bom. Em circunstâncias normais, ao primeiro sinal de neblina ou geada, ele guardava o carro e descia a pé a ladeira íngreme da Massareene Road até Bennochy, onde tomava o ônibus até a Factory Road, onde ficava o seu local de trabalho. Trabalhava como eletricista no setor de revestimento de pisos. Já fazia um bom tempo desde o desaparecimento da nuvem de óleo de linhaça que rendera à cidade a reputação de ter um "cheiro esquisito", mas embora o linóleo tivesse saído de moda, o que era produzido na fábrica de Nairn ainda revestia o piso de milhares de cozinhas, banheiros e ambientes híbridos. E ele proporcionara a Karel Malkiewicz uma vida decente desde que saíra da Força Aérea Britânica após a guerra, e por isso ele era bastante grato.
O que não significava que ele havia esquecido os motivos pelos quais deixara Cracóvia. Ninguém podia sobreviver à atmosfera tóxica de desconfiança e perfídia sem cicatrizes, muito menos um judeu polonês que tivera a sorte de escapar antes do massacre que o deixou sem família.
Ele teve de reconstruir a vida, criar uma nova família. Seus pais não haviam sido especialmente ortodoxos, de modo que ele não se sentiu órfão da sua antiga religião. Não havia judeus em Kirkcaldy, lembrava que alguém lhe dissera isso alguns dias depois da sua chegada na cidade. A mensagem era clara: "É assim que preferimos." E ele dançou conforme a música, chegando ao extremo de se casar na Igreja Católica. Aprendera a sentir-se em casa naquela terra insular que o acolhera. Surpreendera-se com o arrebatado orgulho possessivo que sentira quando da recente escolha do papa polonês. Raramente sentia-se polonês.
Estava beirando os quarenta quando o filho que tanto sonhara finalmente veio ao mundo. Era motivo de alegria, mas também uma renovação do seu medo. Agora tinha muito mais a perder. Aquele era um país civilizado, os fascistas jamais fariam carreira ali. Pelo menos, era isso o que todos pensavam. Mas a Alemanha também fora um país civilizado. Era impossível prever o que poderia acontecer a qualquer país onde o número de desabrigados alcançasse uma massa crítica. Qualquer um que prometesse salvação encontraria seguidores.
E, ultimamente, havia bons motivos para o medo. A Frente Nacional avançava furtivamente na moita política. Greves e tumultos industriais estavam irritando o governo. A campanha de bombardeios do IRA dava aos políticos todas as desculpas de que precisavam para a introdução de medidas repressoras. E ainda havia aquela vaca insensível que comandava o partido conservador, falando que os imigrantes afundavam a cultura nativa. De fato, as sementes estavam todas presentes.
Então, quando Alex Gilbey ligou e contou a ele que o seu filho passara a noite em uma delegacia, Karel Malkiewicz não teve outra escolha. Queria o filho debaixo do seu teto, debaixo da sua asa. Ninguém tinha o direito de levá-lo embora no meio da noite. Agasalhou-se e instruiu a mulher para que ela preparasse um cantil com uma sopa bem quente e um embrulho com sanduíches. E partiu estrada afora para buscar o filho e trazê-lo de volta para casa.
Demorou quase duas horas, em uma viagem penosa até St. Andrews no seu velho Vauxhall. Mas ficou aliviado ao ver as luzes acesas na casa que Sigmund dividia com os amigos. Estacionou o carro, apanhou o seu farnel e caminhou até a entrada.
Bateu na porta e, a princípio, não houve resposta. Andando com cuidado sobre a neve, olhou pela janela para dentro da cozinha acesa. Estava vazia. Bateu na janela e gritou:
- Sigmund! Abra a porta, meu filho. Sou eu, o seu pai!
Ouviu então um barulho de pés descendo em tropel pela escada abaixo. A porta se abriu para revelar o seu belo filho, sorrindo de orelha a orelha, os braços abertos em acolhida.
- Pai! - exclamou ele, pisando descalço para fora de casa para abraçá-lo. - Não esperava o senhor aqui!
- Alex me ligou. E eu não queria que você ficasse aqui sozinho. Então, vim te buscar. - Karel apertou o filho contra si, sentindo a borboleta do medo batendo as asas dentro do seu peito. O amor, pensou ele, era uma coisa terrível.
Mondo estava sentado de pernas cruzadas na cama, convenientemente perto do seu toca-discos. Estava ouvindo, sem parar, o seu tema pessoal, "Shine On, You Crazy Diamond". As guitarras arrebatadoras, a dolorosa angústia na voz de Roger Waters, os sintetizadores dolentes e o saxofone ofegante forneciam a trilha sonora perfeita para abstrair a realidade.
E isso era exatamente o que ele queria fazer. Havia escapado da preocupação sufocante da mãe, que o asfixiara assim que ele explicou o que havia acontecido. Até que fora agradável no início, o casulo familiar de preocupação girando à sua volta. Mas, aos poucos, aquilo começou a sufocar e ele pediu licença, alegando que precisava ficar sozinho. A estratégia Greta Garbo sempre funcionava com sua mãe, que o julgava um intelectual porque ele lia livros em francês. Ela parecia não notar que aquilo era o que qualquer um que estava estudando a matéria com fins de graduação fazia.
Ainda bem, para falar a verdade. Ele não sabia nem como começar a explicar o turbilhão de emoções que ameaçava engoli-lo. A violência era algo desconhecido para ele, uma língua estrangeira da qual não conhecia nem a gramática, nem o vocabulário. Ter se confrontado recentemente com ela havia deixado Mondo sentindo-se abalado e estranho. Não podia dizer sinceramente que lamentava a morte de Rosie; ela o humilhara mais de uma vez na frente dos seus amigos quando ele tentou lhe passar cantadas que haviam funcionado com outras garotas. O que lamentava era o fato de sua morte ter feito com que ele despencasse em um lugar desconfortável, ao qual não pertencia.
Estava precisando mesmo era de sexo. Isso apagaria os horrores da noite anterior da sua mente. Funcionaria como uma espécie de terapia. Seria como voltar aos eixos. Infelizmente, não dispunha de uma namorada em Kirkcaldy. Talvez devesse dar alguns telefonemas. Uma ou duas das suas ex-namoradas ficariam mais do que satisfeitas em renovar os laços com ele. Elas poderiam oferecer um ombro amigo para ele chorar as suas mágoas e o ajudariam a superar os seus problemas, pelo menos até o final das férias. Talvez a Judith. Ou a Liz. É, provavelmente a Liz. As gordinhas ficavam sempre pateticamente agradecidas diante da possibilidade de um encontro, elas cediam sem o menor esforço. Só de pensar, já tinha uma ereção.
Justo quando estava prestes a levantar-se da cama e descer para fazer a ligação, bateram na sua porta.
- Pode entrar - disse ele, suspirando exausto, perguntando-se o que a mãe ainda queria. Mudou de posição para esconder a sua ereção em estágio inicial.
Mas não era a mãe. Era a sua irmã de quinze anos, Lynn.
- Mamãe achou que você podia estar querendo uma Coca - disse ela, estendendo um copo para ele.
- Na verdade, estou querendo outras coisas - respondeu ele.
- Você deve estar arrasado mesmo - disse Lynn. - Não consigo nem imaginar como deve ter sido.
Na ausência de uma namorada, tinha de se contentar em impressionar a sua irmã mesmo.
- Foi muito difícil - disse ele. - Não gostaria de ter que passar por isso de novo tão cedo. E os policiais eram uns homens da caverna imbecis. Por que sentiram necessidade de nos interrogar como se fôssemos do esquadrão de bombas do IRA, eu nunca vou saber. Foi preciso muita coragem para encarar, podes crer.
Por algum motivo, Lynn não estava lhe dando a adoração e apoio estouvados que ele merecia. Ela encostou na parede, com cara de quem estava esperando uma pausa na conversa para colocar para fora o que estava passando na sua cabeça.
- É, imagino como foi - disse ela, mecanicamente.
- É provável que sejamos interrogados mais vezes - acrescentou ele.
- Deve ter sido barra para o Alex. Como ele está?
- Gilly? Bem, ele está longe de ser o Senhor Indefeso. Ele vai superar.
- Alex é muito mais sensível do que você imagina - defendeu ela, veemente. - Só porque ele jogava rúgbi, vocês acham que ele é só músculos e que não tem coração. Ele deve estar realmente arrasado, principalmente porque conhecia a garota.
Mondo xingou por dentro. Por um momento, havia esquecido da paixonite de sua irmã por Alex. Ela não estava ali para lhe oferecer Coca-Cola simpatia, estava ali para ter um pretexto para falar sobre Alex.
- Sorte dele não ter conhecido a garota como gostaria.
- Como assim?
- Ele era gamadão nela. Chegou até a chamá-la pra sair. Se ela tivesse aceitado, pode apostar que Alex ia ser o suspeito número um.
Lynn ficou ruborizada.
- Você está inventando. Alex não ia sair por aí caçando garçonetes.
Mondo deu um sorrisinho cruel.
- Ah não, é? Acho que você não conhece o seu querido Alex tão bem quanto pensa.
- Você é um monstro, sabia? Por que está falando desse jeito horrível do Alex? Ele é um dos seus melhores amigos!
Ela bateu a porta com força, deixando a pergunta no ar. Por que estava falando daquele jeito horrível de Alex, quando normalmente não abriria a boca para falar mal dele?
Aos poucos, começou a perceber que, lá no fundo, culpava Alex por toda aquela confusão. Se tivessem seguido reto pelo caminho, outra pessoa teria encontrado o corpo de Rosie Duff. Outra pessoa teria ficado lá, ouvindo os seus últimos suspiros prolongando-se exaustivamente. Outra pessoa estaria marcada pelas horas passadas numa cela na delegacia.
Se ele agora era suspeito em uma investigação de homicídio, a culpa era de Alex, com certeza. Mondo contorceu-se desconfortavelmente diante daquele pensamento. Tentou evitá-lo, mas sabia que não conseguiria fechar a caixa de Pandora. Uma vez plantada a ideia, não poderia ser arrancada pela raiz e deixada de lado, até murchar. Não era a hora de dar vazão a ideias como aquela, que acabariam criando um abismo entre eles. Eles agora precisavam um do outro mais do que nunca. Mas era um fato inegável. Não estaria naquela enrascada se não fosse por Alex.
E se a coisa piorasse? Não havia como negar que Esquisito andara passeando com a Land Rover durante boa parte da noite. Ele levara várias garotas para dar uma voltinha, tentando impressioná-las. E não tinha um álibi decente, assim como Ziggy, que saíra de fininho e escondera o carro em um local onde Esquisito não pudesse encontrar. Assim como o próprio Mondo. O que dera nele, pegando a Land Rover emprestada para levar a garota para casa em Guardbridge? Uma rapidinha no banco de trás não valeria o transtorno, caso alguém lembrasse dela na festa. Se a polícia começasse a fazer perguntas para os outros convidados, alguém ia acabar entregando eles. Por mais que os estudantes professassem desprezo às autoridades, alguém ia amarelar e abrir o bico. E começariam as acusações.
De repente, culpar Alex parecia uma das suas menores preocupações. À medida que recordava os acontecimentos dos últimos dias, Mondo lembrou-se de algo que vira, tarde da noite. Algo que podia ajudá-lo a livrar a sua cara. Algo que, por ora, haveria de guardar consigo mesmo. Não queria mais saber de um por todos e todos por um. Tinha mais era que salvar a própria pele. Os outros que cuidassem dos seus próprios interesses.
8
Maclennan entrou e fechou a porta. Com a policial Janice Hogg lá dentro com ele, o quarto parecia claustrofóbico, a inclinação do teto enclausurando-os. Aquele era o elemento mais lamentável da morte súbita, pensou ele. Ninguém tem a oportunidade de voltar e fazer uma limpeza, de apresentar ao mundo a imagem que gostaria de deixar. Eles têm de se contentar com o que deixaram para trás na última vez em que fecharam a porta. Ele já vira alguns quadros tristes, mas poucos comoventes como aquele.
Alguém havia se dado ao trabalho de tornar aquele quarto iluminado e alegre, apesar da parca luminosidade que penetrava pela janela estreita da mansarda, que dava para a rua. Podia ver St. Andrews a distância, ainda parecendo esbranquiçada por causa da neve da véspera, embora ele soubesse que a verdade era outra. As calçadas já estavam imundas com a neve derretida e lamacenta, e as estradas, um atoleiro escorregadio de areia e água. Para além da cidade, a mancha acinzentada do mar derretia-se imperceptivelmente no céu. Devia ser uma bela vista no verão, pensou ele, voltando-se para o papel de parede com textura granular e desenhos de magnólia e a colcha bordada, onde o lugar no qual Rosie havia se sentado ainda estava amarfanhado. Havia somente um pôster na parede. Um grupo chamado Blondie, com uma cantora peituda fazendo beicinho, usando uma saia incrivelmente curta. Seria aquele o sonho de Rosie?, ele se perguntava.
- Por onde devo começar, senhor? - perguntou Janice, olhando para o armário e a penteadeira da década de 50, que haviam sido pintados de branco numa tentativa de deixá-los mais modernos. Havia uma pequena mesa de cabeceira, com apenas uma gaveta. Fora isso, o único lugar onde poderiam encontrar algo escondido era em um cesto de roupa suja atrás da porta, ou na lixeirinha de metal debaixo da penteadeira.
- Comece pela penteadeira - disse ele. Assim, não precisaria lidar com a maquiagem que jamais seria usada novamente, o sutiã e as calcinhas velhas enfiadas lá no fundo da gaveta, para emergências de lavanderia que nunca haviam ocorrido. Maclennan conhecia os seus pontos fracos e preferia não atiçá-los, sempre que possível.
Janice sentou-se ao pé da cama, onde Rosie deveria ter se sentado para ver-se no espelho e aplicar a sua maquiagem. Maclennan foi até a penteadeira e abriu uma gaveta. Lá dentro havia um livro bem grosso, chamado O Último Refúgio, e Maclennan lembrou que aquele era exatamente o tipo de livro que a sua ex-mulher usava para mantê-lo afastado na cama. "Estou lendo, Barney", ela dizia em um tom de sofrimento resignado, sacudindo um livro que mais parecia um peso de porta no seu nariz. Não conseguia compreender a relação entre as mulheres e os livros. Levantou o romance, tentando não observar Janice explorando sistematicamente as outras gavetas. Embaixo do livro, havia um diário. Recusando-se a um otimismo precipitado, Maclennan o apanhou.
Se estivesse esperando confissões, teria ficado decepcionado. Rosie Duff não era uma garota do tipo "Querido Diário". As páginas listavam os seus turnos no Lammas, aniversários da família e dos amigos e eventos sociais como "Festa do Bob", "Farra da Julie". Algumas datas estavam marcadas com hora e local e a palavra "Ele", seguida por um número. Havia passado pelo 14, 15 e 16 no último ano; 16 sendo, obviamente, o mais recente. "Ele" apareceu em fevereiro e logo se tornou um habitué, duas ou três vezes por semana. Sempre depois do trabalho, pensou Maclennan. Teria de voltar ao Lammas e perguntar se alguém havia visto Rosie encontrando um sujeito depois do expediente. Perguntava-se por que se encontravam nesse horário, em vez de nas folgas de Rosie ou durante o dia, quando ela não estava trabalhando. Um dos dois parecia determinado a manter em segredo a sua identidade.
Olhou para Janice.
- Alguma coisa?
- Nada especial. Coisas que mulheres compram para si mesmas. Nada daquelas coisas cafonas compradas pelos homens.
- Homens compram coisas cafonas?
- Receio que sim, senhor. Renda que pinica, náilon que faz a gente suar. O que os homens querem que as mulheres usem, mas que jamais escolheriam para eles próprios.
- Deve ser aí que eu venho errando, todos esses anos. Eu realmente deveria estar comprando calçolas na Marks and Spencer.
Janice sorriu.
- A gratidão vai longe, senhor.
- Algum sinal de que ela estava tomando pílula anticoncepcional?
- Nada, até agora. Talvez Brian estivesse falando sério quando disse que ela era uma garota certinha.
- Nem tanto. De acordo com o legista, ela não era virgem.
- Existem outras maneiras de se perder a virgindade, senhor - salientou Janice, sem muita coragem para colocar em dúvida um legista que todo mundo sabia estar mais interessado no próximo drinque e na aposentadoria do que em quem ia parar na sua maca.
- É verdade. E as pílulas devem estar na bolsa dela, que ainda não foi encontrada. - Maclennan suspirou e fechou a gaveta que continha o livro e o diário. - Vou dar uma olhada no armário.
Meia hora depois, teve de admitir que Rosie Duff não era do tipo que escondia o ouro. O seu armário continha roupas e sapatos, todos em estilos modernos. Em um canto, havia uma pilha de livros baratos, gordos tijolos de papel que prometiam, na mesma medida, uma vida glamourosa, rica e plena de amor.
- Estamos perdendo o nosso tempo aqui - disse ele.
- Ainda falta uma gaveta. Por que o senhor não dá uma olhada no porta-joias? - Janice entregou a ele uma caixinha em formato de baú de tesouro, revestida de napa branca. Ele suspendeu o fecho de metal e abriu a tampa. A parte superior continha uma seleção de brincos, de diversas cores. A maioria era grande e chamativa, mas não pareciam caros. Na bandeja inferior, havia um relógio Timex infantil, algumas correntes de prata barata e alguns broches de fantasia; um imitava um trabalho de tricô, com agulhas de miniatura; o outro, um peixe voador; e o terceiro, uma criatura esmaltada e lustrosa que parecia ser um gato de outro planeta. Era difícil apurar algo significativo a partir daquele conteúdo.
- Ela gostava de brincos - concluiu ele, fechando a caixa. - Seja lá quem estivesse saindo com ela, não era do tipo que dá joias caras de presente.
Janice alcançou o fundo da gaveta e sacou lá de trás um maço de fotografias. Ao que parecia, Rosie havia atacado o álbum de família e feito a sua própria seleção. Era um típico apanhado de fotos familiares: uma foto do casamento dos pais, Rosie e os irmãos crescendo, fotos sortidas que cobriam as últimas três décadas, algumas fotos de bebês e alguns instantâneos de Rosie com colegas de escola, fazendo careta para a câmera com os seus uniformes de madras. Nada de fotos instantâneas de cabine com os seus namorados. Para falar a verdade, nada de namorados. Maclennan folheou-as rapidamente e depois as colocou de volta no maço.
- Janice, vamos ver se achamos alguma coisa um pouquinho mais produtiva para fazer. - Deu uma última olhada ao redor do quarto que havia lhe contado bem menos do que ele esperava sobre Rosie Duff. Uma garota que sonhava com uma realidade mais glamourosa. Uma garota introspectiva, discreta. Uma garota que levara os seus segredos para o túmulo, provavelmente protegendo o seu assassino no processo.
Quando estavam voltando de carro para St. Andrews, o rádio de Maclennan estalou. Ele mexeu nos botões, tentando encontrar sinal. Alguns segundos depois, a voz de Burnside surgiu, alta e clara. Ele parecia animado:
- Senhor, acho que encontramos uma coisa.
Alex, Mondo e Esquisito haviam cumprido o seu turno empilhando produtos nas prateleiras do mercado de cabeça baixa, torcendo para que ninguém os reconhecesse da primeira página do jornal Daily Record. Compraram uma pilha de jornais e caminharam pela High Street até o café que costumavam frequentar quando eram adolescentes.
- Sabia que um a cada dois adultos na Escócia lê o Record? - comentou Alex, melancólico.
- E o outro não sabe ler - respondeu Esquisito, olhando para a foto surpresa dos quatro na porta de casa. - Meu Deus, olha só a nossa cara. Dava no mesmo se tivessem colocado em letras garrafais "Canalhas mentirosos suspeitos de estupro e assassinato". Qualquer pessoa que vir essa foto vai achar que somos culpados.
- É, realmente não posso dizer que essa é a minha melhor foto - disse Alex.
- Mas você se deu bem, você estava lá trás, a gente mal vê a sua cara. E Ziggy está virado de costas. Eu e Esquisito é que ficamos de frente - reclamou Mondo. - Vamos ver o que saiu nos outros jornais.
Uma foto parecida apareceu no Scotsman, no Glasgow Herald e no Courier, mas, por sorte, nas páginas internas. O crime saiu na primeira página de todos, com exceção do Courier. Nada tão insignificante quanto um assassinato poderia tomar o lugar dos preços das ações e dos anúncios na página principal.
Ficaram sentados, bebericando os seus cafés espumosos, lendo as matérias em silêncio.
- Acho que podia ser pior - comentou Alex.
Esquisito fez uma expressão de incredulidade.
- Pior, como?
- Pelo menos eles escreveram os nossos nomes direito. Até mesmo o de Ziggy.
- Grandes merdas. Admito que eles se seguraram para não nos chamar de suspeitos. Mas é só isso o que a gente pode dizer a favor deles. Isso aqui passa uma péssima imagem da gente, Alex. Você sabe disso.
- Todo mundo que a gente conhece vai ver esses jornais - disse Mondo. - Todo mundo vai nos encher o saco por causa disso. Se esses são os meus quinze minutos de fama, podem ir para o inferno.
- Todo mundo ia ficar sabendo mesmo, de qualquer jeito - disse Alex. - Você sabe como é essa cidade, conhece a mentalidade provinciana das pessoas. Ninguém tem mais o que fazer, a não ser ficar fofocando sobre os vizinhos. Não precisa de jornal para espalhar as notícias por aqui. O lado bom é que metade da universidade mora na Inglaterra, então não vão nem ficar sabendo a respeito. E quando voltarmos para lá, depois do Ano-Novo, a história já vai ter morrido.
- Você acha? - Esquisito fechou o Scotsman com um ar de conclusão. - Vou te dizer uma coisa, a gente tem mais é que rezar para Maclennan descobrir logo quem fez isso e prender o sujeito.
- Por quê? - perguntou Mondo.
- Porque senão vamos ficar conhecidos pro resto da vida como os caras que conseguiram se safar de um assassinato.
Mondo tinha a expressão de um homem que havia acabado de saber que tinha um câncer terminal.
- Você está falando sério?
- Nunca falei tão sério na minha vida - disse Esquisito. - Se eles não prenderem ninguém pelo assassinato de Rosie, as pessoas só vão lembrar que fomos nós quatro que passamos a noite na delegacia. É óbvio, cara. Vamos receber um veredicto que não pode ser provado, sem irmos a julgamento. "Todo mundo sabe que foram eles, a polícia só não conseguiu provar" - acrescentou ele, imitando uma voz de mulher. - Acorda, Mondo, você nunca mais vai conseguir trepar novamente. - Ele riu, perverso, sabendo que havia atingido o calcanhar de aquiles do amigo.
- Vá se foder, Esquisito. Pelo menos, vou ter do que me lembrar - rebateu Mondo.
Antes que algum deles pudesse dizer mais alguma coisa, foram interrompidos por uma chegada inesperada. Ziggy surgiu diante deles, sacudindo o cabelo molhado de chuva.
- Achei que encontraria vocês aqui - disse ele.
- Ziggy, Esquisito está falando que... - começou Mondo.
- Deixe isso pra lá. Maclennan está aqui. Quer conversar com nós quatro de novo.
Alex ergueu as sobrancelhas.
- Ele quer levar a gente de volta pra St. Andrews?
Ziggy fez um gesto negativo com a cabeça.
- Não. Está aqui em Kirkcaldy. Quer que a gente encontre com ele na delegacia local.
- Merda - disse Esquisito. - O meu pai vai enlouquecer. Era para eu estar de castigo. Ele vai achar que eu estou mandando um foda-se para ele. Não dá pra dizer que fui parar na delegacia.
- Agradeçam ao meu pai por não termos que voltar para St. Andrews - disse Ziggy. - Ele ficou furioso quando Maclennan apareceu lá em casa. Fez um escândalo, acusou de estar nos tratando como criminosos, quando na verdade fizemos o possível para salvar Rosie. Teve uma hora que eu cheguei a achar que o meu pai ia bater nele com o jornal. - Ele sorriu. - Fiquei orgulhoso dele.
- Mandou bem - disse Alex. - Então, onde está Maclennan?
- Lá fora, no carro dele. Com o carro do meu pai estacionado do lado. - Ziggy sacudiu os ombros em uma gargalhada. - Acho que Maclennan nunca se deparou com alguém como o meu velho.
- Então temos que ir pra delegacia agora? - perguntou Alex.
Ziggy assentiu com a cabeça.
- Maclennan está nos esperando. Ele disse que o meu pai pode nos levar até lá, mas que não está a fim de perder tempo por aqui.
Dez minutos depois, Ziggy estava sentado a sós em uma sala de interrogatório. Quando chegaram à delegacia, Alex, Esquisito e Mondo foram levados para uma outra sala de interrogatório, sob o olhar atento de um guarda. Karel Malkiewicz havia sido abandonado sem cerimônia na recepção e Maclennan havia lhe dito, abruptamente, que esperasse por lá. E Ziggy havia sido levado para dentro, escoltado por Maclennan e Burnside, que o deixara mofando na sala, esperando.
Eles sabem o que estão fazendo, pensou ele, pesaroso. Deixá-lo isolado daquele jeito era a melhor receita para torná-lo inquieto. E estava funcionando. Embora não demonstrasse nenhum sinal aparente de tensão, Ziggy sentia-se tenso como uma corda de piano, vibrando de ansiedade. Os cinco minutos mais longos da sua vida chegaram ao fim quando os dois detetives reapareceram e sentaram-se diante dele.
Os olhos de Maclennan queimavam os seus, o seu rosto delgado enrijecido em um esgar de emoção reprimida.
- Mentir para a polícia é coisa séria - disse ele, sem preâmbulos, a voz entrecortada e rude. - Não é crime, mas também nos faz pensar o que exatamente você tem a esconder. Você teve uma noite toda para pensar direitinho. Gostaria de revisar o seu depoimento anterior?
Ziggy sentiu no peito o choque de um gélido espasmo de medo. Eles sabiam de alguma coisa. Estava na cara. Mas o quê? Não disse nada, esperando que Maclennan prosseguisse.
Maclennan abriu a sua pasta e retirou a folha com impressões digitais que Ziggy assinara na véspera.
- Essas são as suas impressões digitais?
Ziggy fez um gesto afirmativo com a cabeça. Sabia o que estava por vir.
- Você pode nos explicar como elas apareceram no volante e na marcha de uma Land Rover, registrada em nome de um Sr. Henry Cavendish, encontrada abandonada essa manhã no estacionamento de uma unidade industrial em Largo Road, St. Andrews?
Ziggy fechou os olhos por um momento.
- Sim, eu posso. - Fez uma pausa, tentando organizar os seus pensamentos. Havia ensaiado aquela conversa na cama pela manhã, mas todas as suas falas o abandonaram diante daquela realidade assustadora.
- Estou esperando, Sr. Malkiewicz.
- A Land Rover pertence a um dos estudantes que dividem a casa conosco. Nós a pegamos emprestada ontem à noite, para irmos à festa.
- Pegaram emprestada? Quer dizer que o Sr. Cavendish lhes deu permissão para sair por aí com a Land Rover dele? - avançou Maclennan, recusando-se a deixar Ziggy alcançá-lo.
- Não, não exatamente - Ziggy desviou o olhar de Maclennan, incapaz de encará-lo. - Olha, eu sei que não fizemos bem em pegar o carro, mas não foi nada de mais. - Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy soube que tinha falado uma besteira.
- Isso é crime. E tenho certeza de que você está ciente disso. Então, vocês furtaram a Land Rover e a levaram para a festa. Isso não explica como ela foi parar onde nós a encontramos.
A respiração de Ziggy agitava-se no peito, como uma mariposa enclausurada.
- Eu a levei até lá, por segurança. Estávamos bebendo e eu não queria que nenhum de nós se sentisse tentado a dirigi-la bêbado.
- Quando foi exatamente que você a levou para lá?
- Não sei ao certo. Provavelmente, entre uma e duas horas da manhã.
- Você já devia ter bebido bastante também, a essas alturas. - Maclennan ia de vento em popa, os ombros projetados para a frente, conforme avançava no interrogatório.
- Provavelmente já tinha passado do meu limite, sim. Mas...
- Outro crime. Então você mentiu quando disse que não havia saído da festa? - Os olhos de Maclennan eram como sondas cirúrgicas.
- Estive fora apenas tempo suficiente para levar a Land Rover e voltar a pé. Talvez uns vinte minutos.
- Isso é o que você diz. Conversamos com algumas pessoas que estavam na festa e parece que você não foi muito visto, não. Acho que esteve fora bem mais do que isso. Acho que você encontrou Rosie Duff no caminho e lhe ofereceu uma carona.
- Não!
Maclennan prosseguiu, implacável.
- E aconteceu alguma coisa que deixou você irritado e você a estuprou. Aí percebeu que ela poderia destruir a sua vida se procurasse a polícia. Você entrou em pânico e matou a moça. Sabia que teria que se livrar do corpo, mas como estava com a Land Rover, isso não seria nada de mais. Aí você removeu todos os vestígios de sangue e voltou para a festa. Não foi isso o que aconteceu?
Ziggy balançou a cabeça.
- Não. O senhor entendeu tudo errado. Não encontrei com ela, não encostei nela. Só me livrei do carro antes que alguém sofresse um acidente.
- O que aconteceu com Rosie Duff não foi um acidente. E você foi o responsável.
O medo produzira um rubor em sua face. Passou as mãos no cabelo.
- Olha, o senhor precisa acreditar em mim. Não tive nada a ver com a morte dela.
- E por que eu deveria acreditar em você?
- Porque estou dizendo a verdade.
- Não. O que você está me contando é uma nova versão dos fatos, que cobre o que você acha que eu sei. Isso não tem nada a ver com a verdade.
Fez-se um longo silêncio. Ziggy trincou a mandíbula, sentindo os músculos protuberantes nas suas bochechas.
Maclennan tornou a falar. Dessa vez, o seu tom de voz era mais suave.
- Vamos descobrir o que aconteceu. Você sabe disso. Enquanto conversamos, uma equipe de peritos experientes está analisando cada centímetro daquele carro. Se encontrarmos um pinguinho de sangue, um fio de cabelo de Rosie ou uma única fibra das suas roupas, você vai ficar um bom tempo sem dormir na sua cama. Você poderia poupar o seu sofrimento e o de seu pai agora, contando tudo de uma vez.
Ziggy quase deu uma gargalhada. Era uma jogada tão transparente que deixava flagrante a falta de trunfos na mão de Maclennan.
- Não tenho mais nada a dizer.
- Faça como quiser, filho. Vou prender você por se apoderar e dirigir um veículo sem o consentimento do dono. Você será solto sob fiança e terá que se apresentar na delegacia em uma semana. Sugiro que arrume um advogado, Sr. Malkiewicz.
Esquisito seria o próximo, inevitavelmente. Só podia ser a Land Rover, concluiu ele enquanto esperava, sentado em silêncio na sala de interrogatório. Tudo bem, disse a si mesmo. Contaria a verdade, assumiria a culpa. Não deixaria que os outros se prejudicassem por causa da sua inconsequência. Não o mandariam para a cadeia, não por causa de algo assim tão insignificante. Teria de pagar uma multa e ele daria um jeito de pagar. Poderia arrumar um trabalho de meio expediente. E depois, não havia muito problema em ser um matemático com ficha criminal.
Estava sentado diante de Maclennan e Burnside, com uma postura desleixada e um cigarro pendurado no canto da boca, tentando parecer descontraído.
- Como posso ajudar os senhores? - perguntou ele.
- A verdade seria um bom começo - disse Maclennan. - De alguma maneira, você parece ter esquecido que andou saracoteando por aí em uma Land Rover, quando, supostamente, estava numa festa.
Esquisito abriu as mãos com um gesto.
- Aí você me pegou. Foi apenas o ato de um jovem bem-humorado, senhor.
Maclennan bateu com as mãos na mesa.
- Isso aqui não é brincadeira, rapaz! Houve um assassinato! Então pare de bancar o engraçadinho.
- Mas é verdade, sério. Veja bem, o tempo estava uma merda. Os caras tinham ido na frente para o Lammas enquanto eu terminava de lavar os pratos. Eu estava parado na cozinha, olhando para a Land Rover lá fora e pensei assim: por que não? Henry tinha voltado para a Inglaterra mesmo e não ia fazer mal a ninguém se eu pegasse o carro emprestado por algumas horas. Então, eu peguei e fui até o pub. Os caras ficaram putos comigo, mas quando viram que a neve estava braba, reconheceram que não era uma má ideia, afinal. Então fomos pra festa. Mais tarde, Ziggy levou o carro embora, para impedir que eu fizesse alguma besteira. - Ele deu de ombros. - Sério. Não falamos nada antes porque não queríamos que o senhor perdesse o seu tempo com uma bobagem.
Maclennan olhava fixamente para ele.
- Estou perdendo o meu tempo com você agora. - Ele abriu a sua pasta. - Temos aqui o depoimento de Helen Walker, dizendo que você a convenceu a dar uma volta de carro. Segundo ela, você estava tentando agarrá-la enquanto dirigia. A sua direção tornou-se tão caótica que a Land Rover derrapou e atolou na calçada. Ela pulou para fora do carro e correu de volta para a festa. Ela disse, e estou lendo agora, "ele estava descontrolado".
Esquisito fez uma careta, batendo a cinza de cigarro que caíra no seu blusão.
- Que garota idiota - disse ele, a voz menos confiante do que as palavras.
- O quão descontrolado você estava, filho?
Esquisito ensaiou um riso.
- Mais uma das suas perguntas capciosas. Olha, tudo bem, eu assumo que estava meio empolgado demais, sim. Mas existe uma grande diferença entre se divertir com um carro emprestado e matar uma pessoa.
Maclennan olhou para ele com desprezo.
- Essa é a sua ideia de diversão? Molestar uma moça e assustá-la a ponto de ela preferir correr pela nevasca a ficar sentada em um carro com você? - Esquisito desviou o olhar, suspirando. - Você deve ter ficado furioso. Leva uma mulher para dentro do seu carro furtado, acha que vai impressioná-la e conseguir algo com ela, mas, ao invés, ela sai correndo. Aí, o que acontece? Você vê Rosie na neve e acha que a sua mágica vai funcionar com ela. Só que ela não quer saber disso, repele você o quanto pode, mas você a subjuga. E aí você perde o controle, porque sabe que ela pode destruir a sua vida.
Esquisito levantou-se, de supetão.
- Eu não sou obrigado a ficar aqui ouvindo essa palhaçada! Você fica aí cheio de merda, mas não tem nada concreto contra mim e sabe disso!
Burnside ficou de pé, obstruindo a passagem de Esquisito até a porta enquanto Maclennan se recostou na cadeira.
- Devagar, filho - disse Maclennan. - Você está preso.
Mondo encolheu os ombros em uma frágil defesa contra o que sabia que estava por vir. Maclennan olhou longa e duramente para ele.
- Digitais - disse ele. - As suas digitais no volante de uma Land Rover furtada. Você tem algo a dizer sobre isso?
- Não foi furtada. Apenas emprestada. Furtada é quando você não planeja devolver, não é? - Mondo soou petulante.
- Estou esperando - disse Maclennan, ignorando a resposta.
- Dei carona para uma pessoa, tá legal?
Maclennan curvou-se para a frente, como um cão farejando a presa.
- Quem?
- Uma garota que estava lá na festa. Ela precisava voltar para Guardbridge e eu me ofereci para levá-la em casa. - Mondo enfiou a mão dentro da jaqueta e sacou um pedaço de papel. Havia anotado todos os detalhes sobre a garota enquanto esperava, prevendo aquele momento. De algum modo, evitar dizer o seu nome em voz alta tornava a coisa menos real, menos importante. E depois, chegara à conclusão de que se fizesse a coisa direitinho, pareceria menos culpado. Dane-se se, para isso, tivesse de deixar uma garota mal com os seus pais. - Aqui está, podem perguntar, ela vai confirmar.
- A que horas foi isso?
Ele deu de ombros.
- Não sei. Talvez por volta das duas.
Maclennan olhou para o nome e o endereço no papel. Nenhum dos dois lhe parecia familiar.
- O que aconteceu então?
Mondo deu um sorrisinho convencido, em um momento mundano de cumplicidade masculina.
- Levei ela pra casa. Fizemos sexo. Aí nos despedimos. Então, inspetor, como o senhor vê, eu não tinha nenhum motivo para estar interessado em Rosie Duff, mesmo que encontrasse com ela. O que não aconteceu. Eu tinha acabado de transar. Estava me sentindo bem satisfeito comigo mesmo.
- Você disse que fizeram sexo. Onde, exatamente?
- No banco de trás da Land Rover.
- Você usou preservativo?
- Eu nunca acredito quando elas dizem que estão tomando pílula. O senhor acredita? É claro que usei preservativo. - Agora Mondo sentia-se mais relaxado. Aquele era um território que compreendia, um território no qual os machos se uniam em conluio em uma conspiração de entendimento mútuo.
- O que você fez com ele depois?
- Joguei pra fora pela janela. Ter deixado no carro daria a maior bandeira com o Henry, sabe? - Podia ver Maclennan lutando para descobrir uma nova direção para as suas perguntas. Mondo estava certo. A sua confissão havia bagunçado a linha do interrogatório. Ele não estivera rodando de carro pela neve, frustrado e desesperado por sexo. Então que motivo teria para estuprar e matar Rosie Duff?
Maclennan deu um sorriso intimidador, recusando-se a fazer parte da camaradagem que Mondo supunha estar compartilhando com ele.
- Verificaremos a sua história, Sr. Kerr. Vamos ver se essa moça vai confirmar o que você contou. Porque se ela não confirmar, aí a coisa fica bem diferente, não é mesmo?
9
Nem parecia véspera de Natal. Andando até a padaria para comprar uma torta na hora do almoço, Barry Maclennan experimentou a sensação de ter sido transportado para um universo paralelo. As vitrines das lojas floresciam com decorações espalhafatosas de Natal, luzes artificiais piscavam no crepúsculo e as ruas estavam abarrotadas de pessoas caminhando com dificuldade devido ao peso de gordas sacolas de compras. Tudo aquilo parecia estranho aos seus olhos. As preocupações daquelas pessoas nada tinham a ver com as dele; elas podiam se dar ao luxo de esperar algo mais do que uma ceia de Natal conspurcada pelo amargo gosto da derrota. Já haviam se passado oito dias desde o assassinato de Rosie, e até agora, nenhuma perspectiva de prisão.
Estivera confiante de que a descoberta da Land Rover seria a pedra fundamental que sustentaria o caso contra um ou mais dos quatro estudantes. Principalmente depois dos interrogatórios em Kirkcaldy. As histórias deles eram bastante plausíveis, mas tinham tido um dia para aperfeiçoá-las. E ele ainda estava com a sensação de que não tinham contado toda a verdade, embora fosse difícil precisar onde exatamente estavam mentindo. Não acreditava em quase nada do que Tom Mackie dissera, mas Maclennan era honesto o suficiente para reconhecer que a sua incredulidade poderia estar relacionada à antipatia profunda que nutria pelo estudante de matemática.
Ziggy Malkiewicz era astuto, disso ele estava ciente. Se ele fosse o assassino, Maclennan sabia que não chegaria a lugar algum até obter provas concretas; o estudante de medicina não ia entregar os pontos. Julgara ter colocado a história de Davey Kerr abaixo quando a moça em Guardbridge negou ter feito sexo com ele. Mas Janice Hogg, que o acompanhou por uma questão de decoro, saíra de lá convencida de que a moça estava mentindo, tentando equivocadamente proteger a sua reputação. De fato, quando ele mandou Janice novamente até lá para conversar com a moça a sós, ela reconsiderou e admitiu ter deixado Kerr fazer sexo com ela. Não parecia ter sido uma experiência que ela estava ansiosa para repetir. O que, Maclennan pensou, era algo interessante. Talvez Davey Kerr não estivesse assim tão satisfeito e animado quanto fingira estar.
Alex Gilbey era um possível candidato, o problema é que não havia nenhuma evidência de que dirigira a Land Rover. As suas digitais estavam por toda parte no interior do veículo, mas não chegavam nem perto do lugar do motorista. O que não livrava a sua cara, entretanto. Se Gilbey tivesse assassinado Rosie, possivelmente teria pedido a ajuda dos outros, e era bem provável que eles tivessem ajudado; Maclennan não duvidava da força do elo que os unia. E se Gilbey tivesse conseguido um encontro com Rosie, que tivesse terminado muito mal, Maclennan tinha certeza absoluta de que Malkiewicz não teria pensado duas vezes antes de fazer tudo o que pudesse para proteger o amigo. Gilbey sabendo disso ou não, Malkiewicz estava apaixonado por ele, concluíra Maclennan, baseando-se estritamente no seu instinto.
Mas havia algo mais do que o seu instinto em jogo. Após a frustrante série de interrogatórios, estava prestes a voltar para St. Andrews quando uma voz familiar o chamou.
- Ei, Barney, ouvi dizer que você estava na área - ecoou a voz no breu do estacionamento.
Maclennan virou-se para trás.
- Robin? É você?
Uma figura elegante em um uniforme de polícia surgiu em uma poça de luz. Robin Maclennan era quinze anos mais novo do que o irmão, mas a semelhança era impressionante.
- Achou que ia sair de fininho, sem dar ao menos um olá?
- Eles me informaram que você estava fazendo a ronda.
Robin alcançou o irmão e o cumprimentou com um aperto de mão.
- Acabei de voltar para um lanchinho. Pensei ter visto você quando estacionamos. Venha tomar um café comigo antes de ir embora. - Ele sorriu e deu um soco camarada no ombro de Maclennan. - Tenho algumas informações e acho que você vai gostar.
Maclennan franziu as sobrancelhas, vendo o irmão bater em retirada. Robin, sempre confiante no seu charme, não havia sequer esperado a reação do irmão e já estava a caminho do prédio que abrigava a cantina. Maclennan o alcançou na porta.
- Como assim, informações? - perguntou ele.
- Sobre os tais estudantes que você está investigando, em relação ao assassinato de Rosie Duff. Resolvi fazer umas pesquisas, sondar por aí, ver o que as pessoas tinham para dizer.
- Você não devia estar se envolvendo com isso, Robin. O caso não é seu. - Maclennan protestou enquanto seguia o irmão pelo corredor.
- Um crime como esse é caso de todo mundo.
- Mesmo assim. - Se não chegasse a lugar algum com aquele caso, não queria que o seu fracasso respingasse no seu irmão brilhante e carismático. Robin gostava de agradar; ia alcançar um posto bem mais alto do que o seu na polícia, e ele merecia. - Nenhum deles tem ficha criminal. Eu já verifiquei.
Robin virou-se quando entraram na cantina e acendeu novamente o seu sorriso de cem watts.
- Escuta, essa aqui é a minha área. Consigo fazer com que as pessoas me digam coisas que não vão dizer pra você.
Intrigado, Maclennan seguiu o irmão até uma mesa de canto e esperou pacientemente enquanto Robin buscava os cafés.
- Então, o que você sabe?
- Bem, os seus rapazes não são exatamente inocentes por essas bandas. Quando tinham uns treze anos, foram pegos furtando numa loja.
Maclennan deu de ombros.
- Quem nunca furtou uma coisinha aqui ou ali quando era criança?
- É, mas não foram apenas algumas barras de chocolate ou um maço de cigarros. Foi o que podemos chamar de Furto Desafio Fórmula 1. Parece que apostaram para ver quem conseguia furtar coisas realmente difíceis, só pela diversão. Quase sempre em lojas pequenas. Nada que estivessem querendo ou precisando em especial. Valia tudo, desde podadeiras de jardim até perfumes. Quem foi pego foi o Kerr, com um vaso chinês em uma mercearia. Os outros três foram surpreendidos esperando por ele na rua. Abriram o jogo em dois tempos quando chegaram à delegacia. Até nos levaram ao galpão no jardim de Gilbey, onde escondiam os produtos roubados. Tudo dentro da embalagem. - Robin balançou a cabeça, intrigado. - O sujeito que efetuou a prisão disse que parecia a caverna de Aladim.
- E o que aconteceu?
- Alguém mexeu os pauzinhos. O pai de Gilbey é diretor de escola, o pai de Mackie joga golfe com o chefe superintendente. Saíram com uma advertência e morrendo de medo.
- Interessante. Mas está longe de ser o Assalto ao Trem Pagador.
Robin concordou com a cabeça.
- Mas tem mais. Há alguns anos, tivemos uma série de brincadeiras com carros estacionados. Os donos voltavam e encontravam o vidro do carro rabiscado por dentro, com batom. Mas os carros estavam trancados. A coisa parou de acontecer de repente, assim como começou, mais ou menos na época em que um carro furtado pegou fogo. Nunca tivemos nada de concreto contra eles, mas o nosso oficial local do serviço secreto acha que eles estavam por trás das brincadeiras. Ao que parece, eles têm um dom para sacanear os outros.
Maclennan assentiu.
- Não posso discordar disso. - Estava intrigado com a história dos carros. Talvez a Land Rover não fosse o único veículo na estrada naquela noite com um dos suspeitos atrás do volante.
Robin estava ansioso para saber mais detalhes sobre a investigação, mas Maclennan fugiu do assunto direitinho. A conversa descambou para amenidades - família, futebol, o que comprar para os pais no Natal - até Maclennan conseguir ir embora. As informações de Robin não eram lá grande coisa, era verdade, mas fizeram com que Maclennan sentisse que havia um padrão nas atividades dos Garotos de Kirkcaldy: a atração pelo perigo. Era o tipo de comportamento que podia facilmente evoluir para algo mais arriscado.
Intuições eram ótimas, mas não valiam nada sem provas concretas. E ele não tinha nenhuma prova concreta. A Land Rover tornara-se um beco sem saída para a perícia. Haviam praticamente desmontado todo o seu interior e não encontraram nada que acusasse a presença de Rosie Duff lá dentro. Tiveram um momento de alegria fugaz quando os oficiais presentes na cena do crime descobriram vestígios de sangue, mas um exame mais minucioso revelou que o sangue não só não pertencia a Rosie Duff, como não era sequer humano.
A única vaga esperança no horizonte surgira na véspera. O dono de uma casa em Trinity Place estava fazendo uma limpeza no jardim quando encontrou uma trouxa de tecido encharcada escondida na sebe. A Sra. Duff a identificara como sendo de Rosie. Agora, a peça estava no laboratório sendo examinada, mas Maclennan sabia que, apesar do pedido de urgência, não teria nenhuma resposta antes do Ano-Novo. Mais uma frustração para engrossar a sua lista.
Não conseguia sequer decidir se autuava Mackie, Kerr e Malkiewicz por terem pegado e dirigido um veículo sem autorização do dono. Todos três haviam cumprido os requisitos da fiança religiosamente e ele estava prestes a autuá-los quando ouviu sem querer uma conversa no clube da polícia. Estava protegido dos olhares dos policiais que conversavam por uma banqueta, mas reconheceu as vozes de Jimmy Lawson e Iain Shaw. Shaw era a favor de imputarem quantas acusações pudessem contra os estudantes. Mas, para a surpresa de Maclennan, Lawson era contra.
- Isso só pega mal pra gente - disse o policial. - Dá a impressão de que somos mesquinhos e vingativos. É como colocar um anúncio dizendo: Olha, não conseguimos pegá-los por assassinato, mas vamos infernizar a vida deles de qualquer jeito.
- E o que há de errado nisso? - quis saber Shaw. - Se são culpados, têm mais é que sofrer.
- E se não forem? - respondeu Lawson, insistente. - Temos que fazer justiça, não temos? E isso não é só sair por aí prendendo os culpados. Temos que proteger os inocentes também. Tudo bem, eles mentiram para Maclennan sobre a Land Rover. Mas isso não os torna assassinos.
- Mas se não foi nenhum deles, quem foi? - desafiou Shaw.
- Ainda acho que tem algo a ver com Hallow Hill. Algum ritual pagão ou algo assim. Você sabe tão bem quanto eu que todo ano recebemos denúncias sobre animais que parecem ter sido vítimas de matança ritualista na floresta Tentsmuir. E nunca damos bola, porque parece algo insignificante diante de preocupações mais sérias. Mas e se um maluco já estava preparando isso, há anos? Afinal de contas, o crime ocorreu bem perto da Saturnália.
- Saturnália?
- Os romanos celebravam o solstício de inverno no dia 17 de dezembro. Mas o feriado não caía sempre no mesmo dia.
Shaw bufou, incrédulo.
- Cruzes, Jimmy, você andou pesquisando mesmo, hein?
- Não, só perguntei lá na biblioteca. Você sabe que eu quero entrar para o DIC. Estou apenas querendo mostrar empenho.
- Então você acha que foi um lunático satanista que matou Rosie?
- Não sei. É só uma teoria. Mas vamos ficar com a cara no chão se apontarmos os quatro estudantes como culpados e acontecer outro sacrifício humano próximo do Beltane.
- Beltane? - perguntou Shaw, perdido.
- Final de abril, início de maio. Megafestival pagão. Por isso, eu acho que devíamos pensar duas vezes antes de partir para cima dos garotos, até termos algo mais concreto contra eles. Afinal, se eles não tivessem encontrado o corpo de Rosie, teriam devolvido o carro e ninguém teria ficado sabendo, ninguém teria sido prejudicado. Eles tiveram azar, só isso.
Terminaram as suas bebidas e saíram. Mas Maclennan não conseguia tirar as palavras de Lawson da cabeça. Ele era um homem justo e não podia deixar de dar razão ao policial. Se tivessem apurado desde o início a identidade do homem misterioso que andava se encontrando com Rosie, mal teriam prestado atenção ao quarteto de Kirkcaldy. Talvez estivesse sendo duro com eles simplesmente porque não tinha para onde desviar o seu foco. Por mais desconfortável que fosse ter de ser lembrado das suas obrigações por um garoto de uniforme, Lawson convencera Maclennan que devia desistir de autuar Malkiewicz e Mackie.
Por enquanto, pelo menos.
Nesse ínterim, ia aproveitar para sondar mais um pouco, colher informações. Tentar descobrir se alguém estava sabendo de rituais satânicos naquela área. O problema é que não fazia nem ideia de por onde começar. Talvez mandasse Burnside conversar com alguns dos padres locais. Não pôde evitar um sorriso ao pensar que essa conversa de rituais satânicos em pleno Natal certamente ia desviar a atenção dos padres do Jesus recém-nascido.
Esquisito se despediu de Alex e de Mondo no fim do expediente e seguiu em direção ao passeio. Encolhendo os ombros por causa do vento gelado, enterrou o queixo no cachecol. Tinha de terminar de fazer as suas compras de Natal, mas precisava de um tempo sozinho antes de encarar a incansável euforia festiva da High Street.
A maré estava baixa, então ele desceu pelos degraus escorregadiços do passeio até a praia. A areia molhada estava da cor de cimento na luz acinzentada do crepúsculo e grudava nos seus sapatos enquanto ele andava. O que combinava perfeitamente com o seu humor. Nunca estivera tão deprimido na vida.
O clima na sua casa estava mais beligerante do que o normal. Tivera de contar ao pai que havia sido preso e a sua revelação provocara uma saraivada constante de críticas e alfinetadas sobre o seu fracasso como bom filho. Tinha de justificar cada minuto passado fora de casa, como se tivesse dez anos de idade novamente. E o pior de tudo era que Esquisito não conseguia sequer sentir-se por cima. Sabia que tinha feito besteira. Chegava quase a achar que merecia o desprezo do pai e isso era o que o deixava ainda mais deprimido. Sempre conseguira consolar-se acreditando que tinha razão. Mas dessa vez, ultrapassara todos os limites.
O trabalho também não estava grande coisa. Chato, repetitivo e humilhante. Em outros tempos, teria transformado tudo em uma grande piada, uma oportunidade para criar confusões e pregar peças. A pessoa que teria adorado perturbar os seus supervisores com o aval de Alex e Mondo em uma série de brincadeiras parecia um estranho distante para Esquisito agora. O que acontecera a Rosie Duff e o seu envolvimento no caso o forçaram a reconhecer que ele era mesmo o inútil que seu pai acreditava que ele fosse. E essa não era uma descoberta confortável.
Também não conseguia encontrar consolo nos amigos. Pela primeira vez, estar com os outros não lhe dava a sensação de ter sido absorvido em um sistema de apoio. Pelo contrário: era como um lembrete de todos os seus defeitos. Não conseguia deixar de se sentir culpado quando estava com eles, pois havia prejudicado a todos com as suas atitudes, ainda que nenhum deles o culpasse por isso.
Não conseguia nem imaginar como enfrentaria o próximo semestre. Algas surgiam e escorregavam sob os seus pés enquanto caminhava até o final da praia e começava a subir os degraus largos em direção a Port Brae. Assim como as algas, ele também se sentia coberto de lodo e inconstante.
À medida que a noite caía e a luz apagava-se no poente, Esquisito seguia rumo às lojas. Hora de fingir que voltava a ser parte do mundo novamente.
10
Ano-Novo, 1978; Kirkcaldy, Escócia
Haviam feito um pacto, quando tinham quinze anos, na primeira vez que os pais os deixaram participar do first footing.[5] Na véspera do Ano-Novo, à meia-noite, os quatro Garotos de Kirkcaldy se encontrariam na Town Square e virariam o ano juntos. Até então, haviam cumprido a promessa todo ano, lado a lado aos solavancos enquanto os ponteiros do relógio da praça aproximavam-se das doze badaladas. Ziggy trazia o seu rádio transistor para assegurar-se de que ouviriam o badalar dos sinos e eles passavam adiante um para o outro a bebida que conseguiam trazer consigo. Comemoraram o seu primeiro Ano-Novo juntos com uma garrafa de xerez doce e quatro latas de cerveja. Atualmente, preferiam uma garrafa de uísque.
Não havia uma comemoração oficial na praça mas, nos últimos anos, grupos de jovens passaram a gostar de se reunir lá. Não era um lugar particularmente atraente, em grande parte porque a Town House lembrava um dos produtos menos atraentes da arquitetura soviética, com a sua torre do relógio esverdeada. Mas aquele era o único espaço ao ar livre no centro da cidade, tirando a rodoviária, que era ainda mais sem graça. A praça, pelo menos, ostentava uma árvore de Natal, o que a tornava ligeiramente mais festiva do que a rodoviária.
Naquele ano, Alex e Ziggy chegaram juntos. Ziggy o buscara em casa e convencera Mary Gilbey com o seu charme a lhes dar uma dose de uísque, por causa do frio. Com os bolsos cheios de biscoitos caseiros amanteigados, pãezinhos que ninguém ia comer e bolo com passas brancas, passaram pela estação de trem e pela biblioteca, pelo Adam Smith Centre, com os seus cartazes anunciando o espetáculo Babes in the Wood com Russell Hunter e os Patton Brothers, e pelo cemitério onde repousavam os heróis de guerra. Começaram a conversar, especulando se Esquisito ia conseguir convencer o pai a sair do castigo no Hogmanay.
- Ele está muito estranho ultimamente - disse Alex.
- Gilly, ele é estranho. É por isso que o chamamos de Esquisito.
- Eu sei, mas ele anda diferente. Eu percebi, trabalhando junto com ele. Ele está meio submisso. E muito calado.
- Vai ver que é porque não está podendo ter acesso a álcool e drogas - disse Ziggy, debochado.
- Mas ele não está nem rebelde. Aí é que está. Você conhece a peça. Na hora em que ele percebe que tem alguém disposto a sacanear, é com ele mesmo. Mas ele tem abaixado a cabeça, não tem nem respondido aos supervisores quando eles enchem o saco. Ele fica parado, ouvindo, e aí faz o que eles querem que ele faça. Você acha que tem a ver com essa história da Rosie?
Ziggy deu de ombros.
- Pode ser. Na hora, ele levou numa boa, mas depois ficou fora de si. Para falar a verdade, eu mal falei com ele depois do dia em que Maclennan apareceu por aqui.
- Eu também só encontrei com ele no trabalho. Assim que dá a hora de ir embora, ele se manda. Não tem nem topado ir tomar um café comigo e com Mondo.
Ziggy fez uma careta.
- É de se admirar que Mondo tenha tempo para tomar café.
- Pega leve com ele. Foi a maneira que ele encontrou para lidar com a situação. Quando está indo até os finalmentes com uma garota, esquece o assassinato. Daqui a pouco, vai bater o seu próprio recorde - acrescentou Alex com um sorriso.
Atravessaram a rua e desceram a Wemyssfield, a pequena rua que dava para a praça. Tinham o andar confiante dos que se sentem em casa, em um lugar tão familiar que lhes conferia uma espécie de propriedade. Faltavam dez minutos para a meia-noite quando desceram os degraus largos e baixos que davam para a área asfaltada fora da Town House. Já havia vários grupos passando garrafas de mão em mão. Alex olhou à sua volta, para ver se conseguia localizar os outros.
- Ali, perto do Correio - disse Ziggy. - Mondo trouxe a sua última conquista. E, ah, Lynn também está lá com eles. - Ele apontou para a esquerda e eles avançaram para encontrar com os outros.
Após os cumprimentos e a constatação geral de que provavelmente Esquisito não ia aparecer, Alex se viu ao lado de Lynn. Ela estava crescendo, pensou ele. Não era mais uma criança. Com as suas feições élficas e os seus cachos negros, era uma versão feminina de Mondo. Mas, por mais paradoxal que fosse, os elementos que enfraqueciam o rosto dele tinham o efeito oposto no de Lynn. Não havia absolutamente nada de frágil nela.
- E aí, como é que tá? - perguntou Alex. Não era a melhor das abordagens, mas ele também não queria que pensassem que ele estava cantando uma garota de quinze anos.
- Tudo ótimo. Passou um bom Natal?
- Nada mal. - Ele franziu o rosto. - Foi meio difícil não pensar na... você sabe.
- Sei. Eu também não consegui parar de pensar nela. Fiquei imaginando como a família deve estar. Quando ela morreu, eles provavelmente já tinham comprado os presentes de Natal e tudo. Deve ter sido uma lembrança horrível, ficar com os presentes dentro de casa.
- Eu acho que tudo deve ser uma lembrança horrível. Bom, vamos mudar de assunto, né? Como vai a escola?
Lynn murchou. Ela não queria ser lembrada da diferença de idade entre eles, percebeu Alex.
- Tudo bem. Termino o primeiro grau esse ano. E depois, o segundo. Não vejo a hora de me livrar da escola e começar a minha vida.
- Você já sabe o que vai querer fazer? - perguntou Alex.
- Escola de Arte de Edimburgo. Quero me formar em Belas-Artes e depois ir para o Instituto de Arte Courtauld, em Londres, aprender a restaurar quadros.
A sua confiança era bonita de se ver, pensou Alex. Algum dia tivera tanta certeza? Ele foi parar em História da Arte porque jamais tivera confiança no seu talento como artista. Ele assobiou:
- Sete anos de estudo? É um compromisso e tanto.
- É o que é preciso para o que eu quero fazer.
- Por que quer restaurar quadros? - Estava sinceramente curioso.
- A restauração me fascina. Primeiro a pesquisa, depois a ciência e finalmente o salto no escuro quando você tem que entrar em sintonia com o que o artista realmente queria que nós víssemos. É empolgante, Alex.
Antes que ele pudesse responder, os outros gritaram:
- Ele veio!
Alex virou-se para ver Esquisito, a sua silhueta destacando-se contra o imponente e cinzento Tribunal de Justiça. Ele balançava os braços como um espantalho desconjuntado, correndo aos gritos. Alex olhou para o relógio na torre. Faltava apenas um minuto.
Logo Esquisito juntou-se a eles, abraçando a todos e sorrindo.
- Eu pensei, isso é ridículo. Eu sou um adulto e o meu pai está me impedindo de virar o ano com os meus amigos. O que é que há? - Ele balançou a cabeça. - Se ele me colocar pra fora, posso dormir na sua casa, Alex?
Alex lhe deu um murro no ombro.
- Por que não? Já estou acostumado com o seu ronco nojento mesmo.
- Silêncio, pessoal. - A voz de Ziggy abafou a gritaria. - Os sinos.
Um silêncio profundo desceu sobre eles enquanto tentavam ouvir a muito custo o longínquo repique do Big Ben pelo rádio de Ziggy. Ao soar meia-noite, os Garotos de Kirkcaldy entreolharam-se. Suspenderam os braços como se movidos por um único barbante e deram as mãos na última badalada.
- Feliz Ano-Novo - disseram em uníssono. Alex percebeu que os amigos estavam tão comovidos quanto ele.
Separaram-se e o momento se foi. Ele virou-se para Lynn e a beijou castamente nos lábios.
- Feliz Ano-Novo - disse ele.
- Eu acho que vai ser, sim - respondeu ela, ficando com o rosto corado.
Ziggy abriu a garrafa de uísque e passou de mão em mão. Os grupos na praça comemoravam, todo mundo se abraçando e desejando um feliz ano-novo a estranhos, com bafo de uísque e abraços generosos. Algumas pessoas que os conheciam da escola compadeceram-se da falta de sorte dos quatro, ao encontrarem o corpo da moça morta na neve. Não havia malícia em suas palavras, mas Alex pôde ver nos olhos dos amigos que eles detestavam aquilo tanto quanto ele. Um grupo de garotas estava improvisando uma dança típica escocesa para oito pessoas em volta da árvore de Natal. Alex olhou à sua volta, incapaz de articular as emoções que cresciam no seu peito.
Lynn tomou a sua mão, discretamente.
- Em que você está pensando, Alex?
Ele olhou para ela e forçou um sorriso cansado.
- Estava pensando em como as coisas seriam mais fáceis se eu pudesse congelar o tempo agora. Se eu nunca mais tivesse que voltar para St. Andrews.
- Não vai ser tão ruim quanto você pensa. São só seis meses e depois você vai ficar livre.
- Eu poderia vir nos finais de semana. - As palavras saíram de sua boca antes mesmo de Alex saber que ia dizê-las. Ambos sabiam o que elas significavam.
- Eu ia gostar muito - respondeu ela. - Só não vamos contar nada pro chato do meu irmão, ok?
Novo ano, novo pacto.
No clube social da polícia em St. Andrews, a bebida já estava rolando há algumas horas. O badalar dos sinos quase passou despercebido graças à barulhenta animação da dança de Hogmanay. O único senão no alegre tumulto daqueles que não podiam se dar ao luxo de serem sempre assim por causa da profissão era a presença das esposas, noivas e qualquer outra mulher que conseguiam convencer a participar da festa, para quebrar o galho dos solteiros.
Ruborizado pelo esforço físico, Jimmy Lawson estava ladeado por duas senhoras de meia-idade que trabalhavam como telefonistas na delegacia em uma dança típica. A bonita recepcionista de consultório de dentista que havia vindo com ele fugira para o toalete, exausta com o seu entusiasmo, aparentemente sem limites, pela dança escocesa. Ele não estava ligando muito: sempre havia mulheres interessadas em dançar um pouco no Ano-Novo e Lawson gostava de descarregar a tensão dançando. Ajudava a compensar a intensidade que ele empregava no trabalho.
Barney Maclennan estava encostado no bar, entre Iain Shaw e Allan Burnside, cada um segurando uma dose generosa de uísque.
- Meu Deus, olhe só para eles - resmungou Maclennan. - O pior é que essa provavelmente não é a última dança.
- Em noites assim, vale a pena ser solteiro - disse Burnside. - Já pensou ter alguém te arrastando para o salão? Fazendo com que abandone uma boa dose de uísque?
Maclennan não respondeu. Perdera a conta das vezes que tentara se convencer de que estava melhor sem Elaine. Só conseguia por algumas horas. Ainda estavam juntos no último Ano-Novo, mas só para constar. Aguentavam-se com menos determinação do que os dançarinos aguentavam girar sem cessar com os seus pares no salão. Algumas semanas após o Ano-Novo, ela foi embora. Estava cansada de estar sempre abaixo do trabalho na escala de prioridades dele.
Percebendo a ironia da lembrança, Maclennan recordou-se de uma de suas queixas: "Eu não ia nem ficar tão chateada assim se você estivesse trabalhando em casos importantes, como um estupro, um assassinato. Mas você fica até tarde perdendo tempo com assaltantes baratos e furtos de carro. Como é que você acha que eu me sinto, sendo trocada pelo carro de um velho babaca?" Bom, o desejo dela virara realidade. Ali estava ele, um ano depois, envolvido no maior caso da sua carreira. E, até agora, todos os seus esforços haviam sido em vão.
Todos os caminhos davam em becos sem saída. Não haviam encontrado uma testemunha sequer que tivesse visto Rosie com um homem no início de novembro. Para a sorte do homem misterioso, aquele havia sido um inverno cruel e as pessoas estavam mais interessadas no palmo de chão diante de si do que em quem estava saindo com quem não devia. Sorte do assassino, azar da polícia. Localizaram os dois últimos namorados de Rosie. Um havia terminado com ela para ficar com uma garota, com quem ainda estava namorando. Não tinha muito o que dizer sobre a garçonete assassinada. Rosie havia dispensado o outro no início de novembro e, a princípio, ele parecia um suspeito promissor. Havia relutado um pouco em aceitar o término e fora visto algumas vezes criando problemas no pub. Mas tinha um bom álibi para aquela noite em questão. Estivera na festa de Natal do escritório onde trabalhava até depois de meia-noite, depois fora para casa com a secretária do chefe e passara a noite com ela. Ele admitiu que havia ficado magoado quando Rosie terminou o namoro na época, mas que, para ser sincero, estava se divertindo muito mais com uma mulher um pouco mais generosa em termos de favores sexuais.
Quando Maclennan o pressionou para que explicasse melhor o que queria dizer com aquele comentário, ele foi tomado por orgulho masculino e não quis responder. Mas, sob pressão, admitiu que ele e Rosie jamais fizeram sexo. Faziam outras coisas; Rosie não era uma puritana. Mas recusava-se a ir até o fim. Ele mencionou sexo oral e masturbações, mas afirmou que nunca foram além disso.
Então Brian tinha razão, em parte, quando disse que a irmã era certinha. Maclennan compreendia que, na hierarquia daquelas coisas, Rosie estava longe de ser uma doidivanas. Mas um conhecimento íntimo das suas tendências sexuais não o ajudava a encontrar o seu assassino. Lá no fundo, ele sabia que era bem provável que o homem com quem ela se encontrou na noite do crime havia sido o homem que a estuprara e assassinara. Poderia ser Alex Gilbey ou qualquer um dos seus amigos. Ou não.
Os seus colegas detetives argumentaram que devia haver um bom motivo para o namorado misterioso não ter aparecido até agora. "Talvez ele seja casado", dissera Burnside. "Talvez esteja com medo de colocarmos a culpa nele", acrescentara Shaw, cínico. Eram explicações razoáveis, Maclennan sabia disso. Mas não alteravam a sua convicção pessoal. As teorias de Jimmy Lawson sobre rituais satânicos eram besteira. Os padres com quem Burnside conversara jamais haviam ouvido um rumor sequer sobre algo assim acontecendo por aquelas bandas. E Maclennan achava que eles eram as pessoas mais indicadas para possuir esse tipo de informação. Estava aliviado, de certo modo: o que menos precisava no momento era de pistas falsas. Tinha certeza de que Rosie conhecia o assassino e que caminhara noite afora com ele, confiante.
Assim como milhares de mulheres no país fariam naquela noite de Ano-Novo. Maclennan esperava fervorosamente que todas elas voltassem para casa sãs e salvas.
A aproximadamente cinco quilômetros dali, em Strathkinness, o Ano-Novo começara em um clima bem diferente. Lá, não havia decorações natalinas. Os cartões de Natal empilhados haviam sido esquecidos em uma prateleira. A televisão, que normalmente era a primeira a aclamar o primeiro dia de janeiro, estava desligada e silenciosa em um canto. Eileen e Archie Duff estavam aninhados cada qual em uma cadeira, com copos de uísque intactos ao seu lado. A calmaria opressiva suportava o peso da dor e da depressão. A família Duff sabia, no fundo do coração, que jamais teria um feliz Ano-Novo dali para frente. As festas de fim de ano estariam para sempre maculadas pela morte da filha. Os outros que comemorassem; eles podiam apenas lamentar.
Na copa, Brian e Colin estavam sentados de cabeça baixa em cadeiras revestidas de plástico. Ao contrário dos pais, não estavam tendo muita dificuldade em beber ao ano que chegava. Desde a morte de Rosie, ficara fácil para eles enfiar bebida goela abaixo até não conseguirem mais levar o gargalo aos lábios. A reação dos irmãos à tragédia não fora o recolhimento; estavam mais expansivos do que nunca. Os donos dos pubs em St. Andrews já haviam se acostumado ao ritual de bebedeira dos irmãos Duff. Não tinham outra saída, já que não estavam dispostos a enfrentar a ira da sua volátil clientela, que achava que Colin e Brian mereciam toda solidariedade possível.
Naquela noite, a garrafa de uísque estava mais vazia do que cheia. Colin conferiu as horas no seu relógio.
- Perdemos a meia-noite - disse ele.
Brian olhou para ele, cansado.
- Que se dane. Rosie vai perder todos os anos.
- É. Mas em algum lugar aí fora, quem a matou provavelmente está brindando por ter se safado dessa.
- Foram eles. Tenho certeza de que foram eles. Você viu a foto no jornal? Já viu uns sujeitos com mais cara de culpados do que eles?
Colin esvaziou o copo e apanhou a garrafa, concordando com um gesto de cabeça.
- Não tinha mais ninguém por perto. E eles disseram que ela ainda estava respirando. Então, se não foram eles, como é que o assassino desapareceu? Ele não pode ter evaporado no ar.
- Devíamos tomar uma decisão de Ano-Novo.
- Tipo o quê? Você não vai tentar parar de fumar de novo, vai?
- Estou falando sério. Devíamos fazer uma promessa de verdade. É o mínimo que podemos fazer por Rosie.
- Como assim? Que tipo de promessa?
- Na verdade, é bem simples, Col - Brian levantou o seu copo no ar. Ele o manteve assim, na expectativa. - Se os tiras não conseguirem uma confissão, a gente consegue.
Colin pensou um pouco. Então, levantou o copo e o bateu levemente contra o do seu irmão.
- Se os tiras não conseguirem uma confissão, a gente consegue.
11
As consideráveis ruínas do Castelo Ravenscraig estão localizadas em um promontório rochoso entre duas baías arenosas, oferecendo uma vista magistral do estuário do rio Forth e seus arredores. A leste, um enorme muro de pedra o protege do mar e de possíveis saqueadores. Ele se estende até o porto de Dysart, que está praticamente assoreado, mas que um dia já foi próspero. Na ponta da baía que contorna o castelo, um pouco adiante do pombal que ainda abriga pombos e pássaros marinhos, onde o muro de pedra chega a um ponto em forma de V, há um pequeno mirante, com o teto íngreme bem inclinado e marcas de flechas cravadas na parede.
Desde a pré-adolescência, os Garotos de Kirkcaldy haviam-se apropriado do local como sendo o seu domínio particular. Uma das melhores maneiras de escapar da vigilância dos adultos era saindo para dar uma caminhada. As caminhadas eram tidas como saudáveis e inofensivas. Por isso, quando prometiam passar o dia todo explorando a costa e as florestas, eram sempre agraciados com generosos farnéis para piquenique.
Às vezes, tomavam a direção contrária, passando por Invertiel e indo para longe da feia mina de Seafield, em direção a Kinghorn. Mas, na maioria das vezes, iam para Ravenscraig, inclusive porque o castelo não ficava muito longe da praça onde a carrocinha de sorvete ficava estacionada. Nos dias mais quentes, deitavam-se na grama e davam-se ao luxo de fantasiar como seriam as suas vidas, tanto no futuro próximo como no distante. Recontavam histórias das aventuras do semestre, embelezando-as e cogitando outros desenlaces. Jogavam cartas, em partidas intermináveis de vinte e um. Foi ali que fumaram o seu primeiro cigarro e viram Ziggy mudar de cor e vomitar em um arbusto.
Às vezes, escalavam o muro e ficavam observando os navios no estuário, o vento esfriando o seu corpo e fazendo com que se sentissem na proa de um navio em alto-mar, sentindo a trepidação sob os pés. E quando chovia, abrigavam-se dentro do mirante. Ziggy tinha uma esteira e eles a estendiam sobre o chão lamacento. Mesmo agora, que já se consideravam adultos, ainda gostavam de descer os degraus de pedra que conduziam do castelo até a praia, vagando por entre cascalhos e conchas até o mirante.
Na véspera do retorno a St. Andrews, os quatro se encontraram no bar do porto para tomar um chope na hora do almoço. Com dinheiro no bolso, graças ao emprego temporário de Natal, Alex, Mondo e Esquisito teriam bebido além da conta alegremente. Mas Ziggy os convenceu a sair para dar um passeio. O dia estava quente e claro e o sol se dissolvia em um céu discretamente azul. Caminharam pelo porto, abrindo caminho pelos altos silos do moinho e indo em direção ao lado oeste da praia. Esquisito caminhava um pouco atrás dos outros três e mantinha os olhos no horizonte distante, como quem busca inspiração.
Quando estavam quase chegando ao castelo, Alex se afastou do grupo e subiu no afloramento rochoso que ficava praticamente submerso quando a maré estava alta.
- Conta de novo, quanto foi que ele ganhou?
Mondo não precisava nem parar para pensar antes de responder.
- O ilustre senhor David Boys, mestre pedreiro, recebeu por ordem da rainha Mary de Gueldres, viúva de James II da Escócia, a quantia de seiscentas libras escocesas para a construção de um castelo em Ravenscraig. E ele teve que comprar os materiais com esse dinheiro.
- Que não eram baratos. Em 1461, quatorze vigas de madeira foram cortadas das margens do rio Allan e transportadas até Stirling por sete xelins. E então pagaram a um tal de Andrew Balfour duas libras e dez xelins para cortar, esculpir e transportar essas vigas até Ravenscraig - recitou Ziggy.
- Ainda bem que eu peguei o emprego no mercado - debochou Alex. - Eles pagam bem melhor lá. - Alex jogou a cabeça para trás e olhou para o penhasco do castelo. - Eu acho que os Sinclairs o fizeram bem mais bonito do que teria sido se a nossa cara rainha Mary não tivesse chutado o balde antes de o castelo estar pronto.
- Castelos não precisam ser bonitos - comentou Esquisito, entrando na conversa. - Eles têm que ser um refúgio, uma fortaleza.
- Extremamente utilitários - reclamou Alex, pulando de volta para a areia. Os outros o seguiram, arrastando os pés nos destroços que jaziam à beira da praia, dentro do limite gravado na areia pela marca do alcance da água.
Na metade do caminho, Esquisito falou no tom mais sério que eles já tinham ouvido na vida:
- Eu tenho uma coisa para contar pra vocês - disse ele.
Alex virou-se para olhar para ele e recuou alguns passos. Os outros olharam para trás.
- Aí vem coisa ruim - disse Mondo.
- Eu sei que vocês não vão gostar, mas espero que possam pelo menos respeitar.
Alex pôde ver a ansiedade nos olhos de Ziggy. Mas achava que o amigo não tinha motivos para se preocupar. Fosse lá o que Esquisito estivesse prestes a contar, tinha mais a ver consigo do que com a necessidade de expor alguém.
- Vamos lá, Esquisito. Manda ver - disse Alex, tentando soar encorajador.
Esquisito enterrou as mãos nos bolsos da calça jeans.
- Virei cristão - disse ele, asperamente. Alex o encarava, boquiaberto. Chegou a pensar que ficaria menos surpreso se Esquisito anunciasse que havia matado Rosie Duff.
Ziggy estava urrando de tanto rir.
- Meu Deus, Esquisito, eu estava pensando em uma revelação terrível. Cristão?
Esquisito enrijeceu o maxilar.
- Foi uma revelação. E eu aceitei Jesus na minha vida, como o meu salvador. E eu agradeceria muito se você não ficasse debochando.
Ziggy estava curvado de tanto rir, apertando a barriga.
- Essa é a coisa mais engraçada que eu já ouvi na minha vida... Ai, Deus, acho que vou mijar nas calças. - Ele se apoiou em Mondo, que estava sorrindo de orelha a orelha.
- E eu agradeceria se você não usasse o nome do Senhor em vão - completou Esquisito.
Ziggy renovou as gargalhadas.
- Ai, ai. Como é mesmo que eles dizem? Que o céu entra em festa quando um pecador se arrepende? Eu vou te dizer uma coisa, eles devem estar dançando pelas ruas no paraíso, comemorando por terem arrebanhado um pecador como você.
Esquisito parecia ofendido.
- Eu não estou tentando negar que fiz coisas lamentáveis no passado. Mas tudo isso ficou para trás agora. Eu nasci de novo e a minha ficha está limpa.
- Devem ter precisado de uma borracha bem grande e resistente para apagar a sua ficha. Quando foi que isso aconteceu? - perguntou Mondo.
- Fui no culto, na véspera do Natal - contou Esquisito. - E alguma coisa se iluminou em mim. Então percebi que queria ser lavado no sangue do Cordeiro. Queria ficar limpo.
- Sinistro - comentou Mondo.
- Mas você não disse nada no Ano-Novo - disse Alex.
- Eu queria que vocês estivessem sóbrios quando eu contasse. É uma coisa muito séria, entregar a sua vida a Cristo.
- Desculpa - disse Ziggy, se recompondo. - Mas você é a última pessoa do planeta que eu imaginava dizendo essas palavras.
- Eu sei disso - disse Esquisito. - Mas estou falando sério.
- Vamos continuar a ser seus amigos - disse Ziggy, tentando conter um sorriso pretensioso.
- Desde que você não queira nos converter - disse Mondo. - Você sabe que eu te amo como a um irmão, Esquisito, mas não o bastante para abrir mão de sexo e das bebidas.
- Amar a Jesus não tem nada a ver com isso, Mondo.
- Vamos, gente - interrompeu Ziggy. - Estou congelando, parado aqui. Vamos até o mirante. - Ele foi andando, com Mondo ao seu lado. Alex deixou-se ficar para trás, para acompanhar Esquisito. Estava com muita pena do amigo. Deve ter sido uma coisa horrível, vivenciar uma solidão tão profunda a ponto de ter de recorrer aos crentes para algum consolo. Eu deveria ter dado mais apoio a ele, pensou Alex, sentindo uma pontada de culpa. Talvez não fosse tarde demais.
- Você deve ter se sentido muito estranho, né? - comentou ele.
Esquisito fez um gesto negativo com a cabeça.
- Pelo contrário. Me senti em paz. Foi como se eu finalmente deixasse de ser um estranho no ninho e encontrasse o meu verdadeiro lar. Essa é a melhor maneira de explicar o que senti. Só fui ao culto para fazer companhia à minha mãe. Fiquei sentado lá na igreja Abbotshall, com as velas acesas à minha volta, como costumam ficar no culto do dia 24. Ruby Christie estava cantando Noite Feliz a capela, sem nenhum acompanhamento. Fiquei com o corpo todo arrepiado e, de repente, tudo fez sentido. Eu entendi que Deus deu o seu filho único para expiar os pecados do mundo. E eu estava incluído. Os meus pecados poderiam ser redimidos.
- Legal. - Alex estava constrangido com aquela sinceridade emocionada. Durante todos aqueles anos de amizade, nunca tivera uma conversa daquele gênero com Esquisito. Esquisito, logo ele, cuja única religião, aparentemente, era consumir o maior número de substâncias alucinógenas que pudesse ingerir antes de morrer. - E aí, o que você fez? - Alex teve uma visão fugaz de Esquisito correndo até ao altar e implorando para que os seus pecados fossem perdoados. Aquilo seria realmente constrangedor, pensou ele. O tipo de coisa que faria você suar frio quando já tivesse passado da fase do vamos-louvar-a-Deus e voltado à sua vida normal.
- Nada. Fiquei lá sentado, até o culto acabar, e voltei para casa. Pensei que fosse só naquele dia, uma espécie de experiência mística bizarra. Talvez relacionada com tudo o que a morte de Rosie trouxe à tona. Talvez até algum flashback de ácido. Mas quando acordei, no dia seguinte, senti a mesma coisa. Aí pesquisei no jornal para ver onde haveria cultos de Natal e acabei numa apresentação musical evangélica, lá nos Links.
Oh-oh.
- Devia estar bem vazio na manhã de Natal, né?
Esquisito riu.
- Que nada! O lugar estava lotado. Foi maravilhoso. A música era ótima, as pessoas me trataram como se fôssemos amigos há anos. E, depois do culto, eu fui falar com o pastor. - Esquisito abaixou a cabeça. - Foi um encontro muito emocionante. Enfim, o resultado é que ele acabou me batizando na semana passada. E me deu o nome de uma congregação irmã em St. Andrews. - Olhou para Alex com um sorriso beatificado. - Por isso eu queria contar isso pra vocês hoje. É que eu já vou começar a frequentar a igreja amanhã, quando voltarmos para Fife Park.
A primeira oportunidade que os outros tiveram para discutir a conversão milagrosa de Esquisito foi no dia seguinte, quando ele colocou a sua guitarra elétrica no estojo e saiu, disposto a cruzar a cidade até o culto evangélico próximo ao porto. Ficaram sentados na cozinha e o viram partir noite adentro.
- Bem, esse é o fim da nossa banda - disse Mondo, decisivo. - Eu não vou ficar cantando essas merdas de igreja e "Jesus Me Ama" para qualquer um.
- Já era, meus amigos - concordou Ziggy. - Vou te contar, ele perdeu completamente a noção das coisas, se é que tinha alguma.
- Ele está falando sério, pessoal - disse Alex.
- E isso é bom? Se preparem, porque a coisa agora não vai ser fácil, não - disse Ziggy. - Ele vai começar a trazer os malucos pra cá. E eles vão colocar na cabeça que nós temos de ser salvos, querendo ou não. Perder a banda vai ser o de menos. Vai ser o fim do "Um por todos e todos por um".
- Estou me sentindo meio culpado por tudo isso - disse Alex.
- Por quê? - perguntou Mondo. - Você por acaso o arrastou até lá e o obrigou a ouvir Ruby Christie cantando?
- Ele não teria pirado assim se não estivesse na merda. Eu sei que ele parece, de nós todos, o que encarou melhor essa história do assassinato de Rosie, mas acho que, lá no fundo, a coisa afetou ele pra caramba. E nós estávamos tão voltados para as nossas próprias reações que nem sacamos isso.
- Talvez a coisa não seja assim tão simples - disse Mondo.
- Como assim? - perguntou Ziggy.
Mondo arranhou o bico da bota no chão.
- Na boa, gente. Ninguém aqui sabe que merda Esquisito estava fazendo pra lá e pra cá com aquela Land Rover na noite do crime. Ele disse que não a viu naquela noite, mas só temos a palavra dele como testemunho.
Alex sentiu o chão desabar sob os seus pés. Desde que insinuara uma suspeita para Ziggy, havia se forçado a suprimir pensamentos tão traiçoeiros. Mas agora, Mondo havia dado uma nova forma para o inimaginável.
- Que horror - reclamou Alex.
- É, mas aposto que você pensou a mesma coisa - replicou Mondo, desafiadoramente.
- Esquisito nunca seria capaz de estuprar alguém, muito menos matar - protestou Alex.
- Ele estava doidão naquela noite. Não dá pra saber do que ele é ou não é capaz quando está naquele estado - disse Mondo.
- Chega! - A voz de Ziggy cortou a atmosfera de desconfiança e desconforto como uma navalha. - Você começa a pensar assim e vai parar onde? Eu também estava lá naquela noite. Alex chegou até mesmo a convidar Rosie para a festa. E, no que lhe diz respeito, você demorou pra cacete quando foi levar aquela garota em Guardbridge. O que o atrasou tanto, Mondo? - Ele lançou um olhar feroz para o amigo. - É esse tipo de merda que você quer ouvir?
- Eu não estava me referindo a vocês dois. Não tem a menor necessidade de você partir para cima de mim desse jeito.
- Mas você pode criticar Esquisito, né, sabendo que ele nem está aqui pra se defender. Que belo amigo você é.
- É, mas agora ele é amiguinho de Jesus - debochou Mondo. - O que, se você parar para pensar, é uma reação bem exagerada pro meu gosto. Isso me cheira a culpa.
- Para! - gritou Alex. - Olha só o que vocês estão falando. Já vai ter muita gente disposta a espalhar o veneno entre nós, sem que a gente precise se virar um contra o outro. Precisamos ficar unidos, ou já era.
- Alex tem razão - disse Ziggy, cansado. - Chega de acusações aqui em casa, ok? Maclennan está louco para criar um abismo entre nós. Ele não está nem aí pra quem consegue prender por esse crime, desde que pegue alguém. Precisamos convencê-lo de que não fomos nós. Mondo, no futuro, guarde as suas ideias perniciosas para si mesmo - Ziggy levantou-se. - Eu vou comprar leite e pão, para ver se a gente ao menos consegue tomar uma xícara de café antes daqueles inglesinhos escrotos voltarem e tumultuarem a casa toda com os seus sotaques.
- Eu vou com você. Preciso comprar cigarro - disse Alex.
Quando voltaram, meia hora depois, o mundo tinha virado do avesso. A polícia tinha voltado, em massa, e os seus colegas ingleses estavam parados na porta, com as malas, exibindo expressões de pura incredulidade no rosto.
- Boa-noite, Henry, boa-noite, Eddie - cumprimentou Ziggy, afável, examinando o corredor por cima dos seus ombros, onde Mondo estava sendo intratável com uma policial. - Ainda bem que eu trouxe duas cervejas.
- Que diabos está acontecendo aqui? - quis saber Henry Cavendish. - Não vai me dizer que o cretino do Mackie foi preso com drogas.
- Nada tão prosaico - respondeu Ziggy. - Pelo visto, o assassinato não chegou à imprensa inglesa.
Cavendish resmungou.
- Pelo amor de Deus, não seja tão patético. Pensei que você já tivesse superado essa palhaçada de herói da classe operária.
- Mais respeito, agora temos um cristão entre nós.
- Do que você está falando? Assassinato? Cristãos? - perguntou Edward Greenhalgh.
- Esquisito aceitou Jesus - resumiu Alex. - Nada do tipo da sua igreja anglicana, ele está mais para os pandeiros e para o "Louvemos ao Senhor". Vamos ter grupos de oração na cozinha. - Alex sabia que não havia nada mais divertido do que implicar com aqueles que se julgavam privilegiados. E St. Andrews oferecia constantes oportunidades para tal.
- O que isso tem a ver com o fato de a casa estar cheia de homens da polícia? - perguntou Cavendish.
- Aquela ali no corredor é uma mulher - retrucou Ziggy. - A não ser, é claro, que a polícia de Fife tenha resolvido recrutar travestis particularmente atraentes.
Cavendish cerrou os dentes. Odiava a maneira como os Garotos de Kirkcaldy insistiam em tratá-lo como uma caricatura. Aquele era o motivo principal dele passar tão pouco tempo em casa.
- Por que a polícia está aqui? - perguntou ele.
Ziggy sorriu candidamente para Cavendish.
- A polícia está aqui porque somos suspeitos de assassinato.
- O que ele quer dizer - acudiu Alex prontamente - é que somos testemunhas. Uma das garçonetes do Lammas foi assassinada antes do Natal. E nós encontramos o corpo.
- Estou estarrecido - disse Cavendish. - Não estava sabendo de nada. Coitada da família. E deve ter sido horrível para vocês também, imagino.
- É, não foi nada legal - disse Alex.
Cavendish lançou um olhar para dentro da casa novamente, desconcertado.
- Olha, essa não é uma boa hora para vocês. Vai ser melhor se nós encontrarmos um outro lugar por enquanto. Vamos, Ed. Podemos ficar com Tony e Simon hoje à noite. A gente pode tentar transferência para outro lugar amanhã de manhã. - Ele se afastou e depois olhou para trás, franzindo o cenho. - Cadê a minha Land Rover?
- Bem - disse Ziggy. - É um pouco complicado. Veja bem, a gente pegou ela emprestada e...
- Pegaram emprestado? - Cavendish estava ultrajado.
- Foi mal. Mas o tempo estava péssimo. Não achamos que você fosse ficar chateado.
- Tá, e onde é que ela está agora?
Ziggy estava constrangido.
- Isso você vai ter que perguntar para a polícia. Nós a pegamos emprestada na noite do crime.
A solidariedade de Cavendish evaporou imediatamente.
- Não acredito nisso - grunhiu ele. - A minha Land Rover é parte de uma investigação de assassinato?
- Receio que sim. Eu sinto muito.
Cavendish estava furioso.
- Vocês vão me pagar por isso.
Alex e Ziggy ficaram observando em silêncio, enquanto os outros dois iam embora, carregando as malas com dificuldade. Antes que pudessem falar alguma coisa, precisaram sair da porta para deixar a polícia passar. Havia quatro oficiais uniformizados e alguns homens à paisana. Ignoraram Alex e Ziggy e seguiram para os seus carros.
- O que eles vieram fazer aqui? - perguntou Alex quando finalmente entraram em casa.
Mondo deu de ombros.
- Não disseram nada. Estavam pegando amostras de tinta nas paredes, nos tetos e nos acabamentos em madeira - disse ele. - Escutei um deles falar algo sobre um cardigã, mas não pareciam estar procurando nada nas nossas roupas. Eles fuçaram tudo e perguntaram se nós mudamos a decoração recentemente.
Ziggy achou graça.
- Até parece. Depois eles não sabem por que têm fama de lesados.
- Não estou gostando nada disso - disse Alex. - Pensei que eles tivessem desistido da gente. E aqui estão eles novamente, revirando a casa de cabeça para baixo. Devem ter descoberto uma pista nova.
- Bom, seja lá o que for, a gente não tem motivo pra se preocupar - disse Ziggy.
- Já que você diz - respondeu Mondo, sarcástico. - Mas eu vou continuar me preocupando por enquanto. Como disse Alex, eles tinham deixado a gente em paz, e agora apareceram de novo. Não creio que isso possa ser facilmente ignorado.
- Mondo, nós somos inocentes, esqueceu? Isso quer dizer que a gente não tem motivo pra se preocupar.
- Tá, tudo bem. Mas e Henry e Eddie? - perguntou ele.
- Eles não querem viver com assassinos tresloucados - respondeu Ziggy, dirigindo-se à cozinha.
Alex o seguiu.
- Não queria que você tivesse dito isso - disse ele.
- O quê? Assassinos tresloucados?
- Não. Não queria que você tivesse dito a Henry e Eddie que somos suspeitos de assassinato.
Ziggy deu de ombros.
- Foi uma piada. Henry está mais interessado na sua preciosa Land Rover do que em qualquer outra coisa que possamos ter feito. Isso lhe deu apenas a desculpa perfeita para sair daqui. Além do mais, você foi o que mais saiu ganhando. Com dois quartos sobrando, não vai mais precisar dormir com Esquisito.
Alex pegou a chaleira.
- Mesmo assim. Preferia que você não tivesse plantado a semente. Estou com uma sensação terrível de que todos nós vamos acabar colhendo o que você acabou de plantar.
12
A profecia de Alex tornou-se real muito antes do que ele imaginava. Alguns dias depois, descendo a North Street a caminho do Departamento de História da Arte, ele viu Henry Cavendish e os seus companheiros se aproximando, desfilando altivos com seus uniformes de flanela vermelha, como se fossem os donos do lugar. Viu Cavendish cutucar um deles e, cochichar alguma coisa. Quando ficaram face a face, Alex viu-se subitamente cercado por rapazes vestidos com o tradicional uniforme de jaquetas de tweed e calças de sarja olhando para ele.
- É incrível ver que você teve a coragem de aparecer por aqui, Gilbey - disse Cavendish, sarcástico.
- Acho que tenho mais direito de andar nessas ruas do que você e os seus amiguinhos - disse Alex, suavemente. - Este é o meu país, não o de vocês.
- Belo país esse, onde as pessoas roubam carros e não são punidas. Não consigo acreditar que você e a sua corja não estão sendo julgados pelo que fizeram - disse Cavendish. - Se vocês usaram a minha Land Rover para encobrir um assassinato, não é só com a polícia que vão ter que se preocupar.
Alex tentou avançar, mas estava encurralado, aprisionado pelos solavancos dos cotovelos e das mãos do bando.
- Cai fora, tá, Henry? Não tivemos nada a ver com o assassinato de Rosie Duff. Fomos buscar ajuda, isso sim. Tentamos salvar a vida dela.
- E a polícia caiu nessa? - perguntou Cavendish. - Devem ser mais burros do que eu imaginava. - Um punho surgiu do nada e atingiu Alex violentamente sob as costelas. - Roubando o meu carro, né?
- Eu não sabia que você era capaz de pensar - sussurrou Alex, incapaz de se conter para não irritar mais ainda o seu agressor.
- É lamentável que você ainda seja um membro dessa universidade - gritou alguém, pressionando um dedo ossudo no peito de Alex. - Na melhor das hipóteses, você não passa de um ladrãozinho de merda.
- Meu Deus, ouçam o que estão dizendo. Vocês mais parecem um péssimo esquete cômico - disse Alex, subitamente irado. Ele abaixou a cabeça e se lançou para a frente, o corpo relembrando inúmeros ataques no campo de rúgbi. - Agora, saiam da minha frente! - berrou ele. Ofegante, emergiu do outro lado do grupo e virou-se para trás, o lábio retorcido em um sorriso pretensioso. - Eu tenho uma palestra para assistir.
Surpresos com o seu acesso de fúria, deixaram-no partir. Enquanto ele se afastava, Cavendish disse:
- Pensei que fosse ao enterro, não a uma palestra. Afinal, não é isso o que os assassinos fazem?
Alex virou para trás.
- O quê?
- Você não está sabendo? Vão enterrar Rosie Duff hoje.
Alex subiu a rua, tomado por uma violenta agitação, tremendo de raiva. Teve medo, tinha que admitir. Por um momento, teve medo. Não conseguia acreditar que Cavendish havia usado o enterro de Rosie para insultá-lo. Nem que ninguém tivesse dito a ele que o enterro era naquele dia. Não que quisesse ir. Mas poderia ao menos ter sido informado.
Imaginava como os outros estariam se virando e desejou novamente que Ziggy não tivesse aberto a boca.
Assim que Ziggy pisou na sala para uma aula de anatomia, foi imediatamente saudado com gritos de "Lá vem o ladrão de corpos!".
Ele pôs as mãos para cima, aceitando a gozação dos seus colegas médicos. Se alguém era capaz de ver humor negro na morte de Rosie, eram eles.
- Qual o problema com os cadáveres que eles nos dão para prática? - gritou alguém do fundo da sala.
- São muito velhos e feios para Ziggy - alguém respondeu. - Ele teve que sair por aí em busca de carne nova.
- Chega, pessoal - disse Ziggy. - Vocês só estão com inveja porque eu pude começar a praticar antes de vocês.
Um grupo de colegas se reuniu à sua volta.
- Como é que foi, Ziggy? Disseram que ela ainda estava viva quando vocês a encontraram. Você ficou com medo?
- Fiquei. Fiquei com medo, sim. Mas fiquei mais foi frustrado, porque não pude evitar que ela morresse.
- Qual é, cara, você fez o melhor que pôde - assegurou um colega.
- O meu melhor foi uma merda. A gente passa anos entupindo a cabeça de estudo mas, na hora H, eu não sabia nem por onde começar. Qualquer motorista de ambulância teria mais chance de salvar a vida de Rosie do que eu. - Ziggy tirou o casaco e o deixou cair no espaldar de uma cadeira. - Eu me senti inútil. E foi aí que percebi que a gente não é médico coisa nenhuma, não até sairmos daqui e começarmos a tratar pacientes de verdade.
Uma voz atrás deles disse:
- Essa é uma lição muito valiosa, Sr. Malkiewicz. - Sem que ninguém percebesse, o professor havia se aproximado do grupo e escutado a conversa. - Eu sei que isso não é consolo, mas o legista me disse que quando vocês encontraram a moça, não havia mais nada a ser feito. Ela já havia perdido sangue demais. - Ele deu um tapinha no ombro de Ziggy. - Receio que não podemos fazer milagres. Agora, senhoras e senhores, voltem para os seus lugares. Temos trabalhos importantes a fazer nesse semestre.
Ziggy voltou para o seu lugar, mas a sua cabeça estava voando. Podia sentir o sangue manchando as suas mãos, os batimentos cardíacos fracos e irregulares, o toque gelado da sua pele. Podia ouvir a sua respiração arquejante. Podia sentir o gosto de metal do sangue em sua boca. Perguntava-se se algum dia poderia se livrar dessas lembranças. Perguntava-se se seria capaz de ser um médico, sabendo que o fracasso seria sempre o resultado final das suas ações.
A alguns quilômetros dali, os pais de Rosie estavam se preparando para velar a filha. A polícia havia finalmente liberado o corpo e a família podia enfim dar o seu primeiro passo oficial em sua longa jornada de dor. Olhando-se no espelho, Eileen ajeitou o chapéu, sem se preocupar com o seu rosto, murcho e despido de artifícios. Não perdia mais tempo com maquiagem ultimamente. Maquiagem para quê? Os seus olhos estavam apáticos e carregados. Os comprimidos que o médico receitara não diminuíam a sua dor; apenas a tiravam do seu alcance, transformando o sofrimento em algo que ela mais contemplava do que sentia.
Archie estava na janela, esperando o carro fúnebre. A igreja de Strathkinness não ficava muito longe dali. Decidiram que a família ia caminhar atrás do caixão, acompanhando Rosie em sua última viagem. Os seus ombros estavam encurvados. Envelhecera nas últimas semanas e agora era apenas um velho que havia perdido a vontade de interagir com o mundo.
Brian e Colin, alinhados como ninguém jamais havia visto antes, estavam na copa, procurando coragem em doses de uísque.
- Eu só espero que aqueles quatro tenham o bom senso de não dar as caras - disse Colin.
- Que venham. Estou pronto para eles - respondeu Brian, o seu belo rosto inflexível em sua raiva.
- Hoje não, né? Porra, Brian. Mais dignidade, tá? - Colin esvaziou o copo e o colocou com raiva no escorredor de louça.
- Chegaram - disse o pai lá da sala.
Colin e Brian entreolharam-se, prometendo em silêncio aguentar até o fim sem fazer nada que os envergonhasse ou envergonhasse a memória da irmã. Empinaram os ombros, respiraram fundo e foram.
O carro fúnebre estava parado do lado de fora da casa. A família Duff foi caminhando até ele, de cabeça baixa. Eileen apoiava-se pesadamente no braço do marido. Posicionaram-se atrás do caixão. Atrás deles, amigos e parentes reuniam-se em melancólicos grupos. E mais atrás, vinha a polícia. Maclennan encabeçava o destacamento, orgulhoso ao ver que vários oficiais haviam comparecido, mesmo estando de folga. A imprensa, em uma rara amostra de discrição, concordara com uma cobertura em pool.
Moradores alinhavam-se nas calçadas no caminho até a igreja, muitos decidindo acompanhar o cortejo, que caminhava devagar até a sólida construção cinzenta sob a colina, que contemplava St. Andrews lá embaixo. Depois que todos entraram, a pequena igreja ficou lotada. Algumas pessoas tiveram que ficar nas naves laterais e outras no fundo.
Foi uma cerimônia rápida e formal. Eileen não tivera cabeça para pensar nos detalhes e Archie pedira apenas o mínimo. "É algo que somos obrigados a fazer, e não algo que vamos guardar como lembrança da nossa filha", explicou ele ao pastor.
Para Maclennan, as palavras simples do funeral soaram insuportavelmente pungentes. Aquelas eram palavras que deveriam ser ditas para pessoas que viveram plenamente, e não para uma moça que mal começara a planejar a sua vida. Abaixou a cabeça durante as orações, sabendo que aquilo não traria nenhum consolo para aqueles que haviam conhecido Rosie. Eles não teriam paz até que ele, Maclennan, fizesse o seu trabalho.
E parecia, cada vez mais, que ele não conseguiria lhes dar o que precisavam. A investigação estava praticamente parada. A única prova recente era o cardigã que não oferecera nada além de alguns fragmentos de tinta. Mas nenhuma das amostras coletadas na casa dos estudantes em Fife Park era compatível. Os seus superiores mandaram um superintendente para avaliar o trabalho que ele e a sua equipe haviam feito, sugerindo que eles poderiam ter deixado a desejar. Mas o sujeito teve de reconhecer que Maclennan havia feito um bom trabalho. E não conseguiu oferecer uma única sugestão para novos progressos.
Maclennan via-se voltando sempre para os quatro estudantes. Os seus álibis eram tão inconsistentes que mal mereciam o nome. Gilbey e Kerr estavam interessados nela. Dorothy, uma das garçonetes, mencionara esse detalhe mais de uma vez durante o seu depoimento. "O altão, que parece um Ryan O’Neal moreno", dissera ela. Não que ele fosse descrever Gilbey assim, mas sabia de quem ela estava falando. "Ele era gamadão nela", acrescentara ela. "E o baixinho, que parece um dos T. Rex. Estava sempre sonhando acordado com Rosie. Não que ela lhe desse confiança, veja bem. Ela dizia que ele era muito convencido para o gosto dela. Já o outro, o altão, ela dizia que não se importaria em sair com ele, se fosse uns cinco anos mais velho."
Então, ali estava a sombra de um motivo. E, é claro, eles tiveram acesso ao veículo perfeito para transportar o corpo da moça. Só porque não foram encontradas provas, não significava que eles não haviam usado a Land Rover. Uma lona, uma esteira, até mesmo um pedaço mais grosso de plástico poderia ter limpado o sangue do interior do carro. Não havia a menor dúvida de que o assassino de Rosie estava de carro.
Ou isso, ou ele era um dos respeitáveis moradores de Trinity Place. O problema é que todos os moradores do sexo masculino, entre quatorze e setenta anos, pareciam ter um álibi. Na noite do crime, ou não estavam em casa, ou estavam dormindo, completamente inocentes. Chegaram a dar maior atenção a alguns estudantes, mas não encontraram nada que os ligasse a Rosie, ou ao crime.
Um detalhe da perícia havia feito com que Gilbey parecesse menos culpado: o esperma encontrado nas roupas de Rosie fora depositado por um secretor, alguém cujo tipo sanguíneo está presente em outros fluidos corporais. O estuprador, que possivelmente era o assassino também, tinha sangue do grupo O. Alex Gilbey era AB, o que significava que ele não poderia ter estuprado Rosie, a não ser que estivesse usando um preservativo. Mas Malkiewicz, Kerr e Mackie eram todos tipo O. Então, teoricamente, poderia ser qualquer um dos três.
Não achava que Kerr fosse capaz de cometer algum crime. Mas Mackie, sim, com certeza. Maclennan ficara sabendo da súbita conversão do rapaz ao cristianismo. Para ele, aquilo parecia um ato de desespero, gerado pela culpa. E com Malkiewicz, eram outros quinhentos. Maclennan esbarrara acidentalmente na questão da sexualidade do rapaz, mas se ele estava apaixonado por Gilbey, era possível que quisesse se livrar da concorrência. Não era de todo impossível.
Maclennan estava tão imerso em seus pensamentos que levou um susto ao perceber que a cerimônia havia chegado ao fim e que os fiéis já estavam de pé. O caixão estava sendo removido do altar e Colin e Brian Duff eram os primeiros do pequeno grupo que o carregava. Era possível ver as marcas das lágrimas no rosto de Brian, e Colin parecia estar reunindo todas as suas forças para não chorar.
Maclennan olhou para a sua equipe, fazendo sinal para que se retirassem da igreja enquanto o caixão desaparecia. A família ia ser levada até o cemitério para um enterro particular. Ele saiu da igreja e ficou parado na porta, observando as pessoas se dispersando. Não acreditava que o assassino estivesse ali, entre os fiéis; aquela era uma conclusão muito fácil para que ele pudesse se contentar com ela. Os policiais reuniram-se atrás dele, trocando comentários discretos entre si.
Escondida em um canto, Janice Hogg acendeu um cigarro. Não estava de serviço, afinal de contas, e precisava de uma dose de nicotina após todo aquele sofrimento. Havia dado apenas algumas tragadas quando Jimmy Lawson apareceu.
- Bem que eu achei que estava sentindo cheiro de cigarro - disse ele. - Posso te acompanhar?
Ele acendeu um cigarro, encostando-se na parede, o cabelo caindo na testa, obscurecendo os seus olhos. Janice percebeu que ele estava mais magro ultimamente, e que ficara mais bonito assim, com o rosto mais delgado e o maxilar mais definido.
- Eu não tenho pressa nenhuma de passar por isso de novo tão cedo - disse ele.
- Nem eu. Parece que todo mundo estava olhando para a gente, buscando a resposta que não temos.
- E não estamos nem próximos de ter. O DIC não arrumou um suspeito decente até agora - disse Lawson. A sua voz era tão amarga quanto o vento leste que carregava a fumaça dos seus lábios.
- Não é como Starsky & Hutch, né?
- Ainda bem que não. Quer dizer, você ia querer usar aquele uniforme?
Janice não pôde conter uma risadinha.
- Pensando bem...
Lawson inalou o ar profundamente.
- Janice... você gostaria de tomar um drinque comigo, um dia desses?
Janice olhou para ele, surpresa. Jamais passara pela sua cabeça que Jimmy Lawson percebia que ela era uma mulher, a não ser quando se tratava de preparar um chá, ou dar notícias ruins aos outros.
- Você está me convidando para sair?
- É o que parece, né? E então? O que você me diz?
- Não sei, Jimmy. Não sei se é uma boa ideia se envolver com alguém do trabalho.
- E quando é que a gente tem oportunidade de encontrar outras pessoas, a não ser quando estamos prendendo alguém? Vamos lá, Janice. Só um drinquezinho. Descobrir se a gente combina, que tal? - O seu sorriso lhe conferiu um charme que ela jamais havia percebido.
Olhou para ele, analisando a proposta. Ele não era exatamente um deus grego, mas também não era feio. Tinha fama de ser meio conquistador, alguém que geralmente conseguia o que queria sem fazer muito esforço. Mas sempre a tratara com gentileza, ao contrário de alguns colegas que faziam questão de mostrar o quanto a desprezavam. E fazia muito tempo que ela não saía com alguém interessante.
- Está bem - disse ela.
- Vou checar o quadro de funcionários hoje à noite. Ver quando nós dois vamos estar de folga. - Ele jogou a guimba do cigarro no chão e pisou nela com a ponta do pé. Ela o observou enquanto ele se afastava, indo juntar-se aos outros no outro canto. Ao que parece, tinha acabado de descolar um encontro.
Era a última coisa que imaginava possível de acontecer no funeral de Rosie Duff. Talvez o pastor tivesse razão. Era hora de olhar para o futuro, e não só para o passado.
13
Nenhum dos seus três amigos descreveria Esquisito como sensato, mesmo antes de se converter. Ele sempre fora uma mistura instável de cinismo e ingenuidade. Infelizmente, a sua recém-descoberta espiritualidade o havia despido do cinismo, sem oferecer um bom senso complementar. Então, quando os seus novos amigos crentes anunciaram que não havia ocasião mais oportuna para pregar do que o dia do funeral de Rosie, Esquisito deixou-se levar pela sugestão. A lógica era: as pessoas vão parar para refletir sobre a sua própria mortalidade. E aquele era o melhor momento para lembrá-las de que Jesus oferecera o único caminho para o reino dos céus. A ideia de dar o seu testemunho para estranhos faria com que ele rolasse no chão às gargalhadas algumas semanas antes, mas agora parecia a coisa mais natural do mundo.
Reuniram-se na casa do pastor, um animado jovem galês cujo entusiasmo era quase patológico. Mesmo na febre inicial da sua conversão, Esquisito o achava meio exagerado. Lloyd acreditava piamente que o resto da cidade não aceitara Jesus devido a um único motivo: ele e o seu rebanho não estavam trabalhando direito nas suas pregações. Era óbvio que ele não conhecia Ziggy, o ateu dos ateus. Quase todas as refeições que Esquisito fizera em Fife Park desde que voltaram para lá haviam incluído discussões passionais sobre fé e religião. Esquisito já estava cansado daquilo. Ainda não possuía conhecimento suficiente para rebater todos os argumentos e sabia, instintivamente, que responder com "Este é o mistério da fé" não era o bastante. O estudo da Bíblia ia resolver isso com o tempo, tinha certeza. E até lá, estava rezando para ter paciência e boas respostas.
Lloyd colocou uns panfletos na sua mão.
- Esses aqui dão uma boa introdução sobre o Senhor, junto com uma pequena seleção de passagens da Bíblia - explicou ele. - Tente puxar assunto com as pessoas e depois pergunte se elas podem perder cinco minutinhos do seu tempo para se livrarem da degradação. Aí você entrega o panfleto e pede para elas não deixarem de ler. E explica que se quiserem tirar alguma dúvida, podem encontrar você no culto de domingo. - Lloyd fez um gesto amplo com as mãos, como se querendo dizer que a coisa era simples.
- Ok - disse Esquisito. Olhou para o pequeno grupo à sua volta. Deviam ser uns seis. Tirando Lloyd, tinha apenas mais um homem. Ele havia trazido um violão e parecia empolgado. Infelizmente, a sua empolgação não era proporcional ao seu talento. Esquisito sabia que não devia julgar as pessoas, mas achava que, mesmo em um dia ruim, conseguia tocar muito melhor do que aquele nerd. Mas ele ainda não tinha aprendido as músicas, então não ia poder sair cantando para Jesus naquela noite.
- O pessoal da música vai ficar na North Street. Ali sempre tem movimento. O resto pode rodar pelos pubs. Não precisa entrar. É só abordar as pessoas que estiverem entrando ou saindo. Agora, vamos só fazer uma pequena oração antes de partirmos para a missão do Senhor. - Deram-se as mãos e abaixaram a cabeça. Esquisito experimentou mais uma vez aquela nova sensação familiar de paz o invadir, enquanto se colocava nas mãos do seu Salvador.
Era engraçado ver como as coisas haviam mudado, pensou ele mais tarde, enquanto caminhava sem pressa de um pub para outro. Antigamente, jamais lhe passaria pela cabeça abordar estranhos, a não ser para pedir informações. Mas a verdade é que estava realmente gostando daquilo. A maioria das pessoas lhe dava um fora, mas várias haviam aceitado o panfleto e ele estava confiante de que veria algumas novamente. Estava convencido de que aquelas pessoas tinham notado a tranquilidade e a alegria que ele certamente estava emanando.
Eram quase dez horas da noite quando ele cruzou o maciço arco de pedra da West Port em direção ao Lammas. Ficava chocado ao lembrar quanto tempo havia perdido lá dentro. Não tinha vergonha do seu passado; Lloyd o ensinara que aquilo não era bom. O seu passado era um parâmetro de comparação que servia para mostrar o quão gloriosa era a sua vida atual. Mas lamentava não ter encontrado aquela paz e abrigo antes.
Atravessou a rua e ficou parado na porta do Lammas. Nos primeiros dez minutos, entregou apenas um panfleto para um dos frequentadores habituais do pub, que lançou um olhar curioso para Esquisito enquanto ele abria a porta. Um pouco depois, a porta se abriu novamente, violenta. Brian e Colin Duff surgiram na rua, acompanhados por alguns outros rapazes. Estavam possessos e calibrados de bebida.
- O que é que você está fazendo aqui, porra? - grunhiu Brian, agarrando Esquisito pelo casaco. Ele o empurrou violentamente contra a parede.
- Eu só estava...
- Cala a boca, seu merda - gritou Colin. - Enterramos a minha irmã hoje, graças a você e aos seus amiguinhos desalmados. E você ainda tem a coragem de aparecer por aqui, para pregar?
- E você ainda se diz cristão? Você matou a minha irmã, seu babaca. - Brian estava atirando o corpo de Esquisito contra a parede sem parar. Esquisito tentou se esquivar das suas garras, mas ele era muito mais forte.
- Nunca encostei um dedo nela - gemeu ele. - Não fomos nós.
- Então quem foi? Vocês eram os únicos que estavam lá - esbravejou Brian. Ele largou o casaco de Esquisito e levantou a mão, fechada em punho. - Vamos ver se você vai gostar disso aqui, babaca. - Entrou com um gancho de direita no maxilar de Esquisito, e depois com um de esquerda no rosto. Esquisito caiu de joelhos no chão. Parecia que a parte inferior do seu rosto ia despencar em suas mãos.
E aquilo era só o começo. Pés e punhos surgiram de repente, golpeando cruelmente o seu corpo. Sangue, lágrimas e muco escorriam pelo seu rosto. O tempo parecia estar parado, distorcendo as palavras e intensificando cada golpe agonizante. Nunca participara de uma briga de gente grande e toda aquela violência explícita o aterrorizava.
- Meu Deus, meu Deus - soluçava ele.
- Ele não vai te ajudar agora, seu merda! - gritou um dos agressores.
Então, como por milagre, a surra chegou ao fim. E tão logo o último golpe foi desferido, ficaram todos em silêncio.
- O que é que está acontecendo aqui? - perguntou uma voz de mulher. Esquisito, encolhido na posição fetal que adotara durante a surra, levantou a cabeça. Uma policial estava diante dele. Atrás dela, ele pôde ver o policial que acompanhara Alex na noite do crime. Os agressores estavam parados no mesmo lugar, carrancudos, com as mãos nos bolsos.
- A gente só estava se divertindo um pouquinho - disse Brian.
- Não me parece nada divertido, Brian. A sorte dele é que o dono do pub decidiu chamar a polícia - disse ela, agachando-se para examinar o rosto de Esquisito. Ele ficou sentado e tossiu, expelindo muco e sangue. - Você é Tom Mackie, não é? - perguntou ela, compreendendo tudo.
- Sou - gemeu ele.
- Eu vou pedir uma ambulância - disse ela.
- Não - acudiu Esquisito, conseguindo se levantar com muito esforço. - Eu vou ficar bem. A gente só estava se divertindo mesmo. - Falar, percebeu ele, não estava sendo nada fácil. Era como se tivesse feito um transplante de maxilar que não estava funcionando muito bem.
- Acho que o seu nariz está quebrado, filho - disse o policial. Qual era mesmo o nome dele? Morton? Lawton? Lawson, isso.
- Está tudo bem. Eu moro com um médico.
- Ele era um estudante de medicina na última vez que ouvi falar dele - disse Lawson.
- Vamos te levar para casa na viatura - disse a mulher. - Eu sou a policial Hogg e este é o policial Lawson. Jimmy, cuida dele um instantinho, eu preciso ter uma palavra com esses idiotas. Colin, Brian? Venham cá. E vocês aí, caiam fora. - Ela levou Colin e Brian para um canto. Teve o cuidado de permanecer perto de Lawson, para que ele pudesse acudir, caso as coisas saíssem do controle. - Que diabos foi isso? - perguntou ela. - Vejam só o estado do garoto.
Boquiaberto, com os olhos vidrados e encharcado de suor, Brian deu um sorriso bêbado de escárnio.
- Foi menos do que ele merece. E você sabe muito bem o que foi isso. Estamos fazendo o seu trabalho, porque vocês são um bando de incompetentes que não conseguem descobrir porra nenhuma.
- Cala a boca, Brian! - implorou Colin. Ele estava apenas um pouco mais sóbrio do que o irmão, mas sempre tivera uma espécie de instinto para evitar problemas. - Olha, foi mal, tá? As coisas saíram um pouco do controle por aqui.
- E como, né? Vocês quase mataram o garoto.
- Pode até ser, mas ele e os amiguinhos fizeram o serviço completo com a minha irmã - disse Brian, doido para começar outra briga. De repente, o seu rosto ficou enrugado e lágrimas correram pela bochecha. - A minha irmãzinha. A minha Rosie. O que eles fizeram com ela não se faz nem com um cachorro.
- Você está enganado, Brian. Eles são testemunhas, não suspeitos - disse Janice, exausta. - Eu já te expliquei isso, na noite do crime.
- Vocês são os únicos que pensam assim por aqui - disse Brian.
- Fica quieto! - pediu Colin. Ele se virou para Janice. - Você vai prender a gente, ou o quê?
Janice suspirou.
- Eu sei que o enterro de Rosie foi hoje. Eu estive lá e vi o quanto os pais de vocês estão arrasados. Em consideração a eles, eu vou deixar passar desta vez. Acho que o Sr. Mackie não vai querer prestar queixa. - Colin fez menção de falar alguma coisa, mas ela prontamente ameaçou, com o dedo em riste: - Mas você e o Cassius Clay aqui vão ter que me prometer que não vão mais sair por aí fazendo esse tipo de coisa, ok? Esse é o trabalho da polícia.
Ele concordou com um gesto de cabeça.
- Ok, Janice.
Brian fez uma cara de espanto.
- Desde quando você chama ela de Janice? Ela não está do nosso lado, não, entendeu?
- Cala a porra dessa boca, Brian! - disse Colin, sílaba por sílaba. - Peço desculpas pelo meu irmão. Ele bebeu um pouco demais.
- Tudo bem. Mas você não é burro, Colin. Você sabe que eu não estou brincando. Deixem Mackie e os amigos dele em paz. Entendeu?
Brian deu um riso debochado.
- Acho que ela está a fim de você, hein, Colin?
A ideia obviamente acionou a parte bêbada do cérebro de Colin Duff.
- Sério? Ué, o que você acha, Janice? Por que você não me coloca na linha, hein? Topa sair comigo? Aposto que você ia se divertir.
Janice percebeu um movimento com o canto dos olhos e virou-se a tempo de ver Jimmy Lawson sacando o cassetete e avançando em direção a Colin Duff. Ela levantou a mão para mantê-lo afastado, mas a ameaça já fora o bastante para que Colin recuasse, com os olhos arregalados e assustados.
- Ei! - protestou ele.
- Limpa essa boca, seu escrotinho de merda! - bradou Lawson, sério e irado. - Nunca, nunca mais na sua vida se dirija a um policial assim! E agora, suma da minha frente antes que eu convença a oficial Hogg a mudar de ideia e mandar vocês dois para cumprir uma boa pena na cadeia! - As palavras que saíram dos seus lábios contraídos refletiam a sua animosidade. Janice estava passada. Detestava quando os policiais homens achavam que podiam demonstrar a sua masculinidade com o pretexto de defender a sua honra.
Colin agarrou Brian pelo braço.
- Vamos. Tem uma cerveja esperando a gente lá dentro. - Ele levou o seu irmão desconfiado embora, antes que ele causasse mais alguma encrenca.
Janice virou-se para Lawson.
- Não tinha necessidade disso, Jimmy.
- O quê? Ele estava te passando uma cantada! E ele não serve nem para engraxar os seus sapatos. - A voz dele era só desprezo.
- Eu sei me cuidar muito bem, Jimmy. Já tive que aturar coisas muito piores do que Colin Duff sem ter você ao meu lado bancando o herói. Agora, vamos levar o garoto pra casa.
Ajudaram Esquisito a entrar no carro e o acomodaram no banco de trás. Quando Lawson se dirigia para o banco do motorista, Janice disse:
- E Jimmy... Sobre o nosso encontro. Acho que não vai dar, não.
Lawson olhou para ela longa e fixamente.
- Você é que sabe.
Foram até Fife Park em um silêncio sepulcral. Ajudaram Esquisito até a porta de casa e depois voltaram para o carro.
- Janice, desculpa se peguei pesado. Mas Duff passou dos limites. Não se pode falar com um policial daquele jeito - disse Lawson.
Janice se inclinou sobre o teto do carro.
- Ele passou dos limites, sim. Mas você não reagiu daquele jeito porque ele estava insultando o cargo. Você sacou o seu cassetete porque, na sua cabeça, você achou que eu era propriedade sua, só porque topei sair para tomar um drinque com você. E ele estava invadindo o seu território. Sinto muito, Jimmy. Mas o que eu menos preciso na minha vida agora é isso.
- Não foi nada disso, Janice - protestou Lawson.
- Deixa pra lá, Jimmy. Sem ressentimentos, ok?
Ele deu de ombros, petulante.
- Você é que vai sair perdendo mesmo. Companhia feminina é o que não me falta. - Ele entrou no carro e sentou-se no banco do motorista.
Janice sacudiu a cabeça, incapaz de conter um sorriso. Como os homens eram previsíveis. Bastava sentir um cheiro de feminismo no ar para darem no pé imediatamente.
Dentro de casa, em Fife Park, Ziggy estava examinando Esquisito.
- Eu disse que isso ia acabar em lágrimas - disse ele, pressionando delicadamente os dedos no tecido inchado em volta das costelas e do abdômen de Esquisito. - Você sai para uma pregaçãozinha light e volta parecendo um figurante de filme de guerra. Avante, soldados cristãos!
- Não teve nada a ver com o meu testemunho - disse Esquisito, franzindo o rosto de dor por causa do esforço. - Foram os irmãos de Rosie.
Ziggy parou imediatamente.
- Os irmãos de Rosie fizeram isso com você? - perguntou, visivelmente preocupado.
- Eu estava na porta do Lammas. Alguém deve ter contado a eles. Eles saíram e me deram uma surra.
- Puta que pariu. - Ziggy foi até a porta. - Gilly! - gritou ele. Mondo tinha saído, como fazia quase toda noite, desde que haviam voltado das férias. Às vezes aparecia para o café da manhã, às vezes, nem isso.
Alex desceu as escadas correndo, estacando diante da visão do rosto destruído de Esquisito.
- O que aconteceu com você, porra?
- Os irmãos de Rosie - resumiu Ziggy. Encheu uma tigela com água morna e começou a limpar o rosto de Esquisito delicadamente, com bolas de algodão.
- Eles te deram uma surra? - Alex mal conseguia compreender o que estava acontecendo.
- É o que parece - disse Esquisito. - Ai! Dá pra ir com mais cuidado?
- O seu nariz está quebrado. Você devia ir pro hospital - disse Ziggy.
- Detesto hospitais. Conserta aí pra mim.
Ziggy suspendeu as sobrancelhas.
- Tenho medo de não ficar bom e você acabar igual a um boxeador frustrado.
- Vou arriscar.
- Pelo menos, o maxilar está inteiro - disse ele, inclinando-se diante do rosto de Esquisito. Segurou o nariz dele com as duas mãos e girou, tentando não ficar enjoado com a crepitação triturante da cartilagem. Esquisito gritava, mas Ziggy seguiu em frente. Tinha suor sobre os lábios. - Pronto - disse ele. - Isso é o melhor que eu posso fazer.
- O funeral de Rosie foi hoje - disse Alex.
- Ninguém avisou a gente - reclamou Ziggy. - Isso explica por que os ânimos estavam tão exaltados.
- Você acha que eles vão vir atrás da gente, então? - perguntou Alex.
- A polícia os ameaçou - disse Esquisito. Falar estava ficando cada vez mais difícil, à medida que o maxilar enrijecia.
Ziggy observou o seu paciente.
- Bom, Esquisito, vendo o seu estado, Deus queira que eles tenham se sentido ameaçados mesmo.
14
Qualquer esperança que pudessem ter acalentado sobre a morte de Rosie ter sido uma comoção passageira foi por água abaixo diante da cobertura jornalística do funeral. Lá estava o crime na primeira página novamente e qualquer pessoa que tivesse perdido a cobertura inicial dificilmente conseguiria ignorar a reprise.
E Alex, novamente, foi a primeira vítima. Voltando do supermercado para casa alguns dias depois, estava pegando um atalho no fundo do Jardim Botânico quando Henry Cavendish e os seus amigos surgiram em um bando desorganizado, com roupas de rúgbi. Assim que avistaram Alex, começaram a assoviar, depois o cercaram e começaram a empurrá-lo. Formando um círculo à sua volta, arrastaram-no para fora da grama e o atiraram no chão lamacento de neve derretida. Alex rolava no chão, tentando se esquivar dos chutes. Não corria o risco de se confrontar com uma violência real como a que Esquisito experimentara e estava mais irritado do que com medo. Uma bota acertou o seu nariz e ele sentiu o sangue esguichar.
- Sumam daqui! - gritou ele, limpando a mistura de lama, sangue e neve derretida do rosto. - Por que vocês não me deixam em paz, porra?
- Vocês é que deviam sumir, matador - gritou Cavendish. - Ninguém quer vocês por perto.
Uma voz tranquila acudiu.
- E quem quer vocês por perto?
Alex esfregou os olhos e viu Jimmy Lawson parado, à margem do grupo. Demorou um pouco para reconhecê-lo sem o uniforme, mas o seu coração acelerou quando percebeu quem era.
- Cai fora - disse Edward Greenhalgh. - Você não tem nada a ver com isso.
Lawson meteu a mão dentro do casaco e puxou o seu distintivo da polícia. Abrindo-a de modo displicente, ele disse:
- Acho que tenho, sim, senhor. Pois bem, quero saber o nome de cada um de vocês. Creio que é um assunto que terá de ser levado para as autoridades acadêmicas.
Súbito, eram crianças novamente. Mexeram-se para lá e para cá, inquietos, olhando fixamente para o chão, resmungando os detalhes para Lawson, que anotava tudo no seu caderninho. Enquanto isso, Alex levantou-se, encharcado e imundo, contemplando os destroços das suas compras. Uma garrafa de leite estourara sobre a sua calça, uma jarra plástica de iogurte de limão entornara sobre uma das mangas do seu casaco.
Lawson dispensou os vândalos e ficou parado olhando para Alex, sorrindo.
- Você está péssimo - disse ele. - Sorte sua eu estar passando por aqui.
- Você não está trabalhando? - perguntou Alex.
- Não. Eu moro ali na esquina. Dei uma saída rápida para pegar a correspondência. Vamos, vamos até lá em casa, dar um jeito nessa sua roupa.
- Eu agradeço a sua gentileza, mas não precisa, não.
Lawson sorriu.
- Você não pode andar por St. Andrews desse jeito. Vai acabar sendo preso por assustar os jogadores de golfe. E, além do mais, você está tremendo. Precisa de uma xícara de chá.
Alex não ia discutir. A temperatura estava caindo vertiginosamente e a ideia de voltar para casa a pé, encharcado daquele jeito, não era nada agradável.
- Obrigado - aceitou ele.
Dobraram a esquina e entraram em uma rua novinha em folha, tão nova que ainda não estava nem asfaltada. As primeiras casas já estavam prontas mas, não muito adiante, havia apenas terrenos vazios para futuras construções. Lawson passou direto pelas casas prontas e parou mais à frente, diante de um trailer estacionado no que, um dia, poderia ser um jardim. Atrás do trailer, quatro paredes e vigas de madeira cobertas de lona ofereciam a promessa de algo mais suntuoso do que um veículo com quatro cabines.
- Estou construindo uma casa. A rua toda está fazendo a mesma coisa. Cada um ajuda o outro, com trabalho braçal e habilidades específicas. Assim, eu vou conseguir ter uma casa de chefe com um salário de policial. - Ele subiu os degraus do trailer. - Mas, por enquanto, é aqui que eu moro.
Alex entrou atrás dele. O trailer era aconchegante, com um aquecedor a gás portátil exalando calor no limitado recinto. Alex ficou impressionado com a arrumação. A maioria dos homens solteiros que ele conhecia vivia em chiqueiros, mas a casa de Lawson era impecável. Todos os metais brilhavam. A pintura estava limpa e era recente. As cortinas de cor viva estavam amarradas com capricho. Não havia nada bagunçado. Estava tudo no lugar, organizado; livros na estante, xícaras penduradas pela alça no gancho no armário, fitas cassetes em uma caixa, plantas de arquiteto emolduradas no tabique. O único sinal de que alguém de fato morava ali era uma panela fervendo no fogão. O cheiro da sopa de lentilhas atingiu Alex em cheio.
- Muito bom - comentou ele, dando uma olhada geral.
- É um pouco apertado, mas mantendo arrumado não fica tão claustrofóbico. Tira a jaqueta, a gente pode colocar ali em cima do aquecedor. Agora, você precisa lavar o rosto e as mãos. O banheiro fica ali, logo depois do fogão.
Alex entrou no minúsculo cubículo. Olhou-se no espelho, sobre a pia de casa de bonecas. Estava realmente péssimo. Sangue coagulado, lama. E iogurte de limão grudado no cabelo. Não era de admirar que Lawson tivesse insistido para que ele fosse até o trailer se ajeitar. Deixou a água correr na pia e se esfregou até ficar limpo. Quando saiu do banheiro, Lawson estava inclinado no fogão.
- Agora, sim! Senta aí do lado do aquecedor, você vai se secar rapidinho. Quer um chá? Ou então, acabei de fazer uma sopa, se você preferir.
- Vou aceitar a sopa. - Alex sentou-se ao lado do aquecedor enquanto Lawson servia às colheradas uma tigela generosa da sopa amarelo-dourada com pedaços de pernil de porco. Colocou a tigela diante de Alex e lhe deu uma colher. - Não quero parecer rude, mas por que o senhor está sendo tão gentil comigo? - perguntou ele.
Lawson sentou à sua frente e acendeu um cigarro.
- Porque tenho pena de você, e dos seus amigos. Tudo o que vocês fizeram foi agir como cidadãos responsáveis, mas ganharam fama de bandidos. E eu me considero parcialmente responsável. Se eu estivesse fazendo a minha ronda, em vez de estar prostrado dentro do meu carro, poderia ter pegado o assassino em flagrante. - Ele inclinou a cabeça para trás e exalou um suspiro de fumaça no ar. - É por isso que eu acho que não foi alguém daqui. Qualquer um que conhecesse aquela região à noite saberia que sempre tem uma viatura de polícia parada ali. - Lawson fez uma careta. - Não temos ajuda de custo de gasolina suficiente para dirigirmos por aí a noite toda, então somos obrigados a estacionar em algum lugar.
- Maclennan ainda acha que fomos nós? - perguntou Alex.
- Não sei o que ele acha, filho. Vou ser franco com você. Voltamos à estaca zero. E por isso vocês acabaram na linha de fogo. E os irmãos Duff estão soltos por aí, caçando vocês, e pelo que eu vi hoje, os seus amigos também se voltaram contra você.
Alex bufou.
- Eles não são meus amigos. O senhor realmente vai dar queixa deles?
- Você quer que eu faça isso?
- Para falar a verdade, não. Eles vão acabar arrumando um jeito de se vingar. Mas não acho que vão nos perseguir mais depois dessa. Vão ficar com medo da mamãe e do papai ouvirem a respeito e cortar a mesada deles. Estou mais preocupado com os Duff.
- Acho que eles também vão deixar vocês em paz. A minha colega pegou pesado com eles. O seu amigo Mackie teve o desprazer de topar com eles em um péssimo dia. Eles estavam arrasados depois do funeral.
- Com certeza. Só espero não receber um tratamento como o que Esquisito ganhou.
- Esquisito? Você está falando do Sr. Mackie? - Lawson franziu a testa.
- A-ham. É um apelido dos tempos de colégio. De uma música do David Bowie.
Lawson sorriu.
- Mas é claro! Ziggy Stardust e as Aranhas de Marte. Então você é o Gilly, não é? E Sigmund, o Ziggy.
- Exatamente.
- Eu não sou tão mais velho do que vocês assim. E o que sobrou para o Sr. Kerr?
- Ele não é muito fã de David Bowie, não. Ele gosta do Pink Floyd. Então, ficou sendo Mondo. Crazy Diamond? Lembra?
Lawson fez que sim com a cabeça.
- Ótima sopa, por sinal.
- Receita da minha mãe. Vocês se conhecem há um tempão, então?
- Nos conhecemos no primeiro dia de aula. Somos melhores amigos desde então.
- Todo mundo precisa de amigos. É como no meu trabalho. Você trabalha com as mesmas pessoas durante um tempo e elas são como os seus irmãos. Você dá a vida por elas, se for necessário.
Alex deu um sorriso compreensivo.
- Sei o que você quer dizer. Com a gente também é assim. - Ou era assim, pensou ele, sentindo uma pontada no peito. Naquele semestre, as coisas estavam bem diferentes. Esquisito passava mais tempo com o Esquadrão de Deus do que com eles. E só Deus sabia onde Mondo se metia na maior parte do tempo. Os Duff não eram os únicos pagando um alto preço emocional pela morte de Rosie, percebeu Alex subitamente.
- Então vocês seriam capazes de mentir pelo outro se fosse preciso, né?
Alex parou com a colher no ar, a caminho da boca. Então era isso. Empurrou a tigela e se levantou, apanhando a jaqueta.
- Obrigado pela sopa - disse ele. - Estou bem agora.
Ziggy raramente se sentia solitário. Por ser filho único, estava acostumado com a sua própria companhia e nunca deixou de se divertir. Sua mãe sempre olhava para os outros pais como se eles fossem malucos quando reclamavam que os filhos se sentiam entediados durante as férias. Tédio jamais fora problema naquela família.
Mas naquela noite, a solidão infiltrara-se em sua casa em Fife Park. Ele estava cheio de trabalho para mantê-lo ocupado, mas pela primeira vez precisava de companhia. Esquisito saíra com o seu violão, tentando aprender como louvar o Senhor em três acordes. Alex chegara em casa de mau humor após uma briga com a Direita e um encontro com o tira Lawson, que havia terminado mal. Mudara de roupa e partira para uma palestra com slides sobre pintores venezianos. E Mondo estava fora, provavelmente trepando.
E essa até que não era uma má ideia. A última vez que fizera sexo foi bem antes de se depararem com Rosie Duff. Passara a noite em Edimburgo, no único pub que conhecia onde gays eram bem recebidos. Ficara parado no bar, bebericando o seu chope, olhando furtivamente para os lados, evitando olhar fixamente para alguém. Passada meia hora, um jovem de uns vinte e poucos anos parou ao seu lado. Usava jeans, camiseta e jaqueta. Era bonito, tinha aparência de durão. Puxou um papo e eles acabaram fazendo sexo, rápido mas satisfatório, contra a parede do banheiro. Terminaram muito antes do horário do último trem, que levaria Ziggy de volta para casa.
Ziggy ansiava por algo mais do que aqueles encontros anônimos com estranhos, que constituíam a sua única experiência com sexo. Queria o que os seus amigos heterossexuais pareciam ter com tanta facilidade. Queria galanteios e romance. Alguém com quem pudesse compartilhar uma intimidade que fosse além da troca de fluidos corporais. Queria um namorado, um amante, um parceiro. E não fazia a menor ideia de como encontrá-lo.
Havia um grupo gay na universidade, ele sabia. Mas eram uns gatos pingados que pareciam adorar a polêmica de serem reconhecidos como gays. A política da Liberação Gay interessava Ziggy, mas os caras que ele via posando pelo campus não tinham nenhum compromisso político sério. Só gostavam de ser populares. Ziggy não tinha vergonha de ser gay, mas não queria que aquilo fosse a única coisa que as pessoas soubessem a seu respeito. Além disso, queria ser médico e suspeitava, sabiamente, que uma carreira como ativista gay não ajudaria muito na sua ambição.
Então, por enquanto, a única saída para extravasar os seus sentimentos eram os encontros casuais. Pelo que sabia, não havia nenhum pub em St. Andrews onde pudesse encontrar o que estava procurando. Mas havia alguns lugares para onde os homens iam, prontos para fazer sexo anônimo com estranhos. O problema é que esses lugares eram ao ar livre, e naquele tempo poucos iriam enfrentar o frio. Mas, mesmo assim, ele não devia ser o único rapaz em St. Andrews a fim de transar naquela noite.
Ziggy vestiu a sua jaqueta de pelo de carneiro, amarrou o cadarço das botas e saiu de encontro ao ar gelado da noite. Depois de uma caminhada vigorosa de quinze minutos, lá estava ele, nos fundos da catedral em ruínas. Atravessou o pátio, alcançando o que restara da igreja de Santa Maria. Espreitando nas sombras das paredes arruinadas, era comum ver homens por lá tentando fingir que haviam saído para dar uma voltinha que incluía um tour pela herança arquitetônica do lugar. Ziggy ergueu os ombros e tentou parecer casual.
No porto, Brian Duff estava bebendo com os amigos. Estavam entediados. E bêbados o bastante para fazer algo a respeito.
- Isso aqui está um saco - reclamou Donny, seu melhor amigo. - E a gente não tem nem grana pra ir a um lugar onde se possa passar uma noite decente.
A reclamação correu o grupo. Então Kenny teve uma ideia.
- Já sei o que a gente pode fazer. Diversão e dinheiro. E sem o risco de sermos denunciados.
- O quê? - quis saber Brian.
- Vamos roubar uns viados.
Olharam para ele como se estivesse falando grego.
- Hein? - perguntou Donny.
- Vai ser engraçado. E eles estão sempre com dinheiro. Não vão querer criar caso com a gente, né? São um bando de maricas mesmo.
- Você está sugerindo sair por aí e assaltar os outros? - perguntou Donny, deixando a preocupação transparecer em sua voz.
Kenny deu de ombros.
- Estou falando dos viados. Eles não contam. Nem vão sair correndo para a polícia, né? Porque aí vão ter que explicar o que estavam fazendo nos fundos da igreja de Santa Maria, no escuro.
- Pode ser engraçado - disse Brian, com a voz arrastada. - Fazer as bonecas se borrarem de medo. - Ele riu. - Se borrarem de medo. Isso pode ser uma má notícia para alguém. - Ele esvaziou a garrafa de cerveja e ficou de pé. - Vamos lá, então. O que vocês estão esperando?
Saíram sorrateiros pela noite, se acotovelando e rindo alto. Não precisaram caminhar muito até as ruínas da igreja. A meia-lua espreitava entre nuvens inconstantes, tornando o mar prateado e iluminando o caminho dos rapazes. À medida que se aproximavam, iam ficando em silêncio, pisando na ponta dos pés. Circularam a igreja. Nada. Esgueirando-se contra a parede, cruzaram os vestígios de uma soleira. E lá, em plena alcova, encontraram o que estavam procurando.
Um homem encostado na parede, com a cabeça jogada para trás, deixando gemidos de prazer escaparem dos seus lábios entreabertos. Diante dele, um outro homem ajoelhado, com a cabeça movimentando-se para frente e para trás.
- Ora, ora - disse Donny. - O que temos aqui?
Assustado, Ziggy levantou a cabeça e olhou, aterrorizado, para o seu pior pesadelo.
Brian Duff deu um passo à frente.
- Isso realmente vai ser divertido.
CONTINUA
Novembro de 2003; St. Andrews, Escócia
Ele sempre gostou do cemitério ao amanhecer. Não que a aurora oferecesse alguma promessa de recomeço, e sim porque era cedo demais para haver alguém por perto. Mesmo no período mais rigoroso do inverno, quando a pálida luz da manhã demorava mais para aparecer, ele podia garantir ali a sua solidão. Não havia olhares intrometidos tentando descobrir quem ele era e por que estava lá, de cabeça baixa, diante daquela sepultura específica. Não havia intrometidos questionando o seu direito de estar lá.
A jornada até ali fora longa e problemática. Mas ele era bom em levantar informações. Obsessivo, diriam alguns. Ele preferia ser chamado de persistente. Aprendera a pesquisar fontes oficiais e não oficiais e, finalmente, após meses de busca, encontrou as respostas que estava procurando. Ainda que insatisfatórias, elas ao menos lhe forneceram um ponto de partida. Para algumas pessoas, uma sepultura representa o fim. Não para ele. Para ele, era uma espécie de começo.
Sempre soubera que a sepultura não bastaria por si só. Então ele esperou, aguardando um sinal que lhe mostrasse um caminho a seguir. E o sinal finalmente apareceu. À medida que o céu mudava de cor com a aurora, tirou do bolso e desdobrou um recorte que havia extraído do jornal local.
POLÍCIA DE FIFE REABRE CASOS NÃO RESOLVIDOS
Assassinatos não solucionados em Fife, de até trinta anos atrás, serão reexaminados em uma revisão completa de casos não resolvidos, anunciou a polícia local esta semana.
O chefe de polícia, Sam Haig, afirmou que novas descobertas forenses permitem que casos que foram arquivados há anos sejam reabertos, com alguma chance de serem resolvidos com sucesso. Provas antigas, guardadas nos arquivos da polícia durante décadas, serão submetidas a métodos como análise de DNA, na esperança de novos progressos.
James Lawson, subchefe de polícia, assumirá a revisão dos casos. Ele explicou ao Courier que "casos de assassinato nunca são encerrados. Devemos às vítimas e às suas famílias o prosseguimento das investigações. Em alguns casos, tivemos fortes suspeitos na época, embora não dispuséssemos de provas suficientes para ligá-los aos crimes. Mas, com as técnicas forenses modernas, um único fio de cabelo, uma mancha de sangue ou um vestígio de sêmen podem nos fornecer tudo o que precisamos para obter uma condenação. Tivemos vários exemplos recentes na Inglaterra de casos que foram levados a julgamento, com sucesso, após vinte anos ou mais. Uma equipe de detetives veteranos fará destes casos a sua prioridade número um".
Lawson não quis revelar quais casos específicos estarão no topo da lista para os seus detetives.
Mas o trágico assassinato da adolescente Rosie Duff sem dúvida estará entre eles.
A moça de Strathkinness, de 19 anos, foi estuprada, esfaqueada e abandonada à morte em Hallow Hill, há quase 25 anos. Ninguém foi preso pelo seu brutal assassinato.
O seu irmão Brian, de 46 anos, que ainda mora na propriedade da família, Caberfeidh Cottage, e trabalha em uma fábrica de papel em Guardbridge, declarou ontem à noite: "Nunca perdemos a esperança de que o assassino de Rosie um dia fosse a julgamento. Havia suspeitos na época, mas a polícia nunca conseguiu encontrar provas suficientes para incriminá-los. Infelizmente, os meus pais morreram sem saber quem cometeu aquela atrocidade com Rosie. Mas talvez agora possamos encontrar a resposta que eles mereciam ter obtido em vida."
Podia recitar o artigo de cor, mas gostava de contemplá-lo. Era como um talismã, lembrando que a sua vida não era mais sem sentido. Durante muito tempo quisera pôr a culpa em alguém. Não ousara sequer desejar vingança. Mas agora, finalmente, era a hora de se vingar.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_ECO_DISTANTE.jpg
Parte Um
1
1978; St. Andrews, Escócia
Quatro da manhã, na época mais fria de dezembro. Quatro silhuetas imprecisas vacilavam no vai e vem da nevasca que pairava no ar, à mercê do vento nordeste, que vinha dos Urais e castigava o mar do Norte. Os oito pés cambaleantes daqueles que se autodenominavam os "Garotos de Kirkcaldy" trilhavam o caminho familiar do atalho de Hallow Hill até o Fife Park, a mais moderna das residências estudantis da Universidade de St. Andrews. Lá, as suas camas perpetuamente desfeitas os esperavam em um bocejo, lençóis e cobertores arrastando-se pelo chão, como uma língua pendurada para fora da boca.
A conversa dos rapazes repetia um tema tão habitual quanto o percurso que faziam.
- Eu estou te dizendo, Bowie é o maior - anunciava Sigmund Malkiewicz em voz alta, embaralhando as palavras, o seu rosto, normalmente impassível, desanuviado pela bebida. Um pouco atrás dele, Alex Gilbey puxava o capuz do seu agasalho para mais perto do rosto e sufocava o riso, antecipando silenciosamente a resposta que estava prestes a ouvir.
- Bobagem - retrucou Davey Kerr. - Bowie não passa de um maricas. O Pink Floyd dá de dez a zero em David Bowie. Dark Side of the Moon, isso sim é um clássico. Bowie não fez nada à altura até hoje. - Sob o peso da neve derretida, longos cachos negros caíam sobre o seu rosto delicado e ele os empurrava para trás, impaciente.
E lá iam eles. Como magos conjurando magias de combate um contra o outro, Sigmund e Davey lançavam títulos de música, letras e riffs de guitarra em um duelo que já durava uns seis ou sete anos. Pouco importava se, naquela época, era mais provável que as músicas que chacoalhavam as janelas dos seus aposentos fossem as do Clash, do Jam ou do Skids. Até mesmo os seus apelidos homenageavam as suas antigas paixões. Desde a primeira tarde em que se reuniram no quarto de Alex após as aulas para ouvir a sua nova aquisição, Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, foi inevitável que o carismático Sigmund passasse a ser Ziggy, o messias leproso, para toda a eternidade. E os outros teriam de se contentar em ser as suas Aranhas. Alex passara a ser Gilly, apesar dos seus protestos de que aquele era um apelido afeminado demais para alguém que aspirava à compleição robusta de um jogador de rúgbi. Mas era inútil discutir com o acaso do seu sobrenome. E nenhum deles teve a menor dúvida quanto a batizar o quarto membro do quarteto de Esquisito. Porque Tom Mackie era esquisito, com toda certeza. Era o mais alto dos alunos que cursavam o mesmo ano que ele e os seus membros espichados e desengonçados pareciam o resultado de uma mutação, desenvolvida para combinar com uma personalidade que gostava de ser perversa.
Sobrara apenas Davey, fiel à causa do Pink Floyd, que recusava firmemente qualquer apelido oriundo do cânone de Bowie. Durante um tempo, foi conhecido sem nenhum entusiasmo como Rosado, mas desde que os quatro ouviram pela primeira vez a música "Shine On, You Crazy Diamond", a discussão foi encerrada; Davey era um diamante louco, sem a menor sombra de dúvida, lançando fogo em direções imprevisíveis, impaciente e pouco à vontade fora do seu habitat. Diamond logo virou Mondo, e Mondo ele continuou sendo no último ano da escola e durante todo o curso universitário.
Alex balançou a cabeça, pasmo. Mesmo bêbado, ele se admirava com a cola que mantivera os quatro grudados durante todos aqueles anos. O mero pensamento provocava um bem-estar que o protegia do frio glacial, quando tropeçou em uma raiz proeminente, escondida debaixo de uma macia camada de neve. "Droga", resmungou ele, colidindo com Esquisito, que lhe deu um empurrão camarada, deixando-o estatelado no chão. Lutando para manter o equilíbrio, Alex deixou que o seu impulso o carregasse adiante e acabou dando um passo em falso e caindo declive abaixo, subitamente eufórico com a sensação da neve contra o seu rosto afogueado. Quando tentava subir de volta, sofreu uma queda tão inesperada que o chão sumiu debaixo dos seus pés. Caiu de pernas para o ar.
A sua queda foi amparada por algo macio. Alex se esforçava para se erguer, empurrando aquilo que o amparara. Cuspindo neve, esfregou os olhos com os dedos entorpecidos pelo frio, forçando o ar pelas narinas na tentativa de expelir o líquido gelado. Assim que olhou em volta para ver sobre o que havia aterrissado, os seus três companheiros surgiram na encosta para tripudiar da sua cômica desgraça.
Mesmo na lúgubre e indistinta claridade da neve, ele pôde ver que o que o amparara estava longe de ser do reino vegetal. A silhueta era, inconfundivelmente, a de um corpo humano. Os pesados flocos de neve começavam a derreter assim que aterrissavam no chão, permitindo que Alex percebesse uma figura de mulher, os cachos molhados do seu cabelo negro espalhados sobre a neve, como os de uma Medusa. A sua saia estava suspensa até a cintura e as botas negras que cobriam até os joelhos pareciam ainda mais destoantes em contraste com as suas pernas lívidas. Estranhas manchas escuras maculavam a pele da moça e a blusa que estava colada no seu peito. Alex contemplou a cena sem a compreender por um bom tempo, até olhar para as suas próprias mãos e ver as mesmas manchas escuras contaminando a sua pele.
Sangue. Aquela constatação lhe ocorreu no exato momento em que a neve que bloqueava os seus ouvidos derreteu e ele pôde ouvir a respiração ofegante da moça, fraca mas ruidosa.
- Meu Deus do Céu - gaguejou Alex, tentando afastar-se do horror com o qual havia se deparado. Mas, à medida que recuava, ia batendo no que pareciam ser pequenos muros de pedra. - Meu Deus. - Olhou para cima, desesperado, como se a mera visão dos seus companheiros pudesse quebrar aquele feitiço e fazer com que tudo desaparecesse. Voltou a olhar para aquela visão de pesadelo sobre a neve. Não era uma alucinação etílica: era real. Olhou novamente para os seus amigos. - Tem uma garota aqui embaixo - gritou ele.
A voz de Mackie Esquisito ecoou, sinistra:
- Que desgraçado sortudo.
- Para com isso, ela está sangrando.
A risada de Esquisito cortou a noite.
- Não tão sortudo assim afinal, né, Gilly?
Alex sentiu a raiva crescendo dentro dele.
- Não estou brincando, porra. Venham aqui. Ziggy, vem logo, cara.
Só então eles puderam ouvir a urgência na voz de Alex. Ziggy tomou a dianteira, como sempre, e eles o seguiram, caminhando com dificuldade pela neve até o topo da colina. Ziggy alcançou o declive correndo aos saltos, Esquisito mergulhou de cabeça na direção de Alex e Mondo veio por último, colocando um pé na frente do outro, cuidadosamente.
Esquisito acabou caindo de pernas para o ar, em cima de Alex, e os dois rolaram para cima do corpo da mulher. Debateram-se, tentando se desvencilhar um do outro, enquanto Esquisito ria como um doido.
- Ei, Gilly, isso deve ser o mais perto que você já chegou de uma mulher.
- Você fumou demais, cara - disse Ziggy, irritado, empurrando Esquisito para longe e agachando-se ao lado da mulher, buscando batimentos cardíacos no seu pescoço. Podia ouvi-los, mas eles estavam assustadoramente fracos. O medo o deixou sóbrio na mesma hora em que pôde distinguir, mesmo naquela luminosidade precária, o que tinha diante de si. Era apenas um estudante de medicina do último ano, mas sabia reconhecer um ferimento fatal.
Esquisito ficou de cócoras e franziu as sobrancelhas.
- Cara, sabe o que é isso aqui?
Ninguém estava prestando atenção, mas ele continuou assim mesmo:
- É o cemitério picto.[1] Tá vendo esses montinhos na neve, tipo uns muros pequenos? São as pedras que eles usavam como caixões. Cacete, Alex encontrou um cadáver em um cemitério. - E ele começou a rir novamente, produzindo um som estranho no ar abafado pela neve.
- Cala a porra da boca, Esquisito. - Ziggy continuava a deslizar as mãos sobre o peito da mulher, sentindo, sob os seus dedos perscrutadores, o resultado desalentador de uma ferida profunda. Jogou a cabeça para o lado, tentando examiná-la melhor. - Mondo, você está com o seu isqueiro aí?
Mondo avançou, relutante, e apanhou o seu Zippo. Acendeu o isqueiro e estendeu a luz fraca sobre o corpo da mulher, até o seu rosto. Com a mão livre cobriu a boca, tentando sem sucesso sufocar um gemido. Os seus olhos azuis se arregalaram, horrorizados, e a chama do isqueiro tremelicou em sua mão.
Ziggy respirou fundo. Os ângulos do seu rosto pareciam fantasmagóricos naquela luz trêmula.
- Merda - disse ele, ofegante. - É a Rosie, do Pub Lammas.
Alex não imaginava que fosse possível se sentir ainda pior. Mas as palavras de Ziggy foram como um soco no seu coração. Com um gemido sussurrante, ele virou de costas e vomitou na neve uma mistura de cerveja, batata chips e pão de alho.
- Nós temos que buscar ajuda - declarou Ziggy, com firmeza. - Ela ainda está viva, mas, no estado em que está, não vai continuar assim por muito tempo. Esquisito, Mondo, me deem os seus casacos. - Enquanto falava, Ziggy tirava a sua jaqueta de lã de carneiro e a colocava gentilmente em volta dos ombros de Rosie. - Gilly, você é o mais rápido. Vai buscar ajuda. Procura um telefone. Tira alguém da cama, se for preciso. Mas traz alguém aqui, ouviu? Alex?
Atordoado, Alex fez força para ficar de pé. Desceu o declive aos trancos e barrancos, sacudindo a neve abaixo dos pés, lutando para encontrar um apoio. Saiu do emaranhado das árvores e deparou-se com os postes que distinguiam o mais recente beco sem saída do alojamento novo, construído uns seis anos antes. Refazer o caminho por onde tinham vindo era o itinerário mais rápido.
Alex cobriu a cabeça e saiu em disparada, em uma corrida escorregadia até o meio da rua, tentando esquecer o que tinha visto. O que era tão impossível quanto manter o passo firme naquela neve fresca. Como aquela visão atroz entre as sepulturas pictas podia ser Rosie, do Pub Lammas? Naquela noite mesmo estiveram lá bebendo, animados e barulhentos sob o cálido brilho amarelado do bar, enchendo a cara de cerveja e aproveitando ao máximo a folga da universidade, antes que tivessem de retornar à repressão sufocante dos Natais em família, a quilômetros dali.
Ele próprio estivera conversando com Rosie, flertando com ela, daquela maneira desajeitada típica dos rapazes de vinte e um anos, incertos se ainda são garotos bobos ou homens maduros e experientes. Quis saber, não pela primeira vez, a que horas ela saía do pub. Chegou até a comentar sobre a festa para onde iam depois. Rabiscou o endereço atrás de um descanso de copo e o empurrou até ela pela mesa úmida de madeira do bar. Ela lhe deu um sorriso compassivo e apanhou o descanso de copo. Deve ter ido direto para o lixo, suspeitou Alex. O que uma mulher como Rosie iria querer com um garoto imaturo como ele, afinal? Com a sua beleza e aparência, ela podia escolher quem bem entendesse, alguém que pudesse lhe proporcionar alguma diversão, e não um estudante sem dinheiro, tentando fazer com que o pouco que tinha no bolso durasse até o seu emprego de férias, como arrumador de prateleiras no supermercado.
Então como aquela podia ser Rosie, estirada sobre a neve em Hallow Hill, banhada em sangue? Ziggy deve ter visto errado, insistia Alex para si mesmo enquanto pegava a esquerda, em direção à rua principal. Qualquer um podia se confundir sob a luz trêmula do isqueiro de Mondo. E Ziggy sequer prestara atenção na moça de cabelos negros do bar. Deixara isso para Alex e para Mondo. Devia ser alguma pobre mulher parecida com Rosie. Era isso, ele se convencia. Um engano, tudo não passava de um engano.
Alex hesitou por um momento, recuperando o fôlego e se perguntando para onde correr. Havia diversas casas nas redondezas, mas em nenhuma delas ele via alguma luz acesa. Mesmo que conseguisse acordar alguém, duvidava que fossem estar dispostos a abrir a porta para um jovem suado e cheirando a bebida no meio de uma tempestade de neve.
Foi então que ele se lembrou. Naquela hora da noite, havia sempre um carro de polícia estacionado perto da entrada principal do Jardim Botânico, a uns quinhentos metros de distância. Eles costumavam vê-los com frequência, quando voltavam cambaleantes pela madrugada, cientes do olhar enviesado do único ocupante do carro, tentando parecer sóbrios por causa dele. Era uma visão que sempre provocava um dos discursos do Esquisito sobre como a polícia era corrupta e preguiçosa. "Deviam era estar caçando os bandidos de verdade, prendendo os sujeitos de terno e gravata que roubam o nosso dinheiro, e não sentados aí, a noite inteira, com um cantil de chá e um saquinho de biscoito, torcendo para pôr as mãos em um bêbado mijando em uma cerca ou em algum idiota dirigindo em alta velocidade de volta para casa. Babacas preguiçosos." Bom, talvez hoje o desejo de Esquisito fosse realizado, em parte. Porque naquela noite o babaca preguiçoso dentro do carro iria receber mais do que merecia.
Alex virou-se na direção do Canongate e começou a correr novamente, a neve fresca estalando sobre as suas botas. Desejou ter dado continuidade aos seus treinos de rúgbi, quando uma pontada de dor tomou conta do seu flanco, transformando o seu ritmo em uma corrida torta e desengonçada, enquanto ele lutava para encher os pulmões de ar. Só mais uns dez metros, dizia para si mesmo. Não podia parar agora, quando a vida de Rosie talvez estivesse dependendo da sua velocidade. Olhou adiante, mas a neve estava caindo ainda mais pesada e ele mal podia enxergar o que tinha diante de si.
Estava perto do carro da polícia quando percebeu. Mesmo quando o alívio inundou o seu corpo suado, a apreensão apertou o seu peito. Sóbrio pelo choque e pelo esforço, Alex constatou que ele não se parecia em nada com o cidadão respeitável que normalmente denuncia um crime. Estava desgrenhado, suado, manchado de sangue e tremendo feito vara verde. De algum modo, tinha de convencer o policial, que já estava com metade do corpo para fora da patrulha, que ele não estava nem imaginando coisas, nem pregando uma peça. Estacou a alguns passos do carro, tentando não parecer uma ameaça, esperando que o motorista aparecesse.
O policial endireitou o quepe sobre o cabelo negro, bem curto. Inclinou a cabeça para um lado e examinou Alex, desconfiado. Mesmo camuflada pelo pesado casaco do uniforme, Alex podia ver a tensão no seu corpo.
- O que está acontecendo, filho? - perguntou ele. Apesar da abordagem paternal, o policial não parecia ser muito mais velho do que o próprio Alex, e possuía um ar de desconforto que não combinava nem um pouco com o seu uniforme.
Alex tentou controlar a respiração, mas não conseguiu.
- Tem uma moça lá em Hallow Hill - ele deixou escapar. - Ela foi atacada, está sangrando muito, precisa de ajuda.
O policial apertou os olhos diante da neve, franzindo a testa.
- Foi atacada? Como é que você sabe?
- Ela está ensopada em sangue. E... - Alex fez uma pausa para organizar as palavras. - Não está vestida de acordo com o clima. Está sem casaco. Escuta, será que você pode arrumar uma ambulância, um médico, qualquer coisa? Ela está muito ferida, cara.
- E você simplesmente topou com ela, no meio de uma nevasca, hein? Você andou bebendo, filho? - As palavras eram condescendentes, mas a voz o traía, deixando transparecer a sua ansiedade.
Alex sabia que aquele não era o tipo de coisa que acontecia com frequência no meio da noite, na pacata e suburbana St. Andrews. De algum jeito, precisava convencer o policial de que estava falando sério.
- É claro que eu estava bebendo - respondeu Alex, extravasando a sua frustração. - Por que eu estaria na rua numa hora dessas? Veja bem, eu e os meus amigos estávamos pegando um atalho, voltando para o nosso alojamento. Estávamos de bobeira e aí eu subi até o topo da colina, escorreguei e caí justo em cima dela. - Ele aumentou a voz, suplicante. - Por favor. Você precisa me ajudar. Ela pode morrer lá.
O policial estudou Alex pelo que pareceu uma eternidade. Então, debruçou no carro e desandou a falar pelo rádio. Enfiou a cabeça para fora da porta.
- Entre aí. Vamos até Trinity Place. É bom você não estar brincando - ele ameaçou, carrancudo.
O carro seguiu deslizando pela rua; os pneus não era adequados para a neve. Os poucos carros que passaram por ali mais cedo deixaram marcas que agora não passavam de leves depressões na branca superfície fofa da neve, testemunhas do peso dos seus flocos. O policial xingava baixinho, evitando derrapar nos postes a cada curva. Quando chegaram em Trinity Place, virou-se para Alex:
- Vamos lá, mostre-me onde está a moça.
Alex saiu em disparada, seguindo as suas pegadas que desapareciam rapidamente na neve. Ficava olhando para trás toda hora, para verificar se o policial estava atrás dele. Quase caiu de cabeça em um certo momento, os olhos demorando um pouco para se ajustarem à escuridão tremenda, onde as luzes da rua eram encobertas pelos troncos das árvores. A neve parecia lançar a sua própria luz sinistra sobre a paisagem, exagerando o tamanho dos arbustos e estreitando a trilha por onde eles avançavam.
- É por aqui - instruiu Alex, desviando para a esquerda. Uma rápida olhadela sobre os ombros confirmou que a sua companhia estava bem atrás dele.
O policial hesitou:
- Você não está mesmo drogado, filho? - perguntou, desconfiado.
- Vamos logo! - gritou Alex, com urgência, assim que viu as sombras negras acima dele. Sem esperar para ver se o policial continuava no seu encalço, Alex correu ladeira acima. Estava quase chegando quando o jovem policial o alcançou, passando na sua frente e parando a alguns passos do pequeno grupo.
Ziggy ainda estava agachado ao lado do corpo da mulher, a camisa grudada no seu tronco esguio em uma mistura de neve e suor. Esquisito e Mondo estavam ao seu lado, os braços cruzados sobre o peito, as mãos enfiadas nas axilas e as cabeças abaixadas entre os ombros levantados. Estavam apenas tentando se esquentar, na falta de um casaco, mas passavam uma infeliz imagem de arrogância.
- O que está acontecendo aqui, rapazes? - perguntou o policial. A sua voz era uma tentativa agressiva de impor autoridade, apesar de estar em desvantagem diante do grupo.
Ziggy levantou-se com dificuldade e afastou o cabelo encharcado dos olhos.
- Tarde demais. Ela está morta.
2
Nada em seus vinte e um anos de vida havia preparado Alex para um interrogatório policial no meio da noite. Os seriados de tevê e os filmes policiais sempre dão a impressão de que tudo é organizado. Mas a própria bagunça do processo era, de algum modo, ainda mais angustiante do que o rigor militar. Os quatro rapazes chegaram à delegacia em uma agitação caótica. Haviam sido escoltados às pressas do local do crime, banhados pelo pisca-pisca azulado das luzes das patrulhas e ambulâncias, e ninguém parecia saber direito o que fazer com eles.
Ficaram parados sob um poste pelo que pareceu uma eternidade, tiritando de frio, expostos ao olhar de reprovação do policial que Alex havia trazido e do seu colega, um homem grisalho de uniforme, corcunda e carrancudo. Nenhum dos dois lhes dirigiu a palavra, embora não tivessem desviado o olhar dos quatro nem por um segundo.
Finalmente, um homem com uma aparência cansada, encolhido dentro de um sobretudo que parecia uns dois números maior do que ele, deslizou até eles. Os seus sapatos tinham um solado muito fino, impróprio para o terreno.
- Lawson, Mackenzie, levem esses rapazes para a delegacia e não deixem que fiquem juntos quando chegarem lá. Daqui a pouco vamos falar com eles. - O homem se virou e pisou em falso, a caminho da terrível descoberta. Ela agora estava protegida por biombos de lona, através dos quais uma sinistra luz esverdeada se espalhava, manchando a neve.
O policial mais jovem olhou para o colega, preocupado.
- Como é que vamos levá-los para lá?
O homem deu de ombros.
- Sei lá, acho que você vai ter que espremê-los no seu carro. Eu vim com o camburão.
- Será que não dá para levar no camburão? Aí você fica vigiando enquanto eu dirijo.
O homem balançou a cabeça, prendendo os lábios.
- Você é quem sabe, Lawson. - Fez um gesto para os Garotos de Kirkcaldy. - Vocês aí, vamos. Pra dentro do camburão. E sem bagunça, entenderam? - Ele os conduziu até o carro, gritando para Lawson, por cima do ombro: - Pega as chaves com Tam Watt.
Lawson saiu em direção ao declive, deixando os rapazes com Mackenzie.
- Eu é que não queria estar na pele de vocês quando o pessoal do DIC[2] descer daquela colina - disse ele, puxando conversa despretensiosamente, enquanto andava logo atrás deles. Alex tremeu, mas não de frio. Estava começando a perceber que a polícia estava tomando ele e os seus amigos como potenciais suspeitos, e não como testemunhas. Eles ainda não tinham tido nenhuma oportunidade para trocar ideias sobre o assunto, para combinar o que iriam dizer. Trocaram olhares apreensivos. Até Esquisito já havia se aprumado e percebido que aquilo não era uma brincadeira boba.
Na hora em que Mackenzie os apressou para dentro do camburão, ficaram sozinhos por alguns segundos. Ziggy pôde então sussurrar, alto o bastante para que os outros três pudessem ouvir: "Nenhuma palavra sobre a Land Rover." Eles compreenderam imediatamente.
- Putz - suspirou Esquisito, jogando a cabeça para trás, apavorado com a lembrança. Mondo roía a pele em volta da unha do polegar, mudo. Alex apenas concordou com a cabeça.
A delegacia não parecia um ambiente mais tranquilo do que a cena do crime. O policial de plantão reclamou amargamente quando os dois policiais apareceram com quatro elementos que não deveriam se comunicar entre si. Não havia salas de interrogatório suficientes para mantê-los separados. Esquisito e Mondo tiveram de esperar em celas destrancadas, enquanto Alex e Ziggy foram deixados sozinhos nas duas únicas salas de interrogatório da delegacia.
O cômodo onde Alex fora colocado era pequeno, claustrofóbico. Era um quadrado onde não era possível dar mais do que três passos, conforme ele concluiu em poucos minutos, após ter sido trancado lá dentro para ficar esperando. Não havia janelas e o teto baixo, revestido com azulejos pardacentos de poliestireno, o tornava ainda mais opressivo. Os móveis se resumiam a uma mesa lascada de madeira e quatro cadeiras sortidas, tão desconfortáveis quanto aparentavam ser. Alex tentou todas elas, uma por uma, optando finalmente pela que menos maltratava as suas coxas.
Perguntava-se se podia fumar. A julgar pelo cheiro no ar abafado, ele não seria o primeiro. Mas era um rapaz educado e a ausência de um cinzeiro fez com que hesitasse. Revirou os bolsos e encontrou um papel amassado de bala de hortelã. Desdobrou o papel com cuidado, dobrando as pontas para formar um cinzeiro improvisado. Então, apanhou o maço e conferiu. Ainda tinha nove cigarros. "Vai dar", calculou ele.
Alex acendeu o cigarro e parou para pensar sobre a sua situação pela primeira vez desde que chegara à delegacia. Era óbvio, agora que pensava a respeito. Eles haviam encontrado o corpo. Tinham de ser suspeitos. Todo mundo sabe que os principais candidatos a serem detidos em uma investigação de homicídio são as últimas pessoas que estiveram com a vítima enquanto ela ainda estava viva ou aqueles que encontram o corpo. E eles se enquadravam duplamente.
Sacudiu a cabeça. O corpo. Estava começando a pensar como eles. Não era apenas um corpo, era Rosie. Alguém que ele conhecia, ainda que superficialmente. Imaginou que isso tornava tudo ainda mais suspeito. Mas não queria pensar nisso agora. Queria expulsar o horror da sua mente. Sempre que fechava os olhos, revia a colina em flashback, como em um filme. A bela e sexy Rosie, machucada e sangrando na neve. "Pense em outra coisa", disse ele em voz alta.
Imaginava como os outros reagiriam ao interrogatório. Esquisito estava fora de si, não havia a menor dúvida. Tomara mais do que alguns drinques naquela noite. Alex o vira com um baseado na mão mais cedo mas, em se tratando de Esquisito, era impossível saber o que mais ele havia consumido. Alex tinha visto pastilhas de ácido circulando, ele próprio as recusara algumas vezes. Não fazia nenhuma objeção às drogas, mas preferia não fritar o cérebro. Mas Esquisito estava definitivamente disposto a experimentar qualquer coisa que prometesse expandir a sua consciência. Alex esperava fervorosamente que fosse lá o que ele tivesse engolido, inalado ou cheirado, já tivesse perdido o efeito até a hora em que fosse interrogado. Caso contrário, era possível que ele deixasse os policiais realmente furiosos. E qualquer idiota sabia que isso seria uma péssima ideia em uma investigação de homicídio.
Com Mondo, eram outros quinhentos. Aquilo o deixaria transtornado de uma maneira completamente diferente. Depois que você passava a conhecê-lo melhor, via que a sua sensibilidade acentuada só o metia em encrencas. Ele sempre fora o mais perseguido na escola, chamado de maricas, em parte por causa da sua aparência, e em parte porque nunca revidava. O cabelo cacheado, as feições élficas, os olhos de safira sempre arregalados, em um susto, como um rato acuado. As garotas gostavam, disso ele tinha certeza. Alex uma vez ouvira por acaso duas meninas dando risadinhas, dizendo que Davey Kerr parecia com o vocalista do T. Rex. Mas em uma escola como Kirkcaldy High, o que rendia pontos com as meninas podia, na mesma medida, render uma surra no vestiário. Se Mondo não tivesse tido os outros três para lhe dar cobertura, teria passado por maus bocados. Para o seu mérito, ele sabia disso e recompensava o serviço dos amigos como podia. Alex jamais teria passado em Francês Avançado sem a ajuda dele.
Mas Mondo ficaria por conta própria com a polícia. Não teria ninguém atrás de quem se esconder. Alex podia imaginá-lo naquele momento, de cabeça baixa, lançando o seu típico olhar estranho por baixo das sobrancelhas, mordiscando o dedão ou abrindo e fechando o seu isqueiro Zippo. Os policiais iam ficar frustrados com ele, iam pensar que ele tinha algo a esconder. O que jamais iriam descobrir, nem em um milhão de anos, é que o grande segredo de Mondo era que, noventa e nove por cento das vezes, não havia segredo algum. Não havia nenhum mistério, oculto por um enigma. Apenas um garoto que gostava de Pink Floyd, de peixe regado a vinagre nas refeições, cerveja e sexo. E que, por mais bizarro que isso pudesse ser, falava francês como se tivesse aprendido desde o berço.
Mas naquela noite, é claro, havia um segredo. E se alguém tivesse que estragar tudo, esse alguém era Mondo. Meu Deus, por favor, faça com que ele não mencione a Land Rover, pedia Alex mentalmente. No mínimo, seriam autuados por terem pegado e dirigido o carro sem o consentimento do dono. Na pior das hipóteses, os policiais perceberiam que um, ou todos eles, dispunham do veículo perfeito para transportar o corpo da moça até uma colina sossegada.
Esquisito não contaria nada; tinha mais a perder do que os outros. Fora ele quem aparecera no Lammas, sorrindo de orelha a orelha, balançando o chaveiro de Henry Cavendish no dedo, como alguém que acabou de se dar bem em uma troca de casais.
Alex não diria nada, sabia disso. Guardar segredos era uma das coisas que ele fazia melhor. Se o preço para evitar suspeita era ficar calado, estava certo de que não teriam problemas.
Ziggy também ficaria quieto. Com ele, a segurança vinha sempre em primeiro lugar. Afinal, fora ele quem saíra de fininho da festa para remover a Land Rover, quando percebeu o quanto Esquisito estava descontrolado. Chamou Alex em um canto e disse:
- Peguei as chaves no bolso do Esquisito. Vou tirar a Land Rover daqui, pra ninguém cair em tentação. Ele já andou dando voltas no quarteirão com algumas pessoas, está mais do que na hora de dar um fim nessa história, antes que ele se mate ou mate alguém.
Alex não fazia a menor ideia de quanto tempo ele esteve fora, mas, quando voltou, Ziggy avisou que escondera o carro atrás de uma das unidades industriais de Largo Road.
- A gente pode ir buscar de manhã.
Alex deu um sorriso largo.
- Ou então a gente podia deixar lá. Um pequeno enigma para o nosso amigo Henry quando ele voltar no semestre que vem.
- Melhor não. Assim que ele perceber que o seu precioso carrinho não está estacionado onde ele deixou, é capaz de ir dar queixa na polícia e entregar a gente. E as nossas impressões digitais estão no carro todo.
Ziggy tinha razão, pensou Alex. Os Garotos de Kirkcaldy e os dois ingleses com quem dividiam a casa de seis cômodos no campus não se davam muito bem. Henry jamais acharia graça se soubesse que Esquisito apanhara o carro na sua ausência. Henry não achava graça em quase nada que os seus companheiros de alojamento achavam. Então Ziggy não contaria nada. Disso ele tinha certeza.
Mas Mondo era bem capaz de contar. Alex esperava que a advertência de Ziggy tivesse conseguido penetrar o bastante no casulo de Mondo para que ele pensasse nas consequências. Dizer aos policiais que Esquisito pegara o carro de alguém sem o seu consentimento não ia livrar a sua cara. Só prejudicaria os quatro. Além do mais, ele próprio havia dirigido o carro, para levar uma garota em casa em Guardbridge. Pelo menos uma vez na vida, pense direito, Mondo.
Agora, se alguém precisava de uma cabeça pensante, Ziggy era a pessoa mais indicada. Por trás da aparente sinceridade, o charme natural e a inteligência perspicaz, havia muito mais do que se podia imaginar. Alex e ele eram amigos havia quase dez anos e ele sentia que ainda havia muito para descobrir. Ziggy era do tipo que o surpreendia com um insight, desconcertava-o com uma pergunta e fazia com que você visse algo por um prisma totalmente novo, porque ele havia torcido o mundo como um Cubo Mágico e o visto de formas diferentes. Alex sabia uma ou duas coisas sobre Ziggy que Mondo e Esquisito ainda não sabiam. E isso porque Ziggy quis que ele soubesse, e porque Ziggy tinha certeza de que os seus segredos estariam sempre bem guardados com Alex.
Imaginou como Ziggy agiria com os seus interrogadores. Na certa estaria relaxado, calmo, à vontade. Se havia alguém capaz de convencer os policiais que o envolvimento deles com o corpo em Hallow Hill era completamente inocente, esse alguém era Ziggy.
O detetive-inspetor Barney Maclennan jogou o seu casaco úmido na primeira cadeira que viu no Departamento de Investigação Criminal. Era mais ou menos do tamanho de uma sala de aula de escola primária, maior do que eles costumavam precisar. St. Andrews não estava no topo da lista de zonas perigosas da polícia de Fife e o nível dos seus funcionários refletia isso. Maclennan era o chefe do DIC, à margem da organização, não por falta de ambição e sim porque era um fiel entusiasta daqueles recrutas, o tipo de policial metódico do qual os veteranos preferiam manter distância. Ele costumava reclamar da falta de algo interessante para mantê-lo ocupado, mas isso não significava que fosse receber de bom grado o assassinato de uma jovem na sua circunscrição.
Eles a identificaram de cara. O pub onde Rosie trabalhava era uma parada ocasional para alguns dos guardas, e o policial Jimmy Lawson, o primeiro a chegar ao local, a reconheceu imediatamente. Como a maioria dos homens presentes na cena do crime, ele parecia estar em estado de choque e nauseado. Maclennan não conseguia lembrar da última vez em que haviam tido um assassinato naquelas bandas que não tivesse sido estritamente doméstico; os policiais não haviam visto o suficiente para deixá-los acostumados à visão com a qual se depararam na colina coberta de neve. Para falar a verdade, ele próprio só havia visto duas vítimas de assassinato, mas nada tão lamentável quanto o corpo maltratado de Rosie Duff.
De acordo com o legista, tudo indicava que ela fora estuprada e esfaqueada no abdômen inferior. Um único e violento golpe, abrindo o seu caminho letal até o intestino. E ela deve ter demorado a morrer. Só de pensar nisso, Maclennan já ficava ansioso para pegar o homem responsável por aquilo tudo e encher de porrada. Nessas horas, a lei parecia mais um obstáculo para se alcançar a justiça do que uma ajuda.
Maclennan suspirou e acendeu um cigarro. Sentado à mesa, anotava o pouco de informação que conseguira levantar até o momento. Rosemary Duff. Dezenove anos. Trabalhava no Pub Lammas. Morava em Strathkinness com os pais e os dois irmãos mais velhos. Os irmãos trabalhavam em uma fábrica de papel em Guardbridge, o pai era zelador no Craigtoun Park. Maclennan não queria estar na pele do detetive Iain Shaw e da policial que fora junto com ele até a cidade para dar a notícia à família. Ele próprio teria que conversar com eles mais tarde, sabia disso. Mas por ora estava mais ocupado tentando dar prosseguimento à investigação. E não se podia dizer que tivessem detetives de sobra com experiência para conduzir uma investigação daquele porte. Se eles pretendiam lutar para não serem deixados de fora pelos peixes grandes do quartel-general, Maclennan tinha de mostrar serviço o quanto antes.
Olhou impaciente para o relógio. Precisava de um outro policial presente antes de começar a interrogar os quatro estudantes que diziam ter encontrado o corpo. Tinha pedido ao detetive Allan Burnside que voltasse para a delegacia o mais rápido possível, mas ainda não havia sinal dele. Maclennan suspirou. Estava cercado de incompetentes.
Deslizou os pés para fora dos sapatos úmidos e virou para poder apoiá-los no aquecedor. Deus, aquela era uma noite e tanto para dar início a uma investigação de homicídio. A neve transformara a cena do crime em um pesadelo, mascarando as provas, tornando tudo cem vezes mais difícil. Quem poderia distinguir os vestígios deixados pelo assassino dos deixados pelas testemunhas? Isso supondo, é claro, que não se tratava da mesma pessoa. Esfregando os olhos para tentar manter-se acordado, Maclennan considerava qual estratégia iria adotar nos interrogatórios.
Tendo em vista o que apurara até ali, tudo indicava que ele devia conversar primeiro com o rapaz que havia encontrado o corpo. Fortão, ombros largos, era difícil conseguir ver o seu rosto direito dentro do enorme capuz do casaco. Maclennan inclinou-se para trás para conferir as suas anotações. Alex Gilbey, sim, era esse mesmo. Mas ele estava com uma intuição esquisita a respeito dele. Não que tivesse se mostrado exatamente evasivo; apenas não havia olhado Maclennan com o tipo de sinceridade piedosa que a maioria dos rapazes na sua situação teria demonstrado. E ele certamente aparentava ser forte o bastante para carregar o corpo sem vida de Rosie até a sossegada colina em Hallow Hill. Talvez a coisa fosse mais complicada do que ele supunha. E não seria a primeira vez que um assassino forjava a descoberta do corpo da vítima para justificar a sua presença no local. Estava decidido a deixar o jovem Sr. Gilbey mofando um pouquinho mais.
O plantonista havia lhe dito que a outra sala de interrogatório estava sendo ocupada pelo estudante de medicina com nome polonês. Ele era o tal que afirmara categoricamente que Rosie ainda estava viva quando eles a encontraram. Alegara ter feito tudo o que podia para mantê-la com vida. Ele parecia estar bastante calmo diante das circunstâncias, mais calmo do que Maclennan teria estado. Pensou que poderia começar com ele. Assim que Burnside desse as caras.
A sala de interrogatório que abrigava Ziggy era o dobro da de Alex. De algum modo, Ziggy parecia confortável lá dentro. Estava largado na cadeira, meio encostado na parede, o olhar fixo no meio da sala. Estava tão exausto que poderia ter caído no sono facilmente, mas, cada vez que fechava os olhos, a imagem do corpo de Rosie voltava bem nítida à sua mente. Nenhum estudo teórico de medicina poderia ter preparado Ziggy para a realidade brutal de um ser humano tão gratuitamente destruído. Ele simplesmente não soubera o bastante para ajudar Rosie quando ela mais precisara, e isso o deixava mortificado. Sabia que devia ter compaixão pela moça assassinada, mas a frustração não deixava espaço para mais nenhum sentimento. Nem mesmo o medo.
Mas Ziggy era esperto o suficiente para saber que deveria ter medo. O sangue de Rosie Duff manchara toda a sua roupa, acumulara-se debaixo das unhas. Talvez até mesmo no cabelo; lembrou-se de ter jogado a franja molhada para trás enquanto tentava desesperadamente descobrir de onde vinha o sangramento. Tudo poderia ser explicado, desde que a polícia acreditasse na sua história. Mas também não tinha nenhum álibi, graças às noções distorcidas de Esquisito do que era diversão. Não poderia deixar que a polícia encontrasse o melhor veículo possível para se dirigir em uma nevasca com as suas impressões digitais por toda parte. Ziggy costumava ser muito cauteloso, mas agora a sua vida poderia ser destruída por causa de uma única palavra descuidada. Era melhor nem pensar nisso.
Sentiu uma espécie de alívio quando a porta abriu e os dois policiais entraram na cela. Ele reconheceu o sujeito que dera a ordem de trazê-los para a delegacia. Despido do gigantesco sobretudo, ele era um fiapo de homem, com o cabelo pardacento um pouco mais comprido do que estava na moda. A barba por fazer indicava que ele fora tirado da cama no meio da noite, embora a camisa branca impecável e o terno elegante dessem a impressão de terem saído direto do cabide da tinturaria. Sentou na cadeira à frente de Ziggy e disse:
- Eu sou o detetive-inspetor Maclennan e este é o detetive de polícia Burnside. Precisamos ter uma conversinha com você sobre o que aconteceu esta noite. - Ele fez um gesto na direção de Burnside. - O meu colega aqui irá fazer algumas anotações e depois vamos preparar um depoimento para você assinar.
Ziggy concordou.
- Tudo bem. Pode perguntar. - Endireitou-se na cadeira. - Seria possível me arrumar uma xícara de chá?
Maclennan virou-se para Burnside e fez um gesto afirmativo. Burnside levantou-se e saiu da sala. Maclennan encostou-se na cadeira e observou a sua testemunha. Curioso como os cortes de cabelo típicos da década de 60 estavam novamente na moda. O rapaz de cabelo escuro sentado à sua frente passaria tranquilamente por um dos integrantes da banda Small Faces, uns dez anos antes. Ele não parecia polonês para Maclennan. Tinha a pele clara e as bochechas avermelhadas típicas de um escocês nascido em Fife, embora os olhos castanhos não fossem muito comuns entre eles. Maçãs do rosto bem largas davam ao seu rosto um ar bem-acabado e exótico. Um pouco parecido com o daquele bailarino russo, Rudolph Nãoseiquê, ou seja lá qual for o seu nome.
Burnside voltou quase imediatamente.
- Já está vindo - avisou ele, sentando-se e pegando a sua caneta.
Maclennan apoiou os antebraços na mesa e entrelaçou os dedos.
- Vamos começar com os dados pessoais.
Avançaram rapidamente pelas preliminares e então o detetive disse:
- Uma verdadeira tragédia. Você deve estar muito abalado.
Ziggy começou a sentir-se preso na terra dos clichês.
- Podes crer.
- Quero que me conte, com as suas próprias palavras, o que aconteceu hoje à noite.
Ziggy limpou a garganta.
- Estávamos voltando para o Fife Park...
Maclennan o interrompeu, levantando a mão aberta no ar.
- Vamos retroceder um pouco mais. Quero a história desde o começo da noite, ok?
Ziggy sentiu um aperto no peito. Tinha a esperança de não ter de mencionar a parada que haviam feito no Lammas no início da noite.
- Ok. Nós quatro moramos no mesmo alojamento no Fife Park, então normalmente jantamos juntos. Hoje era a minha vez de cozinhar. Comemos ovo, batata e feijão e lá pelas nove horas fomos para a cidade. Íamos a uma festa mais tarde e estávamos a fim de tomar umas cervejas antes. - Ele fez uma pausa para se assegurar de que Burnside estava conseguindo anotar tudo.
- Aonde foram beber?
- No Lammas. - As palavras pairaram no ar entre eles.
Maclennan não teve nenhuma reação, embora tivesse sentido o coração acelerar.
- Vocês costumam beber lá?
- Quase sempre. A cerveja é barata e eles não têm nada contra os estudantes, ao contrário de uns outros lugares por aí.
- Então você viu Rosie Duff? A moça assassinada?
Ziggy deu de ombros.
- Não prestei muita atenção nela, não.
- O quê? Uma garota bonita como aquela e você não prestou atenção?
- Não foi ela quem me serviu quando estava na minha vez de buscar as cervejas.
- Mas você já deve ter falado com ela antes, não?
Ziggy respirou fundo.
- Como eu disse, nunca prestei atenção nela. Passar cantadas em garçonetes não é a minha praia.
- Não está à sua altura, não é? - Maclennan disse, carrancudo.
- Não sou nenhum esnobe, inspetor. A minha família mora em uma casa popular. Só não curto essa de ficar bancando o machão pelos bares da vida, ok? Eu a conhecia de vista, sim, mas o meu papo com ela nunca foi além de "Quatro chopes, por favor".
- Algum dos seus amigos estava de olho nela?
- Não que eu tenha notado. - A indiferença de Ziggy ocultava uma súbita cautela com o rumo que o interrogatório estava tomando.
- Bom, então vocês tomaram umas cervejas no Lammas. E aí?
- Como eu disse, fomos para uma festa, na casa de um aluno de Matemática do terceiro ano, chamado Pete, conhecido do Tom Mackie. Ele mora em St. Andrews, em Learmonth Gardens. Não sei o número da casa. Os pais estavam viajando e ele resolveu dar uma festa. Chegamos por volta de meia-noite e já eram quase quatro da manhã quando saímos de lá.
- Vocês ficaram juntos na festa?
Ziggy achou graça.
- O senhor já foi a uma festa dessas, inspetor? Então sabe como a coisa funciona. Você chega com o pessoal, pega uma cerveja e todo mundo some. Então, quando a festa já deu o que tinha que dar, você vê quem ainda está de pé, recolhe todo mundo e vai embora trocando as pernas. O bom pastor, esse sou eu. - Ele deu um sorriso irônico.
- Quer dizer então que vocês quatro chegaram juntos e foram embora juntos, mas você não tem ideia do que os outros fizeram nesse meio-tempo?
- É mais ou menos por aí.
- Você pode garantir que nenhum deles saiu e voltou depois?
Se Maclennan esperava alarmar Ziggy, ficou decepcionado. Ele apenas entortou a cabeça para o lado, pensativo.
- Provavelmente não, acho que não - admitiu ele. - Eu passei a maior parte do tempo na estufa, nos fundos da casa. Eu e uns ingleses. Sinto muito, não me lembro dos nomes. Estávamos conversando sobre música, política, coisas assim. A coisa ficou feia quando começamos a falar sobre a independência da Escócia, como vocês podem imaginar. Circulei algumas vezes, para buscar cerveja, fui até a sala de jantar arrumar alguma coisa para comer, mas não, não estava sendo o guardião dos meus irmãos.
- Vocês costumam voltar sempre juntos? - Maclennan não sabia direito aonde queria chegar com aquilo, mas sentia que aquela era a pergunta certa.
- Depende de alguém conseguir se dar bem.
Ele está definitivamente na defensiva agora, pensou o policial.
- E isso acontece com frequência?
- Às vezes. - Ziggy deu um sorriso um pouco forçado. - Somos rapazes saudáveis, cheios de vigor, sabe?
- E acabam sempre voltando para casa juntinhos? Muito aconchegante.
- Não sei se você sabe, inspetor, mas nem todos os estudantes são obcecados por sexo. Alguns de nós têm consciência do quanto temos sorte de estarmos aqui e não queremos colocar tudo a perder.
- Por isso vocês preferem a companhia uns dos outros? Lá na minha terra, as pessoas iam achar que vocês são bichas.
Ziggy perdeu a compostura por um momento.
- E se fôssemos? Não é contra a lei.
- Depende do que você está fazendo e com quem está fazendo - respondeu Maclennan, desistindo de qualquer pretensão de amabilidade.
- Vem cá, o que isso tudo tem a ver com o fato de termos encontrado o corpo de uma garota? - perguntou Ziggy, inclinando-se para a frente. - O que o senhor está tentando dizer? Que nós somos gays, por isso estupramos e matamos a moça?
- Você é quem está dizendo. Todo mundo sabe que alguns homossexuais odeiam as mulheres.
Ziggy balançou a cabeça, custando a acreditar.
- Todo mundo quem? Os preconceituosos e os ignorantes? Escuta aqui, só porque Alex, Tom e Davey saíram da festa comigo não quer dizer que eles são gays, entendeu? Eles poderiam te dar uma lista com o nome de garotas que provariam como o senhor está enganado.
- E você, Sigmund? Poderia fazer o mesmo?
Ziggy tentou ficar imóvel, desejando que o seu corpo não o traísse. Havia uma diferença enorme, do tamanho da Escócia, entre não ser contra a lei e ser aceito. Havia chegado a um ponto no qual a verdade não seria sua amiga.
- Será que dá para voltar ao que interessa aqui, inspetor? Eu saí da festa por volta das quatro da manhã com os meus três amigos. Descemos a Learmonth Place, viramos à esquerda na Canongate e seguimos pela Trinity Place. Hallow Hill é um atalho para o Fife Park...
- Você viu alguém no caminho até a colina? - interrompeu Maclennan.
- Não. Mas a visibilidade não estava lá essas coisas, por causa da neve. Enfim, estávamos andando pela trilha de pedestres lá embaixo, quando Alex começou a correr colina acima. Sei lá por quê, eu estava na frente e não vi o que deu nele. Quando ele chegou lá em cima, tropeçou e caiu em um buraco. Aí ele começou a gritar para que a gente fosse até lá, que tinha uma moça ensanguentada lá embaixo. - Ziggy fechou os olhos, mas tornou a abri-los imediatamente, assim que a imagem da moça morta surgiu mais uma vez diante dele. - Subimos até lá e vimos Rosie caída na neve. Senti o pulso dela, pra checar os batimentos cardíacos. Estavam muito fracos, mas estavam lá. O sangramento parecia vir do abdômen, um corte bem profundo, me pareceu. Talvez uns oito ou dez centímetros. Pedi pro Alex ir buscar ajuda, para chamar a polícia. Cobrimos a moça com os nossos casacos e eu tentei estancar a hemorragia. Mas já era tarde demais. Os órgãos internos já estavam comprometidos, muita perda de sangue. Ela morreu alguns minutos depois. - Ziggy exalou longamente. - Eu não pude fazer nada.
Até mesmo Maclennan ficou momentaneamente em silêncio com a intensidade das palavras de Ziggy. Ele olhou de soslaio para Burnside, que escrevia freneticamente.
- Por que pediu a Alex Gilbey que fosse buscar ajuda?
- Porque ele estava mais sóbrio do que Tom. E Davey costuma se descontrolar em momentos de crise.
Fazia todo o sentido. Era quase perfeito demais. Maclennan arrastou a cadeira para trás.
- Um dos meus oficiais irá levá-lo para casa, Sr. Malkiewicz. Vamos precisar das roupas que está usando, para a análise forense. E das suas digitais, para fins eliminatórios. E vamos ter de conversar novamente depois.
Havia outras coisas que Maclennan desejava saber sobre Sigmund Malkiewicz. Mas isso podia esperar. A sua sensação de desconforto em relação àqueles quatro rapazes crescia a cada minuto. Precisava começar a pressioná-los. E tinha a impressão de que o tal que se descontrolava em momentos de crise ia ser o primeiro a ceder.
3
A poesia de Baudelaire parecia estar funcionando. Encolhido em posição fetal sobre um colchão tão duro que mal merecia o nome, Mondo recitava As Flores do Mal mentalmente. Os poemas pareciam ironicamente adequados diante dos acontecimentos daquela noite. O fluxo musical do francês o acalmava, dissipando a realidade da morte de Rosie Duff e da cela de polícia para a qual o haviam trazido. Era algo transcendental, que o elevava acima do seu próprio corpo e o conduzia para um lugar onde a sequência serena de sílabas era tudo o que cabia na sua consciência. Ele não queria ter de lidar com morte, culpa, medo ou suspeita.
O seu esconderijo foi pelos ares abruptamente quando a porta da cela se abriu em um solavanco. O policial Jimmy Lawson agigantou-se diante dele.
- De pé, filho. Eles querem falar com você.
Mondo deu um passo hesitante para trás, afastando-se do jovem policial que de salvador se tornara carrasco.
O sorriso de Lawson estava longe de ser confortante.
- Não vá se borrar todo aqui. Vamos lá, coragem. O inspetor Maclennan não gosta que o deixem esperando.
Mondo se levantou lentamente e seguiu Lawson para fora da cela, que dava para um corredor extremamente iluminado. Era tudo claro demais, exposto demais para o seu gosto. Ele realmente não gostava daquele lugar.
Lawson dobrou o corredor e abriu uma porta. Mondo hesitou no umbral. Sentado à mesa estava o homem que já havia visto em Hallow Hill. Ele parecia franzino demais para ser um policial, pensou Mondo.
- Sr. Kerr, certo? - perguntou ele.
Mondo concordou com a cabeça.
- Sim - disse ele. O som da sua própria voz deixou-o surpreso.
- Pode entrar e sentar aí. Eu sou o detetive-inspetor Maclennan, e esse é o detetive Burnside.
Mondo sentou-se diante dos dois homens, olhando fixamente para o tampo da mesa. Burnside executou os procedimentos de praxe com uma educação que surpreendeu Mondo, que estava esperando algo na linha dos seriados de tevê: gritaria e arrogância, policiais bancando os machões.
Quando Maclennan assumiu o interrogatório, um tom de rispidez passou a fazer parte da conversa.
- Então você conhecia Rosie Duff - afirmou ele.
- Conhecia. - Mondo ainda não conseguia levantar os olhos. - Quer dizer, eu sabia que ela era garçonete do Lammas - ele acrescentou, quebrando o silêncio que se instalara entre eles.
- Era uma moça bonita - comentou Maclennan. Mondo não respondeu. - Você deve pelo menos ter reparado isso.
Mondo deu de ombros.
- Nunca parei pra pensar nela.
- Não era o seu tipo?
Mondo levantou a cabeça, os lábios suspensos em um meio sorriso no canto da boca.
- Acho que eu não era o tipo dela. Ela nunca prestou atenção em mim. Estava sempre mais interessada em outros caras. Eu sempre mofava até ser atendido no Lammas.
- Isso deve ter te deixado chateado.
Os olhos de Mondo encheram-se de pânico. Começava a perceber que Maclennan era mais astuto do que ele imaginava que um policial pudesse ser. Ele ia ter que ficar esperto, teria de ser sagaz.
- Pra falar a verdade, não. Quando a gente estava com pressa, eu costumava mandar o Gilly no meu lugar.
- Gilly? Você está falando do Alex Gilbey, certo?
Mondo concordou, abaixando novamente os olhos. Não queria que aquele homem percebesse nenhuma das emoções que se agitavam dentro dele. Morte, culpa, medo, suspeita. Queria desesperadamente ir embora, sair daquela delegacia, se desligar daquele caso. Não queria prejudicar ninguém, mas não aguentava mais aquilo. Sabia que não aguentava mais aquilo e não queria acabar agindo de uma maneira que o fizesse parecer suspeito ou culpado aos olhos dos policiais. Porque não era dele que deveriam estar desconfiando. Nunca passara uma cantada em Rosie Duff, por mais que tivesse tido vontade. Não tinha roubado a Land Rover. Tudo o que fez foi levar uma garota pra casa até Guardbridge. Não tinha encontrado nenhum corpo na neve. Isso era responsabilidade de Alex. Graças aos outros três, estava no meio daquela merda toda. Se para garantir a sua proteção ele tivesse de desviar o olhar dos policiais para outro lugar, bem, Alex jamais ficaria sabendo. E mesmo que soubesse, Mondo tinha certeza de que ele o perdoaria.
- Então ela gostava do Gilly, hein? - Maclennan era implacável.
- Não faço ideia. Pelo que sei, ele era apenas mais um freguês pra ela.
- Mas um freguês que ela notava mais do que a você.
- Sim, mas isso não o torna exatamente especial.
- Você está dizendo que Rosie era chegada a um flerte?
Mondo balançou a cabeça, impaciente consigo mesmo.
- Não. De jeito nenhum. Era o trabalho dela, só isso. Ela atendia no pub, tinha que ser simpática com as pessoas.
- Mas não era simpática com você.
Mondo puxava nervosamente os cachos que caíam em volta das suas orelhas.
- O senhor está distorcendo tudo. Ela não significava nada pra mim, nem eu pra ela. Agora, será que posso ir embora, por favor?
- Ainda não, Sr. Kerr. De quem foi a ideia de voltar por Hallow Hill?
Mondo franziu a testa.
- Não foi ideia de ninguém. Esse é o caminho mais rápido de onde a gente estava até o Fife Park. Sempre voltamos por esse caminho. Não paramos pra pensar sobre isso.
- E alguma vez sentiram-se tentados a subir até o cemitério picto?
Mondo fez que não com a cabeça.
- Sabíamos que ele existia, fomos dar uma olhada na época em que estavam escavando. Assim como a metade da população de St. Andrews. Não quer dizer que somos desequilibrados.
- Eu não disse isso. Mas nunca fizeram uma parada lá, voltando para o alojamento?
- Por que faríamos isso?
Maclennan deu de ombros.
- Sei lá. Brincadeiras bobas de moleques. Talvez vocês tenham assistido Carrie, a Estranha muitas vezes.
Mondo puxou uma mecha do cabelo. Morte, culpa, medo, suspeita.
- Não curto filmes de terror. Olha, inspetor, o senhor está entendendo tudo errado. Somos apenas quatro caras comuns que tiveram o azar de encontrar algo incomum. Nada mais, nada menos. - Abriu os braços em um gesto amplo, torcendo para estar convincente. - Eu sinto muito pelo que aconteceu com a garota, mas não tenho nada a ver com isso.
Maclennan encostou-se na cadeira.
- Isso é o que você diz.
Mondo ficou quieto, apenas soltando o ar em um longo suspiro de frustração.
- E quanto à festa? Conte exatamente o que você fez por lá.
Mondo contorceu-se na cadeira, o seu desejo de ir embora óbvio em cada músculo do seu corpo. Será que a garota ia abrir o bico? Duvidava muito. Ela teve que entrar em casa de fininho, o seu horário de voltar já havia passado há horas. E não era aluna da universidade, não conhecia quase ninguém de lá. Com um pouco de sorte, jamais seria citada, jamais seria interrogada.
- Escuta, qual o seu interesse nisso? Acabamos de encontrar um corpo, sabia?
- Temos que considerar todas as possibilidades.
Mondo deu um sorriso debochado.
- Apenas fazendo o seu trabalho, né? Bem, está perdendo tempo se acha que estamos envolvidos com o que aconteceu com ela.
Maclennan deu de ombros.
- Mesmo assim, gostaria de saber sobre a festa.
Com o estômago revirando, Mondo produziu uma versão editada da festa, torcendo para que colasse.
- Não sei. É difícil lembrar de todos os detalhes. Um pouco depois de termos chegado na festa, comecei a dar em cima de uma garota. O nome dela era Marg. Morava em Elgin. Dançamos um pouco e eu achei que ia rolar, sabe? - Mondo ficou subitamente triste. - Aí o namorado dela apareceu. Ela não tinha falado nada de namorado pra mim. Fiquei um pouco chateado, aí tomei mais umas cervejas e fui lá pra cima. Lá em cima tinha um cômodo bem pequeno, tipo uma despensa, com uma escrivaninha e uma cadeira. Fiquei sentado lá um pouco, meio triste. Não muito, foi só o tempo de beber uma latinha. Aí desci de novo e fiquei de bobeira, perambulando pela casa. Ziggy estava na estufa, fazendo o seu discurso sobre a Declaração de Independência pra uns ingleses, então eu saí fora. Já ouvi isso umas mil vezes. Não notei mais ninguém que valesse a pena. A festa estava meio fraca em termos de mulheres bonitas e as únicas que apareceram por lá já estavam acompanhadas, então fiquei só de bobeira. Pra falar a verdade, eu já estava na pilha de ir embora muito antes de a gente resolver voltar pra casa.
- Mas você não sugeriu isso?
- Não.
- Por que não? Não tem opinião própria?
Mondo lançou um olhar de ódio. Não era a primeira vez que era acusado de seguir os outros, como um carneirinho idiota.
- Claro que tenho. Só estava sem saco, ok?
- Tudo bem - disse Maclennan. - Vamos verificar a sua história. Você pode ir para casa agora. Mas vamos precisar das roupas que você está vestindo. Vou mandar um policial te acompanhar até em casa e recolher as suas roupas. - Quando ele se levantou, as pernas da cadeira arranhando o chão produziram um som estridente que deu nos nervos de Mondo. - Voltaremos a nos encontrar, Sr. Kerr.
A policial Janice Hogg fechou a porta do carro tentando fazer o mínimo de barulho possível. Não era preciso acordar toda a vizinhança, eles ficariam sabendo em breve mesmo. Encolheu-se num susto quando o detetive Iain Shaw bateu a porta do lado do motorista sem pensar duas vezes, lançando um olhar feroz para a parte de trás da sua cabeça calva. Ele tinha apenas vinte e cinco anos e já estava ficando careca, constatou ela com uma pontada de prazer convencido. E ainda se considerava um partidão.
Como se o teor dos pensamentos de Janice tivesse penetrado o seu cérebro, Shaw virou para trás e fez uma cara feia.
- Vamos logo, anda. Vamos nos livrar logo disso.
Janice deu uma olhada no chalé enquanto Shaw abria o portão de madeira e avançou rapidamente pela pequena trilha que os separava da casa. Era típica daquela área; uma construção baixa com duas janelas de mansarda inseridas acima do teto e abaixo do telhado curvo com espigões salientes cobertos de neve. Uma pequena varanda encaixada entre as janelas do primeiro andar, o revestimento pintado com uma cor escura difícil de ser identificada apenas com a luz precária oriunda dos postes de luz. Parecia bem-cuidada, concluiu ela, imaginando qual daqueles quartos havia sido o de Rosie.
Expulsou aquele pensamento da sua mente enquanto se preparava para a penosa tarefa que estava prestes a cumprir. Era mandada para dar as más notícias mais vezes do que merecia. Devia ser porque era mulher. Ficou de prontidão, enquanto Shaw batia na porta com a pesada argola de ferro. A princípio, nenhum sinal de resposta. Então uma luz fraca se acendeu por trás das cortinas na janela à direita do andar de baixo. Eles viram a mão de alguém puxando a cortina para o lado e depois um rosto, iluminado pela metade. Um homem de meia-idade com o cabelo grisalho despenteado olhava para eles, pasmo e boquiaberto.
Shaw apanhou o seu distintivo e mostrou a ele. Aquele gesto era inconfundível. A cortina voltou a se fechar. Alguns segundos depois, a porta da frente se abriu e o homem apareceu, amarrando na cintura a faixa de um grosso robe de lã. A barra da calça do pijama encobria quase totalmente os seus chinelos de xadrez escocês desbotado.
- O que está acontecendo aqui? - perguntou ele, disfarçando mal a sua apreensão por trás da agressividade.
- Sr. Duff? - confirmou Shaw.
- Sim, sou eu. O que vocês estão fazendo na minha porta a esta hora?
- Eu sou o detetive de polícia Shaw e esta é a policial Hogg. Podemos entrar, Sr. Duff? Precisamos conversar com o senhor.
- O que aqueles dois aprontaram? - Ele abriu espaço e fez sinal para que eles entrassem. A porta interna dava para a sala de estar. Um conjunto de três sofás estofados de camurça marrom formava uma espécie de fortaleza para abrigar o maior aparelho de tevê que Janice já tinha visto na vida. - Sentem-se - disse ele.
Quando se encaminhavam para o sofá, Eileen Duff surgiu na soleira da porta, do outro lado da sala.
- O que está acontecendo, Archie? - quis saber ela. O seu rosto estava limpo, sem maquiagem e untado de creme, a cabeça coberta por um lenço bege de chiffon para proteger o cabelo recém-arrumado no salão. O seu quimono acolchoado de náilon estava abotoado errado.
- É a polícia - explicou o marido.
Os olhos dela arregalaram-se de ansiedade.
- O que aconteceu?
- A senhora pode vir sentar-se conosco, Sra. Duff? - perguntou Janice, indo na direção da mulher e dando-lhe o braço. Ela a conduziu até o sofá e fez um gesto para que o marido sentasse ao seu lado.
- É notícia ruim, aposto - sentenciou a mulher, aflita, agarrando o braço do marido. Archie Duff mantinha o seu olhar fixo e impassível na tela desligada da tevê, os lábios contraídos.
- Sinto muito, Sra. Duff. Mas receio que a senhora esteja certa. Temos péssimas notícias para vocês. - Shaw estava parado, sem jeito, a cabeça um pouco baixa e os olhos fixos nos redemoinhos multicoloridos do carpete.
A Sra. Duff deu um empurrão no marido.
- Eu te disse pra não deixar Brian comprar aquela moto! Eu disse!
Shaw lançou um olhar suplicante para Janice. Ela se aproximou do casal e disse gentilmente:
- Não foi o Brian. Foi a Rosie.
A Sra. Duff choramingou.
- Não pode ser - protestou ela.
Janice lutou para continuar.
- Hoje à noite, um pouco mais cedo, o corpo de uma jovem foi encontrado em Hallow Hill.
- Deve ser algum engano - contemporizou Archie Duff, teimoso.
- Infelizmente, não. Alguns dos policiais presentes na cena do crime reconheceram Rosie. Eles a conheciam do Lammas. Sinto muitíssimo em ter de lhes dizer que a filha de vocês está morta.
Janice já havia soltado essa bomba muitas vezes e sabia que das duas uma: ou a pessoa negava o acontecido, como Archie Duff, ou uma dor pungente atingia os familiares como uma poderosa força da natureza. Eileen Duff jogou a cabeça para trás e urrou aos céus a sua dor, as mãos crispadas contorcendo-se no seu colo, o corpo inteiro possuído pela angústia. O marido olhava para ela como se não a reconhecesse, as sobrancelhas cerradas, recusando-se firmemente a aceitar o que estava acontecendo.
Janice ficou parada, deixando a primeira onda quebrar sobre ela, pronta para um eventual resgate. Shaw trocava o peso do corpo de uma perna para a outra, sem saber o que dizer.
De repente, ouviram passos pesados na escada que desembocava no canto da sala. Surgiram pernas cobertas por uma calça de pijama, seguidas por um peito nu e finalmente um rosto de sono, coroado por um topete negro de cabelos despenteados. O rapaz parou a alguns passos do chão e examinou a cena.
- Que diabos está acontecendo aqui? - resmungou ele.
Sem virar a cabeça, Archie disse:
- A sua irmã está morta, Colin.
Colin Duff estava boquiaberto.
- O quê?
Janice acudiu novamente.
- Sinto muito, Colin. Mas o corpo da sua irmã foi encontrado ainda há pouco.
- Onde? O que aconteceu? Como assim, o corpo dela foi encontrado? - À medida que ia atropelando as palavras, as suas pernas iam cedendo e ele desmoronou nos últimos degraus da escada.
- Ela foi encontrada em Hallow Hill. - Janice suspirou fundo. - Achamos que Rosie foi assassinada.
Colin afundou a cabeça entre as mãos.
- Oh, Deus! Deus! - murmurava ele sem parar.
Shaw inclinou-se diante deles.
- Vamos ter de lhe fazer algumas perguntas, Sr. Duff. Será que podemos ir até a cozinha?
O primeiro ataque de desespero de Eileen estava passando. Ela parou de chorar e voltou o seu rosto marcado pelas lágrimas para Archie.
- Espera aí. Eu não sou nenhuma criança que precisa ser preservada da verdade - arquejou ela.
- Vocês têm um conhaque? - perguntou Janice. Archie não teve nenhuma reação. - Ou um uísque?
Colin levantou-se aos tropeções.
- Temos uma garrafa na copa. Eu vou buscar.
Eileen voltou os olhos inchados para Janice.
- O que aconteceu com a minha filhinha?
- Ainda não sabemos direito. Parece que ela foi esfaqueada. Mas vamos ter de esperar o médico-legista examiná-la, até termos certeza.
Enquanto ela falava, Eileen se encolheu, como se ela própria tivesse sido golpeada.
- Quem faria uma coisa dessas com Rosie? Logo ela, que não fazia mal a uma mosca.
- Ainda não sabemos - acudiu Shaw. - Mas vamos encontrá-lo, Sra. Duff. Eu sei que este é o pior momento do mundo para fazer perguntas, mas quanto mais rápido obtivermos as informações necessárias, mais rápido vai ser o nosso progresso.
- Posso vê-la? - perguntou Eileen.
- Vamos providenciar isso mais tarde - disse Janice. Ela agachou-se ao lado de Eileen e colocou a mão no seu braço. - Rosie costumava voltar para casa a que horas?
Colin saiu da cozinha trazendo uma garrafa de uísque e três copos.
- O Lammas só aceita pedidos até as dez e meia. Ela normalmente chegava lá pras onze e quinze. - Ele colocou os copos na mesa de centro e serviu três porções generosas.
- Mas às vezes ela chegava mais tarde? - perguntou Shaw.
Colin entregou os copos de uísque aos pais. Archie bebeu metade, de um gole só. Eileen segurou o copo, mas não o levou aos lábios.
- Chegava, se tivesse uma festa pra ir ou algo assim.
- E ontem à noite?
Colin bebeu mais um pouco.
- Não sei. Mãe, ela disse alguma coisa pra você?
Eileen olhou para ele, confusa e perdida.
- Ela me disse que ia encontrar uns amigos. Não disse quem, e eu não perguntei. Ela tem direito a privacidade. - Havia um tom defensivo na sua voz e Janice deduziu que aquilo deve ter sido um motivo de discórdia, provavelmente com Archie.
- Como ela costumava voltar para casa? - perguntou Janice.
- Se eu ou Brian estivéssemos na cidade, a gente passava no pub e dava uma carona pra ela. Tinha uma outra garçonete que trabalhava no mesmo turno, a Maureen, que às vezes a trazia pra casa. Quando ela não conseguia nenhuma carona, pegava um táxi.
- Cadê Brian? - perguntou Eileen, de repente, querendo reunir os filhos debaixo da sua asa.
Colin deu de ombros.
- Ele ainda não chegou, não. Deve ter ficado lá na cidade.
- Ele tinha que estar aqui. Não quero que ele receba a notícia por estranhos.
- Ele vai voltar pro café da manhã. - Archie respondeu, áspero. - Precisa se arrumar pra ir trabalhar.
- Rosie estava saindo com alguém? Tinha algum namorado? - Shaw estava tão ansioso para ir embora que foi direto ao assunto.
Archie franziu o cenho.
- Pretendentes não faltavam pra Rosie.
- Alguém em particular?
Eileen bebericou o seu uísque.
- Ela estava saindo com alguém ultimamente, mas não queria me contar quem era. Eu perguntei, mas ela disse que me contaria quando fosse a hora.
Colin bufou.
- Algum homem casado, pelo visto.
Archie lançou um olhar de fúria para o filho.
- Mais respeito quando falar da sua irmã, ouviu?
- Ué, então por que ela ia guardar segredo? - O rapaz projetou a mandíbula para a frente, desafiante.
- Vai ver que ela não queria você e o seu irmão se metendo de novo nos assuntos dela - retrucou Archie. Virou-se para Janice. - Uma vez eles deram uma surra num rapaz porque cismaram que ele não estava tratando Rosie direito.
- Quem era o rapaz?
Archie arregalou os olhos, surpreso.
- Isso foi anos atrás. Não tem nada a ver com o que aconteceu agora. O rapaz nem mora mais aqui. Se mudou pra Inglaterra, logo depois.
- Ainda assim, queremos saber quem é - insistiu Shaw.
- John Stobie - Colin respondeu irritado. - O pai dele trabalha como jardineiro no Old Course. Mas como o meu pai disse, ele não ousaria chegar perto de Rosie.
- Não era um homem casado - continuou Eileen. - Eu perguntei a ela. Ela disse que jamais traria um problema desses pra dentro de casa.
Colin balançou a cabeça e olhou para o outro lado, girando o copo de uísque na mão.
- Não vi Rosie com ninguém ultimamente. Mas ela tinha lá os seus segredos.
- Vamos precisar dar uma olhada no quarto dela - disse Shaw. - Mas não agora, mais tarde. Então, se vocês puderem evitar mexer em qualquer coisa lá, eu agradeço. - Ele limpou a garganta. - Se vocês quiserem, a policial Hogg pode ficar aqui com vocês.
Archie fez que não com a cabeça.
- Vamos ficar bem.
- É possível que apareçam alguns repórteres por aqui. Seria mais fácil se um policial estivesse aqui para ajudá-los.
- Meu pai já disse. Vamos ficar melhor sozinhos - respondeu Colin.
- Quando vou poder ver a Rosie? - quis saber Eileen.
- Vamos mandar um carro buscar a senhora mais tarde. Vou providenciar para alguém ligar para cá e combinar um horário com vocês. E se vocês se lembrarem de qualquer coisa que Rosie tenha dito sobre onde poderia estar hoje à noite ou sobre alguém com quem estivesse saindo, por favor entrem em contato. Seria útil se vocês pudessem fazer uma lista com os nomes dos amigos dela. Especialmente alguém que possa saber onde ela estava ontem e com quem. É possível? - Shaw ficou mais gentil quando percebeu que estava prestes a dar no pé dali.
Archie concordou e levantou-se do sofá.
- Mais tarde. Vamos fazer isso depois.
Janice levantou-se, os joelhos reclamando por ela ter ficado muito tempo naquela posição desconfortável.
- Podem ficar à vontade, sabemos o caminho.
Ela seguiu Shaw até a porta. A tristeza naquela casa parecia uma substância tangível, tomando conta do ar e dificultando a respiração. Era sempre a mesma coisa. A melancolia parecia aumentar num crescendo nas primeiras horas após a notícia.
Mas aquilo ia mudar. Em breve, viria a raiva.
4
Esquisito olhava fixamente para Maclennan, os braços magérrimos cruzados sobre o peito franzino.
- Preciso de um cigarro - disse ele. O ácido que havia tomado mais cedo já perdera o efeito, deixando-o irrequieto e rebelde. Não queria estar ali e estava determinado a cair fora o mais rápido possível. O que não queria dizer que estava disposto a cooperar.
Maclennan balançou a cabeça.
- Sinto muito, filho. Não permitimos cigarro aqui.
Esquisito virou a cabeça e olhou para a porta.
- Você sabe que não pode torturar ninguém, né?
Maclennan se recusava a morder a isca.
- Precisamos fazer umas perguntas sobre o que aconteceu hoje à noite.
- Sem um advogado, sem chance. - Esquisito sorriu para si mesmo.
- Por que precisa de um advogado, se não tem nada a esconder?
- Porque você é o Todo-Poderoso. E está com uma garota assassinada nas costas, precisando arrumar alguém pra pôr a culpa. E eu não vou assinar nenhuma confissão falsa, não importa o quanto você me deixe mofando aqui dentro.
Maclennan suspirou. Era deprimente constatar que os métodos duvidosos de uma meia dúzia de policiais davam munição para espertinhos como aquele atacarem todo o resto. Apostava uma semana do seu salário como aquele adolescente hipócrita tinha um pôster de Che Guevara na parede do quarto. E que achava que era o primeiro na fila para herói da classe operária. O que não queria dizer que não podia ter assassinado Rosie Duff.
- Você tem uma ideia muito estranha dos métodos policiais.
- Diga isso aos seis de Birmingham e aos quatro de Guildford[3] - rebateu Esquisito, como se aquilo fosse um trunfo.
- Se você não quer terminar como eles, filho, sugiro que comece a colaborar. Podemos fazer isso dentro dos conformes: eu faço algumas perguntas e você responde ou eu posso te deixar trancado aqui por algumas horas até conseguirmos achar um advogado que esteja assim tão desesperado para trabalhar.
- Você está me negando o direito de representação legal? - Havia um tom de imponência na voz de Esquisito que teria deixado os seus amigos desesperados se pudessem ouvi-lo.
Mas Maclennan sabia que estava mais do que à altura de um estudantezinho convencido.
- Faça como quiser. - Ele se afastou da mesa.
- Vou fazer mesmo - disse Esquisito, teimoso. - Não tenho nada para falar com você sem um advogado presente. - Maclennan caminhou até a porta, com Burnside logo atrás. - Então trate de me arrumar um, ok?
A porta já estava aberta. Maclennan olhou para trás.
- Não tenho nada a ver com isso, filho. Você quer um advogado, você dá o telefonema.
Esquisito parou para pensar. Não conhecia nenhum advogado. Diabos, não tinha nem dinheiro para pagar um advogado, mesmo que conhecesse algum. Podia imaginar o que o seu pai diria se ele ligasse para casa e pedisse ajuda. Esse não era um pensamento particularmente agradável. Além do mais, teria de contar a história toda para o advogado, e qualquer advogado pago pelo seu pai seria obrigado a lhe dar um relatório completo. Existiam coisas, pensou ele, bem piores do que ser preso por ter roubado uma Land Rover.
- Pois bem - disse ele de má vontade. - Você faz aí as suas perguntas. Se elas forem tão inocentes quanto você pensa que são, eu respondo. Mas, se eu achar que você está tentando me incriminar, não abro mais a boca.
Maclennan fechou a porta e sentou-se novamente. Manteve o olhar fixo em Esquisito, observando com calma os seus olhos inteligentes, o nariz adunco e os lábios incongruentemente carnudos. Não achava que Rosie Duff pudesse ter visto aquele rapaz como um partido desejável. Provavelmente teria rido na cara dele, caso tivesse recebido uma cantada. Uma reação como essa poderia ter provocado um ressentimento crescente. Que pode ter resultado em assassinato.
- Você conhecia Rosie Duff bem? - perguntou ele.
- Não a ponto de saber o seu sobrenome.
- Alguma vez a convidou para sair?
Esquisito assumiu uma expressão de deboche.
- Você só pode estar curtindo com a minha cara. Sou um pouquinho mais ambicioso do que isso. Garotas provincianas, com sonhos pequenos; não é a minha praia.
- E os seus amigos?
- Acho que não. Estamos aqui exatamente porque queremos mais do que isso.
Maclennan levantou as sobrancelhas.
- Como é que é? Vieram lá de Kirkcaldy até St. Andrews para ampliar os seus horizontes? Uau, o mundo não sabe o que está perdendo. Escuta aqui, rapaz, Rosie Duff foi assassinada. Sejam lá quais tenham sido os sonhos dela, eles morreram também. Então, pense duas vezes antes de depreciá-la.
Esquisito sustentou o olhar de Maclennan.
- Eu só estou tentando explicar que as nossas vidas não tinham nada a ver com a dela. Se não tivéssemos dado de cara com o corpo, você sequer saberia da nossa existência nessa investigação. E francamente, se nós somos o melhor que vocês podem arrumar em termos de suspeitos, não merecem ser chamados de detetives.
A tensão entre eles produzia eletricidade. Normalmente, Maclennan gostava quando o clima ficava pesado. Era um método eficaz para manipular as pessoas e fazer com que elas falassem mais do que pretendiam. E a sua intuição lhe dizia que aquele rapaz estava escondendo alguma coisa por trás daquela aparente arrogância. Podia não ser nada importante, mas podia ser algo fundamental. Mesmo que o máximo que aquela pressão lhe rendesse fosse uma bela dor de cabeça, Maclennan não conseguia resistir. Por menor que fosse a probabilidade.
- Conte-me sobre a festa - pediu ele.
Esquisito revirou os olhos.
- Tá legal, você não deve ser convidado pra muitas festas mesmo. A coisa funciona assim. Homens e mulheres se reúnem em uma casa ou um apartamento, bebem, dançam. Às vezes rolam uns amassos, às vezes até mesmo sexo. E depois, as pessoas voltam pra casa. Foi assim esta noite.
- E às vezes, se drogam - completou Maclennan docilmente, recusando-se a deixar que o sarcasmo do rapaz o tirasse do sério.
- Não quando você está presente, aposto - respondeu Esquisito, com um sorriso debochado.
- Você se drogou hoje à noite?
- Viu? Lá vem você, tentando me incriminar.
- Com quem você estava?
Esquisito parou para pensar.
- Sabe que nem me lembro direito? Cheguei com os caras, fui embora com eles. No meio-tempo, não me lembro de nada, não. Mas se você está insinuando que eu dei uma escapada para cometer assassinato, está muito enganado. Me pergunte onde eu estava e eu posso te responder na boa. Eu estava na sala de estar durante toda a noite, tirando a hora que eu subi para dar uma mijada.
- E o resto dos seus amigos? Onde estavam eles?
- Não faço a menor ideia. Não sou o guardião dos meus irmãos.
Maclennan reconheceu imediatamente o eco das palavras de Sigmund Malkiewicz.
- Mas vocês costumam cuidar uns dos outros, não?
- Sem chances de você saber que é isso que os amigos fazem, né? - zombou ele.
- Então quer dizer que vocês seriam capazes de mentir, um pelo outro?
- Ah, a pergunta capciosa. "Quando foi que você parou de bater na sua mulher?" Não temos o que mentir no que diz respeito a Rosie Duff. Porque não fizemos nada que precise ser acobertado. - Esquisito esfregou as têmporas. Precisava desesperadamente da sua cama, estava impaciente até os ossos. - Tivemos azar, nada mais.
- Conte-me como foi que aconteceu.
- Alex e eu estávamos de sacanagem, um empurrando o outro na neve. Ele meio que se desequilibrou e foi catando cavaco até a colina. Acho que a neve estava deixando ele meio eufórico, sei lá. Aí ele tropeçou e caiu, e quando eu vi, ele já estava gritando, pedindo pra gente correr até lá. - Por um momento, a arrogância de Esquisito desapareceu e ele pareceu mais jovem. - E aí a gente encontrou a garota. Ziggy tentou... mas não tinha nada que ele pudesse fazer para salvá-la. - Esquisito esfregou uma mancha em uma das pernas da sua calça. - Posso ir embora agora?
- Vocês não viram ninguém lá em cima? Ou no caminho?
Esquisito balançou a cabeça em sinal negativo.
- Não. Jack, o Estripador deve ter feito um caminho alternativo. - Estava novamente na defensiva e Maclennan sabia que continuar tentando arrancar informação dele seria uma tarefa inglória. Mas teria outra oportunidade para isso. E deveria haver uma maneira de driblar as defesas de Tom Mackie. Ele tinha apenas de descobrir qual era.
Janice Hogg tentava alcançar Iain Shaw pelo estacionamento. Estiveram mais ou menos calados no percurso de volta à delegacia, cada um associando o encontro com os Duffs com as suas próprias vidas, em níveis variáveis de alívio. Quando Shaw empurrou a porta que abrigava o ambiente aquecido da delegacia, Janice já estava logo atrás dele.
- Fico me perguntando por que será que ela não contou para a mãe com quem estava saindo - disse ela.
Shaw deu de ombros.
- Talvez o irmão esteja certo. Vai ver era um homem casado.
- Mas e se ela estivesse falando a verdade? E se ele não fosse casado? Que tipo de homem faria com que ela preferisse manter segredo sobre a sua identidade?
- A mulher aqui é você, Janice. O que você acha? - Shaw se dirigiu até a minúscula sala onde o policial encarregado de fornecer e manter atualizadas as informações secretas guardava os seus arquivos. A sala ficava vazia durante a noite, mas os gabinetes com as fichas de arquivo organizadas em ordem alfabética ficavam destrancados e disponíveis para consulta.
- Bem, se os irmãos tinham um histórico de espantar homens que consideravam inadequados, acho que tenho que descobrir que tipo de homem Colin e Brian considerariam inadequado - refletiu ela.
- E que tipo seria esse? - perguntou Shaw, abrindo a gaveta com a letra "D". Os seus dedos, surpreendentemente longos e finos, começaram a correr pelos arquivos.
- Pensando alto, eu diria que, a julgar pela família, com aquele senso de respeitabilidade típico de Fife, toda certinha... Acho que alguém que eles considerassem ou acima ou abaixo dela.
Shaw virou-se para ela.
- Nossa, você realmente conseguiu fazer uma bela triagem.
- Eu falei que estava pensando alto - resmungou ela. - Se fosse um pé-rapado qualquer, ela provavelmente acharia que ele seria capaz de se defender dos seus irmãos. Mas se fosse alguém um pouquinho mais rebuscado...
- Rebuscado? Mas que palavra mais sofisticada para uma policial, Janice.
- Usar um uniforme não me impede de ter um cérebro, detetive Shaw. E não se esqueça que até bem pouco tempo atrás o senhor também estava usando um.
- Tá bem, tá bem. Vamos voltar ao rebuscado. Como assim, tipo um estudante? - perguntou Shaw.
- Exatamente.
- Tipo os que encontraram o corpo? - Ele virou-se novamente para o arquivo.
- Eu não descartaria essa possibilidade - Janice encostou-se no alizar da porta. - Ela com certeza pôde conhecer vários estudantes no seu trabalho.
- Aqui está - anunciou Shaw, tirando algumas fichas da gaveta. - Sabia que Colin Duff não me era estranho. - Ele leu a primeira ficha e depois passou para Janice. Estava anotado, em uma caligrafia bonita: Colin James Duff. Data de nascimento: 05/03/55. Último endereço conhecido: Caberfeidh Cottage, Strathkinness. Trabalha na fábrica de papel em Guardbridge, como motorista de empilhadeira. 09/74 Bebedeira e má conduta, multado 25 libras. 05/76 Perturbação da paz, detido. 06/78 Velocidade, multado 37 libras. Companheiros conhecidos: Brian Stuart Duff, irmão. Donald Angus Thomson. Janice virou a ficha. No verso, escrito com a mesma caligrafia, só que a lápis para poder ser apagado se fosse preciso, ela pôde ler: Duff gosta de criar caso quando bebe. É bom de briga e tem um talento para se safar. Um pouco metido a valentão. Não é desonesto, só meio rebelde.
- Não é o tipo de sujeito que você quer que se misture com o seu namorado acadêmico sensível - comentou Janice enquanto pegava a segunda ficha de arquivo das mãos de Shaw. Brian Stuart Duff. Data de nascimento: 27/05/57. Último endereço conhecido: Caberfeidh Cottage, Strathkinness. Trabalha na fábrica de papel em Guardbridge como encarregado do armazém. 06/75 Agressão, multado 50 libras. 05/76 Agressão, três meses de detenção, cumpriu em Perth. 03/78 Perturbação da paz, detido. Companheiros conhecidos: Colin James Duff, irmão. Donald Angus Thomson. Ela virou a ficha e leu no verso: O Duff caçula é um vândalo que pensa que é valentão. A sua ficha seria bem mais longa se o irmão mais velho não tivesse o hábito de levá-lo embora antes da coisa ficar preta. Ele começou cedo - John Stobie e as suas costelas e braço quebrado em 1975, possivelmente de sua autoria. Stobie se recusou a prestar depoimento, disse que sofreu um acidente de bicicleta. Há suspeitas de que Duff também esteve envolvido no arrombamento não solucionado de uma loja de bebidas em West Port 08/78. Um dia vai acabar indo em cana por um bom tempo. Janice apreciava as observações pessoais que o encarregado local de manter as fichas acrescentava às informações oficiais. Quando se estava indo prender alguém, era sempre de grande valia saber de antemão se a coisa terminaria mal. E, ao que parecia, os irmãos Duff poderiam fazer com que as coisas terminassem mal. Uma pena, pensou ela. Colin Duff era bem bonitinho.
- O que você acha? - perguntou Shaw, pegando Janice de surpresa duplamente, por causa do seu pensamento sobre Colin e porque não estava acostumada a um membro do DIC imaginando que ela fosse capaz de raciocínio em conjunto.
- Acho que Rosie estava guardando segredo sobre o seu namorado porque sabia que o relacionamento ia provocar a ira dos irmãos. Eles me pareceram uma família unida. Vai ver ela estava protegendo ambos, a família e o namorado.
Shaw franziu a testa.
- Como assim?
- Ela não queria que eles arrumassem mais problemas. Com a ficha de Brian, especialmente, mais uma agressão séria e eles iam acabar na cadeia por um bom tempo. Então, ela preferiu ficar calada. - Janice guardou as fichas de volta no arquivo.
- Bom trabalho. Escuta, eu vou lá na sala do DIC escrever o relatório. Você vai até o necrotério ver se consegue agendar a visita da família. Essa história de só marcar para amanhã vai deixá-los meio chateados, mas é bom dar uma satisfação desde agora.
Janice fez uma cara desanimada.
- Por que será que eu sempre fico com as melhores tarefas?
Shaw levantou as sobrancelhas.
- Quer que eu responda?
Janice não disse mais nada. Deixou Shaw e foi para o vestiário feminino, bocejando. Tinham uma chaleira lá dentro, mas os homens não sabiam. O seu corpo pedia uma boa dose de cafeína, e se ela tinha de ir ao necrotério, merecia aquele regalo. Afinal de contas, Rosie Duff não ia a lugar algum.
Alex já estava no quinto cigarro, se perguntando se o maço ia durar mesmo, quando a porta da sala de interrogatório onde ele estava finalmente se abriu. Ele reconheceu o detetive de rosto delgado que havia visto em Hallow Hill. O homem parecia bem mais disposto do que Alex se sentia. O que não era de admirar, uma vez que a hora do café da manhã já havia passado para a maioria das pessoas. E ele duvidava muito que o inspetor estivesse sofrendo com aquela dorzinha chata causada pela ressaca, que atacava o seu cérebro. Deu a volta e sentou-se diante de Alex, nunca desviando o seu olhar. Alex fez um esforço para encará-lo de volta, determinado a não deixar que o cansaço fizesse com que ele parecesse evasivo.
- Eu sou o detetive-inspetor Maclennan - disse ele, com a voz entrecortada e enérgica.
Alex não sabia ao certo qual era a etiqueta adequada para a situação.
- Eu sou Alex Gilbey - tentou ele.
- Eu sei disso, meu filho. E também sei que você gostava de Rosie Duff.
Alex sentiu o calor queimando as suas bochechas.
- Isso não é crime - respondeu. De nada adiantaria negar o que Maclennan parecia saber com tanta certeza. Especulou qual dos seus amigos teria traído o seu interesse pela garçonete morta. Mondo, tinha quase certeza. Sob pressão, ele entregaria a própria avó, e depois tentaria se convencer de que aquele havia sido o melhor destino para a velha.
- Não, não é. Mas o que aconteceu com ela essa noite foi o pior de todos os crimes. E o meu trabalho é descobrir quem foi o responsável. Até agora, a única pessoa ligada à moça assassinada e à descoberta do corpo é você, Sr. Gilbey. Ora, você na certa é um rapaz inteligente. Então não preciso explicar isso para você, não é?
Alex bateu o cigarro nervosamente, embora não houvesse nenhuma cinza para ser descartada.
- Coincidências acontecem.
- Com muito menos frequência do que você pode imaginar.
- Bem, essa foi uma delas. - O olhar fixo de Maclennan dava a sensação de que havia insetos se movendo por dentro da pele de Alex. - Eu só tive um baita azar, encontrando Rosie daquele jeito.
- É o que você diz. Mas se eu tivesse abandonado Rosie à morte em uma colina incrivelmente gelada, estivesse preocupado se havia ficado algum vestígio de sangue em mim e fosse um rapaz inteligente, eu ia armar a coisa de modo que eu fosse a primeira pessoa a encontrar o corpo. Assim, eu teria a desculpa perfeita para estar coberto com o sangue dela. - Maclennan fez um gesto na direção da camisa de Alex, manchada de sangue coagulado.
- Tenho certeza de que o senhor agiria assim. Mas eu, não. Eu não saí da festa em momento algum. - Alex estava começando a ficar realmente com medo. Ele já estava esperando alguns momentos desagradáveis durante a conversa com a polícia, mas não havia imaginado que Maclennan ia pegar tão pesado, logo de início. Um suor frio e úmido começou a cobrir as suas palmas e ele precisou conter o impulso de secá-las no jeans.
- Você pode fornecer testemunhas que confirmem isso?
Alex cerrou os olhos, tentando silenciar a algazarra dentro da sua cabeça para poder recordar seus passos durante a festa.
- Logo que chegamos, eu fiquei conversando com uma garota da minha sala por um tempo. Penny Jamieson é o nome dela. Ela saiu para dançar e eu fiquei fazendo hora na sala de jantar, beliscando aqui e ali. Várias pessoas entraram e saíram, não prestei muita atenção. Eu estava meio bêbado e mais tarde fui até o jardim lá nos fundos para vomitar.
- Sozinho? - Maclennan inclinou-se levemente para a frente.
Alex teve um súbito flash de memória que trouxe consigo uma pontada de alívio.
- Sim. Mas vocês provavelmente vão conseguir identificar o canteiro de rosas perto de onde eu vomitei.
- Você pode ter vomitado a qualquer hora - salientou Maclennan. - Se tivesse acabado de estuprar e esfaquear uma garota e a tivesse abandonado para morrer, por exemplo. Isso poderia ter deixado você enjoado.
O momento de esperança de Alex foi por água abaixo.
- Pode até ser, mas não foi o que aconteceu - respondeu ele, em um tom desafiador. - Se eu estava coberto de sangue, você não acha que alguém teria percebido isso na festa? Eu me senti melhor depois de ter colocado tudo pra fora. Entrei novamente e resolvi dançar um pouco, na sala de estar. Várias pessoas devem ter me visto nessa hora.
- E nós fazemos questão de conversar com cada uma delas. Queremos uma lista com o nome de todo mundo que estava nessa festa. Vamos ter de conversar com o anfitrião. Com todos que conseguirmos localizar. E se Rosie Duff apareceu por lá, mesmo que só por um segundo, nós dois vamos ter uma conversinha bem menos amigável, Sr. Gilbey.
Alex sentiu o seu rosto o trair novamente e desviou o olhar depressa. Não tão depressa quanto gostaria. Maclennan aproveitou a brecha.
- Ela estava lá?
Alex negou com a cabeça.
- Eu não a vi mais, depois do Lammas. - Ele podia ver alguma coisa começando a fazer sentido por trás do olhar fixo de Maclennan.
- Mas você a convidou para a festa? - As mãos do detetive agarraram a quina da mesa e ele se inclinou para a frente, tão próximo que Alex pôde sentir o cheiro do seu xampu.
Alex fez que sim, estava agoniado demais para negar.
- Eu dei o endereço. Quando estávamos no pub. Mas ela não apareceu na festa, não. Nem eu esperava que ela fosse aparecer. - A voz de Alex rompera em um soluço. O seu frágil controle começou a desaparecer, à medida que lembrava de Rosie atrás do balcão, animada, provocante, afetuosa. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, encarando o detetive.
- Isso deixou você com raiva? O fato de ela não ter aparecido?
Alex sacudiu a cabeça.
- Não. Não cheguei a acreditar que ela fosse. Olha, eu não queria que ela estivesse morta. Nem queria ter encontrado o corpo. Mas o senhor tem que acreditar em mim. Eu não tive nada a ver com isso.
- Isso é o que você diz, filho. O que você diz. - Maclennan não moveu um músculo e continuou cara a cara com o rapaz. Todos os seus instintos lhe diziam que havia algo espreitando por trás da superfície naqueles interrogatórios. E, de uma maneira ou de outra, ele acabaria descobrindo o que era.
5
A policial Janice Hogg deu uma espiada no seu relógio, enquanto se dirigia até o balcão principal. Mais uma hora e ela estaria de folga, pelo menos na teoria. Com uma investigação de homicídio a pleno vapor, provavelmente ela teria de fazer hora extra, especialmente porque não havia muitas policiais femininas em St. Andrews. Estava passando pela porta da recepção justo na hora em que a porta da rua se abriu, num solavanco tão violento que chegou a quicar na parede.
A potência por trás da porta era um jovem com os ombros quase tão largos quanto o alizar. O seu cabelo negro e ondulado estava coberto de neve e o seu rosto encharcado - de lágrimas, de suor ou de flocos de neve derretidos. Ele avançou em direção ao balcão, rosnando de raiva. O policial em serviço recuou, assustado, quase caindo do banco.
- Onde estão os desgraçados? - rosnou ele.
Para fazer justiça ao policial, vale dizer que ele conseguiu desencavar algum sang froid dos recantos mais profundos do seu treinamento.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele, desviando-se dos punhos que se chocavam contra a superfície do balcão. Janice não avançara e não fora sequer notada. Se a coisa degringolasse, como parecia que ia acontecer, ela poderia se valer do elemento surpresa.
- Eu quero saber onde estão os filhos da puta que mataram a minha irmã! - gritou ele.
Logo vi, pensou Janice. As notícias haviam chegado até Brian Duff.
- Eu não sei do que o senhor está falando - respondeu o policial, gentil.
- A minha irmã, Rosie! Ela foi assassinada! E vocês estão com eles aqui. Os desgraçados que mataram ela! - Parecia que Duff ia escalar o balcão no seu desejo desesperado de vingança.
- Eu acho que o senhor recebeu a informação errada.
- Não vem com essa, seu babaca! - gritou Duff. - A minha irmã está morta e alguém vai ter que pagar!
Janice julgou aquele o momento certo para entrar em ação.
- Sr. Duff? - perguntou ela calmamente, aproximando-se dele.
Ele rodopiou e encarou Janice fixamente com os olhos arregalados, a saliva espumando nos cantos da boca.
- Cadê eles? - rosnou ele.
- Sinto muito pelo que aconteceu com a sua irmã. Mas ninguém foi preso em relação ao crime. Ainda estamos nos estágios iniciais da nossa investigação, interrogando as testemunhas. Não suspeitos, testemunhas. - Ela pousou a mão com cuidado no braço dele. - Você deveria estar em casa. A sua mãe está precisando dos filhos.
Brian sacudiu o braço, desvencilhando-se da mão de Janice.
- Me disseram que vocês prenderam eles. Os desgraçados que fizeram isso.
- Disseram errado. Estamos todos ansiosos para encontrar quem cometeu esse crime terrível e às vezes isso faz com que as pessoas tirem conclusões precipitadas. Pode acreditar em mim, Sr. Duff. Se tivéssemos um suspeito preso, eu diria a você. - Janice manteve os olhos fixos nos de Duff, torcendo para que a sua abordagem calma e direta funcionasse. Do contrário, ele poderia partir a sua mandíbula com um único soco. - Quando prendermos alguém, a sua família será a primeira a saber. Eu prometo isso a você.
Brian parecia estar atordoado e com raiva. Então, de repente, os seus olhos encheram-se de lágrimas e ele desmoronou em uma das cadeiras da recepção. Envolveu a cabeça com os braços e sacudiu-se em um violento ataque de choro. Janice trocou um olhar impotente com o policial que estava atrás do balcão. Ele simulou um gesto de aplicação de algemas, mas ela descartou a hipótese balançando a cabeça e sentou-se ao lado de Brian.
Aos poucos, ele se recompôs. Deixou que as mãos caíssem como pedras no colo e voltou o rosto crispado de lágrimas para Janice.
- Mas vocês vão encontrar ele, não vão? O desgraçado que fez isso?
- Vamos fazer de tudo, Sr. Duff. Agora, posso levar você para casa? A sua mãe estava preocupada com você hoje cedo. Ela precisa ter certeza de que você e o seu irmão estão bem. - Ela levantou-se e olhou para ele, na expectativa.
Por ora, a ira de Brian havia se dissipado. Ele se levantou docilmente e concordou.
- Tá bem.
Janice virou-se para o policial de plantão e avisou:
- Diga ao detetive Shaw que eu fui levar o Sr. Duff em casa. Quando voltar, faço o que deveria estar fazendo agora. - Ninguém ia reclamar por ela ter tomado a iniciativa uma vez na vida. Qualquer coisa que pudessem apurar sobre Rosie Duff e sua família era de grande valia e aquele era o momento perfeito, pois Brian não estava na defensiva. - Ela era um amor de menina, a Rosie - disse ela, puxando conversa enquanto conduzia Brian para fora da entrada principal, até o estacionamento.
- Você a conhecia?
- Eu bebo no Lammas às vezes. - Era uma pequena mentira, oportuna diante das circunstâncias. Janice considerava o Lammas tão atraente quanto um prato de mingau frio. Com gosto de queimado, ainda por cima.
- Não dá pra acreditar - disse Brian. - Esse é o tipo de coisa que a gente vê na tevê. Não o tipo de coisa que acontece com a gente.
- Como foi que você ficou sabendo? - Janice estava genuinamente curiosa. As notícias costumavam viajar na velocidade do som em uma cidade pequena como St. Andrews, mas não no meio da noite.
- Por um camarada meu, ontem à noite. A namorada dele trabalha no turno da manhã em um pé-sujo na South Street. Ela ficou sabendo quando chegou no serviço, às seis da manhã, e correu pro telefone. Porra - explodiu ele -, primeiro eu achei que fosse alguma piada de mau gosto. Você também pensaria, é ou não é?
Janice abriu o carro, pensando, Não, para falar a verdade os meus amigos não iam brincar com uma coisa dessas. Ela disse:
- A gente não quer pensar, nem por um segundo, que aquilo é verdade.
- Exatamente! - concordou Brian, sentando-se ao lado dela no carona. - Quem faria uma coisa dessas com a Rosie? Ela era uma boa pessoa, sabe? Uma garota certinha. Não era uma vagabunda.
- Você e o seu irmão ficavam de olho nela. Você chegou a ver alguém rondando a sua irmã, alguém com quem você não fosse muito com a cara? - Janice deu partida no motor, sentindo um calafrio quando uma rajada de vento gelado entrou no carro. A manhã estava de lascar.
- Sempre tinha uns vagabundos cercando a minha irmã. Mas todo mundo sabia que iam ter que se ver comigo e com Colin se mexessem com ela. Então, ficavam pianinho. Sempre ficamos de olho nela. - De repente ele acertou um soco na palma da mão. - É por isso que eu fico me perguntando: onde é que a gente estava ontem, quando ela realmente precisou da gente?
- Você não pode se culpar, Brian. - Janice manobrou a viatura para fora do estacionamento e deslizou sobre a superfície lisa e coberta de neve prensada da estrada principal. As luzes de Natal pareciam pálidas contra o painel cinza-amarelado do céu; o glamouroso laser fornecido pelo departamento de física da universidade não passava de um rabisco mortiço e despercebido contra as nuvens baixas.
- Eu não me culpo. Eu culpo o canalha que fez isso. Só queria ter estado lá para impedir que acontecesse. É foda, agora é tarde demais, é sempre tarde demais - ele resmungou baixinho.
- Então você não sabe com quem ela pode ter se encontrado?
- Ela mentiu para mim. Disse que ia para uma festa com a Dorothy, que trabalha com ela. Mas a Dorothy apareceu na festa onde eu estava. Ela disse que a Rosie tinha saído pra encontrar um cara. Eu ia dar a maior bronca nela quando ela voltasse. Pô, uma coisa é deixar meu pai e minha mãe de fora. Mas eu e Colin, a gente sempre estava do lado dela. - Ele esfregou os olhos com as costas da mão. - Não dá pra suportar isso. A última coisa que ela me disse foi uma mentira.
- Quando foi que vocês se viram pela última vez? - Janice fez uma curva súbita em West Port e avançou pela estrada para Strathkinness.
- Ontem, depois que eu saí do trabalho. Encontrei com ela no centro, fomos comprar um presente de Natal pra mamãe. Nós três fizemos uma vaquinha pra comprar um secador de cabelo novo pra ela. Aí a gente foi na drogaria para comprar um sabonete bacana pra ela. Fui andando com a Rosie até o Lammas e aí ela disse que ia sair com a Dorothy. - Ele balançou a cabeça. - Ela mentiu. E agora, está morta.
- Talvez ela não tenha mentido, Brian. Vai ver que ela até estava planejando ir pra essa tal festa, mas apareceu algum outro programa mais tarde. - Isso devia ser tão verdadeiro quanto a história que Rosie havia contado, mas Janice sabia por experiência própria que as pessoas que acabam de perder alguém se agarram a qualquer coisa que mantenha intacta a imagem do falecido.
Brian não foi exceção. A esperança acendeu o seu rosto.
- Sabe que deve ter sido isso mesmo? Porque Rosie não era mentirosa.
- Mas tinha lá os seus segredos, não é? Como toda moça.
Ele fechou a cara.
- Segredo é confusão. Ela devia saber disso. - Alguma coisa lhe ocorreu e subitamente Brian retesou o corpo no banco. - Você sabe se ela foi...? Se se aproveitaram dela?
Nada que Janice pudesse dizer o confortaria. Para que a confiança que ela aparentemente estabelecera com Brian pudesse sobreviver, ela não podia se arriscar e deixar que ele pensasse que ela também estava mentindo para ele.
- Só vamos saber com certeza depois da autópsia, mas parece que sim.
Brian esmagou o punho no painel do carro.
- Filho da puta! - grunhiu ele. À medida que o carro subia em ziguezague a colina em direção a Strathkinness, ele se revirava no assento. - Seja lá quem foi que fez isso, é melhor que vocês peguem ele antes de mim. Juro por Deus que eu mato o sujeito. Eu mato!
A casa parecia violada, pensou Alex ao abrir a porta da unidade autônoma que os Garotos de Kirkcaldy haviam transformado em seu feudo particular. Cavendish e Greenhalgh, os dois ingleses aristocratas que dividiam o espaço com eles, passavam o mínimo tempo possível em casa, um acordo perfeitamente conveniente para todos. Eles já haviam partido para a Inglaterra, para passar as férias, mas naquele dia o sotaque exagerado deles, que soava tão ostensivamente metido para Alex, seria muito mais convidativo do que a presença da polícia, que parecia imiscuir-se no próprio ar que ele respirava.
Com Maclennan nos seus calcanhares, Alex correu até o quarto onde dormia, no segundo andar.
- Não se esqueça, queremos tudo que você está usando. Inclusive a roupa de baixo - Maclennan lembrou a Alex, que abria a porta do quarto. O detetive ficou parado na soleira, visivelmente intrigado diante da visão de duas camas no quarto minúsculo, que obviamente fora projetado para apenas uma. - Quem dorme aqui com você? - quis saber ele.
Antes que Alex pudesse responder, a voz ponderada de Ziggy acudiu:
- Ele acha que nós somos todos gays - disse ele, sarcástico. - E que, é claro, foi por isso que matamos Rosie. Independente da total ausência de lógica, é isso o que está passando pela cabeça dele. Na verdade, Sr. Maclennan, a explicação é muito mais simples. - Ziggy apontou por cima do ombro do detetive para uma porta do outro lado do corredor. - Vem cá ver - disse ele.
Curioso, Maclennan aceitou o convite de Ziggy. Alex aproveitou que ele estava de costas e despiu-se às pressas, agarrando um roupão para cobrir a sua vergonha. Ele foi atrás dos dois e não pôde conter um sorriso convencido quando viu a expressão bestificada de Maclennan.
- Viu só? - perguntou Ziggy. - Simplesmente não tem espaço para uma bateria completa, um órgão Farfisa, duas guitarras e uma cama nessas tocas de coelho. Então Esquisito e Gilly foram sorteados e passaram a dormir no mesmo quarto.
- Vocês têm uma banda, então? - Maclennan parecia o seu pai falando, pensou Alex, com uma pontada de afeto que o surpreendeu.
- Tocamos juntos há quase cinco anos - respondeu Ziggy.
- Sério? Quer dizer que vão ser os próximos Beatles? - Maclennan não pôde se conter.
Ziggy revirou os olhos.
- Não, não vamos ser os próximos Beatles, por dois motivos. Primeiro, porque tocamos estritamente para nosso próprio prazer. Ao contrário dos Rezillos, não temos nenhuma vontade de constar entre os 10 Mais. E segundo, por causa do talento. Somos músicos absolutamente competentes, mas não temos um único pensamento musical original entre nós. O nome da nossa banda antes era Muse, até percebermos que não tínhamos nenhuma musa. Agora, somos os Combine.[4]
- Combine? - repetiu Maclennan debilmente, surpreso com o súbito acesso de intimidade de Ziggy.
- Novamente, por dois motivos. Quem tem uma ceifadeira colhe na plantação de todo mundo. Como nós. E também por causa da música do Jam que tem o mesmo nome. Nós não somos melhores que ninguém.
Maclennan virou as costas, balançando a cabeça.
- Vamos ter que dar uma olhada aí dentro também, você sabe.
Ziggy bufou.
- A única infração de que vocês vão encontrar provas é de violação de copyright - disse ele. - Olha, nós colaboramos com vocês. Quando é que vão nos deixar em paz?
- Assim que recolhermos as roupas. Também queremos diários, agendas, cadernos de endereços...
- Alex, dá logo o que ele quer. Todos nós já entregamos tudo. Quanto mais rápido recuperarmos o nosso espaço, mais fácil será colocarmos a cabeça no lugar. - Ziggy virou-se para Maclennan. - Sabe, o que o senhor e os seus subordinados parecem não perceber é que acabamos de passar por uma experiência terrível. Nos deparamos com o corpo moribundo e ensanguentado de uma garota que conhecíamos, ainda que superficialmente. - A voz dele ficou embargada, revelando a fragilidade do seu aparente autocontrole. - Se parecemos estranhos aos seus olhos, Sr. Maclennan, lembre-se que isso pode ter a ver com o fato de estarmos com a cabeça fodida por causa de tudo o que passamos hoje.
Ziggy passou voando pelo policial e desceu as escadas correndo, cruzando a cozinha e batendo a porta ao sair. Maclennan torceu a boca.
- Ele tem razão - disse Alex, dócil.
- Tem uma família lá em Strathkinness que passou uma noite bem pior do que a de vocês, filho. E o meu trabalho é encontrar respostas para eles. Se para isso eu precisar pisar no calo de vocês, sinto muito. Agora, vamos lá, me dê logo as roupas. E o resto também.
Ele ficou esperando na soleira da porta enquanto Alex empilhava as suas roupas sujas em um saco de lixo.
- O senhor vai precisar dos meus sapatos também? - perguntou Alex, segurando-os na altura do peito, visivelmente preocupado.
- Vou precisar de tudo - respondeu Maclennan, registrando mentalmente que teria de pedir ao pessoal da perícia para tomar um cuidado especial com os sapatos de Gilbey.
- É que eu não tenho nenhum outro par decente. Só botas de beisebol, e elas não servem nem para enfeite em um tempo como esse.
- Que pena. Vamos logo, para dentro do saco, filho.
Alex jogou os sapatos por cima das roupas.
- O senhor está perdendo o seu tempo aqui, sabe? Cada minuto que dedica a nós é um minuto perdido. Não temos nada a esconder. Não matamos Rosie.
- Que me conste, ninguém os acusou disso. Mas vocês insistem tanto no assunto que estou começando a ficar desconfiado. - Maclennan apanhou a sacola da mão de Alex e o diário caindo aos pedaços que ele lhe ofereceu. - Vamos voltar, Sr. Gilbey. Não vá a lugar nenhum.
- Temos que voltar para casa hoje - protestou Alex.
Maclennan estacou, dois degraus escada abaixo.
- Ninguém me disse isso - ele disse, desconfiado.
- O senhor não perguntou, não é? Temos que pegar o ônibus hoje à tarde. Todos nós começamos os nossos trabalhos de férias amanhã. Quer dizer, todos menos Ziggy - Alex acrescentou, com um sorriso meio irônico. - O pai dele acha que acadêmicos devem passar as férias estudando e não arrumando prateleiras de mercado.
Maclennan ponderou. Suspeitas baseadas essencialmente no seu instinto não justificavam exigir que os rapazes permanecessem em St. Andrews. E eles não iam nem sair da jurisdição. Kirkcaldy ficava logo ali, afinal.
- Podem ir para casa - sentenciou ele. - Desde que vocês não se incomodem em me ver, com a minha equipe, batendo na porta da casa dos seus pais.
Alex ficou parado, vendo Maclennan ir embora. O desânimo o arrastava para uma depressão ainda mais profunda. As festas de fim de ano iam ser realmente fantásticas.
6
Os acontecimentos da noite finalmente atingiram Esquisito em cheio. Quando Alex subiu após ter tomado um lúgubre café com Ziggy, Esquisito estava na sua posição habitual. De barriga para cima, com as pernas e os braços pendurados para fora das cobertas, ele rompia a relativa paz daquela manhã com o seu ruidoso ronco, que se transformava às vezes em um assovio agudo. Alex normalmente não tinha problemas para dormir ao som dessa trilha sonora estridente. O quarto onde dormia na casa dos seus pais dava para os trilhos da ferrovia, então silêncio noturno era uma espécie de novidade para ele.
Mas naquela manhã, Alex não precisou nem tentar para saber que não conseguiria pregar o olho com os barulhos de Esquisito atrapalhando os pensamentos que corriam em sua mente. Mesmo estando meio tonto por causa da falta de sono, não estava nem um pouco sonolento. Pegou uma leva de roupas da sua cadeira, caçou as botas de beisebol debaixo da cama e saiu de fininho do quarto. Vestiu-se no banheiro e desceu sem fazer barulho, para não acordar nem Esquisito, nem Mondo. Para falar a verdade, não queria nem mesmo a companhia de Ziggy. Parou diante dos ganchos de pendurar casacos na sala. A sua parca havia sido recolhida pela polícia. O que lhe deixara apenas com uma jaqueta jeans e um casaco leve com capuz. Ele pegou os dois e saiu.
Não estava mais nevando, mas as nuvens ainda estavam baixas e carregadas. A cidade parecia coberta de algodão. O mundo estava monocromático. Se ele espremesse os olhos, os prédios brancos do Fife Park desapareceriam, a pureza da vista conspurcada apenas pelos retângulos negros das janelas. O som também havia desaparecido, coberto pelo peso do clima. Alex seguiu pelo que uma vez já fora grama em direção à estrada principal. Hoje ela parecia uma trilha no Cairngorms, com rastros na neve indicando onde veículos ocasionais haviam passado. Só quem estava dirigindo naquelas condições eram aqueles que precisavam, obrigatoriamente. Quando ele chegou ao campo desportivo, os seus pés estavam molhados e gelados e isso, de alguma forma, pareceu-lhe apropriado. Caminhou até as quadras de hóquei. No meio daquela imensidão branca, ele espanou a neve de uma tabela de pontos e sentou sobre ela. E assim ele ficou, cotovelos nos joelhos, apoiando o queixo com as mãos, sentado sobre a tábua intacta, até que pequenas luzes começaram a dançar diante dos seus olhos.
Por mais que se esforçasse, Alex não conseguia fazer com que a sua mente ficasse tão vazia quanto a paisagem. Imagens de Rosie Duff não saíam da sua cabeça. Rosie tirando um chope, séria e concentrada. Rosie de lado, rindo da tirada de um freguês. Rosie levantando as sobrancelhas, caçoando de alguma coisa que ele lhe dissera. Essas eram lembranças com as quais ele podia lidar, sem problemas. Mas elas não permaneciam em sua mente. Eram constantemente expulsas pela outra Rosie. O rosto retorcido em um esgar de dor. Sangrando na neve. Lutando pelos seus últimos suspiros.
Alex se inclinou e agarrou um punhado de neve, apertando-o com força em suas mãos até que elas começassem a ficar arroxeadas de frio, até que a água escorresse pelos pulsos. O frio transformou-se em dor, a dor em entorpecimento. Ele queria poder fazer algo parecido com a sua mente. Desligá-la, desligá-la completamente. Deixá-la tão vazia quanto aquele campo coberto de neve, branco reluzente.
Quando sentiu alguém tocar no seu ombro, quase fez xixi nas calças. Cambaleou para a frente e não caiu estatelado por pouco. Virou-se com as mãos em punho, armadas na direção do peito.
- Ziggy! - gritou ele. - Meu Deus, você quase me mata de susto.
- Desculpe. - Ziggy parecia estar à beira das lágrimas. - Eu te chamei, mas você não olhou.
- Eu não ouvi! Meu Deus, avançando assim pela retaguarda você vai ficar mal falado, cara - Alex disse com uma risada trêmula, tentando fazer piada com o seu medo.
Ziggy riscou a neve com o bico da galocha.
- Sei que provavelmente você está querendo ficar sozinho, mas quando vi você saindo, resolvi vir atrás.
- Tudo bem, Zig. - Alex inclinou-se para a frente e removeu mais um pouco de neve da tábua. - Junte-se a mim no meu suntuoso sofá, onde as garotas do harém virão nos servir refrescos e água de rosas.
Ziggy deu um sorriso sem graça.
- Vou abrir mão dos refrescos. Eles congelam a ponta da minha língua. Você se importa?
- Não, por mim tudo bem.
- Fiquei preocupado com você, foi isso. De todos nós, você é o que a conhecia melhor. Eu não sabia se você estava querendo conversar, longe dos outros.
Alex se encolheu dentro da jaqueta e fez que não com a cabeça.
- Não tenho muito o que dizer. Eu só não consigo parar de ver o rosto dela. Achei que não ia conseguir dormir. - Ele suspirou. - Não, eu estava assustado demais para tentar. Quando eu era pequeno, um amigo do meu pai sofreu um acidente em um estaleiro. Uma explosão, sei lá, não sei exatamente o que foi. Enfim, depois do acidente, ele ficou só com uma metade do rosto. A outra metade era uma máscara de plástico, que ele tinha que usar sobre o tecido queimado. Você provavelmente deve lembrar dele, na rua ou no futebol. Era difícil não notar o cara. O meu pai me levou ao hospital para visitá-lo, eu só tinha cinco anos. E fiquei completamente apavorado. Eu ficava imaginando o que tinha por trás da máscara. À noite, quando ia dormir, acordava gritando, porque ele sempre aparecia nos meus sonhos. Às vezes, tinha vermes por trás da máscara. Às vezes, era uma bagunça cheia de sangue, tipo aquelas ilustrações dos seus livros de anatomia. Mas o pior era quando ele tirava a máscara e não havia nada por trás, apenas a pele com os vestígios do que deveria estar lá. - Ele tossiu. - É por isso que eu estou com medo de dormir.
Ziggy passou o braço pelo ombro de Alex.
- Eu sei que é difícil, Alex. Mas o fato é que você agora está mais velho. E o que nós vimos ontem, bem, a coisa não fica pior do que aquilo. A sua imaginação não tem muito o que fazer para piorar o quadro. Seja lá o que você sonhar agora, não vai chegar nem perto de ter visto Rosie daquele jeito.
Alex gostaria que as palavras de Ziggy pudessem confortá-lo um pouco mais. Mas ele sentia que elas não eram totalmente verdadeiras.
- Acho que todos nós vamos ter que lidar com os nossos demônios depois do que aconteceu ontem - disse ele.
- Alguns mais práticos do que os outros - respondeu Ziggy, recolhendo o braço de trás das costas de Alex e apertando as mãos uma contra a outra. - Não sei como, mas Maclennan descobriu que eu sou gay. - Ziggy mordeu o lábio.
- Putzgrila! - exclamou Alex.
- Eu só contei para você, você sabe, né? - A boca de Ziggy se contorceu em um sorriso irônico. - Quer dizer, além dos caras com quem eu estive, é claro.
- É claro. Como foi que ele descobriu? - perguntou Alex.
- Eu estava com tanto cuidado para não mentir que ele sacou a verdade nas entrelinhas. E agora eu estou com medo da coisa se espalhar.
- E por que haveria de se espalhar?
- Você sabe que as pessoas adoram uma fofoca. E eu acho que os policiais não são muito diferentes do resto, nesse sentido. Eles vão acabar falando com a universidade. Se quiserem pressionar a gente, essa seria uma boa estratégia. E se eles resolverem aparecer nas nossas casas, em Kirkcaldy? E se Maclennan achar que é uma jogada de mestre contar a verdade para os meus pais?
- Ele não vai fazer isso, Ziggy. Nós somos testemunhas. Não vejo o que ele pode ganhar se indispondo com a gente.
Ziggy suspirou.
- Queria acreditar em você. Na minha opinião, Maclennan está nos tratando mais como suspeitos do que como testemunhas. E isso significa que ele vai fazer qualquer coisa para nos pressionar, não é?
- Acho que você está muito paranoico.
- Pode até ser. Mas e se ele disser alguma coisa para o Esquisito ou o Mondo?
- Eles são seus amigos. Não vão virar as costas para você por causa disso.
Ziggy bufou.
- Eu vou te dizer o que eu acho que vai acontecer se Maclennan soltar que o melhor amigo deles é bicha. Eu acho que Esquisito vai querer me encher de porrada e que Mondo nunca mais vai querer entrar num banheiro comigo pro resto da vida. Eles são homofóbicos, Alex. Você sabe muito bem disso.
- Eles conhecem você desde pequeno. Isso vai contar muito mais do que um preconceito idiota. Eu não fiz um escândalo quando você me contou.
- E eu te contei exatamente porque sabia que você não ia fazer um escândalo. Você não é um homem das cavernas impulsivo.
Alex assumiu uma expressão modesta.
- Também era uma aposta garantida, né, contar para alguém que é fã de Caravaggio. Mas eles também não são dinossauros, Ziggy. Eles vão entender. Vão repensar as suas visões de mundo à luz do que sabem a seu respeito. Eu realmente acho que você não devia perder o sono por causa disso.
Ziggy deu de ombros.
- Pode ser, talvez você tenha razão. Mas, ainda assim, eu prefiro não arriscar. E mesmo que eles encarem numa boa, já pensou se a coisa se espalha? Quantos gays assumidos você conhece aqui na universidade? Todos esses ingleses riquinhos de escola particular, que passaram a adolescência inteira tendo experiências homossexuais, eles não saíram do armário, saíram? Estão todos aí, desfilando de braço dado com uma mulherzinha, garantindo a sua descendência. Vê só o Jeremy Thorpe. Ele está sendo julgado por ter conspirado para matar o seu ex-amante, só para manter a sua homossexualidade em segredo. Isso aqui não é San Francisco, Alex. É St. Andrews. Eu ainda tenho uns bons anos pela frente até poder atuar como médico, e eu te digo uma coisa, se Maclennan abrir a boca, a minha carreira vai para o espaço.
- Isso não vai acontecer, Ziggy. Você está exagerando. Você está cansado e, como você mesmo disse, estamos todos com a cabeça fodida por causa do que aconteceu ontem. Vou te dizer o que está me preocupando de verdade.
- O quê?
- A Land Rover. Que diabos vamos fazer a respeito?
- A gente tem que trazer de volta. Não temos nenhuma outra opção. Senão, dão queixa de furto e estamos perdidos.
- Pois é, eu sei disso. Mas quando? Não dá para fazer isso hoje. Seja lá quem foi que largou Rosie naquele lugar, deve ter um veículo qualquer e uma das coisas que nos deixa menos suspeitos é que nenhum de nós tem carro. Mas se formos vistos desfilando por aí na neve com uma Land Rover, vamos direto para o topo da lista de Maclennan.
- Vai acontecer a mesma coisa se uma Land Rover for descoberta exatamente na porta da nossa casa.
- Então o que a gente faz?
Ziggy chutou a neve entre os pés.
- Acho que vamos ter que esperar a poeira baixar, aí eu vou lá e busco o carro. Ainda bem que eu me lembrei das chaves a tempo de enfiar dentro da cueca. Senão a gente teria se dado mal na hora em que Maclennan pediu pra gente esvaziar os bolsos.
- Você está falando sério? Tem certeza que você quer ir buscar o carro?
- Vocês todos têm trabalho agora nas férias. Eu posso sair tranquilamente. Só preciso inventar alguma desculpa, dizer que tenho que ir até a biblioteca da universidade, sei lá.
Alex agitou-se desconfortável no seu assento improvisado.
- Você já parou para pensar que ao omitir a Land Rover a gente pode estar livrando a cara do assassino?
Ziggy ficou chocado.
- Você não está realmente sugerindo que...?
- O quê? Que um de nós pode ter cometido o crime? - Alex mal podia acreditar que tinha conseguido verbalizar as suspeitas insidiosas que haviam se infiltrado na sua consciência. Ele tentou consertar, depressa. - Não. Mas as chaves ficaram rolando lá na festa. Talvez alguém tenha manjado a oportunidade e aproveitado para pegar... - A sua voz foi morrendo.
- Você sabe que isso não aconteceu. E, lá no fundo, você também sabe que não acredita de verdade que um de nós possa ter matado Rosie - disse Ziggy, confiante.
Alex queria estar assim tão certo. Quem poderia dizer o que se passava pela cabeça de Esquisito, quando ele estava drogado até não poder mais? E Mondo? Ele foi levar a tal garota para casa, crente que ia rolar alguma coisa. Mas e se ela deu um fora nele? Ele estava furioso e frustrado, e talvez estivesse bêbado o suficiente para querer descontar em qualquer outra garota que tivesse dado o fora nele antes, como Rosie fizera, mais de uma vez no Lammas. E se tivesse encontrado com ela no caminho? Balançou a cabeça. Não queria nem pensar naquilo.
Como se pressentindo os pensamentos de Alex, Ziggy disse, calmamente:
- Se você está pensando em Esquisito e em Mondo, vai ter que me incluir na lista. Eu tive tanta oportunidade quanto eles. E espero que você saiba o quão ridícula é essa ideia.
- Isso é absurdo. Você jamais faria mal a alguém.
- O mesmo vale para os outros dois. A suspeita é como um vírus, Alex. Você pegou do Maclennan. Mas é bom você se livrar dela rapidinho, antes que contamine a sua mente e o seu coração. Lembre-se do que você sabe sobre nós. Nenhum de nós tem o perfil de um assassino frio e calculista.
As palavras de Ziggy não dissiparam a inquietude de Alex, mas ele não queria mais discutir a respeito. Em vez disso, abraçou o amigo, colocando a mão no seu ombro.
- Você é um amigão, Ziggy. Vamos até o centro. Eu te pago uma panqueca.
Ziggy sorriu.
- O último dos perdulários, hein? Vou fazer desfeita, se você não se importar. Não sei por quê, mas estou sem fome. E não se esqueça: um por todos e todos por um. Isso não significa ficar cego para os defeitos dos amigos e sim aprender a confiar neles. É uma confiança baseada em anos de amizade sólida. Não deixe Maclennan destruir isso.
Barney Maclennan olhou em volta da sala do DIC excepcionalmente cheia. Desacostumado a estar entre os detetives à paisana, Maclennan era a favor da convocação dos policiais uniformizados para ouvir as suas ordens em casos importantes. Fazia com que eles se sentissem pessoalmente envolvidos na investigação. Além do mais, eles faziam mais trabalho de campo e podiam perceber coisas que os detetives talvez deixassem passar. Fazer com que se sentissem parte do time tornava-os mais dispostos a seguir essas observações até o fim e não descartá-las como irrelevantes.
Ele estava parado de pé, do outro lado da sala, entre Burnside e Shaw. Com uma das mãos encoberta, revirava obsessivamente moedas dentro do bolso da calça. Sentia-se enfraquecido pelo cansaço e pelo esforço, mas sabia que a adrenalina o manteria aceso por várias horas. Era sempre assim quando estava seguindo o seu instinto.
- Vocês sabem por que estamos aqui - disse ele assim que todos se acomodaram. - O corpo de uma jovem foi encontrado hoje bem cedo, em Hallow Hill. Rosie Duff foi assassinada com uma única facada no estômago. Ainda é muito cedo para mais detalhes, mas provavelmente ela também foi estuprada. Não temos casos como esse por aqui, mas isso não quer dizer que não somos capazes de solucioná-lo. E rápido. A família da vítima merece respostas.
"Até agora, não temos muito para começar. Rosie foi encontrada por quatro estudantes, quando estavam voltando de uma festa em Learmonth Gardens para o Fife Park. Bem, eles podem ser testemunhas inocentes, mas também podem ser muito mais do que isso. Até onde sabemos, eles eram os únicos que estavam andando por aí no meio da noite, cobertos de sangue. Quero uma equipe verificando a tal festa. Quem estava lá? O que eles viram? Os nossos rapazes realmente têm álibis? Existem lacunas nos períodos de tempo? Como foi que eles se comportaram lá? O detetive Shaw vai conduzir essa equipe e eu gostaria de alguns oficiais uniformizados trabalhando com ele. Vamos colocar pressão nos convidados dessa festa.
"Rosie trabalhava no Pub Lammas, muitos aqui sabem disso, não é? - Ele olhou em volta, conferindo vários gestos afirmativos, incluindo o do policial Jimmy Lawson, o primeiro na cena do crime. Ele conhecia Lawson; jovem e ambicioso, responderia bem a um pouco de responsabilidade. - Os quatro estudantes andaram bebendo por lá ontem. Então quero que o detetive Burnside conduza uma outra equipe e converse com todo mundo que esteve lá ontem, todo mundo que for possível localizar. Tinha alguém de olho em Rosie? O que os quatro rapazes estavam fazendo? Como estavam se comportando? Lawson, você costuma beber lá. Quero que você se junte ao detetive Burnside e dê toda a ajuda possível para localizarmos os fregueses habituais e arrancarmos o máximo deles."
Maclennan fez uma pausa, olhando em torno.
- Também vamos precisar bater de porta em porta em Trinity Place. Rosie não foi a pé para Hallow Hill. O assassino tinha alguma espécie de transporte. Talvez a gente dê sorte e localize o insone local. Ou pelo menos alguém que tenha levantado de noite para fazer xixi. Quero informações sobre qualquer veículo que tenha passado por ali hoje cedo.
Maclennan tornou a dar uma olhada geral no recinto.
- É bem provável que Rosie conhecesse o assassino. Um estranho que a tivesse agarrado no meio da rua não perderia tempo removendo o corpo. Então, vamos ter que investigar a vida dela também. A família e os amigos não vão ficar contentes com isso, então precisamos respeitar a dor deles. Mas isso não significa que vamos nos contentar com histórias pela metade. Tem alguém solto por aí, alguém que cometeu homicídio ontem à noite. E eu quero pegá-lo, antes que ele tenha a oportunidade de fazer outra vítima. - Houve um burburinho no recinto; estavam todos de acordo. - Alguma pergunta?
Para sua surpresa, Lawson levantou a mão, aparentando estar um pouco constrangido.
- Senhor, será que existe algum significado na escolha do lugar onde o corpo foi abandonado?
- Como assim? - perguntou Maclennan.
- Pelo fato de ser um cemitério picto. Será que foi um ritual satânico, algo assim? Nesse caso, será que não foi simplesmente um estranho que pegou Rosie porque ela servia como o que ele estava precisando para um sacrifício humano?
Maclennan enrugou o rosto diante da possibilidade. No que ele estava pensando, para não ter considerado aquela hipótese? Se ela ocorrera a Jimmy Lawson, ocorreria à imprensa. E a última coisa que ele queria agora eram manchetes proclamando que havia um assassino satanista à solta.
- É uma hipótese interessante. E todos nós devemos tê-la em mente. Mas não devemos mencioná-la fora daqui. Por enquanto, vamos nos concentrar no que sabemos com certeza. Os estudantes, o Lammas, a investigação porta a porta. Mas isso não quer dizer que vamos fechar os olhos para outras possibilidades. E agora, vamos trabalhar.
Terminada a reunião, Maclennan perambulou pela sala, parando para dar uma palavra de incentivo aqui e ali enquanto os policiais se reuniam em volta das mesas, organizando as suas tarefas. Não podia evitar o seu desejo de que os estudantes estivessem envolvidos. Assim, conseguiriam um resultado rápido, que era o que contava para o público em casos como aquele. E, o que era ainda melhor, não deixaria a cidade com gosto de suspeita na boca. Era sempre mais fácil quando os bandidos vinham de fora. Mesmo que de fora, nesse caso, fosse apenas a cinquenta quilômetros de distância.
Ziggy e Alex voltaram para o alojamento com uma hora de antecedência, antes de terem que partir para a rodoviária. Tinham ido lá para verificar e o funcionário garantiu que os ônibus estavam passando, embora o horário não estivesse sendo cumprido.
- Vocês podem arriscar - disse o funcionário. - Não posso garantir o horário, mas os ônibus vão passar, sim.
Encontraram Esquisito e Mondo debruçados sobre xícaras de café na cozinha, ambos desanimados e com a barba por fazer.
- Pensei que vocês fossem estar no décimo sono - disse Alex, enchendo a chaleira para ferver mais água.
- Sem chance - resmungou Esquisito.
- Esquecemos dos abutres - disse Mondo. - Os jornalistas. Eles não param de bater na porta e a gente fica mandando eles irem embora. Mas não funciona. Dá uns dez minutos e eles voltam, tudo de novo.
- É a brincadeira do "bate, bate". Eu disse pro último que se ele não parasse de bater na porta, eu ia bater a porta na cara dele.
- Hmm - murmurou Alex. - E o vencedor deste ano do Prêmio Agradável na categoria Tato e Diplomacia é...
- Como assim? Você preferia que eu tivesse deixado eles entrarem aqui? - explodiu Esquisito. - Esses babacas, a gente tem mesmo é que falar com eles na única língua que eles entendem. Eles não aceitam não como resposta, você sabe.
Ziggy lavou duas xícaras e colocou café em pó nelas.
- Nós não vimos ninguém lá fora, não é, Alex?
- Não. Esquisito deve ter realmente colocado eles para correr. Mas se eles voltarem, vocês não acham que deveríamos dar logo uma declaração? Afinal, não temos nada a esconder.
- Só assim eles iam nos deixar em paz - concordou Mondo, mas daquele jeito como sempre concordava. Ele se especializara em um tom de voz que era capaz de sugerir dúvida, sempre oferecendo uma saída caso ele se encontrasse acidentalmente nadando contra a corrente. A sua necessidade de ser amado coloria tudo o que ele dizia e fazia. Isso e a necessidade de se proteger.
- Se você acha que eu vou falar com esses escravos do imperialismo capitalista, pode tirar o seu cavalinho da chuva. - Esquisito, por outro lado, não era homem de meias palavras. - Eles são a escória. Você já leu alguma reportagem sobre uma partida que tivesse alguma semelhança com o jogo que você assistiu? Vê só a sacanagem que eles fizeram com Ally McLeod. Antes de irmos para a Argentina, o cara era um deus, o herói que ia ganhar a Copa do Mundo. E agora? Ele não serve mais para porra nenhuma. Se eles não conseguem acertar com uma coisa tão simples quanto o futebol, que chance nós temos de não termos o nosso depoimento distorcido?
- Adoro quando Esquisito acorda de bom humor - disse Ziggy. - Mas ele está certo, Alex. Melhor ficarmos na nossa. Daqui a pouco, eles passam para outra. - Ele mexeu o seu café e foi andando em direção à porta. - Vou terminar de fazer as minhas malas. É melhor calcularmos uma margem de segurança e sairmos mais cedo do que o normal. Vai ser difícil andar até lá na raça e, graças a Maclennan, nenhum de nós tem sapatos decentes. Eu nem acredito que estou desfilando por aí de galochas.
- Cuidado, hein, a patrulha da moda vai te pegar - Esquisito gritou para ele, enquanto Ziggy saía. Ele bocejou e se espreguiçou. - Cara, eu estou muito cansado. Alguém tem uma bolinha aí?
- Se tivéssemos, já teria ido privada abaixo há muito tempo - respondeu Mondo. - Esqueceu que os tiras reviraram tudo?
Esquisito parecia envergonhado.
- Foi mal, não estou conseguindo pensar direito. Sabe, quando eu acordei, quase consegui acreditar que ontem tudo aquilo não tinha passado de uma bad trip. O que faria com que eu largasse o ácido pro resto da vida, vou te contar. - Ele balançou a cabeça. - Coitada da garota.
Alex aproveitou a deixa para desaparecer escada acima e terminar de guardar os livros na mala. Não estava triste por estar voltando para casa. Pela primeira vez, desde que começara a morar com os outros três, sentia uma espécie de claustrofobia. Sonhava com o seu quarto, só para ele; uma porta que ele pudesse fechar e que ninguém ousaria abrir sem permissão.
Estava na hora de partir. As três malas e a mochila enorme de Ziggy já estavam empilhadas na sala. Os Garotos de Kirkcaldy estavam prontos para voltar para casa. Colocaram as bolsas no ombro e abriram a porta, Ziggy na frente. Mas, para a desgraça de todos, aparentemente o efeito das palavras duríssimas de Esquisito havia passado. Assim que puseram os pés para fora, cinco homens se materializaram, do nada. Três deles carregavam máquinas fotográficas e antes que os quatro percebessem o que estava acontecendo, o som de máquinas Nikon tirando fotos sem parar tornou-se ensurdecedor.
Os dois jornalistas davam cotoveladas nos fotógrafos, gritando perguntas. Eles pareciam estar numa entrevista coletiva, metralhando perguntas em uma velocidade espantosa. "Como vocês encontraram a moça?", "Qual de vocês fez a descoberta?", "O que estavam fazendo em Hallow Hill no meio da noite?", "Foi uma espécie de ritual satânico?" e, é claro, a inevitável "Como vocês estão se sentindo?".
- Fora daqui! - berrou Esquisito, protegendo-se com a sua bolsa pesada, como se fosse uma foice. - Não temos nada a declarar!
- Meu Deus, meu Deus, meu Deus - sussurrava Mondo, como se tivesse engolido um disco.
- Para dentro - gritou Ziggy. - Vamos entrar de novo.
Alex, que estava por último, deu meia-volta. Mondo entrou aos tropeções, quase caindo por cima de Alex na sua pressa de fugir da tortura dos flashes. Esquisito e Ziggy vieram logo atrás dele, fechando a porta depressa. Entreolharam-se, acossados e assustados.
- E agora? O que é que a gente vai fazer? - perguntou Mondo, fazendo a pergunta que estava na cabeça de todos eles. Estavam perplexos. As suas experiências de vida eram limitadas; aquela era uma situação que ultrapassava esse limite.
- Não podemos ficar aqui - continuou Mondo, impaciente. - Temos que voltar para Kirkcaldy. Começo a trabalhar no mercado amanhã às seis da manhã.
- Eu e Alex também - disse Esquisito. Todos olhavam para Ziggy, esperando uma solução.
- Certo. E se saíssemos pelos fundos?
- Não temos fundos, Ziggy. Só temos a porta da frente - apontou Esquisito.
- Tem a janela do banheiro. Vocês podem sair por lá e eu fico aqui. Vou ficar andando pela casa, acendendo umas luzes, coisas assim, para eles pensarem que ainda estamos aqui. Posso voltar pra casa amanhã, quando a poeira baixar.
Os outros três se entreolharam. Não era uma má ideia.
- Você vai ficar bem, sozinho? - perguntou Alex.
- Vou. Mas algum de vocês precisa avisar os meus pais, explicar por que eu ainda estou aqui. Não quero que eles fiquem sabendo pelos jornais.
- Eu ligo, pode deixar - ofereceu Alex. - Valeu, Ziggy.
Ziggy levantou o braço e os três repetiram o gesto. Eles entrelaçaram as mãos em um cumprimento familiar.
- Um por todos - disse Esquisito.
- E todos por um - repetiram os outros. Era sincero, como era há nove anos, quando o fizeram pela primeira vez. Desde que tropeçara sobre o corpo morto de Rosie Duff na neve, aquela era a primeira vez que Alex sentia uma espécie de consolo.
7
Alex caminhou penosamente pela ponte da estrada de ferro, virando à direita na Balsusney Road. Era como se Kirkcaldy fosse um país diferente. À medida que o ônibus foi abrindo o seu caminho sinuoso pela costa de Fife, a neve começou a derreter aos poucos. Agora, não passava de uma umidade gélida e pardacenta. O vento nordeste, ao chegar finalmente tão longe, já havia descarregado toda a sua neve e, àquelas alturas, já não tinha mais nada a oferecer às cidades mais protegidas acima do estuário, a não ser friorentas pancadas de chuva. Alex sentia-se como um daqueles camponeses infelizes de Breughel, arrastando-se exausto para casa.
Alex levantou o trinco do familiar portão de ferro retorcido e caminhou até a casa de pedra onde havia crescido. Tateou o bolso da calça, procurando as chaves, e entrou em casa. Uma onda de calor o envolveu. Haviam instalado o aquecedor central durante o verão e aquela era a primeira vez que Alex podia conferir a diferença que o aparelho fazia. Deixou cair a bolsa no chão, ao lado da porta, e gritou:
- Cheguei!
Sua mãe saiu da cozinha, enxugando as mãos em um pano de prato.
- Alex, que bom ter você de volta. Vem aqui na cozinha, tem sopa e cozido. Já tomamos chá, eu pensei que você fosse chegar mais cedo. Foi por causa do tempo? Eu vi na televisão que a coisa está feia por lá.
Ele deixou que as palavras dela o inundassem, o tom e a conversa familiares eram como um cobertor, protegendo-o. Tirou o casaco e cruzou a sala para lhe dar um abraço.
- Parece cansado, filho - disse ela, com um tom de preocupação na voz.
- Tive uma noite terrível, mãe - respondeu ele, seguindo-a de volta até a minúscula cozinha.
Da sala de estar, veio a voz do pai:
- É você, Alex?
- Sou eu, pai - gritou ele de volta. - Já vou até aí.
A mãe já estava providenciando um prato de sopa, entregando para ele a tigela e uma colher. Enquanto havia comida a ser servida, Mary Gilbey não podia prestar atenção a detalhes mais insignificantes como tristeza profunda.
- Vai lá e senta com o teu pai. Vou esquentar o cozido. Tem batata assada no forno.
Alex foi até a sala de estar, onde o pai estava sentado em uma poltrona, vidrado na televisão. Havia um lugar preparado para ele na mesa de jantar no canto da sala e Alex sentou-se com a sua sopa.
- Tudo bem, filho? - perguntou o pai, sem tirar os olhos do programa na televisão.
- Para falar a verdade, não.
Aquilo chamou a atenção do seu pai. Jock Gilbey virou-se e lançou um olhar perscrutador sobre o filho, do tipo que os professores gostam tanto de usar.
- Você não parece nada bem. O que está acontecendo?
Alex tomou uma colherada da sopa. Não estava com fome, mas assim que sentiu o gosto daquele autêntico caldo caseiro escocês, descobriu que estava faminto. A última vez que comera alguma coisa havia sido na festa, sendo que vomitara duas vezes. Tudo o que ele queria era encher a barriga, mas agora que tinha começado, teria que ir até o fim.
- Aconteceu uma coisa horrível ontem - disse ele, entre uma colherada e outra. - Assassinaram uma garota. E nós a encontramos. Quer dizer, fui eu, mas Ziggy, Esquisito e Mondo estavam comigo.
O pai olhava para ele, boquiaberto. A mãe tinha entrado na sala durante a parte final da revelação de Alex e pusera instantaneamente as mãos no rosto, os olhos arregalados, horrorizados.
- Oh, Alex, que coisa... Ah, pobrezinho - disse ela, apressando-se ao seu encontro e segurando a sua mão.
- Foi horrível. Ela foi esfaqueada. E ainda estava viva quando a encontramos. - Ele piscou com força. - Acabamos tendo que passar o resto da noite na delegacia. Eles levaram todas as nossas roupas e todo o resto, como se estivessem achando que temos alguma coisa a ver com o crime. Porque a gente conhecia a garota, sabe. Quer dizer, não conhecia de verdade. Ela era garçonete de um dos pubs aonde a gente sempre vai. - Lembrando de tudo, perdeu o apetite e deitou a colher no prato, abaixando a cabeça. As lágrimas se formaram no canto dos seus olhos e escorreram pelo seu rosto.
- Eu sinto muito, filho - acudiu o pai, na falta de algo mais adequado para dizer. - Deve ter sido um choque terrível.
Alex tentou engolir o bolo em sua garganta.
- Antes que eu me esqueça - disse ele, empurrando a cadeira para trás -, preciso ligar para o Sr. Malkiewicz e dizer a ele que Ziggy não vai chegar hoje.
Jock Gilbey arregalou os olhos, em choque.
- Prenderam ele na delegacia?
- Não, não foi nada disso - respondeu Alex, enxugando os olhos com as costas da mão. - Apareceram uns jornalistas na nossa porta lá em Fife Park, atrás de fotos e entrevistas. E a gente não queria falar com eles. Então eu, Esquisito e Mondo subimos até a janela do banheiro e saímos pelos fundos. Temos que começar a trabalhar amanhã no mercado, né? Mas como Ziggy não tem emprego, ele se ofereceu para ficar lá e vir só amanhã. Não queríamos deixar a janela aberta, entende? Então tenho que ligar para o pai dele e explicar.
Alex desvencilhou-se gentilmente do toque de sua mãe e foi até a sala. Pegou o fone e discou o número de Ziggy de cabeça. Tocou uma vez e, em seguida, ouviu o familiar sotaque polonês de Karel Malkiewicz. Lá vou eu de novo, pensou Alex. Ia ter que explicar a noite passada novamente. E tinha a impressão de que aquela não seria a última vez.
- É isso o que acontece quando você desperdiça as suas noites bebendo e fazendo sabe Deus o que mais - disse Frank Mackie amargamente. - Você acaba se metendo com a polícia. Eu sou um homem respeitado nesta cidade, você sabe disso. A polícia nunca bateu na minha porta. Mas basta um desmiolado como você para cairmos na boca do povo.
- Se nós não estivéssemos na rua até tarde, ela teria ficado lá até o dia clarear. Teria morrido abandonada - protestou Esquisito.
- Eu não tenho nada a ver com isso - respondeu o pai, atravessando a sala para servir-se de um copo de uísque. Havia instalado um bar na sala para impressionar os clientes que julgava respeitáveis o bastante para serem convidados até a sua casa. Ele achava de bom-tom para um contador exibir os frutos do seu sucesso. Tudo o que queria era que o filho mostrasse alguns sinais de ambição, mas, ao invés, havia colocado no mundo um inútil que passava as noites em pubs. O pior é que Tom tinha um dom para números. Mas em vez de direcioná-lo de maneira prática, escolhendo a contabilidade, ele havia preferido o inconsistente mundo da matemática pura. Como se esse pudesse ser o primeiro passo para o caminho da prosperidade e da decência. - Está decidido. Nada de sair à noite, rapaz. Nada de festas, nem pubs durante as férias. Você está preso no quartel. É do trabalho para casa e de casa para o trabalho.
- Mas, pai, é Natal! - protestou Esquisito. - Todo mundo vai sair, e eu quero encontrar os meus amigos.
- Você devia ter pensado nisso antes de ter arrumado problema com a polícia. Você vai ter provas esse ano. Aproveite para estudar. Um dia você ainda vai me agradecer por isso, sabia?
- Mas, pai...
- Essa é a minha última palavra sobre o assunto. Enquanto você morar debaixo do meu teto, enquanto eu estiver pagando a sua universidade, você vai fazer as coisas do meu jeito. Quando você começar a ganhar o seu dinheiro, aí então você pode criar as suas próprias regras. Até lá, vai fazer o que eu mandar. E agora, fora daqui!
Enfurecido, Esquisito saiu da sala bufando e subiu correndo as escadas. Meu Deus, pensou ele, como eu odeio essa família. E como odiava aquela casa. Raith Estate, onde moravam, era para ser a última palavra em modernidade, mas ele achava que aquela era outra ilusão criada pelos sujeitos de terno e gravata. Não precisava ser um gênio para perceber que aquele lugar não tinha nem comparação com a casa onde moravam antes. Paredes de pedra, portas de madeira maciça com revestimentos e molduras, vitral no patamar da escada. Aquilo sim era uma casa. Realmente, aquele caixote tinha mais quartos, mas eram minúsculos, o teto e as portas tão baixos que Esquisito tinha a impressão que teria de andar constantemente abaixado para acomodar o seu um metro e oitenta e três centímetros. As paredes também eram finas como papel. Dava para ouvir alguém soltando um pum no quarto do lado. O que, parando para pensar, era bem engraçado. Os seus pais eram tão reprimidos que seriam incapazes de conhecer uma emoção, mesmo que ela os mordesse no calcanhar. E, ainda assim, haviam gastado uma fortuna em uma casa que desnudava a privacidade de todos. Dividir um quarto com Alex era mais confortável do que viver debaixo do teto dos seus pais.
Por que nunca haviam feito o menor esforço para compreendê-lo? Sentia como se tivesse passado a vida se rebelando. Nenhum dos seus êxitos servia para quebrar o gelo, pois eles nunca se encaixavam nos limites estreitos dos sonhos dos seus pais. Quando foi campeão de xadrez da escola, o pai fez um muxoxo, insinuando que ele deveria ter se juntado ao time de bridge. Quando pediu para aprender a tocar um instrumento musical, o pai recusou sem rodeios, oferecendo-se para comprar um conjunto de tacos de golfe. Todo ano, quando ele ganhava o prêmio de matemática na escola, a reação do pai era comprar livros de contabilidade para ele, entendendo tudo errado. A matemática para Esquisito não tinha nada a ver com adição e subtração de números; era a beleza da curva de uma equação quadrática, a elegância do cálculo, a linguagem misteriosa da álgebra. Se não fosse pelos seus amigos, ele se sentiria um completo anormal. Eles lhe deram um espaço para desabafar com segurança, uma chance de abrir as suas asas e levantar voo, sem medo de se espatifar no chão.
E ele havia retribuído da pior maneira possível. A culpa o atingia em cheio quando recordava a sua última loucura. Daquela vez, tinha ido longe demais. Tudo começara como uma brincadeira, furtando o carro de Henry Cavendish. Ele não fazia ideia do que aconteceria depois. Sabia muito bem que nenhum dos outros três poderia salvar a sua pele se alguém descobrisse sobre o carro. Só esperava não prejudicar ninguém, caso isso acontecesse.
Colocou a sua nova fita cassete do Clash no toca-fitas e atirou-se na cama. Ia ouvir o lado A e depois se preparar para dormir. Tinha que estar de pé às cinco da manhã para encontrar Alex e Mondo e pegar no batente no supermercado. Normalmente, teria ficado deprimido com a perspectiva de ter de se levantar tão cedo. Mas do jeito que as coisas estavam, seria um alívio sair de casa, uma bênção poder fazer algo que fizesse com que a sua mente parasse de girar em círculos. Nossa, pensou ele, eu daria tudo por um baseado.
Pelo menos a brutalidade emocional do pai havia deixado as lembranças de Rosie Duff de lado. Quando Joe Strummer começou a cantar "Julie’s in the Drug Squad", ele já estava dormindo profundamente, mergulhado em um sono sem sonhos.
Karel Malkiewicz dirigia como um velho, na melhor das hipóteses. Hesitante, devagar e totalmente imprevisível nos entroncamentos. Também só dirigia quando o tempo estava bom. Em circunstâncias normais, ao primeiro sinal de neblina ou geada, ele guardava o carro e descia a pé a ladeira íngreme da Massareene Road até Bennochy, onde tomava o ônibus até a Factory Road, onde ficava o seu local de trabalho. Trabalhava como eletricista no setor de revestimento de pisos. Já fazia um bom tempo desde o desaparecimento da nuvem de óleo de linhaça que rendera à cidade a reputação de ter um "cheiro esquisito", mas embora o linóleo tivesse saído de moda, o que era produzido na fábrica de Nairn ainda revestia o piso de milhares de cozinhas, banheiros e ambientes híbridos. E ele proporcionara a Karel Malkiewicz uma vida decente desde que saíra da Força Aérea Britânica após a guerra, e por isso ele era bastante grato.
O que não significava que ele havia esquecido os motivos pelos quais deixara Cracóvia. Ninguém podia sobreviver à atmosfera tóxica de desconfiança e perfídia sem cicatrizes, muito menos um judeu polonês que tivera a sorte de escapar antes do massacre que o deixou sem família.
Ele teve de reconstruir a vida, criar uma nova família. Seus pais não haviam sido especialmente ortodoxos, de modo que ele não se sentiu órfão da sua antiga religião. Não havia judeus em Kirkcaldy, lembrava que alguém lhe dissera isso alguns dias depois da sua chegada na cidade. A mensagem era clara: "É assim que preferimos." E ele dançou conforme a música, chegando ao extremo de se casar na Igreja Católica. Aprendera a sentir-se em casa naquela terra insular que o acolhera. Surpreendera-se com o arrebatado orgulho possessivo que sentira quando da recente escolha do papa polonês. Raramente sentia-se polonês.
Estava beirando os quarenta quando o filho que tanto sonhara finalmente veio ao mundo. Era motivo de alegria, mas também uma renovação do seu medo. Agora tinha muito mais a perder. Aquele era um país civilizado, os fascistas jamais fariam carreira ali. Pelo menos, era isso o que todos pensavam. Mas a Alemanha também fora um país civilizado. Era impossível prever o que poderia acontecer a qualquer país onde o número de desabrigados alcançasse uma massa crítica. Qualquer um que prometesse salvação encontraria seguidores.
E, ultimamente, havia bons motivos para o medo. A Frente Nacional avançava furtivamente na moita política. Greves e tumultos industriais estavam irritando o governo. A campanha de bombardeios do IRA dava aos políticos todas as desculpas de que precisavam para a introdução de medidas repressoras. E ainda havia aquela vaca insensível que comandava o partido conservador, falando que os imigrantes afundavam a cultura nativa. De fato, as sementes estavam todas presentes.
Então, quando Alex Gilbey ligou e contou a ele que o seu filho passara a noite em uma delegacia, Karel Malkiewicz não teve outra escolha. Queria o filho debaixo do seu teto, debaixo da sua asa. Ninguém tinha o direito de levá-lo embora no meio da noite. Agasalhou-se e instruiu a mulher para que ela preparasse um cantil com uma sopa bem quente e um embrulho com sanduíches. E partiu estrada afora para buscar o filho e trazê-lo de volta para casa.
Demorou quase duas horas, em uma viagem penosa até St. Andrews no seu velho Vauxhall. Mas ficou aliviado ao ver as luzes acesas na casa que Sigmund dividia com os amigos. Estacionou o carro, apanhou o seu farnel e caminhou até a entrada.
Bateu na porta e, a princípio, não houve resposta. Andando com cuidado sobre a neve, olhou pela janela para dentro da cozinha acesa. Estava vazia. Bateu na janela e gritou:
- Sigmund! Abra a porta, meu filho. Sou eu, o seu pai!
Ouviu então um barulho de pés descendo em tropel pela escada abaixo. A porta se abriu para revelar o seu belo filho, sorrindo de orelha a orelha, os braços abertos em acolhida.
- Pai! - exclamou ele, pisando descalço para fora de casa para abraçá-lo. - Não esperava o senhor aqui!
- Alex me ligou. E eu não queria que você ficasse aqui sozinho. Então, vim te buscar. - Karel apertou o filho contra si, sentindo a borboleta do medo batendo as asas dentro do seu peito. O amor, pensou ele, era uma coisa terrível.
Mondo estava sentado de pernas cruzadas na cama, convenientemente perto do seu toca-discos. Estava ouvindo, sem parar, o seu tema pessoal, "Shine On, You Crazy Diamond". As guitarras arrebatadoras, a dolorosa angústia na voz de Roger Waters, os sintetizadores dolentes e o saxofone ofegante forneciam a trilha sonora perfeita para abstrair a realidade.
E isso era exatamente o que ele queria fazer. Havia escapado da preocupação sufocante da mãe, que o asfixiara assim que ele explicou o que havia acontecido. Até que fora agradável no início, o casulo familiar de preocupação girando à sua volta. Mas, aos poucos, aquilo começou a sufocar e ele pediu licença, alegando que precisava ficar sozinho. A estratégia Greta Garbo sempre funcionava com sua mãe, que o julgava um intelectual porque ele lia livros em francês. Ela parecia não notar que aquilo era o que qualquer um que estava estudando a matéria com fins de graduação fazia.
Ainda bem, para falar a verdade. Ele não sabia nem como começar a explicar o turbilhão de emoções que ameaçava engoli-lo. A violência era algo desconhecido para ele, uma língua estrangeira da qual não conhecia nem a gramática, nem o vocabulário. Ter se confrontado recentemente com ela havia deixado Mondo sentindo-se abalado e estranho. Não podia dizer sinceramente que lamentava a morte de Rosie; ela o humilhara mais de uma vez na frente dos seus amigos quando ele tentou lhe passar cantadas que haviam funcionado com outras garotas. O que lamentava era o fato de sua morte ter feito com que ele despencasse em um lugar desconfortável, ao qual não pertencia.
Estava precisando mesmo era de sexo. Isso apagaria os horrores da noite anterior da sua mente. Funcionaria como uma espécie de terapia. Seria como voltar aos eixos. Infelizmente, não dispunha de uma namorada em Kirkcaldy. Talvez devesse dar alguns telefonemas. Uma ou duas das suas ex-namoradas ficariam mais do que satisfeitas em renovar os laços com ele. Elas poderiam oferecer um ombro amigo para ele chorar as suas mágoas e o ajudariam a superar os seus problemas, pelo menos até o final das férias. Talvez a Judith. Ou a Liz. É, provavelmente a Liz. As gordinhas ficavam sempre pateticamente agradecidas diante da possibilidade de um encontro, elas cediam sem o menor esforço. Só de pensar, já tinha uma ereção.
Justo quando estava prestes a levantar-se da cama e descer para fazer a ligação, bateram na sua porta.
- Pode entrar - disse ele, suspirando exausto, perguntando-se o que a mãe ainda queria. Mudou de posição para esconder a sua ereção em estágio inicial.
Mas não era a mãe. Era a sua irmã de quinze anos, Lynn.
- Mamãe achou que você podia estar querendo uma Coca - disse ela, estendendo um copo para ele.
- Na verdade, estou querendo outras coisas - respondeu ele.
- Você deve estar arrasado mesmo - disse Lynn. - Não consigo nem imaginar como deve ter sido.
Na ausência de uma namorada, tinha de se contentar em impressionar a sua irmã mesmo.
- Foi muito difícil - disse ele. - Não gostaria de ter que passar por isso de novo tão cedo. E os policiais eram uns homens da caverna imbecis. Por que sentiram necessidade de nos interrogar como se fôssemos do esquadrão de bombas do IRA, eu nunca vou saber. Foi preciso muita coragem para encarar, podes crer.
Por algum motivo, Lynn não estava lhe dando a adoração e apoio estouvados que ele merecia. Ela encostou na parede, com cara de quem estava esperando uma pausa na conversa para colocar para fora o que estava passando na sua cabeça.
- É, imagino como foi - disse ela, mecanicamente.
- É provável que sejamos interrogados mais vezes - acrescentou ele.
- Deve ter sido barra para o Alex. Como ele está?
- Gilly? Bem, ele está longe de ser o Senhor Indefeso. Ele vai superar.
- Alex é muito mais sensível do que você imagina - defendeu ela, veemente. - Só porque ele jogava rúgbi, vocês acham que ele é só músculos e que não tem coração. Ele deve estar realmente arrasado, principalmente porque conhecia a garota.
Mondo xingou por dentro. Por um momento, havia esquecido da paixonite de sua irmã por Alex. Ela não estava ali para lhe oferecer Coca-Cola simpatia, estava ali para ter um pretexto para falar sobre Alex.
- Sorte dele não ter conhecido a garota como gostaria.
- Como assim?
- Ele era gamadão nela. Chegou até a chamá-la pra sair. Se ela tivesse aceitado, pode apostar que Alex ia ser o suspeito número um.
Lynn ficou ruborizada.
- Você está inventando. Alex não ia sair por aí caçando garçonetes.
Mondo deu um sorrisinho cruel.
- Ah não, é? Acho que você não conhece o seu querido Alex tão bem quanto pensa.
- Você é um monstro, sabia? Por que está falando desse jeito horrível do Alex? Ele é um dos seus melhores amigos!
Ela bateu a porta com força, deixando a pergunta no ar. Por que estava falando daquele jeito horrível de Alex, quando normalmente não abriria a boca para falar mal dele?
Aos poucos, começou a perceber que, lá no fundo, culpava Alex por toda aquela confusão. Se tivessem seguido reto pelo caminho, outra pessoa teria encontrado o corpo de Rosie Duff. Outra pessoa teria ficado lá, ouvindo os seus últimos suspiros prolongando-se exaustivamente. Outra pessoa estaria marcada pelas horas passadas numa cela na delegacia.
Se ele agora era suspeito em uma investigação de homicídio, a culpa era de Alex, com certeza. Mondo contorceu-se desconfortavelmente diante daquele pensamento. Tentou evitá-lo, mas sabia que não conseguiria fechar a caixa de Pandora. Uma vez plantada a ideia, não poderia ser arrancada pela raiz e deixada de lado, até murchar. Não era a hora de dar vazão a ideias como aquela, que acabariam criando um abismo entre eles. Eles agora precisavam um do outro mais do que nunca. Mas era um fato inegável. Não estaria naquela enrascada se não fosse por Alex.
E se a coisa piorasse? Não havia como negar que Esquisito andara passeando com a Land Rover durante boa parte da noite. Ele levara várias garotas para dar uma voltinha, tentando impressioná-las. E não tinha um álibi decente, assim como Ziggy, que saíra de fininho e escondera o carro em um local onde Esquisito não pudesse encontrar. Assim como o próprio Mondo. O que dera nele, pegando a Land Rover emprestada para levar a garota para casa em Guardbridge? Uma rapidinha no banco de trás não valeria o transtorno, caso alguém lembrasse dela na festa. Se a polícia começasse a fazer perguntas para os outros convidados, alguém ia acabar entregando eles. Por mais que os estudantes professassem desprezo às autoridades, alguém ia amarelar e abrir o bico. E começariam as acusações.
De repente, culpar Alex parecia uma das suas menores preocupações. À medida que recordava os acontecimentos dos últimos dias, Mondo lembrou-se de algo que vira, tarde da noite. Algo que podia ajudá-lo a livrar a sua cara. Algo que, por ora, haveria de guardar consigo mesmo. Não queria mais saber de um por todos e todos por um. Tinha mais era que salvar a própria pele. Os outros que cuidassem dos seus próprios interesses.
8
Maclennan entrou e fechou a porta. Com a policial Janice Hogg lá dentro com ele, o quarto parecia claustrofóbico, a inclinação do teto enclausurando-os. Aquele era o elemento mais lamentável da morte súbita, pensou ele. Ninguém tem a oportunidade de voltar e fazer uma limpeza, de apresentar ao mundo a imagem que gostaria de deixar. Eles têm de se contentar com o que deixaram para trás na última vez em que fecharam a porta. Ele já vira alguns quadros tristes, mas poucos comoventes como aquele.
Alguém havia se dado ao trabalho de tornar aquele quarto iluminado e alegre, apesar da parca luminosidade que penetrava pela janela estreita da mansarda, que dava para a rua. Podia ver St. Andrews a distância, ainda parecendo esbranquiçada por causa da neve da véspera, embora ele soubesse que a verdade era outra. As calçadas já estavam imundas com a neve derretida e lamacenta, e as estradas, um atoleiro escorregadio de areia e água. Para além da cidade, a mancha acinzentada do mar derretia-se imperceptivelmente no céu. Devia ser uma bela vista no verão, pensou ele, voltando-se para o papel de parede com textura granular e desenhos de magnólia e a colcha bordada, onde o lugar no qual Rosie havia se sentado ainda estava amarfanhado. Havia somente um pôster na parede. Um grupo chamado Blondie, com uma cantora peituda fazendo beicinho, usando uma saia incrivelmente curta. Seria aquele o sonho de Rosie?, ele se perguntava.
- Por onde devo começar, senhor? - perguntou Janice, olhando para o armário e a penteadeira da década de 50, que haviam sido pintados de branco numa tentativa de deixá-los mais modernos. Havia uma pequena mesa de cabeceira, com apenas uma gaveta. Fora isso, o único lugar onde poderiam encontrar algo escondido era em um cesto de roupa suja atrás da porta, ou na lixeirinha de metal debaixo da penteadeira.
- Comece pela penteadeira - disse ele. Assim, não precisaria lidar com a maquiagem que jamais seria usada novamente, o sutiã e as calcinhas velhas enfiadas lá no fundo da gaveta, para emergências de lavanderia que nunca haviam ocorrido. Maclennan conhecia os seus pontos fracos e preferia não atiçá-los, sempre que possível.
Janice sentou-se ao pé da cama, onde Rosie deveria ter se sentado para ver-se no espelho e aplicar a sua maquiagem. Maclennan foi até a penteadeira e abriu uma gaveta. Lá dentro havia um livro bem grosso, chamado O Último Refúgio, e Maclennan lembrou que aquele era exatamente o tipo de livro que a sua ex-mulher usava para mantê-lo afastado na cama. "Estou lendo, Barney", ela dizia em um tom de sofrimento resignado, sacudindo um livro que mais parecia um peso de porta no seu nariz. Não conseguia compreender a relação entre as mulheres e os livros. Levantou o romance, tentando não observar Janice explorando sistematicamente as outras gavetas. Embaixo do livro, havia um diário. Recusando-se a um otimismo precipitado, Maclennan o apanhou.
Se estivesse esperando confissões, teria ficado decepcionado. Rosie Duff não era uma garota do tipo "Querido Diário". As páginas listavam os seus turnos no Lammas, aniversários da família e dos amigos e eventos sociais como "Festa do Bob", "Farra da Julie". Algumas datas estavam marcadas com hora e local e a palavra "Ele", seguida por um número. Havia passado pelo 14, 15 e 16 no último ano; 16 sendo, obviamente, o mais recente. "Ele" apareceu em fevereiro e logo se tornou um habitué, duas ou três vezes por semana. Sempre depois do trabalho, pensou Maclennan. Teria de voltar ao Lammas e perguntar se alguém havia visto Rosie encontrando um sujeito depois do expediente. Perguntava-se por que se encontravam nesse horário, em vez de nas folgas de Rosie ou durante o dia, quando ela não estava trabalhando. Um dos dois parecia determinado a manter em segredo a sua identidade.
Olhou para Janice.
- Alguma coisa?
- Nada especial. Coisas que mulheres compram para si mesmas. Nada daquelas coisas cafonas compradas pelos homens.
- Homens compram coisas cafonas?
- Receio que sim, senhor. Renda que pinica, náilon que faz a gente suar. O que os homens querem que as mulheres usem, mas que jamais escolheriam para eles próprios.
- Deve ser aí que eu venho errando, todos esses anos. Eu realmente deveria estar comprando calçolas na Marks and Spencer.
Janice sorriu.
- A gratidão vai longe, senhor.
- Algum sinal de que ela estava tomando pílula anticoncepcional?
- Nada, até agora. Talvez Brian estivesse falando sério quando disse que ela era uma garota certinha.
- Nem tanto. De acordo com o legista, ela não era virgem.
- Existem outras maneiras de se perder a virgindade, senhor - salientou Janice, sem muita coragem para colocar em dúvida um legista que todo mundo sabia estar mais interessado no próximo drinque e na aposentadoria do que em quem ia parar na sua maca.
- É verdade. E as pílulas devem estar na bolsa dela, que ainda não foi encontrada. - Maclennan suspirou e fechou a gaveta que continha o livro e o diário. - Vou dar uma olhada no armário.
Meia hora depois, teve de admitir que Rosie Duff não era do tipo que escondia o ouro. O seu armário continha roupas e sapatos, todos em estilos modernos. Em um canto, havia uma pilha de livros baratos, gordos tijolos de papel que prometiam, na mesma medida, uma vida glamourosa, rica e plena de amor.
- Estamos perdendo o nosso tempo aqui - disse ele.
- Ainda falta uma gaveta. Por que o senhor não dá uma olhada no porta-joias? - Janice entregou a ele uma caixinha em formato de baú de tesouro, revestida de napa branca. Ele suspendeu o fecho de metal e abriu a tampa. A parte superior continha uma seleção de brincos, de diversas cores. A maioria era grande e chamativa, mas não pareciam caros. Na bandeja inferior, havia um relógio Timex infantil, algumas correntes de prata barata e alguns broches de fantasia; um imitava um trabalho de tricô, com agulhas de miniatura; o outro, um peixe voador; e o terceiro, uma criatura esmaltada e lustrosa que parecia ser um gato de outro planeta. Era difícil apurar algo significativo a partir daquele conteúdo.
- Ela gostava de brincos - concluiu ele, fechando a caixa. - Seja lá quem estivesse saindo com ela, não era do tipo que dá joias caras de presente.
Janice alcançou o fundo da gaveta e sacou lá de trás um maço de fotografias. Ao que parecia, Rosie havia atacado o álbum de família e feito a sua própria seleção. Era um típico apanhado de fotos familiares: uma foto do casamento dos pais, Rosie e os irmãos crescendo, fotos sortidas que cobriam as últimas três décadas, algumas fotos de bebês e alguns instantâneos de Rosie com colegas de escola, fazendo careta para a câmera com os seus uniformes de madras. Nada de fotos instantâneas de cabine com os seus namorados. Para falar a verdade, nada de namorados. Maclennan folheou-as rapidamente e depois as colocou de volta no maço.
- Janice, vamos ver se achamos alguma coisa um pouquinho mais produtiva para fazer. - Deu uma última olhada ao redor do quarto que havia lhe contado bem menos do que ele esperava sobre Rosie Duff. Uma garota que sonhava com uma realidade mais glamourosa. Uma garota introspectiva, discreta. Uma garota que levara os seus segredos para o túmulo, provavelmente protegendo o seu assassino no processo.
Quando estavam voltando de carro para St. Andrews, o rádio de Maclennan estalou. Ele mexeu nos botões, tentando encontrar sinal. Alguns segundos depois, a voz de Burnside surgiu, alta e clara. Ele parecia animado:
- Senhor, acho que encontramos uma coisa.
Alex, Mondo e Esquisito haviam cumprido o seu turno empilhando produtos nas prateleiras do mercado de cabeça baixa, torcendo para que ninguém os reconhecesse da primeira página do jornal Daily Record. Compraram uma pilha de jornais e caminharam pela High Street até o café que costumavam frequentar quando eram adolescentes.
- Sabia que um a cada dois adultos na Escócia lê o Record? - comentou Alex, melancólico.
- E o outro não sabe ler - respondeu Esquisito, olhando para a foto surpresa dos quatro na porta de casa. - Meu Deus, olha só a nossa cara. Dava no mesmo se tivessem colocado em letras garrafais "Canalhas mentirosos suspeitos de estupro e assassinato". Qualquer pessoa que vir essa foto vai achar que somos culpados.
- É, realmente não posso dizer que essa é a minha melhor foto - disse Alex.
- Mas você se deu bem, você estava lá trás, a gente mal vê a sua cara. E Ziggy está virado de costas. Eu e Esquisito é que ficamos de frente - reclamou Mondo. - Vamos ver o que saiu nos outros jornais.
Uma foto parecida apareceu no Scotsman, no Glasgow Herald e no Courier, mas, por sorte, nas páginas internas. O crime saiu na primeira página de todos, com exceção do Courier. Nada tão insignificante quanto um assassinato poderia tomar o lugar dos preços das ações e dos anúncios na página principal.
Ficaram sentados, bebericando os seus cafés espumosos, lendo as matérias em silêncio.
- Acho que podia ser pior - comentou Alex.
Esquisito fez uma expressão de incredulidade.
- Pior, como?
- Pelo menos eles escreveram os nossos nomes direito. Até mesmo o de Ziggy.
- Grandes merdas. Admito que eles se seguraram para não nos chamar de suspeitos. Mas é só isso o que a gente pode dizer a favor deles. Isso aqui passa uma péssima imagem da gente, Alex. Você sabe disso.
- Todo mundo que a gente conhece vai ver esses jornais - disse Mondo. - Todo mundo vai nos encher o saco por causa disso. Se esses são os meus quinze minutos de fama, podem ir para o inferno.
- Todo mundo ia ficar sabendo mesmo, de qualquer jeito - disse Alex. - Você sabe como é essa cidade, conhece a mentalidade provinciana das pessoas. Ninguém tem mais o que fazer, a não ser ficar fofocando sobre os vizinhos. Não precisa de jornal para espalhar as notícias por aqui. O lado bom é que metade da universidade mora na Inglaterra, então não vão nem ficar sabendo a respeito. E quando voltarmos para lá, depois do Ano-Novo, a história já vai ter morrido.
- Você acha? - Esquisito fechou o Scotsman com um ar de conclusão. - Vou te dizer uma coisa, a gente tem mais é que rezar para Maclennan descobrir logo quem fez isso e prender o sujeito.
- Por quê? - perguntou Mondo.
- Porque senão vamos ficar conhecidos pro resto da vida como os caras que conseguiram se safar de um assassinato.
Mondo tinha a expressão de um homem que havia acabado de saber que tinha um câncer terminal.
- Você está falando sério?
- Nunca falei tão sério na minha vida - disse Esquisito. - Se eles não prenderem ninguém pelo assassinato de Rosie, as pessoas só vão lembrar que fomos nós quatro que passamos a noite na delegacia. É óbvio, cara. Vamos receber um veredicto que não pode ser provado, sem irmos a julgamento. "Todo mundo sabe que foram eles, a polícia só não conseguiu provar" - acrescentou ele, imitando uma voz de mulher. - Acorda, Mondo, você nunca mais vai conseguir trepar novamente. - Ele riu, perverso, sabendo que havia atingido o calcanhar de aquiles do amigo.
- Vá se foder, Esquisito. Pelo menos, vou ter do que me lembrar - rebateu Mondo.
Antes que algum deles pudesse dizer mais alguma coisa, foram interrompidos por uma chegada inesperada. Ziggy surgiu diante deles, sacudindo o cabelo molhado de chuva.
- Achei que encontraria vocês aqui - disse ele.
- Ziggy, Esquisito está falando que... - começou Mondo.
- Deixe isso pra lá. Maclennan está aqui. Quer conversar com nós quatro de novo.
Alex ergueu as sobrancelhas.
- Ele quer levar a gente de volta pra St. Andrews?
Ziggy fez um gesto negativo com a cabeça.
- Não. Está aqui em Kirkcaldy. Quer que a gente encontre com ele na delegacia local.
- Merda - disse Esquisito. - O meu pai vai enlouquecer. Era para eu estar de castigo. Ele vai achar que eu estou mandando um foda-se para ele. Não dá pra dizer que fui parar na delegacia.
- Agradeçam ao meu pai por não termos que voltar para St. Andrews - disse Ziggy. - Ele ficou furioso quando Maclennan apareceu lá em casa. Fez um escândalo, acusou de estar nos tratando como criminosos, quando na verdade fizemos o possível para salvar Rosie. Teve uma hora que eu cheguei a achar que o meu pai ia bater nele com o jornal. - Ele sorriu. - Fiquei orgulhoso dele.
- Mandou bem - disse Alex. - Então, onde está Maclennan?
- Lá fora, no carro dele. Com o carro do meu pai estacionado do lado. - Ziggy sacudiu os ombros em uma gargalhada. - Acho que Maclennan nunca se deparou com alguém como o meu velho.
- Então temos que ir pra delegacia agora? - perguntou Alex.
Ziggy assentiu com a cabeça.
- Maclennan está nos esperando. Ele disse que o meu pai pode nos levar até lá, mas que não está a fim de perder tempo por aqui.
Dez minutos depois, Ziggy estava sentado a sós em uma sala de interrogatório. Quando chegaram à delegacia, Alex, Esquisito e Mondo foram levados para uma outra sala de interrogatório, sob o olhar atento de um guarda. Karel Malkiewicz havia sido abandonado sem cerimônia na recepção e Maclennan havia lhe dito, abruptamente, que esperasse por lá. E Ziggy havia sido levado para dentro, escoltado por Maclennan e Burnside, que o deixara mofando na sala, esperando.
Eles sabem o que estão fazendo, pensou ele, pesaroso. Deixá-lo isolado daquele jeito era a melhor receita para torná-lo inquieto. E estava funcionando. Embora não demonstrasse nenhum sinal aparente de tensão, Ziggy sentia-se tenso como uma corda de piano, vibrando de ansiedade. Os cinco minutos mais longos da sua vida chegaram ao fim quando os dois detetives reapareceram e sentaram-se diante dele.
Os olhos de Maclennan queimavam os seus, o seu rosto delgado enrijecido em um esgar de emoção reprimida.
- Mentir para a polícia é coisa séria - disse ele, sem preâmbulos, a voz entrecortada e rude. - Não é crime, mas também nos faz pensar o que exatamente você tem a esconder. Você teve uma noite toda para pensar direitinho. Gostaria de revisar o seu depoimento anterior?
Ziggy sentiu no peito o choque de um gélido espasmo de medo. Eles sabiam de alguma coisa. Estava na cara. Mas o quê? Não disse nada, esperando que Maclennan prosseguisse.
Maclennan abriu a sua pasta e retirou a folha com impressões digitais que Ziggy assinara na véspera.
- Essas são as suas impressões digitais?
Ziggy fez um gesto afirmativo com a cabeça. Sabia o que estava por vir.
- Você pode nos explicar como elas apareceram no volante e na marcha de uma Land Rover, registrada em nome de um Sr. Henry Cavendish, encontrada abandonada essa manhã no estacionamento de uma unidade industrial em Largo Road, St. Andrews?
Ziggy fechou os olhos por um momento.
- Sim, eu posso. - Fez uma pausa, tentando organizar os seus pensamentos. Havia ensaiado aquela conversa na cama pela manhã, mas todas as suas falas o abandonaram diante daquela realidade assustadora.
- Estou esperando, Sr. Malkiewicz.
- A Land Rover pertence a um dos estudantes que dividem a casa conosco. Nós a pegamos emprestada ontem à noite, para irmos à festa.
- Pegaram emprestada? Quer dizer que o Sr. Cavendish lhes deu permissão para sair por aí com a Land Rover dele? - avançou Maclennan, recusando-se a deixar Ziggy alcançá-lo.
- Não, não exatamente - Ziggy desviou o olhar de Maclennan, incapaz de encará-lo. - Olha, eu sei que não fizemos bem em pegar o carro, mas não foi nada de mais. - Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy soube que tinha falado uma besteira.
- Isso é crime. E tenho certeza de que você está ciente disso. Então, vocês furtaram a Land Rover e a levaram para a festa. Isso não explica como ela foi parar onde nós a encontramos.
A respiração de Ziggy agitava-se no peito, como uma mariposa enclausurada.
- Eu a levei até lá, por segurança. Estávamos bebendo e eu não queria que nenhum de nós se sentisse tentado a dirigi-la bêbado.
- Quando foi exatamente que você a levou para lá?
- Não sei ao certo. Provavelmente, entre uma e duas horas da manhã.
- Você já devia ter bebido bastante também, a essas alturas. - Maclennan ia de vento em popa, os ombros projetados para a frente, conforme avançava no interrogatório.
- Provavelmente já tinha passado do meu limite, sim. Mas...
- Outro crime. Então você mentiu quando disse que não havia saído da festa? - Os olhos de Maclennan eram como sondas cirúrgicas.
- Estive fora apenas tempo suficiente para levar a Land Rover e voltar a pé. Talvez uns vinte minutos.
- Isso é o que você diz. Conversamos com algumas pessoas que estavam na festa e parece que você não foi muito visto, não. Acho que esteve fora bem mais do que isso. Acho que você encontrou Rosie Duff no caminho e lhe ofereceu uma carona.
- Não!
Maclennan prosseguiu, implacável.
- E aconteceu alguma coisa que deixou você irritado e você a estuprou. Aí percebeu que ela poderia destruir a sua vida se procurasse a polícia. Você entrou em pânico e matou a moça. Sabia que teria que se livrar do corpo, mas como estava com a Land Rover, isso não seria nada de mais. Aí você removeu todos os vestígios de sangue e voltou para a festa. Não foi isso o que aconteceu?
Ziggy balançou a cabeça.
- Não. O senhor entendeu tudo errado. Não encontrei com ela, não encostei nela. Só me livrei do carro antes que alguém sofresse um acidente.
- O que aconteceu com Rosie Duff não foi um acidente. E você foi o responsável.
O medo produzira um rubor em sua face. Passou as mãos no cabelo.
- Olha, o senhor precisa acreditar em mim. Não tive nada a ver com a morte dela.
- E por que eu deveria acreditar em você?
- Porque estou dizendo a verdade.
- Não. O que você está me contando é uma nova versão dos fatos, que cobre o que você acha que eu sei. Isso não tem nada a ver com a verdade.
Fez-se um longo silêncio. Ziggy trincou a mandíbula, sentindo os músculos protuberantes nas suas bochechas.
Maclennan tornou a falar. Dessa vez, o seu tom de voz era mais suave.
- Vamos descobrir o que aconteceu. Você sabe disso. Enquanto conversamos, uma equipe de peritos experientes está analisando cada centímetro daquele carro. Se encontrarmos um pinguinho de sangue, um fio de cabelo de Rosie ou uma única fibra das suas roupas, você vai ficar um bom tempo sem dormir na sua cama. Você poderia poupar o seu sofrimento e o de seu pai agora, contando tudo de uma vez.
Ziggy quase deu uma gargalhada. Era uma jogada tão transparente que deixava flagrante a falta de trunfos na mão de Maclennan.
- Não tenho mais nada a dizer.
- Faça como quiser, filho. Vou prender você por se apoderar e dirigir um veículo sem o consentimento do dono. Você será solto sob fiança e terá que se apresentar na delegacia em uma semana. Sugiro que arrume um advogado, Sr. Malkiewicz.
Esquisito seria o próximo, inevitavelmente. Só podia ser a Land Rover, concluiu ele enquanto esperava, sentado em silêncio na sala de interrogatório. Tudo bem, disse a si mesmo. Contaria a verdade, assumiria a culpa. Não deixaria que os outros se prejudicassem por causa da sua inconsequência. Não o mandariam para a cadeia, não por causa de algo assim tão insignificante. Teria de pagar uma multa e ele daria um jeito de pagar. Poderia arrumar um trabalho de meio expediente. E depois, não havia muito problema em ser um matemático com ficha criminal.
Estava sentado diante de Maclennan e Burnside, com uma postura desleixada e um cigarro pendurado no canto da boca, tentando parecer descontraído.
- Como posso ajudar os senhores? - perguntou ele.
- A verdade seria um bom começo - disse Maclennan. - De alguma maneira, você parece ter esquecido que andou saracoteando por aí em uma Land Rover, quando, supostamente, estava numa festa.
Esquisito abriu as mãos com um gesto.
- Aí você me pegou. Foi apenas o ato de um jovem bem-humorado, senhor.
Maclennan bateu com as mãos na mesa.
- Isso aqui não é brincadeira, rapaz! Houve um assassinato! Então pare de bancar o engraçadinho.
- Mas é verdade, sério. Veja bem, o tempo estava uma merda. Os caras tinham ido na frente para o Lammas enquanto eu terminava de lavar os pratos. Eu estava parado na cozinha, olhando para a Land Rover lá fora e pensei assim: por que não? Henry tinha voltado para a Inglaterra mesmo e não ia fazer mal a ninguém se eu pegasse o carro emprestado por algumas horas. Então, eu peguei e fui até o pub. Os caras ficaram putos comigo, mas quando viram que a neve estava braba, reconheceram que não era uma má ideia, afinal. Então fomos pra festa. Mais tarde, Ziggy levou o carro embora, para impedir que eu fizesse alguma besteira. - Ele deu de ombros. - Sério. Não falamos nada antes porque não queríamos que o senhor perdesse o seu tempo com uma bobagem.
Maclennan olhava fixamente para ele.
- Estou perdendo o meu tempo com você agora. - Ele abriu a sua pasta. - Temos aqui o depoimento de Helen Walker, dizendo que você a convenceu a dar uma volta de carro. Segundo ela, você estava tentando agarrá-la enquanto dirigia. A sua direção tornou-se tão caótica que a Land Rover derrapou e atolou na calçada. Ela pulou para fora do carro e correu de volta para a festa. Ela disse, e estou lendo agora, "ele estava descontrolado".
Esquisito fez uma careta, batendo a cinza de cigarro que caíra no seu blusão.
- Que garota idiota - disse ele, a voz menos confiante do que as palavras.
- O quão descontrolado você estava, filho?
Esquisito ensaiou um riso.
- Mais uma das suas perguntas capciosas. Olha, tudo bem, eu assumo que estava meio empolgado demais, sim. Mas existe uma grande diferença entre se divertir com um carro emprestado e matar uma pessoa.
Maclennan olhou para ele com desprezo.
- Essa é a sua ideia de diversão? Molestar uma moça e assustá-la a ponto de ela preferir correr pela nevasca a ficar sentada em um carro com você? - Esquisito desviou o olhar, suspirando. - Você deve ter ficado furioso. Leva uma mulher para dentro do seu carro furtado, acha que vai impressioná-la e conseguir algo com ela, mas, ao invés, ela sai correndo. Aí, o que acontece? Você vê Rosie na neve e acha que a sua mágica vai funcionar com ela. Só que ela não quer saber disso, repele você o quanto pode, mas você a subjuga. E aí você perde o controle, porque sabe que ela pode destruir a sua vida.
Esquisito levantou-se, de supetão.
- Eu não sou obrigado a ficar aqui ouvindo essa palhaçada! Você fica aí cheio de merda, mas não tem nada concreto contra mim e sabe disso!
Burnside ficou de pé, obstruindo a passagem de Esquisito até a porta enquanto Maclennan se recostou na cadeira.
- Devagar, filho - disse Maclennan. - Você está preso.
Mondo encolheu os ombros em uma frágil defesa contra o que sabia que estava por vir. Maclennan olhou longa e duramente para ele.
- Digitais - disse ele. - As suas digitais no volante de uma Land Rover furtada. Você tem algo a dizer sobre isso?
- Não foi furtada. Apenas emprestada. Furtada é quando você não planeja devolver, não é? - Mondo soou petulante.
- Estou esperando - disse Maclennan, ignorando a resposta.
- Dei carona para uma pessoa, tá legal?
Maclennan curvou-se para a frente, como um cão farejando a presa.
- Quem?
- Uma garota que estava lá na festa. Ela precisava voltar para Guardbridge e eu me ofereci para levá-la em casa. - Mondo enfiou a mão dentro da jaqueta e sacou um pedaço de papel. Havia anotado todos os detalhes sobre a garota enquanto esperava, prevendo aquele momento. De algum modo, evitar dizer o seu nome em voz alta tornava a coisa menos real, menos importante. E depois, chegara à conclusão de que se fizesse a coisa direitinho, pareceria menos culpado. Dane-se se, para isso, tivesse de deixar uma garota mal com os seus pais. - Aqui está, podem perguntar, ela vai confirmar.
- A que horas foi isso?
Ele deu de ombros.
- Não sei. Talvez por volta das duas.
Maclennan olhou para o nome e o endereço no papel. Nenhum dos dois lhe parecia familiar.
- O que aconteceu então?
Mondo deu um sorrisinho convencido, em um momento mundano de cumplicidade masculina.
- Levei ela pra casa. Fizemos sexo. Aí nos despedimos. Então, inspetor, como o senhor vê, eu não tinha nenhum motivo para estar interessado em Rosie Duff, mesmo que encontrasse com ela. O que não aconteceu. Eu tinha acabado de transar. Estava me sentindo bem satisfeito comigo mesmo.
- Você disse que fizeram sexo. Onde, exatamente?
- No banco de trás da Land Rover.
- Você usou preservativo?
- Eu nunca acredito quando elas dizem que estão tomando pílula. O senhor acredita? É claro que usei preservativo. - Agora Mondo sentia-se mais relaxado. Aquele era um território que compreendia, um território no qual os machos se uniam em conluio em uma conspiração de entendimento mútuo.
- O que você fez com ele depois?
- Joguei pra fora pela janela. Ter deixado no carro daria a maior bandeira com o Henry, sabe? - Podia ver Maclennan lutando para descobrir uma nova direção para as suas perguntas. Mondo estava certo. A sua confissão havia bagunçado a linha do interrogatório. Ele não estivera rodando de carro pela neve, frustrado e desesperado por sexo. Então que motivo teria para estuprar e matar Rosie Duff?
Maclennan deu um sorriso intimidador, recusando-se a fazer parte da camaradagem que Mondo supunha estar compartilhando com ele.
- Verificaremos a sua história, Sr. Kerr. Vamos ver se essa moça vai confirmar o que você contou. Porque se ela não confirmar, aí a coisa fica bem diferente, não é mesmo?
9
Nem parecia véspera de Natal. Andando até a padaria para comprar uma torta na hora do almoço, Barry Maclennan experimentou a sensação de ter sido transportado para um universo paralelo. As vitrines das lojas floresciam com decorações espalhafatosas de Natal, luzes artificiais piscavam no crepúsculo e as ruas estavam abarrotadas de pessoas caminhando com dificuldade devido ao peso de gordas sacolas de compras. Tudo aquilo parecia estranho aos seus olhos. As preocupações daquelas pessoas nada tinham a ver com as dele; elas podiam se dar ao luxo de esperar algo mais do que uma ceia de Natal conspurcada pelo amargo gosto da derrota. Já haviam se passado oito dias desde o assassinato de Rosie, e até agora, nenhuma perspectiva de prisão.
Estivera confiante de que a descoberta da Land Rover seria a pedra fundamental que sustentaria o caso contra um ou mais dos quatro estudantes. Principalmente depois dos interrogatórios em Kirkcaldy. As histórias deles eram bastante plausíveis, mas tinham tido um dia para aperfeiçoá-las. E ele ainda estava com a sensação de que não tinham contado toda a verdade, embora fosse difícil precisar onde exatamente estavam mentindo. Não acreditava em quase nada do que Tom Mackie dissera, mas Maclennan era honesto o suficiente para reconhecer que a sua incredulidade poderia estar relacionada à antipatia profunda que nutria pelo estudante de matemática.
Ziggy Malkiewicz era astuto, disso ele estava ciente. Se ele fosse o assassino, Maclennan sabia que não chegaria a lugar algum até obter provas concretas; o estudante de medicina não ia entregar os pontos. Julgara ter colocado a história de Davey Kerr abaixo quando a moça em Guardbridge negou ter feito sexo com ele. Mas Janice Hogg, que o acompanhou por uma questão de decoro, saíra de lá convencida de que a moça estava mentindo, tentando equivocadamente proteger a sua reputação. De fato, quando ele mandou Janice novamente até lá para conversar com a moça a sós, ela reconsiderou e admitiu ter deixado Kerr fazer sexo com ela. Não parecia ter sido uma experiência que ela estava ansiosa para repetir. O que, Maclennan pensou, era algo interessante. Talvez Davey Kerr não estivesse assim tão satisfeito e animado quanto fingira estar.
Alex Gilbey era um possível candidato, o problema é que não havia nenhuma evidência de que dirigira a Land Rover. As suas digitais estavam por toda parte no interior do veículo, mas não chegavam nem perto do lugar do motorista. O que não livrava a sua cara, entretanto. Se Gilbey tivesse assassinado Rosie, possivelmente teria pedido a ajuda dos outros, e era bem provável que eles tivessem ajudado; Maclennan não duvidava da força do elo que os unia. E se Gilbey tivesse conseguido um encontro com Rosie, que tivesse terminado muito mal, Maclennan tinha certeza absoluta de que Malkiewicz não teria pensado duas vezes antes de fazer tudo o que pudesse para proteger o amigo. Gilbey sabendo disso ou não, Malkiewicz estava apaixonado por ele, concluíra Maclennan, baseando-se estritamente no seu instinto.
Mas havia algo mais do que o seu instinto em jogo. Após a frustrante série de interrogatórios, estava prestes a voltar para St. Andrews quando uma voz familiar o chamou.
- Ei, Barney, ouvi dizer que você estava na área - ecoou a voz no breu do estacionamento.
Maclennan virou-se para trás.
- Robin? É você?
Uma figura elegante em um uniforme de polícia surgiu em uma poça de luz. Robin Maclennan era quinze anos mais novo do que o irmão, mas a semelhança era impressionante.
- Achou que ia sair de fininho, sem dar ao menos um olá?
- Eles me informaram que você estava fazendo a ronda.
Robin alcançou o irmão e o cumprimentou com um aperto de mão.
- Acabei de voltar para um lanchinho. Pensei ter visto você quando estacionamos. Venha tomar um café comigo antes de ir embora. - Ele sorriu e deu um soco camarada no ombro de Maclennan. - Tenho algumas informações e acho que você vai gostar.
Maclennan franziu as sobrancelhas, vendo o irmão bater em retirada. Robin, sempre confiante no seu charme, não havia sequer esperado a reação do irmão e já estava a caminho do prédio que abrigava a cantina. Maclennan o alcançou na porta.
- Como assim, informações? - perguntou ele.
- Sobre os tais estudantes que você está investigando, em relação ao assassinato de Rosie Duff. Resolvi fazer umas pesquisas, sondar por aí, ver o que as pessoas tinham para dizer.
- Você não devia estar se envolvendo com isso, Robin. O caso não é seu. - Maclennan protestou enquanto seguia o irmão pelo corredor.
- Um crime como esse é caso de todo mundo.
- Mesmo assim. - Se não chegasse a lugar algum com aquele caso, não queria que o seu fracasso respingasse no seu irmão brilhante e carismático. Robin gostava de agradar; ia alcançar um posto bem mais alto do que o seu na polícia, e ele merecia. - Nenhum deles tem ficha criminal. Eu já verifiquei.
Robin virou-se quando entraram na cantina e acendeu novamente o seu sorriso de cem watts.
- Escuta, essa aqui é a minha área. Consigo fazer com que as pessoas me digam coisas que não vão dizer pra você.
Intrigado, Maclennan seguiu o irmão até uma mesa de canto e esperou pacientemente enquanto Robin buscava os cafés.
- Então, o que você sabe?
- Bem, os seus rapazes não são exatamente inocentes por essas bandas. Quando tinham uns treze anos, foram pegos furtando numa loja.
Maclennan deu de ombros.
- Quem nunca furtou uma coisinha aqui ou ali quando era criança?
- É, mas não foram apenas algumas barras de chocolate ou um maço de cigarros. Foi o que podemos chamar de Furto Desafio Fórmula 1. Parece que apostaram para ver quem conseguia furtar coisas realmente difíceis, só pela diversão. Quase sempre em lojas pequenas. Nada que estivessem querendo ou precisando em especial. Valia tudo, desde podadeiras de jardim até perfumes. Quem foi pego foi o Kerr, com um vaso chinês em uma mercearia. Os outros três foram surpreendidos esperando por ele na rua. Abriram o jogo em dois tempos quando chegaram à delegacia. Até nos levaram ao galpão no jardim de Gilbey, onde escondiam os produtos roubados. Tudo dentro da embalagem. - Robin balançou a cabeça, intrigado. - O sujeito que efetuou a prisão disse que parecia a caverna de Aladim.
- E o que aconteceu?
- Alguém mexeu os pauzinhos. O pai de Gilbey é diretor de escola, o pai de Mackie joga golfe com o chefe superintendente. Saíram com uma advertência e morrendo de medo.
- Interessante. Mas está longe de ser o Assalto ao Trem Pagador.
Robin concordou com a cabeça.
- Mas tem mais. Há alguns anos, tivemos uma série de brincadeiras com carros estacionados. Os donos voltavam e encontravam o vidro do carro rabiscado por dentro, com batom. Mas os carros estavam trancados. A coisa parou de acontecer de repente, assim como começou, mais ou menos na época em que um carro furtado pegou fogo. Nunca tivemos nada de concreto contra eles, mas o nosso oficial local do serviço secreto acha que eles estavam por trás das brincadeiras. Ao que parece, eles têm um dom para sacanear os outros.
Maclennan assentiu.
- Não posso discordar disso. - Estava intrigado com a história dos carros. Talvez a Land Rover não fosse o único veículo na estrada naquela noite com um dos suspeitos atrás do volante.
Robin estava ansioso para saber mais detalhes sobre a investigação, mas Maclennan fugiu do assunto direitinho. A conversa descambou para amenidades - família, futebol, o que comprar para os pais no Natal - até Maclennan conseguir ir embora. As informações de Robin não eram lá grande coisa, era verdade, mas fizeram com que Maclennan sentisse que havia um padrão nas atividades dos Garotos de Kirkcaldy: a atração pelo perigo. Era o tipo de comportamento que podia facilmente evoluir para algo mais arriscado.
Intuições eram ótimas, mas não valiam nada sem provas concretas. E ele não tinha nenhuma prova concreta. A Land Rover tornara-se um beco sem saída para a perícia. Haviam praticamente desmontado todo o seu interior e não encontraram nada que acusasse a presença de Rosie Duff lá dentro. Tiveram um momento de alegria fugaz quando os oficiais presentes na cena do crime descobriram vestígios de sangue, mas um exame mais minucioso revelou que o sangue não só não pertencia a Rosie Duff, como não era sequer humano.
A única vaga esperança no horizonte surgira na véspera. O dono de uma casa em Trinity Place estava fazendo uma limpeza no jardim quando encontrou uma trouxa de tecido encharcada escondida na sebe. A Sra. Duff a identificara como sendo de Rosie. Agora, a peça estava no laboratório sendo examinada, mas Maclennan sabia que, apesar do pedido de urgência, não teria nenhuma resposta antes do Ano-Novo. Mais uma frustração para engrossar a sua lista.
Não conseguia sequer decidir se autuava Mackie, Kerr e Malkiewicz por terem pegado e dirigido um veículo sem autorização do dono. Todos três haviam cumprido os requisitos da fiança religiosamente e ele estava prestes a autuá-los quando ouviu sem querer uma conversa no clube da polícia. Estava protegido dos olhares dos policiais que conversavam por uma banqueta, mas reconheceu as vozes de Jimmy Lawson e Iain Shaw. Shaw era a favor de imputarem quantas acusações pudessem contra os estudantes. Mas, para a surpresa de Maclennan, Lawson era contra.
- Isso só pega mal pra gente - disse o policial. - Dá a impressão de que somos mesquinhos e vingativos. É como colocar um anúncio dizendo: Olha, não conseguimos pegá-los por assassinato, mas vamos infernizar a vida deles de qualquer jeito.
- E o que há de errado nisso? - quis saber Shaw. - Se são culpados, têm mais é que sofrer.
- E se não forem? - respondeu Lawson, insistente. - Temos que fazer justiça, não temos? E isso não é só sair por aí prendendo os culpados. Temos que proteger os inocentes também. Tudo bem, eles mentiram para Maclennan sobre a Land Rover. Mas isso não os torna assassinos.
- Mas se não foi nenhum deles, quem foi? - desafiou Shaw.
- Ainda acho que tem algo a ver com Hallow Hill. Algum ritual pagão ou algo assim. Você sabe tão bem quanto eu que todo ano recebemos denúncias sobre animais que parecem ter sido vítimas de matança ritualista na floresta Tentsmuir. E nunca damos bola, porque parece algo insignificante diante de preocupações mais sérias. Mas e se um maluco já estava preparando isso, há anos? Afinal de contas, o crime ocorreu bem perto da Saturnália.
- Saturnália?
- Os romanos celebravam o solstício de inverno no dia 17 de dezembro. Mas o feriado não caía sempre no mesmo dia.
Shaw bufou, incrédulo.
- Cruzes, Jimmy, você andou pesquisando mesmo, hein?
- Não, só perguntei lá na biblioteca. Você sabe que eu quero entrar para o DIC. Estou apenas querendo mostrar empenho.
- Então você acha que foi um lunático satanista que matou Rosie?
- Não sei. É só uma teoria. Mas vamos ficar com a cara no chão se apontarmos os quatro estudantes como culpados e acontecer outro sacrifício humano próximo do Beltane.
- Beltane? - perguntou Shaw, perdido.
- Final de abril, início de maio. Megafestival pagão. Por isso, eu acho que devíamos pensar duas vezes antes de partir para cima dos garotos, até termos algo mais concreto contra eles. Afinal, se eles não tivessem encontrado o corpo de Rosie, teriam devolvido o carro e ninguém teria ficado sabendo, ninguém teria sido prejudicado. Eles tiveram azar, só isso.
Terminaram as suas bebidas e saíram. Mas Maclennan não conseguia tirar as palavras de Lawson da cabeça. Ele era um homem justo e não podia deixar de dar razão ao policial. Se tivessem apurado desde o início a identidade do homem misterioso que andava se encontrando com Rosie, mal teriam prestado atenção ao quarteto de Kirkcaldy. Talvez estivesse sendo duro com eles simplesmente porque não tinha para onde desviar o seu foco. Por mais desconfortável que fosse ter de ser lembrado das suas obrigações por um garoto de uniforme, Lawson convencera Maclennan que devia desistir de autuar Malkiewicz e Mackie.
Por enquanto, pelo menos.
Nesse ínterim, ia aproveitar para sondar mais um pouco, colher informações. Tentar descobrir se alguém estava sabendo de rituais satânicos naquela área. O problema é que não fazia nem ideia de por onde começar. Talvez mandasse Burnside conversar com alguns dos padres locais. Não pôde evitar um sorriso ao pensar que essa conversa de rituais satânicos em pleno Natal certamente ia desviar a atenção dos padres do Jesus recém-nascido.
Esquisito se despediu de Alex e de Mondo no fim do expediente e seguiu em direção ao passeio. Encolhendo os ombros por causa do vento gelado, enterrou o queixo no cachecol. Tinha de terminar de fazer as suas compras de Natal, mas precisava de um tempo sozinho antes de encarar a incansável euforia festiva da High Street.
A maré estava baixa, então ele desceu pelos degraus escorregadiços do passeio até a praia. A areia molhada estava da cor de cimento na luz acinzentada do crepúsculo e grudava nos seus sapatos enquanto ele andava. O que combinava perfeitamente com o seu humor. Nunca estivera tão deprimido na vida.
O clima na sua casa estava mais beligerante do que o normal. Tivera de contar ao pai que havia sido preso e a sua revelação provocara uma saraivada constante de críticas e alfinetadas sobre o seu fracasso como bom filho. Tinha de justificar cada minuto passado fora de casa, como se tivesse dez anos de idade novamente. E o pior de tudo era que Esquisito não conseguia sequer sentir-se por cima. Sabia que tinha feito besteira. Chegava quase a achar que merecia o desprezo do pai e isso era o que o deixava ainda mais deprimido. Sempre conseguira consolar-se acreditando que tinha razão. Mas dessa vez, ultrapassara todos os limites.
O trabalho também não estava grande coisa. Chato, repetitivo e humilhante. Em outros tempos, teria transformado tudo em uma grande piada, uma oportunidade para criar confusões e pregar peças. A pessoa que teria adorado perturbar os seus supervisores com o aval de Alex e Mondo em uma série de brincadeiras parecia um estranho distante para Esquisito agora. O que acontecera a Rosie Duff e o seu envolvimento no caso o forçaram a reconhecer que ele era mesmo o inútil que seu pai acreditava que ele fosse. E essa não era uma descoberta confortável.
Também não conseguia encontrar consolo nos amigos. Pela primeira vez, estar com os outros não lhe dava a sensação de ter sido absorvido em um sistema de apoio. Pelo contrário: era como um lembrete de todos os seus defeitos. Não conseguia deixar de se sentir culpado quando estava com eles, pois havia prejudicado a todos com as suas atitudes, ainda que nenhum deles o culpasse por isso.
Não conseguia nem imaginar como enfrentaria o próximo semestre. Algas surgiam e escorregavam sob os seus pés enquanto caminhava até o final da praia e começava a subir os degraus largos em direção a Port Brae. Assim como as algas, ele também se sentia coberto de lodo e inconstante.
À medida que a noite caía e a luz apagava-se no poente, Esquisito seguia rumo às lojas. Hora de fingir que voltava a ser parte do mundo novamente.
10
Ano-Novo, 1978; Kirkcaldy, Escócia
Haviam feito um pacto, quando tinham quinze anos, na primeira vez que os pais os deixaram participar do first footing.[5] Na véspera do Ano-Novo, à meia-noite, os quatro Garotos de Kirkcaldy se encontrariam na Town Square e virariam o ano juntos. Até então, haviam cumprido a promessa todo ano, lado a lado aos solavancos enquanto os ponteiros do relógio da praça aproximavam-se das doze badaladas. Ziggy trazia o seu rádio transistor para assegurar-se de que ouviriam o badalar dos sinos e eles passavam adiante um para o outro a bebida que conseguiam trazer consigo. Comemoraram o seu primeiro Ano-Novo juntos com uma garrafa de xerez doce e quatro latas de cerveja. Atualmente, preferiam uma garrafa de uísque.
Não havia uma comemoração oficial na praça mas, nos últimos anos, grupos de jovens passaram a gostar de se reunir lá. Não era um lugar particularmente atraente, em grande parte porque a Town House lembrava um dos produtos menos atraentes da arquitetura soviética, com a sua torre do relógio esverdeada. Mas aquele era o único espaço ao ar livre no centro da cidade, tirando a rodoviária, que era ainda mais sem graça. A praça, pelo menos, ostentava uma árvore de Natal, o que a tornava ligeiramente mais festiva do que a rodoviária.
Naquele ano, Alex e Ziggy chegaram juntos. Ziggy o buscara em casa e convencera Mary Gilbey com o seu charme a lhes dar uma dose de uísque, por causa do frio. Com os bolsos cheios de biscoitos caseiros amanteigados, pãezinhos que ninguém ia comer e bolo com passas brancas, passaram pela estação de trem e pela biblioteca, pelo Adam Smith Centre, com os seus cartazes anunciando o espetáculo Babes in the Wood com Russell Hunter e os Patton Brothers, e pelo cemitério onde repousavam os heróis de guerra. Começaram a conversar, especulando se Esquisito ia conseguir convencer o pai a sair do castigo no Hogmanay.
- Ele está muito estranho ultimamente - disse Alex.
- Gilly, ele é estranho. É por isso que o chamamos de Esquisito.
- Eu sei, mas ele anda diferente. Eu percebi, trabalhando junto com ele. Ele está meio submisso. E muito calado.
- Vai ver que é porque não está podendo ter acesso a álcool e drogas - disse Ziggy, debochado.
- Mas ele não está nem rebelde. Aí é que está. Você conhece a peça. Na hora em que ele percebe que tem alguém disposto a sacanear, é com ele mesmo. Mas ele tem abaixado a cabeça, não tem nem respondido aos supervisores quando eles enchem o saco. Ele fica parado, ouvindo, e aí faz o que eles querem que ele faça. Você acha que tem a ver com essa história da Rosie?
Ziggy deu de ombros.
- Pode ser. Na hora, ele levou numa boa, mas depois ficou fora de si. Para falar a verdade, eu mal falei com ele depois do dia em que Maclennan apareceu por aqui.
- Eu também só encontrei com ele no trabalho. Assim que dá a hora de ir embora, ele se manda. Não tem nem topado ir tomar um café comigo e com Mondo.
Ziggy fez uma careta.
- É de se admirar que Mondo tenha tempo para tomar café.
- Pega leve com ele. Foi a maneira que ele encontrou para lidar com a situação. Quando está indo até os finalmentes com uma garota, esquece o assassinato. Daqui a pouco, vai bater o seu próprio recorde - acrescentou Alex com um sorriso.
Atravessaram a rua e desceram a Wemyssfield, a pequena rua que dava para a praça. Tinham o andar confiante dos que se sentem em casa, em um lugar tão familiar que lhes conferia uma espécie de propriedade. Faltavam dez minutos para a meia-noite quando desceram os degraus largos e baixos que davam para a área asfaltada fora da Town House. Já havia vários grupos passando garrafas de mão em mão. Alex olhou à sua volta, para ver se conseguia localizar os outros.
- Ali, perto do Correio - disse Ziggy. - Mondo trouxe a sua última conquista. E, ah, Lynn também está lá com eles. - Ele apontou para a esquerda e eles avançaram para encontrar com os outros.
Após os cumprimentos e a constatação geral de que provavelmente Esquisito não ia aparecer, Alex se viu ao lado de Lynn. Ela estava crescendo, pensou ele. Não era mais uma criança. Com as suas feições élficas e os seus cachos negros, era uma versão feminina de Mondo. Mas, por mais paradoxal que fosse, os elementos que enfraqueciam o rosto dele tinham o efeito oposto no de Lynn. Não havia absolutamente nada de frágil nela.
- E aí, como é que tá? - perguntou Alex. Não era a melhor das abordagens, mas ele também não queria que pensassem que ele estava cantando uma garota de quinze anos.
- Tudo ótimo. Passou um bom Natal?
- Nada mal. - Ele franziu o rosto. - Foi meio difícil não pensar na... você sabe.
- Sei. Eu também não consegui parar de pensar nela. Fiquei imaginando como a família deve estar. Quando ela morreu, eles provavelmente já tinham comprado os presentes de Natal e tudo. Deve ter sido uma lembrança horrível, ficar com os presentes dentro de casa.
- Eu acho que tudo deve ser uma lembrança horrível. Bom, vamos mudar de assunto, né? Como vai a escola?
Lynn murchou. Ela não queria ser lembrada da diferença de idade entre eles, percebeu Alex.
- Tudo bem. Termino o primeiro grau esse ano. E depois, o segundo. Não vejo a hora de me livrar da escola e começar a minha vida.
- Você já sabe o que vai querer fazer? - perguntou Alex.
- Escola de Arte de Edimburgo. Quero me formar em Belas-Artes e depois ir para o Instituto de Arte Courtauld, em Londres, aprender a restaurar quadros.
A sua confiança era bonita de se ver, pensou Alex. Algum dia tivera tanta certeza? Ele foi parar em História da Arte porque jamais tivera confiança no seu talento como artista. Ele assobiou:
- Sete anos de estudo? É um compromisso e tanto.
- É o que é preciso para o que eu quero fazer.
- Por que quer restaurar quadros? - Estava sinceramente curioso.
- A restauração me fascina. Primeiro a pesquisa, depois a ciência e finalmente o salto no escuro quando você tem que entrar em sintonia com o que o artista realmente queria que nós víssemos. É empolgante, Alex.
Antes que ele pudesse responder, os outros gritaram:
- Ele veio!
Alex virou-se para ver Esquisito, a sua silhueta destacando-se contra o imponente e cinzento Tribunal de Justiça. Ele balançava os braços como um espantalho desconjuntado, correndo aos gritos. Alex olhou para o relógio na torre. Faltava apenas um minuto.
Logo Esquisito juntou-se a eles, abraçando a todos e sorrindo.
- Eu pensei, isso é ridículo. Eu sou um adulto e o meu pai está me impedindo de virar o ano com os meus amigos. O que é que há? - Ele balançou a cabeça. - Se ele me colocar pra fora, posso dormir na sua casa, Alex?
Alex lhe deu um murro no ombro.
- Por que não? Já estou acostumado com o seu ronco nojento mesmo.
- Silêncio, pessoal. - A voz de Ziggy abafou a gritaria. - Os sinos.
Um silêncio profundo desceu sobre eles enquanto tentavam ouvir a muito custo o longínquo repique do Big Ben pelo rádio de Ziggy. Ao soar meia-noite, os Garotos de Kirkcaldy entreolharam-se. Suspenderam os braços como se movidos por um único barbante e deram as mãos na última badalada.
- Feliz Ano-Novo - disseram em uníssono. Alex percebeu que os amigos estavam tão comovidos quanto ele.
Separaram-se e o momento se foi. Ele virou-se para Lynn e a beijou castamente nos lábios.
- Feliz Ano-Novo - disse ele.
- Eu acho que vai ser, sim - respondeu ela, ficando com o rosto corado.
Ziggy abriu a garrafa de uísque e passou de mão em mão. Os grupos na praça comemoravam, todo mundo se abraçando e desejando um feliz ano-novo a estranhos, com bafo de uísque e abraços generosos. Algumas pessoas que os conheciam da escola compadeceram-se da falta de sorte dos quatro, ao encontrarem o corpo da moça morta na neve. Não havia malícia em suas palavras, mas Alex pôde ver nos olhos dos amigos que eles detestavam aquilo tanto quanto ele. Um grupo de garotas estava improvisando uma dança típica escocesa para oito pessoas em volta da árvore de Natal. Alex olhou à sua volta, incapaz de articular as emoções que cresciam no seu peito.
Lynn tomou a sua mão, discretamente.
- Em que você está pensando, Alex?
Ele olhou para ela e forçou um sorriso cansado.
- Estava pensando em como as coisas seriam mais fáceis se eu pudesse congelar o tempo agora. Se eu nunca mais tivesse que voltar para St. Andrews.
- Não vai ser tão ruim quanto você pensa. São só seis meses e depois você vai ficar livre.
- Eu poderia vir nos finais de semana. - As palavras saíram de sua boca antes mesmo de Alex saber que ia dizê-las. Ambos sabiam o que elas significavam.
- Eu ia gostar muito - respondeu ela. - Só não vamos contar nada pro chato do meu irmão, ok?
Novo ano, novo pacto.
No clube social da polícia em St. Andrews, a bebida já estava rolando há algumas horas. O badalar dos sinos quase passou despercebido graças à barulhenta animação da dança de Hogmanay. O único senão no alegre tumulto daqueles que não podiam se dar ao luxo de serem sempre assim por causa da profissão era a presença das esposas, noivas e qualquer outra mulher que conseguiam convencer a participar da festa, para quebrar o galho dos solteiros.
Ruborizado pelo esforço físico, Jimmy Lawson estava ladeado por duas senhoras de meia-idade que trabalhavam como telefonistas na delegacia em uma dança típica. A bonita recepcionista de consultório de dentista que havia vindo com ele fugira para o toalete, exausta com o seu entusiasmo, aparentemente sem limites, pela dança escocesa. Ele não estava ligando muito: sempre havia mulheres interessadas em dançar um pouco no Ano-Novo e Lawson gostava de descarregar a tensão dançando. Ajudava a compensar a intensidade que ele empregava no trabalho.
Barney Maclennan estava encostado no bar, entre Iain Shaw e Allan Burnside, cada um segurando uma dose generosa de uísque.
- Meu Deus, olhe só para eles - resmungou Maclennan. - O pior é que essa provavelmente não é a última dança.
- Em noites assim, vale a pena ser solteiro - disse Burnside. - Já pensou ter alguém te arrastando para o salão? Fazendo com que abandone uma boa dose de uísque?
Maclennan não respondeu. Perdera a conta das vezes que tentara se convencer de que estava melhor sem Elaine. Só conseguia por algumas horas. Ainda estavam juntos no último Ano-Novo, mas só para constar. Aguentavam-se com menos determinação do que os dançarinos aguentavam girar sem cessar com os seus pares no salão. Algumas semanas após o Ano-Novo, ela foi embora. Estava cansada de estar sempre abaixo do trabalho na escala de prioridades dele.
Percebendo a ironia da lembrança, Maclennan recordou-se de uma de suas queixas: "Eu não ia nem ficar tão chateada assim se você estivesse trabalhando em casos importantes, como um estupro, um assassinato. Mas você fica até tarde perdendo tempo com assaltantes baratos e furtos de carro. Como é que você acha que eu me sinto, sendo trocada pelo carro de um velho babaca?" Bom, o desejo dela virara realidade. Ali estava ele, um ano depois, envolvido no maior caso da sua carreira. E, até agora, todos os seus esforços haviam sido em vão.
Todos os caminhos davam em becos sem saída. Não haviam encontrado uma testemunha sequer que tivesse visto Rosie com um homem no início de novembro. Para a sorte do homem misterioso, aquele havia sido um inverno cruel e as pessoas estavam mais interessadas no palmo de chão diante de si do que em quem estava saindo com quem não devia. Sorte do assassino, azar da polícia. Localizaram os dois últimos namorados de Rosie. Um havia terminado com ela para ficar com uma garota, com quem ainda estava namorando. Não tinha muito o que dizer sobre a garçonete assassinada. Rosie havia dispensado o outro no início de novembro e, a princípio, ele parecia um suspeito promissor. Havia relutado um pouco em aceitar o término e fora visto algumas vezes criando problemas no pub. Mas tinha um bom álibi para aquela noite em questão. Estivera na festa de Natal do escritório onde trabalhava até depois de meia-noite, depois fora para casa com a secretária do chefe e passara a noite com ela. Ele admitiu que havia ficado magoado quando Rosie terminou o namoro na época, mas que, para ser sincero, estava se divertindo muito mais com uma mulher um pouco mais generosa em termos de favores sexuais.
Quando Maclennan o pressionou para que explicasse melhor o que queria dizer com aquele comentário, ele foi tomado por orgulho masculino e não quis responder. Mas, sob pressão, admitiu que ele e Rosie jamais fizeram sexo. Faziam outras coisas; Rosie não era uma puritana. Mas recusava-se a ir até o fim. Ele mencionou sexo oral e masturbações, mas afirmou que nunca foram além disso.
Então Brian tinha razão, em parte, quando disse que a irmã era certinha. Maclennan compreendia que, na hierarquia daquelas coisas, Rosie estava longe de ser uma doidivanas. Mas um conhecimento íntimo das suas tendências sexuais não o ajudava a encontrar o seu assassino. Lá no fundo, ele sabia que era bem provável que o homem com quem ela se encontrou na noite do crime havia sido o homem que a estuprara e assassinara. Poderia ser Alex Gilbey ou qualquer um dos seus amigos. Ou não.
Os seus colegas detetives argumentaram que devia haver um bom motivo para o namorado misterioso não ter aparecido até agora. "Talvez ele seja casado", dissera Burnside. "Talvez esteja com medo de colocarmos a culpa nele", acrescentara Shaw, cínico. Eram explicações razoáveis, Maclennan sabia disso. Mas não alteravam a sua convicção pessoal. As teorias de Jimmy Lawson sobre rituais satânicos eram besteira. Os padres com quem Burnside conversara jamais haviam ouvido um rumor sequer sobre algo assim acontecendo por aquelas bandas. E Maclennan achava que eles eram as pessoas mais indicadas para possuir esse tipo de informação. Estava aliviado, de certo modo: o que menos precisava no momento era de pistas falsas. Tinha certeza de que Rosie conhecia o assassino e que caminhara noite afora com ele, confiante.
Assim como milhares de mulheres no país fariam naquela noite de Ano-Novo. Maclennan esperava fervorosamente que todas elas voltassem para casa sãs e salvas.
A aproximadamente cinco quilômetros dali, em Strathkinness, o Ano-Novo começara em um clima bem diferente. Lá, não havia decorações natalinas. Os cartões de Natal empilhados haviam sido esquecidos em uma prateleira. A televisão, que normalmente era a primeira a aclamar o primeiro dia de janeiro, estava desligada e silenciosa em um canto. Eileen e Archie Duff estavam aninhados cada qual em uma cadeira, com copos de uísque intactos ao seu lado. A calmaria opressiva suportava o peso da dor e da depressão. A família Duff sabia, no fundo do coração, que jamais teria um feliz Ano-Novo dali para frente. As festas de fim de ano estariam para sempre maculadas pela morte da filha. Os outros que comemorassem; eles podiam apenas lamentar.
Na copa, Brian e Colin estavam sentados de cabeça baixa em cadeiras revestidas de plástico. Ao contrário dos pais, não estavam tendo muita dificuldade em beber ao ano que chegava. Desde a morte de Rosie, ficara fácil para eles enfiar bebida goela abaixo até não conseguirem mais levar o gargalo aos lábios. A reação dos irmãos à tragédia não fora o recolhimento; estavam mais expansivos do que nunca. Os donos dos pubs em St. Andrews já haviam se acostumado ao ritual de bebedeira dos irmãos Duff. Não tinham outra saída, já que não estavam dispostos a enfrentar a ira da sua volátil clientela, que achava que Colin e Brian mereciam toda solidariedade possível.
Naquela noite, a garrafa de uísque estava mais vazia do que cheia. Colin conferiu as horas no seu relógio.
- Perdemos a meia-noite - disse ele.
Brian olhou para ele, cansado.
- Que se dane. Rosie vai perder todos os anos.
- É. Mas em algum lugar aí fora, quem a matou provavelmente está brindando por ter se safado dessa.
- Foram eles. Tenho certeza de que foram eles. Você viu a foto no jornal? Já viu uns sujeitos com mais cara de culpados do que eles?
Colin esvaziou o copo e apanhou a garrafa, concordando com um gesto de cabeça.
- Não tinha mais ninguém por perto. E eles disseram que ela ainda estava respirando. Então, se não foram eles, como é que o assassino desapareceu? Ele não pode ter evaporado no ar.
- Devíamos tomar uma decisão de Ano-Novo.
- Tipo o quê? Você não vai tentar parar de fumar de novo, vai?
- Estou falando sério. Devíamos fazer uma promessa de verdade. É o mínimo que podemos fazer por Rosie.
- Como assim? Que tipo de promessa?
- Na verdade, é bem simples, Col - Brian levantou o seu copo no ar. Ele o manteve assim, na expectativa. - Se os tiras não conseguirem uma confissão, a gente consegue.
Colin pensou um pouco. Então, levantou o copo e o bateu levemente contra o do seu irmão.
- Se os tiras não conseguirem uma confissão, a gente consegue.
11
As consideráveis ruínas do Castelo Ravenscraig estão localizadas em um promontório rochoso entre duas baías arenosas, oferecendo uma vista magistral do estuário do rio Forth e seus arredores. A leste, um enorme muro de pedra o protege do mar e de possíveis saqueadores. Ele se estende até o porto de Dysart, que está praticamente assoreado, mas que um dia já foi próspero. Na ponta da baía que contorna o castelo, um pouco adiante do pombal que ainda abriga pombos e pássaros marinhos, onde o muro de pedra chega a um ponto em forma de V, há um pequeno mirante, com o teto íngreme bem inclinado e marcas de flechas cravadas na parede.
Desde a pré-adolescência, os Garotos de Kirkcaldy haviam-se apropriado do local como sendo o seu domínio particular. Uma das melhores maneiras de escapar da vigilância dos adultos era saindo para dar uma caminhada. As caminhadas eram tidas como saudáveis e inofensivas. Por isso, quando prometiam passar o dia todo explorando a costa e as florestas, eram sempre agraciados com generosos farnéis para piquenique.
Às vezes, tomavam a direção contrária, passando por Invertiel e indo para longe da feia mina de Seafield, em direção a Kinghorn. Mas, na maioria das vezes, iam para Ravenscraig, inclusive porque o castelo não ficava muito longe da praça onde a carrocinha de sorvete ficava estacionada. Nos dias mais quentes, deitavam-se na grama e davam-se ao luxo de fantasiar como seriam as suas vidas, tanto no futuro próximo como no distante. Recontavam histórias das aventuras do semestre, embelezando-as e cogitando outros desenlaces. Jogavam cartas, em partidas intermináveis de vinte e um. Foi ali que fumaram o seu primeiro cigarro e viram Ziggy mudar de cor e vomitar em um arbusto.
Às vezes, escalavam o muro e ficavam observando os navios no estuário, o vento esfriando o seu corpo e fazendo com que se sentissem na proa de um navio em alto-mar, sentindo a trepidação sob os pés. E quando chovia, abrigavam-se dentro do mirante. Ziggy tinha uma esteira e eles a estendiam sobre o chão lamacento. Mesmo agora, que já se consideravam adultos, ainda gostavam de descer os degraus de pedra que conduziam do castelo até a praia, vagando por entre cascalhos e conchas até o mirante.
Na véspera do retorno a St. Andrews, os quatro se encontraram no bar do porto para tomar um chope na hora do almoço. Com dinheiro no bolso, graças ao emprego temporário de Natal, Alex, Mondo e Esquisito teriam bebido além da conta alegremente. Mas Ziggy os convenceu a sair para dar um passeio. O dia estava quente e claro e o sol se dissolvia em um céu discretamente azul. Caminharam pelo porto, abrindo caminho pelos altos silos do moinho e indo em direção ao lado oeste da praia. Esquisito caminhava um pouco atrás dos outros três e mantinha os olhos no horizonte distante, como quem busca inspiração.
Quando estavam quase chegando ao castelo, Alex se afastou do grupo e subiu no afloramento rochoso que ficava praticamente submerso quando a maré estava alta.
- Conta de novo, quanto foi que ele ganhou?
Mondo não precisava nem parar para pensar antes de responder.
- O ilustre senhor David Boys, mestre pedreiro, recebeu por ordem da rainha Mary de Gueldres, viúva de James II da Escócia, a quantia de seiscentas libras escocesas para a construção de um castelo em Ravenscraig. E ele teve que comprar os materiais com esse dinheiro.
- Que não eram baratos. Em 1461, quatorze vigas de madeira foram cortadas das margens do rio Allan e transportadas até Stirling por sete xelins. E então pagaram a um tal de Andrew Balfour duas libras e dez xelins para cortar, esculpir e transportar essas vigas até Ravenscraig - recitou Ziggy.
- Ainda bem que eu peguei o emprego no mercado - debochou Alex. - Eles pagam bem melhor lá. - Alex jogou a cabeça para trás e olhou para o penhasco do castelo. - Eu acho que os Sinclairs o fizeram bem mais bonito do que teria sido se a nossa cara rainha Mary não tivesse chutado o balde antes de o castelo estar pronto.
- Castelos não precisam ser bonitos - comentou Esquisito, entrando na conversa. - Eles têm que ser um refúgio, uma fortaleza.
- Extremamente utilitários - reclamou Alex, pulando de volta para a areia. Os outros o seguiram, arrastando os pés nos destroços que jaziam à beira da praia, dentro do limite gravado na areia pela marca do alcance da água.
Na metade do caminho, Esquisito falou no tom mais sério que eles já tinham ouvido na vida:
- Eu tenho uma coisa para contar pra vocês - disse ele.
Alex virou-se para olhar para ele e recuou alguns passos. Os outros olharam para trás.
- Aí vem coisa ruim - disse Mondo.
- Eu sei que vocês não vão gostar, mas espero que possam pelo menos respeitar.
Alex pôde ver a ansiedade nos olhos de Ziggy. Mas achava que o amigo não tinha motivos para se preocupar. Fosse lá o que Esquisito estivesse prestes a contar, tinha mais a ver consigo do que com a necessidade de expor alguém.
- Vamos lá, Esquisito. Manda ver - disse Alex, tentando soar encorajador.
Esquisito enterrou as mãos nos bolsos da calça jeans.
- Virei cristão - disse ele, asperamente. Alex o encarava, boquiaberto. Chegou a pensar que ficaria menos surpreso se Esquisito anunciasse que havia matado Rosie Duff.
Ziggy estava urrando de tanto rir.
- Meu Deus, Esquisito, eu estava pensando em uma revelação terrível. Cristão?
Esquisito enrijeceu o maxilar.
- Foi uma revelação. E eu aceitei Jesus na minha vida, como o meu salvador. E eu agradeceria muito se você não ficasse debochando.
Ziggy estava curvado de tanto rir, apertando a barriga.
- Essa é a coisa mais engraçada que eu já ouvi na minha vida... Ai, Deus, acho que vou mijar nas calças. - Ele se apoiou em Mondo, que estava sorrindo de orelha a orelha.
- E eu agradeceria se você não usasse o nome do Senhor em vão - completou Esquisito.
Ziggy renovou as gargalhadas.
- Ai, ai. Como é mesmo que eles dizem? Que o céu entra em festa quando um pecador se arrepende? Eu vou te dizer uma coisa, eles devem estar dançando pelas ruas no paraíso, comemorando por terem arrebanhado um pecador como você.
Esquisito parecia ofendido.
- Eu não estou tentando negar que fiz coisas lamentáveis no passado. Mas tudo isso ficou para trás agora. Eu nasci de novo e a minha ficha está limpa.
- Devem ter precisado de uma borracha bem grande e resistente para apagar a sua ficha. Quando foi que isso aconteceu? - perguntou Mondo.
- Fui no culto, na véspera do Natal - contou Esquisito. - E alguma coisa se iluminou em mim. Então percebi que queria ser lavado no sangue do Cordeiro. Queria ficar limpo.
- Sinistro - comentou Mondo.
- Mas você não disse nada no Ano-Novo - disse Alex.
- Eu queria que vocês estivessem sóbrios quando eu contasse. É uma coisa muito séria, entregar a sua vida a Cristo.
- Desculpa - disse Ziggy, se recompondo. - Mas você é a última pessoa do planeta que eu imaginava dizendo essas palavras.
- Eu sei disso - disse Esquisito. - Mas estou falando sério.
- Vamos continuar a ser seus amigos - disse Ziggy, tentando conter um sorriso pretensioso.
- Desde que você não queira nos converter - disse Mondo. - Você sabe que eu te amo como a um irmão, Esquisito, mas não o bastante para abrir mão de sexo e das bebidas.
- Amar a Jesus não tem nada a ver com isso, Mondo.
- Vamos, gente - interrompeu Ziggy. - Estou congelando, parado aqui. Vamos até o mirante. - Ele foi andando, com Mondo ao seu lado. Alex deixou-se ficar para trás, para acompanhar Esquisito. Estava com muita pena do amigo. Deve ter sido uma coisa horrível, vivenciar uma solidão tão profunda a ponto de ter de recorrer aos crentes para algum consolo. Eu deveria ter dado mais apoio a ele, pensou Alex, sentindo uma pontada de culpa. Talvez não fosse tarde demais.
- Você deve ter se sentido muito estranho, né? - comentou ele.
Esquisito fez um gesto negativo com a cabeça.
- Pelo contrário. Me senti em paz. Foi como se eu finalmente deixasse de ser um estranho no ninho e encontrasse o meu verdadeiro lar. Essa é a melhor maneira de explicar o que senti. Só fui ao culto para fazer companhia à minha mãe. Fiquei sentado lá na igreja Abbotshall, com as velas acesas à minha volta, como costumam ficar no culto do dia 24. Ruby Christie estava cantando Noite Feliz a capela, sem nenhum acompanhamento. Fiquei com o corpo todo arrepiado e, de repente, tudo fez sentido. Eu entendi que Deus deu o seu filho único para expiar os pecados do mundo. E eu estava incluído. Os meus pecados poderiam ser redimidos.
- Legal. - Alex estava constrangido com aquela sinceridade emocionada. Durante todos aqueles anos de amizade, nunca tivera uma conversa daquele gênero com Esquisito. Esquisito, logo ele, cuja única religião, aparentemente, era consumir o maior número de substâncias alucinógenas que pudesse ingerir antes de morrer. - E aí, o que você fez? - Alex teve uma visão fugaz de Esquisito correndo até ao altar e implorando para que os seus pecados fossem perdoados. Aquilo seria realmente constrangedor, pensou ele. O tipo de coisa que faria você suar frio quando já tivesse passado da fase do vamos-louvar-a-Deus e voltado à sua vida normal.
- Nada. Fiquei lá sentado, até o culto acabar, e voltei para casa. Pensei que fosse só naquele dia, uma espécie de experiência mística bizarra. Talvez relacionada com tudo o que a morte de Rosie trouxe à tona. Talvez até algum flashback de ácido. Mas quando acordei, no dia seguinte, senti a mesma coisa. Aí pesquisei no jornal para ver onde haveria cultos de Natal e acabei numa apresentação musical evangélica, lá nos Links.
Oh-oh.
- Devia estar bem vazio na manhã de Natal, né?
Esquisito riu.
- Que nada! O lugar estava lotado. Foi maravilhoso. A música era ótima, as pessoas me trataram como se fôssemos amigos há anos. E, depois do culto, eu fui falar com o pastor. - Esquisito abaixou a cabeça. - Foi um encontro muito emocionante. Enfim, o resultado é que ele acabou me batizando na semana passada. E me deu o nome de uma congregação irmã em St. Andrews. - Olhou para Alex com um sorriso beatificado. - Por isso eu queria contar isso pra vocês hoje. É que eu já vou começar a frequentar a igreja amanhã, quando voltarmos para Fife Park.
A primeira oportunidade que os outros tiveram para discutir a conversão milagrosa de Esquisito foi no dia seguinte, quando ele colocou a sua guitarra elétrica no estojo e saiu, disposto a cruzar a cidade até o culto evangélico próximo ao porto. Ficaram sentados na cozinha e o viram partir noite adentro.
- Bem, esse é o fim da nossa banda - disse Mondo, decisivo. - Eu não vou ficar cantando essas merdas de igreja e "Jesus Me Ama" para qualquer um.
- Já era, meus amigos - concordou Ziggy. - Vou te contar, ele perdeu completamente a noção das coisas, se é que tinha alguma.
- Ele está falando sério, pessoal - disse Alex.
- E isso é bom? Se preparem, porque a coisa agora não vai ser fácil, não - disse Ziggy. - Ele vai começar a trazer os malucos pra cá. E eles vão colocar na cabeça que nós temos de ser salvos, querendo ou não. Perder a banda vai ser o de menos. Vai ser o fim do "Um por todos e todos por um".
- Estou me sentindo meio culpado por tudo isso - disse Alex.
- Por quê? - perguntou Mondo. - Você por acaso o arrastou até lá e o obrigou a ouvir Ruby Christie cantando?
- Ele não teria pirado assim se não estivesse na merda. Eu sei que ele parece, de nós todos, o que encarou melhor essa história do assassinato de Rosie, mas acho que, lá no fundo, a coisa afetou ele pra caramba. E nós estávamos tão voltados para as nossas próprias reações que nem sacamos isso.
- Talvez a coisa não seja assim tão simples - disse Mondo.
- Como assim? - perguntou Ziggy.
Mondo arranhou o bico da bota no chão.
- Na boa, gente. Ninguém aqui sabe que merda Esquisito estava fazendo pra lá e pra cá com aquela Land Rover na noite do crime. Ele disse que não a viu naquela noite, mas só temos a palavra dele como testemunho.
Alex sentiu o chão desabar sob os seus pés. Desde que insinuara uma suspeita para Ziggy, havia se forçado a suprimir pensamentos tão traiçoeiros. Mas agora, Mondo havia dado uma nova forma para o inimaginável.
- Que horror - reclamou Alex.
- É, mas aposto que você pensou a mesma coisa - replicou Mondo, desafiadoramente.
- Esquisito nunca seria capaz de estuprar alguém, muito menos matar - protestou Alex.
- Ele estava doidão naquela noite. Não dá pra saber do que ele é ou não é capaz quando está naquele estado - disse Mondo.
- Chega! - A voz de Ziggy cortou a atmosfera de desconfiança e desconforto como uma navalha. - Você começa a pensar assim e vai parar onde? Eu também estava lá naquela noite. Alex chegou até mesmo a convidar Rosie para a festa. E, no que lhe diz respeito, você demorou pra cacete quando foi levar aquela garota em Guardbridge. O que o atrasou tanto, Mondo? - Ele lançou um olhar feroz para o amigo. - É esse tipo de merda que você quer ouvir?
- Eu não estava me referindo a vocês dois. Não tem a menor necessidade de você partir para cima de mim desse jeito.
- Mas você pode criticar Esquisito, né, sabendo que ele nem está aqui pra se defender. Que belo amigo você é.
- É, mas agora ele é amiguinho de Jesus - debochou Mondo. - O que, se você parar para pensar, é uma reação bem exagerada pro meu gosto. Isso me cheira a culpa.
- Para! - gritou Alex. - Olha só o que vocês estão falando. Já vai ter muita gente disposta a espalhar o veneno entre nós, sem que a gente precise se virar um contra o outro. Precisamos ficar unidos, ou já era.
- Alex tem razão - disse Ziggy, cansado. - Chega de acusações aqui em casa, ok? Maclennan está louco para criar um abismo entre nós. Ele não está nem aí pra quem consegue prender por esse crime, desde que pegue alguém. Precisamos convencê-lo de que não fomos nós. Mondo, no futuro, guarde as suas ideias perniciosas para si mesmo - Ziggy levantou-se. - Eu vou comprar leite e pão, para ver se a gente ao menos consegue tomar uma xícara de café antes daqueles inglesinhos escrotos voltarem e tumultuarem a casa toda com os seus sotaques.
- Eu vou com você. Preciso comprar cigarro - disse Alex.
Quando voltaram, meia hora depois, o mundo tinha virado do avesso. A polícia tinha voltado, em massa, e os seus colegas ingleses estavam parados na porta, com as malas, exibindo expressões de pura incredulidade no rosto.
- Boa-noite, Henry, boa-noite, Eddie - cumprimentou Ziggy, afável, examinando o corredor por cima dos seus ombros, onde Mondo estava sendo intratável com uma policial. - Ainda bem que eu trouxe duas cervejas.
- Que diabos está acontecendo aqui? - quis saber Henry Cavendish. - Não vai me dizer que o cretino do Mackie foi preso com drogas.
- Nada tão prosaico - respondeu Ziggy. - Pelo visto, o assassinato não chegou à imprensa inglesa.
Cavendish resmungou.
- Pelo amor de Deus, não seja tão patético. Pensei que você já tivesse superado essa palhaçada de herói da classe operária.
- Mais respeito, agora temos um cristão entre nós.
- Do que você está falando? Assassinato? Cristãos? - perguntou Edward Greenhalgh.
- Esquisito aceitou Jesus - resumiu Alex. - Nada do tipo da sua igreja anglicana, ele está mais para os pandeiros e para o "Louvemos ao Senhor". Vamos ter grupos de oração na cozinha. - Alex sabia que não havia nada mais divertido do que implicar com aqueles que se julgavam privilegiados. E St. Andrews oferecia constantes oportunidades para tal.
- O que isso tem a ver com o fato de a casa estar cheia de homens da polícia? - perguntou Cavendish.
- Aquela ali no corredor é uma mulher - retrucou Ziggy. - A não ser, é claro, que a polícia de Fife tenha resolvido recrutar travestis particularmente atraentes.
Cavendish cerrou os dentes. Odiava a maneira como os Garotos de Kirkcaldy insistiam em tratá-lo como uma caricatura. Aquele era o motivo principal dele passar tão pouco tempo em casa.
- Por que a polícia está aqui? - perguntou ele.
Ziggy sorriu candidamente para Cavendish.
- A polícia está aqui porque somos suspeitos de assassinato.
- O que ele quer dizer - acudiu Alex prontamente - é que somos testemunhas. Uma das garçonetes do Lammas foi assassinada antes do Natal. E nós encontramos o corpo.
- Estou estarrecido - disse Cavendish. - Não estava sabendo de nada. Coitada da família. E deve ter sido horrível para vocês também, imagino.
- É, não foi nada legal - disse Alex.
Cavendish lançou um olhar para dentro da casa novamente, desconcertado.
- Olha, essa não é uma boa hora para vocês. Vai ser melhor se nós encontrarmos um outro lugar por enquanto. Vamos, Ed. Podemos ficar com Tony e Simon hoje à noite. A gente pode tentar transferência para outro lugar amanhã de manhã. - Ele se afastou e depois olhou para trás, franzindo o cenho. - Cadê a minha Land Rover?
- Bem - disse Ziggy. - É um pouco complicado. Veja bem, a gente pegou ela emprestada e...
- Pegaram emprestado? - Cavendish estava ultrajado.
- Foi mal. Mas o tempo estava péssimo. Não achamos que você fosse ficar chateado.
- Tá, e onde é que ela está agora?
Ziggy estava constrangido.
- Isso você vai ter que perguntar para a polícia. Nós a pegamos emprestada na noite do crime.
A solidariedade de Cavendish evaporou imediatamente.
- Não acredito nisso - grunhiu ele. - A minha Land Rover é parte de uma investigação de assassinato?
- Receio que sim. Eu sinto muito.
Cavendish estava furioso.
- Vocês vão me pagar por isso.
Alex e Ziggy ficaram observando em silêncio, enquanto os outros dois iam embora, carregando as malas com dificuldade. Antes que pudessem falar alguma coisa, precisaram sair da porta para deixar a polícia passar. Havia quatro oficiais uniformizados e alguns homens à paisana. Ignoraram Alex e Ziggy e seguiram para os seus carros.
- O que eles vieram fazer aqui? - perguntou Alex quando finalmente entraram em casa.
Mondo deu de ombros.
- Não disseram nada. Estavam pegando amostras de tinta nas paredes, nos tetos e nos acabamentos em madeira - disse ele. - Escutei um deles falar algo sobre um cardigã, mas não pareciam estar procurando nada nas nossas roupas. Eles fuçaram tudo e perguntaram se nós mudamos a decoração recentemente.
Ziggy achou graça.
- Até parece. Depois eles não sabem por que têm fama de lesados.
- Não estou gostando nada disso - disse Alex. - Pensei que eles tivessem desistido da gente. E aqui estão eles novamente, revirando a casa de cabeça para baixo. Devem ter descoberto uma pista nova.
- Bom, seja lá o que for, a gente não tem motivo pra se preocupar - disse Ziggy.
- Já que você diz - respondeu Mondo, sarcástico. - Mas eu vou continuar me preocupando por enquanto. Como disse Alex, eles tinham deixado a gente em paz, e agora apareceram de novo. Não creio que isso possa ser facilmente ignorado.
- Mondo, nós somos inocentes, esqueceu? Isso quer dizer que a gente não tem motivo pra se preocupar.
- Tá, tudo bem. Mas e Henry e Eddie? - perguntou ele.
- Eles não querem viver com assassinos tresloucados - respondeu Ziggy, dirigindo-se à cozinha.
Alex o seguiu.
- Não queria que você tivesse dito isso - disse ele.
- O quê? Assassinos tresloucados?
- Não. Não queria que você tivesse dito a Henry e Eddie que somos suspeitos de assassinato.
Ziggy deu de ombros.
- Foi uma piada. Henry está mais interessado na sua preciosa Land Rover do que em qualquer outra coisa que possamos ter feito. Isso lhe deu apenas a desculpa perfeita para sair daqui. Além do mais, você foi o que mais saiu ganhando. Com dois quartos sobrando, não vai mais precisar dormir com Esquisito.
Alex pegou a chaleira.
- Mesmo assim. Preferia que você não tivesse plantado a semente. Estou com uma sensação terrível de que todos nós vamos acabar colhendo o que você acabou de plantar.
12
A profecia de Alex tornou-se real muito antes do que ele imaginava. Alguns dias depois, descendo a North Street a caminho do Departamento de História da Arte, ele viu Henry Cavendish e os seus companheiros se aproximando, desfilando altivos com seus uniformes de flanela vermelha, como se fossem os donos do lugar. Viu Cavendish cutucar um deles e, cochichar alguma coisa. Quando ficaram face a face, Alex viu-se subitamente cercado por rapazes vestidos com o tradicional uniforme de jaquetas de tweed e calças de sarja olhando para ele.
- É incrível ver que você teve a coragem de aparecer por aqui, Gilbey - disse Cavendish, sarcástico.
- Acho que tenho mais direito de andar nessas ruas do que você e os seus amiguinhos - disse Alex, suavemente. - Este é o meu país, não o de vocês.
- Belo país esse, onde as pessoas roubam carros e não são punidas. Não consigo acreditar que você e a sua corja não estão sendo julgados pelo que fizeram - disse Cavendish. - Se vocês usaram a minha Land Rover para encobrir um assassinato, não é só com a polícia que vão ter que se preocupar.
Alex tentou avançar, mas estava encurralado, aprisionado pelos solavancos dos cotovelos e das mãos do bando.
- Cai fora, tá, Henry? Não tivemos nada a ver com o assassinato de Rosie Duff. Fomos buscar ajuda, isso sim. Tentamos salvar a vida dela.
- E a polícia caiu nessa? - perguntou Cavendish. - Devem ser mais burros do que eu imaginava. - Um punho surgiu do nada e atingiu Alex violentamente sob as costelas. - Roubando o meu carro, né?
- Eu não sabia que você era capaz de pensar - sussurrou Alex, incapaz de se conter para não irritar mais ainda o seu agressor.
- É lamentável que você ainda seja um membro dessa universidade - gritou alguém, pressionando um dedo ossudo no peito de Alex. - Na melhor das hipóteses, você não passa de um ladrãozinho de merda.
- Meu Deus, ouçam o que estão dizendo. Vocês mais parecem um péssimo esquete cômico - disse Alex, subitamente irado. Ele abaixou a cabeça e se lançou para a frente, o corpo relembrando inúmeros ataques no campo de rúgbi. - Agora, saiam da minha frente! - berrou ele. Ofegante, emergiu do outro lado do grupo e virou-se para trás, o lábio retorcido em um sorriso pretensioso. - Eu tenho uma palestra para assistir.
Surpresos com o seu acesso de fúria, deixaram-no partir. Enquanto ele se afastava, Cavendish disse:
- Pensei que fosse ao enterro, não a uma palestra. Afinal, não é isso o que os assassinos fazem?
Alex virou para trás.
- O quê?
- Você não está sabendo? Vão enterrar Rosie Duff hoje.
Alex subiu a rua, tomado por uma violenta agitação, tremendo de raiva. Teve medo, tinha que admitir. Por um momento, teve medo. Não conseguia acreditar que Cavendish havia usado o enterro de Rosie para insultá-lo. Nem que ninguém tivesse dito a ele que o enterro era naquele dia. Não que quisesse ir. Mas poderia ao menos ter sido informado.
Imaginava como os outros estariam se virando e desejou novamente que Ziggy não tivesse aberto a boca.
Assim que Ziggy pisou na sala para uma aula de anatomia, foi imediatamente saudado com gritos de "Lá vem o ladrão de corpos!".
Ele pôs as mãos para cima, aceitando a gozação dos seus colegas médicos. Se alguém era capaz de ver humor negro na morte de Rosie, eram eles.
- Qual o problema com os cadáveres que eles nos dão para prática? - gritou alguém do fundo da sala.
- São muito velhos e feios para Ziggy - alguém respondeu. - Ele teve que sair por aí em busca de carne nova.
- Chega, pessoal - disse Ziggy. - Vocês só estão com inveja porque eu pude começar a praticar antes de vocês.
Um grupo de colegas se reuniu à sua volta.
- Como é que foi, Ziggy? Disseram que ela ainda estava viva quando vocês a encontraram. Você ficou com medo?
- Fiquei. Fiquei com medo, sim. Mas fiquei mais foi frustrado, porque não pude evitar que ela morresse.
- Qual é, cara, você fez o melhor que pôde - assegurou um colega.
- O meu melhor foi uma merda. A gente passa anos entupindo a cabeça de estudo mas, na hora H, eu não sabia nem por onde começar. Qualquer motorista de ambulância teria mais chance de salvar a vida de Rosie do que eu. - Ziggy tirou o casaco e o deixou cair no espaldar de uma cadeira. - Eu me senti inútil. E foi aí que percebi que a gente não é médico coisa nenhuma, não até sairmos daqui e começarmos a tratar pacientes de verdade.
Uma voz atrás deles disse:
- Essa é uma lição muito valiosa, Sr. Malkiewicz. - Sem que ninguém percebesse, o professor havia se aproximado do grupo e escutado a conversa. - Eu sei que isso não é consolo, mas o legista me disse que quando vocês encontraram a moça, não havia mais nada a ser feito. Ela já havia perdido sangue demais. - Ele deu um tapinha no ombro de Ziggy. - Receio que não podemos fazer milagres. Agora, senhoras e senhores, voltem para os seus lugares. Temos trabalhos importantes a fazer nesse semestre.
Ziggy voltou para o seu lugar, mas a sua cabeça estava voando. Podia sentir o sangue manchando as suas mãos, os batimentos cardíacos fracos e irregulares, o toque gelado da sua pele. Podia ouvir a sua respiração arquejante. Podia sentir o gosto de metal do sangue em sua boca. Perguntava-se se algum dia poderia se livrar dessas lembranças. Perguntava-se se seria capaz de ser um médico, sabendo que o fracasso seria sempre o resultado final das suas ações.
A alguns quilômetros dali, os pais de Rosie estavam se preparando para velar a filha. A polícia havia finalmente liberado o corpo e a família podia enfim dar o seu primeiro passo oficial em sua longa jornada de dor. Olhando-se no espelho, Eileen ajeitou o chapéu, sem se preocupar com o seu rosto, murcho e despido de artifícios. Não perdia mais tempo com maquiagem ultimamente. Maquiagem para quê? Os seus olhos estavam apáticos e carregados. Os comprimidos que o médico receitara não diminuíam a sua dor; apenas a tiravam do seu alcance, transformando o sofrimento em algo que ela mais contemplava do que sentia.
Archie estava na janela, esperando o carro fúnebre. A igreja de Strathkinness não ficava muito longe dali. Decidiram que a família ia caminhar atrás do caixão, acompanhando Rosie em sua última viagem. Os seus ombros estavam encurvados. Envelhecera nas últimas semanas e agora era apenas um velho que havia perdido a vontade de interagir com o mundo.
Brian e Colin, alinhados como ninguém jamais havia visto antes, estavam na copa, procurando coragem em doses de uísque.
- Eu só espero que aqueles quatro tenham o bom senso de não dar as caras - disse Colin.
- Que venham. Estou pronto para eles - respondeu Brian, o seu belo rosto inflexível em sua raiva.
- Hoje não, né? Porra, Brian. Mais dignidade, tá? - Colin esvaziou o copo e o colocou com raiva no escorredor de louça.
- Chegaram - disse o pai lá da sala.
Colin e Brian entreolharam-se, prometendo em silêncio aguentar até o fim sem fazer nada que os envergonhasse ou envergonhasse a memória da irmã. Empinaram os ombros, respiraram fundo e foram.
O carro fúnebre estava parado do lado de fora da casa. A família Duff foi caminhando até ele, de cabeça baixa. Eileen apoiava-se pesadamente no braço do marido. Posicionaram-se atrás do caixão. Atrás deles, amigos e parentes reuniam-se em melancólicos grupos. E mais atrás, vinha a polícia. Maclennan encabeçava o destacamento, orgulhoso ao ver que vários oficiais haviam comparecido, mesmo estando de folga. A imprensa, em uma rara amostra de discrição, concordara com uma cobertura em pool.
Moradores alinhavam-se nas calçadas no caminho até a igreja, muitos decidindo acompanhar o cortejo, que caminhava devagar até a sólida construção cinzenta sob a colina, que contemplava St. Andrews lá embaixo. Depois que todos entraram, a pequena igreja ficou lotada. Algumas pessoas tiveram que ficar nas naves laterais e outras no fundo.
Foi uma cerimônia rápida e formal. Eileen não tivera cabeça para pensar nos detalhes e Archie pedira apenas o mínimo. "É algo que somos obrigados a fazer, e não algo que vamos guardar como lembrança da nossa filha", explicou ele ao pastor.
Para Maclennan, as palavras simples do funeral soaram insuportavelmente pungentes. Aquelas eram palavras que deveriam ser ditas para pessoas que viveram plenamente, e não para uma moça que mal começara a planejar a sua vida. Abaixou a cabeça durante as orações, sabendo que aquilo não traria nenhum consolo para aqueles que haviam conhecido Rosie. Eles não teriam paz até que ele, Maclennan, fizesse o seu trabalho.
E parecia, cada vez mais, que ele não conseguiria lhes dar o que precisavam. A investigação estava praticamente parada. A única prova recente era o cardigã que não oferecera nada além de alguns fragmentos de tinta. Mas nenhuma das amostras coletadas na casa dos estudantes em Fife Park era compatível. Os seus superiores mandaram um superintendente para avaliar o trabalho que ele e a sua equipe haviam feito, sugerindo que eles poderiam ter deixado a desejar. Mas o sujeito teve de reconhecer que Maclennan havia feito um bom trabalho. E não conseguiu oferecer uma única sugestão para novos progressos.
Maclennan via-se voltando sempre para os quatro estudantes. Os seus álibis eram tão inconsistentes que mal mereciam o nome. Gilbey e Kerr estavam interessados nela. Dorothy, uma das garçonetes, mencionara esse detalhe mais de uma vez durante o seu depoimento. "O altão, que parece um Ryan O’Neal moreno", dissera ela. Não que ele fosse descrever Gilbey assim, mas sabia de quem ela estava falando. "Ele era gamadão nela", acrescentara ela. "E o baixinho, que parece um dos T. Rex. Estava sempre sonhando acordado com Rosie. Não que ela lhe desse confiança, veja bem. Ela dizia que ele era muito convencido para o gosto dela. Já o outro, o altão, ela dizia que não se importaria em sair com ele, se fosse uns cinco anos mais velho."
Então, ali estava a sombra de um motivo. E, é claro, eles tiveram acesso ao veículo perfeito para transportar o corpo da moça. Só porque não foram encontradas provas, não significava que eles não haviam usado a Land Rover. Uma lona, uma esteira, até mesmo um pedaço mais grosso de plástico poderia ter limpado o sangue do interior do carro. Não havia a menor dúvida de que o assassino de Rosie estava de carro.
Ou isso, ou ele era um dos respeitáveis moradores de Trinity Place. O problema é que todos os moradores do sexo masculino, entre quatorze e setenta anos, pareciam ter um álibi. Na noite do crime, ou não estavam em casa, ou estavam dormindo, completamente inocentes. Chegaram a dar maior atenção a alguns estudantes, mas não encontraram nada que os ligasse a Rosie, ou ao crime.
Um detalhe da perícia havia feito com que Gilbey parecesse menos culpado: o esperma encontrado nas roupas de Rosie fora depositado por um secretor, alguém cujo tipo sanguíneo está presente em outros fluidos corporais. O estuprador, que possivelmente era o assassino também, tinha sangue do grupo O. Alex Gilbey era AB, o que significava que ele não poderia ter estuprado Rosie, a não ser que estivesse usando um preservativo. Mas Malkiewicz, Kerr e Mackie eram todos tipo O. Então, teoricamente, poderia ser qualquer um dos três.
Não achava que Kerr fosse capaz de cometer algum crime. Mas Mackie, sim, com certeza. Maclennan ficara sabendo da súbita conversão do rapaz ao cristianismo. Para ele, aquilo parecia um ato de desespero, gerado pela culpa. E com Malkiewicz, eram outros quinhentos. Maclennan esbarrara acidentalmente na questão da sexualidade do rapaz, mas se ele estava apaixonado por Gilbey, era possível que quisesse se livrar da concorrência. Não era de todo impossível.
Maclennan estava tão imerso em seus pensamentos que levou um susto ao perceber que a cerimônia havia chegado ao fim e que os fiéis já estavam de pé. O caixão estava sendo removido do altar e Colin e Brian Duff eram os primeiros do pequeno grupo que o carregava. Era possível ver as marcas das lágrimas no rosto de Brian, e Colin parecia estar reunindo todas as suas forças para não chorar.
Maclennan olhou para a sua equipe, fazendo sinal para que se retirassem da igreja enquanto o caixão desaparecia. A família ia ser levada até o cemitério para um enterro particular. Ele saiu da igreja e ficou parado na porta, observando as pessoas se dispersando. Não acreditava que o assassino estivesse ali, entre os fiéis; aquela era uma conclusão muito fácil para que ele pudesse se contentar com ela. Os policiais reuniram-se atrás dele, trocando comentários discretos entre si.
Escondida em um canto, Janice Hogg acendeu um cigarro. Não estava de serviço, afinal de contas, e precisava de uma dose de nicotina após todo aquele sofrimento. Havia dado apenas algumas tragadas quando Jimmy Lawson apareceu.
- Bem que eu achei que estava sentindo cheiro de cigarro - disse ele. - Posso te acompanhar?
Ele acendeu um cigarro, encostando-se na parede, o cabelo caindo na testa, obscurecendo os seus olhos. Janice percebeu que ele estava mais magro ultimamente, e que ficara mais bonito assim, com o rosto mais delgado e o maxilar mais definido.
- Eu não tenho pressa nenhuma de passar por isso de novo tão cedo - disse ele.
- Nem eu. Parece que todo mundo estava olhando para a gente, buscando a resposta que não temos.
- E não estamos nem próximos de ter. O DIC não arrumou um suspeito decente até agora - disse Lawson. A sua voz era tão amarga quanto o vento leste que carregava a fumaça dos seus lábios.
- Não é como Starsky & Hutch, né?
- Ainda bem que não. Quer dizer, você ia querer usar aquele uniforme?
Janice não pôde conter uma risadinha.
- Pensando bem...
Lawson inalou o ar profundamente.
- Janice... você gostaria de tomar um drinque comigo, um dia desses?
Janice olhou para ele, surpresa. Jamais passara pela sua cabeça que Jimmy Lawson percebia que ela era uma mulher, a não ser quando se tratava de preparar um chá, ou dar notícias ruins aos outros.
- Você está me convidando para sair?
- É o que parece, né? E então? O que você me diz?
- Não sei, Jimmy. Não sei se é uma boa ideia se envolver com alguém do trabalho.
- E quando é que a gente tem oportunidade de encontrar outras pessoas, a não ser quando estamos prendendo alguém? Vamos lá, Janice. Só um drinquezinho. Descobrir se a gente combina, que tal? - O seu sorriso lhe conferiu um charme que ela jamais havia percebido.
Olhou para ele, analisando a proposta. Ele não era exatamente um deus grego, mas também não era feio. Tinha fama de ser meio conquistador, alguém que geralmente conseguia o que queria sem fazer muito esforço. Mas sempre a tratara com gentileza, ao contrário de alguns colegas que faziam questão de mostrar o quanto a desprezavam. E fazia muito tempo que ela não saía com alguém interessante.
- Está bem - disse ela.
- Vou checar o quadro de funcionários hoje à noite. Ver quando nós dois vamos estar de folga. - Ele jogou a guimba do cigarro no chão e pisou nela com a ponta do pé. Ela o observou enquanto ele se afastava, indo juntar-se aos outros no outro canto. Ao que parece, tinha acabado de descolar um encontro.
Era a última coisa que imaginava possível de acontecer no funeral de Rosie Duff. Talvez o pastor tivesse razão. Era hora de olhar para o futuro, e não só para o passado.
13
Nenhum dos seus três amigos descreveria Esquisito como sensato, mesmo antes de se converter. Ele sempre fora uma mistura instável de cinismo e ingenuidade. Infelizmente, a sua recém-descoberta espiritualidade o havia despido do cinismo, sem oferecer um bom senso complementar. Então, quando os seus novos amigos crentes anunciaram que não havia ocasião mais oportuna para pregar do que o dia do funeral de Rosie, Esquisito deixou-se levar pela sugestão. A lógica era: as pessoas vão parar para refletir sobre a sua própria mortalidade. E aquele era o melhor momento para lembrá-las de que Jesus oferecera o único caminho para o reino dos céus. A ideia de dar o seu testemunho para estranhos faria com que ele rolasse no chão às gargalhadas algumas semanas antes, mas agora parecia a coisa mais natural do mundo.
Reuniram-se na casa do pastor, um animado jovem galês cujo entusiasmo era quase patológico. Mesmo na febre inicial da sua conversão, Esquisito o achava meio exagerado. Lloyd acreditava piamente que o resto da cidade não aceitara Jesus devido a um único motivo: ele e o seu rebanho não estavam trabalhando direito nas suas pregações. Era óbvio que ele não conhecia Ziggy, o ateu dos ateus. Quase todas as refeições que Esquisito fizera em Fife Park desde que voltaram para lá haviam incluído discussões passionais sobre fé e religião. Esquisito já estava cansado daquilo. Ainda não possuía conhecimento suficiente para rebater todos os argumentos e sabia, instintivamente, que responder com "Este é o mistério da fé" não era o bastante. O estudo da Bíblia ia resolver isso com o tempo, tinha certeza. E até lá, estava rezando para ter paciência e boas respostas.
Lloyd colocou uns panfletos na sua mão.
- Esses aqui dão uma boa introdução sobre o Senhor, junto com uma pequena seleção de passagens da Bíblia - explicou ele. - Tente puxar assunto com as pessoas e depois pergunte se elas podem perder cinco minutinhos do seu tempo para se livrarem da degradação. Aí você entrega o panfleto e pede para elas não deixarem de ler. E explica que se quiserem tirar alguma dúvida, podem encontrar você no culto de domingo. - Lloyd fez um gesto amplo com as mãos, como se querendo dizer que a coisa era simples.
- Ok - disse Esquisito. Olhou para o pequeno grupo à sua volta. Deviam ser uns seis. Tirando Lloyd, tinha apenas mais um homem. Ele havia trazido um violão e parecia empolgado. Infelizmente, a sua empolgação não era proporcional ao seu talento. Esquisito sabia que não devia julgar as pessoas, mas achava que, mesmo em um dia ruim, conseguia tocar muito melhor do que aquele nerd. Mas ele ainda não tinha aprendido as músicas, então não ia poder sair cantando para Jesus naquela noite.
- O pessoal da música vai ficar na North Street. Ali sempre tem movimento. O resto pode rodar pelos pubs. Não precisa entrar. É só abordar as pessoas que estiverem entrando ou saindo. Agora, vamos só fazer uma pequena oração antes de partirmos para a missão do Senhor. - Deram-se as mãos e abaixaram a cabeça. Esquisito experimentou mais uma vez aquela nova sensação familiar de paz o invadir, enquanto se colocava nas mãos do seu Salvador.
Era engraçado ver como as coisas haviam mudado, pensou ele mais tarde, enquanto caminhava sem pressa de um pub para outro. Antigamente, jamais lhe passaria pela cabeça abordar estranhos, a não ser para pedir informações. Mas a verdade é que estava realmente gostando daquilo. A maioria das pessoas lhe dava um fora, mas várias haviam aceitado o panfleto e ele estava confiante de que veria algumas novamente. Estava convencido de que aquelas pessoas tinham notado a tranquilidade e a alegria que ele certamente estava emanando.
Eram quase dez horas da noite quando ele cruzou o maciço arco de pedra da West Port em direção ao Lammas. Ficava chocado ao lembrar quanto tempo havia perdido lá dentro. Não tinha vergonha do seu passado; Lloyd o ensinara que aquilo não era bom. O seu passado era um parâmetro de comparação que servia para mostrar o quão gloriosa era a sua vida atual. Mas lamentava não ter encontrado aquela paz e abrigo antes.
Atravessou a rua e ficou parado na porta do Lammas. Nos primeiros dez minutos, entregou apenas um panfleto para um dos frequentadores habituais do pub, que lançou um olhar curioso para Esquisito enquanto ele abria a porta. Um pouco depois, a porta se abriu novamente, violenta. Brian e Colin Duff surgiram na rua, acompanhados por alguns outros rapazes. Estavam possessos e calibrados de bebida.
- O que é que você está fazendo aqui, porra? - grunhiu Brian, agarrando Esquisito pelo casaco. Ele o empurrou violentamente contra a parede.
- Eu só estava...
- Cala a boca, seu merda - gritou Colin. - Enterramos a minha irmã hoje, graças a você e aos seus amiguinhos desalmados. E você ainda tem a coragem de aparecer por aqui, para pregar?
- E você ainda se diz cristão? Você matou a minha irmã, seu babaca. - Brian estava atirando o corpo de Esquisito contra a parede sem parar. Esquisito tentou se esquivar das suas garras, mas ele era muito mais forte.
- Nunca encostei um dedo nela - gemeu ele. - Não fomos nós.
- Então quem foi? Vocês eram os únicos que estavam lá - esbravejou Brian. Ele largou o casaco de Esquisito e levantou a mão, fechada em punho. - Vamos ver se você vai gostar disso aqui, babaca. - Entrou com um gancho de direita no maxilar de Esquisito, e depois com um de esquerda no rosto. Esquisito caiu de joelhos no chão. Parecia que a parte inferior do seu rosto ia despencar em suas mãos.
E aquilo era só o começo. Pés e punhos surgiram de repente, golpeando cruelmente o seu corpo. Sangue, lágrimas e muco escorriam pelo seu rosto. O tempo parecia estar parado, distorcendo as palavras e intensificando cada golpe agonizante. Nunca participara de uma briga de gente grande e toda aquela violência explícita o aterrorizava.
- Meu Deus, meu Deus - soluçava ele.
- Ele não vai te ajudar agora, seu merda! - gritou um dos agressores.
Então, como por milagre, a surra chegou ao fim. E tão logo o último golpe foi desferido, ficaram todos em silêncio.
- O que é que está acontecendo aqui? - perguntou uma voz de mulher. Esquisito, encolhido na posição fetal que adotara durante a surra, levantou a cabeça. Uma policial estava diante dele. Atrás dela, ele pôde ver o policial que acompanhara Alex na noite do crime. Os agressores estavam parados no mesmo lugar, carrancudos, com as mãos nos bolsos.
- A gente só estava se divertindo um pouquinho - disse Brian.
- Não me parece nada divertido, Brian. A sorte dele é que o dono do pub decidiu chamar a polícia - disse ela, agachando-se para examinar o rosto de Esquisito. Ele ficou sentado e tossiu, expelindo muco e sangue. - Você é Tom Mackie, não é? - perguntou ela, compreendendo tudo.
- Sou - gemeu ele.
- Eu vou pedir uma ambulância - disse ela.
- Não - acudiu Esquisito, conseguindo se levantar com muito esforço. - Eu vou ficar bem. A gente só estava se divertindo mesmo. - Falar, percebeu ele, não estava sendo nada fácil. Era como se tivesse feito um transplante de maxilar que não estava funcionando muito bem.
- Acho que o seu nariz está quebrado, filho - disse o policial. Qual era mesmo o nome dele? Morton? Lawton? Lawson, isso.
- Está tudo bem. Eu moro com um médico.
- Ele era um estudante de medicina na última vez que ouvi falar dele - disse Lawson.
- Vamos te levar para casa na viatura - disse a mulher. - Eu sou a policial Hogg e este é o policial Lawson. Jimmy, cuida dele um instantinho, eu preciso ter uma palavra com esses idiotas. Colin, Brian? Venham cá. E vocês aí, caiam fora. - Ela levou Colin e Brian para um canto. Teve o cuidado de permanecer perto de Lawson, para que ele pudesse acudir, caso as coisas saíssem do controle. - Que diabos foi isso? - perguntou ela. - Vejam só o estado do garoto.
Boquiaberto, com os olhos vidrados e encharcado de suor, Brian deu um sorriso bêbado de escárnio.
- Foi menos do que ele merece. E você sabe muito bem o que foi isso. Estamos fazendo o seu trabalho, porque vocês são um bando de incompetentes que não conseguem descobrir porra nenhuma.
- Cala a boca, Brian! - implorou Colin. Ele estava apenas um pouco mais sóbrio do que o irmão, mas sempre tivera uma espécie de instinto para evitar problemas. - Olha, foi mal, tá? As coisas saíram um pouco do controle por aqui.
- E como, né? Vocês quase mataram o garoto.
- Pode até ser, mas ele e os amiguinhos fizeram o serviço completo com a minha irmã - disse Brian, doido para começar outra briga. De repente, o seu rosto ficou enrugado e lágrimas correram pela bochecha. - A minha irmãzinha. A minha Rosie. O que eles fizeram com ela não se faz nem com um cachorro.
- Você está enganado, Brian. Eles são testemunhas, não suspeitos - disse Janice, exausta. - Eu já te expliquei isso, na noite do crime.
- Vocês são os únicos que pensam assim por aqui - disse Brian.
- Fica quieto! - pediu Colin. Ele se virou para Janice. - Você vai prender a gente, ou o quê?
Janice suspirou.
- Eu sei que o enterro de Rosie foi hoje. Eu estive lá e vi o quanto os pais de vocês estão arrasados. Em consideração a eles, eu vou deixar passar desta vez. Acho que o Sr. Mackie não vai querer prestar queixa. - Colin fez menção de falar alguma coisa, mas ela prontamente ameaçou, com o dedo em riste: - Mas você e o Cassius Clay aqui vão ter que me prometer que não vão mais sair por aí fazendo esse tipo de coisa, ok? Esse é o trabalho da polícia.
Ele concordou com um gesto de cabeça.
- Ok, Janice.
Brian fez uma cara de espanto.
- Desde quando você chama ela de Janice? Ela não está do nosso lado, não, entendeu?
- Cala a porra dessa boca, Brian! - disse Colin, sílaba por sílaba. - Peço desculpas pelo meu irmão. Ele bebeu um pouco demais.
- Tudo bem. Mas você não é burro, Colin. Você sabe que eu não estou brincando. Deixem Mackie e os amigos dele em paz. Entendeu?
Brian deu um riso debochado.
- Acho que ela está a fim de você, hein, Colin?
A ideia obviamente acionou a parte bêbada do cérebro de Colin Duff.
- Sério? Ué, o que você acha, Janice? Por que você não me coloca na linha, hein? Topa sair comigo? Aposto que você ia se divertir.
Janice percebeu um movimento com o canto dos olhos e virou-se a tempo de ver Jimmy Lawson sacando o cassetete e avançando em direção a Colin Duff. Ela levantou a mão para mantê-lo afastado, mas a ameaça já fora o bastante para que Colin recuasse, com os olhos arregalados e assustados.
- Ei! - protestou ele.
- Limpa essa boca, seu escrotinho de merda! - bradou Lawson, sério e irado. - Nunca, nunca mais na sua vida se dirija a um policial assim! E agora, suma da minha frente antes que eu convença a oficial Hogg a mudar de ideia e mandar vocês dois para cumprir uma boa pena na cadeia! - As palavras que saíram dos seus lábios contraídos refletiam a sua animosidade. Janice estava passada. Detestava quando os policiais homens achavam que podiam demonstrar a sua masculinidade com o pretexto de defender a sua honra.
Colin agarrou Brian pelo braço.
- Vamos. Tem uma cerveja esperando a gente lá dentro. - Ele levou o seu irmão desconfiado embora, antes que ele causasse mais alguma encrenca.
Janice virou-se para Lawson.
- Não tinha necessidade disso, Jimmy.
- O quê? Ele estava te passando uma cantada! E ele não serve nem para engraxar os seus sapatos. - A voz dele era só desprezo.
- Eu sei me cuidar muito bem, Jimmy. Já tive que aturar coisas muito piores do que Colin Duff sem ter você ao meu lado bancando o herói. Agora, vamos levar o garoto pra casa.
Ajudaram Esquisito a entrar no carro e o acomodaram no banco de trás. Quando Lawson se dirigia para o banco do motorista, Janice disse:
- E Jimmy... Sobre o nosso encontro. Acho que não vai dar, não.
Lawson olhou para ela longa e fixamente.
- Você é que sabe.
Foram até Fife Park em um silêncio sepulcral. Ajudaram Esquisito até a porta de casa e depois voltaram para o carro.
- Janice, desculpa se peguei pesado. Mas Duff passou dos limites. Não se pode falar com um policial daquele jeito - disse Lawson.
Janice se inclinou sobre o teto do carro.
- Ele passou dos limites, sim. Mas você não reagiu daquele jeito porque ele estava insultando o cargo. Você sacou o seu cassetete porque, na sua cabeça, você achou que eu era propriedade sua, só porque topei sair para tomar um drinque com você. E ele estava invadindo o seu território. Sinto muito, Jimmy. Mas o que eu menos preciso na minha vida agora é isso.
- Não foi nada disso, Janice - protestou Lawson.
- Deixa pra lá, Jimmy. Sem ressentimentos, ok?
Ele deu de ombros, petulante.
- Você é que vai sair perdendo mesmo. Companhia feminina é o que não me falta. - Ele entrou no carro e sentou-se no banco do motorista.
Janice sacudiu a cabeça, incapaz de conter um sorriso. Como os homens eram previsíveis. Bastava sentir um cheiro de feminismo no ar para darem no pé imediatamente.
Dentro de casa, em Fife Park, Ziggy estava examinando Esquisito.
- Eu disse que isso ia acabar em lágrimas - disse ele, pressionando delicadamente os dedos no tecido inchado em volta das costelas e do abdômen de Esquisito. - Você sai para uma pregaçãozinha light e volta parecendo um figurante de filme de guerra. Avante, soldados cristãos!
- Não teve nada a ver com o meu testemunho - disse Esquisito, franzindo o rosto de dor por causa do esforço. - Foram os irmãos de Rosie.
Ziggy parou imediatamente.
- Os irmãos de Rosie fizeram isso com você? - perguntou, visivelmente preocupado.
- Eu estava na porta do Lammas. Alguém deve ter contado a eles. Eles saíram e me deram uma surra.
- Puta que pariu. - Ziggy foi até a porta. - Gilly! - gritou ele. Mondo tinha saído, como fazia quase toda noite, desde que haviam voltado das férias. Às vezes aparecia para o café da manhã, às vezes, nem isso.
Alex desceu as escadas correndo, estacando diante da visão do rosto destruído de Esquisito.
- O que aconteceu com você, porra?
- Os irmãos de Rosie - resumiu Ziggy. Encheu uma tigela com água morna e começou a limpar o rosto de Esquisito delicadamente, com bolas de algodão.
- Eles te deram uma surra? - Alex mal conseguia compreender o que estava acontecendo.
- É o que parece - disse Esquisito. - Ai! Dá pra ir com mais cuidado?
- O seu nariz está quebrado. Você devia ir pro hospital - disse Ziggy.
- Detesto hospitais. Conserta aí pra mim.
Ziggy suspendeu as sobrancelhas.
- Tenho medo de não ficar bom e você acabar igual a um boxeador frustrado.
- Vou arriscar.
- Pelo menos, o maxilar está inteiro - disse ele, inclinando-se diante do rosto de Esquisito. Segurou o nariz dele com as duas mãos e girou, tentando não ficar enjoado com a crepitação triturante da cartilagem. Esquisito gritava, mas Ziggy seguiu em frente. Tinha suor sobre os lábios. - Pronto - disse ele. - Isso é o melhor que eu posso fazer.
- O funeral de Rosie foi hoje - disse Alex.
- Ninguém avisou a gente - reclamou Ziggy. - Isso explica por que os ânimos estavam tão exaltados.
- Você acha que eles vão vir atrás da gente, então? - perguntou Alex.
- A polícia os ameaçou - disse Esquisito. Falar estava ficando cada vez mais difícil, à medida que o maxilar enrijecia.
Ziggy observou o seu paciente.
- Bom, Esquisito, vendo o seu estado, Deus queira que eles tenham se sentido ameaçados mesmo.
14
Qualquer esperança que pudessem ter acalentado sobre a morte de Rosie ter sido uma comoção passageira foi por água abaixo diante da cobertura jornalística do funeral. Lá estava o crime na primeira página novamente e qualquer pessoa que tivesse perdido a cobertura inicial dificilmente conseguiria ignorar a reprise.
E Alex, novamente, foi a primeira vítima. Voltando do supermercado para casa alguns dias depois, estava pegando um atalho no fundo do Jardim Botânico quando Henry Cavendish e os seus amigos surgiram em um bando desorganizado, com roupas de rúgbi. Assim que avistaram Alex, começaram a assoviar, depois o cercaram e começaram a empurrá-lo. Formando um círculo à sua volta, arrastaram-no para fora da grama e o atiraram no chão lamacento de neve derretida. Alex rolava no chão, tentando se esquivar dos chutes. Não corria o risco de se confrontar com uma violência real como a que Esquisito experimentara e estava mais irritado do que com medo. Uma bota acertou o seu nariz e ele sentiu o sangue esguichar.
- Sumam daqui! - gritou ele, limpando a mistura de lama, sangue e neve derretida do rosto. - Por que vocês não me deixam em paz, porra?
- Vocês é que deviam sumir, matador - gritou Cavendish. - Ninguém quer vocês por perto.
Uma voz tranquila acudiu.
- E quem quer vocês por perto?
Alex esfregou os olhos e viu Jimmy Lawson parado, à margem do grupo. Demorou um pouco para reconhecê-lo sem o uniforme, mas o seu coração acelerou quando percebeu quem era.
- Cai fora - disse Edward Greenhalgh. - Você não tem nada a ver com isso.
Lawson meteu a mão dentro do casaco e puxou o seu distintivo da polícia. Abrindo-a de modo displicente, ele disse:
- Acho que tenho, sim, senhor. Pois bem, quero saber o nome de cada um de vocês. Creio que é um assunto que terá de ser levado para as autoridades acadêmicas.
Súbito, eram crianças novamente. Mexeram-se para lá e para cá, inquietos, olhando fixamente para o chão, resmungando os detalhes para Lawson, que anotava tudo no seu caderninho. Enquanto isso, Alex levantou-se, encharcado e imundo, contemplando os destroços das suas compras. Uma garrafa de leite estourara sobre a sua calça, uma jarra plástica de iogurte de limão entornara sobre uma das mangas do seu casaco.
Lawson dispensou os vândalos e ficou parado olhando para Alex, sorrindo.
- Você está péssimo - disse ele. - Sorte sua eu estar passando por aqui.
- Você não está trabalhando? - perguntou Alex.
- Não. Eu moro ali na esquina. Dei uma saída rápida para pegar a correspondência. Vamos, vamos até lá em casa, dar um jeito nessa sua roupa.
- Eu agradeço a sua gentileza, mas não precisa, não.
Lawson sorriu.
- Você não pode andar por St. Andrews desse jeito. Vai acabar sendo preso por assustar os jogadores de golfe. E, além do mais, você está tremendo. Precisa de uma xícara de chá.
Alex não ia discutir. A temperatura estava caindo vertiginosamente e a ideia de voltar para casa a pé, encharcado daquele jeito, não era nada agradável.
- Obrigado - aceitou ele.
Dobraram a esquina e entraram em uma rua novinha em folha, tão nova que ainda não estava nem asfaltada. As primeiras casas já estavam prontas mas, não muito adiante, havia apenas terrenos vazios para futuras construções. Lawson passou direto pelas casas prontas e parou mais à frente, diante de um trailer estacionado no que, um dia, poderia ser um jardim. Atrás do trailer, quatro paredes e vigas de madeira cobertas de lona ofereciam a promessa de algo mais suntuoso do que um veículo com quatro cabines.
- Estou construindo uma casa. A rua toda está fazendo a mesma coisa. Cada um ajuda o outro, com trabalho braçal e habilidades específicas. Assim, eu vou conseguir ter uma casa de chefe com um salário de policial. - Ele subiu os degraus do trailer. - Mas, por enquanto, é aqui que eu moro.
Alex entrou atrás dele. O trailer era aconchegante, com um aquecedor a gás portátil exalando calor no limitado recinto. Alex ficou impressionado com a arrumação. A maioria dos homens solteiros que ele conhecia vivia em chiqueiros, mas a casa de Lawson era impecável. Todos os metais brilhavam. A pintura estava limpa e era recente. As cortinas de cor viva estavam amarradas com capricho. Não havia nada bagunçado. Estava tudo no lugar, organizado; livros na estante, xícaras penduradas pela alça no gancho no armário, fitas cassetes em uma caixa, plantas de arquiteto emolduradas no tabique. O único sinal de que alguém de fato morava ali era uma panela fervendo no fogão. O cheiro da sopa de lentilhas atingiu Alex em cheio.
- Muito bom - comentou ele, dando uma olhada geral.
- É um pouco apertado, mas mantendo arrumado não fica tão claustrofóbico. Tira a jaqueta, a gente pode colocar ali em cima do aquecedor. Agora, você precisa lavar o rosto e as mãos. O banheiro fica ali, logo depois do fogão.
Alex entrou no minúsculo cubículo. Olhou-se no espelho, sobre a pia de casa de bonecas. Estava realmente péssimo. Sangue coagulado, lama. E iogurte de limão grudado no cabelo. Não era de admirar que Lawson tivesse insistido para que ele fosse até o trailer se ajeitar. Deixou a água correr na pia e se esfregou até ficar limpo. Quando saiu do banheiro, Lawson estava inclinado no fogão.
- Agora, sim! Senta aí do lado do aquecedor, você vai se secar rapidinho. Quer um chá? Ou então, acabei de fazer uma sopa, se você preferir.
- Vou aceitar a sopa. - Alex sentou-se ao lado do aquecedor enquanto Lawson servia às colheradas uma tigela generosa da sopa amarelo-dourada com pedaços de pernil de porco. Colocou a tigela diante de Alex e lhe deu uma colher. - Não quero parecer rude, mas por que o senhor está sendo tão gentil comigo? - perguntou ele.
Lawson sentou à sua frente e acendeu um cigarro.
- Porque tenho pena de você, e dos seus amigos. Tudo o que vocês fizeram foi agir como cidadãos responsáveis, mas ganharam fama de bandidos. E eu me considero parcialmente responsável. Se eu estivesse fazendo a minha ronda, em vez de estar prostrado dentro do meu carro, poderia ter pegado o assassino em flagrante. - Ele inclinou a cabeça para trás e exalou um suspiro de fumaça no ar. - É por isso que eu acho que não foi alguém daqui. Qualquer um que conhecesse aquela região à noite saberia que sempre tem uma viatura de polícia parada ali. - Lawson fez uma careta. - Não temos ajuda de custo de gasolina suficiente para dirigirmos por aí a noite toda, então somos obrigados a estacionar em algum lugar.
- Maclennan ainda acha que fomos nós? - perguntou Alex.
- Não sei o que ele acha, filho. Vou ser franco com você. Voltamos à estaca zero. E por isso vocês acabaram na linha de fogo. E os irmãos Duff estão soltos por aí, caçando vocês, e pelo que eu vi hoje, os seus amigos também se voltaram contra você.
Alex bufou.
- Eles não são meus amigos. O senhor realmente vai dar queixa deles?
- Você quer que eu faça isso?
- Para falar a verdade, não. Eles vão acabar arrumando um jeito de se vingar. Mas não acho que vão nos perseguir mais depois dessa. Vão ficar com medo da mamãe e do papai ouvirem a respeito e cortar a mesada deles. Estou mais preocupado com os Duff.
- Acho que eles também vão deixar vocês em paz. A minha colega pegou pesado com eles. O seu amigo Mackie teve o desprazer de topar com eles em um péssimo dia. Eles estavam arrasados depois do funeral.
- Com certeza. Só espero não receber um tratamento como o que Esquisito ganhou.
- Esquisito? Você está falando do Sr. Mackie? - Lawson franziu a testa.
- A-ham. É um apelido dos tempos de colégio. De uma música do David Bowie.
Lawson sorriu.
- Mas é claro! Ziggy Stardust e as Aranhas de Marte. Então você é o Gilly, não é? E Sigmund, o Ziggy.
- Exatamente.
- Eu não sou tão mais velho do que vocês assim. E o que sobrou para o Sr. Kerr?
- Ele não é muito fã de David Bowie, não. Ele gosta do Pink Floyd. Então, ficou sendo Mondo. Crazy Diamond? Lembra?
Lawson fez que sim com a cabeça.
- Ótima sopa, por sinal.
- Receita da minha mãe. Vocês se conhecem há um tempão, então?
- Nos conhecemos no primeiro dia de aula. Somos melhores amigos desde então.
- Todo mundo precisa de amigos. É como no meu trabalho. Você trabalha com as mesmas pessoas durante um tempo e elas são como os seus irmãos. Você dá a vida por elas, se for necessário.
Alex deu um sorriso compreensivo.
- Sei o que você quer dizer. Com a gente também é assim. - Ou era assim, pensou ele, sentindo uma pontada no peito. Naquele semestre, as coisas estavam bem diferentes. Esquisito passava mais tempo com o Esquadrão de Deus do que com eles. E só Deus sabia onde Mondo se metia na maior parte do tempo. Os Duff não eram os únicos pagando um alto preço emocional pela morte de Rosie, percebeu Alex subitamente.
- Então vocês seriam capazes de mentir pelo outro se fosse preciso, né?
Alex parou com a colher no ar, a caminho da boca. Então era isso. Empurrou a tigela e se levantou, apanhando a jaqueta.
- Obrigado pela sopa - disse ele. - Estou bem agora.
Ziggy raramente se sentia solitário. Por ser filho único, estava acostumado com a sua própria companhia e nunca deixou de se divertir. Sua mãe sempre olhava para os outros pais como se eles fossem malucos quando reclamavam que os filhos se sentiam entediados durante as férias. Tédio jamais fora problema naquela família.
Mas naquela noite, a solidão infiltrara-se em sua casa em Fife Park. Ele estava cheio de trabalho para mantê-lo ocupado, mas pela primeira vez precisava de companhia. Esquisito saíra com o seu violão, tentando aprender como louvar o Senhor em três acordes. Alex chegara em casa de mau humor após uma briga com a Direita e um encontro com o tira Lawson, que havia terminado mal. Mudara de roupa e partira para uma palestra com slides sobre pintores venezianos. E Mondo estava fora, provavelmente trepando.
E essa até que não era uma má ideia. A última vez que fizera sexo foi bem antes de se depararem com Rosie Duff. Passara a noite em Edimburgo, no único pub que conhecia onde gays eram bem recebidos. Ficara parado no bar, bebericando o seu chope, olhando furtivamente para os lados, evitando olhar fixamente para alguém. Passada meia hora, um jovem de uns vinte e poucos anos parou ao seu lado. Usava jeans, camiseta e jaqueta. Era bonito, tinha aparência de durão. Puxou um papo e eles acabaram fazendo sexo, rápido mas satisfatório, contra a parede do banheiro. Terminaram muito antes do horário do último trem, que levaria Ziggy de volta para casa.
Ziggy ansiava por algo mais do que aqueles encontros anônimos com estranhos, que constituíam a sua única experiência com sexo. Queria o que os seus amigos heterossexuais pareciam ter com tanta facilidade. Queria galanteios e romance. Alguém com quem pudesse compartilhar uma intimidade que fosse além da troca de fluidos corporais. Queria um namorado, um amante, um parceiro. E não fazia a menor ideia de como encontrá-lo.
Havia um grupo gay na universidade, ele sabia. Mas eram uns gatos pingados que pareciam adorar a polêmica de serem reconhecidos como gays. A política da Liberação Gay interessava Ziggy, mas os caras que ele via posando pelo campus não tinham nenhum compromisso político sério. Só gostavam de ser populares. Ziggy não tinha vergonha de ser gay, mas não queria que aquilo fosse a única coisa que as pessoas soubessem a seu respeito. Além disso, queria ser médico e suspeitava, sabiamente, que uma carreira como ativista gay não ajudaria muito na sua ambição.
Então, por enquanto, a única saída para extravasar os seus sentimentos eram os encontros casuais. Pelo que sabia, não havia nenhum pub em St. Andrews onde pudesse encontrar o que estava procurando. Mas havia alguns lugares para onde os homens iam, prontos para fazer sexo anônimo com estranhos. O problema é que esses lugares eram ao ar livre, e naquele tempo poucos iriam enfrentar o frio. Mas, mesmo assim, ele não devia ser o único rapaz em St. Andrews a fim de transar naquela noite.
Ziggy vestiu a sua jaqueta de pelo de carneiro, amarrou o cadarço das botas e saiu de encontro ao ar gelado da noite. Depois de uma caminhada vigorosa de quinze minutos, lá estava ele, nos fundos da catedral em ruínas. Atravessou o pátio, alcançando o que restara da igreja de Santa Maria. Espreitando nas sombras das paredes arruinadas, era comum ver homens por lá tentando fingir que haviam saído para dar uma voltinha que incluía um tour pela herança arquitetônica do lugar. Ziggy ergueu os ombros e tentou parecer casual.
No porto, Brian Duff estava bebendo com os amigos. Estavam entediados. E bêbados o bastante para fazer algo a respeito.
- Isso aqui está um saco - reclamou Donny, seu melhor amigo. - E a gente não tem nem grana pra ir a um lugar onde se possa passar uma noite decente.
A reclamação correu o grupo. Então Kenny teve uma ideia.
- Já sei o que a gente pode fazer. Diversão e dinheiro. E sem o risco de sermos denunciados.
- O quê? - quis saber Brian.
- Vamos roubar uns viados.
Olharam para ele como se estivesse falando grego.
- Hein? - perguntou Donny.
- Vai ser engraçado. E eles estão sempre com dinheiro. Não vão querer criar caso com a gente, né? São um bando de maricas mesmo.
- Você está sugerindo sair por aí e assaltar os outros? - perguntou Donny, deixando a preocupação transparecer em sua voz.
Kenny deu de ombros.
- Estou falando dos viados. Eles não contam. Nem vão sair correndo para a polícia, né? Porque aí vão ter que explicar o que estavam fazendo nos fundos da igreja de Santa Maria, no escuro.
- Pode ser engraçado - disse Brian, com a voz arrastada. - Fazer as bonecas se borrarem de medo. - Ele riu. - Se borrarem de medo. Isso pode ser uma má notícia para alguém. - Ele esvaziou a garrafa de cerveja e ficou de pé. - Vamos lá, então. O que vocês estão esperando?
Saíram sorrateiros pela noite, se acotovelando e rindo alto. Não precisaram caminhar muito até as ruínas da igreja. A meia-lua espreitava entre nuvens inconstantes, tornando o mar prateado e iluminando o caminho dos rapazes. À medida que se aproximavam, iam ficando em silêncio, pisando na ponta dos pés. Circularam a igreja. Nada. Esgueirando-se contra a parede, cruzaram os vestígios de uma soleira. E lá, em plena alcova, encontraram o que estavam procurando.
Um homem encostado na parede, com a cabeça jogada para trás, deixando gemidos de prazer escaparem dos seus lábios entreabertos. Diante dele, um outro homem ajoelhado, com a cabeça movimentando-se para frente e para trás.
- Ora, ora - disse Donny. - O que temos aqui?
Assustado, Ziggy levantou a cabeça e olhou, aterrorizado, para o seu pior pesadelo.
Brian Duff deu um passo à frente.
- Isso realmente vai ser divertido.
CONTINUA
Novembro de 2003; St. Andrews, Escócia
Ele sempre gostou do cemitério ao amanhecer. Não que a aurora oferecesse alguma promessa de recomeço, e sim porque era cedo demais para haver alguém por perto. Mesmo no período mais rigoroso do inverno, quando a pálida luz da manhã demorava mais para aparecer, ele podia garantir ali a sua solidão. Não havia olhares intrometidos tentando descobrir quem ele era e por que estava lá, de cabeça baixa, diante daquela sepultura específica. Não havia intrometidos questionando o seu direito de estar lá.
A jornada até ali fora longa e problemática. Mas ele era bom em levantar informações. Obsessivo, diriam alguns. Ele preferia ser chamado de persistente. Aprendera a pesquisar fontes oficiais e não oficiais e, finalmente, após meses de busca, encontrou as respostas que estava procurando. Ainda que insatisfatórias, elas ao menos lhe forneceram um ponto de partida. Para algumas pessoas, uma sepultura representa o fim. Não para ele. Para ele, era uma espécie de começo.
Sempre soubera que a sepultura não bastaria por si só. Então ele esperou, aguardando um sinal que lhe mostrasse um caminho a seguir. E o sinal finalmente apareceu. À medida que o céu mudava de cor com a aurora, tirou do bolso e desdobrou um recorte que havia extraído do jornal local.
POLÍCIA DE FIFE REABRE CASOS NÃO RESOLVIDOS
Assassinatos não solucionados em Fife, de até trinta anos atrás, serão reexaminados em uma revisão completa de casos não resolvidos, anunciou a polícia local esta semana.
O chefe de polícia, Sam Haig, afirmou que novas descobertas forenses permitem que casos que foram arquivados há anos sejam reabertos, com alguma chance de serem resolvidos com sucesso. Provas antigas, guardadas nos arquivos da polícia durante décadas, serão submetidas a métodos como análise de DNA, na esperança de novos progressos.
James Lawson, subchefe de polícia, assumirá a revisão dos casos. Ele explicou ao Courier que "casos de assassinato nunca são encerrados. Devemos às vítimas e às suas famílias o prosseguimento das investigações. Em alguns casos, tivemos fortes suspeitos na época, embora não dispuséssemos de provas suficientes para ligá-los aos crimes. Mas, com as técnicas forenses modernas, um único fio de cabelo, uma mancha de sangue ou um vestígio de sêmen podem nos fornecer tudo o que precisamos para obter uma condenação. Tivemos vários exemplos recentes na Inglaterra de casos que foram levados a julgamento, com sucesso, após vinte anos ou mais. Uma equipe de detetives veteranos fará destes casos a sua prioridade número um".
Lawson não quis revelar quais casos específicos estarão no topo da lista para os seus detetives.
Mas o trágico assassinato da adolescente Rosie Duff sem dúvida estará entre eles.
A moça de Strathkinness, de 19 anos, foi estuprada, esfaqueada e abandonada à morte em Hallow Hill, há quase 25 anos. Ninguém foi preso pelo seu brutal assassinato.
O seu irmão Brian, de 46 anos, que ainda mora na propriedade da família, Caberfeidh Cottage, e trabalha em uma fábrica de papel em Guardbridge, declarou ontem à noite: "Nunca perdemos a esperança de que o assassino de Rosie um dia fosse a julgamento. Havia suspeitos na época, mas a polícia nunca conseguiu encontrar provas suficientes para incriminá-los. Infelizmente, os meus pais morreram sem saber quem cometeu aquela atrocidade com Rosie. Mas talvez agora possamos encontrar a resposta que eles mereciam ter obtido em vida."
Podia recitar o artigo de cor, mas gostava de contemplá-lo. Era como um talismã, lembrando que a sua vida não era mais sem sentido. Durante muito tempo quisera pôr a culpa em alguém. Não ousara sequer desejar vingança. Mas agora, finalmente, era a hora de se vingar.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_ECO_DISTANTE.jpg
Parte Um
1
1978; St. Andrews, Escócia
Quatro da manhã, na época mais fria de dezembro. Quatro silhuetas imprecisas vacilavam no vai e vem da nevasca que pairava no ar, à mercê do vento nordeste, que vinha dos Urais e castigava o mar do Norte. Os oito pés cambaleantes daqueles que se autodenominavam os "Garotos de Kirkcaldy" trilhavam o caminho familiar do atalho de Hallow Hill até o Fife Park, a mais moderna das residências estudantis da Universidade de St. Andrews. Lá, as suas camas perpetuamente desfeitas os esperavam em um bocejo, lençóis e cobertores arrastando-se pelo chão, como uma língua pendurada para fora da boca.
A conversa dos rapazes repetia um tema tão habitual quanto o percurso que faziam.
- Eu estou te dizendo, Bowie é o maior - anunciava Sigmund Malkiewicz em voz alta, embaralhando as palavras, o seu rosto, normalmente impassível, desanuviado pela bebida. Um pouco atrás dele, Alex Gilbey puxava o capuz do seu agasalho para mais perto do rosto e sufocava o riso, antecipando silenciosamente a resposta que estava prestes a ouvir.
- Bobagem - retrucou Davey Kerr. - Bowie não passa de um maricas. O Pink Floyd dá de dez a zero em David Bowie. Dark Side of the Moon, isso sim é um clássico. Bowie não fez nada à altura até hoje. - Sob o peso da neve derretida, longos cachos negros caíam sobre o seu rosto delicado e ele os empurrava para trás, impaciente.
E lá iam eles. Como magos conjurando magias de combate um contra o outro, Sigmund e Davey lançavam títulos de música, letras e riffs de guitarra em um duelo que já durava uns seis ou sete anos. Pouco importava se, naquela época, era mais provável que as músicas que chacoalhavam as janelas dos seus aposentos fossem as do Clash, do Jam ou do Skids. Até mesmo os seus apelidos homenageavam as suas antigas paixões. Desde a primeira tarde em que se reuniram no quarto de Alex após as aulas para ouvir a sua nova aquisição, Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, foi inevitável que o carismático Sigmund passasse a ser Ziggy, o messias leproso, para toda a eternidade. E os outros teriam de se contentar em ser as suas Aranhas. Alex passara a ser Gilly, apesar dos seus protestos de que aquele era um apelido afeminado demais para alguém que aspirava à compleição robusta de um jogador de rúgbi. Mas era inútil discutir com o acaso do seu sobrenome. E nenhum deles teve a menor dúvida quanto a batizar o quarto membro do quarteto de Esquisito. Porque Tom Mackie era esquisito, com toda certeza. Era o mais alto dos alunos que cursavam o mesmo ano que ele e os seus membros espichados e desengonçados pareciam o resultado de uma mutação, desenvolvida para combinar com uma personalidade que gostava de ser perversa.
Sobrara apenas Davey, fiel à causa do Pink Floyd, que recusava firmemente qualquer apelido oriundo do cânone de Bowie. Durante um tempo, foi conhecido sem nenhum entusiasmo como Rosado, mas desde que os quatro ouviram pela primeira vez a música "Shine On, You Crazy Diamond", a discussão foi encerrada; Davey era um diamante louco, sem a menor sombra de dúvida, lançando fogo em direções imprevisíveis, impaciente e pouco à vontade fora do seu habitat. Diamond logo virou Mondo, e Mondo ele continuou sendo no último ano da escola e durante todo o curso universitário.
Alex balançou a cabeça, pasmo. Mesmo bêbado, ele se admirava com a cola que mantivera os quatro grudados durante todos aqueles anos. O mero pensamento provocava um bem-estar que o protegia do frio glacial, quando tropeçou em uma raiz proeminente, escondida debaixo de uma macia camada de neve. "Droga", resmungou ele, colidindo com Esquisito, que lhe deu um empurrão camarada, deixando-o estatelado no chão. Lutando para manter o equilíbrio, Alex deixou que o seu impulso o carregasse adiante e acabou dando um passo em falso e caindo declive abaixo, subitamente eufórico com a sensação da neve contra o seu rosto afogueado. Quando tentava subir de volta, sofreu uma queda tão inesperada que o chão sumiu debaixo dos seus pés. Caiu de pernas para o ar.
A sua queda foi amparada por algo macio. Alex se esforçava para se erguer, empurrando aquilo que o amparara. Cuspindo neve, esfregou os olhos com os dedos entorpecidos pelo frio, forçando o ar pelas narinas na tentativa de expelir o líquido gelado. Assim que olhou em volta para ver sobre o que havia aterrissado, os seus três companheiros surgiram na encosta para tripudiar da sua cômica desgraça.
Mesmo na lúgubre e indistinta claridade da neve, ele pôde ver que o que o amparara estava longe de ser do reino vegetal. A silhueta era, inconfundivelmente, a de um corpo humano. Os pesados flocos de neve começavam a derreter assim que aterrissavam no chão, permitindo que Alex percebesse uma figura de mulher, os cachos molhados do seu cabelo negro espalhados sobre a neve, como os de uma Medusa. A sua saia estava suspensa até a cintura e as botas negras que cobriam até os joelhos pareciam ainda mais destoantes em contraste com as suas pernas lívidas. Estranhas manchas escuras maculavam a pele da moça e a blusa que estava colada no seu peito. Alex contemplou a cena sem a compreender por um bom tempo, até olhar para as suas próprias mãos e ver as mesmas manchas escuras contaminando a sua pele.
Sangue. Aquela constatação lhe ocorreu no exato momento em que a neve que bloqueava os seus ouvidos derreteu e ele pôde ouvir a respiração ofegante da moça, fraca mas ruidosa.
- Meu Deus do Céu - gaguejou Alex, tentando afastar-se do horror com o qual havia se deparado. Mas, à medida que recuava, ia batendo no que pareciam ser pequenos muros de pedra. - Meu Deus. - Olhou para cima, desesperado, como se a mera visão dos seus companheiros pudesse quebrar aquele feitiço e fazer com que tudo desaparecesse. Voltou a olhar para aquela visão de pesadelo sobre a neve. Não era uma alucinação etílica: era real. Olhou novamente para os seus amigos. - Tem uma garota aqui embaixo - gritou ele.
A voz de Mackie Esquisito ecoou, sinistra:
- Que desgraçado sortudo.
- Para com isso, ela está sangrando.
A risada de Esquisito cortou a noite.
- Não tão sortudo assim afinal, né, Gilly?
Alex sentiu a raiva crescendo dentro dele.
- Não estou brincando, porra. Venham aqui. Ziggy, vem logo, cara.
Só então eles puderam ouvir a urgência na voz de Alex. Ziggy tomou a dianteira, como sempre, e eles o seguiram, caminhando com dificuldade pela neve até o topo da colina. Ziggy alcançou o declive correndo aos saltos, Esquisito mergulhou de cabeça na direção de Alex e Mondo veio por último, colocando um pé na frente do outro, cuidadosamente.
Esquisito acabou caindo de pernas para o ar, em cima de Alex, e os dois rolaram para cima do corpo da mulher. Debateram-se, tentando se desvencilhar um do outro, enquanto Esquisito ria como um doido.
- Ei, Gilly, isso deve ser o mais perto que você já chegou de uma mulher.
- Você fumou demais, cara - disse Ziggy, irritado, empurrando Esquisito para longe e agachando-se ao lado da mulher, buscando batimentos cardíacos no seu pescoço. Podia ouvi-los, mas eles estavam assustadoramente fracos. O medo o deixou sóbrio na mesma hora em que pôde distinguir, mesmo naquela luminosidade precária, o que tinha diante de si. Era apenas um estudante de medicina do último ano, mas sabia reconhecer um ferimento fatal.
Esquisito ficou de cócoras e franziu as sobrancelhas.
- Cara, sabe o que é isso aqui?
Ninguém estava prestando atenção, mas ele continuou assim mesmo:
- É o cemitério picto.[1] Tá vendo esses montinhos na neve, tipo uns muros pequenos? São as pedras que eles usavam como caixões. Cacete, Alex encontrou um cadáver em um cemitério. - E ele começou a rir novamente, produzindo um som estranho no ar abafado pela neve.
- Cala a porra da boca, Esquisito. - Ziggy continuava a deslizar as mãos sobre o peito da mulher, sentindo, sob os seus dedos perscrutadores, o resultado desalentador de uma ferida profunda. Jogou a cabeça para o lado, tentando examiná-la melhor. - Mondo, você está com o seu isqueiro aí?
Mondo avançou, relutante, e apanhou o seu Zippo. Acendeu o isqueiro e estendeu a luz fraca sobre o corpo da mulher, até o seu rosto. Com a mão livre cobriu a boca, tentando sem sucesso sufocar um gemido. Os seus olhos azuis se arregalaram, horrorizados, e a chama do isqueiro tremelicou em sua mão.
Ziggy respirou fundo. Os ângulos do seu rosto pareciam fantasmagóricos naquela luz trêmula.
- Merda - disse ele, ofegante. - É a Rosie, do Pub Lammas.
Alex não imaginava que fosse possível se sentir ainda pior. Mas as palavras de Ziggy foram como um soco no seu coração. Com um gemido sussurrante, ele virou de costas e vomitou na neve uma mistura de cerveja, batata chips e pão de alho.
- Nós temos que buscar ajuda - declarou Ziggy, com firmeza. - Ela ainda está viva, mas, no estado em que está, não vai continuar assim por muito tempo. Esquisito, Mondo, me deem os seus casacos. - Enquanto falava, Ziggy tirava a sua jaqueta de lã de carneiro e a colocava gentilmente em volta dos ombros de Rosie. - Gilly, você é o mais rápido. Vai buscar ajuda. Procura um telefone. Tira alguém da cama, se for preciso. Mas traz alguém aqui, ouviu? Alex?
Atordoado, Alex fez força para ficar de pé. Desceu o declive aos trancos e barrancos, sacudindo a neve abaixo dos pés, lutando para encontrar um apoio. Saiu do emaranhado das árvores e deparou-se com os postes que distinguiam o mais recente beco sem saída do alojamento novo, construído uns seis anos antes. Refazer o caminho por onde tinham vindo era o itinerário mais rápido.
Alex cobriu a cabeça e saiu em disparada, em uma corrida escorregadia até o meio da rua, tentando esquecer o que tinha visto. O que era tão impossível quanto manter o passo firme naquela neve fresca. Como aquela visão atroz entre as sepulturas pictas podia ser Rosie, do Pub Lammas? Naquela noite mesmo estiveram lá bebendo, animados e barulhentos sob o cálido brilho amarelado do bar, enchendo a cara de cerveja e aproveitando ao máximo a folga da universidade, antes que tivessem de retornar à repressão sufocante dos Natais em família, a quilômetros dali.
Ele próprio estivera conversando com Rosie, flertando com ela, daquela maneira desajeitada típica dos rapazes de vinte e um anos, incertos se ainda são garotos bobos ou homens maduros e experientes. Quis saber, não pela primeira vez, a que horas ela saía do pub. Chegou até a comentar sobre a festa para onde iam depois. Rabiscou o endereço atrás de um descanso de copo e o empurrou até ela pela mesa úmida de madeira do bar. Ela lhe deu um sorriso compassivo e apanhou o descanso de copo. Deve ter ido direto para o lixo, suspeitou Alex. O que uma mulher como Rosie iria querer com um garoto imaturo como ele, afinal? Com a sua beleza e aparência, ela podia escolher quem bem entendesse, alguém que pudesse lhe proporcionar alguma diversão, e não um estudante sem dinheiro, tentando fazer com que o pouco que tinha no bolso durasse até o seu emprego de férias, como arrumador de prateleiras no supermercado.
Então como aquela podia ser Rosie, estirada sobre a neve em Hallow Hill, banhada em sangue? Ziggy deve ter visto errado, insistia Alex para si mesmo enquanto pegava a esquerda, em direção à rua principal. Qualquer um podia se confundir sob a luz trêmula do isqueiro de Mondo. E Ziggy sequer prestara atenção na moça de cabelos negros do bar. Deixara isso para Alex e para Mondo. Devia ser alguma pobre mulher parecida com Rosie. Era isso, ele se convencia. Um engano, tudo não passava de um engano.
Alex hesitou por um momento, recuperando o fôlego e se perguntando para onde correr. Havia diversas casas nas redondezas, mas em nenhuma delas ele via alguma luz acesa. Mesmo que conseguisse acordar alguém, duvidava que fossem estar dispostos a abrir a porta para um jovem suado e cheirando a bebida no meio de uma tempestade de neve.
Foi então que ele se lembrou. Naquela hora da noite, havia sempre um carro de polícia estacionado perto da entrada principal do Jardim Botânico, a uns quinhentos metros de distância. Eles costumavam vê-los com frequência, quando voltavam cambaleantes pela madrugada, cientes do olhar enviesado do único ocupante do carro, tentando parecer sóbrios por causa dele. Era uma visão que sempre provocava um dos discursos do Esquisito sobre como a polícia era corrupta e preguiçosa. "Deviam era estar caçando os bandidos de verdade, prendendo os sujeitos de terno e gravata que roubam o nosso dinheiro, e não sentados aí, a noite inteira, com um cantil de chá e um saquinho de biscoito, torcendo para pôr as mãos em um bêbado mijando em uma cerca ou em algum idiota dirigindo em alta velocidade de volta para casa. Babacas preguiçosos." Bom, talvez hoje o desejo de Esquisito fosse realizado, em parte. Porque naquela noite o babaca preguiçoso dentro do carro iria receber mais do que merecia.
Alex virou-se na direção do Canongate e começou a correr novamente, a neve fresca estalando sobre as suas botas. Desejou ter dado continuidade aos seus treinos de rúgbi, quando uma pontada de dor tomou conta do seu flanco, transformando o seu ritmo em uma corrida torta e desengonçada, enquanto ele lutava para encher os pulmões de ar. Só mais uns dez metros, dizia para si mesmo. Não podia parar agora, quando a vida de Rosie talvez estivesse dependendo da sua velocidade. Olhou adiante, mas a neve estava caindo ainda mais pesada e ele mal podia enxergar o que tinha diante de si.
Estava perto do carro da polícia quando percebeu. Mesmo quando o alívio inundou o seu corpo suado, a apreensão apertou o seu peito. Sóbrio pelo choque e pelo esforço, Alex constatou que ele não se parecia em nada com o cidadão respeitável que normalmente denuncia um crime. Estava desgrenhado, suado, manchado de sangue e tremendo feito vara verde. De algum modo, tinha de convencer o policial, que já estava com metade do corpo para fora da patrulha, que ele não estava nem imaginando coisas, nem pregando uma peça. Estacou a alguns passos do carro, tentando não parecer uma ameaça, esperando que o motorista aparecesse.
O policial endireitou o quepe sobre o cabelo negro, bem curto. Inclinou a cabeça para um lado e examinou Alex, desconfiado. Mesmo camuflada pelo pesado casaco do uniforme, Alex podia ver a tensão no seu corpo.
- O que está acontecendo, filho? - perguntou ele. Apesar da abordagem paternal, o policial não parecia ser muito mais velho do que o próprio Alex, e possuía um ar de desconforto que não combinava nem um pouco com o seu uniforme.
Alex tentou controlar a respiração, mas não conseguiu.
- Tem uma moça lá em Hallow Hill - ele deixou escapar. - Ela foi atacada, está sangrando muito, precisa de ajuda.
O policial apertou os olhos diante da neve, franzindo a testa.
- Foi atacada? Como é que você sabe?
- Ela está ensopada em sangue. E... - Alex fez uma pausa para organizar as palavras. - Não está vestida de acordo com o clima. Está sem casaco. Escuta, será que você pode arrumar uma ambulância, um médico, qualquer coisa? Ela está muito ferida, cara.
- E você simplesmente topou com ela, no meio de uma nevasca, hein? Você andou bebendo, filho? - As palavras eram condescendentes, mas a voz o traía, deixando transparecer a sua ansiedade.
Alex sabia que aquele não era o tipo de coisa que acontecia com frequência no meio da noite, na pacata e suburbana St. Andrews. De algum jeito, precisava convencer o policial de que estava falando sério.
- É claro que eu estava bebendo - respondeu Alex, extravasando a sua frustração. - Por que eu estaria na rua numa hora dessas? Veja bem, eu e os meus amigos estávamos pegando um atalho, voltando para o nosso alojamento. Estávamos de bobeira e aí eu subi até o topo da colina, escorreguei e caí justo em cima dela. - Ele aumentou a voz, suplicante. - Por favor. Você precisa me ajudar. Ela pode morrer lá.
O policial estudou Alex pelo que pareceu uma eternidade. Então, debruçou no carro e desandou a falar pelo rádio. Enfiou a cabeça para fora da porta.
- Entre aí. Vamos até Trinity Place. É bom você não estar brincando - ele ameaçou, carrancudo.
O carro seguiu deslizando pela rua; os pneus não era adequados para a neve. Os poucos carros que passaram por ali mais cedo deixaram marcas que agora não passavam de leves depressões na branca superfície fofa da neve, testemunhas do peso dos seus flocos. O policial xingava baixinho, evitando derrapar nos postes a cada curva. Quando chegaram em Trinity Place, virou-se para Alex:
- Vamos lá, mostre-me onde está a moça.
Alex saiu em disparada, seguindo as suas pegadas que desapareciam rapidamente na neve. Ficava olhando para trás toda hora, para verificar se o policial estava atrás dele. Quase caiu de cabeça em um certo momento, os olhos demorando um pouco para se ajustarem à escuridão tremenda, onde as luzes da rua eram encobertas pelos troncos das árvores. A neve parecia lançar a sua própria luz sinistra sobre a paisagem, exagerando o tamanho dos arbustos e estreitando a trilha por onde eles avançavam.
- É por aqui - instruiu Alex, desviando para a esquerda. Uma rápida olhadela sobre os ombros confirmou que a sua companhia estava bem atrás dele.
O policial hesitou:
- Você não está mesmo drogado, filho? - perguntou, desconfiado.
- Vamos logo! - gritou Alex, com urgência, assim que viu as sombras negras acima dele. Sem esperar para ver se o policial continuava no seu encalço, Alex correu ladeira acima. Estava quase chegando quando o jovem policial o alcançou, passando na sua frente e parando a alguns passos do pequeno grupo.
Ziggy ainda estava agachado ao lado do corpo da mulher, a camisa grudada no seu tronco esguio em uma mistura de neve e suor. Esquisito e Mondo estavam ao seu lado, os braços cruzados sobre o peito, as mãos enfiadas nas axilas e as cabeças abaixadas entre os ombros levantados. Estavam apenas tentando se esquentar, na falta de um casaco, mas passavam uma infeliz imagem de arrogância.
- O que está acontecendo aqui, rapazes? - perguntou o policial. A sua voz era uma tentativa agressiva de impor autoridade, apesar de estar em desvantagem diante do grupo.
Ziggy levantou-se com dificuldade e afastou o cabelo encharcado dos olhos.
- Tarde demais. Ela está morta.
2
Nada em seus vinte e um anos de vida havia preparado Alex para um interrogatório policial no meio da noite. Os seriados de tevê e os filmes policiais sempre dão a impressão de que tudo é organizado. Mas a própria bagunça do processo era, de algum modo, ainda mais angustiante do que o rigor militar. Os quatro rapazes chegaram à delegacia em uma agitação caótica. Haviam sido escoltados às pressas do local do crime, banhados pelo pisca-pisca azulado das luzes das patrulhas e ambulâncias, e ninguém parecia saber direito o que fazer com eles.
Ficaram parados sob um poste pelo que pareceu uma eternidade, tiritando de frio, expostos ao olhar de reprovação do policial que Alex havia trazido e do seu colega, um homem grisalho de uniforme, corcunda e carrancudo. Nenhum dos dois lhes dirigiu a palavra, embora não tivessem desviado o olhar dos quatro nem por um segundo.
Finalmente, um homem com uma aparência cansada, encolhido dentro de um sobretudo que parecia uns dois números maior do que ele, deslizou até eles. Os seus sapatos tinham um solado muito fino, impróprio para o terreno.
- Lawson, Mackenzie, levem esses rapazes para a delegacia e não deixem que fiquem juntos quando chegarem lá. Daqui a pouco vamos falar com eles. - O homem se virou e pisou em falso, a caminho da terrível descoberta. Ela agora estava protegida por biombos de lona, através dos quais uma sinistra luz esverdeada se espalhava, manchando a neve.
O policial mais jovem olhou para o colega, preocupado.
- Como é que vamos levá-los para lá?
O homem deu de ombros.
- Sei lá, acho que você vai ter que espremê-los no seu carro. Eu vim com o camburão.
- Será que não dá para levar no camburão? Aí você fica vigiando enquanto eu dirijo.
O homem balançou a cabeça, prendendo os lábios.
- Você é quem sabe, Lawson. - Fez um gesto para os Garotos de Kirkcaldy. - Vocês aí, vamos. Pra dentro do camburão. E sem bagunça, entenderam? - Ele os conduziu até o carro, gritando para Lawson, por cima do ombro: - Pega as chaves com Tam Watt.
Lawson saiu em direção ao declive, deixando os rapazes com Mackenzie.
- Eu é que não queria estar na pele de vocês quando o pessoal do DIC[2] descer daquela colina - disse ele, puxando conversa despretensiosamente, enquanto andava logo atrás deles. Alex tremeu, mas não de frio. Estava começando a perceber que a polícia estava tomando ele e os seus amigos como potenciais suspeitos, e não como testemunhas. Eles ainda não tinham tido nenhuma oportunidade para trocar ideias sobre o assunto, para combinar o que iriam dizer. Trocaram olhares apreensivos. Até Esquisito já havia se aprumado e percebido que aquilo não era uma brincadeira boba.
Na hora em que Mackenzie os apressou para dentro do camburão, ficaram sozinhos por alguns segundos. Ziggy pôde então sussurrar, alto o bastante para que os outros três pudessem ouvir: "Nenhuma palavra sobre a Land Rover." Eles compreenderam imediatamente.
- Putz - suspirou Esquisito, jogando a cabeça para trás, apavorado com a lembrança. Mondo roía a pele em volta da unha do polegar, mudo. Alex apenas concordou com a cabeça.
A delegacia não parecia um ambiente mais tranquilo do que a cena do crime. O policial de plantão reclamou amargamente quando os dois policiais apareceram com quatro elementos que não deveriam se comunicar entre si. Não havia salas de interrogatório suficientes para mantê-los separados. Esquisito e Mondo tiveram de esperar em celas destrancadas, enquanto Alex e Ziggy foram deixados sozinhos nas duas únicas salas de interrogatório da delegacia.
O cômodo onde Alex fora colocado era pequeno, claustrofóbico. Era um quadrado onde não era possível dar mais do que três passos, conforme ele concluiu em poucos minutos, após ter sido trancado lá dentro para ficar esperando. Não havia janelas e o teto baixo, revestido com azulejos pardacentos de poliestireno, o tornava ainda mais opressivo. Os móveis se resumiam a uma mesa lascada de madeira e quatro cadeiras sortidas, tão desconfortáveis quanto aparentavam ser. Alex tentou todas elas, uma por uma, optando finalmente pela que menos maltratava as suas coxas.
Perguntava-se se podia fumar. A julgar pelo cheiro no ar abafado, ele não seria o primeiro. Mas era um rapaz educado e a ausência de um cinzeiro fez com que hesitasse. Revirou os bolsos e encontrou um papel amassado de bala de hortelã. Desdobrou o papel com cuidado, dobrando as pontas para formar um cinzeiro improvisado. Então, apanhou o maço e conferiu. Ainda tinha nove cigarros. "Vai dar", calculou ele.
Alex acendeu o cigarro e parou para pensar sobre a sua situação pela primeira vez desde que chegara à delegacia. Era óbvio, agora que pensava a respeito. Eles haviam encontrado o corpo. Tinham de ser suspeitos. Todo mundo sabe que os principais candidatos a serem detidos em uma investigação de homicídio são as últimas pessoas que estiveram com a vítima enquanto ela ainda estava viva ou aqueles que encontram o corpo. E eles se enquadravam duplamente.
Sacudiu a cabeça. O corpo. Estava começando a pensar como eles. Não era apenas um corpo, era Rosie. Alguém que ele conhecia, ainda que superficialmente. Imaginou que isso tornava tudo ainda mais suspeito. Mas não queria pensar nisso agora. Queria expulsar o horror da sua mente. Sempre que fechava os olhos, revia a colina em flashback, como em um filme. A bela e sexy Rosie, machucada e sangrando na neve. "Pense em outra coisa", disse ele em voz alta.
Imaginava como os outros reagiriam ao interrogatório. Esquisito estava fora de si, não havia a menor dúvida. Tomara mais do que alguns drinques naquela noite. Alex o vira com um baseado na mão mais cedo mas, em se tratando de Esquisito, era impossível saber o que mais ele havia consumido. Alex tinha visto pastilhas de ácido circulando, ele próprio as recusara algumas vezes. Não fazia nenhuma objeção às drogas, mas preferia não fritar o cérebro. Mas Esquisito estava definitivamente disposto a experimentar qualquer coisa que prometesse expandir a sua consciência. Alex esperava fervorosamente que fosse lá o que ele tivesse engolido, inalado ou cheirado, já tivesse perdido o efeito até a hora em que fosse interrogado. Caso contrário, era possível que ele deixasse os policiais realmente furiosos. E qualquer idiota sabia que isso seria uma péssima ideia em uma investigação de homicídio.
Com Mondo, eram outros quinhentos. Aquilo o deixaria transtornado de uma maneira completamente diferente. Depois que você passava a conhecê-lo melhor, via que a sua sensibilidade acentuada só o metia em encrencas. Ele sempre fora o mais perseguido na escola, chamado de maricas, em parte por causa da sua aparência, e em parte porque nunca revidava. O cabelo cacheado, as feições élficas, os olhos de safira sempre arregalados, em um susto, como um rato acuado. As garotas gostavam, disso ele tinha certeza. Alex uma vez ouvira por acaso duas meninas dando risadinhas, dizendo que Davey Kerr parecia com o vocalista do T. Rex. Mas em uma escola como Kirkcaldy High, o que rendia pontos com as meninas podia, na mesma medida, render uma surra no vestiário. Se Mondo não tivesse tido os outros três para lhe dar cobertura, teria passado por maus bocados. Para o seu mérito, ele sabia disso e recompensava o serviço dos amigos como podia. Alex jamais teria passado em Francês Avançado sem a ajuda dele.
Mas Mondo ficaria por conta própria com a polícia. Não teria ninguém atrás de quem se esconder. Alex podia imaginá-lo naquele momento, de cabeça baixa, lançando o seu típico olhar estranho por baixo das sobrancelhas, mordiscando o dedão ou abrindo e fechando o seu isqueiro Zippo. Os policiais iam ficar frustrados com ele, iam pensar que ele tinha algo a esconder. O que jamais iriam descobrir, nem em um milhão de anos, é que o grande segredo de Mondo era que, noventa e nove por cento das vezes, não havia segredo algum. Não havia nenhum mistério, oculto por um enigma. Apenas um garoto que gostava de Pink Floyd, de peixe regado a vinagre nas refeições, cerveja e sexo. E que, por mais bizarro que isso pudesse ser, falava francês como se tivesse aprendido desde o berço.
Mas naquela noite, é claro, havia um segredo. E se alguém tivesse que estragar tudo, esse alguém era Mondo. Meu Deus, por favor, faça com que ele não mencione a Land Rover, pedia Alex mentalmente. No mínimo, seriam autuados por terem pegado e dirigido o carro sem o consentimento do dono. Na pior das hipóteses, os policiais perceberiam que um, ou todos eles, dispunham do veículo perfeito para transportar o corpo da moça até uma colina sossegada.
Esquisito não contaria nada; tinha mais a perder do que os outros. Fora ele quem aparecera no Lammas, sorrindo de orelha a orelha, balançando o chaveiro de Henry Cavendish no dedo, como alguém que acabou de se dar bem em uma troca de casais.
Alex não diria nada, sabia disso. Guardar segredos era uma das coisas que ele fazia melhor. Se o preço para evitar suspeita era ficar calado, estava certo de que não teriam problemas.
Ziggy também ficaria quieto. Com ele, a segurança vinha sempre em primeiro lugar. Afinal, fora ele quem saíra de fininho da festa para remover a Land Rover, quando percebeu o quanto Esquisito estava descontrolado. Chamou Alex em um canto e disse:
- Peguei as chaves no bolso do Esquisito. Vou tirar a Land Rover daqui, pra ninguém cair em tentação. Ele já andou dando voltas no quarteirão com algumas pessoas, está mais do que na hora de dar um fim nessa história, antes que ele se mate ou mate alguém.
Alex não fazia a menor ideia de quanto tempo ele esteve fora, mas, quando voltou, Ziggy avisou que escondera o carro atrás de uma das unidades industriais de Largo Road.
- A gente pode ir buscar de manhã.
Alex deu um sorriso largo.
- Ou então a gente podia deixar lá. Um pequeno enigma para o nosso amigo Henry quando ele voltar no semestre que vem.
- Melhor não. Assim que ele perceber que o seu precioso carrinho não está estacionado onde ele deixou, é capaz de ir dar queixa na polícia e entregar a gente. E as nossas impressões digitais estão no carro todo.
Ziggy tinha razão, pensou Alex. Os Garotos de Kirkcaldy e os dois ingleses com quem dividiam a casa de seis cômodos no campus não se davam muito bem. Henry jamais acharia graça se soubesse que Esquisito apanhara o carro na sua ausência. Henry não achava graça em quase nada que os seus companheiros de alojamento achavam. Então Ziggy não contaria nada. Disso ele tinha certeza.
Mas Mondo era bem capaz de contar. Alex esperava que a advertência de Ziggy tivesse conseguido penetrar o bastante no casulo de Mondo para que ele pensasse nas consequências. Dizer aos policiais que Esquisito pegara o carro de alguém sem o seu consentimento não ia livrar a sua cara. Só prejudicaria os quatro. Além do mais, ele próprio havia dirigido o carro, para levar uma garota em casa em Guardbridge. Pelo menos uma vez na vida, pense direito, Mondo.
Agora, se alguém precisava de uma cabeça pensante, Ziggy era a pessoa mais indicada. Por trás da aparente sinceridade, o charme natural e a inteligência perspicaz, havia muito mais do que se podia imaginar. Alex e ele eram amigos havia quase dez anos e ele sentia que ainda havia muito para descobrir. Ziggy era do tipo que o surpreendia com um insight, desconcertava-o com uma pergunta e fazia com que você visse algo por um prisma totalmente novo, porque ele havia torcido o mundo como um Cubo Mágico e o visto de formas diferentes. Alex sabia uma ou duas coisas sobre Ziggy que Mondo e Esquisito ainda não sabiam. E isso porque Ziggy quis que ele soubesse, e porque Ziggy tinha certeza de que os seus segredos estariam sempre bem guardados com Alex.
Imaginou como Ziggy agiria com os seus interrogadores. Na certa estaria relaxado, calmo, à vontade. Se havia alguém capaz de convencer os policiais que o envolvimento deles com o corpo em Hallow Hill era completamente inocente, esse alguém era Ziggy.
O detetive-inspetor Barney Maclennan jogou o seu casaco úmido na primeira cadeira que viu no Departamento de Investigação Criminal. Era mais ou menos do tamanho de uma sala de aula de escola primária, maior do que eles costumavam precisar. St. Andrews não estava no topo da lista de zonas perigosas da polícia de Fife e o nível dos seus funcionários refletia isso. Maclennan era o chefe do DIC, à margem da organização, não por falta de ambição e sim porque era um fiel entusiasta daqueles recrutas, o tipo de policial metódico do qual os veteranos preferiam manter distância. Ele costumava reclamar da falta de algo interessante para mantê-lo ocupado, mas isso não significava que fosse receber de bom grado o assassinato de uma jovem na sua circunscrição.
Eles a identificaram de cara. O pub onde Rosie trabalhava era uma parada ocasional para alguns dos guardas, e o policial Jimmy Lawson, o primeiro a chegar ao local, a reconheceu imediatamente. Como a maioria dos homens presentes na cena do crime, ele parecia estar em estado de choque e nauseado. Maclennan não conseguia lembrar da última vez em que haviam tido um assassinato naquelas bandas que não tivesse sido estritamente doméstico; os policiais não haviam visto o suficiente para deixá-los acostumados à visão com a qual se depararam na colina coberta de neve. Para falar a verdade, ele próprio só havia visto duas vítimas de assassinato, mas nada tão lamentável quanto o corpo maltratado de Rosie Duff.
De acordo com o legista, tudo indicava que ela fora estuprada e esfaqueada no abdômen inferior. Um único e violento golpe, abrindo o seu caminho letal até o intestino. E ela deve ter demorado a morrer. Só de pensar nisso, Maclennan já ficava ansioso para pegar o homem responsável por aquilo tudo e encher de porrada. Nessas horas, a lei parecia mais um obstáculo para se alcançar a justiça do que uma ajuda.
Maclennan suspirou e acendeu um cigarro. Sentado à mesa, anotava o pouco de informação que conseguira levantar até o momento. Rosemary Duff. Dezenove anos. Trabalhava no Pub Lammas. Morava em Strathkinness com os pais e os dois irmãos mais velhos. Os irmãos trabalhavam em uma fábrica de papel em Guardbridge, o pai era zelador no Craigtoun Park. Maclennan não queria estar na pele do detetive Iain Shaw e da policial que fora junto com ele até a cidade para dar a notícia à família. Ele próprio teria que conversar com eles mais tarde, sabia disso. Mas por ora estava mais ocupado tentando dar prosseguimento à investigação. E não se podia dizer que tivessem detetives de sobra com experiência para conduzir uma investigação daquele porte. Se eles pretendiam lutar para não serem deixados de fora pelos peixes grandes do quartel-general, Maclennan tinha de mostrar serviço o quanto antes.
Olhou impaciente para o relógio. Precisava de um outro policial presente antes de começar a interrogar os quatro estudantes que diziam ter encontrado o corpo. Tinha pedido ao detetive Allan Burnside que voltasse para a delegacia o mais rápido possível, mas ainda não havia sinal dele. Maclennan suspirou. Estava cercado de incompetentes.
Deslizou os pés para fora dos sapatos úmidos e virou para poder apoiá-los no aquecedor. Deus, aquela era uma noite e tanto para dar início a uma investigação de homicídio. A neve transformara a cena do crime em um pesadelo, mascarando as provas, tornando tudo cem vezes mais difícil. Quem poderia distinguir os vestígios deixados pelo assassino dos deixados pelas testemunhas? Isso supondo, é claro, que não se tratava da mesma pessoa. Esfregando os olhos para tentar manter-se acordado, Maclennan considerava qual estratégia iria adotar nos interrogatórios.
Tendo em vista o que apurara até ali, tudo indicava que ele devia conversar primeiro com o rapaz que havia encontrado o corpo. Fortão, ombros largos, era difícil conseguir ver o seu rosto direito dentro do enorme capuz do casaco. Maclennan inclinou-se para trás para conferir as suas anotações. Alex Gilbey, sim, era esse mesmo. Mas ele estava com uma intuição esquisita a respeito dele. Não que tivesse se mostrado exatamente evasivo; apenas não havia olhado Maclennan com o tipo de sinceridade piedosa que a maioria dos rapazes na sua situação teria demonstrado. E ele certamente aparentava ser forte o bastante para carregar o corpo sem vida de Rosie até a sossegada colina em Hallow Hill. Talvez a coisa fosse mais complicada do que ele supunha. E não seria a primeira vez que um assassino forjava a descoberta do corpo da vítima para justificar a sua presença no local. Estava decidido a deixar o jovem Sr. Gilbey mofando um pouquinho mais.
O plantonista havia lhe dito que a outra sala de interrogatório estava sendo ocupada pelo estudante de medicina com nome polonês. Ele era o tal que afirmara categoricamente que Rosie ainda estava viva quando eles a encontraram. Alegara ter feito tudo o que podia para mantê-la com vida. Ele parecia estar bastante calmo diante das circunstâncias, mais calmo do que Maclennan teria estado. Pensou que poderia começar com ele. Assim que Burnside desse as caras.
A sala de interrogatório que abrigava Ziggy era o dobro da de Alex. De algum modo, Ziggy parecia confortável lá dentro. Estava largado na cadeira, meio encostado na parede, o olhar fixo no meio da sala. Estava tão exausto que poderia ter caído no sono facilmente, mas, cada vez que fechava os olhos, a imagem do corpo de Rosie voltava bem nítida à sua mente. Nenhum estudo teórico de medicina poderia ter preparado Ziggy para a realidade brutal de um ser humano tão gratuitamente destruído. Ele simplesmente não soubera o bastante para ajudar Rosie quando ela mais precisara, e isso o deixava mortificado. Sabia que devia ter compaixão pela moça assassinada, mas a frustração não deixava espaço para mais nenhum sentimento. Nem mesmo o medo.
Mas Ziggy era esperto o suficiente para saber que deveria ter medo. O sangue de Rosie Duff manchara toda a sua roupa, acumulara-se debaixo das unhas. Talvez até mesmo no cabelo; lembrou-se de ter jogado a franja molhada para trás enquanto tentava desesperadamente descobrir de onde vinha o sangramento. Tudo poderia ser explicado, desde que a polícia acreditasse na sua história. Mas também não tinha nenhum álibi, graças às noções distorcidas de Esquisito do que era diversão. Não poderia deixar que a polícia encontrasse o melhor veículo possível para se dirigir em uma nevasca com as suas impressões digitais por toda parte. Ziggy costumava ser muito cauteloso, mas agora a sua vida poderia ser destruída por causa de uma única palavra descuidada. Era melhor nem pensar nisso.
Sentiu uma espécie de alívio quando a porta abriu e os dois policiais entraram na cela. Ele reconheceu o sujeito que dera a ordem de trazê-los para a delegacia. Despido do gigantesco sobretudo, ele era um fiapo de homem, com o cabelo pardacento um pouco mais comprido do que estava na moda. A barba por fazer indicava que ele fora tirado da cama no meio da noite, embora a camisa branca impecável e o terno elegante dessem a impressão de terem saído direto do cabide da tinturaria. Sentou na cadeira à frente de Ziggy e disse:
- Eu sou o detetive-inspetor Maclennan e este é o detetive de polícia Burnside. Precisamos ter uma conversinha com você sobre o que aconteceu esta noite. - Ele fez um gesto na direção de Burnside. - O meu colega aqui irá fazer algumas anotações e depois vamos preparar um depoimento para você assinar.
Ziggy concordou.
- Tudo bem. Pode perguntar. - Endireitou-se na cadeira. - Seria possível me arrumar uma xícara de chá?
Maclennan virou-se para Burnside e fez um gesto afirmativo. Burnside levantou-se e saiu da sala. Maclennan encostou-se na cadeira e observou a sua testemunha. Curioso como os cortes de cabelo típicos da década de 60 estavam novamente na moda. O rapaz de cabelo escuro sentado à sua frente passaria tranquilamente por um dos integrantes da banda Small Faces, uns dez anos antes. Ele não parecia polonês para Maclennan. Tinha a pele clara e as bochechas avermelhadas típicas de um escocês nascido em Fife, embora os olhos castanhos não fossem muito comuns entre eles. Maçãs do rosto bem largas davam ao seu rosto um ar bem-acabado e exótico. Um pouco parecido com o daquele bailarino russo, Rudolph Nãoseiquê, ou seja lá qual for o seu nome.
Burnside voltou quase imediatamente.
- Já está vindo - avisou ele, sentando-se e pegando a sua caneta.
Maclennan apoiou os antebraços na mesa e entrelaçou os dedos.
- Vamos começar com os dados pessoais.
Avançaram rapidamente pelas preliminares e então o detetive disse:
- Uma verdadeira tragédia. Você deve estar muito abalado.
Ziggy começou a sentir-se preso na terra dos clichês.
- Podes crer.
- Quero que me conte, com as suas próprias palavras, o que aconteceu hoje à noite.
Ziggy limpou a garganta.
- Estávamos voltando para o Fife Park...
Maclennan o interrompeu, levantando a mão aberta no ar.
- Vamos retroceder um pouco mais. Quero a história desde o começo da noite, ok?
Ziggy sentiu um aperto no peito. Tinha a esperança de não ter de mencionar a parada que haviam feito no Lammas no início da noite.
- Ok. Nós quatro moramos no mesmo alojamento no Fife Park, então normalmente jantamos juntos. Hoje era a minha vez de cozinhar. Comemos ovo, batata e feijão e lá pelas nove horas fomos para a cidade. Íamos a uma festa mais tarde e estávamos a fim de tomar umas cervejas antes. - Ele fez uma pausa para se assegurar de que Burnside estava conseguindo anotar tudo.
- Aonde foram beber?
- No Lammas. - As palavras pairaram no ar entre eles.
Maclennan não teve nenhuma reação, embora tivesse sentido o coração acelerar.
- Vocês costumam beber lá?
- Quase sempre. A cerveja é barata e eles não têm nada contra os estudantes, ao contrário de uns outros lugares por aí.
- Então você viu Rosie Duff? A moça assassinada?
Ziggy deu de ombros.
- Não prestei muita atenção nela, não.
- O quê? Uma garota bonita como aquela e você não prestou atenção?
- Não foi ela quem me serviu quando estava na minha vez de buscar as cervejas.
- Mas você já deve ter falado com ela antes, não?
Ziggy respirou fundo.
- Como eu disse, nunca prestei atenção nela. Passar cantadas em garçonetes não é a minha praia.
- Não está à sua altura, não é? - Maclennan disse, carrancudo.
- Não sou nenhum esnobe, inspetor. A minha família mora em uma casa popular. Só não curto essa de ficar bancando o machão pelos bares da vida, ok? Eu a conhecia de vista, sim, mas o meu papo com ela nunca foi além de "Quatro chopes, por favor".
- Algum dos seus amigos estava de olho nela?
- Não que eu tenha notado. - A indiferença de Ziggy ocultava uma súbita cautela com o rumo que o interrogatório estava tomando.
- Bom, então vocês tomaram umas cervejas no Lammas. E aí?
- Como eu disse, fomos para uma festa, na casa de um aluno de Matemática do terceiro ano, chamado Pete, conhecido do Tom Mackie. Ele mora em St. Andrews, em Learmonth Gardens. Não sei o número da casa. Os pais estavam viajando e ele resolveu dar uma festa. Chegamos por volta de meia-noite e já eram quase quatro da manhã quando saímos de lá.
- Vocês ficaram juntos na festa?
Ziggy achou graça.
- O senhor já foi a uma festa dessas, inspetor? Então sabe como a coisa funciona. Você chega com o pessoal, pega uma cerveja e todo mundo some. Então, quando a festa já deu o que tinha que dar, você vê quem ainda está de pé, recolhe todo mundo e vai embora trocando as pernas. O bom pastor, esse sou eu. - Ele deu um sorriso irônico.
- Quer dizer então que vocês quatro chegaram juntos e foram embora juntos, mas você não tem ideia do que os outros fizeram nesse meio-tempo?
- É mais ou menos por aí.
- Você pode garantir que nenhum deles saiu e voltou depois?
Se Maclennan esperava alarmar Ziggy, ficou decepcionado. Ele apenas entortou a cabeça para o lado, pensativo.
- Provavelmente não, acho que não - admitiu ele. - Eu passei a maior parte do tempo na estufa, nos fundos da casa. Eu e uns ingleses. Sinto muito, não me lembro dos nomes. Estávamos conversando sobre música, política, coisas assim. A coisa ficou feia quando começamos a falar sobre a independência da Escócia, como vocês podem imaginar. Circulei algumas vezes, para buscar cerveja, fui até a sala de jantar arrumar alguma coisa para comer, mas não, não estava sendo o guardião dos meus irmãos.
- Vocês costumam voltar sempre juntos? - Maclennan não sabia direito aonde queria chegar com aquilo, mas sentia que aquela era a pergunta certa.
- Depende de alguém conseguir se dar bem.
Ele está definitivamente na defensiva agora, pensou o policial.
- E isso acontece com frequência?
- Às vezes. - Ziggy deu um sorriso um pouco forçado. - Somos rapazes saudáveis, cheios de vigor, sabe?
- E acabam sempre voltando para casa juntinhos? Muito aconchegante.
- Não sei se você sabe, inspetor, mas nem todos os estudantes são obcecados por sexo. Alguns de nós têm consciência do quanto temos sorte de estarmos aqui e não queremos colocar tudo a perder.
- Por isso vocês preferem a companhia uns dos outros? Lá na minha terra, as pessoas iam achar que vocês são bichas.
Ziggy perdeu a compostura por um momento.
- E se fôssemos? Não é contra a lei.
- Depende do que você está fazendo e com quem está fazendo - respondeu Maclennan, desistindo de qualquer pretensão de amabilidade.
- Vem cá, o que isso tudo tem a ver com o fato de termos encontrado o corpo de uma garota? - perguntou Ziggy, inclinando-se para a frente. - O que o senhor está tentando dizer? Que nós somos gays, por isso estupramos e matamos a moça?
- Você é quem está dizendo. Todo mundo sabe que alguns homossexuais odeiam as mulheres.
Ziggy balançou a cabeça, custando a acreditar.
- Todo mundo quem? Os preconceituosos e os ignorantes? Escuta aqui, só porque Alex, Tom e Davey saíram da festa comigo não quer dizer que eles são gays, entendeu? Eles poderiam te dar uma lista com o nome de garotas que provariam como o senhor está enganado.
- E você, Sigmund? Poderia fazer o mesmo?
Ziggy tentou ficar imóvel, desejando que o seu corpo não o traísse. Havia uma diferença enorme, do tamanho da Escócia, entre não ser contra a lei e ser aceito. Havia chegado a um ponto no qual a verdade não seria sua amiga.
- Será que dá para voltar ao que interessa aqui, inspetor? Eu saí da festa por volta das quatro da manhã com os meus três amigos. Descemos a Learmonth Place, viramos à esquerda na Canongate e seguimos pela Trinity Place. Hallow Hill é um atalho para o Fife Park...
- Você viu alguém no caminho até a colina? - interrompeu Maclennan.
- Não. Mas a visibilidade não estava lá essas coisas, por causa da neve. Enfim, estávamos andando pela trilha de pedestres lá embaixo, quando Alex começou a correr colina acima. Sei lá por quê, eu estava na frente e não vi o que deu nele. Quando ele chegou lá em cima, tropeçou e caiu em um buraco. Aí ele começou a gritar para que a gente fosse até lá, que tinha uma moça ensanguentada lá embaixo. - Ziggy fechou os olhos, mas tornou a abri-los imediatamente, assim que a imagem da moça morta surgiu mais uma vez diante dele. - Subimos até lá e vimos Rosie caída na neve. Senti o pulso dela, pra checar os batimentos cardíacos. Estavam muito fracos, mas estavam lá. O sangramento parecia vir do abdômen, um corte bem profundo, me pareceu. Talvez uns oito ou dez centímetros. Pedi pro Alex ir buscar ajuda, para chamar a polícia. Cobrimos a moça com os nossos casacos e eu tentei estancar a hemorragia. Mas já era tarde demais. Os órgãos internos já estavam comprometidos, muita perda de sangue. Ela morreu alguns minutos depois. - Ziggy exalou longamente. - Eu não pude fazer nada.
Até mesmo Maclennan ficou momentaneamente em silêncio com a intensidade das palavras de Ziggy. Ele olhou de soslaio para Burnside, que escrevia freneticamente.
- Por que pediu a Alex Gilbey que fosse buscar ajuda?
- Porque ele estava mais sóbrio do que Tom. E Davey costuma se descontrolar em momentos de crise.
Fazia todo o sentido. Era quase perfeito demais. Maclennan arrastou a cadeira para trás.
- Um dos meus oficiais irá levá-lo para casa, Sr. Malkiewicz. Vamos precisar das roupas que está usando, para a análise forense. E das suas digitais, para fins eliminatórios. E vamos ter de conversar novamente depois.
Havia outras coisas que Maclennan desejava saber sobre Sigmund Malkiewicz. Mas isso podia esperar. A sua sensação de desconforto em relação àqueles quatro rapazes crescia a cada minuto. Precisava começar a pressioná-los. E tinha a impressão de que o tal que se descontrolava em momentos de crise ia ser o primeiro a ceder.
3
A poesia de Baudelaire parecia estar funcionando. Encolhido em posição fetal sobre um colchão tão duro que mal merecia o nome, Mondo recitava As Flores do Mal mentalmente. Os poemas pareciam ironicamente adequados diante dos acontecimentos daquela noite. O fluxo musical do francês o acalmava, dissipando a realidade da morte de Rosie Duff e da cela de polícia para a qual o haviam trazido. Era algo transcendental, que o elevava acima do seu próprio corpo e o conduzia para um lugar onde a sequência serena de sílabas era tudo o que cabia na sua consciência. Ele não queria ter de lidar com morte, culpa, medo ou suspeita.
O seu esconderijo foi pelos ares abruptamente quando a porta da cela se abriu em um solavanco. O policial Jimmy Lawson agigantou-se diante dele.
- De pé, filho. Eles querem falar com você.
Mondo deu um passo hesitante para trás, afastando-se do jovem policial que de salvador se tornara carrasco.
O sorriso de Lawson estava longe de ser confortante.
- Não vá se borrar todo aqui. Vamos lá, coragem. O inspetor Maclennan não gosta que o deixem esperando.
Mondo se levantou lentamente e seguiu Lawson para fora da cela, que dava para um corredor extremamente iluminado. Era tudo claro demais, exposto demais para o seu gosto. Ele realmente não gostava daquele lugar.
Lawson dobrou o corredor e abriu uma porta. Mondo hesitou no umbral. Sentado à mesa estava o homem que já havia visto em Hallow Hill. Ele parecia franzino demais para ser um policial, pensou Mondo.
- Sr. Kerr, certo? - perguntou ele.
Mondo concordou com a cabeça.
- Sim - disse ele. O som da sua própria voz deixou-o surpreso.
- Pode entrar e sentar aí. Eu sou o detetive-inspetor Maclennan, e esse é o detetive Burnside.
Mondo sentou-se diante dos dois homens, olhando fixamente para o tampo da mesa. Burnside executou os procedimentos de praxe com uma educação que surpreendeu Mondo, que estava esperando algo na linha dos seriados de tevê: gritaria e arrogância, policiais bancando os machões.
Quando Maclennan assumiu o interrogatório, um tom de rispidez passou a fazer parte da conversa.
- Então você conhecia Rosie Duff - afirmou ele.
- Conhecia. - Mondo ainda não conseguia levantar os olhos. - Quer dizer, eu sabia que ela era garçonete do Lammas - ele acrescentou, quebrando o silêncio que se instalara entre eles.
- Era uma moça bonita - comentou Maclennan. Mondo não respondeu. - Você deve pelo menos ter reparado isso.
Mondo deu de ombros.
- Nunca parei pra pensar nela.
- Não era o seu tipo?
Mondo levantou a cabeça, os lábios suspensos em um meio sorriso no canto da boca.
- Acho que eu não era o tipo dela. Ela nunca prestou atenção em mim. Estava sempre mais interessada em outros caras. Eu sempre mofava até ser atendido no Lammas.
- Isso deve ter te deixado chateado.
Os olhos de Mondo encheram-se de pânico. Começava a perceber que Maclennan era mais astuto do que ele imaginava que um policial pudesse ser. Ele ia ter que ficar esperto, teria de ser sagaz.
- Pra falar a verdade, não. Quando a gente estava com pressa, eu costumava mandar o Gilly no meu lugar.
- Gilly? Você está falando do Alex Gilbey, certo?
Mondo concordou, abaixando novamente os olhos. Não queria que aquele homem percebesse nenhuma das emoções que se agitavam dentro dele. Morte, culpa, medo, suspeita. Queria desesperadamente ir embora, sair daquela delegacia, se desligar daquele caso. Não queria prejudicar ninguém, mas não aguentava mais aquilo. Sabia que não aguentava mais aquilo e não queria acabar agindo de uma maneira que o fizesse parecer suspeito ou culpado aos olhos dos policiais. Porque não era dele que deveriam estar desconfiando. Nunca passara uma cantada em Rosie Duff, por mais que tivesse tido vontade. Não tinha roubado a Land Rover. Tudo o que fez foi levar uma garota pra casa até Guardbridge. Não tinha encontrado nenhum corpo na neve. Isso era responsabilidade de Alex. Graças aos outros três, estava no meio daquela merda toda. Se para garantir a sua proteção ele tivesse de desviar o olhar dos policiais para outro lugar, bem, Alex jamais ficaria sabendo. E mesmo que soubesse, Mondo tinha certeza de que ele o perdoaria.
- Então ela gostava do Gilly, hein? - Maclennan era implacável.
- Não faço ideia. Pelo que sei, ele era apenas mais um freguês pra ela.
- Mas um freguês que ela notava mais do que a você.
- Sim, mas isso não o torna exatamente especial.
- Você está dizendo que Rosie era chegada a um flerte?
Mondo balançou a cabeça, impaciente consigo mesmo.
- Não. De jeito nenhum. Era o trabalho dela, só isso. Ela atendia no pub, tinha que ser simpática com as pessoas.
- Mas não era simpática com você.
Mondo puxava nervosamente os cachos que caíam em volta das suas orelhas.
- O senhor está distorcendo tudo. Ela não significava nada pra mim, nem eu pra ela. Agora, será que posso ir embora, por favor?
- Ainda não, Sr. Kerr. De quem foi a ideia de voltar por Hallow Hill?
Mondo franziu a testa.
- Não foi ideia de ninguém. Esse é o caminho mais rápido de onde a gente estava até o Fife Park. Sempre voltamos por esse caminho. Não paramos pra pensar sobre isso.
- E alguma vez sentiram-se tentados a subir até o cemitério picto?
Mondo fez que não com a cabeça.
- Sabíamos que ele existia, fomos dar uma olhada na época em que estavam escavando. Assim como a metade da população de St. Andrews. Não quer dizer que somos desequilibrados.
- Eu não disse isso. Mas nunca fizeram uma parada lá, voltando para o alojamento?
- Por que faríamos isso?
Maclennan deu de ombros.
- Sei lá. Brincadeiras bobas de moleques. Talvez vocês tenham assistido Carrie, a Estranha muitas vezes.
Mondo puxou uma mecha do cabelo. Morte, culpa, medo, suspeita.
- Não curto filmes de terror. Olha, inspetor, o senhor está entendendo tudo errado. Somos apenas quatro caras comuns que tiveram o azar de encontrar algo incomum. Nada mais, nada menos. - Abriu os braços em um gesto amplo, torcendo para estar convincente. - Eu sinto muito pelo que aconteceu com a garota, mas não tenho nada a ver com isso.
Maclennan encostou-se na cadeira.
- Isso é o que você diz.
Mondo ficou quieto, apenas soltando o ar em um longo suspiro de frustração.
- E quanto à festa? Conte exatamente o que você fez por lá.
Mondo contorceu-se na cadeira, o seu desejo de ir embora óbvio em cada músculo do seu corpo. Será que a garota ia abrir o bico? Duvidava muito. Ela teve que entrar em casa de fininho, o seu horário de voltar já havia passado há horas. E não era aluna da universidade, não conhecia quase ninguém de lá. Com um pouco de sorte, jamais seria citada, jamais seria interrogada.
- Escuta, qual o seu interesse nisso? Acabamos de encontrar um corpo, sabia?
- Temos que considerar todas as possibilidades.
Mondo deu um sorriso debochado.
- Apenas fazendo o seu trabalho, né? Bem, está perdendo tempo se acha que estamos envolvidos com o que aconteceu com ela.
Maclennan deu de ombros.
- Mesmo assim, gostaria de saber sobre a festa.
Com o estômago revirando, Mondo produziu uma versão editada da festa, torcendo para que colasse.
- Não sei. É difícil lembrar de todos os detalhes. Um pouco depois de termos chegado na festa, comecei a dar em cima de uma garota. O nome dela era Marg. Morava em Elgin. Dançamos um pouco e eu achei que ia rolar, sabe? - Mondo ficou subitamente triste. - Aí o namorado dela apareceu. Ela não tinha falado nada de namorado pra mim. Fiquei um pouco chateado, aí tomei mais umas cervejas e fui lá pra cima. Lá em cima tinha um cômodo bem pequeno, tipo uma despensa, com uma escrivaninha e uma cadeira. Fiquei sentado lá um pouco, meio triste. Não muito, foi só o tempo de beber uma latinha. Aí desci de novo e fiquei de bobeira, perambulando pela casa. Ziggy estava na estufa, fazendo o seu discurso sobre a Declaração de Independência pra uns ingleses, então eu saí fora. Já ouvi isso umas mil vezes. Não notei mais ninguém que valesse a pena. A festa estava meio fraca em termos de mulheres bonitas e as únicas que apareceram por lá já estavam acompanhadas, então fiquei só de bobeira. Pra falar a verdade, eu já estava na pilha de ir embora muito antes de a gente resolver voltar pra casa.
- Mas você não sugeriu isso?
- Não.
- Por que não? Não tem opinião própria?
Mondo lançou um olhar de ódio. Não era a primeira vez que era acusado de seguir os outros, como um carneirinho idiota.
- Claro que tenho. Só estava sem saco, ok?
- Tudo bem - disse Maclennan. - Vamos verificar a sua história. Você pode ir para casa agora. Mas vamos precisar das roupas que você está vestindo. Vou mandar um policial te acompanhar até em casa e recolher as suas roupas. - Quando ele se levantou, as pernas da cadeira arranhando o chão produziram um som estridente que deu nos nervos de Mondo. - Voltaremos a nos encontrar, Sr. Kerr.
A policial Janice Hogg fechou a porta do carro tentando fazer o mínimo de barulho possível. Não era preciso acordar toda a vizinhança, eles ficariam sabendo em breve mesmo. Encolheu-se num susto quando o detetive Iain Shaw bateu a porta do lado do motorista sem pensar duas vezes, lançando um olhar feroz para a parte de trás da sua cabeça calva. Ele tinha apenas vinte e cinco anos e já estava ficando careca, constatou ela com uma pontada de prazer convencido. E ainda se considerava um partidão.
Como se o teor dos pensamentos de Janice tivesse penetrado o seu cérebro, Shaw virou para trás e fez uma cara feia.
- Vamos logo, anda. Vamos nos livrar logo disso.
Janice deu uma olhada no chalé enquanto Shaw abria o portão de madeira e avançou rapidamente pela pequena trilha que os separava da casa. Era típica daquela área; uma construção baixa com duas janelas de mansarda inseridas acima do teto e abaixo do telhado curvo com espigões salientes cobertos de neve. Uma pequena varanda encaixada entre as janelas do primeiro andar, o revestimento pintado com uma cor escura difícil de ser identificada apenas com a luz precária oriunda dos postes de luz. Parecia bem-cuidada, concluiu ela, imaginando qual daqueles quartos havia sido o de Rosie.
Expulsou aquele pensamento da sua mente enquanto se preparava para a penosa tarefa que estava prestes a cumprir. Era mandada para dar as más notícias mais vezes do que merecia. Devia ser porque era mulher. Ficou de prontidão, enquanto Shaw batia na porta com a pesada argola de ferro. A princípio, nenhum sinal de resposta. Então uma luz fraca se acendeu por trás das cortinas na janela à direita do andar de baixo. Eles viram a mão de alguém puxando a cortina para o lado e depois um rosto, iluminado pela metade. Um homem de meia-idade com o cabelo grisalho despenteado olhava para eles, pasmo e boquiaberto.
Shaw apanhou o seu distintivo e mostrou a ele. Aquele gesto era inconfundível. A cortina voltou a se fechar. Alguns segundos depois, a porta da frente se abriu e o homem apareceu, amarrando na cintura a faixa de um grosso robe de lã. A barra da calça do pijama encobria quase totalmente os seus chinelos de xadrez escocês desbotado.
- O que está acontecendo aqui? - perguntou ele, disfarçando mal a sua apreensão por trás da agressividade.
- Sr. Duff? - confirmou Shaw.
- Sim, sou eu. O que vocês estão fazendo na minha porta a esta hora?
- Eu sou o detetive de polícia Shaw e esta é a policial Hogg. Podemos entrar, Sr. Duff? Precisamos conversar com o senhor.
- O que aqueles dois aprontaram? - Ele abriu espaço e fez sinal para que eles entrassem. A porta interna dava para a sala de estar. Um conjunto de três sofás estofados de camurça marrom formava uma espécie de fortaleza para abrigar o maior aparelho de tevê que Janice já tinha visto na vida. - Sentem-se - disse ele.
Quando se encaminhavam para o sofá, Eileen Duff surgiu na soleira da porta, do outro lado da sala.
- O que está acontecendo, Archie? - quis saber ela. O seu rosto estava limpo, sem maquiagem e untado de creme, a cabeça coberta por um lenço bege de chiffon para proteger o cabelo recém-arrumado no salão. O seu quimono acolchoado de náilon estava abotoado errado.
- É a polícia - explicou o marido.
Os olhos dela arregalaram-se de ansiedade.
- O que aconteceu?
- A senhora pode vir sentar-se conosco, Sra. Duff? - perguntou Janice, indo na direção da mulher e dando-lhe o braço. Ela a conduziu até o sofá e fez um gesto para que o marido sentasse ao seu lado.
- É notícia ruim, aposto - sentenciou a mulher, aflita, agarrando o braço do marido. Archie Duff mantinha o seu olhar fixo e impassível na tela desligada da tevê, os lábios contraídos.
- Sinto muito, Sra. Duff. Mas receio que a senhora esteja certa. Temos péssimas notícias para vocês. - Shaw estava parado, sem jeito, a cabeça um pouco baixa e os olhos fixos nos redemoinhos multicoloridos do carpete.
A Sra. Duff deu um empurrão no marido.
- Eu te disse pra não deixar Brian comprar aquela moto! Eu disse!
Shaw lançou um olhar suplicante para Janice. Ela se aproximou do casal e disse gentilmente:
- Não foi o Brian. Foi a Rosie.
A Sra. Duff choramingou.
- Não pode ser - protestou ela.
Janice lutou para continuar.
- Hoje à noite, um pouco mais cedo, o corpo de uma jovem foi encontrado em Hallow Hill.
- Deve ser algum engano - contemporizou Archie Duff, teimoso.
- Infelizmente, não. Alguns dos policiais presentes na cena do crime reconheceram Rosie. Eles a conheciam do Lammas. Sinto muitíssimo em ter de lhes dizer que a filha de vocês está morta.
Janice já havia soltado essa bomba muitas vezes e sabia que das duas uma: ou a pessoa negava o acontecido, como Archie Duff, ou uma dor pungente atingia os familiares como uma poderosa força da natureza. Eileen Duff jogou a cabeça para trás e urrou aos céus a sua dor, as mãos crispadas contorcendo-se no seu colo, o corpo inteiro possuído pela angústia. O marido olhava para ela como se não a reconhecesse, as sobrancelhas cerradas, recusando-se firmemente a aceitar o que estava acontecendo.
Janice ficou parada, deixando a primeira onda quebrar sobre ela, pronta para um eventual resgate. Shaw trocava o peso do corpo de uma perna para a outra, sem saber o que dizer.
De repente, ouviram passos pesados na escada que desembocava no canto da sala. Surgiram pernas cobertas por uma calça de pijama, seguidas por um peito nu e finalmente um rosto de sono, coroado por um topete negro de cabelos despenteados. O rapaz parou a alguns passos do chão e examinou a cena.
- Que diabos está acontecendo aqui? - resmungou ele.
Sem virar a cabeça, Archie disse:
- A sua irmã está morta, Colin.
Colin Duff estava boquiaberto.
- O quê?
Janice acudiu novamente.
- Sinto muito, Colin. Mas o corpo da sua irmã foi encontrado ainda há pouco.
- Onde? O que aconteceu? Como assim, o corpo dela foi encontrado? - À medida que ia atropelando as palavras, as suas pernas iam cedendo e ele desmoronou nos últimos degraus da escada.
- Ela foi encontrada em Hallow Hill. - Janice suspirou fundo. - Achamos que Rosie foi assassinada.
Colin afundou a cabeça entre as mãos.
- Oh, Deus! Deus! - murmurava ele sem parar.
Shaw inclinou-se diante deles.
- Vamos ter de lhe fazer algumas perguntas, Sr. Duff. Será que podemos ir até a cozinha?
O primeiro ataque de desespero de Eileen estava passando. Ela parou de chorar e voltou o seu rosto marcado pelas lágrimas para Archie.
- Espera aí. Eu não sou nenhuma criança que precisa ser preservada da verdade - arquejou ela.
- Vocês têm um conhaque? - perguntou Janice. Archie não teve nenhuma reação. - Ou um uísque?
Colin levantou-se aos tropeções.
- Temos uma garrafa na copa. Eu vou buscar.
Eileen voltou os olhos inchados para Janice.
- O que aconteceu com a minha filhinha?
- Ainda não sabemos direito. Parece que ela foi esfaqueada. Mas vamos ter de esperar o médico-legista examiná-la, até termos certeza.
Enquanto ela falava, Eileen se encolheu, como se ela própria tivesse sido golpeada.
- Quem faria uma coisa dessas com Rosie? Logo ela, que não fazia mal a uma mosca.
- Ainda não sabemos - acudiu Shaw. - Mas vamos encontrá-lo, Sra. Duff. Eu sei que este é o pior momento do mundo para fazer perguntas, mas quanto mais rápido obtivermos as informações necessárias, mais rápido vai ser o nosso progresso.
- Posso vê-la? - perguntou Eileen.
- Vamos providenciar isso mais tarde - disse Janice. Ela agachou-se ao lado de Eileen e colocou a mão no seu braço. - Rosie costumava voltar para casa a que horas?
Colin saiu da cozinha trazendo uma garrafa de uísque e três copos.
- O Lammas só aceita pedidos até as dez e meia. Ela normalmente chegava lá pras onze e quinze. - Ele colocou os copos na mesa de centro e serviu três porções generosas.
- Mas às vezes ela chegava mais tarde? - perguntou Shaw.
Colin entregou os copos de uísque aos pais. Archie bebeu metade, de um gole só. Eileen segurou o copo, mas não o levou aos lábios.
- Chegava, se tivesse uma festa pra ir ou algo assim.
- E ontem à noite?
Colin bebeu mais um pouco.
- Não sei. Mãe, ela disse alguma coisa pra você?
Eileen olhou para ele, confusa e perdida.
- Ela me disse que ia encontrar uns amigos. Não disse quem, e eu não perguntei. Ela tem direito a privacidade. - Havia um tom defensivo na sua voz e Janice deduziu que aquilo deve ter sido um motivo de discórdia, provavelmente com Archie.
- Como ela costumava voltar para casa? - perguntou Janice.
- Se eu ou Brian estivéssemos na cidade, a gente passava no pub e dava uma carona pra ela. Tinha uma outra garçonete que trabalhava no mesmo turno, a Maureen, que às vezes a trazia pra casa. Quando ela não conseguia nenhuma carona, pegava um táxi.
- Cadê Brian? - perguntou Eileen, de repente, querendo reunir os filhos debaixo da sua asa.
Colin deu de ombros.
- Ele ainda não chegou, não. Deve ter ficado lá na cidade.
- Ele tinha que estar aqui. Não quero que ele receba a notícia por estranhos.
- Ele vai voltar pro café da manhã. - Archie respondeu, áspero. - Precisa se arrumar pra ir trabalhar.
- Rosie estava saindo com alguém? Tinha algum namorado? - Shaw estava tão ansioso para ir embora que foi direto ao assunto.
Archie franziu o cenho.
- Pretendentes não faltavam pra Rosie.
- Alguém em particular?
Eileen bebericou o seu uísque.
- Ela estava saindo com alguém ultimamente, mas não queria me contar quem era. Eu perguntei, mas ela disse que me contaria quando fosse a hora.
Colin bufou.
- Algum homem casado, pelo visto.
Archie lançou um olhar de fúria para o filho.
- Mais respeito quando falar da sua irmã, ouviu?
- Ué, então por que ela ia guardar segredo? - O rapaz projetou a mandíbula para a frente, desafiante.
- Vai ver que ela não queria você e o seu irmão se metendo de novo nos assuntos dela - retrucou Archie. Virou-se para Janice. - Uma vez eles deram uma surra num rapaz porque cismaram que ele não estava tratando Rosie direito.
- Quem era o rapaz?
Archie arregalou os olhos, surpreso.
- Isso foi anos atrás. Não tem nada a ver com o que aconteceu agora. O rapaz nem mora mais aqui. Se mudou pra Inglaterra, logo depois.
- Ainda assim, queremos saber quem é - insistiu Shaw.
- John Stobie - Colin respondeu irritado. - O pai dele trabalha como jardineiro no Old Course. Mas como o meu pai disse, ele não ousaria chegar perto de Rosie.
- Não era um homem casado - continuou Eileen. - Eu perguntei a ela. Ela disse que jamais traria um problema desses pra dentro de casa.
Colin balançou a cabeça e olhou para o outro lado, girando o copo de uísque na mão.
- Não vi Rosie com ninguém ultimamente. Mas ela tinha lá os seus segredos.
- Vamos precisar dar uma olhada no quarto dela - disse Shaw. - Mas não agora, mais tarde. Então, se vocês puderem evitar mexer em qualquer coisa lá, eu agradeço. - Ele limpou a garganta. - Se vocês quiserem, a policial Hogg pode ficar aqui com vocês.
Archie fez que não com a cabeça.
- Vamos ficar bem.
- É possível que apareçam alguns repórteres por aqui. Seria mais fácil se um policial estivesse aqui para ajudá-los.
- Meu pai já disse. Vamos ficar melhor sozinhos - respondeu Colin.
- Quando vou poder ver a Rosie? - quis saber Eileen.
- Vamos mandar um carro buscar a senhora mais tarde. Vou providenciar para alguém ligar para cá e combinar um horário com vocês. E se vocês se lembrarem de qualquer coisa que Rosie tenha dito sobre onde poderia estar hoje à noite ou sobre alguém com quem estivesse saindo, por favor entrem em contato. Seria útil se vocês pudessem fazer uma lista com os nomes dos amigos dela. Especialmente alguém que possa saber onde ela estava ontem e com quem. É possível? - Shaw ficou mais gentil quando percebeu que estava prestes a dar no pé dali.
Archie concordou e levantou-se do sofá.
- Mais tarde. Vamos fazer isso depois.
Janice levantou-se, os joelhos reclamando por ela ter ficado muito tempo naquela posição desconfortável.
- Podem ficar à vontade, sabemos o caminho.
Ela seguiu Shaw até a porta. A tristeza naquela casa parecia uma substância tangível, tomando conta do ar e dificultando a respiração. Era sempre a mesma coisa. A melancolia parecia aumentar num crescendo nas primeiras horas após a notícia.
Mas aquilo ia mudar. Em breve, viria a raiva.
4
Esquisito olhava fixamente para Maclennan, os braços magérrimos cruzados sobre o peito franzino.
- Preciso de um cigarro - disse ele. O ácido que havia tomado mais cedo já perdera o efeito, deixando-o irrequieto e rebelde. Não queria estar ali e estava determinado a cair fora o mais rápido possível. O que não queria dizer que estava disposto a cooperar.
Maclennan balançou a cabeça.
- Sinto muito, filho. Não permitimos cigarro aqui.
Esquisito virou a cabeça e olhou para a porta.
- Você sabe que não pode torturar ninguém, né?
Maclennan se recusava a morder a isca.
- Precisamos fazer umas perguntas sobre o que aconteceu hoje à noite.
- Sem um advogado, sem chance. - Esquisito sorriu para si mesmo.
- Por que precisa de um advogado, se não tem nada a esconder?
- Porque você é o Todo-Poderoso. E está com uma garota assassinada nas costas, precisando arrumar alguém pra pôr a culpa. E eu não vou assinar nenhuma confissão falsa, não importa o quanto você me deixe mofando aqui dentro.
Maclennan suspirou. Era deprimente constatar que os métodos duvidosos de uma meia dúzia de policiais davam munição para espertinhos como aquele atacarem todo o resto. Apostava uma semana do seu salário como aquele adolescente hipócrita tinha um pôster de Che Guevara na parede do quarto. E que achava que era o primeiro na fila para herói da classe operária. O que não queria dizer que não podia ter assassinado Rosie Duff.
- Você tem uma ideia muito estranha dos métodos policiais.
- Diga isso aos seis de Birmingham e aos quatro de Guildford[3] - rebateu Esquisito, como se aquilo fosse um trunfo.
- Se você não quer terminar como eles, filho, sugiro que comece a colaborar. Podemos fazer isso dentro dos conformes: eu faço algumas perguntas e você responde ou eu posso te deixar trancado aqui por algumas horas até conseguirmos achar um advogado que esteja assim tão desesperado para trabalhar.
- Você está me negando o direito de representação legal? - Havia um tom de imponência na voz de Esquisito que teria deixado os seus amigos desesperados se pudessem ouvi-lo.
Mas Maclennan sabia que estava mais do que à altura de um estudantezinho convencido.
- Faça como quiser. - Ele se afastou da mesa.
- Vou fazer mesmo - disse Esquisito, teimoso. - Não tenho nada para falar com você sem um advogado presente. - Maclennan caminhou até a porta, com Burnside logo atrás. - Então trate de me arrumar um, ok?
A porta já estava aberta. Maclennan olhou para trás.
- Não tenho nada a ver com isso, filho. Você quer um advogado, você dá o telefonema.
Esquisito parou para pensar. Não conhecia nenhum advogado. Diabos, não tinha nem dinheiro para pagar um advogado, mesmo que conhecesse algum. Podia imaginar o que o seu pai diria se ele ligasse para casa e pedisse ajuda. Esse não era um pensamento particularmente agradável. Além do mais, teria de contar a história toda para o advogado, e qualquer advogado pago pelo seu pai seria obrigado a lhe dar um relatório completo. Existiam coisas, pensou ele, bem piores do que ser preso por ter roubado uma Land Rover.
- Pois bem - disse ele de má vontade. - Você faz aí as suas perguntas. Se elas forem tão inocentes quanto você pensa que são, eu respondo. Mas, se eu achar que você está tentando me incriminar, não abro mais a boca.
Maclennan fechou a porta e sentou-se novamente. Manteve o olhar fixo em Esquisito, observando com calma os seus olhos inteligentes, o nariz adunco e os lábios incongruentemente carnudos. Não achava que Rosie Duff pudesse ter visto aquele rapaz como um partido desejável. Provavelmente teria rido na cara dele, caso tivesse recebido uma cantada. Uma reação como essa poderia ter provocado um ressentimento crescente. Que pode ter resultado em assassinato.
- Você conhecia Rosie Duff bem? - perguntou ele.
- Não a ponto de saber o seu sobrenome.
- Alguma vez a convidou para sair?
Esquisito assumiu uma expressão de deboche.
- Você só pode estar curtindo com a minha cara. Sou um pouquinho mais ambicioso do que isso. Garotas provincianas, com sonhos pequenos; não é a minha praia.
- E os seus amigos?
- Acho que não. Estamos aqui exatamente porque queremos mais do que isso.
Maclennan levantou as sobrancelhas.
- Como é que é? Vieram lá de Kirkcaldy até St. Andrews para ampliar os seus horizontes? Uau, o mundo não sabe o que está perdendo. Escuta aqui, rapaz, Rosie Duff foi assassinada. Sejam lá quais tenham sido os sonhos dela, eles morreram também. Então, pense duas vezes antes de depreciá-la.
Esquisito sustentou o olhar de Maclennan.
- Eu só estou tentando explicar que as nossas vidas não tinham nada a ver com a dela. Se não tivéssemos dado de cara com o corpo, você sequer saberia da nossa existência nessa investigação. E francamente, se nós somos o melhor que vocês podem arrumar em termos de suspeitos, não merecem ser chamados de detetives.
A tensão entre eles produzia eletricidade. Normalmente, Maclennan gostava quando o clima ficava pesado. Era um método eficaz para manipular as pessoas e fazer com que elas falassem mais do que pretendiam. E a sua intuição lhe dizia que aquele rapaz estava escondendo alguma coisa por trás daquela aparente arrogância. Podia não ser nada importante, mas podia ser algo fundamental. Mesmo que o máximo que aquela pressão lhe rendesse fosse uma bela dor de cabeça, Maclennan não conseguia resistir. Por menor que fosse a probabilidade.
- Conte-me sobre a festa - pediu ele.
Esquisito revirou os olhos.
- Tá legal, você não deve ser convidado pra muitas festas mesmo. A coisa funciona assim. Homens e mulheres se reúnem em uma casa ou um apartamento, bebem, dançam. Às vezes rolam uns amassos, às vezes até mesmo sexo. E depois, as pessoas voltam pra casa. Foi assim esta noite.
- E às vezes, se drogam - completou Maclennan docilmente, recusando-se a deixar que o sarcasmo do rapaz o tirasse do sério.
- Não quando você está presente, aposto - respondeu Esquisito, com um sorriso debochado.
- Você se drogou hoje à noite?
- Viu? Lá vem você, tentando me incriminar.
- Com quem você estava?
Esquisito parou para pensar.
- Sabe que nem me lembro direito? Cheguei com os caras, fui embora com eles. No meio-tempo, não me lembro de nada, não. Mas se você está insinuando que eu dei uma escapada para cometer assassinato, está muito enganado. Me pergunte onde eu estava e eu posso te responder na boa. Eu estava na sala de estar durante toda a noite, tirando a hora que eu subi para dar uma mijada.
- E o resto dos seus amigos? Onde estavam eles?
- Não faço a menor ideia. Não sou o guardião dos meus irmãos.
Maclennan reconheceu imediatamente o eco das palavras de Sigmund Malkiewicz.
- Mas vocês costumam cuidar uns dos outros, não?
- Sem chances de você saber que é isso que os amigos fazem, né? - zombou ele.
- Então quer dizer que vocês seriam capazes de mentir, um pelo outro?
- Ah, a pergunta capciosa. "Quando foi que você parou de bater na sua mulher?" Não temos o que mentir no que diz respeito a Rosie Duff. Porque não fizemos nada que precise ser acobertado. - Esquisito esfregou as têmporas. Precisava desesperadamente da sua cama, estava impaciente até os ossos. - Tivemos azar, nada mais.
- Conte-me como foi que aconteceu.
- Alex e eu estávamos de sacanagem, um empurrando o outro na neve. Ele meio que se desequilibrou e foi catando cavaco até a colina. Acho que a neve estava deixando ele meio eufórico, sei lá. Aí ele tropeçou e caiu, e quando eu vi, ele já estava gritando, pedindo pra gente correr até lá. - Por um momento, a arrogância de Esquisito desapareceu e ele pareceu mais jovem. - E aí a gente encontrou a garota. Ziggy tentou... mas não tinha nada que ele pudesse fazer para salvá-la. - Esquisito esfregou uma mancha em uma das pernas da sua calça. - Posso ir embora agora?
- Vocês não viram ninguém lá em cima? Ou no caminho?
Esquisito balançou a cabeça em sinal negativo.
- Não. Jack, o Estripador deve ter feito um caminho alternativo. - Estava novamente na defensiva e Maclennan sabia que continuar tentando arrancar informação dele seria uma tarefa inglória. Mas teria outra oportunidade para isso. E deveria haver uma maneira de driblar as defesas de Tom Mackie. Ele tinha apenas de descobrir qual era.
Janice Hogg tentava alcançar Iain Shaw pelo estacionamento. Estiveram mais ou menos calados no percurso de volta à delegacia, cada um associando o encontro com os Duffs com as suas próprias vidas, em níveis variáveis de alívio. Quando Shaw empurrou a porta que abrigava o ambiente aquecido da delegacia, Janice já estava logo atrás dele.
- Fico me perguntando por que será que ela não contou para a mãe com quem estava saindo - disse ela.
Shaw deu de ombros.
- Talvez o irmão esteja certo. Vai ver era um homem casado.
- Mas e se ela estivesse falando a verdade? E se ele não fosse casado? Que tipo de homem faria com que ela preferisse manter segredo sobre a sua identidade?
- A mulher aqui é você, Janice. O que você acha? - Shaw se dirigiu até a minúscula sala onde o policial encarregado de fornecer e manter atualizadas as informações secretas guardava os seus arquivos. A sala ficava vazia durante a noite, mas os gabinetes com as fichas de arquivo organizadas em ordem alfabética ficavam destrancados e disponíveis para consulta.
- Bem, se os irmãos tinham um histórico de espantar homens que consideravam inadequados, acho que tenho que descobrir que tipo de homem Colin e Brian considerariam inadequado - refletiu ela.
- E que tipo seria esse? - perguntou Shaw, abrindo a gaveta com a letra "D". Os seus dedos, surpreendentemente longos e finos, começaram a correr pelos arquivos.
- Pensando alto, eu diria que, a julgar pela família, com aquele senso de respeitabilidade típico de Fife, toda certinha... Acho que alguém que eles considerassem ou acima ou abaixo dela.
Shaw virou-se para ela.
- Nossa, você realmente conseguiu fazer uma bela triagem.
- Eu falei que estava pensando alto - resmungou ela. - Se fosse um pé-rapado qualquer, ela provavelmente acharia que ele seria capaz de se defender dos seus irmãos. Mas se fosse alguém um pouquinho mais rebuscado...
- Rebuscado? Mas que palavra mais sofisticada para uma policial, Janice.
- Usar um uniforme não me impede de ter um cérebro, detetive Shaw. E não se esqueça que até bem pouco tempo atrás o senhor também estava usando um.
- Tá bem, tá bem. Vamos voltar ao rebuscado. Como assim, tipo um estudante? - perguntou Shaw.
- Exatamente.
- Tipo os que encontraram o corpo? - Ele virou-se novamente para o arquivo.
- Eu não descartaria essa possibilidade - Janice encostou-se no alizar da porta. - Ela com certeza pôde conhecer vários estudantes no seu trabalho.
- Aqui está - anunciou Shaw, tirando algumas fichas da gaveta. - Sabia que Colin Duff não me era estranho. - Ele leu a primeira ficha e depois passou para Janice. Estava anotado, em uma caligrafia bonita: Colin James Duff. Data de nascimento: 05/03/55. Último endereço conhecido: Caberfeidh Cottage, Strathkinness. Trabalha na fábrica de papel em Guardbridge, como motorista de empilhadeira. 09/74 Bebedeira e má conduta, multado 25 libras. 05/76 Perturbação da paz, detido. 06/78 Velocidade, multado 37 libras. Companheiros conhecidos: Brian Stuart Duff, irmão. Donald Angus Thomson. Janice virou a ficha. No verso, escrito com a mesma caligrafia, só que a lápis para poder ser apagado se fosse preciso, ela pôde ler: Duff gosta de criar caso quando bebe. É bom de briga e tem um talento para se safar. Um pouco metido a valentão. Não é desonesto, só meio rebelde.
- Não é o tipo de sujeito que você quer que se misture com o seu namorado acadêmico sensível - comentou Janice enquanto pegava a segunda ficha de arquivo das mãos de Shaw. Brian Stuart Duff. Data de nascimento: 27/05/57. Último endereço conhecido: Caberfeidh Cottage, Strathkinness. Trabalha na fábrica de papel em Guardbridge como encarregado do armazém. 06/75 Agressão, multado 50 libras. 05/76 Agressão, três meses de detenção, cumpriu em Perth. 03/78 Perturbação da paz, detido. Companheiros conhecidos: Colin James Duff, irmão. Donald Angus Thomson. Ela virou a ficha e leu no verso: O Duff caçula é um vândalo que pensa que é valentão. A sua ficha seria bem mais longa se o irmão mais velho não tivesse o hábito de levá-lo embora antes da coisa ficar preta. Ele começou cedo - John Stobie e as suas costelas e braço quebrado em 1975, possivelmente de sua autoria. Stobie se recusou a prestar depoimento, disse que sofreu um acidente de bicicleta. Há suspeitas de que Duff também esteve envolvido no arrombamento não solucionado de uma loja de bebidas em West Port 08/78. Um dia vai acabar indo em cana por um bom tempo. Janice apreciava as observações pessoais que o encarregado local de manter as fichas acrescentava às informações oficiais. Quando se estava indo prender alguém, era sempre de grande valia saber de antemão se a coisa terminaria mal. E, ao que parecia, os irmãos Duff poderiam fazer com que as coisas terminassem mal. Uma pena, pensou ela. Colin Duff era bem bonitinho.
- O que você acha? - perguntou Shaw, pegando Janice de surpresa duplamente, por causa do seu pensamento sobre Colin e porque não estava acostumada a um membro do DIC imaginando que ela fosse capaz de raciocínio em conjunto.
- Acho que Rosie estava guardando segredo sobre o seu namorado porque sabia que o relacionamento ia provocar a ira dos irmãos. Eles me pareceram uma família unida. Vai ver ela estava protegendo ambos, a família e o namorado.
Shaw franziu a testa.
- Como assim?
- Ela não queria que eles arrumassem mais problemas. Com a ficha de Brian, especialmente, mais uma agressão séria e eles iam acabar na cadeia por um bom tempo. Então, ela preferiu ficar calada. - Janice guardou as fichas de volta no arquivo.
- Bom trabalho. Escuta, eu vou lá na sala do DIC escrever o relatório. Você vai até o necrotério ver se consegue agendar a visita da família. Essa história de só marcar para amanhã vai deixá-los meio chateados, mas é bom dar uma satisfação desde agora.
Janice fez uma cara desanimada.
- Por que será que eu sempre fico com as melhores tarefas?
Shaw levantou as sobrancelhas.
- Quer que eu responda?
Janice não disse mais nada. Deixou Shaw e foi para o vestiário feminino, bocejando. Tinham uma chaleira lá dentro, mas os homens não sabiam. O seu corpo pedia uma boa dose de cafeína, e se ela tinha de ir ao necrotério, merecia aquele regalo. Afinal de contas, Rosie Duff não ia a lugar algum.
Alex já estava no quinto cigarro, se perguntando se o maço ia durar mesmo, quando a porta da sala de interrogatório onde ele estava finalmente se abriu. Ele reconheceu o detetive de rosto delgado que havia visto em Hallow Hill. O homem parecia bem mais disposto do que Alex se sentia. O que não era de admirar, uma vez que a hora do café da manhã já havia passado para a maioria das pessoas. E ele duvidava muito que o inspetor estivesse sofrendo com aquela dorzinha chata causada pela ressaca, que atacava o seu cérebro. Deu a volta e sentou-se diante de Alex, nunca desviando o seu olhar. Alex fez um esforço para encará-lo de volta, determinado a não deixar que o cansaço fizesse com que ele parecesse evasivo.
- Eu sou o detetive-inspetor Maclennan - disse ele, com a voz entrecortada e enérgica.
Alex não sabia ao certo qual era a etiqueta adequada para a situação.
- Eu sou Alex Gilbey - tentou ele.
- Eu sei disso, meu filho. E também sei que você gostava de Rosie Duff.
Alex sentiu o calor queimando as suas bochechas.
- Isso não é crime - respondeu. De nada adiantaria negar o que Maclennan parecia saber com tanta certeza. Especulou qual dos seus amigos teria traído o seu interesse pela garçonete morta. Mondo, tinha quase certeza. Sob pressão, ele entregaria a própria avó, e depois tentaria se convencer de que aquele havia sido o melhor destino para a velha.
- Não, não é. Mas o que aconteceu com ela essa noite foi o pior de todos os crimes. E o meu trabalho é descobrir quem foi o responsável. Até agora, a única pessoa ligada à moça assassinada e à descoberta do corpo é você, Sr. Gilbey. Ora, você na certa é um rapaz inteligente. Então não preciso explicar isso para você, não é?
Alex bateu o cigarro nervosamente, embora não houvesse nenhuma cinza para ser descartada.
- Coincidências acontecem.
- Com muito menos frequência do que você pode imaginar.
- Bem, essa foi uma delas. - O olhar fixo de Maclennan dava a sensação de que havia insetos se movendo por dentro da pele de Alex. - Eu só tive um baita azar, encontrando Rosie daquele jeito.
- É o que você diz. Mas se eu tivesse abandonado Rosie à morte em uma colina incrivelmente gelada, estivesse preocupado se havia ficado algum vestígio de sangue em mim e fosse um rapaz inteligente, eu ia armar a coisa de modo que eu fosse a primeira pessoa a encontrar o corpo. Assim, eu teria a desculpa perfeita para estar coberto com o sangue dela. - Maclennan fez um gesto na direção da camisa de Alex, manchada de sangue coagulado.
- Tenho certeza de que o senhor agiria assim. Mas eu, não. Eu não saí da festa em momento algum. - Alex estava começando a ficar realmente com medo. Ele já estava esperando alguns momentos desagradáveis durante a conversa com a polícia, mas não havia imaginado que Maclennan ia pegar tão pesado, logo de início. Um suor frio e úmido começou a cobrir as suas palmas e ele precisou conter o impulso de secá-las no jeans.
- Você pode fornecer testemunhas que confirmem isso?
Alex cerrou os olhos, tentando silenciar a algazarra dentro da sua cabeça para poder recordar seus passos durante a festa.
- Logo que chegamos, eu fiquei conversando com uma garota da minha sala por um tempo. Penny Jamieson é o nome dela. Ela saiu para dançar e eu fiquei fazendo hora na sala de jantar, beliscando aqui e ali. Várias pessoas entraram e saíram, não prestei muita atenção. Eu estava meio bêbado e mais tarde fui até o jardim lá nos fundos para vomitar.
- Sozinho? - Maclennan inclinou-se levemente para a frente.
Alex teve um súbito flash de memória que trouxe consigo uma pontada de alívio.
- Sim. Mas vocês provavelmente vão conseguir identificar o canteiro de rosas perto de onde eu vomitei.
- Você pode ter vomitado a qualquer hora - salientou Maclennan. - Se tivesse acabado de estuprar e esfaquear uma garota e a tivesse abandonado para morrer, por exemplo. Isso poderia ter deixado você enjoado.
O momento de esperança de Alex foi por água abaixo.
- Pode até ser, mas não foi o que aconteceu - respondeu ele, em um tom desafiador. - Se eu estava coberto de sangue, você não acha que alguém teria percebido isso na festa? Eu me senti melhor depois de ter colocado tudo pra fora. Entrei novamente e resolvi dançar um pouco, na sala de estar. Várias pessoas devem ter me visto nessa hora.
- E nós fazemos questão de conversar com cada uma delas. Queremos uma lista com o nome de todo mundo que estava nessa festa. Vamos ter de conversar com o anfitrião. Com todos que conseguirmos localizar. E se Rosie Duff apareceu por lá, mesmo que só por um segundo, nós dois vamos ter uma conversinha bem menos amigável, Sr. Gilbey.
Alex sentiu o seu rosto o trair novamente e desviou o olhar depressa. Não tão depressa quanto gostaria. Maclennan aproveitou a brecha.
- Ela estava lá?
Alex negou com a cabeça.
- Eu não a vi mais, depois do Lammas. - Ele podia ver alguma coisa começando a fazer sentido por trás do olhar fixo de Maclennan.
- Mas você a convidou para a festa? - As mãos do detetive agarraram a quina da mesa e ele se inclinou para a frente, tão próximo que Alex pôde sentir o cheiro do seu xampu.
Alex fez que sim, estava agoniado demais para negar.
- Eu dei o endereço. Quando estávamos no pub. Mas ela não apareceu na festa, não. Nem eu esperava que ela fosse aparecer. - A voz de Alex rompera em um soluço. O seu frágil controle começou a desaparecer, à medida que lembrava de Rosie atrás do balcão, animada, provocante, afetuosa. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, encarando o detetive.
- Isso deixou você com raiva? O fato de ela não ter aparecido?
Alex sacudiu a cabeça.
- Não. Não cheguei a acreditar que ela fosse. Olha, eu não queria que ela estivesse morta. Nem queria ter encontrado o corpo. Mas o senhor tem que acreditar em mim. Eu não tive nada a ver com isso.
- Isso é o que você diz, filho. O que você diz. - Maclennan não moveu um músculo e continuou cara a cara com o rapaz. Todos os seus instintos lhe diziam que havia algo espreitando por trás da superfície naqueles interrogatórios. E, de uma maneira ou de outra, ele acabaria descobrindo o que era.
5
A policial Janice Hogg deu uma espiada no seu relógio, enquanto se dirigia até o balcão principal. Mais uma hora e ela estaria de folga, pelo menos na teoria. Com uma investigação de homicídio a pleno vapor, provavelmente ela teria de fazer hora extra, especialmente porque não havia muitas policiais femininas em St. Andrews. Estava passando pela porta da recepção justo na hora em que a porta da rua se abriu, num solavanco tão violento que chegou a quicar na parede.
A potência por trás da porta era um jovem com os ombros quase tão largos quanto o alizar. O seu cabelo negro e ondulado estava coberto de neve e o seu rosto encharcado - de lágrimas, de suor ou de flocos de neve derretidos. Ele avançou em direção ao balcão, rosnando de raiva. O policial em serviço recuou, assustado, quase caindo do banco.
- Onde estão os desgraçados? - rosnou ele.
Para fazer justiça ao policial, vale dizer que ele conseguiu desencavar algum sang froid dos recantos mais profundos do seu treinamento.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou ele, desviando-se dos punhos que se chocavam contra a superfície do balcão. Janice não avançara e não fora sequer notada. Se a coisa degringolasse, como parecia que ia acontecer, ela poderia se valer do elemento surpresa.
- Eu quero saber onde estão os filhos da puta que mataram a minha irmã! - gritou ele.
Logo vi, pensou Janice. As notícias haviam chegado até Brian Duff.
- Eu não sei do que o senhor está falando - respondeu o policial, gentil.
- A minha irmã, Rosie! Ela foi assassinada! E vocês estão com eles aqui. Os desgraçados que mataram ela! - Parecia que Duff ia escalar o balcão no seu desejo desesperado de vingança.
- Eu acho que o senhor recebeu a informação errada.
- Não vem com essa, seu babaca! - gritou Duff. - A minha irmã está morta e alguém vai ter que pagar!
Janice julgou aquele o momento certo para entrar em ação.
- Sr. Duff? - perguntou ela calmamente, aproximando-se dele.
Ele rodopiou e encarou Janice fixamente com os olhos arregalados, a saliva espumando nos cantos da boca.
- Cadê eles? - rosnou ele.
- Sinto muito pelo que aconteceu com a sua irmã. Mas ninguém foi preso em relação ao crime. Ainda estamos nos estágios iniciais da nossa investigação, interrogando as testemunhas. Não suspeitos, testemunhas. - Ela pousou a mão com cuidado no braço dele. - Você deveria estar em casa. A sua mãe está precisando dos filhos.
Brian sacudiu o braço, desvencilhando-se da mão de Janice.
- Me disseram que vocês prenderam eles. Os desgraçados que fizeram isso.
- Disseram errado. Estamos todos ansiosos para encontrar quem cometeu esse crime terrível e às vezes isso faz com que as pessoas tirem conclusões precipitadas. Pode acreditar em mim, Sr. Duff. Se tivéssemos um suspeito preso, eu diria a você. - Janice manteve os olhos fixos nos de Duff, torcendo para que a sua abordagem calma e direta funcionasse. Do contrário, ele poderia partir a sua mandíbula com um único soco. - Quando prendermos alguém, a sua família será a primeira a saber. Eu prometo isso a você.
Brian parecia estar atordoado e com raiva. Então, de repente, os seus olhos encheram-se de lágrimas e ele desmoronou em uma das cadeiras da recepção. Envolveu a cabeça com os braços e sacudiu-se em um violento ataque de choro. Janice trocou um olhar impotente com o policial que estava atrás do balcão. Ele simulou um gesto de aplicação de algemas, mas ela descartou a hipótese balançando a cabeça e sentou-se ao lado de Brian.
Aos poucos, ele se recompôs. Deixou que as mãos caíssem como pedras no colo e voltou o rosto crispado de lágrimas para Janice.
- Mas vocês vão encontrar ele, não vão? O desgraçado que fez isso?
- Vamos fazer de tudo, Sr. Duff. Agora, posso levar você para casa? A sua mãe estava preocupada com você hoje cedo. Ela precisa ter certeza de que você e o seu irmão estão bem. - Ela levantou-se e olhou para ele, na expectativa.
Por ora, a ira de Brian havia se dissipado. Ele se levantou docilmente e concordou.
- Tá bem.
Janice virou-se para o policial de plantão e avisou:
- Diga ao detetive Shaw que eu fui levar o Sr. Duff em casa. Quando voltar, faço o que deveria estar fazendo agora. - Ninguém ia reclamar por ela ter tomado a iniciativa uma vez na vida. Qualquer coisa que pudessem apurar sobre Rosie Duff e sua família era de grande valia e aquele era o momento perfeito, pois Brian não estava na defensiva. - Ela era um amor de menina, a Rosie - disse ela, puxando conversa enquanto conduzia Brian para fora da entrada principal, até o estacionamento.
- Você a conhecia?
- Eu bebo no Lammas às vezes. - Era uma pequena mentira, oportuna diante das circunstâncias. Janice considerava o Lammas tão atraente quanto um prato de mingau frio. Com gosto de queimado, ainda por cima.
- Não dá pra acreditar - disse Brian. - Esse é o tipo de coisa que a gente vê na tevê. Não o tipo de coisa que acontece com a gente.
- Como foi que você ficou sabendo? - Janice estava genuinamente curiosa. As notícias costumavam viajar na velocidade do som em uma cidade pequena como St. Andrews, mas não no meio da noite.
- Por um camarada meu, ontem à noite. A namorada dele trabalha no turno da manhã em um pé-sujo na South Street. Ela ficou sabendo quando chegou no serviço, às seis da manhã, e correu pro telefone. Porra - explodiu ele -, primeiro eu achei que fosse alguma piada de mau gosto. Você também pensaria, é ou não é?
Janice abriu o carro, pensando, Não, para falar a verdade os meus amigos não iam brincar com uma coisa dessas. Ela disse:
- A gente não quer pensar, nem por um segundo, que aquilo é verdade.
- Exatamente! - concordou Brian, sentando-se ao lado dela no carona. - Quem faria uma coisa dessas com a Rosie? Ela era uma boa pessoa, sabe? Uma garota certinha. Não era uma vagabunda.
- Você e o seu irmão ficavam de olho nela. Você chegou a ver alguém rondando a sua irmã, alguém com quem você não fosse muito com a cara? - Janice deu partida no motor, sentindo um calafrio quando uma rajada de vento gelado entrou no carro. A manhã estava de lascar.
- Sempre tinha uns vagabundos cercando a minha irmã. Mas todo mundo sabia que iam ter que se ver comigo e com Colin se mexessem com ela. Então, ficavam pianinho. Sempre ficamos de olho nela. - De repente ele acertou um soco na palma da mão. - É por isso que eu fico me perguntando: onde é que a gente estava ontem, quando ela realmente precisou da gente?
- Você não pode se culpar, Brian. - Janice manobrou a viatura para fora do estacionamento e deslizou sobre a superfície lisa e coberta de neve prensada da estrada principal. As luzes de Natal pareciam pálidas contra o painel cinza-amarelado do céu; o glamouroso laser fornecido pelo departamento de física da universidade não passava de um rabisco mortiço e despercebido contra as nuvens baixas.
- Eu não me culpo. Eu culpo o canalha que fez isso. Só queria ter estado lá para impedir que acontecesse. É foda, agora é tarde demais, é sempre tarde demais - ele resmungou baixinho.
- Então você não sabe com quem ela pode ter se encontrado?
- Ela mentiu para mim. Disse que ia para uma festa com a Dorothy, que trabalha com ela. Mas a Dorothy apareceu na festa onde eu estava. Ela disse que a Rosie tinha saído pra encontrar um cara. Eu ia dar a maior bronca nela quando ela voltasse. Pô, uma coisa é deixar meu pai e minha mãe de fora. Mas eu e Colin, a gente sempre estava do lado dela. - Ele esfregou os olhos com as costas da mão. - Não dá pra suportar isso. A última coisa que ela me disse foi uma mentira.
- Quando foi que vocês se viram pela última vez? - Janice fez uma curva súbita em West Port e avançou pela estrada para Strathkinness.
- Ontem, depois que eu saí do trabalho. Encontrei com ela no centro, fomos comprar um presente de Natal pra mamãe. Nós três fizemos uma vaquinha pra comprar um secador de cabelo novo pra ela. Aí a gente foi na drogaria para comprar um sabonete bacana pra ela. Fui andando com a Rosie até o Lammas e aí ela disse que ia sair com a Dorothy. - Ele balançou a cabeça. - Ela mentiu. E agora, está morta.
- Talvez ela não tenha mentido, Brian. Vai ver que ela até estava planejando ir pra essa tal festa, mas apareceu algum outro programa mais tarde. - Isso devia ser tão verdadeiro quanto a história que Rosie havia contado, mas Janice sabia por experiência própria que as pessoas que acabam de perder alguém se agarram a qualquer coisa que mantenha intacta a imagem do falecido.
Brian não foi exceção. A esperança acendeu o seu rosto.
- Sabe que deve ter sido isso mesmo? Porque Rosie não era mentirosa.
- Mas tinha lá os seus segredos, não é? Como toda moça.
Ele fechou a cara.
- Segredo é confusão. Ela devia saber disso. - Alguma coisa lhe ocorreu e subitamente Brian retesou o corpo no banco. - Você sabe se ela foi...? Se se aproveitaram dela?
Nada que Janice pudesse dizer o confortaria. Para que a confiança que ela aparentemente estabelecera com Brian pudesse sobreviver, ela não podia se arriscar e deixar que ele pensasse que ela também estava mentindo para ele.
- Só vamos saber com certeza depois da autópsia, mas parece que sim.
Brian esmagou o punho no painel do carro.
- Filho da puta! - grunhiu ele. À medida que o carro subia em ziguezague a colina em direção a Strathkinness, ele se revirava no assento. - Seja lá quem foi que fez isso, é melhor que vocês peguem ele antes de mim. Juro por Deus que eu mato o sujeito. Eu mato!
A casa parecia violada, pensou Alex ao abrir a porta da unidade autônoma que os Garotos de Kirkcaldy haviam transformado em seu feudo particular. Cavendish e Greenhalgh, os dois ingleses aristocratas que dividiam o espaço com eles, passavam o mínimo tempo possível em casa, um acordo perfeitamente conveniente para todos. Eles já haviam partido para a Inglaterra, para passar as férias, mas naquele dia o sotaque exagerado deles, que soava tão ostensivamente metido para Alex, seria muito mais convidativo do que a presença da polícia, que parecia imiscuir-se no próprio ar que ele respirava.
Com Maclennan nos seus calcanhares, Alex correu até o quarto onde dormia, no segundo andar.
- Não se esqueça, queremos tudo que você está usando. Inclusive a roupa de baixo - Maclennan lembrou a Alex, que abria a porta do quarto. O detetive ficou parado na soleira, visivelmente intrigado diante da visão de duas camas no quarto minúsculo, que obviamente fora projetado para apenas uma. - Quem dorme aqui com você? - quis saber ele.
Antes que Alex pudesse responder, a voz ponderada de Ziggy acudiu:
- Ele acha que nós somos todos gays - disse ele, sarcástico. - E que, é claro, foi por isso que matamos Rosie. Independente da total ausência de lógica, é isso o que está passando pela cabeça dele. Na verdade, Sr. Maclennan, a explicação é muito mais simples. - Ziggy apontou por cima do ombro do detetive para uma porta do outro lado do corredor. - Vem cá ver - disse ele.
Curioso, Maclennan aceitou o convite de Ziggy. Alex aproveitou que ele estava de costas e despiu-se às pressas, agarrando um roupão para cobrir a sua vergonha. Ele foi atrás dos dois e não pôde conter um sorriso convencido quando viu a expressão bestificada de Maclennan.
- Viu só? - perguntou Ziggy. - Simplesmente não tem espaço para uma bateria completa, um órgão Farfisa, duas guitarras e uma cama nessas tocas de coelho. Então Esquisito e Gilly foram sorteados e passaram a dormir no mesmo quarto.
- Vocês têm uma banda, então? - Maclennan parecia o seu pai falando, pensou Alex, com uma pontada de afeto que o surpreendeu.
- Tocamos juntos há quase cinco anos - respondeu Ziggy.
- Sério? Quer dizer que vão ser os próximos Beatles? - Maclennan não pôde se conter.
Ziggy revirou os olhos.
- Não, não vamos ser os próximos Beatles, por dois motivos. Primeiro, porque tocamos estritamente para nosso próprio prazer. Ao contrário dos Rezillos, não temos nenhuma vontade de constar entre os 10 Mais. E segundo, por causa do talento. Somos músicos absolutamente competentes, mas não temos um único pensamento musical original entre nós. O nome da nossa banda antes era Muse, até percebermos que não tínhamos nenhuma musa. Agora, somos os Combine.[4]
- Combine? - repetiu Maclennan debilmente, surpreso com o súbito acesso de intimidade de Ziggy.
- Novamente, por dois motivos. Quem tem uma ceifadeira colhe na plantação de todo mundo. Como nós. E também por causa da música do Jam que tem o mesmo nome. Nós não somos melhores que ninguém.
Maclennan virou as costas, balançando a cabeça.
- Vamos ter que dar uma olhada aí dentro também, você sabe.
Ziggy bufou.
- A única infração de que vocês vão encontrar provas é de violação de copyright - disse ele. - Olha, nós colaboramos com vocês. Quando é que vão nos deixar em paz?
- Assim que recolhermos as roupas. Também queremos diários, agendas, cadernos de endereços...
- Alex, dá logo o que ele quer. Todos nós já entregamos tudo. Quanto mais rápido recuperarmos o nosso espaço, mais fácil será colocarmos a cabeça no lugar. - Ziggy virou-se para Maclennan. - Sabe, o que o senhor e os seus subordinados parecem não perceber é que acabamos de passar por uma experiência terrível. Nos deparamos com o corpo moribundo e ensanguentado de uma garota que conhecíamos, ainda que superficialmente. - A voz dele ficou embargada, revelando a fragilidade do seu aparente autocontrole. - Se parecemos estranhos aos seus olhos, Sr. Maclennan, lembre-se que isso pode ter a ver com o fato de estarmos com a cabeça fodida por causa de tudo o que passamos hoje.
Ziggy passou voando pelo policial e desceu as escadas correndo, cruzando a cozinha e batendo a porta ao sair. Maclennan torceu a boca.
- Ele tem razão - disse Alex, dócil.
- Tem uma família lá em Strathkinness que passou uma noite bem pior do que a de vocês, filho. E o meu trabalho é encontrar respostas para eles. Se para isso eu precisar pisar no calo de vocês, sinto muito. Agora, vamos lá, me dê logo as roupas. E o resto também.
Ele ficou esperando na soleira da porta enquanto Alex empilhava as suas roupas sujas em um saco de lixo.
- O senhor vai precisar dos meus sapatos também? - perguntou Alex, segurando-os na altura do peito, visivelmente preocupado.
- Vou precisar de tudo - respondeu Maclennan, registrando mentalmente que teria de pedir ao pessoal da perícia para tomar um cuidado especial com os sapatos de Gilbey.
- É que eu não tenho nenhum outro par decente. Só botas de beisebol, e elas não servem nem para enfeite em um tempo como esse.
- Que pena. Vamos logo, para dentro do saco, filho.
Alex jogou os sapatos por cima das roupas.
- O senhor está perdendo o seu tempo aqui, sabe? Cada minuto que dedica a nós é um minuto perdido. Não temos nada a esconder. Não matamos Rosie.
- Que me conste, ninguém os acusou disso. Mas vocês insistem tanto no assunto que estou começando a ficar desconfiado. - Maclennan apanhou a sacola da mão de Alex e o diário caindo aos pedaços que ele lhe ofereceu. - Vamos voltar, Sr. Gilbey. Não vá a lugar nenhum.
- Temos que voltar para casa hoje - protestou Alex.
Maclennan estacou, dois degraus escada abaixo.
- Ninguém me disse isso - ele disse, desconfiado.
- O senhor não perguntou, não é? Temos que pegar o ônibus hoje à tarde. Todos nós começamos os nossos trabalhos de férias amanhã. Quer dizer, todos menos Ziggy - Alex acrescentou, com um sorriso meio irônico. - O pai dele acha que acadêmicos devem passar as férias estudando e não arrumando prateleiras de mercado.
Maclennan ponderou. Suspeitas baseadas essencialmente no seu instinto não justificavam exigir que os rapazes permanecessem em St. Andrews. E eles não iam nem sair da jurisdição. Kirkcaldy ficava logo ali, afinal.
- Podem ir para casa - sentenciou ele. - Desde que vocês não se incomodem em me ver, com a minha equipe, batendo na porta da casa dos seus pais.
Alex ficou parado, vendo Maclennan ir embora. O desânimo o arrastava para uma depressão ainda mais profunda. As festas de fim de ano iam ser realmente fantásticas.
6
Os acontecimentos da noite finalmente atingiram Esquisito em cheio. Quando Alex subiu após ter tomado um lúgubre café com Ziggy, Esquisito estava na sua posição habitual. De barriga para cima, com as pernas e os braços pendurados para fora das cobertas, ele rompia a relativa paz daquela manhã com o seu ruidoso ronco, que se transformava às vezes em um assovio agudo. Alex normalmente não tinha problemas para dormir ao som dessa trilha sonora estridente. O quarto onde dormia na casa dos seus pais dava para os trilhos da ferrovia, então silêncio noturno era uma espécie de novidade para ele.
Mas naquela manhã, Alex não precisou nem tentar para saber que não conseguiria pregar o olho com os barulhos de Esquisito atrapalhando os pensamentos que corriam em sua mente. Mesmo estando meio tonto por causa da falta de sono, não estava nem um pouco sonolento. Pegou uma leva de roupas da sua cadeira, caçou as botas de beisebol debaixo da cama e saiu de fininho do quarto. Vestiu-se no banheiro e desceu sem fazer barulho, para não acordar nem Esquisito, nem Mondo. Para falar a verdade, não queria nem mesmo a companhia de Ziggy. Parou diante dos ganchos de pendurar casacos na sala. A sua parca havia sido recolhida pela polícia. O que lhe deixara apenas com uma jaqueta jeans e um casaco leve com capuz. Ele pegou os dois e saiu.
Não estava mais nevando, mas as nuvens ainda estavam baixas e carregadas. A cidade parecia coberta de algodão. O mundo estava monocromático. Se ele espremesse os olhos, os prédios brancos do Fife Park desapareceriam, a pureza da vista conspurcada apenas pelos retângulos negros das janelas. O som também havia desaparecido, coberto pelo peso do clima. Alex seguiu pelo que uma vez já fora grama em direção à estrada principal. Hoje ela parecia uma trilha no Cairngorms, com rastros na neve indicando onde veículos ocasionais haviam passado. Só quem estava dirigindo naquelas condições eram aqueles que precisavam, obrigatoriamente. Quando ele chegou ao campo desportivo, os seus pés estavam molhados e gelados e isso, de alguma forma, pareceu-lhe apropriado. Caminhou até as quadras de hóquei. No meio daquela imensidão branca, ele espanou a neve de uma tabela de pontos e sentou sobre ela. E assim ele ficou, cotovelos nos joelhos, apoiando o queixo com as mãos, sentado sobre a tábua intacta, até que pequenas luzes começaram a dançar diante dos seus olhos.
Por mais que se esforçasse, Alex não conseguia fazer com que a sua mente ficasse tão vazia quanto a paisagem. Imagens de Rosie Duff não saíam da sua cabeça. Rosie tirando um chope, séria e concentrada. Rosie de lado, rindo da tirada de um freguês. Rosie levantando as sobrancelhas, caçoando de alguma coisa que ele lhe dissera. Essas eram lembranças com as quais ele podia lidar, sem problemas. Mas elas não permaneciam em sua mente. Eram constantemente expulsas pela outra Rosie. O rosto retorcido em um esgar de dor. Sangrando na neve. Lutando pelos seus últimos suspiros.
Alex se inclinou e agarrou um punhado de neve, apertando-o com força em suas mãos até que elas começassem a ficar arroxeadas de frio, até que a água escorresse pelos pulsos. O frio transformou-se em dor, a dor em entorpecimento. Ele queria poder fazer algo parecido com a sua mente. Desligá-la, desligá-la completamente. Deixá-la tão vazia quanto aquele campo coberto de neve, branco reluzente.
Quando sentiu alguém tocar no seu ombro, quase fez xixi nas calças. Cambaleou para a frente e não caiu estatelado por pouco. Virou-se com as mãos em punho, armadas na direção do peito.
- Ziggy! - gritou ele. - Meu Deus, você quase me mata de susto.
- Desculpe. - Ziggy parecia estar à beira das lágrimas. - Eu te chamei, mas você não olhou.
- Eu não ouvi! Meu Deus, avançando assim pela retaguarda você vai ficar mal falado, cara - Alex disse com uma risada trêmula, tentando fazer piada com o seu medo.
Ziggy riscou a neve com o bico da galocha.
- Sei que provavelmente você está querendo ficar sozinho, mas quando vi você saindo, resolvi vir atrás.
- Tudo bem, Zig. - Alex inclinou-se para a frente e removeu mais um pouco de neve da tábua. - Junte-se a mim no meu suntuoso sofá, onde as garotas do harém virão nos servir refrescos e água de rosas.
Ziggy deu um sorriso sem graça.
- Vou abrir mão dos refrescos. Eles congelam a ponta da minha língua. Você se importa?
- Não, por mim tudo bem.
- Fiquei preocupado com você, foi isso. De todos nós, você é o que a conhecia melhor. Eu não sabia se você estava querendo conversar, longe dos outros.
Alex se encolheu dentro da jaqueta e fez que não com a cabeça.
- Não tenho muito o que dizer. Eu só não consigo parar de ver o rosto dela. Achei que não ia conseguir dormir. - Ele suspirou. - Não, eu estava assustado demais para tentar. Quando eu era pequeno, um amigo do meu pai sofreu um acidente em um estaleiro. Uma explosão, sei lá, não sei exatamente o que foi. Enfim, depois do acidente, ele ficou só com uma metade do rosto. A outra metade era uma máscara de plástico, que ele tinha que usar sobre o tecido queimado. Você provavelmente deve lembrar dele, na rua ou no futebol. Era difícil não notar o cara. O meu pai me levou ao hospital para visitá-lo, eu só tinha cinco anos. E fiquei completamente apavorado. Eu ficava imaginando o que tinha por trás da máscara. À noite, quando ia dormir, acordava gritando, porque ele sempre aparecia nos meus sonhos. Às vezes, tinha vermes por trás da máscara. Às vezes, era uma bagunça cheia de sangue, tipo aquelas ilustrações dos seus livros de anatomia. Mas o pior era quando ele tirava a máscara e não havia nada por trás, apenas a pele com os vestígios do que deveria estar lá. - Ele tossiu. - É por isso que eu estou com medo de dormir.
Ziggy passou o braço pelo ombro de Alex.
- Eu sei que é difícil, Alex. Mas o fato é que você agora está mais velho. E o que nós vimos ontem, bem, a coisa não fica pior do que aquilo. A sua imaginação não tem muito o que fazer para piorar o quadro. Seja lá o que você sonhar agora, não vai chegar nem perto de ter visto Rosie daquele jeito.
Alex gostaria que as palavras de Ziggy pudessem confortá-lo um pouco mais. Mas ele sentia que elas não eram totalmente verdadeiras.
- Acho que todos nós vamos ter que lidar com os nossos demônios depois do que aconteceu ontem - disse ele.
- Alguns mais práticos do que os outros - respondeu Ziggy, recolhendo o braço de trás das costas de Alex e apertando as mãos uma contra a outra. - Não sei como, mas Maclennan descobriu que eu sou gay. - Ziggy mordeu o lábio.
- Putzgrila! - exclamou Alex.
- Eu só contei para você, você sabe, né? - A boca de Ziggy se contorceu em um sorriso irônico. - Quer dizer, além dos caras com quem eu estive, é claro.
- É claro. Como foi que ele descobriu? - perguntou Alex.
- Eu estava com tanto cuidado para não mentir que ele sacou a verdade nas entrelinhas. E agora eu estou com medo da coisa se espalhar.
- E por que haveria de se espalhar?
- Você sabe que as pessoas adoram uma fofoca. E eu acho que os policiais não são muito diferentes do resto, nesse sentido. Eles vão acabar falando com a universidade. Se quiserem pressionar a gente, essa seria uma boa estratégia. E se eles resolverem aparecer nas nossas casas, em Kirkcaldy? E se Maclennan achar que é uma jogada de mestre contar a verdade para os meus pais?
- Ele não vai fazer isso, Ziggy. Nós somos testemunhas. Não vejo o que ele pode ganhar se indispondo com a gente.
Ziggy suspirou.
- Queria acreditar em você. Na minha opinião, Maclennan está nos tratando mais como suspeitos do que como testemunhas. E isso significa que ele vai fazer qualquer coisa para nos pressionar, não é?
- Acho que você está muito paranoico.
- Pode até ser. Mas e se ele disser alguma coisa para o Esquisito ou o Mondo?
- Eles são seus amigos. Não vão virar as costas para você por causa disso.
Ziggy bufou.
- Eu vou te dizer o que eu acho que vai acontecer se Maclennan soltar que o melhor amigo deles é bicha. Eu acho que Esquisito vai querer me encher de porrada e que Mondo nunca mais vai querer entrar num banheiro comigo pro resto da vida. Eles são homofóbicos, Alex. Você sabe muito bem disso.
- Eles conhecem você desde pequeno. Isso vai contar muito mais do que um preconceito idiota. Eu não fiz um escândalo quando você me contou.
- E eu te contei exatamente porque sabia que você não ia fazer um escândalo. Você não é um homem das cavernas impulsivo.
Alex assumiu uma expressão modesta.
- Também era uma aposta garantida, né, contar para alguém que é fã de Caravaggio. Mas eles também não são dinossauros, Ziggy. Eles vão entender. Vão repensar as suas visões de mundo à luz do que sabem a seu respeito. Eu realmente acho que você não devia perder o sono por causa disso.
Ziggy deu de ombros.
- Pode ser, talvez você tenha razão. Mas, ainda assim, eu prefiro não arriscar. E mesmo que eles encarem numa boa, já pensou se a coisa se espalha? Quantos gays assumidos você conhece aqui na universidade? Todos esses ingleses riquinhos de escola particular, que passaram a adolescência inteira tendo experiências homossexuais, eles não saíram do armário, saíram? Estão todos aí, desfilando de braço dado com uma mulherzinha, garantindo a sua descendência. Vê só o Jeremy Thorpe. Ele está sendo julgado por ter conspirado para matar o seu ex-amante, só para manter a sua homossexualidade em segredo. Isso aqui não é San Francisco, Alex. É St. Andrews. Eu ainda tenho uns bons anos pela frente até poder atuar como médico, e eu te digo uma coisa, se Maclennan abrir a boca, a minha carreira vai para o espaço.
- Isso não vai acontecer, Ziggy. Você está exagerando. Você está cansado e, como você mesmo disse, estamos todos com a cabeça fodida por causa do que aconteceu ontem. Vou te dizer o que está me preocupando de verdade.
- O quê?
- A Land Rover. Que diabos vamos fazer a respeito?
- A gente tem que trazer de volta. Não temos nenhuma outra opção. Senão, dão queixa de furto e estamos perdidos.
- Pois é, eu sei disso. Mas quando? Não dá para fazer isso hoje. Seja lá quem foi que largou Rosie naquele lugar, deve ter um veículo qualquer e uma das coisas que nos deixa menos suspeitos é que nenhum de nós tem carro. Mas se formos vistos desfilando por aí na neve com uma Land Rover, vamos direto para o topo da lista de Maclennan.
- Vai acontecer a mesma coisa se uma Land Rover for descoberta exatamente na porta da nossa casa.
- Então o que a gente faz?
Ziggy chutou a neve entre os pés.
- Acho que vamos ter que esperar a poeira baixar, aí eu vou lá e busco o carro. Ainda bem que eu me lembrei das chaves a tempo de enfiar dentro da cueca. Senão a gente teria se dado mal na hora em que Maclennan pediu pra gente esvaziar os bolsos.
- Você está falando sério? Tem certeza que você quer ir buscar o carro?
- Vocês todos têm trabalho agora nas férias. Eu posso sair tranquilamente. Só preciso inventar alguma desculpa, dizer que tenho que ir até a biblioteca da universidade, sei lá.
Alex agitou-se desconfortável no seu assento improvisado.
- Você já parou para pensar que ao omitir a Land Rover a gente pode estar livrando a cara do assassino?
Ziggy ficou chocado.
- Você não está realmente sugerindo que...?
- O quê? Que um de nós pode ter cometido o crime? - Alex mal podia acreditar que tinha conseguido verbalizar as suspeitas insidiosas que haviam se infiltrado na sua consciência. Ele tentou consertar, depressa. - Não. Mas as chaves ficaram rolando lá na festa. Talvez alguém tenha manjado a oportunidade e aproveitado para pegar... - A sua voz foi morrendo.
- Você sabe que isso não aconteceu. E, lá no fundo, você também sabe que não acredita de verdade que um de nós possa ter matado Rosie - disse Ziggy, confiante.
Alex queria estar assim tão certo. Quem poderia dizer o que se passava pela cabeça de Esquisito, quando ele estava drogado até não poder mais? E Mondo? Ele foi levar a tal garota para casa, crente que ia rolar alguma coisa. Mas e se ela deu um fora nele? Ele estava furioso e frustrado, e talvez estivesse bêbado o suficiente para querer descontar em qualquer outra garota que tivesse dado o fora nele antes, como Rosie fizera, mais de uma vez no Lammas. E se tivesse encontrado com ela no caminho? Balançou a cabeça. Não queria nem pensar naquilo.
Como se pressentindo os pensamentos de Alex, Ziggy disse, calmamente:
- Se você está pensando em Esquisito e em Mondo, vai ter que me incluir na lista. Eu tive tanta oportunidade quanto eles. E espero que você saiba o quão ridícula é essa ideia.
- Isso é absurdo. Você jamais faria mal a alguém.
- O mesmo vale para os outros dois. A suspeita é como um vírus, Alex. Você pegou do Maclennan. Mas é bom você se livrar dela rapidinho, antes que contamine a sua mente e o seu coração. Lembre-se do que você sabe sobre nós. Nenhum de nós tem o perfil de um assassino frio e calculista.
As palavras de Ziggy não dissiparam a inquietude de Alex, mas ele não queria mais discutir a respeito. Em vez disso, abraçou o amigo, colocando a mão no seu ombro.
- Você é um amigão, Ziggy. Vamos até o centro. Eu te pago uma panqueca.
Ziggy sorriu.
- O último dos perdulários, hein? Vou fazer desfeita, se você não se importar. Não sei por quê, mas estou sem fome. E não se esqueça: um por todos e todos por um. Isso não significa ficar cego para os defeitos dos amigos e sim aprender a confiar neles. É uma confiança baseada em anos de amizade sólida. Não deixe Maclennan destruir isso.
Barney Maclennan olhou em volta da sala do DIC excepcionalmente cheia. Desacostumado a estar entre os detetives à paisana, Maclennan era a favor da convocação dos policiais uniformizados para ouvir as suas ordens em casos importantes. Fazia com que eles se sentissem pessoalmente envolvidos na investigação. Além do mais, eles faziam mais trabalho de campo e podiam perceber coisas que os detetives talvez deixassem passar. Fazer com que se sentissem parte do time tornava-os mais dispostos a seguir essas observações até o fim e não descartá-las como irrelevantes.
Ele estava parado de pé, do outro lado da sala, entre Burnside e Shaw. Com uma das mãos encoberta, revirava obsessivamente moedas dentro do bolso da calça. Sentia-se enfraquecido pelo cansaço e pelo esforço, mas sabia que a adrenalina o manteria aceso por várias horas. Era sempre assim quando estava seguindo o seu instinto.
- Vocês sabem por que estamos aqui - disse ele assim que todos se acomodaram. - O corpo de uma jovem foi encontrado hoje bem cedo, em Hallow Hill. Rosie Duff foi assassinada com uma única facada no estômago. Ainda é muito cedo para mais detalhes, mas provavelmente ela também foi estuprada. Não temos casos como esse por aqui, mas isso não quer dizer que não somos capazes de solucioná-lo. E rápido. A família da vítima merece respostas.
"Até agora, não temos muito para começar. Rosie foi encontrada por quatro estudantes, quando estavam voltando de uma festa em Learmonth Gardens para o Fife Park. Bem, eles podem ser testemunhas inocentes, mas também podem ser muito mais do que isso. Até onde sabemos, eles eram os únicos que estavam andando por aí no meio da noite, cobertos de sangue. Quero uma equipe verificando a tal festa. Quem estava lá? O que eles viram? Os nossos rapazes realmente têm álibis? Existem lacunas nos períodos de tempo? Como foi que eles se comportaram lá? O detetive Shaw vai conduzir essa equipe e eu gostaria de alguns oficiais uniformizados trabalhando com ele. Vamos colocar pressão nos convidados dessa festa.
"Rosie trabalhava no Pub Lammas, muitos aqui sabem disso, não é? - Ele olhou em volta, conferindo vários gestos afirmativos, incluindo o do policial Jimmy Lawson, o primeiro na cena do crime. Ele conhecia Lawson; jovem e ambicioso, responderia bem a um pouco de responsabilidade. - Os quatro estudantes andaram bebendo por lá ontem. Então quero que o detetive Burnside conduza uma outra equipe e converse com todo mundo que esteve lá ontem, todo mundo que for possível localizar. Tinha alguém de olho em Rosie? O que os quatro rapazes estavam fazendo? Como estavam se comportando? Lawson, você costuma beber lá. Quero que você se junte ao detetive Burnside e dê toda a ajuda possível para localizarmos os fregueses habituais e arrancarmos o máximo deles."
Maclennan fez uma pausa, olhando em torno.
- Também vamos precisar bater de porta em porta em Trinity Place. Rosie não foi a pé para Hallow Hill. O assassino tinha alguma espécie de transporte. Talvez a gente dê sorte e localize o insone local. Ou pelo menos alguém que tenha levantado de noite para fazer xixi. Quero informações sobre qualquer veículo que tenha passado por ali hoje cedo.
Maclennan tornou a dar uma olhada geral no recinto.
- É bem provável que Rosie conhecesse o assassino. Um estranho que a tivesse agarrado no meio da rua não perderia tempo removendo o corpo. Então, vamos ter que investigar a vida dela também. A família e os amigos não vão ficar contentes com isso, então precisamos respeitar a dor deles. Mas isso não significa que vamos nos contentar com histórias pela metade. Tem alguém solto por aí, alguém que cometeu homicídio ontem à noite. E eu quero pegá-lo, antes que ele tenha a oportunidade de fazer outra vítima. - Houve um burburinho no recinto; estavam todos de acordo. - Alguma pergunta?
Para sua surpresa, Lawson levantou a mão, aparentando estar um pouco constrangido.
- Senhor, será que existe algum significado na escolha do lugar onde o corpo foi abandonado?
- Como assim? - perguntou Maclennan.
- Pelo fato de ser um cemitério picto. Será que foi um ritual satânico, algo assim? Nesse caso, será que não foi simplesmente um estranho que pegou Rosie porque ela servia como o que ele estava precisando para um sacrifício humano?
Maclennan enrugou o rosto diante da possibilidade. No que ele estava pensando, para não ter considerado aquela hipótese? Se ela ocorrera a Jimmy Lawson, ocorreria à imprensa. E a última coisa que ele queria agora eram manchetes proclamando que havia um assassino satanista à solta.
- É uma hipótese interessante. E todos nós devemos tê-la em mente. Mas não devemos mencioná-la fora daqui. Por enquanto, vamos nos concentrar no que sabemos com certeza. Os estudantes, o Lammas, a investigação porta a porta. Mas isso não quer dizer que vamos fechar os olhos para outras possibilidades. E agora, vamos trabalhar.
Terminada a reunião, Maclennan perambulou pela sala, parando para dar uma palavra de incentivo aqui e ali enquanto os policiais se reuniam em volta das mesas, organizando as suas tarefas. Não podia evitar o seu desejo de que os estudantes estivessem envolvidos. Assim, conseguiriam um resultado rápido, que era o que contava para o público em casos como aquele. E, o que era ainda melhor, não deixaria a cidade com gosto de suspeita na boca. Era sempre mais fácil quando os bandidos vinham de fora. Mesmo que de fora, nesse caso, fosse apenas a cinquenta quilômetros de distância.
Ziggy e Alex voltaram para o alojamento com uma hora de antecedência, antes de terem que partir para a rodoviária. Tinham ido lá para verificar e o funcionário garantiu que os ônibus estavam passando, embora o horário não estivesse sendo cumprido.
- Vocês podem arriscar - disse o funcionário. - Não posso garantir o horário, mas os ônibus vão passar, sim.
Encontraram Esquisito e Mondo debruçados sobre xícaras de café na cozinha, ambos desanimados e com a barba por fazer.
- Pensei que vocês fossem estar no décimo sono - disse Alex, enchendo a chaleira para ferver mais água.
- Sem chance - resmungou Esquisito.
- Esquecemos dos abutres - disse Mondo. - Os jornalistas. Eles não param de bater na porta e a gente fica mandando eles irem embora. Mas não funciona. Dá uns dez minutos e eles voltam, tudo de novo.
- É a brincadeira do "bate, bate". Eu disse pro último que se ele não parasse de bater na porta, eu ia bater a porta na cara dele.
- Hmm - murmurou Alex. - E o vencedor deste ano do Prêmio Agradável na categoria Tato e Diplomacia é...
- Como assim? Você preferia que eu tivesse deixado eles entrarem aqui? - explodiu Esquisito. - Esses babacas, a gente tem mesmo é que falar com eles na única língua que eles entendem. Eles não aceitam não como resposta, você sabe.
Ziggy lavou duas xícaras e colocou café em pó nelas.
- Nós não vimos ninguém lá fora, não é, Alex?
- Não. Esquisito deve ter realmente colocado eles para correr. Mas se eles voltarem, vocês não acham que deveríamos dar logo uma declaração? Afinal, não temos nada a esconder.
- Só assim eles iam nos deixar em paz - concordou Mondo, mas daquele jeito como sempre concordava. Ele se especializara em um tom de voz que era capaz de sugerir dúvida, sempre oferecendo uma saída caso ele se encontrasse acidentalmente nadando contra a corrente. A sua necessidade de ser amado coloria tudo o que ele dizia e fazia. Isso e a necessidade de se proteger.
- Se você acha que eu vou falar com esses escravos do imperialismo capitalista, pode tirar o seu cavalinho da chuva. - Esquisito, por outro lado, não era homem de meias palavras. - Eles são a escória. Você já leu alguma reportagem sobre uma partida que tivesse alguma semelhança com o jogo que você assistiu? Vê só a sacanagem que eles fizeram com Ally McLeod. Antes de irmos para a Argentina, o cara era um deus, o herói que ia ganhar a Copa do Mundo. E agora? Ele não serve mais para porra nenhuma. Se eles não conseguem acertar com uma coisa tão simples quanto o futebol, que chance nós temos de não termos o nosso depoimento distorcido?
- Adoro quando Esquisito acorda de bom humor - disse Ziggy. - Mas ele está certo, Alex. Melhor ficarmos na nossa. Daqui a pouco, eles passam para outra. - Ele mexeu o seu café e foi andando em direção à porta. - Vou terminar de fazer as minhas malas. É melhor calcularmos uma margem de segurança e sairmos mais cedo do que o normal. Vai ser difícil andar até lá na raça e, graças a Maclennan, nenhum de nós tem sapatos decentes. Eu nem acredito que estou desfilando por aí de galochas.
- Cuidado, hein, a patrulha da moda vai te pegar - Esquisito gritou para ele, enquanto Ziggy saía. Ele bocejou e se espreguiçou. - Cara, eu estou muito cansado. Alguém tem uma bolinha aí?
- Se tivéssemos, já teria ido privada abaixo há muito tempo - respondeu Mondo. - Esqueceu que os tiras reviraram tudo?
Esquisito parecia envergonhado.
- Foi mal, não estou conseguindo pensar direito. Sabe, quando eu acordei, quase consegui acreditar que ontem tudo aquilo não tinha passado de uma bad trip. O que faria com que eu largasse o ácido pro resto da vida, vou te contar. - Ele balançou a cabeça. - Coitada da garota.
Alex aproveitou a deixa para desaparecer escada acima e terminar de guardar os livros na mala. Não estava triste por estar voltando para casa. Pela primeira vez, desde que começara a morar com os outros três, sentia uma espécie de claustrofobia. Sonhava com o seu quarto, só para ele; uma porta que ele pudesse fechar e que ninguém ousaria abrir sem permissão.
Estava na hora de partir. As três malas e a mochila enorme de Ziggy já estavam empilhadas na sala. Os Garotos de Kirkcaldy estavam prontos para voltar para casa. Colocaram as bolsas no ombro e abriram a porta, Ziggy na frente. Mas, para a desgraça de todos, aparentemente o efeito das palavras duríssimas de Esquisito havia passado. Assim que puseram os pés para fora, cinco homens se materializaram, do nada. Três deles carregavam máquinas fotográficas e antes que os quatro percebessem o que estava acontecendo, o som de máquinas Nikon tirando fotos sem parar tornou-se ensurdecedor.
Os dois jornalistas davam cotoveladas nos fotógrafos, gritando perguntas. Eles pareciam estar numa entrevista coletiva, metralhando perguntas em uma velocidade espantosa. "Como vocês encontraram a moça?", "Qual de vocês fez a descoberta?", "O que estavam fazendo em Hallow Hill no meio da noite?", "Foi uma espécie de ritual satânico?" e, é claro, a inevitável "Como vocês estão se sentindo?".
- Fora daqui! - berrou Esquisito, protegendo-se com a sua bolsa pesada, como se fosse uma foice. - Não temos nada a declarar!
- Meu Deus, meu Deus, meu Deus - sussurrava Mondo, como se tivesse engolido um disco.
- Para dentro - gritou Ziggy. - Vamos entrar de novo.
Alex, que estava por último, deu meia-volta. Mondo entrou aos tropeções, quase caindo por cima de Alex na sua pressa de fugir da tortura dos flashes. Esquisito e Ziggy vieram logo atrás dele, fechando a porta depressa. Entreolharam-se, acossados e assustados.
- E agora? O que é que a gente vai fazer? - perguntou Mondo, fazendo a pergunta que estava na cabeça de todos eles. Estavam perplexos. As suas experiências de vida eram limitadas; aquela era uma situação que ultrapassava esse limite.
- Não podemos ficar aqui - continuou Mondo, impaciente. - Temos que voltar para Kirkcaldy. Começo a trabalhar no mercado amanhã às seis da manhã.
- Eu e Alex também - disse Esquisito. Todos olhavam para Ziggy, esperando uma solução.
- Certo. E se saíssemos pelos fundos?
- Não temos fundos, Ziggy. Só temos a porta da frente - apontou Esquisito.
- Tem a janela do banheiro. Vocês podem sair por lá e eu fico aqui. Vou ficar andando pela casa, acendendo umas luzes, coisas assim, para eles pensarem que ainda estamos aqui. Posso voltar pra casa amanhã, quando a poeira baixar.
Os outros três se entreolharam. Não era uma má ideia.
- Você vai ficar bem, sozinho? - perguntou Alex.
- Vou. Mas algum de vocês precisa avisar os meus pais, explicar por que eu ainda estou aqui. Não quero que eles fiquem sabendo pelos jornais.
- Eu ligo, pode deixar - ofereceu Alex. - Valeu, Ziggy.
Ziggy levantou o braço e os três repetiram o gesto. Eles entrelaçaram as mãos em um cumprimento familiar.
- Um por todos - disse Esquisito.
- E todos por um - repetiram os outros. Era sincero, como era há nove anos, quando o fizeram pela primeira vez. Desde que tropeçara sobre o corpo morto de Rosie Duff na neve, aquela era a primeira vez que Alex sentia uma espécie de consolo.
7
Alex caminhou penosamente pela ponte da estrada de ferro, virando à direita na Balsusney Road. Era como se Kirkcaldy fosse um país diferente. À medida que o ônibus foi abrindo o seu caminho sinuoso pela costa de Fife, a neve começou a derreter aos poucos. Agora, não passava de uma umidade gélida e pardacenta. O vento nordeste, ao chegar finalmente tão longe, já havia descarregado toda a sua neve e, àquelas alturas, já não tinha mais nada a oferecer às cidades mais protegidas acima do estuário, a não ser friorentas pancadas de chuva. Alex sentia-se como um daqueles camponeses infelizes de Breughel, arrastando-se exausto para casa.
Alex levantou o trinco do familiar portão de ferro retorcido e caminhou até a casa de pedra onde havia crescido. Tateou o bolso da calça, procurando as chaves, e entrou em casa. Uma onda de calor o envolveu. Haviam instalado o aquecedor central durante o verão e aquela era a primeira vez que Alex podia conferir a diferença que o aparelho fazia. Deixou cair a bolsa no chão, ao lado da porta, e gritou:
- Cheguei!
Sua mãe saiu da cozinha, enxugando as mãos em um pano de prato.
- Alex, que bom ter você de volta. Vem aqui na cozinha, tem sopa e cozido. Já tomamos chá, eu pensei que você fosse chegar mais cedo. Foi por causa do tempo? Eu vi na televisão que a coisa está feia por lá.
Ele deixou que as palavras dela o inundassem, o tom e a conversa familiares eram como um cobertor, protegendo-o. Tirou o casaco e cruzou a sala para lhe dar um abraço.
- Parece cansado, filho - disse ela, com um tom de preocupação na voz.
- Tive uma noite terrível, mãe - respondeu ele, seguindo-a de volta até a minúscula cozinha.
Da sala de estar, veio a voz do pai:
- É você, Alex?
- Sou eu, pai - gritou ele de volta. - Já vou até aí.
A mãe já estava providenciando um prato de sopa, entregando para ele a tigela e uma colher. Enquanto havia comida a ser servida, Mary Gilbey não podia prestar atenção a detalhes mais insignificantes como tristeza profunda.
- Vai lá e senta com o teu pai. Vou esquentar o cozido. Tem batata assada no forno.
Alex foi até a sala de estar, onde o pai estava sentado em uma poltrona, vidrado na televisão. Havia um lugar preparado para ele na mesa de jantar no canto da sala e Alex sentou-se com a sua sopa.
- Tudo bem, filho? - perguntou o pai, sem tirar os olhos do programa na televisão.
- Para falar a verdade, não.
Aquilo chamou a atenção do seu pai. Jock Gilbey virou-se e lançou um olhar perscrutador sobre o filho, do tipo que os professores gostam tanto de usar.
- Você não parece nada bem. O que está acontecendo?
Alex tomou uma colherada da sopa. Não estava com fome, mas assim que sentiu o gosto daquele autêntico caldo caseiro escocês, descobriu que estava faminto. A última vez que comera alguma coisa havia sido na festa, sendo que vomitara duas vezes. Tudo o que ele queria era encher a barriga, mas agora que tinha começado, teria que ir até o fim.
- Aconteceu uma coisa horrível ontem - disse ele, entre uma colherada e outra. - Assassinaram uma garota. E nós a encontramos. Quer dizer, fui eu, mas Ziggy, Esquisito e Mondo estavam comigo.
O pai olhava para ele, boquiaberto. A mãe tinha entrado na sala durante a parte final da revelação de Alex e pusera instantaneamente as mãos no rosto, os olhos arregalados, horrorizados.
- Oh, Alex, que coisa... Ah, pobrezinho - disse ela, apressando-se ao seu encontro e segurando a sua mão.
- Foi horrível. Ela foi esfaqueada. E ainda estava viva quando a encontramos. - Ele piscou com força. - Acabamos tendo que passar o resto da noite na delegacia. Eles levaram todas as nossas roupas e todo o resto, como se estivessem achando que temos alguma coisa a ver com o crime. Porque a gente conhecia a garota, sabe. Quer dizer, não conhecia de verdade. Ela era garçonete de um dos pubs aonde a gente sempre vai. - Lembrando de tudo, perdeu o apetite e deitou a colher no prato, abaixando a cabeça. As lágrimas se formaram no canto dos seus olhos e escorreram pelo seu rosto.
- Eu sinto muito, filho - acudiu o pai, na falta de algo mais adequado para dizer. - Deve ter sido um choque terrível.
Alex tentou engolir o bolo em sua garganta.
- Antes que eu me esqueça - disse ele, empurrando a cadeira para trás -, preciso ligar para o Sr. Malkiewicz e dizer a ele que Ziggy não vai chegar hoje.
Jock Gilbey arregalou os olhos, em choque.
- Prenderam ele na delegacia?
- Não, não foi nada disso - respondeu Alex, enxugando os olhos com as costas da mão. - Apareceram uns jornalistas na nossa porta lá em Fife Park, atrás de fotos e entrevistas. E a gente não queria falar com eles. Então eu, Esquisito e Mondo subimos até a janela do banheiro e saímos pelos fundos. Temos que começar a trabalhar amanhã no mercado, né? Mas como Ziggy não tem emprego, ele se ofereceu para ficar lá e vir só amanhã. Não queríamos deixar a janela aberta, entende? Então tenho que ligar para o pai dele e explicar.
Alex desvencilhou-se gentilmente do toque de sua mãe e foi até a sala. Pegou o fone e discou o número de Ziggy de cabeça. Tocou uma vez e, em seguida, ouviu o familiar sotaque polonês de Karel Malkiewicz. Lá vou eu de novo, pensou Alex. Ia ter que explicar a noite passada novamente. E tinha a impressão de que aquela não seria a última vez.
- É isso o que acontece quando você desperdiça as suas noites bebendo e fazendo sabe Deus o que mais - disse Frank Mackie amargamente. - Você acaba se metendo com a polícia. Eu sou um homem respeitado nesta cidade, você sabe disso. A polícia nunca bateu na minha porta. Mas basta um desmiolado como você para cairmos na boca do povo.
- Se nós não estivéssemos na rua até tarde, ela teria ficado lá até o dia clarear. Teria morrido abandonada - protestou Esquisito.
- Eu não tenho nada a ver com isso - respondeu o pai, atravessando a sala para servir-se de um copo de uísque. Havia instalado um bar na sala para impressionar os clientes que julgava respeitáveis o bastante para serem convidados até a sua casa. Ele achava de bom-tom para um contador exibir os frutos do seu sucesso. Tudo o que queria era que o filho mostrasse alguns sinais de ambição, mas, ao invés, havia colocado no mundo um inútil que passava as noites em pubs. O pior é que Tom tinha um dom para números. Mas em vez de direcioná-lo de maneira prática, escolhendo a contabilidade, ele havia preferido o inconsistente mundo da matemática pura. Como se esse pudesse ser o primeiro passo para o caminho da prosperidade e da decência. - Está decidido. Nada de sair à noite, rapaz. Nada de festas, nem pubs durante as férias. Você está preso no quartel. É do trabalho para casa e de casa para o trabalho.
- Mas, pai, é Natal! - protestou Esquisito. - Todo mundo vai sair, e eu quero encontrar os meus amigos.
- Você devia ter pensado nisso antes de ter arrumado problema com a polícia. Você vai ter provas esse ano. Aproveite para estudar. Um dia você ainda vai me agradecer por isso, sabia?
- Mas, pai...
- Essa é a minha última palavra sobre o assunto. Enquanto você morar debaixo do meu teto, enquanto eu estiver pagando a sua universidade, você vai fazer as coisas do meu jeito. Quando você começar a ganhar o seu dinheiro, aí então você pode criar as suas próprias regras. Até lá, vai fazer o que eu mandar. E agora, fora daqui!
Enfurecido, Esquisito saiu da sala bufando e subiu correndo as escadas. Meu Deus, pensou ele, como eu odeio essa família. E como odiava aquela casa. Raith Estate, onde moravam, era para ser a última palavra em modernidade, mas ele achava que aquela era outra ilusão criada pelos sujeitos de terno e gravata. Não precisava ser um gênio para perceber que aquele lugar não tinha nem comparação com a casa onde moravam antes. Paredes de pedra, portas de madeira maciça com revestimentos e molduras, vitral no patamar da escada. Aquilo sim era uma casa. Realmente, aquele caixote tinha mais quartos, mas eram minúsculos, o teto e as portas tão baixos que Esquisito tinha a impressão que teria de andar constantemente abaixado para acomodar o seu um metro e oitenta e três centímetros. As paredes também eram finas como papel. Dava para ouvir alguém soltando um pum no quarto do lado. O que, parando para pensar, era bem engraçado. Os seus pais eram tão reprimidos que seriam incapazes de conhecer uma emoção, mesmo que ela os mordesse no calcanhar. E, ainda assim, haviam gastado uma fortuna em uma casa que desnudava a privacidade de todos. Dividir um quarto com Alex era mais confortável do que viver debaixo do teto dos seus pais.
Por que nunca haviam feito o menor esforço para compreendê-lo? Sentia como se tivesse passado a vida se rebelando. Nenhum dos seus êxitos servia para quebrar o gelo, pois eles nunca se encaixavam nos limites estreitos dos sonhos dos seus pais. Quando foi campeão de xadrez da escola, o pai fez um muxoxo, insinuando que ele deveria ter se juntado ao time de bridge. Quando pediu para aprender a tocar um instrumento musical, o pai recusou sem rodeios, oferecendo-se para comprar um conjunto de tacos de golfe. Todo ano, quando ele ganhava o prêmio de matemática na escola, a reação do pai era comprar livros de contabilidade para ele, entendendo tudo errado. A matemática para Esquisito não tinha nada a ver com adição e subtração de números; era a beleza da curva de uma equação quadrática, a elegância do cálculo, a linguagem misteriosa da álgebra. Se não fosse pelos seus amigos, ele se sentiria um completo anormal. Eles lhe deram um espaço para desabafar com segurança, uma chance de abrir as suas asas e levantar voo, sem medo de se espatifar no chão.
E ele havia retribuído da pior maneira possível. A culpa o atingia em cheio quando recordava a sua última loucura. Daquela vez, tinha ido longe demais. Tudo começara como uma brincadeira, furtando o carro de Henry Cavendish. Ele não fazia ideia do que aconteceria depois. Sabia muito bem que nenhum dos outros três poderia salvar a sua pele se alguém descobrisse sobre o carro. Só esperava não prejudicar ninguém, caso isso acontecesse.
Colocou a sua nova fita cassete do Clash no toca-fitas e atirou-se na cama. Ia ouvir o lado A e depois se preparar para dormir. Tinha que estar de pé às cinco da manhã para encontrar Alex e Mondo e pegar no batente no supermercado. Normalmente, teria ficado deprimido com a perspectiva de ter de se levantar tão cedo. Mas do jeito que as coisas estavam, seria um alívio sair de casa, uma bênção poder fazer algo que fizesse com que a sua mente parasse de girar em círculos. Nossa, pensou ele, eu daria tudo por um baseado.
Pelo menos a brutalidade emocional do pai havia deixado as lembranças de Rosie Duff de lado. Quando Joe Strummer começou a cantar "Julie’s in the Drug Squad", ele já estava dormindo profundamente, mergulhado em um sono sem sonhos.
Karel Malkiewicz dirigia como um velho, na melhor das hipóteses. Hesitante, devagar e totalmente imprevisível nos entroncamentos. Também só dirigia quando o tempo estava bom. Em circunstâncias normais, ao primeiro sinal de neblina ou geada, ele guardava o carro e descia a pé a ladeira íngreme da Massareene Road até Bennochy, onde tomava o ônibus até a Factory Road, onde ficava o seu local de trabalho. Trabalhava como eletricista no setor de revestimento de pisos. Já fazia um bom tempo desde o desaparecimento da nuvem de óleo de linhaça que rendera à cidade a reputação de ter um "cheiro esquisito", mas embora o linóleo tivesse saído de moda, o que era produzido na fábrica de Nairn ainda revestia o piso de milhares de cozinhas, banheiros e ambientes híbridos. E ele proporcionara a Karel Malkiewicz uma vida decente desde que saíra da Força Aérea Britânica após a guerra, e por isso ele era bastante grato.
O que não significava que ele havia esquecido os motivos pelos quais deixara Cracóvia. Ninguém podia sobreviver à atmosfera tóxica de desconfiança e perfídia sem cicatrizes, muito menos um judeu polonês que tivera a sorte de escapar antes do massacre que o deixou sem família.
Ele teve de reconstruir a vida, criar uma nova família. Seus pais não haviam sido especialmente ortodoxos, de modo que ele não se sentiu órfão da sua antiga religião. Não havia judeus em Kirkcaldy, lembrava que alguém lhe dissera isso alguns dias depois da sua chegada na cidade. A mensagem era clara: "É assim que preferimos." E ele dançou conforme a música, chegando ao extremo de se casar na Igreja Católica. Aprendera a sentir-se em casa naquela terra insular que o acolhera. Surpreendera-se com o arrebatado orgulho possessivo que sentira quando da recente escolha do papa polonês. Raramente sentia-se polonês.
Estava beirando os quarenta quando o filho que tanto sonhara finalmente veio ao mundo. Era motivo de alegria, mas também uma renovação do seu medo. Agora tinha muito mais a perder. Aquele era um país civilizado, os fascistas jamais fariam carreira ali. Pelo menos, era isso o que todos pensavam. Mas a Alemanha também fora um país civilizado. Era impossível prever o que poderia acontecer a qualquer país onde o número de desabrigados alcançasse uma massa crítica. Qualquer um que prometesse salvação encontraria seguidores.
E, ultimamente, havia bons motivos para o medo. A Frente Nacional avançava furtivamente na moita política. Greves e tumultos industriais estavam irritando o governo. A campanha de bombardeios do IRA dava aos políticos todas as desculpas de que precisavam para a introdução de medidas repressoras. E ainda havia aquela vaca insensível que comandava o partido conservador, falando que os imigrantes afundavam a cultura nativa. De fato, as sementes estavam todas presentes.
Então, quando Alex Gilbey ligou e contou a ele que o seu filho passara a noite em uma delegacia, Karel Malkiewicz não teve outra escolha. Queria o filho debaixo do seu teto, debaixo da sua asa. Ninguém tinha o direito de levá-lo embora no meio da noite. Agasalhou-se e instruiu a mulher para que ela preparasse um cantil com uma sopa bem quente e um embrulho com sanduíches. E partiu estrada afora para buscar o filho e trazê-lo de volta para casa.
Demorou quase duas horas, em uma viagem penosa até St. Andrews no seu velho Vauxhall. Mas ficou aliviado ao ver as luzes acesas na casa que Sigmund dividia com os amigos. Estacionou o carro, apanhou o seu farnel e caminhou até a entrada.
Bateu na porta e, a princípio, não houve resposta. Andando com cuidado sobre a neve, olhou pela janela para dentro da cozinha acesa. Estava vazia. Bateu na janela e gritou:
- Sigmund! Abra a porta, meu filho. Sou eu, o seu pai!
Ouviu então um barulho de pés descendo em tropel pela escada abaixo. A porta se abriu para revelar o seu belo filho, sorrindo de orelha a orelha, os braços abertos em acolhida.
- Pai! - exclamou ele, pisando descalço para fora de casa para abraçá-lo. - Não esperava o senhor aqui!
- Alex me ligou. E eu não queria que você ficasse aqui sozinho. Então, vim te buscar. - Karel apertou o filho contra si, sentindo a borboleta do medo batendo as asas dentro do seu peito. O amor, pensou ele, era uma coisa terrível.
Mondo estava sentado de pernas cruzadas na cama, convenientemente perto do seu toca-discos. Estava ouvindo, sem parar, o seu tema pessoal, "Shine On, You Crazy Diamond". As guitarras arrebatadoras, a dolorosa angústia na voz de Roger Waters, os sintetizadores dolentes e o saxofone ofegante forneciam a trilha sonora perfeita para abstrair a realidade.
E isso era exatamente o que ele queria fazer. Havia escapado da preocupação sufocante da mãe, que o asfixiara assim que ele explicou o que havia acontecido. Até que fora agradável no início, o casulo familiar de preocupação girando à sua volta. Mas, aos poucos, aquilo começou a sufocar e ele pediu licença, alegando que precisava ficar sozinho. A estratégia Greta Garbo sempre funcionava com sua mãe, que o julgava um intelectual porque ele lia livros em francês. Ela parecia não notar que aquilo era o que qualquer um que estava estudando a matéria com fins de graduação fazia.
Ainda bem, para falar a verdade. Ele não sabia nem como começar a explicar o turbilhão de emoções que ameaçava engoli-lo. A violência era algo desconhecido para ele, uma língua estrangeira da qual não conhecia nem a gramática, nem o vocabulário. Ter se confrontado recentemente com ela havia deixado Mondo sentindo-se abalado e estranho. Não podia dizer sinceramente que lamentava a morte de Rosie; ela o humilhara mais de uma vez na frente dos seus amigos quando ele tentou lhe passar cantadas que haviam funcionado com outras garotas. O que lamentava era o fato de sua morte ter feito com que ele despencasse em um lugar desconfortável, ao qual não pertencia.
Estava precisando mesmo era de sexo. Isso apagaria os horrores da noite anterior da sua mente. Funcionaria como uma espécie de terapia. Seria como voltar aos eixos. Infelizmente, não dispunha de uma namorada em Kirkcaldy. Talvez devesse dar alguns telefonemas. Uma ou duas das suas ex-namoradas ficariam mais do que satisfeitas em renovar os laços com ele. Elas poderiam oferecer um ombro amigo para ele chorar as suas mágoas e o ajudariam a superar os seus problemas, pelo menos até o final das férias. Talvez a Judith. Ou a Liz. É, provavelmente a Liz. As gordinhas ficavam sempre pateticamente agradecidas diante da possibilidade de um encontro, elas cediam sem o menor esforço. Só de pensar, já tinha uma ereção.
Justo quando estava prestes a levantar-se da cama e descer para fazer a ligação, bateram na sua porta.
- Pode entrar - disse ele, suspirando exausto, perguntando-se o que a mãe ainda queria. Mudou de posição para esconder a sua ereção em estágio inicial.
Mas não era a mãe. Era a sua irmã de quinze anos, Lynn.
- Mamãe achou que você podia estar querendo uma Coca - disse ela, estendendo um copo para ele.
- Na verdade, estou querendo outras coisas - respondeu ele.
- Você deve estar arrasado mesmo - disse Lynn. - Não consigo nem imaginar como deve ter sido.
Na ausência de uma namorada, tinha de se contentar em impressionar a sua irmã mesmo.
- Foi muito difícil - disse ele. - Não gostaria de ter que passar por isso de novo tão cedo. E os policiais eram uns homens da caverna imbecis. Por que sentiram necessidade de nos interrogar como se fôssemos do esquadrão de bombas do IRA, eu nunca vou saber. Foi preciso muita coragem para encarar, podes crer.
Por algum motivo, Lynn não estava lhe dando a adoração e apoio estouvados que ele merecia. Ela encostou na parede, com cara de quem estava esperando uma pausa na conversa para colocar para fora o que estava passando na sua cabeça.
- É, imagino como foi - disse ela, mecanicamente.
- É provável que sejamos interrogados mais vezes - acrescentou ele.
- Deve ter sido barra para o Alex. Como ele está?
- Gilly? Bem, ele está longe de ser o Senhor Indefeso. Ele vai superar.
- Alex é muito mais sensível do que você imagina - defendeu ela, veemente. - Só porque ele jogava rúgbi, vocês acham que ele é só músculos e que não tem coração. Ele deve estar realmente arrasado, principalmente porque conhecia a garota.
Mondo xingou por dentro. Por um momento, havia esquecido da paixonite de sua irmã por Alex. Ela não estava ali para lhe oferecer Coca-Cola simpatia, estava ali para ter um pretexto para falar sobre Alex.
- Sorte dele não ter conhecido a garota como gostaria.
- Como assim?
- Ele era gamadão nela. Chegou até a chamá-la pra sair. Se ela tivesse aceitado, pode apostar que Alex ia ser o suspeito número um.
Lynn ficou ruborizada.
- Você está inventando. Alex não ia sair por aí caçando garçonetes.
Mondo deu um sorrisinho cruel.
- Ah não, é? Acho que você não conhece o seu querido Alex tão bem quanto pensa.
- Você é um monstro, sabia? Por que está falando desse jeito horrível do Alex? Ele é um dos seus melhores amigos!
Ela bateu a porta com força, deixando a pergunta no ar. Por que estava falando daquele jeito horrível de Alex, quando normalmente não abriria a boca para falar mal dele?
Aos poucos, começou a perceber que, lá no fundo, culpava Alex por toda aquela confusão. Se tivessem seguido reto pelo caminho, outra pessoa teria encontrado o corpo de Rosie Duff. Outra pessoa teria ficado lá, ouvindo os seus últimos suspiros prolongando-se exaustivamente. Outra pessoa estaria marcada pelas horas passadas numa cela na delegacia.
Se ele agora era suspeito em uma investigação de homicídio, a culpa era de Alex, com certeza. Mondo contorceu-se desconfortavelmente diante daquele pensamento. Tentou evitá-lo, mas sabia que não conseguiria fechar a caixa de Pandora. Uma vez plantada a ideia, não poderia ser arrancada pela raiz e deixada de lado, até murchar. Não era a hora de dar vazão a ideias como aquela, que acabariam criando um abismo entre eles. Eles agora precisavam um do outro mais do que nunca. Mas era um fato inegável. Não estaria naquela enrascada se não fosse por Alex.
E se a coisa piorasse? Não havia como negar que Esquisito andara passeando com a Land Rover durante boa parte da noite. Ele levara várias garotas para dar uma voltinha, tentando impressioná-las. E não tinha um álibi decente, assim como Ziggy, que saíra de fininho e escondera o carro em um local onde Esquisito não pudesse encontrar. Assim como o próprio Mondo. O que dera nele, pegando a Land Rover emprestada para levar a garota para casa em Guardbridge? Uma rapidinha no banco de trás não valeria o transtorno, caso alguém lembrasse dela na festa. Se a polícia começasse a fazer perguntas para os outros convidados, alguém ia acabar entregando eles. Por mais que os estudantes professassem desprezo às autoridades, alguém ia amarelar e abrir o bico. E começariam as acusações.
De repente, culpar Alex parecia uma das suas menores preocupações. À medida que recordava os acontecimentos dos últimos dias, Mondo lembrou-se de algo que vira, tarde da noite. Algo que podia ajudá-lo a livrar a sua cara. Algo que, por ora, haveria de guardar consigo mesmo. Não queria mais saber de um por todos e todos por um. Tinha mais era que salvar a própria pele. Os outros que cuidassem dos seus próprios interesses.
8
Maclennan entrou e fechou a porta. Com a policial Janice Hogg lá dentro com ele, o quarto parecia claustrofóbico, a inclinação do teto enclausurando-os. Aquele era o elemento mais lamentável da morte súbita, pensou ele. Ninguém tem a oportunidade de voltar e fazer uma limpeza, de apresentar ao mundo a imagem que gostaria de deixar. Eles têm de se contentar com o que deixaram para trás na última vez em que fecharam a porta. Ele já vira alguns quadros tristes, mas poucos comoventes como aquele.
Alguém havia se dado ao trabalho de tornar aquele quarto iluminado e alegre, apesar da parca luminosidade que penetrava pela janela estreita da mansarda, que dava para a rua. Podia ver St. Andrews a distância, ainda parecendo esbranquiçada por causa da neve da véspera, embora ele soubesse que a verdade era outra. As calçadas já estavam imundas com a neve derretida e lamacenta, e as estradas, um atoleiro escorregadio de areia e água. Para além da cidade, a mancha acinzentada do mar derretia-se imperceptivelmente no céu. Devia ser uma bela vista no verão, pensou ele, voltando-se para o papel de parede com textura granular e desenhos de magnólia e a colcha bordada, onde o lugar no qual Rosie havia se sentado ainda estava amarfanhado. Havia somente um pôster na parede. Um grupo chamado Blondie, com uma cantora peituda fazendo beicinho, usando uma saia incrivelmente curta. Seria aquele o sonho de Rosie?, ele se perguntava.
- Por onde devo começar, senhor? - perguntou Janice, olhando para o armário e a penteadeira da década de 50, que haviam sido pintados de branco numa tentativa de deixá-los mais modernos. Havia uma pequena mesa de cabeceira, com apenas uma gaveta. Fora isso, o único lugar onde poderiam encontrar algo escondido era em um cesto de roupa suja atrás da porta, ou na lixeirinha de metal debaixo da penteadeira.
- Comece pela penteadeira - disse ele. Assim, não precisaria lidar com a maquiagem que jamais seria usada novamente, o sutiã e as calcinhas velhas enfiadas lá no fundo da gaveta, para emergências de lavanderia que nunca haviam ocorrido. Maclennan conhecia os seus pontos fracos e preferia não atiçá-los, sempre que possível.
Janice sentou-se ao pé da cama, onde Rosie deveria ter se sentado para ver-se no espelho e aplicar a sua maquiagem. Maclennan foi até a penteadeira e abriu uma gaveta. Lá dentro havia um livro bem grosso, chamado O Último Refúgio, e Maclennan lembrou que aquele era exatamente o tipo de livro que a sua ex-mulher usava para mantê-lo afastado na cama. "Estou lendo, Barney", ela dizia em um tom de sofrimento resignado, sacudindo um livro que mais parecia um peso de porta no seu nariz. Não conseguia compreender a relação entre as mulheres e os livros. Levantou o romance, tentando não observar Janice explorando sistematicamente as outras gavetas. Embaixo do livro, havia um diário. Recusando-se a um otimismo precipitado, Maclennan o apanhou.
Se estivesse esperando confissões, teria ficado decepcionado. Rosie Duff não era uma garota do tipo "Querido Diário". As páginas listavam os seus turnos no Lammas, aniversários da família e dos amigos e eventos sociais como "Festa do Bob", "Farra da Julie". Algumas datas estavam marcadas com hora e local e a palavra "Ele", seguida por um número. Havia passado pelo 14, 15 e 16 no último ano; 16 sendo, obviamente, o mais recente. "Ele" apareceu em fevereiro e logo se tornou um habitué, duas ou três vezes por semana. Sempre depois do trabalho, pensou Maclennan. Teria de voltar ao Lammas e perguntar se alguém havia visto Rosie encontrando um sujeito depois do expediente. Perguntava-se por que se encontravam nesse horário, em vez de nas folgas de Rosie ou durante o dia, quando ela não estava trabalhando. Um dos dois parecia determinado a manter em segredo a sua identidade.
Olhou para Janice.
- Alguma coisa?
- Nada especial. Coisas que mulheres compram para si mesmas. Nada daquelas coisas cafonas compradas pelos homens.
- Homens compram coisas cafonas?
- Receio que sim, senhor. Renda que pinica, náilon que faz a gente suar. O que os homens querem que as mulheres usem, mas que jamais escolheriam para eles próprios.
- Deve ser aí que eu venho errando, todos esses anos. Eu realmente deveria estar comprando calçolas na Marks and Spencer.
Janice sorriu.
- A gratidão vai longe, senhor.
- Algum sinal de que ela estava tomando pílula anticoncepcional?
- Nada, até agora. Talvez Brian estivesse falando sério quando disse que ela era uma garota certinha.
- Nem tanto. De acordo com o legista, ela não era virgem.
- Existem outras maneiras de se perder a virgindade, senhor - salientou Janice, sem muita coragem para colocar em dúvida um legista que todo mundo sabia estar mais interessado no próximo drinque e na aposentadoria do que em quem ia parar na sua maca.
- É verdade. E as pílulas devem estar na bolsa dela, que ainda não foi encontrada. - Maclennan suspirou e fechou a gaveta que continha o livro e o diário. - Vou dar uma olhada no armário.
Meia hora depois, teve de admitir que Rosie Duff não era do tipo que escondia o ouro. O seu armário continha roupas e sapatos, todos em estilos modernos. Em um canto, havia uma pilha de livros baratos, gordos tijolos de papel que prometiam, na mesma medida, uma vida glamourosa, rica e plena de amor.
- Estamos perdendo o nosso tempo aqui - disse ele.
- Ainda falta uma gaveta. Por que o senhor não dá uma olhada no porta-joias? - Janice entregou a ele uma caixinha em formato de baú de tesouro, revestida de napa branca. Ele suspendeu o fecho de metal e abriu a tampa. A parte superior continha uma seleção de brincos, de diversas cores. A maioria era grande e chamativa, mas não pareciam caros. Na bandeja inferior, havia um relógio Timex infantil, algumas correntes de prata barata e alguns broches de fantasia; um imitava um trabalho de tricô, com agulhas de miniatura; o outro, um peixe voador; e o terceiro, uma criatura esmaltada e lustrosa que parecia ser um gato de outro planeta. Era difícil apurar algo significativo a partir daquele conteúdo.
- Ela gostava de brincos - concluiu ele, fechando a caixa. - Seja lá quem estivesse saindo com ela, não era do tipo que dá joias caras de presente.
Janice alcançou o fundo da gaveta e sacou lá de trás um maço de fotografias. Ao que parecia, Rosie havia atacado o álbum de família e feito a sua própria seleção. Era um típico apanhado de fotos familiares: uma foto do casamento dos pais, Rosie e os irmãos crescendo, fotos sortidas que cobriam as últimas três décadas, algumas fotos de bebês e alguns instantâneos de Rosie com colegas de escola, fazendo careta para a câmera com os seus uniformes de madras. Nada de fotos instantâneas de cabine com os seus namorados. Para falar a verdade, nada de namorados. Maclennan folheou-as rapidamente e depois as colocou de volta no maço.
- Janice, vamos ver se achamos alguma coisa um pouquinho mais produtiva para fazer. - Deu uma última olhada ao redor do quarto que havia lhe contado bem menos do que ele esperava sobre Rosie Duff. Uma garota que sonhava com uma realidade mais glamourosa. Uma garota introspectiva, discreta. Uma garota que levara os seus segredos para o túmulo, provavelmente protegendo o seu assassino no processo.
Quando estavam voltando de carro para St. Andrews, o rádio de Maclennan estalou. Ele mexeu nos botões, tentando encontrar sinal. Alguns segundos depois, a voz de Burnside surgiu, alta e clara. Ele parecia animado:
- Senhor, acho que encontramos uma coisa.
Alex, Mondo e Esquisito haviam cumprido o seu turno empilhando produtos nas prateleiras do mercado de cabeça baixa, torcendo para que ninguém os reconhecesse da primeira página do jornal Daily Record. Compraram uma pilha de jornais e caminharam pela High Street até o café que costumavam frequentar quando eram adolescentes.
- Sabia que um a cada dois adultos na Escócia lê o Record? - comentou Alex, melancólico.
- E o outro não sabe ler - respondeu Esquisito, olhando para a foto surpresa dos quatro na porta de casa. - Meu Deus, olha só a nossa cara. Dava no mesmo se tivessem colocado em letras garrafais "Canalhas mentirosos suspeitos de estupro e assassinato". Qualquer pessoa que vir essa foto vai achar que somos culpados.
- É, realmente não posso dizer que essa é a minha melhor foto - disse Alex.
- Mas você se deu bem, você estava lá trás, a gente mal vê a sua cara. E Ziggy está virado de costas. Eu e Esquisito é que ficamos de frente - reclamou Mondo. - Vamos ver o que saiu nos outros jornais.
Uma foto parecida apareceu no Scotsman, no Glasgow Herald e no Courier, mas, por sorte, nas páginas internas. O crime saiu na primeira página de todos, com exceção do Courier. Nada tão insignificante quanto um assassinato poderia tomar o lugar dos preços das ações e dos anúncios na página principal.
Ficaram sentados, bebericando os seus cafés espumosos, lendo as matérias em silêncio.
- Acho que podia ser pior - comentou Alex.
Esquisito fez uma expressão de incredulidade.
- Pior, como?
- Pelo menos eles escreveram os nossos nomes direito. Até mesmo o de Ziggy.
- Grandes merdas. Admito que eles se seguraram para não nos chamar de suspeitos. Mas é só isso o que a gente pode dizer a favor deles. Isso aqui passa uma péssima imagem da gente, Alex. Você sabe disso.
- Todo mundo que a gente conhece vai ver esses jornais - disse Mondo. - Todo mundo vai nos encher o saco por causa disso. Se esses são os meus quinze minutos de fama, podem ir para o inferno.
- Todo mundo ia ficar sabendo mesmo, de qualquer jeito - disse Alex. - Você sabe como é essa cidade, conhece a mentalidade provinciana das pessoas. Ninguém tem mais o que fazer, a não ser ficar fofocando sobre os vizinhos. Não precisa de jornal para espalhar as notícias por aqui. O lado bom é que metade da universidade mora na Inglaterra, então não vão nem ficar sabendo a respeito. E quando voltarmos para lá, depois do Ano-Novo, a história já vai ter morrido.
- Você acha? - Esquisito fechou o Scotsman com um ar de conclusão. - Vou te dizer uma coisa, a gente tem mais é que rezar para Maclennan descobrir logo quem fez isso e prender o sujeito.
- Por quê? - perguntou Mondo.
- Porque senão vamos ficar conhecidos pro resto da vida como os caras que conseguiram se safar de um assassinato.
Mondo tinha a expressão de um homem que havia acabado de saber que tinha um câncer terminal.
- Você está falando sério?
- Nunca falei tão sério na minha vida - disse Esquisito. - Se eles não prenderem ninguém pelo assassinato de Rosie, as pessoas só vão lembrar que fomos nós quatro que passamos a noite na delegacia. É óbvio, cara. Vamos receber um veredicto que não pode ser provado, sem irmos a julgamento. "Todo mundo sabe que foram eles, a polícia só não conseguiu provar" - acrescentou ele, imitando uma voz de mulher. - Acorda, Mondo, você nunca mais vai conseguir trepar novamente. - Ele riu, perverso, sabendo que havia atingido o calcanhar de aquiles do amigo.
- Vá se foder, Esquisito. Pelo menos, vou ter do que me lembrar - rebateu Mondo.
Antes que algum deles pudesse dizer mais alguma coisa, foram interrompidos por uma chegada inesperada. Ziggy surgiu diante deles, sacudindo o cabelo molhado de chuva.
- Achei que encontraria vocês aqui - disse ele.
- Ziggy, Esquisito está falando que... - começou Mondo.
- Deixe isso pra lá. Maclennan está aqui. Quer conversar com nós quatro de novo.
Alex ergueu as sobrancelhas.
- Ele quer levar a gente de volta pra St. Andrews?
Ziggy fez um gesto negativo com a cabeça.
- Não. Está aqui em Kirkcaldy. Quer que a gente encontre com ele na delegacia local.
- Merda - disse Esquisito. - O meu pai vai enlouquecer. Era para eu estar de castigo. Ele vai achar que eu estou mandando um foda-se para ele. Não dá pra dizer que fui parar na delegacia.
- Agradeçam ao meu pai por não termos que voltar para St. Andrews - disse Ziggy. - Ele ficou furioso quando Maclennan apareceu lá em casa. Fez um escândalo, acusou de estar nos tratando como criminosos, quando na verdade fizemos o possível para salvar Rosie. Teve uma hora que eu cheguei a achar que o meu pai ia bater nele com o jornal. - Ele sorriu. - Fiquei orgulhoso dele.
- Mandou bem - disse Alex. - Então, onde está Maclennan?
- Lá fora, no carro dele. Com o carro do meu pai estacionado do lado. - Ziggy sacudiu os ombros em uma gargalhada. - Acho que Maclennan nunca se deparou com alguém como o meu velho.
- Então temos que ir pra delegacia agora? - perguntou Alex.
Ziggy assentiu com a cabeça.
- Maclennan está nos esperando. Ele disse que o meu pai pode nos levar até lá, mas que não está a fim de perder tempo por aqui.
Dez minutos depois, Ziggy estava sentado a sós em uma sala de interrogatório. Quando chegaram à delegacia, Alex, Esquisito e Mondo foram levados para uma outra sala de interrogatório, sob o olhar atento de um guarda. Karel Malkiewicz havia sido abandonado sem cerimônia na recepção e Maclennan havia lhe dito, abruptamente, que esperasse por lá. E Ziggy havia sido levado para dentro, escoltado por Maclennan e Burnside, que o deixara mofando na sala, esperando.
Eles sabem o que estão fazendo, pensou ele, pesaroso. Deixá-lo isolado daquele jeito era a melhor receita para torná-lo inquieto. E estava funcionando. Embora não demonstrasse nenhum sinal aparente de tensão, Ziggy sentia-se tenso como uma corda de piano, vibrando de ansiedade. Os cinco minutos mais longos da sua vida chegaram ao fim quando os dois detetives reapareceram e sentaram-se diante dele.
Os olhos de Maclennan queimavam os seus, o seu rosto delgado enrijecido em um esgar de emoção reprimida.
- Mentir para a polícia é coisa séria - disse ele, sem preâmbulos, a voz entrecortada e rude. - Não é crime, mas também nos faz pensar o que exatamente você tem a esconder. Você teve uma noite toda para pensar direitinho. Gostaria de revisar o seu depoimento anterior?
Ziggy sentiu no peito o choque de um gélido espasmo de medo. Eles sabiam de alguma coisa. Estava na cara. Mas o quê? Não disse nada, esperando que Maclennan prosseguisse.
Maclennan abriu a sua pasta e retirou a folha com impressões digitais que Ziggy assinara na véspera.
- Essas são as suas impressões digitais?
Ziggy fez um gesto afirmativo com a cabeça. Sabia o que estava por vir.
- Você pode nos explicar como elas apareceram no volante e na marcha de uma Land Rover, registrada em nome de um Sr. Henry Cavendish, encontrada abandonada essa manhã no estacionamento de uma unidade industrial em Largo Road, St. Andrews?
Ziggy fechou os olhos por um momento.
- Sim, eu posso. - Fez uma pausa, tentando organizar os seus pensamentos. Havia ensaiado aquela conversa na cama pela manhã, mas todas as suas falas o abandonaram diante daquela realidade assustadora.
- Estou esperando, Sr. Malkiewicz.
- A Land Rover pertence a um dos estudantes que dividem a casa conosco. Nós a pegamos emprestada ontem à noite, para irmos à festa.
- Pegaram emprestada? Quer dizer que o Sr. Cavendish lhes deu permissão para sair por aí com a Land Rover dele? - avançou Maclennan, recusando-se a deixar Ziggy alcançá-lo.
- Não, não exatamente - Ziggy desviou o olhar de Maclennan, incapaz de encará-lo. - Olha, eu sei que não fizemos bem em pegar o carro, mas não foi nada de mais. - Assim que as palavras saíram da sua boca, Ziggy soube que tinha falado uma besteira.
- Isso é crime. E tenho certeza de que você está ciente disso. Então, vocês furtaram a Land Rover e a levaram para a festa. Isso não explica como ela foi parar onde nós a encontramos.
A respiração de Ziggy agitava-se no peito, como uma mariposa enclausurada.
- Eu a levei até lá, por segurança. Estávamos bebendo e eu não queria que nenhum de nós se sentisse tentado a dirigi-la bêbado.
- Quando foi exatamente que você a levou para lá?
- Não sei ao certo. Provavelmente, entre uma e duas horas da manhã.
- Você já devia ter bebido bastante também, a essas alturas. - Maclennan ia de vento em popa, os ombros projetados para a frente, conforme avançava no interrogatório.
- Provavelmente já tinha passado do meu limite, sim. Mas...
- Outro crime. Então você mentiu quando disse que não havia saído da festa? - Os olhos de Maclennan eram como sondas cirúrgicas.
- Estive fora apenas tempo suficiente para levar a Land Rover e voltar a pé. Talvez uns vinte minutos.
- Isso é o que você diz. Conversamos com algumas pessoas que estavam na festa e parece que você não foi muito visto, não. Acho que esteve fora bem mais do que isso. Acho que você encontrou Rosie Duff no caminho e lhe ofereceu uma carona.
- Não!
Maclennan prosseguiu, implacável.
- E aconteceu alguma coisa que deixou você irritado e você a estuprou. Aí percebeu que ela poderia destruir a sua vida se procurasse a polícia. Você entrou em pânico e matou a moça. Sabia que teria que se livrar do corpo, mas como estava com a Land Rover, isso não seria nada de mais. Aí você removeu todos os vestígios de sangue e voltou para a festa. Não foi isso o que aconteceu?
Ziggy balançou a cabeça.
- Não. O senhor entendeu tudo errado. Não encontrei com ela, não encostei nela. Só me livrei do carro antes que alguém sofresse um acidente.
- O que aconteceu com Rosie Duff não foi um acidente. E você foi o responsável.
O medo produzira um rubor em sua face. Passou as mãos no cabelo.
- Olha, o senhor precisa acreditar em mim. Não tive nada a ver com a morte dela.
- E por que eu deveria acreditar em você?
- Porque estou dizendo a verdade.
- Não. O que você está me contando é uma nova versão dos fatos, que cobre o que você acha que eu sei. Isso não tem nada a ver com a verdade.
Fez-se um longo silêncio. Ziggy trincou a mandíbula, sentindo os músculos protuberantes nas suas bochechas.
Maclennan tornou a falar. Dessa vez, o seu tom de voz era mais suave.
- Vamos descobrir o que aconteceu. Você sabe disso. Enquanto conversamos, uma equipe de peritos experientes está analisando cada centímetro daquele carro. Se encontrarmos um pinguinho de sangue, um fio de cabelo de Rosie ou uma única fibra das suas roupas, você vai ficar um bom tempo sem dormir na sua cama. Você poderia poupar o seu sofrimento e o de seu pai agora, contando tudo de uma vez.
Ziggy quase deu uma gargalhada. Era uma jogada tão transparente que deixava flagrante a falta de trunfos na mão de Maclennan.
- Não tenho mais nada a dizer.
- Faça como quiser, filho. Vou prender você por se apoderar e dirigir um veículo sem o consentimento do dono. Você será solto sob fiança e terá que se apresentar na delegacia em uma semana. Sugiro que arrume um advogado, Sr. Malkiewicz.
Esquisito seria o próximo, inevitavelmente. Só podia ser a Land Rover, concluiu ele enquanto esperava, sentado em silêncio na sala de interrogatório. Tudo bem, disse a si mesmo. Contaria a verdade, assumiria a culpa. Não deixaria que os outros se prejudicassem por causa da sua inconsequência. Não o mandariam para a cadeia, não por causa de algo assim tão insignificante. Teria de pagar uma multa e ele daria um jeito de pagar. Poderia arrumar um trabalho de meio expediente. E depois, não havia muito problema em ser um matemático com ficha criminal.
Estava sentado diante de Maclennan e Burnside, com uma postura desleixada e um cigarro pendurado no canto da boca, tentando parecer descontraído.
- Como posso ajudar os senhores? - perguntou ele.
- A verdade seria um bom começo - disse Maclennan. - De alguma maneira, você parece ter esquecido que andou saracoteando por aí em uma Land Rover, quando, supostamente, estava numa festa.
Esquisito abriu as mãos com um gesto.
- Aí você me pegou. Foi apenas o ato de um jovem bem-humorado, senhor.
Maclennan bateu com as mãos na mesa.
- Isso aqui não é brincadeira, rapaz! Houve um assassinato! Então pare de bancar o engraçadinho.
- Mas é verdade, sério. Veja bem, o tempo estava uma merda. Os caras tinham ido na frente para o Lammas enquanto eu terminava de lavar os pratos. Eu estava parado na cozinha, olhando para a Land Rover lá fora e pensei assim: por que não? Henry tinha voltado para a Inglaterra mesmo e não ia fazer mal a ninguém se eu pegasse o carro emprestado por algumas horas. Então, eu peguei e fui até o pub. Os caras ficaram putos comigo, mas quando viram que a neve estava braba, reconheceram que não era uma má ideia, afinal. Então fomos pra festa. Mais tarde, Ziggy levou o carro embora, para impedir que eu fizesse alguma besteira. - Ele deu de ombros. - Sério. Não falamos nada antes porque não queríamos que o senhor perdesse o seu tempo com uma bobagem.
Maclennan olhava fixamente para ele.
- Estou perdendo o meu tempo com você agora. - Ele abriu a sua pasta. - Temos aqui o depoimento de Helen Walker, dizendo que você a convenceu a dar uma volta de carro. Segundo ela, você estava tentando agarrá-la enquanto dirigia. A sua direção tornou-se tão caótica que a Land Rover derrapou e atolou na calçada. Ela pulou para fora do carro e correu de volta para a festa. Ela disse, e estou lendo agora, "ele estava descontrolado".
Esquisito fez uma careta, batendo a cinza de cigarro que caíra no seu blusão.
- Que garota idiota - disse ele, a voz menos confiante do que as palavras.
- O quão descontrolado você estava, filho?
Esquisito ensaiou um riso.
- Mais uma das suas perguntas capciosas. Olha, tudo bem, eu assumo que estava meio empolgado demais, sim. Mas existe uma grande diferença entre se divertir com um carro emprestado e matar uma pessoa.
Maclennan olhou para ele com desprezo.
- Essa é a sua ideia de diversão? Molestar uma moça e assustá-la a ponto de ela preferir correr pela nevasca a ficar sentada em um carro com você? - Esquisito desviou o olhar, suspirando. - Você deve ter ficado furioso. Leva uma mulher para dentro do seu carro furtado, acha que vai impressioná-la e conseguir algo com ela, mas, ao invés, ela sai correndo. Aí, o que acontece? Você vê Rosie na neve e acha que a sua mágica vai funcionar com ela. Só que ela não quer saber disso, repele você o quanto pode, mas você a subjuga. E aí você perde o controle, porque sabe que ela pode destruir a sua vida.
Esquisito levantou-se, de supetão.
- Eu não sou obrigado a ficar aqui ouvindo essa palhaçada! Você fica aí cheio de merda, mas não tem nada concreto contra mim e sabe disso!
Burnside ficou de pé, obstruindo a passagem de Esquisito até a porta enquanto Maclennan se recostou na cadeira.
- Devagar, filho - disse Maclennan. - Você está preso.
Mondo encolheu os ombros em uma frágil defesa contra o que sabia que estava por vir. Maclennan olhou longa e duramente para ele.
- Digitais - disse ele. - As suas digitais no volante de uma Land Rover furtada. Você tem algo a dizer sobre isso?
- Não foi furtada. Apenas emprestada. Furtada é quando você não planeja devolver, não é? - Mondo soou petulante.
- Estou esperando - disse Maclennan, ignorando a resposta.
- Dei carona para uma pessoa, tá legal?
Maclennan curvou-se para a frente, como um cão farejando a presa.
- Quem?
- Uma garota que estava lá na festa. Ela precisava voltar para Guardbridge e eu me ofereci para levá-la em casa. - Mondo enfiou a mão dentro da jaqueta e sacou um pedaço de papel. Havia anotado todos os detalhes sobre a garota enquanto esperava, prevendo aquele momento. De algum modo, evitar dizer o seu nome em voz alta tornava a coisa menos real, menos importante. E depois, chegara à conclusão de que se fizesse a coisa direitinho, pareceria menos culpado. Dane-se se, para isso, tivesse de deixar uma garota mal com os seus pais. - Aqui está, podem perguntar, ela vai confirmar.
- A que horas foi isso?
Ele deu de ombros.
- Não sei. Talvez por volta das duas.
Maclennan olhou para o nome e o endereço no papel. Nenhum dos dois lhe parecia familiar.
- O que aconteceu então?
Mondo deu um sorrisinho convencido, em um momento mundano de cumplicidade masculina.
- Levei ela pra casa. Fizemos sexo. Aí nos despedimos. Então, inspetor, como o senhor vê, eu não tinha nenhum motivo para estar interessado em Rosie Duff, mesmo que encontrasse com ela. O que não aconteceu. Eu tinha acabado de transar. Estava me sentindo bem satisfeito comigo mesmo.
- Você disse que fizeram sexo. Onde, exatamente?
- No banco de trás da Land Rover.
- Você usou preservativo?
- Eu nunca acredito quando elas dizem que estão tomando pílula. O senhor acredita? É claro que usei preservativo. - Agora Mondo sentia-se mais relaxado. Aquele era um território que compreendia, um território no qual os machos se uniam em conluio em uma conspiração de entendimento mútuo.
- O que você fez com ele depois?
- Joguei pra fora pela janela. Ter deixado no carro daria a maior bandeira com o Henry, sabe? - Podia ver Maclennan lutando para descobrir uma nova direção para as suas perguntas. Mondo estava certo. A sua confissão havia bagunçado a linha do interrogatório. Ele não estivera rodando de carro pela neve, frustrado e desesperado por sexo. Então que motivo teria para estuprar e matar Rosie Duff?
Maclennan deu um sorriso intimidador, recusando-se a fazer parte da camaradagem que Mondo supunha estar compartilhando com ele.
- Verificaremos a sua história, Sr. Kerr. Vamos ver se essa moça vai confirmar o que você contou. Porque se ela não confirmar, aí a coisa fica bem diferente, não é mesmo?
9
Nem parecia véspera de Natal. Andando até a padaria para comprar uma torta na hora do almoço, Barry Maclennan experimentou a sensação de ter sido transportado para um universo paralelo. As vitrines das lojas floresciam com decorações espalhafatosas de Natal, luzes artificiais piscavam no crepúsculo e as ruas estavam abarrotadas de pessoas caminhando com dificuldade devido ao peso de gordas sacolas de compras. Tudo aquilo parecia estranho aos seus olhos. As preocupações daquelas pessoas nada tinham a ver com as dele; elas podiam se dar ao luxo de esperar algo mais do que uma ceia de Natal conspurcada pelo amargo gosto da derrota. Já haviam se passado oito dias desde o assassinato de Rosie, e até agora, nenhuma perspectiva de prisão.
Estivera confiante de que a descoberta da Land Rover seria a pedra fundamental que sustentaria o caso contra um ou mais dos quatro estudantes. Principalmente depois dos interrogatórios em Kirkcaldy. As histórias deles eram bastante plausíveis, mas tinham tido um dia para aperfeiçoá-las. E ele ainda estava com a sensação de que não tinham contado toda a verdade, embora fosse difícil precisar onde exatamente estavam mentindo. Não acreditava em quase nada do que Tom Mackie dissera, mas Maclennan era honesto o suficiente para reconhecer que a sua incredulidade poderia estar relacionada à antipatia profunda que nutria pelo estudante de matemática.
Ziggy Malkiewicz era astuto, disso ele estava ciente. Se ele fosse o assassino, Maclennan sabia que não chegaria a lugar algum até obter provas concretas; o estudante de medicina não ia entregar os pontos. Julgara ter colocado a história de Davey Kerr abaixo quando a moça em Guardbridge negou ter feito sexo com ele. Mas Janice Hogg, que o acompanhou por uma questão de decoro, saíra de lá convencida de que a moça estava mentindo, tentando equivocadamente proteger a sua reputação. De fato, quando ele mandou Janice novamente até lá para conversar com a moça a sós, ela reconsiderou e admitiu ter deixado Kerr fazer sexo com ela. Não parecia ter sido uma experiência que ela estava ansiosa para repetir. O que, Maclennan pensou, era algo interessante. Talvez Davey Kerr não estivesse assim tão satisfeito e animado quanto fingira estar.
Alex Gilbey era um possível candidato, o problema é que não havia nenhuma evidência de que dirigira a Land Rover. As suas digitais estavam por toda parte no interior do veículo, mas não chegavam nem perto do lugar do motorista. O que não livrava a sua cara, entretanto. Se Gilbey tivesse assassinado Rosie, possivelmente teria pedido a ajuda dos outros, e era bem provável que eles tivessem ajudado; Maclennan não duvidava da força do elo que os unia. E se Gilbey tivesse conseguido um encontro com Rosie, que tivesse terminado muito mal, Maclennan tinha certeza absoluta de que Malkiewicz não teria pensado duas vezes antes de fazer tudo o que pudesse para proteger o amigo. Gilbey sabendo disso ou não, Malkiewicz estava apaixonado por ele, concluíra Maclennan, baseando-se estritamente no seu instinto.
Mas havia algo mais do que o seu instinto em jogo. Após a frustrante série de interrogatórios, estava prestes a voltar para St. Andrews quando uma voz familiar o chamou.
- Ei, Barney, ouvi dizer que você estava na área - ecoou a voz no breu do estacionamento.
Maclennan virou-se para trás.
- Robin? É você?
Uma figura elegante em um uniforme de polícia surgiu em uma poça de luz. Robin Maclennan era quinze anos mais novo do que o irmão, mas a semelhança era impressionante.
- Achou que ia sair de fininho, sem dar ao menos um olá?
- Eles me informaram que você estava fazendo a ronda.
Robin alcançou o irmão e o cumprimentou com um aperto de mão.
- Acabei de voltar para um lanchinho. Pensei ter visto você quando estacionamos. Venha tomar um café comigo antes de ir embora. - Ele sorriu e deu um soco camarada no ombro de Maclennan. - Tenho algumas informações e acho que você vai gostar.
Maclennan franziu as sobrancelhas, vendo o irmão bater em retirada. Robin, sempre confiante no seu charme, não havia sequer esperado a reação do irmão e já estava a caminho do prédio que abrigava a cantina. Maclennan o alcançou na porta.
- Como assim, informações? - perguntou ele.
- Sobre os tais estudantes que você está investigando, em relação ao assassinato de Rosie Duff. Resolvi fazer umas pesquisas, sondar por aí, ver o que as pessoas tinham para dizer.
- Você não devia estar se envolvendo com isso, Robin. O caso não é seu. - Maclennan protestou enquanto seguia o irmão pelo corredor.
- Um crime como esse é caso de todo mundo.
- Mesmo assim. - Se não chegasse a lugar algum com aquele caso, não queria que o seu fracasso respingasse no seu irmão brilhante e carismático. Robin gostava de agradar; ia alcançar um posto bem mais alto do que o seu na polícia, e ele merecia. - Nenhum deles tem ficha criminal. Eu já verifiquei.
Robin virou-se quando entraram na cantina e acendeu novamente o seu sorriso de cem watts.
- Escuta, essa aqui é a minha área. Consigo fazer com que as pessoas me digam coisas que não vão dizer pra você.
Intrigado, Maclennan seguiu o irmão até uma mesa de canto e esperou pacientemente enquanto Robin buscava os cafés.
- Então, o que você sabe?
- Bem, os seus rapazes não são exatamente inocentes por essas bandas. Quando tinham uns treze anos, foram pegos furtando numa loja.
Maclennan deu de ombros.
- Quem nunca furtou uma coisinha aqui ou ali quando era criança?
- É, mas não foram apenas algumas barras de chocolate ou um maço de cigarros. Foi o que podemos chamar de Furto Desafio Fórmula 1. Parece que apostaram para ver quem conseguia furtar coisas realmente difíceis, só pela diversão. Quase sempre em lojas pequenas. Nada que estivessem querendo ou precisando em especial. Valia tudo, desde podadeiras de jardim até perfumes. Quem foi pego foi o Kerr, com um vaso chinês em uma mercearia. Os outros três foram surpreendidos esperando por ele na rua. Abriram o jogo em dois tempos quando chegaram à delegacia. Até nos levaram ao galpão no jardim de Gilbey, onde escondiam os produtos roubados. Tudo dentro da embalagem. - Robin balançou a cabeça, intrigado. - O sujeito que efetuou a prisão disse que parecia a caverna de Aladim.
- E o que aconteceu?
- Alguém mexeu os pauzinhos. O pai de Gilbey é diretor de escola, o pai de Mackie joga golfe com o chefe superintendente. Saíram com uma advertência e morrendo de medo.
- Interessante. Mas está longe de ser o Assalto ao Trem Pagador.
Robin concordou com a cabeça.
- Mas tem mais. Há alguns anos, tivemos uma série de brincadeiras com carros estacionados. Os donos voltavam e encontravam o vidro do carro rabiscado por dentro, com batom. Mas os carros estavam trancados. A coisa parou de acontecer de repente, assim como começou, mais ou menos na época em que um carro furtado pegou fogo. Nunca tivemos nada de concreto contra eles, mas o nosso oficial local do serviço secreto acha que eles estavam por trás das brincadeiras. Ao que parece, eles têm um dom para sacanear os outros.
Maclennan assentiu.
- Não posso discordar disso. - Estava intrigado com a história dos carros. Talvez a Land Rover não fosse o único veículo na estrada naquela noite com um dos suspeitos atrás do volante.
Robin estava ansioso para saber mais detalhes sobre a investigação, mas Maclennan fugiu do assunto direitinho. A conversa descambou para amenidades - família, futebol, o que comprar para os pais no Natal - até Maclennan conseguir ir embora. As informações de Robin não eram lá grande coisa, era verdade, mas fizeram com que Maclennan sentisse que havia um padrão nas atividades dos Garotos de Kirkcaldy: a atração pelo perigo. Era o tipo de comportamento que podia facilmente evoluir para algo mais arriscado.
Intuições eram ótimas, mas não valiam nada sem provas concretas. E ele não tinha nenhuma prova concreta. A Land Rover tornara-se um beco sem saída para a perícia. Haviam praticamente desmontado todo o seu interior e não encontraram nada que acusasse a presença de Rosie Duff lá dentro. Tiveram um momento de alegria fugaz quando os oficiais presentes na cena do crime descobriram vestígios de sangue, mas um exame mais minucioso revelou que o sangue não só não pertencia a Rosie Duff, como não era sequer humano.
A única vaga esperança no horizonte surgira na véspera. O dono de uma casa em Trinity Place estava fazendo uma limpeza no jardim quando encontrou uma trouxa de tecido encharcada escondida na sebe. A Sra. Duff a identificara como sendo de Rosie. Agora, a peça estava no laboratório sendo examinada, mas Maclennan sabia que, apesar do pedido de urgência, não teria nenhuma resposta antes do Ano-Novo. Mais uma frustração para engrossar a sua lista.
Não conseguia sequer decidir se autuava Mackie, Kerr e Malkiewicz por terem pegado e dirigido um veículo sem autorização do dono. Todos três haviam cumprido os requisitos da fiança religiosamente e ele estava prestes a autuá-los quando ouviu sem querer uma conversa no clube da polícia. Estava protegido dos olhares dos policiais que conversavam por uma banqueta, mas reconheceu as vozes de Jimmy Lawson e Iain Shaw. Shaw era a favor de imputarem quantas acusações pudessem contra os estudantes. Mas, para a surpresa de Maclennan, Lawson era contra.
- Isso só pega mal pra gente - disse o policial. - Dá a impressão de que somos mesquinhos e vingativos. É como colocar um anúncio dizendo: Olha, não conseguimos pegá-los por assassinato, mas vamos infernizar a vida deles de qualquer jeito.
- E o que há de errado nisso? - quis saber Shaw. - Se são culpados, têm mais é que sofrer.
- E se não forem? - respondeu Lawson, insistente. - Temos que fazer justiça, não temos? E isso não é só sair por aí prendendo os culpados. Temos que proteger os inocentes também. Tudo bem, eles mentiram para Maclennan sobre a Land Rover. Mas isso não os torna assassinos.
- Mas se não foi nenhum deles, quem foi? - desafiou Shaw.
- Ainda acho que tem algo a ver com Hallow Hill. Algum ritual pagão ou algo assim. Você sabe tão bem quanto eu que todo ano recebemos denúncias sobre animais que parecem ter sido vítimas de matança ritualista na floresta Tentsmuir. E nunca damos bola, porque parece algo insignificante diante de preocupações mais sérias. Mas e se um maluco já estava preparando isso, há anos? Afinal de contas, o crime ocorreu bem perto da Saturnália.
- Saturnália?
- Os romanos celebravam o solstício de inverno no dia 17 de dezembro. Mas o feriado não caía sempre no mesmo dia.
Shaw bufou, incrédulo.
- Cruzes, Jimmy, você andou pesquisando mesmo, hein?
- Não, só perguntei lá na biblioteca. Você sabe que eu quero entrar para o DIC. Estou apenas querendo mostrar empenho.
- Então você acha que foi um lunático satanista que matou Rosie?
- Não sei. É só uma teoria. Mas vamos ficar com a cara no chão se apontarmos os quatro estudantes como culpados e acontecer outro sacrifício humano próximo do Beltane.
- Beltane? - perguntou Shaw, perdido.
- Final de abril, início de maio. Megafestival pagão. Por isso, eu acho que devíamos pensar duas vezes antes de partir para cima dos garotos, até termos algo mais concreto contra eles. Afinal, se eles não tivessem encontrado o corpo de Rosie, teriam devolvido o carro e ninguém teria ficado sabendo, ninguém teria sido prejudicado. Eles tiveram azar, só isso.
Terminaram as suas bebidas e saíram. Mas Maclennan não conseguia tirar as palavras de Lawson da cabeça. Ele era um homem justo e não podia deixar de dar razão ao policial. Se tivessem apurado desde o início a identidade do homem misterioso que andava se encontrando com Rosie, mal teriam prestado atenção ao quarteto de Kirkcaldy. Talvez estivesse sendo duro com eles simplesmente porque não tinha para onde desviar o seu foco. Por mais desconfortável que fosse ter de ser lembrado das suas obrigações por um garoto de uniforme, Lawson convencera Maclennan que devia desistir de autuar Malkiewicz e Mackie.
Por enquanto, pelo menos.
Nesse ínterim, ia aproveitar para sondar mais um pouco, colher informações. Tentar descobrir se alguém estava sabendo de rituais satânicos naquela área. O problema é que não fazia nem ideia de por onde começar. Talvez mandasse Burnside conversar com alguns dos padres locais. Não pôde evitar um sorriso ao pensar que essa conversa de rituais satânicos em pleno Natal certamente ia desviar a atenção dos padres do Jesus recém-nascido.
Esquisito se despediu de Alex e de Mondo no fim do expediente e seguiu em direção ao passeio. Encolhendo os ombros por causa do vento gelado, enterrou o queixo no cachecol. Tinha de terminar de fazer as suas compras de Natal, mas precisava de um tempo sozinho antes de encarar a incansável euforia festiva da High Street.
A maré estava baixa, então ele desceu pelos degraus escorregadiços do passeio até a praia. A areia molhada estava da cor de cimento na luz acinzentada do crepúsculo e grudava nos seus sapatos enquanto ele andava. O que combinava perfeitamente com o seu humor. Nunca estivera tão deprimido na vida.
O clima na sua casa estava mais beligerante do que o normal. Tivera de contar ao pai que havia sido preso e a sua revelação provocara uma saraivada constante de críticas e alfinetadas sobre o seu fracasso como bom filho. Tinha de justificar cada minuto passado fora de casa, como se tivesse dez anos de idade novamente. E o pior de tudo era que Esquisito não conseguia sequer sentir-se por cima. Sabia que tinha feito besteira. Chegava quase a achar que merecia o desprezo do pai e isso era o que o deixava ainda mais deprimido. Sempre conseguira consolar-se acreditando que tinha razão. Mas dessa vez, ultrapassara todos os limites.
O trabalho também não estava grande coisa. Chato, repetitivo e humilhante. Em outros tempos, teria transformado tudo em uma grande piada, uma oportunidade para criar confusões e pregar peças. A pessoa que teria adorado perturbar os seus supervisores com o aval de Alex e Mondo em uma série de brincadeiras parecia um estranho distante para Esquisito agora. O que acontecera a Rosie Duff e o seu envolvimento no caso o forçaram a reconhecer que ele era mesmo o inútil que seu pai acreditava que ele fosse. E essa não era uma descoberta confortável.
Também não conseguia encontrar consolo nos amigos. Pela primeira vez, estar com os outros não lhe dava a sensação de ter sido absorvido em um sistema de apoio. Pelo contrário: era como um lembrete de todos os seus defeitos. Não conseguia deixar de se sentir culpado quando estava com eles, pois havia prejudicado a todos com as suas atitudes, ainda que nenhum deles o culpasse por isso.
Não conseguia nem imaginar como enfrentaria o próximo semestre. Algas surgiam e escorregavam sob os seus pés enquanto caminhava até o final da praia e começava a subir os degraus largos em direção a Port Brae. Assim como as algas, ele também se sentia coberto de lodo e inconstante.
À medida que a noite caía e a luz apagava-se no poente, Esquisito seguia rumo às lojas. Hora de fingir que voltava a ser parte do mundo novamente.
10
Ano-Novo, 1978; Kirkcaldy, Escócia
Haviam feito um pacto, quando tinham quinze anos, na primeira vez que os pais os deixaram participar do first footing.[5] Na véspera do Ano-Novo, à meia-noite, os quatro Garotos de Kirkcaldy se encontrariam na Town Square e virariam o ano juntos. Até então, haviam cumprido a promessa todo ano, lado a lado aos solavancos enquanto os ponteiros do relógio da praça aproximavam-se das doze badaladas. Ziggy trazia o seu rádio transistor para assegurar-se de que ouviriam o badalar dos sinos e eles passavam adiante um para o outro a bebida que conseguiam trazer consigo. Comemoraram o seu primeiro Ano-Novo juntos com uma garrafa de xerez doce e quatro latas de cerveja. Atualmente, preferiam uma garrafa de uísque.
Não havia uma comemoração oficial na praça mas, nos últimos anos, grupos de jovens passaram a gostar de se reunir lá. Não era um lugar particularmente atraente, em grande parte porque a Town House lembrava um dos produtos menos atraentes da arquitetura soviética, com a sua torre do relógio esverdeada. Mas aquele era o único espaço ao ar livre no centro da cidade, tirando a rodoviária, que era ainda mais sem graça. A praça, pelo menos, ostentava uma árvore de Natal, o que a tornava ligeiramente mais festiva do que a rodoviária.
Naquele ano, Alex e Ziggy chegaram juntos. Ziggy o buscara em casa e convencera Mary Gilbey com o seu charme a lhes dar uma dose de uísque, por causa do frio. Com os bolsos cheios de biscoitos caseiros amanteigados, pãezinhos que ninguém ia comer e bolo com passas brancas, passaram pela estação de trem e pela biblioteca, pelo Adam Smith Centre, com os seus cartazes anunciando o espetáculo Babes in the Wood com Russell Hunter e os Patton Brothers, e pelo cemitério onde repousavam os heróis de guerra. Começaram a conversar, especulando se Esquisito ia conseguir convencer o pai a sair do castigo no Hogmanay.
- Ele está muito estranho ultimamente - disse Alex.
- Gilly, ele é estranho. É por isso que o chamamos de Esquisito.
- Eu sei, mas ele anda diferente. Eu percebi, trabalhando junto com ele. Ele está meio submisso. E muito calado.
- Vai ver que é porque não está podendo ter acesso a álcool e drogas - disse Ziggy, debochado.
- Mas ele não está nem rebelde. Aí é que está. Você conhece a peça. Na hora em que ele percebe que tem alguém disposto a sacanear, é com ele mesmo. Mas ele tem abaixado a cabeça, não tem nem respondido aos supervisores quando eles enchem o saco. Ele fica parado, ouvindo, e aí faz o que eles querem que ele faça. Você acha que tem a ver com essa história da Rosie?
Ziggy deu de ombros.
- Pode ser. Na hora, ele levou numa boa, mas depois ficou fora de si. Para falar a verdade, eu mal falei com ele depois do dia em que Maclennan apareceu por aqui.
- Eu também só encontrei com ele no trabalho. Assim que dá a hora de ir embora, ele se manda. Não tem nem topado ir tomar um café comigo e com Mondo.
Ziggy fez uma careta.
- É de se admirar que Mondo tenha tempo para tomar café.
- Pega leve com ele. Foi a maneira que ele encontrou para lidar com a situação. Quando está indo até os finalmentes com uma garota, esquece o assassinato. Daqui a pouco, vai bater o seu próprio recorde - acrescentou Alex com um sorriso.
Atravessaram a rua e desceram a Wemyssfield, a pequena rua que dava para a praça. Tinham o andar confiante dos que se sentem em casa, em um lugar tão familiar que lhes conferia uma espécie de propriedade. Faltavam dez minutos para a meia-noite quando desceram os degraus largos e baixos que davam para a área asfaltada fora da Town House. Já havia vários grupos passando garrafas de mão em mão. Alex olhou à sua volta, para ver se conseguia localizar os outros.
- Ali, perto do Correio - disse Ziggy. - Mondo trouxe a sua última conquista. E, ah, Lynn também está lá com eles. - Ele apontou para a esquerda e eles avançaram para encontrar com os outros.
Após os cumprimentos e a constatação geral de que provavelmente Esquisito não ia aparecer, Alex se viu ao lado de Lynn. Ela estava crescendo, pensou ele. Não era mais uma criança. Com as suas feições élficas e os seus cachos negros, era uma versão feminina de Mondo. Mas, por mais paradoxal que fosse, os elementos que enfraqueciam o rosto dele tinham o efeito oposto no de Lynn. Não havia absolutamente nada de frágil nela.
- E aí, como é que tá? - perguntou Alex. Não era a melhor das abordagens, mas ele também não queria que pensassem que ele estava cantando uma garota de quinze anos.
- Tudo ótimo. Passou um bom Natal?
- Nada mal. - Ele franziu o rosto. - Foi meio difícil não pensar na... você sabe.
- Sei. Eu também não consegui parar de pensar nela. Fiquei imaginando como a família deve estar. Quando ela morreu, eles provavelmente já tinham comprado os presentes de Natal e tudo. Deve ter sido uma lembrança horrível, ficar com os presentes dentro de casa.
- Eu acho que tudo deve ser uma lembrança horrível. Bom, vamos mudar de assunto, né? Como vai a escola?
Lynn murchou. Ela não queria ser lembrada da diferença de idade entre eles, percebeu Alex.
- Tudo bem. Termino o primeiro grau esse ano. E depois, o segundo. Não vejo a hora de me livrar da escola e começar a minha vida.
- Você já sabe o que vai querer fazer? - perguntou Alex.
- Escola de Arte de Edimburgo. Quero me formar em Belas-Artes e depois ir para o Instituto de Arte Courtauld, em Londres, aprender a restaurar quadros.
A sua confiança era bonita de se ver, pensou Alex. Algum dia tivera tanta certeza? Ele foi parar em História da Arte porque jamais tivera confiança no seu talento como artista. Ele assobiou:
- Sete anos de estudo? É um compromisso e tanto.
- É o que é preciso para o que eu quero fazer.
- Por que quer restaurar quadros? - Estava sinceramente curioso.
- A restauração me fascina. Primeiro a pesquisa, depois a ciência e finalmente o salto no escuro quando você tem que entrar em sintonia com o que o artista realmente queria que nós víssemos. É empolgante, Alex.
Antes que ele pudesse responder, os outros gritaram:
- Ele veio!
Alex virou-se para ver Esquisito, a sua silhueta destacando-se contra o imponente e cinzento Tribunal de Justiça. Ele balançava os braços como um espantalho desconjuntado, correndo aos gritos. Alex olhou para o relógio na torre. Faltava apenas um minuto.
Logo Esquisito juntou-se a eles, abraçando a todos e sorrindo.
- Eu pensei, isso é ridículo. Eu sou um adulto e o meu pai está me impedindo de virar o ano com os meus amigos. O que é que há? - Ele balançou a cabeça. - Se ele me colocar pra fora, posso dormir na sua casa, Alex?
Alex lhe deu um murro no ombro.
- Por que não? Já estou acostumado com o seu ronco nojento mesmo.
- Silêncio, pessoal. - A voz de Ziggy abafou a gritaria. - Os sinos.
Um silêncio profundo desceu sobre eles enquanto tentavam ouvir a muito custo o longínquo repique do Big Ben pelo rádio de Ziggy. Ao soar meia-noite, os Garotos de Kirkcaldy entreolharam-se. Suspenderam os braços como se movidos por um único barbante e deram as mãos na última badalada.
- Feliz Ano-Novo - disseram em uníssono. Alex percebeu que os amigos estavam tão comovidos quanto ele.
Separaram-se e o momento se foi. Ele virou-se para Lynn e a beijou castamente nos lábios.
- Feliz Ano-Novo - disse ele.
- Eu acho que vai ser, sim - respondeu ela, ficando com o rosto corado.
Ziggy abriu a garrafa de uísque e passou de mão em mão. Os grupos na praça comemoravam, todo mundo se abraçando e desejando um feliz ano-novo a estranhos, com bafo de uísque e abraços generosos. Algumas pessoas que os conheciam da escola compadeceram-se da falta de sorte dos quatro, ao encontrarem o corpo da moça morta na neve. Não havia malícia em suas palavras, mas Alex pôde ver nos olhos dos amigos que eles detestavam aquilo tanto quanto ele. Um grupo de garotas estava improvisando uma dança típica escocesa para oito pessoas em volta da árvore de Natal. Alex olhou à sua volta, incapaz de articular as emoções que cresciam no seu peito.
Lynn tomou a sua mão, discretamente.
- Em que você está pensando, Alex?
Ele olhou para ela e forçou um sorriso cansado.
- Estava pensando em como as coisas seriam mais fáceis se eu pudesse congelar o tempo agora. Se eu nunca mais tivesse que voltar para St. Andrews.
- Não vai ser tão ruim quanto você pensa. São só seis meses e depois você vai ficar livre.
- Eu poderia vir nos finais de semana. - As palavras saíram de sua boca antes mesmo de Alex saber que ia dizê-las. Ambos sabiam o que elas significavam.
- Eu ia gostar muito - respondeu ela. - Só não vamos contar nada pro chato do meu irmão, ok?
Novo ano, novo pacto.
No clube social da polícia em St. Andrews, a bebida já estava rolando há algumas horas. O badalar dos sinos quase passou despercebido graças à barulhenta animação da dança de Hogmanay. O único senão no alegre tumulto daqueles que não podiam se dar ao luxo de serem sempre assim por causa da profissão era a presença das esposas, noivas e qualquer outra mulher que conseguiam convencer a participar da festa, para quebrar o galho dos solteiros.
Ruborizado pelo esforço físico, Jimmy Lawson estava ladeado por duas senhoras de meia-idade que trabalhavam como telefonistas na delegacia em uma dança típica. A bonita recepcionista de consultório de dentista que havia vindo com ele fugira para o toalete, exausta com o seu entusiasmo, aparentemente sem limites, pela dança escocesa. Ele não estava ligando muito: sempre havia mulheres interessadas em dançar um pouco no Ano-Novo e Lawson gostava de descarregar a tensão dançando. Ajudava a compensar a intensidade que ele empregava no trabalho.
Barney Maclennan estava encostado no bar, entre Iain Shaw e Allan Burnside, cada um segurando uma dose generosa de uísque.
- Meu Deus, olhe só para eles - resmungou Maclennan. - O pior é que essa provavelmente não é a última dança.
- Em noites assim, vale a pena ser solteiro - disse Burnside. - Já pensou ter alguém te arrastando para o salão? Fazendo com que abandone uma boa dose de uísque?
Maclennan não respondeu. Perdera a conta das vezes que tentara se convencer de que estava melhor sem Elaine. Só conseguia por algumas horas. Ainda estavam juntos no último Ano-Novo, mas só para constar. Aguentavam-se com menos determinação do que os dançarinos aguentavam girar sem cessar com os seus pares no salão. Algumas semanas após o Ano-Novo, ela foi embora. Estava cansada de estar sempre abaixo do trabalho na escala de prioridades dele.
Percebendo a ironia da lembrança, Maclennan recordou-se de uma de suas queixas: "Eu não ia nem ficar tão chateada assim se você estivesse trabalhando em casos importantes, como um estupro, um assassinato. Mas você fica até tarde perdendo tempo com assaltantes baratos e furtos de carro. Como é que você acha que eu me sinto, sendo trocada pelo carro de um velho babaca?" Bom, o desejo dela virara realidade. Ali estava ele, um ano depois, envolvido no maior caso da sua carreira. E, até agora, todos os seus esforços haviam sido em vão.
Todos os caminhos davam em becos sem saída. Não haviam encontrado uma testemunha sequer que tivesse visto Rosie com um homem no início de novembro. Para a sorte do homem misterioso, aquele havia sido um inverno cruel e as pessoas estavam mais interessadas no palmo de chão diante de si do que em quem estava saindo com quem não devia. Sorte do assassino, azar da polícia. Localizaram os dois últimos namorados de Rosie. Um havia terminado com ela para ficar com uma garota, com quem ainda estava namorando. Não tinha muito o que dizer sobre a garçonete assassinada. Rosie havia dispensado o outro no início de novembro e, a princípio, ele parecia um suspeito promissor. Havia relutado um pouco em aceitar o término e fora visto algumas vezes criando problemas no pub. Mas tinha um bom álibi para aquela noite em questão. Estivera na festa de Natal do escritório onde trabalhava até depois de meia-noite, depois fora para casa com a secretária do chefe e passara a noite com ela. Ele admitiu que havia ficado magoado quando Rosie terminou o namoro na época, mas que, para ser sincero, estava se divertindo muito mais com uma mulher um pouco mais generosa em termos de favores sexuais.
Quando Maclennan o pressionou para que explicasse melhor o que queria dizer com aquele comentário, ele foi tomado por orgulho masculino e não quis responder. Mas, sob pressão, admitiu que ele e Rosie jamais fizeram sexo. Faziam outras coisas; Rosie não era uma puritana. Mas recusava-se a ir até o fim. Ele mencionou sexo oral e masturbações, mas afirmou que nunca foram além disso.
Então Brian tinha razão, em parte, quando disse que a irmã era certinha. Maclennan compreendia que, na hierarquia daquelas coisas, Rosie estava longe de ser uma doidivanas. Mas um conhecimento íntimo das suas tendências sexuais não o ajudava a encontrar o seu assassino. Lá no fundo, ele sabia que era bem provável que o homem com quem ela se encontrou na noite do crime havia sido o homem que a estuprara e assassinara. Poderia ser Alex Gilbey ou qualquer um dos seus amigos. Ou não.
Os seus colegas detetives argumentaram que devia haver um bom motivo para o namorado misterioso não ter aparecido até agora. "Talvez ele seja casado", dissera Burnside. "Talvez esteja com medo de colocarmos a culpa nele", acrescentara Shaw, cínico. Eram explicações razoáveis, Maclennan sabia disso. Mas não alteravam a sua convicção pessoal. As teorias de Jimmy Lawson sobre rituais satânicos eram besteira. Os padres com quem Burnside conversara jamais haviam ouvido um rumor sequer sobre algo assim acontecendo por aquelas bandas. E Maclennan achava que eles eram as pessoas mais indicadas para possuir esse tipo de informação. Estava aliviado, de certo modo: o que menos precisava no momento era de pistas falsas. Tinha certeza de que Rosie conhecia o assassino e que caminhara noite afora com ele, confiante.
Assim como milhares de mulheres no país fariam naquela noite de Ano-Novo. Maclennan esperava fervorosamente que todas elas voltassem para casa sãs e salvas.
A aproximadamente cinco quilômetros dali, em Strathkinness, o Ano-Novo começara em um clima bem diferente. Lá, não havia decorações natalinas. Os cartões de Natal empilhados haviam sido esquecidos em uma prateleira. A televisão, que normalmente era a primeira a aclamar o primeiro dia de janeiro, estava desligada e silenciosa em um canto. Eileen e Archie Duff estavam aninhados cada qual em uma cadeira, com copos de uísque intactos ao seu lado. A calmaria opressiva suportava o peso da dor e da depressão. A família Duff sabia, no fundo do coração, que jamais teria um feliz Ano-Novo dali para frente. As festas de fim de ano estariam para sempre maculadas pela morte da filha. Os outros que comemorassem; eles podiam apenas lamentar.
Na copa, Brian e Colin estavam sentados de cabeça baixa em cadeiras revestidas de plástico. Ao contrário dos pais, não estavam tendo muita dificuldade em beber ao ano que chegava. Desde a morte de Rosie, ficara fácil para eles enfiar bebida goela abaixo até não conseguirem mais levar o gargalo aos lábios. A reação dos irmãos à tragédia não fora o recolhimento; estavam mais expansivos do que nunca. Os donos dos pubs em St. Andrews já haviam se acostumado ao ritual de bebedeira dos irmãos Duff. Não tinham outra saída, já que não estavam dispostos a enfrentar a ira da sua volátil clientela, que achava que Colin e Brian mereciam toda solidariedade possível.
Naquela noite, a garrafa de uísque estava mais vazia do que cheia. Colin conferiu as horas no seu relógio.
- Perdemos a meia-noite - disse ele.
Brian olhou para ele, cansado.
- Que se dane. Rosie vai perder todos os anos.
- É. Mas em algum lugar aí fora, quem a matou provavelmente está brindando por ter se safado dessa.
- Foram eles. Tenho certeza de que foram eles. Você viu a foto no jornal? Já viu uns sujeitos com mais cara de culpados do que eles?
Colin esvaziou o copo e apanhou a garrafa, concordando com um gesto de cabeça.
- Não tinha mais ninguém por perto. E eles disseram que ela ainda estava respirando. Então, se não foram eles, como é que o assassino desapareceu? Ele não pode ter evaporado no ar.
- Devíamos tomar uma decisão de Ano-Novo.
- Tipo o quê? Você não vai tentar parar de fumar de novo, vai?
- Estou falando sério. Devíamos fazer uma promessa de verdade. É o mínimo que podemos fazer por Rosie.
- Como assim? Que tipo de promessa?
- Na verdade, é bem simples, Col - Brian levantou o seu copo no ar. Ele o manteve assim, na expectativa. - Se os tiras não conseguirem uma confissão, a gente consegue.
Colin pensou um pouco. Então, levantou o copo e o bateu levemente contra o do seu irmão.
- Se os tiras não conseguirem uma confissão, a gente consegue.
11
As consideráveis ruínas do Castelo Ravenscraig estão localizadas em um promontório rochoso entre duas baías arenosas, oferecendo uma vista magistral do estuário do rio Forth e seus arredores. A leste, um enorme muro de pedra o protege do mar e de possíveis saqueadores. Ele se estende até o porto de Dysart, que está praticamente assoreado, mas que um dia já foi próspero. Na ponta da baía que contorna o castelo, um pouco adiante do pombal que ainda abriga pombos e pássaros marinhos, onde o muro de pedra chega a um ponto em forma de V, há um pequeno mirante, com o teto íngreme bem inclinado e marcas de flechas cravadas na parede.
Desde a pré-adolescência, os Garotos de Kirkcaldy haviam-se apropriado do local como sendo o seu domínio particular. Uma das melhores maneiras de escapar da vigilância dos adultos era saindo para dar uma caminhada. As caminhadas eram tidas como saudáveis e inofensivas. Por isso, quando prometiam passar o dia todo explorando a costa e as florestas, eram sempre agraciados com generosos farnéis para piquenique.
Às vezes, tomavam a direção contrária, passando por Invertiel e indo para longe da feia mina de Seafield, em direção a Kinghorn. Mas, na maioria das vezes, iam para Ravenscraig, inclusive porque o castelo não ficava muito longe da praça onde a carrocinha de sorvete ficava estacionada. Nos dias mais quentes, deitavam-se na grama e davam-se ao luxo de fantasiar como seriam as suas vidas, tanto no futuro próximo como no distante. Recontavam histórias das aventuras do semestre, embelezando-as e cogitando outros desenlaces. Jogavam cartas, em partidas intermináveis de vinte e um. Foi ali que fumaram o seu primeiro cigarro e viram Ziggy mudar de cor e vomitar em um arbusto.
Às vezes, escalavam o muro e ficavam observando os navios no estuário, o vento esfriando o seu corpo e fazendo com que se sentissem na proa de um navio em alto-mar, sentindo a trepidação sob os pés. E quando chovia, abrigavam-se dentro do mirante. Ziggy tinha uma esteira e eles a estendiam sobre o chão lamacento. Mesmo agora, que já se consideravam adultos, ainda gostavam de descer os degraus de pedra que conduziam do castelo até a praia, vagando por entre cascalhos e conchas até o mirante.
Na véspera do retorno a St. Andrews, os quatro se encontraram no bar do porto para tomar um chope na hora do almoço. Com dinheiro no bolso, graças ao emprego temporário de Natal, Alex, Mondo e Esquisito teriam bebido além da conta alegremente. Mas Ziggy os convenceu a sair para dar um passeio. O dia estava quente e claro e o sol se dissolvia em um céu discretamente azul. Caminharam pelo porto, abrindo caminho pelos altos silos do moinho e indo em direção ao lado oeste da praia. Esquisito caminhava um pouco atrás dos outros três e mantinha os olhos no horizonte distante, como quem busca inspiração.
Quando estavam quase chegando ao castelo, Alex se afastou do grupo e subiu no afloramento rochoso que ficava praticamente submerso quando a maré estava alta.
- Conta de novo, quanto foi que ele ganhou?
Mondo não precisava nem parar para pensar antes de responder.
- O ilustre senhor David Boys, mestre pedreiro, recebeu por ordem da rainha Mary de Gueldres, viúva de James II da Escócia, a quantia de seiscentas libras escocesas para a construção de um castelo em Ravenscraig. E ele teve que comprar os materiais com esse dinheiro.
- Que não eram baratos. Em 1461, quatorze vigas de madeira foram cortadas das margens do rio Allan e transportadas até Stirling por sete xelins. E então pagaram a um tal de Andrew Balfour duas libras e dez xelins para cortar, esculpir e transportar essas vigas até Ravenscraig - recitou Ziggy.
- Ainda bem que eu peguei o emprego no mercado - debochou Alex. - Eles pagam bem melhor lá. - Alex jogou a cabeça para trás e olhou para o penhasco do castelo. - Eu acho que os Sinclairs o fizeram bem mais bonito do que teria sido se a nossa cara rainha Mary não tivesse chutado o balde antes de o castelo estar pronto.
- Castelos não precisam ser bonitos - comentou Esquisito, entrando na conversa. - Eles têm que ser um refúgio, uma fortaleza.
- Extremamente utilitários - reclamou Alex, pulando de volta para a areia. Os outros o seguiram, arrastando os pés nos destroços que jaziam à beira da praia, dentro do limite gravado na areia pela marca do alcance da água.
Na metade do caminho, Esquisito falou no tom mais sério que eles já tinham ouvido na vida:
- Eu tenho uma coisa para contar pra vocês - disse ele.
Alex virou-se para olhar para ele e recuou alguns passos. Os outros olharam para trás.
- Aí vem coisa ruim - disse Mondo.
- Eu sei que vocês não vão gostar, mas espero que possam pelo menos respeitar.
Alex pôde ver a ansiedade nos olhos de Ziggy. Mas achava que o amigo não tinha motivos para se preocupar. Fosse lá o que Esquisito estivesse prestes a contar, tinha mais a ver consigo do que com a necessidade de expor alguém.
- Vamos lá, Esquisito. Manda ver - disse Alex, tentando soar encorajador.
Esquisito enterrou as mãos nos bolsos da calça jeans.
- Virei cristão - disse ele, asperamente. Alex o encarava, boquiaberto. Chegou a pensar que ficaria menos surpreso se Esquisito anunciasse que havia matado Rosie Duff.
Ziggy estava urrando de tanto rir.
- Meu Deus, Esquisito, eu estava pensando em uma revelação terrível. Cristão?
Esquisito enrijeceu o maxilar.
- Foi uma revelação. E eu aceitei Jesus na minha vida, como o meu salvador. E eu agradeceria muito se você não ficasse debochando.
Ziggy estava curvado de tanto rir, apertando a barriga.
- Essa é a coisa mais engraçada que eu já ouvi na minha vida... Ai, Deus, acho que vou mijar nas calças. - Ele se apoiou em Mondo, que estava sorrindo de orelha a orelha.
- E eu agradeceria se você não usasse o nome do Senhor em vão - completou Esquisito.
Ziggy renovou as gargalhadas.
- Ai, ai. Como é mesmo que eles dizem? Que o céu entra em festa quando um pecador se arrepende? Eu vou te dizer uma coisa, eles devem estar dançando pelas ruas no paraíso, comemorando por terem arrebanhado um pecador como você.
Esquisito parecia ofendido.
- Eu não estou tentando negar que fiz coisas lamentáveis no passado. Mas tudo isso ficou para trás agora. Eu nasci de novo e a minha ficha está limpa.
- Devem ter precisado de uma borracha bem grande e resistente para apagar a sua ficha. Quando foi que isso aconteceu? - perguntou Mondo.
- Fui no culto, na véspera do Natal - contou Esquisito. - E alguma coisa se iluminou em mim. Então percebi que queria ser lavado no sangue do Cordeiro. Queria ficar limpo.
- Sinistro - comentou Mondo.
- Mas você não disse nada no Ano-Novo - disse Alex.
- Eu queria que vocês estivessem sóbrios quando eu contasse. É uma coisa muito séria, entregar a sua vida a Cristo.
- Desculpa - disse Ziggy, se recompondo. - Mas você é a última pessoa do planeta que eu imaginava dizendo essas palavras.
- Eu sei disso - disse Esquisito. - Mas estou falando sério.
- Vamos continuar a ser seus amigos - disse Ziggy, tentando conter um sorriso pretensioso.
- Desde que você não queira nos converter - disse Mondo. - Você sabe que eu te amo como a um irmão, Esquisito, mas não o bastante para abrir mão de sexo e das bebidas.
- Amar a Jesus não tem nada a ver com isso, Mondo.
- Vamos, gente - interrompeu Ziggy. - Estou congelando, parado aqui. Vamos até o mirante. - Ele foi andando, com Mondo ao seu lado. Alex deixou-se ficar para trás, para acompanhar Esquisito. Estava com muita pena do amigo. Deve ter sido uma coisa horrível, vivenciar uma solidão tão profunda a ponto de ter de recorrer aos crentes para algum consolo. Eu deveria ter dado mais apoio a ele, pensou Alex, sentindo uma pontada de culpa. Talvez não fosse tarde demais.
- Você deve ter se sentido muito estranho, né? - comentou ele.
Esquisito fez um gesto negativo com a cabeça.
- Pelo contrário. Me senti em paz. Foi como se eu finalmente deixasse de ser um estranho no ninho e encontrasse o meu verdadeiro lar. Essa é a melhor maneira de explicar o que senti. Só fui ao culto para fazer companhia à minha mãe. Fiquei sentado lá na igreja Abbotshall, com as velas acesas à minha volta, como costumam ficar no culto do dia 24. Ruby Christie estava cantando Noite Feliz a capela, sem nenhum acompanhamento. Fiquei com o corpo todo arrepiado e, de repente, tudo fez sentido. Eu entendi que Deus deu o seu filho único para expiar os pecados do mundo. E eu estava incluído. Os meus pecados poderiam ser redimidos.
- Legal. - Alex estava constrangido com aquela sinceridade emocionada. Durante todos aqueles anos de amizade, nunca tivera uma conversa daquele gênero com Esquisito. Esquisito, logo ele, cuja única religião, aparentemente, era consumir o maior número de substâncias alucinógenas que pudesse ingerir antes de morrer. - E aí, o que você fez? - Alex teve uma visão fugaz de Esquisito correndo até ao altar e implorando para que os seus pecados fossem perdoados. Aquilo seria realmente constrangedor, pensou ele. O tipo de coisa que faria você suar frio quando já tivesse passado da fase do vamos-louvar-a-Deus e voltado à sua vida normal.
- Nada. Fiquei lá sentado, até o culto acabar, e voltei para casa. Pensei que fosse só naquele dia, uma espécie de experiência mística bizarra. Talvez relacionada com tudo o que a morte de Rosie trouxe à tona. Talvez até algum flashback de ácido. Mas quando acordei, no dia seguinte, senti a mesma coisa. Aí pesquisei no jornal para ver onde haveria cultos de Natal e acabei numa apresentação musical evangélica, lá nos Links.
Oh-oh.
- Devia estar bem vazio na manhã de Natal, né?
Esquisito riu.
- Que nada! O lugar estava lotado. Foi maravilhoso. A música era ótima, as pessoas me trataram como se fôssemos amigos há anos. E, depois do culto, eu fui falar com o pastor. - Esquisito abaixou a cabeça. - Foi um encontro muito emocionante. Enfim, o resultado é que ele acabou me batizando na semana passada. E me deu o nome de uma congregação irmã em St. Andrews. - Olhou para Alex com um sorriso beatificado. - Por isso eu queria contar isso pra vocês hoje. É que eu já vou começar a frequentar a igreja amanhã, quando voltarmos para Fife Park.
A primeira oportunidade que os outros tiveram para discutir a conversão milagrosa de Esquisito foi no dia seguinte, quando ele colocou a sua guitarra elétrica no estojo e saiu, disposto a cruzar a cidade até o culto evangélico próximo ao porto. Ficaram sentados na cozinha e o viram partir noite adentro.
- Bem, esse é o fim da nossa banda - disse Mondo, decisivo. - Eu não vou ficar cantando essas merdas de igreja e "Jesus Me Ama" para qualquer um.
- Já era, meus amigos - concordou Ziggy. - Vou te contar, ele perdeu completamente a noção das coisas, se é que tinha alguma.
- Ele está falando sério, pessoal - disse Alex.
- E isso é bom? Se preparem, porque a coisa agora não vai ser fácil, não - disse Ziggy. - Ele vai começar a trazer os malucos pra cá. E eles vão colocar na cabeça que nós temos de ser salvos, querendo ou não. Perder a banda vai ser o de menos. Vai ser o fim do "Um por todos e todos por um".
- Estou me sentindo meio culpado por tudo isso - disse Alex.
- Por quê? - perguntou Mondo. - Você por acaso o arrastou até lá e o obrigou a ouvir Ruby Christie cantando?
- Ele não teria pirado assim se não estivesse na merda. Eu sei que ele parece, de nós todos, o que encarou melhor essa história do assassinato de Rosie, mas acho que, lá no fundo, a coisa afetou ele pra caramba. E nós estávamos tão voltados para as nossas próprias reações que nem sacamos isso.
- Talvez a coisa não seja assim tão simples - disse Mondo.
- Como assim? - perguntou Ziggy.
Mondo arranhou o bico da bota no chão.
- Na boa, gente. Ninguém aqui sabe que merda Esquisito estava fazendo pra lá e pra cá com aquela Land Rover na noite do crime. Ele disse que não a viu naquela noite, mas só temos a palavra dele como testemunho.
Alex sentiu o chão desabar sob os seus pés. Desde que insinuara uma suspeita para Ziggy, havia se forçado a suprimir pensamentos tão traiçoeiros. Mas agora, Mondo havia dado uma nova forma para o inimaginável.
- Que horror - reclamou Alex.
- É, mas aposto que você pensou a mesma coisa - replicou Mondo, desafiadoramente.
- Esquisito nunca seria capaz de estuprar alguém, muito menos matar - protestou Alex.
- Ele estava doidão naquela noite. Não dá pra saber do que ele é ou não é capaz quando está naquele estado - disse Mondo.
- Chega! - A voz de Ziggy cortou a atmosfera de desconfiança e desconforto como uma navalha. - Você começa a pensar assim e vai parar onde? Eu também estava lá naquela noite. Alex chegou até mesmo a convidar Rosie para a festa. E, no que lhe diz respeito, você demorou pra cacete quando foi levar aquela garota em Guardbridge. O que o atrasou tanto, Mondo? - Ele lançou um olhar feroz para o amigo. - É esse tipo de merda que você quer ouvir?
- Eu não estava me referindo a vocês dois. Não tem a menor necessidade de você partir para cima de mim desse jeito.
- Mas você pode criticar Esquisito, né, sabendo que ele nem está aqui pra se defender. Que belo amigo você é.
- É, mas agora ele é amiguinho de Jesus - debochou Mondo. - O que, se você parar para pensar, é uma reação bem exagerada pro meu gosto. Isso me cheira a culpa.
- Para! - gritou Alex. - Olha só o que vocês estão falando. Já vai ter muita gente disposta a espalhar o veneno entre nós, sem que a gente precise se virar um contra o outro. Precisamos ficar unidos, ou já era.
- Alex tem razão - disse Ziggy, cansado. - Chega de acusações aqui em casa, ok? Maclennan está louco para criar um abismo entre nós. Ele não está nem aí pra quem consegue prender por esse crime, desde que pegue alguém. Precisamos convencê-lo de que não fomos nós. Mondo, no futuro, guarde as suas ideias perniciosas para si mesmo - Ziggy levantou-se. - Eu vou comprar leite e pão, para ver se a gente ao menos consegue tomar uma xícara de café antes daqueles inglesinhos escrotos voltarem e tumultuarem a casa toda com os seus sotaques.
- Eu vou com você. Preciso comprar cigarro - disse Alex.
Quando voltaram, meia hora depois, o mundo tinha virado do avesso. A polícia tinha voltado, em massa, e os seus colegas ingleses estavam parados na porta, com as malas, exibindo expressões de pura incredulidade no rosto.
- Boa-noite, Henry, boa-noite, Eddie - cumprimentou Ziggy, afável, examinando o corredor por cima dos seus ombros, onde Mondo estava sendo intratável com uma policial. - Ainda bem que eu trouxe duas cervejas.
- Que diabos está acontecendo aqui? - quis saber Henry Cavendish. - Não vai me dizer que o cretino do Mackie foi preso com drogas.
- Nada tão prosaico - respondeu Ziggy. - Pelo visto, o assassinato não chegou à imprensa inglesa.
Cavendish resmungou.
- Pelo amor de Deus, não seja tão patético. Pensei que você já tivesse superado essa palhaçada de herói da classe operária.
- Mais respeito, agora temos um cristão entre nós.
- Do que você está falando? Assassinato? Cristãos? - perguntou Edward Greenhalgh.
- Esquisito aceitou Jesus - resumiu Alex. - Nada do tipo da sua igreja anglicana, ele está mais para os pandeiros e para o "Louvemos ao Senhor". Vamos ter grupos de oração na cozinha. - Alex sabia que não havia nada mais divertido do que implicar com aqueles que se julgavam privilegiados. E St. Andrews oferecia constantes oportunidades para tal.
- O que isso tem a ver com o fato de a casa estar cheia de homens da polícia? - perguntou Cavendish.
- Aquela ali no corredor é uma mulher - retrucou Ziggy. - A não ser, é claro, que a polícia de Fife tenha resolvido recrutar travestis particularmente atraentes.
Cavendish cerrou os dentes. Odiava a maneira como os Garotos de Kirkcaldy insistiam em tratá-lo como uma caricatura. Aquele era o motivo principal dele passar tão pouco tempo em casa.
- Por que a polícia está aqui? - perguntou ele.
Ziggy sorriu candidamente para Cavendish.
- A polícia está aqui porque somos suspeitos de assassinato.
- O que ele quer dizer - acudiu Alex prontamente - é que somos testemunhas. Uma das garçonetes do Lammas foi assassinada antes do Natal. E nós encontramos o corpo.
- Estou estarrecido - disse Cavendish. - Não estava sabendo de nada. Coitada da família. E deve ter sido horrível para vocês também, imagino.
- É, não foi nada legal - disse Alex.
Cavendish lançou um olhar para dentro da casa novamente, desconcertado.
- Olha, essa não é uma boa hora para vocês. Vai ser melhor se nós encontrarmos um outro lugar por enquanto. Vamos, Ed. Podemos ficar com Tony e Simon hoje à noite. A gente pode tentar transferência para outro lugar amanhã de manhã. - Ele se afastou e depois olhou para trás, franzindo o cenho. - Cadê a minha Land Rover?
- Bem - disse Ziggy. - É um pouco complicado. Veja bem, a gente pegou ela emprestada e...
- Pegaram emprestado? - Cavendish estava ultrajado.
- Foi mal. Mas o tempo estava péssimo. Não achamos que você fosse ficar chateado.
- Tá, e onde é que ela está agora?
Ziggy estava constrangido.
- Isso você vai ter que perguntar para a polícia. Nós a pegamos emprestada na noite do crime.
A solidariedade de Cavendish evaporou imediatamente.
- Não acredito nisso - grunhiu ele. - A minha Land Rover é parte de uma investigação de assassinato?
- Receio que sim. Eu sinto muito.
Cavendish estava furioso.
- Vocês vão me pagar por isso.
Alex e Ziggy ficaram observando em silêncio, enquanto os outros dois iam embora, carregando as malas com dificuldade. Antes que pudessem falar alguma coisa, precisaram sair da porta para deixar a polícia passar. Havia quatro oficiais uniformizados e alguns homens à paisana. Ignoraram Alex e Ziggy e seguiram para os seus carros.
- O que eles vieram fazer aqui? - perguntou Alex quando finalmente entraram em casa.
Mondo deu de ombros.
- Não disseram nada. Estavam pegando amostras de tinta nas paredes, nos tetos e nos acabamentos em madeira - disse ele. - Escutei um deles falar algo sobre um cardigã, mas não pareciam estar procurando nada nas nossas roupas. Eles fuçaram tudo e perguntaram se nós mudamos a decoração recentemente.
Ziggy achou graça.
- Até parece. Depois eles não sabem por que têm fama de lesados.
- Não estou gostando nada disso - disse Alex. - Pensei que eles tivessem desistido da gente. E aqui estão eles novamente, revirando a casa de cabeça para baixo. Devem ter descoberto uma pista nova.
- Bom, seja lá o que for, a gente não tem motivo pra se preocupar - disse Ziggy.
- Já que você diz - respondeu Mondo, sarcástico. - Mas eu vou continuar me preocupando por enquanto. Como disse Alex, eles tinham deixado a gente em paz, e agora apareceram de novo. Não creio que isso possa ser facilmente ignorado.
- Mondo, nós somos inocentes, esqueceu? Isso quer dizer que a gente não tem motivo pra se preocupar.
- Tá, tudo bem. Mas e Henry e Eddie? - perguntou ele.
- Eles não querem viver com assassinos tresloucados - respondeu Ziggy, dirigindo-se à cozinha.
Alex o seguiu.
- Não queria que você tivesse dito isso - disse ele.
- O quê? Assassinos tresloucados?
- Não. Não queria que você tivesse dito a Henry e Eddie que somos suspeitos de assassinato.
Ziggy deu de ombros.
- Foi uma piada. Henry está mais interessado na sua preciosa Land Rover do que em qualquer outra coisa que possamos ter feito. Isso lhe deu apenas a desculpa perfeita para sair daqui. Além do mais, você foi o que mais saiu ganhando. Com dois quartos sobrando, não vai mais precisar dormir com Esquisito.
Alex pegou a chaleira.
- Mesmo assim. Preferia que você não tivesse plantado a semente. Estou com uma sensação terrível de que todos nós vamos acabar colhendo o que você acabou de plantar.
12
A profecia de Alex tornou-se real muito antes do que ele imaginava. Alguns dias depois, descendo a North Street a caminho do Departamento de História da Arte, ele viu Henry Cavendish e os seus companheiros se aproximando, desfilando altivos com seus uniformes de flanela vermelha, como se fossem os donos do lugar. Viu Cavendish cutucar um deles e, cochichar alguma coisa. Quando ficaram face a face, Alex viu-se subitamente cercado por rapazes vestidos com o tradicional uniforme de jaquetas de tweed e calças de sarja olhando para ele.
- É incrível ver que você teve a coragem de aparecer por aqui, Gilbey - disse Cavendish, sarcástico.
- Acho que tenho mais direito de andar nessas ruas do que você e os seus amiguinhos - disse Alex, suavemente. - Este é o meu país, não o de vocês.
- Belo país esse, onde as pessoas roubam carros e não são punidas. Não consigo acreditar que você e a sua corja não estão sendo julgados pelo que fizeram - disse Cavendish. - Se vocês usaram a minha Land Rover para encobrir um assassinato, não é só com a polícia que vão ter que se preocupar.
Alex tentou avançar, mas estava encurralado, aprisionado pelos solavancos dos cotovelos e das mãos do bando.
- Cai fora, tá, Henry? Não tivemos nada a ver com o assassinato de Rosie Duff. Fomos buscar ajuda, isso sim. Tentamos salvar a vida dela.
- E a polícia caiu nessa? - perguntou Cavendish. - Devem ser mais burros do que eu imaginava. - Um punho surgiu do nada e atingiu Alex violentamente sob as costelas. - Roubando o meu carro, né?
- Eu não sabia que você era capaz de pensar - sussurrou Alex, incapaz de se conter para não irritar mais ainda o seu agressor.
- É lamentável que você ainda seja um membro dessa universidade - gritou alguém, pressionando um dedo ossudo no peito de Alex. - Na melhor das hipóteses, você não passa de um ladrãozinho de merda.
- Meu Deus, ouçam o que estão dizendo. Vocês mais parecem um péssimo esquete cômico - disse Alex, subitamente irado. Ele abaixou a cabeça e se lançou para a frente, o corpo relembrando inúmeros ataques no campo de rúgbi. - Agora, saiam da minha frente! - berrou ele. Ofegante, emergiu do outro lado do grupo e virou-se para trás, o lábio retorcido em um sorriso pretensioso. - Eu tenho uma palestra para assistir.
Surpresos com o seu acesso de fúria, deixaram-no partir. Enquanto ele se afastava, Cavendish disse:
- Pensei que fosse ao enterro, não a uma palestra. Afinal, não é isso o que os assassinos fazem?
Alex virou para trás.
- O quê?
- Você não está sabendo? Vão enterrar Rosie Duff hoje.
Alex subiu a rua, tomado por uma violenta agitação, tremendo de raiva. Teve medo, tinha que admitir. Por um momento, teve medo. Não conseguia acreditar que Cavendish havia usado o enterro de Rosie para insultá-lo. Nem que ninguém tivesse dito a ele que o enterro era naquele dia. Não que quisesse ir. Mas poderia ao menos ter sido informado.
Imaginava como os outros estariam se virando e desejou novamente que Ziggy não tivesse aberto a boca.
Assim que Ziggy pisou na sala para uma aula de anatomia, foi imediatamente saudado com gritos de "Lá vem o ladrão de corpos!".
Ele pôs as mãos para cima, aceitando a gozação dos seus colegas médicos. Se alguém era capaz de ver humor negro na morte de Rosie, eram eles.
- Qual o problema com os cadáveres que eles nos dão para prática? - gritou alguém do fundo da sala.
- São muito velhos e feios para Ziggy - alguém respondeu. - Ele teve que sair por aí em busca de carne nova.
- Chega, pessoal - disse Ziggy. - Vocês só estão com inveja porque eu pude começar a praticar antes de vocês.
Um grupo de colegas se reuniu à sua volta.
- Como é que foi, Ziggy? Disseram que ela ainda estava viva quando vocês a encontraram. Você ficou com medo?
- Fiquei. Fiquei com medo, sim. Mas fiquei mais foi frustrado, porque não pude evitar que ela morresse.
- Qual é, cara, você fez o melhor que pôde - assegurou um colega.
- O meu melhor foi uma merda. A gente passa anos entupindo a cabeça de estudo mas, na hora H, eu não sabia nem por onde começar. Qualquer motorista de ambulância teria mais chance de salvar a vida de Rosie do que eu. - Ziggy tirou o casaco e o deixou cair no espaldar de uma cadeira. - Eu me senti inútil. E foi aí que percebi que a gente não é médico coisa nenhuma, não até sairmos daqui e começarmos a tratar pacientes de verdade.
Uma voz atrás deles disse:
- Essa é uma lição muito valiosa, Sr. Malkiewicz. - Sem que ninguém percebesse, o professor havia se aproximado do grupo e escutado a conversa. - Eu sei que isso não é consolo, mas o legista me disse que quando vocês encontraram a moça, não havia mais nada a ser feito. Ela já havia perdido sangue demais. - Ele deu um tapinha no ombro de Ziggy. - Receio que não podemos fazer milagres. Agora, senhoras e senhores, voltem para os seus lugares. Temos trabalhos importantes a fazer nesse semestre.
Ziggy voltou para o seu lugar, mas a sua cabeça estava voando. Podia sentir o sangue manchando as suas mãos, os batimentos cardíacos fracos e irregulares, o toque gelado da sua pele. Podia ouvir a sua respiração arquejante. Podia sentir o gosto de metal do sangue em sua boca. Perguntava-se se algum dia poderia se livrar dessas lembranças. Perguntava-se se seria capaz de ser um médico, sabendo que o fracasso seria sempre o resultado final das suas ações.
A alguns quilômetros dali, os pais de Rosie estavam se preparando para velar a filha. A polícia havia finalmente liberado o corpo e a família podia enfim dar o seu primeiro passo oficial em sua longa jornada de dor. Olhando-se no espelho, Eileen ajeitou o chapéu, sem se preocupar com o seu rosto, murcho e despido de artifícios. Não perdia mais tempo com maquiagem ultimamente. Maquiagem para quê? Os seus olhos estavam apáticos e carregados. Os comprimidos que o médico receitara não diminuíam a sua dor; apenas a tiravam do seu alcance, transformando o sofrimento em algo que ela mais contemplava do que sentia.
Archie estava na janela, esperando o carro fúnebre. A igreja de Strathkinness não ficava muito longe dali. Decidiram que a família ia caminhar atrás do caixão, acompanhando Rosie em sua última viagem. Os seus ombros estavam encurvados. Envelhecera nas últimas semanas e agora era apenas um velho que havia perdido a vontade de interagir com o mundo.
Brian e Colin, alinhados como ninguém jamais havia visto antes, estavam na copa, procurando coragem em doses de uísque.
- Eu só espero que aqueles quatro tenham o bom senso de não dar as caras - disse Colin.
- Que venham. Estou pronto para eles - respondeu Brian, o seu belo rosto inflexível em sua raiva.
- Hoje não, né? Porra, Brian. Mais dignidade, tá? - Colin esvaziou o copo e o colocou com raiva no escorredor de louça.
- Chegaram - disse o pai lá da sala.
Colin e Brian entreolharam-se, prometendo em silêncio aguentar até o fim sem fazer nada que os envergonhasse ou envergonhasse a memória da irmã. Empinaram os ombros, respiraram fundo e foram.
O carro fúnebre estava parado do lado de fora da casa. A família Duff foi caminhando até ele, de cabeça baixa. Eileen apoiava-se pesadamente no braço do marido. Posicionaram-se atrás do caixão. Atrás deles, amigos e parentes reuniam-se em melancólicos grupos. E mais atrás, vinha a polícia. Maclennan encabeçava o destacamento, orgulhoso ao ver que vários oficiais haviam comparecido, mesmo estando de folga. A imprensa, em uma rara amostra de discrição, concordara com uma cobertura em pool.
Moradores alinhavam-se nas calçadas no caminho até a igreja, muitos decidindo acompanhar o cortejo, que caminhava devagar até a sólida construção cinzenta sob a colina, que contemplava St. Andrews lá embaixo. Depois que todos entraram, a pequena igreja ficou lotada. Algumas pessoas tiveram que ficar nas naves laterais e outras no fundo.
Foi uma cerimônia rápida e formal. Eileen não tivera cabeça para pensar nos detalhes e Archie pedira apenas o mínimo. "É algo que somos obrigados a fazer, e não algo que vamos guardar como lembrança da nossa filha", explicou ele ao pastor.
Para Maclennan, as palavras simples do funeral soaram insuportavelmente pungentes. Aquelas eram palavras que deveriam ser ditas para pessoas que viveram plenamente, e não para uma moça que mal começara a planejar a sua vida. Abaixou a cabeça durante as orações, sabendo que aquilo não traria nenhum consolo para aqueles que haviam conhecido Rosie. Eles não teriam paz até que ele, Maclennan, fizesse o seu trabalho.
E parecia, cada vez mais, que ele não conseguiria lhes dar o que precisavam. A investigação estava praticamente parada. A única prova recente era o cardigã que não oferecera nada além de alguns fragmentos de tinta. Mas nenhuma das amostras coletadas na casa dos estudantes em Fife Park era compatível. Os seus superiores mandaram um superintendente para avaliar o trabalho que ele e a sua equipe haviam feito, sugerindo que eles poderiam ter deixado a desejar. Mas o sujeito teve de reconhecer que Maclennan havia feito um bom trabalho. E não conseguiu oferecer uma única sugestão para novos progressos.
Maclennan via-se voltando sempre para os quatro estudantes. Os seus álibis eram tão inconsistentes que mal mereciam o nome. Gilbey e Kerr estavam interessados nela. Dorothy, uma das garçonetes, mencionara esse detalhe mais de uma vez durante o seu depoimento. "O altão, que parece um Ryan O’Neal moreno", dissera ela. Não que ele fosse descrever Gilbey assim, mas sabia de quem ela estava falando. "Ele era gamadão nela", acrescentara ela. "E o baixinho, que parece um dos T. Rex. Estava sempre sonhando acordado com Rosie. Não que ela lhe desse confiança, veja bem. Ela dizia que ele era muito convencido para o gosto dela. Já o outro, o altão, ela dizia que não se importaria em sair com ele, se fosse uns cinco anos mais velho."
Então, ali estava a sombra de um motivo. E, é claro, eles tiveram acesso ao veículo perfeito para transportar o corpo da moça. Só porque não foram encontradas provas, não significava que eles não haviam usado a Land Rover. Uma lona, uma esteira, até mesmo um pedaço mais grosso de plástico poderia ter limpado o sangue do interior do carro. Não havia a menor dúvida de que o assassino de Rosie estava de carro.
Ou isso, ou ele era um dos respeitáveis moradores de Trinity Place. O problema é que todos os moradores do sexo masculino, entre quatorze e setenta anos, pareciam ter um álibi. Na noite do crime, ou não estavam em casa, ou estavam dormindo, completamente inocentes. Chegaram a dar maior atenção a alguns estudantes, mas não encontraram nada que os ligasse a Rosie, ou ao crime.
Um detalhe da perícia havia feito com que Gilbey parecesse menos culpado: o esperma encontrado nas roupas de Rosie fora depositado por um secretor, alguém cujo tipo sanguíneo está presente em outros fluidos corporais. O estuprador, que possivelmente era o assassino também, tinha sangue do grupo O. Alex Gilbey era AB, o que significava que ele não poderia ter estuprado Rosie, a não ser que estivesse usando um preservativo. Mas Malkiewicz, Kerr e Mackie eram todos tipo O. Então, teoricamente, poderia ser qualquer um dos três.
Não achava que Kerr fosse capaz de cometer algum crime. Mas Mackie, sim, com certeza. Maclennan ficara sabendo da súbita conversão do rapaz ao cristianismo. Para ele, aquilo parecia um ato de desespero, gerado pela culpa. E com Malkiewicz, eram outros quinhentos. Maclennan esbarrara acidentalmente na questão da sexualidade do rapaz, mas se ele estava apaixonado por Gilbey, era possível que quisesse se livrar da concorrência. Não era de todo impossível.
Maclennan estava tão imerso em seus pensamentos que levou um susto ao perceber que a cerimônia havia chegado ao fim e que os fiéis já estavam de pé. O caixão estava sendo removido do altar e Colin e Brian Duff eram os primeiros do pequeno grupo que o carregava. Era possível ver as marcas das lágrimas no rosto de Brian, e Colin parecia estar reunindo todas as suas forças para não chorar.
Maclennan olhou para a sua equipe, fazendo sinal para que se retirassem da igreja enquanto o caixão desaparecia. A família ia ser levada até o cemitério para um enterro particular. Ele saiu da igreja e ficou parado na porta, observando as pessoas se dispersando. Não acreditava que o assassino estivesse ali, entre os fiéis; aquela era uma conclusão muito fácil para que ele pudesse se contentar com ela. Os policiais reuniram-se atrás dele, trocando comentários discretos entre si.
Escondida em um canto, Janice Hogg acendeu um cigarro. Não estava de serviço, afinal de contas, e precisava de uma dose de nicotina após todo aquele sofrimento. Havia dado apenas algumas tragadas quando Jimmy Lawson apareceu.
- Bem que eu achei que estava sentindo cheiro de cigarro - disse ele. - Posso te acompanhar?
Ele acendeu um cigarro, encostando-se na parede, o cabelo caindo na testa, obscurecendo os seus olhos. Janice percebeu que ele estava mais magro ultimamente, e que ficara mais bonito assim, com o rosto mais delgado e o maxilar mais definido.
- Eu não tenho pressa nenhuma de passar por isso de novo tão cedo - disse ele.
- Nem eu. Parece que todo mundo estava olhando para a gente, buscando a resposta que não temos.
- E não estamos nem próximos de ter. O DIC não arrumou um suspeito decente até agora - disse Lawson. A sua voz era tão amarga quanto o vento leste que carregava a fumaça dos seus lábios.
- Não é como Starsky & Hutch, né?
- Ainda bem que não. Quer dizer, você ia querer usar aquele uniforme?
Janice não pôde conter uma risadinha.
- Pensando bem...
Lawson inalou o ar profundamente.
- Janice... você gostaria de tomar um drinque comigo, um dia desses?
Janice olhou para ele, surpresa. Jamais passara pela sua cabeça que Jimmy Lawson percebia que ela era uma mulher, a não ser quando se tratava de preparar um chá, ou dar notícias ruins aos outros.
- Você está me convidando para sair?
- É o que parece, né? E então? O que você me diz?
- Não sei, Jimmy. Não sei se é uma boa ideia se envolver com alguém do trabalho.
- E quando é que a gente tem oportunidade de encontrar outras pessoas, a não ser quando estamos prendendo alguém? Vamos lá, Janice. Só um drinquezinho. Descobrir se a gente combina, que tal? - O seu sorriso lhe conferiu um charme que ela jamais havia percebido.
Olhou para ele, analisando a proposta. Ele não era exatamente um deus grego, mas também não era feio. Tinha fama de ser meio conquistador, alguém que geralmente conseguia o que queria sem fazer muito esforço. Mas sempre a tratara com gentileza, ao contrário de alguns colegas que faziam questão de mostrar o quanto a desprezavam. E fazia muito tempo que ela não saía com alguém interessante.
- Está bem - disse ela.
- Vou checar o quadro de funcionários hoje à noite. Ver quando nós dois vamos estar de folga. - Ele jogou a guimba do cigarro no chão e pisou nela com a ponta do pé. Ela o observou enquanto ele se afastava, indo juntar-se aos outros no outro canto. Ao que parece, tinha acabado de descolar um encontro.
Era a última coisa que imaginava possível de acontecer no funeral de Rosie Duff. Talvez o pastor tivesse razão. Era hora de olhar para o futuro, e não só para o passado.
13
Nenhum dos seus três amigos descreveria Esquisito como sensato, mesmo antes de se converter. Ele sempre fora uma mistura instável de cinismo e ingenuidade. Infelizmente, a sua recém-descoberta espiritualidade o havia despido do cinismo, sem oferecer um bom senso complementar. Então, quando os seus novos amigos crentes anunciaram que não havia ocasião mais oportuna para pregar do que o dia do funeral de Rosie, Esquisito deixou-se levar pela sugestão. A lógica era: as pessoas vão parar para refletir sobre a sua própria mortalidade. E aquele era o melhor momento para lembrá-las de que Jesus oferecera o único caminho para o reino dos céus. A ideia de dar o seu testemunho para estranhos faria com que ele rolasse no chão às gargalhadas algumas semanas antes, mas agora parecia a coisa mais natural do mundo.
Reuniram-se na casa do pastor, um animado jovem galês cujo entusiasmo era quase patológico. Mesmo na febre inicial da sua conversão, Esquisito o achava meio exagerado. Lloyd acreditava piamente que o resto da cidade não aceitara Jesus devido a um único motivo: ele e o seu rebanho não estavam trabalhando direito nas suas pregações. Era óbvio que ele não conhecia Ziggy, o ateu dos ateus. Quase todas as refeições que Esquisito fizera em Fife Park desde que voltaram para lá haviam incluído discussões passionais sobre fé e religião. Esquisito já estava cansado daquilo. Ainda não possuía conhecimento suficiente para rebater todos os argumentos e sabia, instintivamente, que responder com "Este é o mistério da fé" não era o bastante. O estudo da Bíblia ia resolver isso com o tempo, tinha certeza. E até lá, estava rezando para ter paciência e boas respostas.
Lloyd colocou uns panfletos na sua mão.
- Esses aqui dão uma boa introdução sobre o Senhor, junto com uma pequena seleção de passagens da Bíblia - explicou ele. - Tente puxar assunto com as pessoas e depois pergunte se elas podem perder cinco minutinhos do seu tempo para se livrarem da degradação. Aí você entrega o panfleto e pede para elas não deixarem de ler. E explica que se quiserem tirar alguma dúvida, podem encontrar você no culto de domingo. - Lloyd fez um gesto amplo com as mãos, como se querendo dizer que a coisa era simples.
- Ok - disse Esquisito. Olhou para o pequeno grupo à sua volta. Deviam ser uns seis. Tirando Lloyd, tinha apenas mais um homem. Ele havia trazido um violão e parecia empolgado. Infelizmente, a sua empolgação não era proporcional ao seu talento. Esquisito sabia que não devia julgar as pessoas, mas achava que, mesmo em um dia ruim, conseguia tocar muito melhor do que aquele nerd. Mas ele ainda não tinha aprendido as músicas, então não ia poder sair cantando para Jesus naquela noite.
- O pessoal da música vai ficar na North Street. Ali sempre tem movimento. O resto pode rodar pelos pubs. Não precisa entrar. É só abordar as pessoas que estiverem entrando ou saindo. Agora, vamos só fazer uma pequena oração antes de partirmos para a missão do Senhor. - Deram-se as mãos e abaixaram a cabeça. Esquisito experimentou mais uma vez aquela nova sensação familiar de paz o invadir, enquanto se colocava nas mãos do seu Salvador.
Era engraçado ver como as coisas haviam mudado, pensou ele mais tarde, enquanto caminhava sem pressa de um pub para outro. Antigamente, jamais lhe passaria pela cabeça abordar estranhos, a não ser para pedir informações. Mas a verdade é que estava realmente gostando daquilo. A maioria das pessoas lhe dava um fora, mas várias haviam aceitado o panfleto e ele estava confiante de que veria algumas novamente. Estava convencido de que aquelas pessoas tinham notado a tranquilidade e a alegria que ele certamente estava emanando.
Eram quase dez horas da noite quando ele cruzou o maciço arco de pedra da West Port em direção ao Lammas. Ficava chocado ao lembrar quanto tempo havia perdido lá dentro. Não tinha vergonha do seu passado; Lloyd o ensinara que aquilo não era bom. O seu passado era um parâmetro de comparação que servia para mostrar o quão gloriosa era a sua vida atual. Mas lamentava não ter encontrado aquela paz e abrigo antes.
Atravessou a rua e ficou parado na porta do Lammas. Nos primeiros dez minutos, entregou apenas um panfleto para um dos frequentadores habituais do pub, que lançou um olhar curioso para Esquisito enquanto ele abria a porta. Um pouco depois, a porta se abriu novamente, violenta. Brian e Colin Duff surgiram na rua, acompanhados por alguns outros rapazes. Estavam possessos e calibrados de bebida.
- O que é que você está fazendo aqui, porra? - grunhiu Brian, agarrando Esquisito pelo casaco. Ele o empurrou violentamente contra a parede.
- Eu só estava...
- Cala a boca, seu merda - gritou Colin. - Enterramos a minha irmã hoje, graças a você e aos seus amiguinhos desalmados. E você ainda tem a coragem de aparecer por aqui, para pregar?
- E você ainda se diz cristão? Você matou a minha irmã, seu babaca. - Brian estava atirando o corpo de Esquisito contra a parede sem parar. Esquisito tentou se esquivar das suas garras, mas ele era muito mais forte.
- Nunca encostei um dedo nela - gemeu ele. - Não fomos nós.
- Então quem foi? Vocês eram os únicos que estavam lá - esbravejou Brian. Ele largou o casaco de Esquisito e levantou a mão, fechada em punho. - Vamos ver se você vai gostar disso aqui, babaca. - Entrou com um gancho de direita no maxilar de Esquisito, e depois com um de esquerda no rosto. Esquisito caiu de joelhos no chão. Parecia que a parte inferior do seu rosto ia despencar em suas mãos.
E aquilo era só o começo. Pés e punhos surgiram de repente, golpeando cruelmente o seu corpo. Sangue, lágrimas e muco escorriam pelo seu rosto. O tempo parecia estar parado, distorcendo as palavras e intensificando cada golpe agonizante. Nunca participara de uma briga de gente grande e toda aquela violência explícita o aterrorizava.
- Meu Deus, meu Deus - soluçava ele.
- Ele não vai te ajudar agora, seu merda! - gritou um dos agressores.
Então, como por milagre, a surra chegou ao fim. E tão logo o último golpe foi desferido, ficaram todos em silêncio.
- O que é que está acontecendo aqui? - perguntou uma voz de mulher. Esquisito, encolhido na posição fetal que adotara durante a surra, levantou a cabeça. Uma policial estava diante dele. Atrás dela, ele pôde ver o policial que acompanhara Alex na noite do crime. Os agressores estavam parados no mesmo lugar, carrancudos, com as mãos nos bolsos.
- A gente só estava se divertindo um pouquinho - disse Brian.
- Não me parece nada divertido, Brian. A sorte dele é que o dono do pub decidiu chamar a polícia - disse ela, agachando-se para examinar o rosto de Esquisito. Ele ficou sentado e tossiu, expelindo muco e sangue. - Você é Tom Mackie, não é? - perguntou ela, compreendendo tudo.
- Sou - gemeu ele.
- Eu vou pedir uma ambulância - disse ela.
- Não - acudiu Esquisito, conseguindo se levantar com muito esforço. - Eu vou ficar bem. A gente só estava se divertindo mesmo. - Falar, percebeu ele, não estava sendo nada fácil. Era como se tivesse feito um transplante de maxilar que não estava funcionando muito bem.
- Acho que o seu nariz está quebrado, filho - disse o policial. Qual era mesmo o nome dele? Morton? Lawton? Lawson, isso.
- Está tudo bem. Eu moro com um médico.
- Ele era um estudante de medicina na última vez que ouvi falar dele - disse Lawson.
- Vamos te levar para casa na viatura - disse a mulher. - Eu sou a policial Hogg e este é o policial Lawson. Jimmy, cuida dele um instantinho, eu preciso ter uma palavra com esses idiotas. Colin, Brian? Venham cá. E vocês aí, caiam fora. - Ela levou Colin e Brian para um canto. Teve o cuidado de permanecer perto de Lawson, para que ele pudesse acudir, caso as coisas saíssem do controle. - Que diabos foi isso? - perguntou ela. - Vejam só o estado do garoto.
Boquiaberto, com os olhos vidrados e encharcado de suor, Brian deu um sorriso bêbado de escárnio.
- Foi menos do que ele merece. E você sabe muito bem o que foi isso. Estamos fazendo o seu trabalho, porque vocês são um bando de incompetentes que não conseguem descobrir porra nenhuma.
- Cala a boca, Brian! - implorou Colin. Ele estava apenas um pouco mais sóbrio do que o irmão, mas sempre tivera uma espécie de instinto para evitar problemas. - Olha, foi mal, tá? As coisas saíram um pouco do controle por aqui.
- E como, né? Vocês quase mataram o garoto.
- Pode até ser, mas ele e os amiguinhos fizeram o serviço completo com a minha irmã - disse Brian, doido para começar outra briga. De repente, o seu rosto ficou enrugado e lágrimas correram pela bochecha. - A minha irmãzinha. A minha Rosie. O que eles fizeram com ela não se faz nem com um cachorro.
- Você está enganado, Brian. Eles são testemunhas, não suspeitos - disse Janice, exausta. - Eu já te expliquei isso, na noite do crime.
- Vocês são os únicos que pensam assim por aqui - disse Brian.
- Fica quieto! - pediu Colin. Ele se virou para Janice. - Você vai prender a gente, ou o quê?
Janice suspirou.
- Eu sei que o enterro de Rosie foi hoje. Eu estive lá e vi o quanto os pais de vocês estão arrasados. Em consideração a eles, eu vou deixar passar desta vez. Acho que o Sr. Mackie não vai querer prestar queixa. - Colin fez menção de falar alguma coisa, mas ela prontamente ameaçou, com o dedo em riste: - Mas você e o Cassius Clay aqui vão ter que me prometer que não vão mais sair por aí fazendo esse tipo de coisa, ok? Esse é o trabalho da polícia.
Ele concordou com um gesto de cabeça.
- Ok, Janice.
Brian fez uma cara de espanto.
- Desde quando você chama ela de Janice? Ela não está do nosso lado, não, entendeu?
- Cala a porra dessa boca, Brian! - disse Colin, sílaba por sílaba. - Peço desculpas pelo meu irmão. Ele bebeu um pouco demais.
- Tudo bem. Mas você não é burro, Colin. Você sabe que eu não estou brincando. Deixem Mackie e os amigos dele em paz. Entendeu?
Brian deu um riso debochado.
- Acho que ela está a fim de você, hein, Colin?
A ideia obviamente acionou a parte bêbada do cérebro de Colin Duff.
- Sério? Ué, o que você acha, Janice? Por que você não me coloca na linha, hein? Topa sair comigo? Aposto que você ia se divertir.
Janice percebeu um movimento com o canto dos olhos e virou-se a tempo de ver Jimmy Lawson sacando o cassetete e avançando em direção a Colin Duff. Ela levantou a mão para mantê-lo afastado, mas a ameaça já fora o bastante para que Colin recuasse, com os olhos arregalados e assustados.
- Ei! - protestou ele.
- Limpa essa boca, seu escrotinho de merda! - bradou Lawson, sério e irado. - Nunca, nunca mais na sua vida se dirija a um policial assim! E agora, suma da minha frente antes que eu convença a oficial Hogg a mudar de ideia e mandar vocês dois para cumprir uma boa pena na cadeia! - As palavras que saíram dos seus lábios contraídos refletiam a sua animosidade. Janice estava passada. Detestava quando os policiais homens achavam que podiam demonstrar a sua masculinidade com o pretexto de defender a sua honra.
Colin agarrou Brian pelo braço.
- Vamos. Tem uma cerveja esperando a gente lá dentro. - Ele levou o seu irmão desconfiado embora, antes que ele causasse mais alguma encrenca.
Janice virou-se para Lawson.
- Não tinha necessidade disso, Jimmy.
- O quê? Ele estava te passando uma cantada! E ele não serve nem para engraxar os seus sapatos. - A voz dele era só desprezo.
- Eu sei me cuidar muito bem, Jimmy. Já tive que aturar coisas muito piores do que Colin Duff sem ter você ao meu lado bancando o herói. Agora, vamos levar o garoto pra casa.
Ajudaram Esquisito a entrar no carro e o acomodaram no banco de trás. Quando Lawson se dirigia para o banco do motorista, Janice disse:
- E Jimmy... Sobre o nosso encontro. Acho que não vai dar, não.
Lawson olhou para ela longa e fixamente.
- Você é que sabe.
Foram até Fife Park em um silêncio sepulcral. Ajudaram Esquisito até a porta de casa e depois voltaram para o carro.
- Janice, desculpa se peguei pesado. Mas Duff passou dos limites. Não se pode falar com um policial daquele jeito - disse Lawson.
Janice se inclinou sobre o teto do carro.
- Ele passou dos limites, sim. Mas você não reagiu daquele jeito porque ele estava insultando o cargo. Você sacou o seu cassetete porque, na sua cabeça, você achou que eu era propriedade sua, só porque topei sair para tomar um drinque com você. E ele estava invadindo o seu território. Sinto muito, Jimmy. Mas o que eu menos preciso na minha vida agora é isso.
- Não foi nada disso, Janice - protestou Lawson.
- Deixa pra lá, Jimmy. Sem ressentimentos, ok?
Ele deu de ombros, petulante.
- Você é que vai sair perdendo mesmo. Companhia feminina é o que não me falta. - Ele entrou no carro e sentou-se no banco do motorista.
Janice sacudiu a cabeça, incapaz de conter um sorriso. Como os homens eram previsíveis. Bastava sentir um cheiro de feminismo no ar para darem no pé imediatamente.
Dentro de casa, em Fife Park, Ziggy estava examinando Esquisito.
- Eu disse que isso ia acabar em lágrimas - disse ele, pressionando delicadamente os dedos no tecido inchado em volta das costelas e do abdômen de Esquisito. - Você sai para uma pregaçãozinha light e volta parecendo um figurante de filme de guerra. Avante, soldados cristãos!
- Não teve nada a ver com o meu testemunho - disse Esquisito, franzindo o rosto de dor por causa do esforço. - Foram os irmãos de Rosie.
Ziggy parou imediatamente.
- Os irmãos de Rosie fizeram isso com você? - perguntou, visivelmente preocupado.
- Eu estava na porta do Lammas. Alguém deve ter contado a eles. Eles saíram e me deram uma surra.
- Puta que pariu. - Ziggy foi até a porta. - Gilly! - gritou ele. Mondo tinha saído, como fazia quase toda noite, desde que haviam voltado das férias. Às vezes aparecia para o café da manhã, às vezes, nem isso.
Alex desceu as escadas correndo, estacando diante da visão do rosto destruído de Esquisito.
- O que aconteceu com você, porra?
- Os irmãos de Rosie - resumiu Ziggy. Encheu uma tigela com água morna e começou a limpar o rosto de Esquisito delicadamente, com bolas de algodão.
- Eles te deram uma surra? - Alex mal conseguia compreender o que estava acontecendo.
- É o que parece - disse Esquisito. - Ai! Dá pra ir com mais cuidado?
- O seu nariz está quebrado. Você devia ir pro hospital - disse Ziggy.
- Detesto hospitais. Conserta aí pra mim.
Ziggy suspendeu as sobrancelhas.
- Tenho medo de não ficar bom e você acabar igual a um boxeador frustrado.
- Vou arriscar.
- Pelo menos, o maxilar está inteiro - disse ele, inclinando-se diante do rosto de Esquisito. Segurou o nariz dele com as duas mãos e girou, tentando não ficar enjoado com a crepitação triturante da cartilagem. Esquisito gritava, mas Ziggy seguiu em frente. Tinha suor sobre os lábios. - Pronto - disse ele. - Isso é o melhor que eu posso fazer.
- O funeral de Rosie foi hoje - disse Alex.
- Ninguém avisou a gente - reclamou Ziggy. - Isso explica por que os ânimos estavam tão exaltados.
- Você acha que eles vão vir atrás da gente, então? - perguntou Alex.
- A polícia os ameaçou - disse Esquisito. Falar estava ficando cada vez mais difícil, à medida que o maxilar enrijecia.
Ziggy observou o seu paciente.
- Bom, Esquisito, vendo o seu estado, Deus queira que eles tenham se sentido ameaçados mesmo.
14
Qualquer esperança que pudessem ter acalentado sobre a morte de Rosie ter sido uma comoção passageira foi por água abaixo diante da cobertura jornalística do funeral. Lá estava o crime na primeira página novamente e qualquer pessoa que tivesse perdido a cobertura inicial dificilmente conseguiria ignorar a reprise.
E Alex, novamente, foi a primeira vítima. Voltando do supermercado para casa alguns dias depois, estava pegando um atalho no fundo do Jardim Botânico quando Henry Cavendish e os seus amigos surgiram em um bando desorganizado, com roupas de rúgbi. Assim que avistaram Alex, começaram a assoviar, depois o cercaram e começaram a empurrá-lo. Formando um círculo à sua volta, arrastaram-no para fora da grama e o atiraram no chão lamacento de neve derretida. Alex rolava no chão, tentando se esquivar dos chutes. Não corria o risco de se confrontar com uma violência real como a que Esquisito experimentara e estava mais irritado do que com medo. Uma bota acertou o seu nariz e ele sentiu o sangue esguichar.
- Sumam daqui! - gritou ele, limpando a mistura de lama, sangue e neve derretida do rosto. - Por que vocês não me deixam em paz, porra?
- Vocês é que deviam sumir, matador - gritou Cavendish. - Ninguém quer vocês por perto.
Uma voz tranquila acudiu.
- E quem quer vocês por perto?
Alex esfregou os olhos e viu Jimmy Lawson parado, à margem do grupo. Demorou um pouco para reconhecê-lo sem o uniforme, mas o seu coração acelerou quando percebeu quem era.
- Cai fora - disse Edward Greenhalgh. - Você não tem nada a ver com isso.
Lawson meteu a mão dentro do casaco e puxou o seu distintivo da polícia. Abrindo-a de modo displicente, ele disse:
- Acho que tenho, sim, senhor. Pois bem, quero saber o nome de cada um de vocês. Creio que é um assunto que terá de ser levado para as autoridades acadêmicas.
Súbito, eram crianças novamente. Mexeram-se para lá e para cá, inquietos, olhando fixamente para o chão, resmungando os detalhes para Lawson, que anotava tudo no seu caderninho. Enquanto isso, Alex levantou-se, encharcado e imundo, contemplando os destroços das suas compras. Uma garrafa de leite estourara sobre a sua calça, uma jarra plástica de iogurte de limão entornara sobre uma das mangas do seu casaco.
Lawson dispensou os vândalos e ficou parado olhando para Alex, sorrindo.
- Você está péssimo - disse ele. - Sorte sua eu estar passando por aqui.
- Você não está trabalhando? - perguntou Alex.
- Não. Eu moro ali na esquina. Dei uma saída rápida para pegar a correspondência. Vamos, vamos até lá em casa, dar um jeito nessa sua roupa.
- Eu agradeço a sua gentileza, mas não precisa, não.
Lawson sorriu.
- Você não pode andar por St. Andrews desse jeito. Vai acabar sendo preso por assustar os jogadores de golfe. E, além do mais, você está tremendo. Precisa de uma xícara de chá.
Alex não ia discutir. A temperatura estava caindo vertiginosamente e a ideia de voltar para casa a pé, encharcado daquele jeito, não era nada agradável.
- Obrigado - aceitou ele.
Dobraram a esquina e entraram em uma rua novinha em folha, tão nova que ainda não estava nem asfaltada. As primeiras casas já estavam prontas mas, não muito adiante, havia apenas terrenos vazios para futuras construções. Lawson passou direto pelas casas prontas e parou mais à frente, diante de um trailer estacionado no que, um dia, poderia ser um jardim. Atrás do trailer, quatro paredes e vigas de madeira cobertas de lona ofereciam a promessa de algo mais suntuoso do que um veículo com quatro cabines.
- Estou construindo uma casa. A rua toda está fazendo a mesma coisa. Cada um ajuda o outro, com trabalho braçal e habilidades específicas. Assim, eu vou conseguir ter uma casa de chefe com um salário de policial. - Ele subiu os degraus do trailer. - Mas, por enquanto, é aqui que eu moro.
Alex entrou atrás dele. O trailer era aconchegante, com um aquecedor a gás portátil exalando calor no limitado recinto. Alex ficou impressionado com a arrumação. A maioria dos homens solteiros que ele conhecia vivia em chiqueiros, mas a casa de Lawson era impecável. Todos os metais brilhavam. A pintura estava limpa e era recente. As cortinas de cor viva estavam amarradas com capricho. Não havia nada bagunçado. Estava tudo no lugar, organizado; livros na estante, xícaras penduradas pela alça no gancho no armário, fitas cassetes em uma caixa, plantas de arquiteto emolduradas no tabique. O único sinal de que alguém de fato morava ali era uma panela fervendo no fogão. O cheiro da sopa de lentilhas atingiu Alex em cheio.
- Muito bom - comentou ele, dando uma olhada geral.
- É um pouco apertado, mas mantendo arrumado não fica tão claustrofóbico. Tira a jaqueta, a gente pode colocar ali em cima do aquecedor. Agora, você precisa lavar o rosto e as mãos. O banheiro fica ali, logo depois do fogão.
Alex entrou no minúsculo cubículo. Olhou-se no espelho, sobre a pia de casa de bonecas. Estava realmente péssimo. Sangue coagulado, lama. E iogurte de limão grudado no cabelo. Não era de admirar que Lawson tivesse insistido para que ele fosse até o trailer se ajeitar. Deixou a água correr na pia e se esfregou até ficar limpo. Quando saiu do banheiro, Lawson estava inclinado no fogão.
- Agora, sim! Senta aí do lado do aquecedor, você vai se secar rapidinho. Quer um chá? Ou então, acabei de fazer uma sopa, se você preferir.
- Vou aceitar a sopa. - Alex sentou-se ao lado do aquecedor enquanto Lawson servia às colheradas uma tigela generosa da sopa amarelo-dourada com pedaços de pernil de porco. Colocou a tigela diante de Alex e lhe deu uma colher. - Não quero parecer rude, mas por que o senhor está sendo tão gentil comigo? - perguntou ele.
Lawson sentou à sua frente e acendeu um cigarro.
- Porque tenho pena de você, e dos seus amigos. Tudo o que vocês fizeram foi agir como cidadãos responsáveis, mas ganharam fama de bandidos. E eu me considero parcialmente responsável. Se eu estivesse fazendo a minha ronda, em vez de estar prostrado dentro do meu carro, poderia ter pegado o assassino em flagrante. - Ele inclinou a cabeça para trás e exalou um suspiro de fumaça no ar. - É por isso que eu acho que não foi alguém daqui. Qualquer um que conhecesse aquela região à noite saberia que sempre tem uma viatura de polícia parada ali. - Lawson fez uma careta. - Não temos ajuda de custo de gasolina suficiente para dirigirmos por aí a noite toda, então somos obrigados a estacionar em algum lugar.
- Maclennan ainda acha que fomos nós? - perguntou Alex.
- Não sei o que ele acha, filho. Vou ser franco com você. Voltamos à estaca zero. E por isso vocês acabaram na linha de fogo. E os irmãos Duff estão soltos por aí, caçando vocês, e pelo que eu vi hoje, os seus amigos também se voltaram contra você.
Alex bufou.
- Eles não são meus amigos. O senhor realmente vai dar queixa deles?
- Você quer que eu faça isso?
- Para falar a verdade, não. Eles vão acabar arrumando um jeito de se vingar. Mas não acho que vão nos perseguir mais depois dessa. Vão ficar com medo da mamãe e do papai ouvirem a respeito e cortar a mesada deles. Estou mais preocupado com os Duff.
- Acho que eles também vão deixar vocês em paz. A minha colega pegou pesado com eles. O seu amigo Mackie teve o desprazer de topar com eles em um péssimo dia. Eles estavam arrasados depois do funeral.
- Com certeza. Só espero não receber um tratamento como o que Esquisito ganhou.
- Esquisito? Você está falando do Sr. Mackie? - Lawson franziu a testa.
- A-ham. É um apelido dos tempos de colégio. De uma música do David Bowie.
Lawson sorriu.
- Mas é claro! Ziggy Stardust e as Aranhas de Marte. Então você é o Gilly, não é? E Sigmund, o Ziggy.
- Exatamente.
- Eu não sou tão mais velho do que vocês assim. E o que sobrou para o Sr. Kerr?
- Ele não é muito fã de David Bowie, não. Ele gosta do Pink Floyd. Então, ficou sendo Mondo. Crazy Diamond? Lembra?
Lawson fez que sim com a cabeça.
- Ótima sopa, por sinal.
- Receita da minha mãe. Vocês se conhecem há um tempão, então?
- Nos conhecemos no primeiro dia de aula. Somos melhores amigos desde então.
- Todo mundo precisa de amigos. É como no meu trabalho. Você trabalha com as mesmas pessoas durante um tempo e elas são como os seus irmãos. Você dá a vida por elas, se for necessário.
Alex deu um sorriso compreensivo.
- Sei o que você quer dizer. Com a gente também é assim. - Ou era assim, pensou ele, sentindo uma pontada no peito. Naquele semestre, as coisas estavam bem diferentes. Esquisito passava mais tempo com o Esquadrão de Deus do que com eles. E só Deus sabia onde Mondo se metia na maior parte do tempo. Os Duff não eram os únicos pagando um alto preço emocional pela morte de Rosie, percebeu Alex subitamente.
- Então vocês seriam capazes de mentir pelo outro se fosse preciso, né?
Alex parou com a colher no ar, a caminho da boca. Então era isso. Empurrou a tigela e se levantou, apanhando a jaqueta.
- Obrigado pela sopa - disse ele. - Estou bem agora.
Ziggy raramente se sentia solitário. Por ser filho único, estava acostumado com a sua própria companhia e nunca deixou de se divertir. Sua mãe sempre olhava para os outros pais como se eles fossem malucos quando reclamavam que os filhos se sentiam entediados durante as férias. Tédio jamais fora problema naquela família.
Mas naquela noite, a solidão infiltrara-se em sua casa em Fife Park. Ele estava cheio de trabalho para mantê-lo ocupado, mas pela primeira vez precisava de companhia. Esquisito saíra com o seu violão, tentando aprender como louvar o Senhor em três acordes. Alex chegara em casa de mau humor após uma briga com a Direita e um encontro com o tira Lawson, que havia terminado mal. Mudara de roupa e partira para uma palestra com slides sobre pintores venezianos. E Mondo estava fora, provavelmente trepando.
E essa até que não era uma má ideia. A última vez que fizera sexo foi bem antes de se depararem com Rosie Duff. Passara a noite em Edimburgo, no único pub que conhecia onde gays eram bem recebidos. Ficara parado no bar, bebericando o seu chope, olhando furtivamente para os lados, evitando olhar fixamente para alguém. Passada meia hora, um jovem de uns vinte e poucos anos parou ao seu lado. Usava jeans, camiseta e jaqueta. Era bonito, tinha aparência de durão. Puxou um papo e eles acabaram fazendo sexo, rápido mas satisfatório, contra a parede do banheiro. Terminaram muito antes do horário do último trem, que levaria Ziggy de volta para casa.
Ziggy ansiava por algo mais do que aqueles encontros anônimos com estranhos, que constituíam a sua única experiência com sexo. Queria o que os seus amigos heterossexuais pareciam ter com tanta facilidade. Queria galanteios e romance. Alguém com quem pudesse compartilhar uma intimidade que fosse além da troca de fluidos corporais. Queria um namorado, um amante, um parceiro. E não fazia a menor ideia de como encontrá-lo.
Havia um grupo gay na universidade, ele sabia. Mas eram uns gatos pingados que pareciam adorar a polêmica de serem reconhecidos como gays. A política da Liberação Gay interessava Ziggy, mas os caras que ele via posando pelo campus não tinham nenhum compromisso político sério. Só gostavam de ser populares. Ziggy não tinha vergonha de ser gay, mas não queria que aquilo fosse a única coisa que as pessoas soubessem a seu respeito. Além disso, queria ser médico e suspeitava, sabiamente, que uma carreira como ativista gay não ajudaria muito na sua ambição.
Então, por enquanto, a única saída para extravasar os seus sentimentos eram os encontros casuais. Pelo que sabia, não havia nenhum pub em St. Andrews onde pudesse encontrar o que estava procurando. Mas havia alguns lugares para onde os homens iam, prontos para fazer sexo anônimo com estranhos. O problema é que esses lugares eram ao ar livre, e naquele tempo poucos iriam enfrentar o frio. Mas, mesmo assim, ele não devia ser o único rapaz em St. Andrews a fim de transar naquela noite.
Ziggy vestiu a sua jaqueta de pelo de carneiro, amarrou o cadarço das botas e saiu de encontro ao ar gelado da noite. Depois de uma caminhada vigorosa de quinze minutos, lá estava ele, nos fundos da catedral em ruínas. Atravessou o pátio, alcançando o que restara da igreja de Santa Maria. Espreitando nas sombras das paredes arruinadas, era comum ver homens por lá tentando fingir que haviam saído para dar uma voltinha que incluía um tour pela herança arquitetônica do lugar. Ziggy ergueu os ombros e tentou parecer casual.
No porto, Brian Duff estava bebendo com os amigos. Estavam entediados. E bêbados o bastante para fazer algo a respeito.
- Isso aqui está um saco - reclamou Donny, seu melhor amigo. - E a gente não tem nem grana pra ir a um lugar onde se possa passar uma noite decente.
A reclamação correu o grupo. Então Kenny teve uma ideia.
- Já sei o que a gente pode fazer. Diversão e dinheiro. E sem o risco de sermos denunciados.
- O quê? - quis saber Brian.
- Vamos roubar uns viados.
Olharam para ele como se estivesse falando grego.
- Hein? - perguntou Donny.
- Vai ser engraçado. E eles estão sempre com dinheiro. Não vão querer criar caso com a gente, né? São um bando de maricas mesmo.
- Você está sugerindo sair por aí e assaltar os outros? - perguntou Donny, deixando a preocupação transparecer em sua voz.
Kenny deu de ombros.
- Estou falando dos viados. Eles não contam. Nem vão sair correndo para a polícia, né? Porque aí vão ter que explicar o que estavam fazendo nos fundos da igreja de Santa Maria, no escuro.
- Pode ser engraçado - disse Brian, com a voz arrastada. - Fazer as bonecas se borrarem de medo. - Ele riu. - Se borrarem de medo. Isso pode ser uma má notícia para alguém. - Ele esvaziou a garrafa de cerveja e ficou de pé. - Vamos lá, então. O que vocês estão esperando?
Saíram sorrateiros pela noite, se acotovelando e rindo alto. Não precisaram caminhar muito até as ruínas da igreja. A meia-lua espreitava entre nuvens inconstantes, tornando o mar prateado e iluminando o caminho dos rapazes. À medida que se aproximavam, iam ficando em silêncio, pisando na ponta dos pés. Circularam a igreja. Nada. Esgueirando-se contra a parede, cruzaram os vestígios de uma soleira. E lá, em plena alcova, encontraram o que estavam procurando.
Um homem encostado na parede, com a cabeça jogada para trás, deixando gemidos de prazer escaparem dos seus lábios entreabertos. Diante dele, um outro homem ajoelhado, com a cabeça movimentando-se para frente e para trás.
- Ora, ora - disse Donny. - O que temos aqui?
Assustado, Ziggy levantou a cabeça e olhou, aterrorizado, para o seu pior pesadelo.
Brian Duff deu um passo à frente.
- Isso realmente vai ser divertido.